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Segredos e Truques

da Pesquisa
Nova Biblioteca de Ciências Sociais
diretor: Celso Castro

Forças armadas e política no Brasil


José Murilo de Carvalho

O Brasil antes dos brasileiros


André Prous

Jango e o golpe de 1964 na caricatura


Rodrigo Patto Sá Motta

Questões fundamentais da sociologia


Georg Simmel

Segredos e truques da pesquisa


Howard S. Becker
Howard S. Becker

Segredos e Truques
da Pesquisa

Tradução:
Maria Luiza X. de A. Borges

Revisão técnica:
Karina Kuschnir
IFCS/UFRJ

Rio de Janeiro
Para Dianne

Título original:
Tricks of the Trade
(How to Think about Your Research While You’re Doing It)

Tradução autorizada da primeira edição norte-americana,


publicada em 1998 por The University of Chicago Press, de Chicago, EUA
Licensed by The University of Chicago Press, Chicago, Illinois, USA

Copyright © 1998, The University of Chicago. All rights reserverd.

Copyright da edição brasileira © 2008:


Jorge Zahar Editor Ltda.
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Capa: Eliane Stephan

CIP-Brasil. Catalogação-na-fonte
Sindicato Nacional dos Editores de Livros, RJ.

Becker, Howard S.
B356s Segredos e truques da pesquisa / Howard S. Becker; tradução, Maria Luiza X. de A. Borges;
revisão técnica, Karina Kuschnir. — Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 2007

Tradução de: Tricks of the trade: (how to think about your research while you’re
doing it)
Apêndice
Inclui bibliografia
ISBN 978-85-378-0046-1

1. Ciência – Metodologia. 2. Pesquisa – Metodologia. I. Kuschnir, Karina. II. Título.



CDD 001.42
07-4137 CDU 001.8
Sumário

Prefácio à edição brasileira, 7


Prefácio à edição norte-americana, 13

1. Truques, 17
2. Representações, 28
Representações substantivas, 30
Representações científicas, 36
A narração de histórias científicas, 37
O truque da hipótese nula [null hypothesis], 40
Coincidência, 50
A sociedade como uma máquina, 58
A sociedade como organismo, 65
Narrativa, 84
Causas, 91

3. Amostragem, 96
O que incluir?, 96
Amostragem e sinédoque, 96
Amostragem aleatória: uma solução perfeita (para alguns problemas), 97
Alguns outros problemas de amostragem, 100
Onde parar? O caso da etnomusicologia, 101
Quanto detalhe? Quanta análise?, 107
Além das categorias: descobrir o que não se encaixa, 115
A descrição e as “categorias”, 115
Tudo é possível, 118
As idéias de outras pessoas, 121
Por outro lado..., 132
Usar a informação de outras pessoas, 136
Instituições bastardas, 138
4. Conceitos, 145
Conceitos são definidos, 146
Habilitação, 149
Crime, 154
Definição de conceitos: alguns truques, 158
Deixe o caso definir o conceito, 161
Generalização: o truque de Bernie Beck, 164
Conceitos são generalizações, 167
Conceitos são relacionais, 172
O truque de Wittgenstein, 180
Aumentar o alcance de um conceito, 183

5. Lógica, 188
Encontrar a premissa maior, 189
Para compreender conversas estranhas, 193
Traçando a linha: crocks, 194
“Não é (seja o que for)”, 202
Tabelas de verdade, combinações de tipos, 209
Obras de arte e tabelas de verdade, 212
Análise do espaço de propriedades (AEP), 219
Análise comparativa qualitativa (ACQ), 232
Indução analítica (IA), 244
A lógica subjacente das combinações, 265

6 . Coda, 269

Notas, 274
Referências bibliográficas, 281
Índice remissivo, 290
Prefácio à edição brasileira


Este livro foi escrito para ajudar as pessoas a compreenderem como se
faz o trabalho cotidiano de pesquisa em ciências sociais, como lidar com
os problemas que incomodam estudantes e jovens pesquisadores quando
se ocupam de aprender um ofício profissional estranho: pensar sobre os
dados que colhem, escolher os lugares aonde vão colher seus dados e as
pessoas que observam ou entrevistam. Situa-se, nesse sentido, na tradição
norte-americana de pensamento pragmático. Não tem em mira um sistema
abrangente de conceitos e idéias, e sim uma série de coisas a serem feitas
para ajudar o trabalho a avançar.
Esta ênfase talvez reflita uma tendência peculiarmente norte-ameri-
cana de preferir a pesquisa empírica ao pensamento abstrato, embora seja
provável que as culturas sociológicas nacionais não se mostrem assim tão
diferentes. Mesmo que a ciência social brasileira, muito influenciada pelo
tipo de obra que vem da França, produza e respeite o pensamento socioló-
gico abstrato, ela conta também com grandes corpos de pesquisa empírica
séria que não diferem acentuadamente do tipo de trabalho que este livro
pretende auxiliar.
Obras brasileiras sobre métodos de pesquisa contêm informação tão
detalhada sobre como fazer análises estatísticas quanto os livros norte-
americanos a respeito do assunto. Uma forma de pensar sobre este livro

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é simplesmente como um desses compêndios sobre maneiras de fazer as


coisas. É por isso que ele se intitula Segredos e truques da pesquisa, para en-
fatizar que pretende auxiliar na feitura do trabalho — e não apresentar um
sistema de idéias e conceitos logicamente consistente e rigoroso.

Os problemas de qualquer tradução já são bem conhecidos. Palavras que


têm um sentido certo, claramente compreendido, num país e numa língua,
perdem o sentido ou são enganosas em outro lugar e outra língua. Talvez
possamos compreender isso através do insight — encontrado na filosofia
de Wittgenstein, nas análises lingüísticas de Benjamin Whorf e na psi-
cologia social de George Herbert Mead e Herbert Blumer (a “interação
simbólica” com que está associada a Escola de Chicago) — de que a língua
é parte de um modo de viver, de que as palavras significam o que passaram
a significar em seu uso diário, de que elas adquirem sentido no que é feito
quando são ditas.
Os conceitos do pensamento sociológico não constituem exceção a
esta regra. Gostamos de pensar que nossos conceitos são atemporais e uni-
versais, que representam categorias básicas do comportamento humano e
da organização social. Mas um momento de reflexão mostra que todos os
nossos conceitos são histórica e geograficamente situados e representam
uma maneira de pensar ligada a tal lugar, tal país, tal época. Talvez nos-
sos conceitos sejam ainda mais provincianos que isso e estejam amarrados
também a determinada classe social, a tal grupo profissional, tal grupo de
gênero.
Para nossos presentes propósitos, importante é o vínculo entre país e
língua, por um lado, e análise sociológica, por outro. Você está lendo um
livro escrito por um cientista social norte-americano. Embora não tenha
sido feito tendo em mente um leitor norte-americano (e muitos exemplos,
de fato, vêm de outros lugares do mundo), ele se refere, a maior parte do
tempo, a experiências, eventos, organizações e práticas sociais que pare-
cerão familiares a qualquer norte-americano de certa idade — e que os
leitores de outros lugares do mundo poderão achar estranhos ou de difícil
compreensão.
Considere a análise (ver p. 79) de como a prática e a carreira médicas
podem depender de onde a clínica de um determinado profissional se situa.
sumário 9

Ela começa se referindo à distribuição geográfica diferencial de classes e


grupos étnicos e raciais. Depois comenta o modo como as culturas des-
ses grupos levam a diferentes hábitos de alimentação, e, por fim, discute
como esses diversos padrões de alimentação poderiam produzir diferentes
tipos de problemas de saúde. Grupos cuja dieta habitual é cheia de coles-
terol provavelmente terão mais problemas cardíacos que outros com uma
dieta menos gordurosa.
Em seguida acrescento uma complicação geográfica. Suponha que
você, membro de um grupo étnico que tem essa dieta pouco saudável, vive
num lugar habitado sobretudo por integrantes de sua própria etnia e onde,
como no Norte dos Estados Unidos, neva durante grande parte do ano.
Imagine ainda que você, como proprietário de uma casa, seja responsável
por limpar a neve da calçada pública em frente a ela. Podemos presumir
que esse violento exercício episódico poderia torná-lo mais propenso a um
ataque cardíaco que as pessoas que se alimentam de maneira diferente e
cuja situação de moradia não requer esse tipo intensivo de tarefa. Os mé-
dicos provavelmente adaptariam suas práticas médicas às doenças comuns
em sua área, de modo que aqueles que clinicam em sua área tenderiam a se
especializar em doenças cardíacas, e as carreiras médicas seriam moldadas
por esse padrão de especialização — assim como a prática da medicina
numa comunidade cheia de pessoas mais velhas levaria a uma maneira
diferente de exercer a medicina (mais pacientes com doença de Alzheimer,
artrite e outras doenças comuns entre idosos) e a diferentes contingências
de carreira (mudança mais rápida na clientela, pois os pacientes morrem
mais rapidamente que entre uma população mais jovem).
Esta pode parecer uma análise perfeitamente “neutra”, sem nenhum
“viés americano”. Mas os exemplos possuem pressupostos que poderiam
não se sustentar em outros lugares, em particular no Brasil. Para começar, a
sociologia norte-americana tem em seu cerne uma referência onipresente
a dois dos grandes fatos da história dos Estados Unidos: a importação de
africanos como escravos e sua subseqüente emancipação lenta dessa con-
dição; e as vastas ondas de imigração da Europa, Ásia e América do Sul
que tiveram lugar ao longo dos séculos XIX e XX, e ainda prosseguem. (Há
similaridades no Brasil, que importou igualmente africanos como escravos
e também teve uma história de substanciais ondas de imigração de outros
10 segredos e truques da pesquisa

países; mas os padrões resultantes de segregação urbana talvez sejam di-


ferentes.)
Esses dois grandes fatos produziram uma população composta de
grupos étnicos e raciais relativamente bem definidos, que vivem em comu-
nidades semi-segregadas, na qual existe uma cultura de grupo, contendo,
entre outros aspectos, hábitos e preferências alimentares característicos.
Eles produziram, igualmente, uma série contínua e persistente de “proble-
mas sociais” — como curar as feridas e remediar as injustiças deixadas pela
história da escravidão, como “absorver” as vastas diferenças em culturas e
modos de vida que surgiram a partir do ingresso de novos grupos num país
onde agrupamentos mais antigos já haviam moldado algumas das formas
costumeiras de atividade.
A sociologia norte-americana, quase sempre de maneira implícita,
mas muitas vezes explicitamente, considera raça e etnicidade os princi-
pais eixos de diferenciação na sociedade. O que levou à acusação, feita por
cientistas sociais que trabalham em situações históricas diferentes, de que
os sociólogos norte-americanos negligenciam e minimizam as relações de
classe como traços importantes da vida diária. A ciência social brasileira
tem suas próprias idiossincrasias nacionais a considerar, talvez, em especial,
o desafio de construir um país unificado a partir de seus três principais
grupos raciais constituintes.
A análise das carreiras médicas oferecida simplesmente como um
exemplo ilustra a importância das diferenças nacionais. Ela começa, lem-
bre-se, com uma referência à maneira como os grupos étnicos apresentam
uma distribuição geográfica diferencial, referência que talvez seja “tipica-
mente americana”, e quem sabe tem alguma ressonância no Brasil. Ela fala
sobre um padrão de queda de neve — que sem dúvida não é uma possi-
bilidade séria em quase todo o Brasil — e, de maneira mais importante,
sobre um padrão de responsabilidade pela remoção da neve que é típico de
bairros americanos compostos de moradias unifamiliares, pequenas cons-
truções independentes habitadas por uma única família. Esta é a sua casa:
você deve remover a neve que cai na calçada — uma responsabilidade que
é legal (se alguém escorregar e se ferir o proprietário poderá ser obrigado
a pagar multas substanciais; e isto se refere, por sua vez, a uma conhecida
tendência americana a procurar soluções legais para danos desse tipo) e
sumário 11

ao mesmo tempo informal (os outros proprietários podem exercer uma


pressão informal sobre aquele que não remove a neve).
Tomemos esse longo exemplo como representante do tipo de pro-
blema que este livro cria para o leitor não-americano, que não tem esse
“conhecimento de fundo” para moldar a leitura das histórias e análises que
ele contém. Até que ponto isso é um problema?
Por um lado, poderia ser uma grande questão. O exemplo menciona-
do envolvendo prática médica, hábitos étnicos de alimentação, padrões
de moradia, responsabilidades a eles associadas e a queda de neve e suas
conseqüências exemplifica o que poderia dar errado. Se você não sabe
que as pessoas vivem em áreas etnicamente segregadas que tornam fá-
cil manter dietas culturalmente distintas; que as áreas do país diferem
enormemente em termos da quantidade de neve que recebem; que os
proprietários das casas são responsáveis pela remoção da neve; que eles
tendem a ter uma idade em que os maus hábitos de alimentação afetarão
sua saúde cardíaca — se você não sabe nada disso, pode ter dificuldade
em decodificar o exemplo.
Mas vivemos num mundo em que as pessoas sabem muito sobre ou-
tras culturas e modos de vida. Em geral atribuímos todo esse conhecimen-
to aos filmes e à televisão, mas jovens no mundo todo leram, cem anos
atrás, e ainda lêem hoje, as obras de Alexandre Dumas e Walter Scott, que
se referiam a sociedades cujas práticas eram muito mais estranhas para eles
que a vida diária atual no Rio de Janeiro para um jovem norte-americano,
ou a vida diária atual em Nova York para um jovem brasileiro. Talvez esses
jovens americanos que liam Dumas não compreendessem todas as nuanças
da nobreza e da corte francesas, e o cenário político desses romances, mas
podiam acompanhar a história e entender o que estava em jogo. De modo
que é bem possível que os brasileiros que lerem este livro não o considerem
tão estranho em suas referências a coisas especificamente americanas a
ponto de não serem capazes de apreender as idéias gerais que os exemplos
pretendem ilustrar.
Isso traz à baila uma segunda e talvez mais difícil diferença nacional.
Este livro é escrito de uma forma que não é estranha para leitores ameri-
canos. Ele raciocina a partir de exemplos específicos tomados da literatura
sociológica e também da vida cotidiana. Entra em grande detalhe com re-
12 segredos e truques da pesquisa

lação aos exemplos, e as lições “teóricas” são extraídas de maneira informal


e não enfática — não como o ponto de partida para uma “grã teoria”. O
livro é sobre a compreensão do mundo e sobre como fazemos o trabalho
que conduzirá a essa compreensão, ele não diz ao leitor como construir
uma teoria maior e melhor.
Esse é um modo de apresentar o pensamento sociológico diferente
daquele comum no Brasil, na França, na Grã-Bretanha e em muitos ou-
tros lugares do mundo, no qual o discurso teórico assume um valor muito
maior que o que este livro lhe atribui. (Quando, anos atrás, propus-me a
fazer uma palestra no Rio de Janeiro chamada “Teoria, o mal necessário”,
meus colegas brasileiros me pediram que não usasse esse título. Alegavam
que ninguém sequer ouviria o que eu tinha a dizer depois de conhecer o
título. O texto dessa palestra está incluído neste livro.)

São Francisco, 2007

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