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8 Jaime Cubero

Prefácio

Jaime Cubero, uma vontade anárquica de


saber

“O militante anarquista vale mais pela


coerência de suas atitudes, de seu modo de
proceder, no lar e na atuação pública, do que por
sua capacidade de escrever ou discursar.”
Edgard Leuenroth, 1963.

Seu melhor livro Jaime o escreveu com a própria vida: um


estilo de existência, um modo de ser e estar no mundo, uma
maneira de agir e de se conduzir em relação a si e aos outros,
faziam da sua vida uma prática de liberdade. Mais do que dar à
anarquia a forma meramente exterior da escritura, Jaime
interiorizou-a em seu modo de ser, inscrevendo-a
cuidadosamente em cada um de seus gestos, atos e palavras.
Como o bom artesão cuja habilidade transforma matéria bruta
em obra de arte, Jaime, artesão de si mesmo, conferiu à própria
vida uma forma anárquica. A anarquia era para ele uma técnica
de si: uma arte que se aplica a si mesmo com o propósito de
transformar a própria vida em obra, atribuindo-lhe uma forma
anárquica. Como mostrou Michel Foucault, era o que os gregos
chamavam de tékhne toû bíou, as artes da existência.1 Em se
tratando do anarquismo, seria preciso colocá-lo entre as
técnicas de existência cujo objetivo é fazer da vida individual
um exercício de liberdade. Esse é o sentido de se dizer que o
anarquismo é uma ética e que o anarquista é alguém que se
constitui a si mesmo como sujeito anárquico.
Os anarquistas sempre conferiram à ética uma importância
crucial, é o que explica a existência desse extraordinário
investimento em escolas modernas, ateneus libertários, centros
de cultura, círculos de estudos, grêmios recreativos, grupos de

1
M. Foucault. A hermenêutica do sujeito. Curso no Collège de France
(1981-1982). Trad. Márcio Fonseca e Salma Muchail. São Paulo: Martins
Fontes, 2004.
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teatro etc., que povoam a história do anarquismo dos últimos


150 anos – na balança dessas atividades, o sindicato e a luta
sindical pesam bem pouco. Na medida em que o
comportamento anárquico não se adquire espontaneamente,
mas por meio de práticas e exercícios, todos esses ambientes
criados pelos anarquistas cumprem a importante função de
operadores éticos: mais do que mera propaganda, são espaços
destinados para a assimilação dos valores do anarquismo e para
a constituição da subjetividade anárquica.
Nesse amplo universo de pedagogia anarquista, o ensino
passa necessariamente pelo exemplo e pela adequação entre
conhecimento e conduta individual. Jaime sabia-o bem, por isso
afirmava a importância de um saber com vontade: “o
importante não é o saber, mas o saber sabendo o porquê do que
se sabe” (“Educação independente da escola”; “O anarquismo:
uma visão da educação da criança na família”). Tema da
máxima urgência, diz Jaime, o de devolver ao saber suas
motivações e intenções; o de evidenciar que em todo saber
reside uma vontade que o afirma ou que o rejeita. Só então será
possível fazer os indivíduos perceberem que eles fazem o que
não querem e que não fazem o que querem. É no plano volitivo,
portanto, bem mais do que no intelectivo, em que está dada a
possibilidade para que o saber cesse de pesar sobre nós como
um fardo, para que produza liberdade em vez de conformidade
e para que sua força possa assumir a forma de uma vontade
livre. Como diz Jaime, não basta conhecer as coisas para ser
capaz de um ato livre, é preciso também um querer agir
livremente, pois “o saber fornece apenas as notas, a matéria do
ato; a vontade, a capacidade de escolha e de resolução” (“A
concepção anarquista do homem”).
Nesse sentido, Jaime distinguiu entre “ato de liberdade”
como possibilidade para agir, e “ato livre” como vontade de
ação. Naquilo que é, sem dúvida, uma das mais belas páginas do
anarquismo brasileiro, ele dirá que mesmo o pássaro da gaiola é
capaz de realizar o primeiro e o escravo, embora livre de suas
correntes, ainda não é capaz do segundo. Ora, “a liberdade de
exercício [o ato de liberdade] até os opressores dão. Todos tem a
liberdade de andar, comer, trabalhar, apoiar os dominadores e
fazer tudo o que não os ponha em risco.” Já o ato livre não pode
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ser dado nem limitado por ninguém, por que sua ação é ética:
um indivíduo pode ter suas pernas amarradas, e mesmo
amputadas, sem que seja destruída sua vontade de movimento.
Aqui reside a autêntica liberdade: “Essa liberdade, diz Jaime, é
inimiga dos poderosos. E eles sabem disso, por isso a anulam.
[...] Liberdade não é ausência de restrições”. Foi, portanto, uma
falsa liberdade que a democracia legou aos homens quando,
concedendo-lhes liberdade de ação, anulou neles a vontade para
agir. Contudo, a liberdade é inseparável do querer.
Jaime conferiu à ética uma importância prática e teórica
fundamental no interior do seu anarquismo; para aqueles que o
conheceram, essa foi, sem dúvida, a particularidade que mais
distinguia seu caráter pessoal. Mas é também um dos traços que
torna sua reflexão hoje bastante atual. Em nossa atualidade a
ética anarquista torna-se um problema político urgente e
fundamental na medida em que hoje vivemos imersos em
relações de poder que são exercidas, sobretudo, no plano da
subjetividade, fazendo com que a dominação política assegure
seus efeitos pelo fato de estar ancorada na nossa própria
maneira de ser e de sentir, em nossos desejos e afetos.
Durante muito tempo o marxismo induziu a pensar o
capitalismo exclusivamente como modo de produção e a
perceber a luta contra a exploração econômica como a mais
importante. Mesmo entre os anarquistas a força retórica do
marxismo ofuscou o que havia dito Malatesta, e antes dele
Proudhon: bem mais do que exploração econômica, o
capitalismo produz, sobretudo, uma sujeição política de fundo
moral: produz também uma maneira de ser e de existir no
mundo. Consequentemente, o capitalismo não é simplesmente
um modo de produzir coisas, produz igualmente padrões de
vida nos quais os indivíduos são levados a transformar seu
tempo em tempo de trabalho e sua força em força de trabalho.
Assim, mais do que uma economia de mercado dotada de modo
de produção de riquezas materiais, o capitalismo estabeleceu
também uma economia subjetiva munida de instituições
destinadas à produção de subjetividades.
Toda mercadoria produzida exige também a produção de
certas maneiras de existir e de sentir que deverão ser
assimiladas pela subjetividade dos indivíduos: antes de produzir
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carro, é preciso produzir desejo de carro; antes de produzir


televisão, é preciso produzir desejo de televisão. Como assinalou
Félix Guattari, a produção do desejo de consumir é mais
importante que a produção do objeto de consumo, pois é o
desejo que “fornece a matéria prima de toda e qualquer
produção”.2 Nesse sentido, o consumo de um bem material
qualquer implica também o consumo e a assimilação de desejos,
valores, sensibilidades, maneias de ser e existir a ele associadas.
De tal modo que a palavra de ordem do neoliberalismo foi desde
o início ‘mudar o homem para adaptá-lo ao mercado’: adaptar
sua conduta, seu comportamento e sua ação aos valores do
mercado. Não por acaso a grande obra de Ludwig von Mises
intitular-se A ação humana.
Coloca-se aqui toda a urgência da questão ética. Em
nenhum outro regime como o democrático a produção do
desejo foi tão necessária: desautorizada a impor simplesmente
pela força, a democracia precisa fazer os indivíduos desejarem
autoridade, polícia, prisão, patrão, governo, pouco recorrendo
aos instrumentos de violência e terror do passado, mas
fortemente atuando no campo da ética, dos valores e das
sensibilidades. Por essa razão a luta contra a dominação hoje,
para ser eficaz, deve estabelecer como alvo essa economia-
política da produção de subjetividades. Hoje, mais do que
nunca, a ruptura política e econômica deve ser acompanhada e
revestida por um tipo de ruptura ética: uma ruptura operada no
âmbito de nossos próprios desejos e das nossas maneiras de
desejar.
Como resistir a um poder que nos faz desejar nossa própria
dominação? A história do anarquismo nos ajuda a encontrar
uma resposta. Tal como é possível apreender em sua história, o
anarquismo jamais se configurou simplesmente como ideologia
ou como teoria ou como racionalidade (seja ela política, como
no absolutismo; econômica, como no liberalismo; ou histórica,
como no marxismo). Se o anarquismo jamais desempenhou
nenhum desses papéis, foi precisamente por ter se configurado
como uma ética, como atitude e comportamento, como modo de

2
Félix Guattari; Suely Rolnik. Micropolítica, cartografias do desejo. 4ª ed.,
Petrópolis: Vozes, 1996.
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ser e maneira de existir no mundo, como estilo de existência. O


que não quer dizer em absoluto que o anarquismo seja ausente
ou esvaziado de política. No fundo, a separação que se faz entre
ética e política é completamente inconsistente. Toda ruptura
política digna desse nome é também uma ruptura ética: negar a
autoridade do Estado implica na negação dos valores estatais.
Quando isso não ocorre, não é possível falar efetivamente em
ruptura, mas de mera substituição, embora com outro nome.
Assim, para haver ruptura política efetiva, ela deve ser
acompanhada necessariamente de uma ruptura ética. Encontra-
se no anarquismo, e isso desde o início da sua história, uma
indissociável vinculação entre ética e política.
Assim, mais do que outra política, o anarquismo também se
constituiu historicamente como outro tipo de experiência do
mundo. Basta pensar na formidável subversão de valores,
jamais vista na história do Ocidente, promovida pela Revolução
Espanhola. Nela desapareceram as formas servis e protocolares
de tratamento, que reforçam e reproduzem no plano da
linguagem as relações políticas de dominação, tais como
Senhor, Dom e até mesmo o pronome formal de respeito Usted
foram substituídos pelo simples camarada e tu, e o solene
Buenos dias! deu lugar ao fraternal Salud!.3 Foi igualmente uma
disposição ética que impediu, até o último momento, o processo
de militarização das milícias revolucionárias: embora colocando
gravemente em perigo a própria vida, os milicianos recusaram-
se a utilizar o convencional capacete de aço sustentando com
firmeza que “um espanhol livre não se comporta como um
militar”.4
Portanto, a configuração ética do anarquismo tal como pode
ser apreendida na sua própria história, o subtrai do campo
fechado da teoria, da ideologia, da racionalidade, para colocá-lo
no campo da experiência entendida não como uma maneira de
conhecer as coisas ou como instrumento para aquisição de
conhecimento sobre as coisas: é sobretudo uma maneira de

3
George Orwell. Lutando na Espanha e Recordando a guerra civil. 2ª ed.,
trad. Affonso Blacheyre. Rio de Janeiro: Globo, 1987.
4
Henry Pachter. España, crisol político. Buenos Aires: Editorial Proyección,
1966.
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fazer coisas. Nesse sentido, o anarquismo não é uma teoria. Foi


Todd May quem sugeriu que, diferente do liberalismo (detentor
de um conhecimento jurídico) e do marxismo (detentor de um
conhecimento estratégico), o conhecimento do anarquismo é de
tipo tático.5 Ao contrário do direito e da estratégia, a tática não
requer uma teoria, mas sim habilidade e técnica (tékhne); ela
exige um saber-fazer desprovido de valor universal e adaptado
às circunstâncias. A tática é sempre circunscrita pelo campo das
experiências particulares; enquanto a estratégia opera a partir
de uma teoria com validade universal: por exemplo, a teoria da
vanguarda, do partido, do sindicato, da cúpula, da linha de
frente etc. O teórico Lenin sabia-o bem quando afirmou, em
Que fazer?: “sem teoria revolucionária não há revolução”. Os
anarquistas diriam que sem experiência revolucionária não é
possível nem o revolucionário nem a revolução. Ora, sendo o
pensamento anarquista uma reflexão tática, ele é incapaz de
falar em nome do outro, de lhe dizer qual é o melhor caminho
ou a melhor ação; sua única possibilidade é a de se expressar a
partir da própria experiência da luta contra o poder. E como
existem diversas lutas contra diferentes poderes (poder paterno,
professoral, médico, heterossexual, patronal, estatal etc.), cada
luta produzirá seu próprio saber tático sem jamais assumir o
caráter global e universal das teorias estratégicas de vanguarda.
Pelo contrário, são saberes locais correspondentes ao tipo de
luta específica contra formas de dominação particulares.
Entretanto, há algo que articula esses diferentes saberes
anárquicos: trata-se do tipo de experiência procedente de uma
mesma vontade de não deixar-se governar. Em 1849 Proudhon
resumiu essa experiência na seguinte frase: “O problema não é
saber como ser melhor governado, mas como ser mais livre.”
Em vez de descobrir a melhor forma de governo a tarefa é
desenvolver uma vontade de não ser governo; substituir nos
indivíduo o desejo de governo por uma vontade de não governo.
Assim, embora o anarquismo apresente uma multiplicidade de
saberes, ele possui também esse “denominador comum” que os
faz convergir e que os articula: uma vontade de não ser

5
Todd May. The Political Philosophy of Poststructuralist Anarchism.
Pennsylvania: The Pennsylvania State University Press, 1994.
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governado ou um tipo de inservidão voluntária.


* * *
Uma das maiores lições de Jaime foi, sem dúvida, ter nos
mostrado a importância da ética e insistido que “para o
anarquista, todos os valores se subordinam aos valores éticos.”
Nestes tempos em que boa parte do anarquismo brasileiro sofre
de obsessão por uma cega eficiência política, ignorando que a
organização, e mesmo a maior das vitórias, nada importam
quando desvirtuam o comportamento individual; as palavras de
Jaime surgem como centelhas iluminando o horizonte: “contra
toda a desmoralização do ato humano, a luta anarquista não
tem limite”.

Nildo Avelino
Manhattan/New York City, outono de 2015

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