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A RELIGIOSIDADE DO ILHÉU
(Ilha da Madeira)
PORTO
2011
UNIVERSIDADE CATÓLICA PORTUGUESA
Centro Regional do Porto
Escola das Artes
Licenciatura em Som e Imagem
A RELIGIOSIDADE DO ILHÉU
(Ilha da Madeira)
POR
Leonor Neves da Costa Luís dos Reis
PORTO
2011
SUMÁRIO
Introdução ....................................................................................................................... 3
2 – As Manifestações de religiosidade....................................................................... 6
Conclusão ...................................................................................................................... 14
Fontes e Bibliografia...................................................................................................... 16
INTRODUÇÃO
A CONDIÇÃO DE ILHA
MANIFESTAÇÕES DE RELIGIOSIDADE
1
É também neste dia que, segundo a sabedoria popular, se devem plantar as searinhas (searas de
trigo) para serem colocadas na lapinha (presépio), e que segundo reza a tradição “dão sorte e pão” o ano
inteiro”.
singularidades culturais desta região. O nome “Missas do Parto”, esse, foi invenção do
povo insular que associou o “Ó” das antífonas de Vésperas do Ofício Divino, entoadas nas
novenas originais, ao estado avançado de gravidez da Virgem Maria. Interessa ainda
apontar a tal espiritualidade que temos vindo a realçar ao longo deste trabalho, tão presente
no povo madeirense, que se evidencia até nas horas a que são celebradas estas missas –
antes do amanhecer. Porquê? Porque a Virgem Maria é vista como a “Aurora” da
Redenção que vai dar à luz, aquele que ilumina toda a humanidade. As novenas do Natal,
como também são denominadas, (são nove missas que representam os nove meses de
gravidez da Virgem), iniciam-se com a chamada da população através do toque de
campainhas e cantos de estrofes populares, sendo constituídas por, Invitatório, invocação
ao Espírito Santo, Retrato de Nossa Senhora, Ladainha, Antífona e a Salve-Rainha, após a
qual, se inicia à missa.
No primeiro capítulo falámos da condição de ilha, da Madeira, e, derivado disso,
falámos, obviamente, do seu isolamento. Ora, este isolamento pode bem ser a razão da
preservação de tradições como, precisamente, a Missa do Parto, ou, dentro desta, os
cânticos entoados nestas missas que, segundo o Dr. Rufino Silva, no livro “Cânticos
Religiosos do Natal Madeirense”, são já centenários, tendo chegado à ilha através dos
primeiros colonos, provenientes do Norte e das Beiras de pais; tendo sofrido ainda
influências de outros povos, como os flamengos ou os italianos, a verdade é que chegaram
até nós – “não serão por certo os da época do povoamento, mas terão as suas raízes numa
vivência cultural de mais de quatro séculos”, disse aquele autor.
Na véspera do dia 24, dia em que terminam as Missas do Parto, outro grande
momento de celebração, este já de carácter profano, a ida ao Mercado, ou a noite do
Mercado, cuja finalidade seria, originalmente, o reforço de artigos alimentares para a Ceia
de Natal, que acontece após da Missa do Galo, essa, sim, já comum um pouco por todo o
país. Na sequência daquilo que tínhamos dito em relação ao Natal na Madeira não se
limitar à véspera e ao dia da Festa, interessa salientar o facto de a terminologia católica
popular ter sempre orientado o “natal madeirense”. E tal é visível através do emprego dos
vocábulos: “primeira oitava”, “segunda oitava”, ou “oitavas de Natal”, e mesmo, “oitavas
de Jesus” e “oitavas de Reis”. Esta tradição com raízes na liturgia judaica, muito em voga
na Idade Média, é assinalada na Madeira com alguns costumes, entre os quais se destacam,
as visitas às lapinhas2 dos vizinhos e até da freguesia, o jogar e rezar o terço, também
diante da lapinha; estas tradições que se prolongaram no tempo, como aliás quase toda a
ambiência natalícia, mantêm-se ainda hoje em dia, valorizando de tal forma as “oitavas de
natal” que foi instituído um feriado regional (Decreto Legislativo Regional N.º 18/2002/M
de 8 de Novembro) assinalando o dia 26 de Dezembro como “a primeira oitava”.
Não finda aqui A Festa, que se mantém viva, após outro grande acontecimento, a
passagem de ano, e mesmo após o Dia de Reis, só terminando no dia 15 de Janeiro, com o
Varrer dos Armários ou o Dia de Santo Amaro, altura em que se guardam as decorações e
se desmontam as lapinhas; e só aqui, são dadas por findas “as manifestações de regozijo do
Natal, tanto do agrado do bom povo madeirense.”3
Falemos agora de uma das principais devoções dos madeirenses, cujo culto se
mantém vivo entre esta gente, desde os primórdios da colonia – A Festa do Espírito Santo.
Esta Festa, celebrada um pouco por toda a ilha, destaca-se pelo seu carácter único, que alia
à religião, o mágico e o ritual, ao que se junta, a tradição e a própria noção de festa e de
diversão. Curiosamente, este seu carácter de diversão e de folgança, valeram-lhe a
condenação eclesiástica, de um modo geral, e de um modo particular, na Fajã da Ovelha,
onde a sua proibição acabou por se tornar uma realidade. Mas é este carácter, no fundo,
humano, que me proponho expor em seguida e, quem sabe, dele tirar importantes ilações
que permitam conhecer um pouco melhor a religiosidade deste povo, que é, na verdade, o
tema deste trabalho.
2
Na Madeira chama-se lapinhas aos tradicionais presépios; “as «lapinhas» madeirenses são armadas sobre
uma mesa, tendo como centro uma pequena escada de poucos decímetros de altura, de três lanços contíguos,
e no topo da qual se coloca a imagem do Menino Jesus. Em todos os degraus da escada e em torno dela estão
dispostos os «pastores» e vários objectos de ornato (…) ”, exemplo das searinhas e das peças de fruta, “Em
obediência às condições do meio, terão algumas características próprias, como sejam as ornamentações com
os ramos do arbusto «alegra-campo» e dos fetos «cabrinhas», que lhes imprimem uma feição pitoresca e
alegre”, retirado de Elucidário Madeirense II Volume
3
Vd., AZEVEDO, Carlos, SILVA, Fernando Augusto – Elucidário Madeirense, Volume II, 3ª edição. 1966
Tendo já feito referência ao carácter diverso desta devoção, interessa agora referir e
diferenciar os dois momentos, distintos, em que ela acontece, e em que se expressa, de
forma, também, distinta, o culto ao Espírito Santo. Temos, então, um primeiro momento,
interior, de solenidade e tradição – a adoração, e um segundo momento exterior, de
manifestação colectiva – a festa. Embora, à primeira vista estes dois momentos pareçam
opostos e até mesmo, incompatíveis, eles são, na verdade, complementares, ao ponto de
sem um não poder existir o outro. O momento interior tem lugar no lar de cada família, que
aguarda com toda a solenidade, de janelas abertas e arranjos florais, a visita do Espírito
Santo que agradece com uma esmola; e é, precisamente, esta esmola que servirá como
ponto de união entre a adoração e a festa. Mas antes ainda de fazermos esta ligação
interessa explorar um pouco melhor este primeiro momento. Como já tinha dito, as
famílias aguardam a visita do Espírito Santo, que chega “sob a forma” de um pequeno
grupo, liderado pelo “Imperador”, que envergando uma opa de seda vermelha sobre um
fato preto, carrega no seu ceptro, uma bandeira vermelha com uma pomba branca ao centro
– o Espírito Santo. Representação de pureza, simplicidade e paz, este símbolo assume uma
importância e uma presença verdadeiramente universais; dos poucos símbolos, talvez, que
qualquer um é, ainda hoje, capaz de reconhecer, num mundo cada vez mais desligado e
ignorante de um simbolismo, neste caso, o religioso, que tem, desde o seu aparecimento,
sido parte intrínseca e vital na vida e na cultura de toda uma humanidade.
Os “Imperadores” têm a função de receber as esmolas das famílias, funcionando no
fundo, como a representação do Espírito Santo, como veremos mais à frente. Fazem-se
acompanhar nas visitas por dois mordomos e por um pequeno número de raparigas, com
idades entre os 10 e os 12 anos de idade, cada uma vestida com uma saia e uma blusa
brancas, cobertas por um colete e uma capa vermelhas. As “saloias”, como são chamadas,
tocam os sinos à porta das casas como forma de avisar para as famílias para a visita do
Espírito Santo, entoando cânticos antes, durante e após essa mesma visita; aqui, cada
membro da família deposita o seu beijo na pomba branca, representativa, como já vimos,
do Espírito Santo; a isto segue-se a tal esmola, sempre entregue pelo chefe de família, ou,
na sua ausência pelo filho mais velho. Alguns cânticos mais, e a visita termina.
Fig. 2 - Os "Imperadores" e as saloias. Arquivo VICENTES (Extraído de A Festa do Espírito Santo de
VERÍSSIMO, João Nelson em Revista Atlântico)
Falemos então, agora, das esmolas, razão de ser desta celebração; entregues ao
“Imperador” pelas famílias como dádiva ao Espírito Santo, as esmolas, que podem ser em
forma de dinheiro ou de bens alimentares servem para unir a comunidade e apagar as
desigualdades. No Domingo do Espírito Santo, Dia de Pentecostes, são escolhidos, após a
missa, 12 pobres – tal como os Apóstolos – que após um almoço em casa do “Imperador”,
regressam à festa, onde, numa mesa de copa estão dispostas as oferendas da população.
Num acto simbólico, a fazer lembrar a Última Ceia, os 12 pobres sentam-se à mesa e dá-se
a bênção do pão, após a qual se divide a esmola pelos pobres, que a levam para casa. No
dia seguinte, segunda-feira, o pão benzido é distribuído pelas famílias que contribuíram
com as esmolas; repartido irmãmente pela família, deve sobrar sempre um pedaço, que por
possuir poderes miraculosos, não cria bolor, e aqui entra o carácter místico e ritual da festa,
pois quando uma tempestade se lança sobre a família, o pão é lançado à Natureza, que se
acredita, acalmará os ventos e de novo unirá o Homem e a Natureza.
Tal como afirmei no inicio deste subcapítulo, é verdade que esta devoção se
mantém viva, eu mesma o confirmo, pois ano após ano, nas semanas que se seguem à
Páscoa, recebo em casa a visita do Espírito Santo, com os seus sinos e cânticos. Mas a
verdade é que parte de toda a mística que envolvia esta devoção deixou de se fazer sentir,
de forma tão intensa, pelo menos. E se é verdade que não podemos comparar a expressão
das devoções no campo e na cidade (a descrição que fiz era do campo, e a minha
experiência é da cidade), não é menos verdade, que as próprias populações rurais admitem
a descaracterização de muitas devoções - descaracterização, não extinção.
Resultado dos tempos e de uma maior e natural abertura da Madeira ao exterior, e
de um menor isolamento interior, na relação entre o campo e a cidade, as devoções e as
festas parecem, assim, ter perdido um pouco do seu carácter religioso e alguns traços da
sua tradição; mas não desaparecerem, nem desapareceram, segundo creio, pois embora
descaracterizadas, continuam muito presentes na cultura e no espírito de todo o
madeirense.
Chegamos, enfim, à conclusão deste trabalho e às desejadas ilações que, com a sua
elaboração, tirei e que irei agora partilhar.
Começo por fazer uma breve revisão dos temas que tratamos: falámos da condição
de ilha da Madeira, e do isolamento que dela decorre, um isolamento, não só, como referi,
em relação ao exterior mas também em relação às suas zonas mais recônditas, que são
muitas, principalmente nas zonas mais altas, no norte da ilha; introduzi, em seguida, alguns
traços da religiosidade madeirense, que ilustrei com alguns exemplos de manifestações
religiosas, de enorme relevância e significado na cultura madeirense, nomeadamente, o
Natal, a Festa do Espírito Santo e, finalmente, A Procissão do Voto.
Relembro o tema deste trabalho – A Religiosidade do Ilhéu. Foi essa, então, a
problemática que me propus explorar, e que, julgo poder agora, dela tirar certas ilações.
A religiosidade na Madeira está, como vimos, muito ligada à vida rural, e
principalmente à dureza dessa vida e dessas populações, que no seu isolamento, que
explorámos também, encontraram na religião a sua única fonte de consolo; a única forma
de “fugirem”, momentaneamente, a uma realidade de constante pobreza, dificuldades e
limitações. Agarraram-se, então, de uma forma, diga-se, intuitiva, inata, a uma fé de
reciprocidade de protecção e devoção; uma fé de favores. Quando, no decorrer do trabalho,
me apercebi do carácter desta religiosidade, da noção de fé destas pessoas, não consegui
deixar de questionar a sua legitimidade; perguntei-me, então, não será a religião mais do
que mero instrumento de trocas de favores? Não será mais que uma garantia de protecção,
à qual se recorre quando se precisa? Tenho plena consciência de que esta discussão
ultrapassa os limites da minha problemática, contudo achei particularmente interessante
tentar explorá-la um pouco, ainda que baseada, unicamente, na minha opinião e na minha
visão em relação à religiosidade. Não posso dizer que tenha chegado a uma conclusão
definitiva ou que manterei, eternamente, este ponto de vista, mas creio que, sendo ela, em
grande parte, uma questão de abertura e de bom senso, é pertinente nesta discussão.
Aquilo que conclui foi que, na verdade, a legitimidade de uma determinada fé, ou
de um certo modo de ver a religião e aquilo que ela representa, não está dependente do seu
carácter, mas da fidelidade com que é vivida. Compreendi também, ou melhor, confirmei a
ideia de que a fé é realmente algo muito pessoal, e que está dependente das circunstâncias
da sua existência e da sua expressão, logo, nunca poderíamos exigir, por assim, dizer, a
uma população com as características que já por várias vezes referi, uma noção de fé e de
religiosidade mais culta ou mais pensada, com um carácter menos mendicante e mais
intelectualizado; logo, conclui, que esta fé, tão própria das pessoas rurais, se adequa às
suas circunstâncias, e julgo, se intensifica, com a tal condição de ilha, e com a tal “dupla
insularidade”.
Quero deixar bem claro que não me oponho, de forma alguma, a este “tipo” de fé,
nem teria qualquer legitimidade ou autoridade para fazê-lo, assim como não a vejo como
inferior ou superior a qualquer outra. Reconheço-lhe, ainda, uma qualidade que me parece
ser importante referir, o facto de atendendo, mais uma vez às particularidades da ilha, e às
circunstâncias de vida da população, esta ter conseguido manter de forma mais viva as
tradições e as devoções que caracterizam a sua religiosidade.
Podemos então concluir que a insularidade ou um maior isolamento de uma
determinada zona ou região tem, na verdade, uma vertente positiva, que de certa forma,
não digo equilibra, mas atenua a sua vertente negativa, desempenhando um importante
papel na preservação da cultura e da tradição de um povo.
FONTES E BIBLIOGRAFIA
Webografia:
http://www.sir-madeira.org/WebRoot/Sir/Shops/sir
madeira/MediaGallery/infraestruturacao-exploracaoXVeXVI.pdf
http://www.agencia.ecclesia.pt/cgi-bin/noticia.pl?&id=86115
http://www.agencia.ecclesia.pt/cgi-bin/noticia.pl?id=53981
http://madeira-gentes-lugares.blogspot.com/2010/12/o-natal-madeirense-as-
oitavas.html
Bibliografia
VERÍSSIMO, João Nelson, A Festa do Espírito Santo, Revista Atlântico,
n.º 1, Primavera 1985
AZEVEDO, Carlos, SILVA, Fernando Augusto – Elucidário Madeirense,
Volumes I-III, 3ª edição. 1966