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RICHARD T. SCHAEFER
6a EDIÇÃO
Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)
(Câmara Brasileira do Livro, SP, Brasil)
1. Sociologia. I. Título.
CDU 316
Catalogação na publicação: Ana Paula M. Magnus – CRB 10/2052
N
as suas tentativas de sobreviver disfar- afetado pelos conteúdos de uma revista de aventura
çada em uma trabalhadora de baixa em quadrinhos, os sociólogos se preocupam em saber
renda disfarçada em diferentes cidades como grupos inteiros de pessoas são afetados por esses
dos Estados Unidos, a jornalista Barbara fatores, e como a própria sociedade pode ser alterada
Ehrenreich desvendou padrões de inte- por eles. Assim, os sociólogos não estão preocupados
ração humana e usou métodos de estudo com o que um indivíduo faz ou deixa de fazer, mas com
relacionados à investigação sociológica. Esse excerto o que as pessoas fazem como membros de um grupo,
do seu livro Nickel and Dimed: On (Not) Getting By in ou na interação com os outros, e o que isso significa
America [Miséria à americana] descreve como Ehren- para os indivíduos e para a sociedade como um todo.
reich deixou sua casa confortável e assumiu a identi- Como campo de estudo, a sociologia tem uma
dade de uma dona-de-casa divorciada de meia-idade, abrangência extremamente ampla. Você verá neste
sem diploma universitário, e com pouca experiência de livro a gama de tópicos que os sociólogos investigam
trabalho. Ela foi em busca de um emprego que pagasse – do suicídio ao hábito de ver televisão, da sociedade
melhor e de uma forma de vida mais econômica para Amish aos padrões econômicos globais, da pressão
ver se conseguiria sobreviver. Meses depois, completa- entre os pares às técnicas de bater carteira. A sociologia
mente exausta e desmoralizada pelas regras de trabalho, observa como os outros influenciam o nosso compor-
Ehrenreich pôde confirmar o que já suspeitava antes de tamento; como as grandes instituições sociais, como o
começar: sobreviver naquele país como um trabalhador governo, a religião e a economia, nos afetam; e como
de baixa renda é uma aposta difícil de ganhar. nós mesmos afetamos outros indivíduos, grupos ou até
O estudo de Ehrenreich revelou uma sociedade de- organizações.
sigual, o que constitui um tópico central da sociologia. Como se desenvolveu a sociologia? De que forma
A desigualdade social tem uma influência determi- ela é diferente das outras ciências sociais? Este capítulo
nante nas interações e instituições humanas. Certos vai explorar a natureza da sociologia como um campo
grupos de pessoas controlam recursos escassos, usam de pesquisa e como um exercício de “imaginação so-
o poder e recebem tratamento especial. A foto que abre cial”. Olharemos para a disciplina como uma ciência
este capítulo ilustra outro foco comum dos sociólogos, e considerar sua relação com as outras ciências so-
os elementos da cultura que definem uma sociedade. ciais. Conheceremos três pensadores pioneiros – Émile
Na Índia, as histórias em quadrinhos são uma forma Durkheim, Max Weber e Karl Marx – e examinaremos
muito popular de mídia que reflete valores culturais as perspectivas teóricas que se desenvolveram a partir
centrais. do trabalho deles. Por fim, vamos considerar as formas
Embora possa ser interessante saber como um indi- como a sociologia nos ajuda a desenvolver uma imagi-
víduo faz para pagar suas contas, ou mesmo pode ser nação sociológica.
4
A família Natoma (incluindo o marido, duas esposas e os
pertences das esposas) em Kouakourou, Mali.
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6 Capítulo 1
nomistas poderiam fazer uma pesquisa para comparar os uma pessoa de fora – de maneira respeitosa, mas sempre
custos das pessoas encarceradas durante toda a vida com questionando.
as despesas das apelações que ocorrem nos casos de pena
de morte. Os psicólogos observariam os casos individuais Sociologia e Senso Comum
e avaliariam o impacto da pena de morte na família da
vítima e na do preso executado. Os cientistas políticos A sociologia focaliza o estudo do comportamento hu-
estudariam as diferentes posições assumidas pelos po- mano. Entretanto, todos nós temos experiências com o
líticos eleitos e as implicações dessas posições em suas comportamento humano, e pelo menos algum conheci-
campanhas para reeleição. mento sobre ele. Todos nós também podemos ter teorias
E qual seria a abordagem dos sociólogos? Eles po- sobre por que uma pessoa vai viver na rua, por exemplo.
deriam verificar como a raça e a etnia afetam o resultado As nossas teorias e opiniões geralmente se baseiam em
dos casos de pena de morte. De acordo com um estudo nosso “senso comum” – ou seja, nas nossas experiências e
publicado em 2003, 80% dos casos de pena de morte nos conversas, naquilo que lemos, ou que vemos na televisão
Estados Unidos envolvem vítimas de cor branca, apesar e assim por diante.
de apenas 50% de todas as vítimas de assassinato serem Em nossa vida diária, confiamos no nosso senso co-
brancas (ver Figura 1–1). Parece que a raça da vítima mum para resolver situações não-familiares. Entretanto, esse
influencia a decisão sobre se o réu será condenado à pena conhecimento chamado senso comum, embora seja preciso
capital (ou seja, assassinato punível com a morte) e se ele algumas vezes, não é sempre confiável, porque ele se baseia
realmente será executado no final. Assim, o sistema de em crenças comumente aceitas, e não na análise sistemática
justiça criminal parece tender a impor penas mais pesa- dos fatos. No passado constituía senso comum aceitar que a
das quando as vítimas são brancas, do que quando elas Terra era plana – uma visão questionada corretamente por
pertencem a uma das minorias. Pitágoras e Aristóteles. Noções incorretas consideradas de
Os sociólogos colocam sua imaginação sociológica senso comum não pertencem apenas a um passado distante,
para funcionar em diversas áreas – incluindo as áreas mas permanecem até hoje.
do envelhecimento, da família, da ecologia humana e Nos Estados Unidos, hoje o “senso comum” diz que
da religião. Neste livro você vai ver como os sociólogos as pessoas jovens vão ao cinema onde está sendo exibido
desenvolvem teorias e fazem pesquisas para estudar e A paixão de Cristo ou a concertos de rock cristão porque a
entender melhor as sociedades. E você será encorajado a religião está se tornando mais importante para elas. Con-
usar a sua imaginação sociológica para examinar os Esta- tudo, essa noção particular de “senso comum” – como a
dos Unidos e o Brasil (além de outras sociedades) como noção de que a Terra era plana – não é verdadeira, e não se
baseia na pesquisa sociológica. Em 2003, pesquisas anuais
feitas com universitários do primeiro ano mostram um de-
FigurA 1-1 clínio na porcentagem de pessoas que freqüentam serviços
religiosos, mesmo ocasionalmente. Um número crescente
Raças das Vítimas nos Casos de Pena de Morte de universitários declara não ter preferência religiosa. A
tendência inclui não apenas religiões organizadas, mas
também outras formas de espiritualidade. Poucos estu-
dantes rezam ou meditam mais hoje do que no passado, e
Negros poucos consideram seu nível de espiritualidade muito alto
14% (Sax et al., 2003). O Brasil não é exceção. A evangelização
Hispânicos 4% de jovens foi o tema principal da 44a Assembléia Geral da
Outros 1% Conferência Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB). No
Brancos 81% maior país católico do mundo, onde dos 34 milhões de
jovens que se confessam, católicos menos de 10% freqüen-
tam os serviços religiosos.
Da mesma forma, os desastres em geral não pro-
duzem pânico. Logo após uma catástrofe, como uma
explosão, por exemplo, grandes organizações e estruturas
Obs.: Esses dados referem-se a todos os casos de pena de morte de sociais surgem para lidar com os problemas da comu-
1976 a 30 de janeiro de 2004.
nidade. Nos Estados Unidos, por exemplo, um grupo
Fonte: Death Penalty Information Center, 2004.
de operações de emergência freqüentemente coordena
A pena de morte tende a ser imposta quando a vítima é branca. serviços públicos e mesmo certos serviços em geral de-
Nos Estados Unidos, 50% de todas as vítimas de assassinatos sempenhados pelo setor privado, como a distribuição de
são brancas, mas nos casos julgados com possibilidade de pena alimentos. O processo decisório torna-se mais centrali-
de morte, a porcentagem de vítimas brancas é de mais de 80%. zado nos momentos de crise. No Brasil, por exemplo, a
8 Capítulo 1
o desenvolvimento da
em grupo. Os protestantes tinham uma taxa de suicídio sociologia
muito mais alta do que os católicos, as pessoas soltei-
ras apresentavam uma taxa muito mais alta do que as As pessoas sempre mostram-se curiosas sobre temas
casadas, e os soldados tendiam a se matar mais do que sociológicos – como nos relacionamos com os outros, o
os civis. Além disso, parecia haver taxas mais altas de que fazemos para viver, quem selecionamos para nossos
suicídio em períodos de paz do que em momentos de líderes. Filósofos e autoridades religiosas das socieda-
guerra ou revolução, e mais nos períodos de instabilidade des antigas e medievais fizeram inúmeras observações
econômica e recessão do que em tempos de prosperidade. sobre o comportamento humano. Eles não testavam ou
Durkheim concluiu que as taxas de suicídio de uma so- verificavam cientificamente essas observações; e, mesmo
ciedade refletem a medida em que as pessoas estão ou não assim, suas observações com freqüência se tornavam o
integradas na vida de grupo da sociedade. fundamento dos códigos morais. Muitos filósofos antigos
Émile Durkheim, como muitos outros cientistas previram que o estudo sistemático do comportamento
sociais, desenvolveu uma teoria para explicar como o humano seria realidade no futuro. A partir do século
comportamento individual pode ser compreendido em XIX, os teóricos europeus deram contribuições pioneiras
um contexto social. Ele apontou a influência dos grupos para o desenvolvimento de uma ciência do comporta-
e das forças sociais sobre algo que sempre havia sido no- mento humano.
10 Capítulo 1
Harriet Martineau
Os estudiosos refletiram sobre os trabalhos de Comte
principalmente por meio das traduções da socióloga
inglesa Harriet Martineau (1802–1876). Martineau era
também uma pioneira. Ela realizou observações perspi-
cazes sobre os costumes e as práticas sociais tanto da sua
terra natal, a Grã-Bretanha, quanto dos Estados Unidos.
O livro de Martineau, Society in America A sociedade
([1837] 1962), abordou a religião, a política, a educação
das crianças e a imigração naquela jovem nação. Ela dá
atenção especial às distinções das classes sociais e a fato-
res como gênero (sexo) e raça. Martineau ([1838] 1989)
também escreveu o primeiro livro sobre os métodos
sociológicos.
Os escritos de Martineau enfatizaram o impacto
que a economia, a lei, o comércio, a saúde e a popula-
ção podiam ter sobre os problemas sociais. Ela pregou
a favor dos direitos das mulheres, da emancipação dos
escravos e da tolerância religiosa. Mais tarde, a surdez
não a impediu de ser uma ativista. Na visão de Marti-
neau (1877), os intelectuais e os estudiosos não deviam
apenas oferecer observações sobre as condições sociais;
eles deviam agir em relação às suas convicções de uma
Harriet Martineau, uma das pioneiras da sociologia,
forma que beneficiasse a sociedade. É por isso que ela
estudou o comportamento social tanto da sua terra fez pesquisas acerca da natureza dos empregos femini-
natal, a Grã-Bretanha, quanto dos Estados Unidos. nos e apontou para a necessidade de investigações mais
aprofundadas sobre o assunto (Deegan, 2003; Hill e
Hoecker-Drysdale, 2001).
Os Primeiros Pensadores
Herbert Spencer
Augusto Comte
Outra importante contribuição para a disciplina da so-
O século XIX foi um período tumultuado na França. A ciologia foi dada por Herbert Spencer (1820–1903). Um
monarquia francesa havia sido deposta na revolução de inglês vitoriano relativamente próspero, Spencer (diferen-
1789, e Napoleão tinha sido derrotado na sua tentativa de temente de Martineau) não se sentia compelido a corrigir
conquistar a Europa. No meio daquele caos, os filósofos ou a melhorar a sociedade; ao contrário, ele simplesmente
pensavam como a sociedade poderia ser melhorada. Au- esperava entendê-la melhor. Buscando bases no estudo de
gusto Comte (1798–1857), considerado o filósofo mais Charles Darwin – Sobre a origem das espécies –, Spencer
influente do início do século XIX, acreditava que uma aplicou o conceito de evolução das espécies nas socieda-
ciência teórica da sociedade e uma investigação sistemá- des para explicar como elas mudam ou evoluem com o
tica do comportamento eram necessárias para melhorar passar do tempo. Da mesma forma, ele adaptou a visão
a sociedade. Ele definiu o termo Sociologia aplicando-o à revolucionária de Darwin sobre a “sobrevivência do mais
ciência do comportamento humano. forte” argumentando que é “natural” que algumas pessoas
De acordo com o que escreveu durante o século XIX, sejam ricas e outras, pobres.
Durkheim temia que os excessos da Revolução Francesa A abordagem da mudança na sociedade feita por
tivessem prejudicado permanentemente a estabilidade da Spencer foi extremamente popular durante sua vida.
França. Mesmo assim, ele esperava que o estudo sistemá- Diferentemente de Comte, ele sugeria que, uma vez que
tico do comportamento social finalmente levasse a intera- as sociedades mudariam no final, ninguém precisava ser
ções humanas mais racionais. Na hierarquia das ciências muito crítico sobre os arranjos sociais atuais, ou trabalhar
de Comte, a sociologia ficava no topo. Ele a chamava de ativamente por mudanças sociais. Esse ponto de vista
“rainha”, e os seus praticantes, de “sacerdotes-cientistas”. agradou muitas pessoas influentes na Inglaterra e nos
Esse teórico francês não apenas batizou a sociologia Estados Unidos, que tinham interesse na manutenção do
como também apresentou um desafio muito ambicioso status quo e não confiavam nos pensadores sociais que
para a disciplina que nascia. endossavam mudanças.
FUNDAMENTOS DA
SOCIOLOGIA E
ANTROPOLOGIA
Sandro A. de Araujo
Émile Durkheim e
a sociologia como
ciência autônoma
Objetivos de aprendizagem
Ao final deste texto, você deve apresentar os seguintes aprendizados:
Introdução
Neste capítulo, você vai ler sobre um dos maiores nomes da sociologia
pura e do Direito: Émile Durkheim, um clássico que influencia autores
até os dias de hoje. Ainda neste capítulo, você vai conhecer os conceitos
fundamentais da sua obra, como de anomia, solidariedade e divisão do
trabalho, conceitos interligados fundamentais para a compreensão da
teoria de Émile Durkheim.
Preliminares biobibliográficas
Émile Durkheim (1858–1917), junto com Karl Marx e Max Weber, é consi-
derado um dos pilares da disciplina que conhecemos hoje como sociologia.
Nasceu em 15 de abril de 1858, em Épinal, França. Formou-se na École Normale
Superieure (Paris), à época dirigida por Fustel de Coulanges, e, mais tarde,
lecionou em Bourdoux, onde escreveu:
Sociologia do Direito
Para Durkheim, a sociologia do Direito tem a incumbência de dar conta de
certas tarefas. Segundo ele, tendo em vista o papel que o Direito representa
na manutenção da ordem, o sociólogo deve investigar:
Repressiva Restitutiva
Objeto
Embora Durkheim tenha estabelecido como conceito central do seu pensa-
mento o conceito de fato social, na segunda edição das Regras do método
sociológico, ele começa a utilizar o termo instituição. Instituição e fato social
são termos que preservam a objetividade do fenômeno social. Por ser mais
corrente no âmbito do pensamento jurídico, parece mais adequado a uma
sociologia do Direito.
Assim, Durkheim define sociologia como “[...] a ciência das insti-
tuições, de sua gênese e de seu funcionamento” (DURKHEIM, 1986. p.
31). Segundo ele, as instituições são as “[...] crenças e modos de conduta
instituídos pela comunidade” (DURKHEIM, 1986. p. 31). Como exemplos
Émile Durkheim e a sociologia como ciência autônoma 5
Para que haja um fato social, é preciso que vários indivíduos combinem sua
ação e que desta combinação resulte um produto novo. E como esta síntese
tem lugar fora de nós (posto que nela entra uma pluralidade de consciências),
tem necessariamente como efeito o de fixar, instituir fora de nós certas ma-
neiras de agir e certos juízos que não dependem de cada vontade individual
considerada à parte (DURKHEIM, 1986, p. 30-31).
Método
Quanto ao método utilizado por Durkheim, temos três regras:
Primeira regra — “Os fatos sociais devem ser concebidos como coisas”
(DURKHEIM, 1986, p. 18). Decorrem dessa regra duas consequências: a coisa
é exterior ao indivíduo, o que acarreta que essa coisa só pode ser conhecida
pela experiência; o elemento psicológico não é relevante: na verdade, é im-
possível determinar com exatidão os motivos subjetivos que deram origem
a uma instituição.
Terceira regra — a ideia de que um fato social só pode ser explicado por
um outro fato social.
Principais conceitos
Solidariedade
Esse conceito fundamental na teoria de Durkheim pode ser descrito como o
vínculo objetivo, relação pacífica, existente entre os indivíduos em determinada
sociedade. A solidariedade, por sua vez, pode fundamentar-se na semelhança
entre indivíduos — chamada, então, de solidariedade mecânica — ou na sua
diferença — denominada, então, solidariedade orgânica.
A solidariedade mecânica é típica de sociedades primitivas, nas quais não
ocorreu uma especialização das funções sociais. A consciência individual
depende diretamente da consciência coletiva e segue todos os seus movi-
mentos, “[...] como o objeto possuído segue aqueles que o seu proprietário
lhe imprime” (DURKHEIM, 1995, p. 107). É essa analogia que justifica o
termo mecânica. Mas como se dá a consciência coletiva na solidariedade
mecânica? A consciência coletiva é o conjunto das crenças e sentimentos
comuns à média dos membros de uma mesma sociedade. Como é forte,
abrange todas as esferas da vida.
A solidariedade orgânica, por sua vez, é a solidariedade fundada na dife-
rença. É típica das sociedades modernas, em que a divisão do trabalho provoca
a diferenciação entre as pessoas. O termo orgânica é utilizado em analogia
com os órgãos de um ser vivo: estes são diferentes, e é a sua diferença que
os torna indispensáveis uns aos outros. Cada membro da sociedade funciona
como órgão de um organismo.
crescimento demográfico;
crescimento da densidade demográfica (razão entre indivíduos e
superfície);
crescimento no número de trocas entre os indivíduos de uma sociedade
(a chamada densidade moral).
Quanto mais numerosos os indivíduos que procuram viver em conjunto, mais intensa é
a luta pela vida. A diferenciação social (especialização) é a solução pacífica da luta pela
vida. Com a diferenciação, deixa de ser necessário eliminar a maioria dos indivíduos,
a partir do momento em que, diferenciando-os, cada um fornece uma contribuição
que lhe é própria para a vida do grupo.
Filipe Prado
Macedo da Silva
Karl Marx e a luta de classes
Objetivos de aprendizagem
Ao final deste texto, você deve apresentar os seguintes aprendizados:
Introdução
Neste capítulo, você vai estudar as principais contribuições teóricas de
Karl Marx, um importante intelectual social e econômico que analisou
e criticou as transformações produzidas pelo domínio do sistema de
produção capitalista. Karl Marx influenciou fortemente os arcabouços
teóricos da sociologia e a forma de enxergar as lutas de classes. Para
isso, construiu uma teoria da luta de classes e um conjunto de reflexões
acerca das mudanças ocorridasem decorrência da Revolução Industrial
e de como isso mudaria para sempre as relações sociais entre as classes
dominantes (burgueses) e dominadas (trabalhadores).
entre essas duas classes sociais (MARX, 1983; NETTO, 2006). Além do
mais, a lógica da sociedade capitalista não existe sem alguns dos mecanismos
predominantes nas relações produtivas como, por exemplo, a alienação do
trabalhador e o “fetichismo da mercadoria”.
Em todas as suas obras, Karl Marx trabalhou bastante as distinções entre
as classes sociais do capitalismo e suas novas relações — moldando novos
paradigmas sociais. Por exemplo, na Antiguidade, a luta de classe acontecia
pelo permanente confronto entre os senhores e os escravos — enquanto, na
Idade Média, esse conflito evidenciava-se no esforço dos servos contra os
senhores feudais. Ou seja, em qualquer momento da história, inclusive do
capitalismo, existem relações sociais de opressão (MARX, 2008).
Essas relações sociais de opressão — segundo Karl Marx — produzem con-
flitos e geram a possibilidade de uma revolução social com a perspectiva de novas
relações produtivas. Foi no Manifesto Comunista que Karl Marx escreveu que “os
proletários nada têm a perder a não ser seus grilhões, tendo um mundo a ganhar
[sob outras perspectivas]”. Essa foi a recomendação de Karl Marx em 1848.
É claro que existem inúmeras interpretações sobre a obra de Karl Marx, e
análises conflitantes entre os próprios marxistas sobre essas questões teóricas
e metodológicas. Em geral, Karl Marx tinha até uma visão otimista com
relação à luta de classes, acreditando que, no final desse processo histórico,
os trabalhadores construiriam uma nova sociedade dos proletários.
Nessa sociedade dos proletários, a grande maioria da sociedade definiria os
objetivos dessa nova sociedade — comunista ou socialista; esse seria o curso
natural da história. Como frisou Karl Marx, assim como aconteceu no escravismo
e no feudalismo, o capitalismo chegaria ao fim com uma grande crise interna, que
colapsaria a economia, as instituições e as relações sociais de produção. Dessa
forma, as crises seriam cada vez mais constantes nas economias industrializadas,
revelando as contradições internas em que o sistema econômico capitalista se
estrutura, e logo, “se autodestrói estruturalmente” (NETTO, 2006).
Do ponto de vista econômico e sociológico, as crises capitalistas poderiam, em
geral, se resumir às crises de acumulação, ou crises da mais-valia (SILVA, 2010).
Isso significa que — economicamente — quando os burgueses não conseguem
mais aumentar a mais-valia, seja em termos absolutos ou em termos relativos,
entram socialmente em crise, pressionando a outra classe social a aumentar a
mais-valia. Isso quer dizer que, nas crises capitalistas, os burgueses são obri-
gados a explorarem cada vez mais os trabalhadores — em busca de melhores
resultados econômicos, ou seja, da produção de mais-valia absoluta e relativa.
Consequentemente, as relações sociais de produção capitalista não ficam
apenas restritas aos efeitos do campo econômico. Também produzem fortes
4 Karl Marx e a luta de classes
efeitos sobre o campo social e o campo político. Logo, Karl Marx percebeu
e influenciou não somente as relações de produção, mas também as relações
sociais (ou da sociedade) e as relações políticas — como fundamentais para
a compreensão da dinâmica das lutas de classes (KISHTAINY et al., 2013;
MARX, 1983; SILVA, 2010).
O modo de produção é um conceito elaborado por Karl Marx (e utilizado pelos seus
seguidores, os marxistas) para definir o conjunto das forças produtivas e das relações de
produção em seu entorno. Às vezes, o modo de produção pode se confundir, de certa
maneira, com a estrutura econômica de uma sociedade qualquer — incluindo assim a
produção, a distribuição, a circulação e o consumo. Historicamente, distinguem-se vários
modos de produção: o comunista primitivo, o escravista, o feudal, o capitalista e o socialista.
De acordo com Karl Marx, pelo menos na visão teórica, numa formação social concreta,
podem estar presentes diferentes modos de produção, tendo ao menos um como domi-
nante (SANDRONI, 2005). Por exemplo, recentemente, o modo de produção que é mais
dominante é o capitalista. Logo, cabe destacar que Karl Marx, em sua obra mais importante,
O Capital, ocupa-se fundamentalmente em analisar e teorizar sobre o modo de produção
capitalista. Em outras palavras, ele busca entender como ocorre a produção capitalista, a
distribuição capitalista entre as classes sociais e a circulação capitalista nas sociedades, e
como o consumo se organiza entre os agentes socioeconômicos e as instituições.
Tudo isso era fruto das mudanças geradas pela Revolução Industrial — que
foi o principal fenômeno da história humana na consolidação do sistema capi-
talista como regime produtivo. Por exemplo, na Inglaterra, registros revelam
que a Revolução Industrial causou profundas transformações sociais — como
exploração e alienação extrema do trabalhador, ampliação da pobreza, aumento
do desemprego e, ainda, concentração do capital e da produção (SILVA, 2010).
Na realidade, Karl Marx, em O Capital, detalha minuciosamente o funcio-
namento do sistema capitalista de maneira magistral. É por isso que muitos
acham a leitura de O Capital complexa e densa — e com níveis elevados de
abstração (intelectual).
Nessa sua obra seminal, Karl Marx analisou inicialmente o processo de
produção do capital, ressaltando o quanto a sociedade industrial passou a va-
lorizar a mercadoria e o dinheiro como importantes elementos do processo de
troca social. Daí, a mudança percebida por Karl Marx: no sistema capitalista,
a perspectiva era transformar dinheiro/capital em mercadoria e, depois, em
mais dinheiro/capital (D — M — D’).
Para isso, novas lógicas de trabalho e novos mecanismos de valorização
do capital passaram a ser gerados no seio da sociedade capitalista. Aqui cabe
destacar a diferença que Karl Marx apontou entre capital constante e capital
variável — além de diferenciar a mais-valia absoluta da mais-valia relativa.
Esses conceitos fundamentais da economia marxista revelaram uma profunda
alteração na lógica produtiva da sociedade.
No capitalismo, de acordo com Karl Marx (1983), a mais-valia consiste no
valor do trabalho não pago ao trabalhador. Cabe pontuar que, na sociedade
capitalista, diferentemente do escravismo ou feudalismo, o preço da força de
trabalho é medido mediante o salário. O salário é a remuneração pela compra da
força de trabalho por parte dos proprietários do meio de produção — criando um
sistema social em que as relações, portanto, são mediadas pelo salário (monetá-
rio). Karl Marx destacou que, ainda que o salário seja a nova forma das relações
sócio-produtiva, existe cada vez mais aquela parte do esforço do trabalho de que
o trabalhador não pode se apropriar, pois é a parte com a qual o proprietário do
meio de produção executa a sua acumulação de capital (MARX, 1983, 2008).
Além do mais, a partir da Revolução Industrial, a lei geral da acumulação
capitalista passou “a reinar como a lógica dominante do sistema capitalista”
(SILVA, 2010). Em poucas palavras, a produção passou a ser apenas uma etapa
para a acumulação do capital — sendo que o capital passa a ser a riqueza
mais desejada da economia. A acumulação em termos absolutos e relativos
tornou-se a pedra de toque da sociedade.
6 Karl Marx e a luta de classes
É importante destacar que Karl Marx é uma coisa, e o Marxismo é outra coisa. O que
isso quer dizer? Enquanto o primeiro trata-se do autor e de suas obras, sobretudo, o
Manifesto Comunista (de 1848), a Contribuição à Crítica da Economia Política (de 1858)
e O Capital (de 1867, 1885 e 1894), o segundo — o Marxismo — é uma denominação
consagrada para a obra teórica de Karl Marx e Friedrich Engels e de seus seguidores. Em
poucas palavras, o Marxismo “constitui uma fundamentação ideológica do moderno
comunismo” (SANDRONI, 2005). Essa também chamada Escola do Pensamento Marxista
baseia-se, principalmente, na obra O Capital, defendendo uma teoria da mais-valia e o
capitalismo como um sistema transitório, sujeito a crises cíclicas, e que por efeito do
agravamento de suas contradições internas, cairá a partir da revolução.
entre os que tinham e os que não tinham (MARX, 1983). Essas lutas eram a
força motriz das sociedades capitalistas, e a razão inevitável e absoluta dos
conflitos internacionais (SILVA, 2010).
Novamente cabe observar que, no sistema capitalista, Karl Marx identificou
relações de exploração da classe dos proprietários (a burguesia) sobre os traba-
lhadores (o proletariado). Isso porque a posse dos meios de produção, sob a forma
legal de propriedade privada, faz com que os trabalhadores, a fim de assegurar
a sobrevivência, tenham que vender sua força de trabalho ao capitalista, “[...]
o qual se apropria do produto do trabalho de seus operários” (MARX, 1983).
Em termos práticos, essas relações são de obstinação e antagonismo,
na medida em que os interesses de cada classe são inconciliáveis e, muitas
vezes, inegociáveis (SILVA, 2010). O burguês deseja preservar seu direito
à propriedade dos meios de produção e das mercadorias, além da máxima
exploração do trabalhador, seja reduzindo os salários, seja ampliando a jor-
nada de trabalho. Por sua vez, o trabalhador procura diminuir a exploração
ao batalhar por uma jornada de trabalho menor, além de melhores salários e
participação nos lucros do empresário.
Por outro lado, as relações entre as classes são complementares, pois uma só
existe em relação à outra (MARX, 1983). Karl Marx observou que só existem
proprietários porque há uma massa de despossuídos, cuja única propriedade é
sua força de trabalho. Em suma, as classes sociais são, apesar “de sua oposição”,
complementares e interdependentes
Mesmo assim, para Karl Marx a luta de classes deve, necessariamente,
acarretar a vitória do proletariado sobre a burguesia, e, uma vez conseguida esta
vitória e desaparecido o antagonismo entre capital e trabalho, a luta de classes
deixará de existir para sempre. Esse é o avanço histórico previsto por Karl Marx.
Além do mais, Karl Marx ampliou, na teoria da luta de classes, o conceito
de alienação do trabalhador, mostrando que a industrialização, a propriedade
privada e o salário afastaram o trabalhador dos meios de produção — ferra-
mentas, matérias-primas, terras e máquinas —, que estavam sob o controle
dos capitalistas (MARX, 2008; SILVA, 2010).
Karl Marx (1983) destaca que essa é a base da alienação econômica do
homem sob o capital. Do ponto de vista político, o homem também ficou
alienado, pois o liberalismo criou a lógica de um Estado como um órgão
político imparcial, capaz de representar toda a sociedade — e todas as suas
classes — e dirigi-la pelo poder delegado pelos indivíduos.
No entanto, Karl Marx mostrou que, na sociedade de classes, esse Estado
representava apenas as classes dominantes, e agia conforme seus interesses e
objetivos. Em outras palavras, no capitalismo, o Estado é um Estado burguês, a
Karl Marx e a luta de classes 9
serviço dos interesses do capital. Dessa maneira, essa questão estatal maximiza a
luta de classes como “motor de transformação da história humana” (SILVA, 2010).
É comum associar sempre os escritos de Karl Marx aos movimentos dos
trabalhadores e aos conflitos ou às negociações perpetradas pelos sindicatos.
Isso porque é importante lembrar que os trabalhadores são, em qualquer país, a
maioria da população. Foi, neste sentido, que Karl Marx destacou a importância
da luta de classes: sempre os trabalhadores seriam maioria, e logo, precisavam
de consciência para se organizarem e romperem os paradoxos da história.
Leituras recomendadas
CARCANHOLO, R. A. Marx, Ricardo e Smith: sobre a teoria do valor trabalho. Vitória:
Edufes, 2012.
RÍO, H. Marx para principiantes. Buenos Aires: Era Naciente, 2004.
Encerra aqui o trecho do livro disponibilizado para
esta Unidade de Aprendizagem. Na Biblioteca Virtual
da Instituição, você encontra a obra na íntegra.
Conteúdo:
Anthony Giddens Sociologia
Anthony Giddens Sociologia
Completamente revisada e atualizada, esta referência única oferece um panorama esclarecedor sobre os últimos acontecimentos
globais e sobre as novas ideias no campo da sociologia. Os debates clássicos também são minuciosamente abordados, explicando
até as ideias mais complexas de maneira clara e envolvente.
Escrito de forma fluente e com um estilo atraente, esta obra consegue ser ao mesmo tempo intelectualmente rigorosa e perfeita-
mente acessível a todos os públicos. Sociologia é um livro empolgante e envolvente, que busca ajudar os leitores a compreender
o valor de pensar sociologicamente.
Destaques da 6ª edição:
• Novos conteúdos sobre educação, mídia, teoria social, desigualdades, política e governo; e um capítulo
inteiramente novo sobre guerra e terrorismo.
• Novas seções de “Estudos Clássicos” examinam em detalhes as pesquisas empíricas mais influentes. Anthony
• Seções adicionais de “Reflexão Crítica” foram inseridas ao texto para estimular a compreensão
e o entendimento dos leitores.
Livro-texto campeão de vendas por mais de 20 anos, a 6ª edição estabelece o padrão para o estudo introdutório da sociologia.
Fonte ideal para estudantes de sociologia e certamente uma inspiração para a nova geração de sociólogos.
ISBN 978-85-63899-26-2
1. Sociologia. I. Título.
CDU 316
atualmente. Marx argumentava que, na sociedade do futuro, e os valores também têm um grande impacto nas mudanças
a produção seria mais avançada e eficiente do que a produção sociais. A elogiada e discutida obra de Weber, A ética protes-
sob o capitalismo. tante e o espírito do capitalismo (1992 [1904-195]), propõe
O trabalho de Marx teve uma profunda influência no que os valores religiosos – especialmente aqueles associados
mundo do século XX. Até apenas uma geração atrás, mais de ao puritanismo – tinham importância fundamental para criar
um terço da população da terra vivia em sociedades, como a uma perspectiva capitalista. Ao contrário de outros pensado-
União Soviética e os países do Leste Europeu, cujos governos res sociológicos, Weber argumentava que a sociologia devia
afirmavam derivar sua inspiração das ideias de Marx. se concentrar na ação social, e não em estruturas sociais. Ele
argumentava que a motivação e as ideias humanas eram as for-
Max Weber ças por trás da mudança – ideias, valores e opiniões tinham
Como Marx, Max Weber (1864-1920) não pode ser simples- o poder de causar transformações. Segundo Weber, os indiví-
mente rotulado como sociólogo; seus interesses e preocu- duos têm a capacidade de agir livremente e de moldar o futuro.
pações cobriam muitas áreas. Nascido na Alemanha, onde Ele não considerava, como Durkheim e Marx, que as estrutu-
passou a maior parte da sua carreira acadêmica, Weber foi ras existiam fora ou independentemente dos indivíduos. Pelo
um indivíduo muito estudioso. Seus escritos cobriam os cam- contrário, as estruturas da sociedade eram formadas por uma
pos da economia, do direito, da filosofia e da história com- complexa inter-relação de ações. E era trabalho da sociologia
parativa, além da sociologia. Grande parte do seu trabalho entender os significados por trás dessas ações.
também estava relacionada com o desenvolvimento do capi- Alguns dos textos mais influentes de Weber refletem sua
talismo moderno e as maneiras em que a sociedade moderna preocupação com a ação social, ao analisar a peculiarida-
era diferente de formas anteriores de organização social. Por de da sociedade Ocidental em relação a outras civilizações
uma série de estudos empíricos, Weber propôs algumas das importantes. Ele estudou as religiões da China, Índia e do
características básicas das sociedades industriais modernas Oriente Próximo e, no decorrer dessas pesquisas, fez gran-
e identificou debates sociológicos cruciais que permanecem des contribuições para a sociologia da religião. Comparando
centrais para os sociólogos atualmente. os principais sistemas religiosos da China e da Índia com os
Em comum com outros pensadores da sua época, Weber do Ocidente, Weber concluiu que certos aspectos das crenças
buscou entender a natureza e as causas das mudanças sociais. cristãs tiveram grande influência na ascensão do capitalismo.
Ele foi influenciado por Marx, mas também foi bastante crítico Ele argumentava que a perspectiva capitalista nas sociedades
de algumas das principais visões de Marx. Ele rejeitava a con- Ocidentais não emergiu, conforme supunha Marx, apenas de
cepção materialista da história e considerava os conflitos de mudanças econômicas. Na visão de Weber, as ideias e os va-
classe menos significativos do que Marx. Segundo a visão de lores culturais ajudaram a moldar a sociedade e nossos atos
Weber, os fatores econômicos são importantes, mas as ideias individuais.
Os puritanos querem seguir uma vocação. A teoria de Weber, como a análise de Marx sobre o ca-
Somos forçados a fazê-lo. Pois quando o ascetismo saiu das pitalismo, certamente é bem-sucedida nesses sentidos, pro-
celas monásticas para a vida cotidiana, e começou a domi- porcionado um trampolim para uma vasta quantidade de
nar a moralidade mundana, ele fez a sua parte em construir pesquisas e análises teóricas subsequentes. A abordagem de
o tremendo cosmos da ordem econômica moderna.... Desde
Weber à sociologia também forma a base para a tradição co-
que o ascetismo começou a remodelar o mundo e a nele se
desenvolver, os bens materiais adquiriram um poder cada nhecida como interacionismo.
vez maior e finalmente inexorável sobre a vida dos homens,
como em nenhum período anterior da história.... A ideia do Interacionismo simbólico, fenomenologia e
dever na vocação ronda nossas vidas como o fantasma de etnometodologia
crenças religiosas mortas. (1992, p. 182) Juntamente com Max Weber, credita-se ao behaviorista so-
cial norte-americano George Herbert Mead ter estabelecido
Avaliação as bases para uma abordagem geral da sociologia chamada
A teoria de Weber tem sido criticada por muitos ângulos. interacionismo. Esse é um rótulo geral que cobre todas as
Alguns argumentam, por exemplo, que a perspectiva que ele abordagens que investigam as interações sociais entre indiví-
chamava de “o espírito do capitalismo” pode ser identifica- duos, em vez de partir da sociedade ou das estruturas sociais
da nas primeiras cidades mercantes italianas do século XII, que a constituem. Os interacionistas muitas vezes rejeitam
muito antes de se ouvir falar em calvinismo. Outros afirmam a própria noção de que as estruturas sociais existem objeti-
que a noção fundamental de “trabalhar em uma vocação”, vamente, ou simplesmente não as levam em conta. Herbert
que Weber associou ao protestantismo, já existia nas crenças Blumer (que cunhou o termo “interacionismo simbólico”)
católicas. Ainda assim, os elementos essenciais da visão de argumentava que toda a conversa sobre estruturas sociais ou
Weber ainda são aceitos por muitos, e a tese que ele defen- sistemas sociais é injustificada, pois somente se pode dizer
dia permanece tão audaz e esclarecedora quanto na época em que existem, realmente, indivíduos e suas interações.
que foi formulada. Se a tese de Weber é válida, o desenvolvi- O interacionismo simbólico concentra-se na interação
mento econômico e social moderno foi influenciado decidi- no nível micro e na maneira em que os significados são cons-
damente por algo que, à primeira vista, parece muito distante truídos e transformados entre os membros da sociedade. G.
dele – um conjunto de ideais religiosos. Isso é algo que Marx H. Mead (1934) argumentava que o self do indivíduo é um self
não enxergou dentro das relações econômicas capitalistas. social, produzido no processo de interação, ao invés de ser
A teoria de Weber cumpre vários critérios importantes biologicamente dado. A teoria de Mead traça a emergência e
do pensamento teórico em sociologia. Primeiramente, ela é o desenvolvimento do self através de uma série de estágios na
contraintuitiva –sugere uma interpretação que rompe com infância, e suas ideias sobre o self social fundamentam grande
aquilo que sugeriria o senso comum. Assim, a teoria desen- parte da pesquisa interacionista (ver o Capítulo 1 para uma
volve uma perspectiva nova sobre as questões que aborda. A discussão das ideias de Mead). O lar dessa perspectiva, por
maioria dos autores antes de Weber quase não pensava na 30 anos, até 1950, foi o departamento de sociologia da Uni-
possibilidade de que ideias religiosas pudessem ter exercido versidade de Chicago (conhecido como a Escola de Chicago),
um papel fundamental na origem do capitalismo. Em segun- embora, de maneira alguma, todos os sociólogos de Chicago
do lugar, a teoria dá sentido a algo que, de outra forma, se fossem interacionistas simbólicos. O departamento também
torna intrigante: por que os indivíduos quereriam viver fru- era o lar da abordagem “ecológica” de Louis Wirth, Robert
galmente enquanto fazem grandes esforços para acumular ri- E. Park e Ernest Burgess (ver o Capítulo 6, “Cidades e vida
queza? Em terceiro, a teoria é capaz de esclarecer circunstân-
urbana”, para uma discussão dessa abordagem). Todavia, a
cias além daquelas que se propunha a explicar originalmente.
base institucional para os principais interacionistas, incluindo
Weber enfatizava que estava tentando entender apenas as
Mead, foi um fator importante para ampliar a abordagem.
origens iniciais do capitalismo moderno. Todavia, parece ra-
Possivelmente, o interacionista simbólico de maior êxito
zoável supor que valores paralelos aos instilados pelo purita-
seja Erving Goffman. Os estudos de Goffman sobre os “asi-
nismo podem estar envolvidos em outras situações de desen-
los” mentais, processos de estigmatização e as maneiras em
volvimento capitalista bem-sucedido. Finalmente, uma boa
que as pessoas apresentam seus selves em encontros sociais
teoria não é apenas aquela que se mostra válida. Também é
se tornaram clássicos sociológicos, tanto por seu estilo meto-
aquela que é frutífera em termos do quanto gera novas ideias
dológico e observacional quando por seus resultados. Ao de-
e estimula novas pesquisas.
senvolver sua “análise dramatúrgica”, que trabalha com a me-
táfora do teatro, as ideias de Goffman tiveram uma influência
REFLEXÃO CRÍTICA muito ampla sobre estudantes de todo o mundo.
A teoria de Weber sobre a origem do capitalismo vai além do
conceito de Merton de uma “teoria intermediária”. Porém, será
que os estudos existentes podem testá-la efetivamente? Liste
todos os elementos do capitalismo descritos por Weber. O que
a teoria acrescenta à nossa compreensão da natureza, caráter
e provável desenvolvimento futuro do capitalismo moderno?
Introdução
Neste texto, você conhecerá dois importantes movimentos da tradição
sociológica do início do século XX: a Escola de Frankfurt e a Escola de
Chicago. Essas duas escolas se vincularam a importantes institutos de
pesquisas e universidades das cidades em que se desenvolveram. Apesar
do tratamento conjunto de ambas, elas constituem dois movimentos
diferentes, como você verá.
A hegemonia da Escola de Chicago dura até por volta das vésperas da Segunda Guerra
Mundial. Posteriormente, o enfoque da pesquisa sobre os Meios de Comunicação de
Massa (MCM) é deslocado para análises quantitativas. Desse modo, nos anos 1940, a
supremacia da Escola de Chicago é suplantada pela da Mass Communication Research
(MATTELART; MATTELART, 1997b).
De 1915 a 1935, muitas pesquisas da Escola de Chicago foram dedicadas a temas como
imigração e integração dos imigrantes na sociedade norte-americana. Robert Ezra Park,
que era um jornalista militante pela causa negra, foi uma das figuras de destaque da
Escola de Chicago. Segundo Mattelart e Mattelart (1997b, p. 30-31), Park transforma
a sua prática jornalística e elabora uma forma “superior” de reportagem a partir das
pesquisas sociológicas feitas nos bairros da periferia. Em um dos seus estudos sobre
as comunidades étnicas, o pesquisador questiona a função assimiladora dos jornais
e, em especial, das publicações feitas em línguas estrangeiras. Ele também reflete
sobre a natureza da informação, o profissionalismo do jornalismo e a diferença entre
informação e propaganda.
De acordo com Clark (1969 apud MCQUAIL, 2000), Robert Park e o seu aluno Herbert
George Blumer (1900-1987) foram alguns dos que destacaram o potencial positivo
dos meios de comunicação de massa na pesquisa realizada sobre a assimilação de
imigrantes nos Estados Unidos. Além disso, para McCornack (1961 apud MCQUAIL,
2000), os MCM também apresentavam um potencial positivo. Na sua perspectiva,
uma sociedade moderna e em mudança se apresenta de forma segmentada. Nela, a
única função dos meios de comunicação é proporcionar à indústria e à sociedade uma
coerência, isto é, uma “síntese da experiência” e uma “consciência do todo”.
bases dos estudos realizados pelas ciências naturais. Além disso, o enfoque
sociológico dessa escola se dá no espaço da cidade, isto é, no meio urbano, em
especial no que envolve as cidades norte-americanas e o processo de exclusão
urbana. Segundo Mattelart e Mattelart (1997b, p. 30), a cidade é observada
como um laboratório social: caracterizada pelos signos de desorganização,
marginalidade, aculturação, assimilação e mobilidade, ela é o espaço privi-
legiado de estudo da Escola de Chicago.
O sociólogo alemão Georg Simmel (1858–1918) e o francês Gabriel Tarde
(1843–1904) influenciaram as pesquisas norte-americanas sobre a cidade
com seus conceitos próximos de “situações concretas”. Suas influências
ajudaram os americanos a criar ferramentas científicas para analisar atitu-
des e comportamentos relativos ao espaço urbano. O biólogo alemão Ernest
Haeckel (1834–1919) também exerce influência nos estudos dessa tradição
sociológica por meio da noção de ecologia como a ciência das relações do
organismo com o meio ambiente. Na ecologia humana ou economia biológica,
expressão usada por Park, a luta pelo espaço é o que rege as relações entre
os indivíduos. Essa luta ou competição é observada como um princípio
de organização. Isso ocorre porque, nas sociedades dos homens, além da
competição, existe a divisão do trabalho. Esses dois fatores resultam em
formas de cooperação competitiva que constituem o nível biótico da orga-
nização humana. Há também o nível social ou cultural, que se impõe como
direção ou controle. Assumido pela comunicação e pela moral, esse nível
regula a competição, levando os indivíduos a partilharem uma experiência,
se vinculando à sociedade.
Você pode encontrar ainda, no pragmatismo de John Dewey (1859–1951),
George Herbert Mead (1863-1931) e, principalmente, Charles Cooley (1864-
1929), outras influências para essa escola. Cooley, inclusive, é anterior a Park
na análise dos processos comunicacionais. É ele quem usa primeiramente a
expressão grupo primário para indicar grupos que se constituem pela asso-
ciação e pela cooperação íntima entre si. Esse tipo de análise era importante
para avaliar os impactos trazidos pela urbanização, pela industrialização e
pelos novos meios de comunicação. Ela também era relevante para compre-
ender que o indivíduo poderia viver uma experiência singular e única, mas
estava ao mesmo tempo submetido ao processo de homogeneização dessa
experiência. Essa visão ambivalente sobre o processo de individualização do
cidadão urbano surge na noção de mídia da Escola de Chicago, pois os MCM
são observados tanto como elementos de emancipação do indivíduo como
de aceleramento da superficialidade das relações sociais (MATTELART;
MATTELART, 1997b, p. 35-36).
Indutivismo
O indutivismo é uma das características marcantes da Escola de Chicago.
Esse procedimento investigativo se relaciona à noção de objetividade, que é
a base para a construção do objeto científico. A esse respeito, é importante
você ficar atento ao que significa o indutivismo e à sua oposição com relação
ao dedutivismo: enquanto o primeiro parte de uma realidade particular, o
segundo é indagado por meio de uma hipótese levantada para a pesquisa, a
qual se procura validar na prática.
No processo dedutivo, se parte de uma verdade já conhecida, já dada.
Essa verdade funciona como um pressuposto geral. Assim, os casos a serem
pesquisados serão demonstrados a partir dela. Dito de outro modo: na dedução,
é demonstrado que uma verdade sabida se aplica a todos os casos particulares
iguais, conforme aponta Chauí (2013, p. 78). É por esse motivo que comumente
se fala que na dedução o pesquisador vai do geral ao particular ou do universal
ao individual. Já na indução, o pesquisador segue o caminho oposto. Com
ela, ele parte de casos particulares iguais ou semelhantes para procurar uma
lei, definição, verdade ou teoria geral. Essa lei, por sua vez, poderá explicar
todos esses casos particulares. Desse modo, a definição, explicação ou teoria
não é dada no início nem é o ponto de partida da pesquisa, como no percurso
dedutivo. Na trajetória investigativa de caráter indutivo, a teorização é o ponto
final. É esse o trajeto seguido pela Escola de Chicago. Por meio desse método,
essa escola estudaria os processos comunicativos pelo critério de objetividade
científica, que é a base para a ciência. Além disso, você precisa saber que a
razão é um importante elemento para guiar a indução, pois é formada por
um conjunto de regras específicas. Se essas regras não forem consideradas,
a indução poderá ser invalidada (CHAUÍ, 2013).
Desse modo, a pesquisa dessa teoria se propõe como uma teoria social ou
da sociedade vista como um todo. Vale a pena você considerar que esse é
um forte ponto de contraposição da Teoria Crítica à Pesquisa Administrativa.
Isso pois a Pesquisa Administrativa se especializa em disciplinas setoriais,
as quais se dedicam a estudar campos de competência distintos. Então, essas
disciplinas acabam, por meio dessa múltipla diferenciação e especialização,
se desviando do entendimento da sociedade de forma global. Além disso,
exercem muito mais uma função de manutenção da ordem social existente,
no ponto de vista dos estudiosos críticos. Nas palavras de Wolf (1999, p. 83),
“[...] a teoria crítica pretende ser o oposto, pretende evitar a função ideológica
das ciências e das disciplinas setorializadas.”.
Desse modo, a Teoria Crítica não trabalha com a noção de dados como
informações extraídas da realidade. Nessa abordagem, os dados são produtos
históricos, se constituem numa situação histórico-social determinada. É por
isso que essa teoria é nomeada de Teoria Crítica ou de caráter crítico: nessa
visão, não há dados ou verdades absolutas. Ela é uma teorização, uma pesquisa
ou um estudo que se faz na prática.
A análise realizada pela Escola de Frankfurt envolve uma investigação teórica que é
contextualizada na sua prática. Dito de outro modo, a teoria deve partir da prática,
pois é na prática que os problemas sociais surgem. Nessa concepção de pesquisa, os
resultados obtidos na investigação feita por essa escola também devem ser ancorados
na realidade.
Indústria cultural é uma expressão usada por Adorno e Horkheimer pela primeira
vez na obra Dialética do Iluminismo, iniciada em 1942 mas só publicada em 1947. Essa
expressão, empregada para substituir cultura de massa, foi usada para indicar um
sistema de produção, transmissão e consumo cultural promovido pelos meios de
comunicação de massa, os quais impõem uma padronização e uma organização
dos gostos do público. À primeira vista, as necessidades dos indivíduos parecem ser
atendidas, porém esses indivíduos são inseridos em um círculo de manipulação que
atende perfeitamente à lógica do sistema capitalista. Além disso, a indústria cultural
fornece um ar de similitude a todos os bens que, padronizados, servem para “satisfazer”
às demandas – estas são supostamente os critérios a que os padrões de produção
devem atender. Com esse modo industrial de produção cultural, objetos são construídos
por meio de uma marca de serialização-padronização-divisão do trabalho. Assim, a
racionalidade técnica, supervalorizada na sociedade, promove a transformação da
cultura em mercadoria e, consequentemente, dissolve e degrada o seu papel e o seu
traço crítico (WOLF, 1999, MATTELART; MATTELART, 1997a).
Assim, a Teoria Crítica acaba sendo, ou pelo menos tenta ser, uma teoria
da sociedade que busca uma avalição crítica do próprio fazer científico.
Ademais, a Sociologia, disciplina, aliás, que é retomada pela Escola de Frank-
furt, só se transforma em crítica da sociedade quando considera as tensões
que existem nela, tais como as que ocorrem entre as instituições e a vida, sem
dissolver o social no natural (WOLF, 1999).
Por fim, é importante que você saiba que a Escola de Frankfurt se baseia
no materialismo, influenciado pelos estudos de Karl Marx (1818–1883) e
Friedrich Engels (1820–1895). No entanto, esse método é abordado pela escola
O conhecimento científico
Discutir sobre o que significa uma escola de pensamento leva também a pensar
sobre o que significa produzir conhecimento científico. Fazer científico, ciência
e objetividade científica, por exemplo, são palavras usadas frequentemente
para tratar da produção teórica dentro de um domínio metodológico guiado por
regras da razão, isto é, do que comumente se define como “ciência”. Mas o que
é a própria ciência? Não é possível falar ao certo nem definir objetivamente o
que é a ciência. Algumas definições situam o conhecimento científico como
parte das disciplinas sociais e excluem desse domínio as áreas humanas. Outras
reduzem a atividade científica a uma suposta busca “desinteressada” pelo
conhecimento verdadeiro; e há ainda as que a identificam com a tecnologia.
Para muitos, a ciência constitui um conjunto de conhecimentos “puros” que
são produzidos por métodos objetivos, rigorosos, neutros, os quais capturam o
real de forma diferente da filosofia e da arte, por exemplo (JAPIASSU, 1975).
Embora pareça ser uma discussão simples, não se tem uma resposta. Na
verdade, há várias. E sabe por quê? Porque não há uma definição certa e uma
errada, nem uma definição “verdadeira” em oposição a uma “falsa”, nem
muito menos imparcialidade e neutralidade na forma de definir e conceituar.
As noções de neutralidade e/ou imparcialidade foram trazidas dos estudos das ciências
sociais. Contudo, não existem neutralidade e imparcialidade no sentido estrito. O
que existe é a referenciação da pesquisa no seu contexto social. Nesse sentido, a
pesquisa científica se insere dentro de um processo que envolve a escolha sobre o
tema a ser estudado e a forma de sua abordagem (referencial teórico-metodológico).
Nesse processo, é possível que a opinião do pesquisador – que é um sujeito como
qualquer outro, influenciado pelas suas experiências e pelas condições sócio-históricas
da sociedade em que vive – influencie ou interfira durante a investigação do objeto
estudado, porém ela pode também não ser determinante (CORDEIRO, 2017).
Considerações finais
Como você observou, a Escola de Chicago de Sociologia e a Escola de
Frankfurt de Teoria Crítica constituíram dois movimentos teóricos que
ocorreram no início do século XX. Embora tenham se caracterizado como
tradições distintas dos estudos sobre os meios de comunicação de massa, essas
Leituras recomendadas
ADORNO, T.; HORKHEIMER, M. A indústria cultural: o iluminismo como mistificação
de massa. In: LIMA, L. C. Teoria da cultura de massa. 5. ed. São Paulo: Paz e Terra, 2000.
p. 169-220.
BECKER, H. S. Métodos de pesquisa em ciências sociais. 4. ed. São Paulo: Hucitec, 1999.
JAPIASSU, H. O mito da neutralidade científica. Rio de Janeiro: Imago, 1975.
RUFATO, M. de A. Imigração e relações raciais na cidade moderna: a teoria social de
Louis Wirth. 2010. 147 f. Dissertação (Mestrado em Sociologia)–Faculdade de Filosofia,
Letras e Ciências Humanas, Universidade de São Paulo, São Paulo, 2010.
Introdução
Antropologia pode ser melhor compreendida enquanto disciplina cien-
tífica a partir do seu desenvolvimento ao longo do tempo. Desde os
primeiros viajantes que entraram em contato com outros povos até o
intenso contato cultural permitido pela globalização, está em questão o
modo como olhamos aqueles que são diferentes de nós. Assim, refletindo
sobre esse olhar podemos conhecer e aprofundar a compreensão e o
entendimento dos povos existentes.
Neste capítulo, você aprofundará o seu conhecimento sobre a constru-
ção do pensamento antropológico, além de conhecer suas ramificações
e atribuições existentes. Com isso, perceberá quais são as possibilidades
de aplicações conceituais em nosso cotidiano.
A língua que usam, por toda costa [...] Carece de três letras convém a saber,
não se acha nela F, nem L, nem R, coisa digna de espanto, porque assim
não têm Fé, nem Lei, nem Rei, e essa maneira vivem desordenadamente,
sem terem além disto conta, nem peso, nem medida.
O livro do viajante de Hans Staden, Viagem ao Brasil, conta sobre o encontro com os
indígenas na América do Sul, as relações entre esses povos com os portugueses e como
se dava os ritos e cerimônias dos ditos “selvagens”. Em um dos trechos, ele apresenta
a antropofagia presente nesses povos:
Evolucionismo Social
A partir de 1830, influenciada pelas ideias evolucionistas da Biologia, surge
o embrião de uma antropologia evolucionista, na Inglaterra. O filósofo inglês
Herbert Spencer foi um dos maiores influenciadores, pois apostava na escala
4 O que é antropologia: ramificações e atribuições
Para conhecer mais sobre o pensamento do Evolucionismo cultural e suas ideias bases,
você pode ler o livro Evolucionismo cultural de Castro, 2005.
O que é antropologia: ramificações e atribuições 5
Funcionalismo
Considerado o pai da Antropologia Britânica, Bronislaw Malinowski (1984) desen-
volveu uma análise por meio do funcionalismo e afirmava que todas as partes de
uma cultura local desempenham um papel de funcionamento. Logo, o pesquisador
teria que fazer um trabalho de campo intensivo para apreender todos os detalhes
culturais. No início, esses detalhes pareceriam arbitrários e sem sentido – tanto
nas práticas da população local, quanto no modo das pessoas sobreviverem no
ambiente local – mas, com a acumulação de dados anotados durante o tempo
em que o pesquisador permanece em campo, alguns núcleos de sentido viriam
à tona, e o antropólogo seria o mediador dos significados da sociedade do outro.
Entre 1914 e 1918, ele foi autorizado a realizar trabalho de campo na Nova
Guiné, entre os trobriandeses, aprendendo o uso da língua nativa, por meio
da observação participante entre os nativos, o que possibilitou, em 1992, a
publicação do livro Argonautas do Pacífico Ocidental.
6 O que é antropologia: ramificações e atribuições
Culturalismo norte-americano
Franz Boas se opôs aos métodos dedutivistas das análises comparativas e
defendeu o método da indução empírica, a fim de não enquadrar os fenômenos
em um conceito que não lhe cabia. Assim, ele analisou os costumes semelhantes
entre tribos vizinhas, para traçar paralelos considerando o contexto social na
perspectiva histórica e geográfica. Logo, Boas preferiu elucidar o conceito de
cultura de modo plural, holístico, integrado, de acordo com regiões culturais
determinadas, para só então estabelecer leis gerais e generalizações teóricas.
Ruth Benedict e Margereth Mead são discípulas de Boas e dão continuidade
aos estudos de culturas particulares, a partir dos anos 20 nos Estados Unidos.
Esses estudos levam em consideração a noção de cultura como transmissão
geracional e a formação da personalidade na relação entre o indivíduo e o
grupo. Em 1934, Benedict publica seu livro Padrões de cultura. Nele, aborda
as configurações das feições culturais para compreender o papel da cultura na
definição da personalidade. Mais tarde, Mead publica Sexo e Temperamento,
em 1935, e apresenta a relação entre o temperamento e os diferentes papéis
sexuais em termos de um padrão dominante.
O que é antropologia: ramificações e atribuições 7
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Estruturalismo
Em 1908, Claude Lévi-Strauss nasce em Bruxelas, mas é em Paris que ele será
reconhecido como antropólogo renomado. Seus estudos buscavam a análise das
estruturas da mente humana, a fim de evidenciar as estruturas das sociedades
como relações constantes, apesar da diversidade e das diferenças entre elas.
Assim, por meio das estruturas do inconsciente, estudadas nos fenômenos
conscientes, Lévi-Strauss (1973) acessaria as leis gerais do pensamento humano
e, nessa estrutura rígida e imutável, desvendada no plano lógico, estariam
articuladas simbolismos e ação social.
Um de seus estudos, As estruturas elementares do parentesco, de 1947,
investigou as classificações definidas pelos membros de um grupo em
relação ao sistema de parentesco e a aliança das sociedades, permeando
questões que perpassariam das sociedades primitivas até as sociedades
ditas contemporâneas.
A proibição do incesto é explicada sociologicamente como um tabu que
impediria os grupos de se fecharem entre si, de modo que a aliança entre os
grupos proporia relações de consanguinidade. Ao mesmo tempo, a circulação
de mulheres asseguraria a troca entre os indivíduos e os grupos.
Leituras recomendadas
BARTH, F. One discipline, four ways: british, german, french, and american anthropology.
Chicago: The University of Chicago Press, 2005.
CASTRO, C. (Org.). Evolucionismo cultural. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2005.
FREEMAN, D. Margaret Mead and Samoa: the making and unmaking of an anthropo-
logical myth. New York: Penguin Books, 1985.
OLIVEIRA, R. C. de. Evolucionismo cultural. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2005.
ESTUDOS
CULTURAIS E
ANTROPOLÓGICOS
Introdução
Neste capítulo, você vai conhecer algumas influências metodológicas e
conceituais do fazer antropológico enquanto disciplina científica. Como
você pode imaginar, a transformação da antropologia em uma disciplina
científica não se deu de uma hora para outra. Assim, é preciso entender
as etapas desse processo.
Ao longo do texto, você também vai conhecer algumas metodologias
utilizadas no fazer antropológico que podem ser usadas em outras áreas
de conhecimento. São elas: a etnografia, o estudo longitudinal e o survey.
Além disso, você vai ver os dilemas e limites éticos do fazer antropológico,
que envolve desde a construção do tema de pesquisa até a produção
do relatório ou a publicação da pesquisa em livro.
Desse modo, você pode perceber que o fazer antropológico implica conhecer
as ferramentas e teorias da área da antropologia, mas também requer certa
postura do pesquisador em meio ao grupo social estudado. Afinal, como o
objeto de estudo é o ser humano, os desafios da pesquisa incluem as formas
de relacionamento entre pesquisadores e pesquisados. A seguir, você vai ver
algumas metodologias do fazer antropológico que compõem a cientificidade
O fazer antropológico 5
Para aprofundar a discussão e conhecer mais sobre o debate nacional relacionado à ética
em pesquisa antropológica, leia Antropologia e ética: o debate atual no Brasil, organizado
pela Associação Brasileira de Antropologia. Nessa obra, são discutidos aspectos gerais
da ética em pesquisa e também questões envolvendo a multidisciplinaridade.
Na pesquisa, podemos pensar que a restituição dos dados também pode ser
uma forma de prolongar o trabalho de campo, as interações, a relação com os
nativos. Nesse caso, a receptividade da pesquisa e a restituição confundem-se
em relação às interações estabelecidas, engajamento e responsabilidade com
o campo. O duplo produto final da enquete, seja sob a forma de relatório para
o projeto de financiamento ou artigo para a revista científica, sublinha a dis-
tinção entre dois papéis: ciência “pura” versus ciência “aplicada”. Entretanto,
trata-se de distinção ideal. Nas situações concretas, observa-se ambiguidade
entre esses dois papéis, uma vez que um ou outro é reivindicado e um ou outro
argumento pode ser utilizado segundo o contexto. A publicação de artigos e
livros é uma forma importante de difusão da pesquisa no meio acadêmico,
no entanto, essas publicações tendem a repercutir pouco para os pesquisados
(FERREIRA, 2015, p. 2.645).
BOYD, D. B.; BEE, H. A criança em crescimento. São Paulo: Harper & Row do Brasil, 1977.
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MALINOWSKI, B. Argonautas do pacífico ocidental. São Paulo: Abril Cultural, 1998.
O fazer antropológico 11
Leituras recomendadas
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ticipante. In: VELHO, G.; KUSCHNIR, K. (Org.). Pesquisas urbanas: desafios do trabalho
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SARTI, C.; DUARTE, L. F. D. (Org.). Antropologia e ética: desafios para a regulamentação.
Brasília: ABA, 2013.
VÍCTORA, C. Antropologia e ética: o debate atual no Brasil. Niterói: UFF, 2004.
Conteúdo:
ESTUDOS
CULTURAIS E
ANTROPOLÓGICOS
Introdução
Neste capítulo, você vai aprender o conceito de etnografia e compre-
ender como surge essa ideia ao conhecer e analisar outras culturas. Ao
mesmo tempo, vai perceber a vinculação da etnografia à disciplina da
antropologia, compreendendo quais as suas relações e potencialidades.
Nesse sentido, etnografia não é apenas um método, mas abrange um
arcabouço teórico metodológico para pensar o grupo pesquisado.
Por último, vai conhecer estratégias no âmbito da etnografia que aju-
dam a realizar a pesquisa com mais cuidado e compromisso. Os registros
em campo, as entrevistas e a construção da árvore genealógica podem
ajudar a “ver” o que não é possível enxergar de outra maneira.
Conceito de etnografia
Para conhecermos outras culturas, estudarmos os seus modos de vida e com-
preendermos os seus pensamentos, ainda que eles sejam diferentes dos nossos,
precisamos adotar algumas estratégias de pesquisa. Imagine que você chega a
uma sociedade totalmente diferente da sua, more durante um tempo entre as
pessoas daquele local e aprende alguns hábitos de vida próprios daquela cultura.
Aos poucos, mesmo que de forma intuitiva, você vai entendendo e compre-
endendo o modo de se alimentar, de se vestir, de falar, de cuidar da terra, de se
relacionar entre as pessoas, de se comportar, assim como as festas e as crenças
mais importantes, os motivos para rir e chorar, etc. Entretanto, no âmbito da
2 Etnografia
Assim, por meio das representações dos relatos dos viajantes é que a popu-
lação acessava a cultura de sociedades distantes e mesmo de culturas que não
mais existiam. Muitas vezes, essas descrições registradas pelos viajantes eram
caricatas, exageradas e até mesmo fantasiosas, mas como era a única maneira de
conhecer o que faziam outras culturas, esses relatos eram bastante difundidos.
O pesquisador compreende a partir desse momento que ele deve deixar seu
gabinete de trabalho para ir compartilhar a intimidade dos que devem ser
considerados não mais como informadores a serem questionados, e sim como
hóspedes que o recebem e mestres que o ensinam. Ele aprende então, como
aluno atento, não apenas a viver entre eles, mas a viver como eles, a falar sua
língua e a pensar nessa língua, a sentir suas próprias emoções dentro dele
mesmo. Trata-se, como podemos ver, de condições de estudo radicalmente
diferentes das que conheciam o viajante do século XVIII e até o missionário
ou o administrador do século XIX, residindo geralmente fora da sociedade
indígena e obtendo informações por intermédio de tradutores e informadores:
este último termo merece ser repetido. Em suma, a antropologia se torna pela
primeira vez uma atividade ao ar livre, levada, como diz Malinowski, “ao vivo”,
em uma “natureza imensa, virgem e aberta” (LAPLANTINE, 2003, p. 57–58).
4 Etnografia
No campo, ensina Boas, tudo deve ser anotado: desde os materiais consti-
tutivos das casas até as notas das melodias cantadas pelos Esquimós, e isso
detalhadamente, e no detalhe do detalhe. Tudo deve ser objeto da descrição
mais meticulosa, da retranscrição mais fiel... [Para ele] Apenas o antropólo-
go pode elaborar uma monografia, isto é, dar conta cientificamente de uma
microssociedade, apreendida em sua totalidade e considerada em sua auto-
nomia teórica. Pela primeira vez, o teórico e o observador estão finalmente
Etnografia 5
https://goo.gl/LRD2UJ
É por uma razão muito profunda, que se prende à própria natureza da dis-
ciplina e ao caráter distintivo de seu objeto, que o antropólogo necessita da
experiência do campo. Para ele, ela não é nem um objetivo de sua profissão,
nem um remate de sua cultura, nem uma aprendizagem técnica. Representa
um momento crucial de sua educação, antes do qual ele poderá possuir conhe-
cimentos descontínuos que jamais formarão um todo, e após o qual, somente,
estes conhecimentos se "prenderão" num conjunto orgânico e adquirirão um
sentido que lhes faltava anteriormente (LÉVI-STRAUSS, 1991, p. 415–416).
O que o etnógrafo enfrenta, de fato — a não ser quando (como deve fazer,
naturalmente) está seguindo as rotinas mais automatizadas de coletar dados
— é uma multiplicidade de estruturas conceptuais complexas, muitas delas
sobrepostas ou amarradas umas às outras, que são simultaneamente estra-
nhas irregulares e inexplícitas, e que ele tem que, de alguma forma, primeiro
aprender e depois apresentar. E isso é verdade em todos os níveis de atividade
do seu trabalho de campo, mesmo o mais rotineiro: entrevistar informantes,
observar rituais, deduzir os termos de parentesco, traçar as linhas de proprie-
dade, fazer o censo doméstico... escrever seu diário. Fazer etnografia é como
tentar ler (no sentido de "construir uma leitura de") um manuscrito estranho,
desbotado, cheio de elipses, incoerências, emendas suspeitas e comentários
tendenciosos, escrito não com os sinais convencionais do som, mas com
exemplos transitórios do comportamento modelado (GEERTZ, 1978, p. 20).
O livro Entre saias justas e jogos de cintura, organizado por Soraya Fleischer e Alinne
Bonetti, reúne artigos sobre os encontros dos pesquisadores e seus pesquisados.
Cada um deles conta sobre as suas experiências etnográficas, apresenta situações
inesperadas em campo e mesmo soluções surpreendentes durante a etnografia. É um
livro atual, que apresenta pesquisas contemporâneas e que motiva o leitor a perceber
que a etnografia é desafiadora e prazerosa.
https://goo.gl/sgd9SZ
Leituras recomendadas
BATESON, G.; MEAD, M. Balinese character: a photographic anlysis. 1942. Disponível em:
<https://archive.org/details/BatesonGregoryMeadMargaretBalineseCharacterAPhoto-
graphicAnalysis1942/page/n1>. Acesso em: 31 out. 2018.
CARDOSO, R. C. L. Aventuras de antropólogos em campo ou como escapar das ar-
madilhas do método. In: CARDOSO, R. C. L. A aventura antropológica. 2. ed. São Paulo:
Paz e Terra, 1988. p. 95-106.
DAMATTA, R. Relativizando: uma introdução à antropologia social. Petrópolis: Vozes, 1981.
PALERMO, E. G.; TOZZINI, M. A. Resenha. Campos, v. 11, n. 2, p. 137-142, 2010. Disponível
em: <https://revistas.ufpr.br/campos/article/view/24318/17358>. Acesso em: 1 out. 2018.
ROCHA, A. L. C.; ECKERT, C. Etnografia: saberes e práticas. Iluminuras, Porto Alegre, v. 9,
n. 21, 2008. Disponível em: <https://seer.ufrgs.br/iluminuras/article/view/9301/5371>.
Acesso em: 31 out. 2018.
VELHO, G. Observando o Familiar. In: NUNES, E. (Org.). A aventura sociológica. Rio de
Janeiro: Zahar, 1978.
Conteúdo:
ANTROPOLOGIA
E CULTURA
Guilherme Marin
Bacharel em Filosofia
Mestre em Sociologia da Educação
ISBN 978-85-9502-184-6
CDU 31
Introdução
Neste capítulo, discutiremos o que é cultura, como se aborda esse conceito
e a sua relação com a antropologia.
Introdução à cultura
O que você entende por cultura? Você acha que todo mundo tem cultura? Ou
cultura é só o que se aprende na escola? Você precisa compreender que a cultura
não é só o que se aprende na escola. Todo mundo tem cultura, porque a cultura
é transmitida de geração a geração, de pessoa a pessoa, como herança social.
É a partir da cultura que os seres humanos convivem e aprendem a habitar
o mundo em que vivem. Assim, o homem não só passa por uma aprendizagem
cultural, através do processo de socialização, como também pode transmitir
aspectos culturais ao grupo social. Símbolos e linguagens são compartilha-
dos e compreendidos como herança social – e não como herança biológica/
genética – pelos membros de uma mesma comunidade, de modo que esses
elementos identificadores da cultura são considerados como normas e regras
fundamentais para sobreviver em uma sociedade.
Produzido em 1922, por Robert Flaherty, este filme documenta a vida de uma família inuíte
(esquimós) durante um ano. Por meio de imagens e da sequência de cenas inusitadas,
o cineasta apresenta o modo de vida de uma família que vive praticamente isolada
https://goo.gl/Qy5Yx4
Para ter um melhor entendimento quanto aos prejuízos dos “fast food”, você pode assistir
ao filme “Super Size me” de Morgan Spurlock, que se alimenta apenas de comida de fast
food durante um mês, para analisar os efeitos dessa dieta hipercalórica em seu corpo.
A cultura é dinâmica
A cultura não está parada. A todo momento, diversos elementos culturais
são reavaliados, conscientemente e inconscientemente, sendo que alguns são
descartados, outros reinventados. Você pode comparar como estavam vestidas
as pessoas nas fotos antigas guardadas no fundo da gaveta do armário com
as vestimentas atuais, de quando saímos na rua. Pode pensar nas músicas
da sua infância e nas músicas que tocam nas rádios hoje em dia. Analisar as
gírias e palavras faladas pelos seus parentes mais antigos em relação às gírias
que você fala com seus colegas. Essas mudanças e modificações se mantêm
momentaneamente até que novas transformações na cultura modifiquem-nas.
Podemos dizer que as mudanças culturais ocorrem de modo endógeno ou
exógeno. O modo endógeno pode ser decorrente do próprio sistema cultural,
a partir dos membros que participam dessa sociedade. O modo exógeno se dá
por meio de um contato cultural, com outros povos, que acaba interferindo
em práticas culturais estabelecidas antes do contato. As mudanças podem ser
específicas ou até mesmo modificar completamente os elementos culturais
que antes faziam sentido para aquela cultura. Assim, quando descrevemos
uma determinada cultura, para um estudo científico, temos de saber que ela
não permanece estática em relação ao seu modo de estar no mundo.
https://goo.gl/2WqXEJ
Nesse estudo, ter critério e método é crucial para acessar e perceber elemen-
tos da cultura a serem interpretados, que não são tão evidentes ao estrangeiro.
Desde o início, partimos da ideia de que toda cultura é complexa, extremamente
rica e cheia de sentidos. Como diz Cuche (1999, p. 239), “Não há cultura que
não tenha significação para aqueles que nela se reconhecem. Os significados
como os significantes devem ser examinados com a maior atenção”. Por isso,
se você está disposto a estudar o homem e a sociedade em que ele vive, cer-
tamente vai abordar a discussão de cultura. Se deseja explicar os significados
dos acontecimentos sociais do mundo em que vivemos, passará pelo estudo de
seus elementos culturais. Se acompanha as mudanças culturais nas sociedades,
será necessário compreender as modificações culturais ao longo dos tempos.
E é buscando essas significações, expressas na cultura, que vamos reco-
nhecer as diferenças culturais. Isso é fundamental para um mundo que convive
com inúmeras culturas e sociedades, próximas, cada vez mais, umas das
outras, pelos avanços tecnológicos que se popularizam rapidamente mundo
afora. Pensar na cultura como um conceito antropológico, como propõe
Laraia (2001), torna-se chave para aprofundar o olhar sobre a sociedade, além
de possibilitar aplicar esse mesmo olhar em outras áreas do conhecimento,
como Educação, História, Políticas Públicas, entre outras.
Logo, o que se deseja é reconhecer a potência das categorias de análise
dessa disciplina para a compreensão dos homens em sociedade. E aqui, o
conceito de cultura possibilita uma virada epistemológica de pensar em nós
através do olhar do outro, de modo que, ao analisar a cultura deste individuo,
Introdução
Neste capítulo, você vai ver como se deu o surgimento dos estudos
culturais e qual é o seu conceito. Assim, vai estudar a construção desse
conceito e também as ideias principais que podem ser usadas como
ferramentas de estudo nessa área. Para isso, você vai se debruçar sobre
três ideias. A primeira delas é a noção de cultura como um modo de en-
xergar outras sociedades. A segunda delas é o conceito de etnocentrismo,
que se refere ao modo como as pessoas percebem o outro. A última é a
noção de diversidade cultural, que tem a ver com a riqueza das formas
de existência no mundo.
Ao fim do capítulo, você vai ver a importância dos estudos culturais e
entender como eles podem ser aplicados a questões contemporâneas.
parecerão familiares e outros, muitos exóticos. Por isso, você deve ter cuidado
para respeitar aquilo que não conhece. Assim como você tem o direito de ser
quem é, as pessoas de outras culturas também o tem. Nesse sentido, é preciso
pensar em termos de direitos humanos e da pluralidade de formas de vida.
A existência de um indivíduo se dá em conjunto com outros membros da
sociedade em que ele vive. Tudo o que é produzido por eles expressa o que
pensam, o que fazem e o que deixam como legado. Portanto, a produção cultural
é um reflexo das manifestações sociais que as diferentes culturas constroem.
Nesse sentido, essas manifestações sociais se explicitam por meio das práticas
sociais. Como sintetiza Hall (1997, p. 33): “[...] toda prática social tem condições
culturais ou discursivas de existência. As práticas sociais, na medida em que
dependem do significado para funcionarem e produzirem efeitos, se situam
‘dentro do discurso’, são ‘discursivas’ [...]”. Assim, acessando essas práticas
sociais juntamente aos discursos que elas constroem sobre o mundo, você
pode apreender o que é relevante para outras sociedades e comparar isso com
o que é relevante para a sua realidade.
Mas como surge a preocupação de estudar outras culturas? E como é
possível estudar essas culturas de modo relevante? Está correto dizer que
os estudos culturais se constituíram como disciplina? E como suas ideias se
espalharam por outros domínios das ciências humanas e sociais? Como você
pode imaginar, não há uma única resposta para essas questões. Contudo,
existem algumas pistas para responder a essas e outras perguntas relevantes:
Hall (1980, p. 7), quando diz que “Os estudos culturais não configuram uma
‘disciplina’ mas uma área onde diferentes disciplinas interatuam, visando ao
estudo de aspectos culturais da sociedade [...]”. Por isso, você está convidado a
estudar mais a fundo os estudos culturais a fim de compreender a importância
de conhecer outras culturas diferentes da sua.
Hennigen e Guareschi (2006) evidenciam que a proposição de Wittgenstein
para os estudos de linguagem foi determinante para se pensar a respeito dos
significados da convivência social. O que era considerado como natural nos
modos de vida começou a ser percebido como construído por uma discursi-
vidade. Assim, compreender os meandros discursivos permite acompanhar
as diversidades de expressões e manifestações humanas no mundo. Nesse
sentido, os discursos apresentariam o contexto cultural da sociedade em
questão e também a sua complexidade:
[...] uma cultura em comum seria aquela continuamente redefinida pela prá-
tica de todos os seus membros, e não uma na qual o que tem valor cultural é
produzido por poucos e vivido passivamente pela maioria. Trata-se de uma
visão de cultura inseparável de uma visão de mudança social radical e que
exige uma ética de responsabilidade comum, participação democrática de
todos em todos os níveis da vida social e acesso igualitário às formas e meios
de criação cultural.
Por isso, ao conviver com membros de outra cultura, você aprende quais
práticas sociais são relevantes em seu meio social, quais motivações são perti-
nentes para aquelas pessoas, como elas resolvem os seus problemas cotidianos,
como se comunicam e se expressam diante do mundo, entre outros aspectos.
Estudos culturais 5
https://goo.gl/vCTsAe
6 Estudos culturais
[...] o conjunto cultural tem uma tendência para a coerência e uma certa
autonomia simbólica que lhe confere seu caráter original singular; e [...] não
se pode analisar um traço cultural independentemente do sistema cultural ao
qual ele pertence e que lhe dá sentido. Isto quer dizer estudar todas as culturas,
quaisquer que sejam a priori, sem compará-las e/ou "medi-las” prematuramente
em relação às outras culturas (CUCHE, 2002, p. 241).
Por último, você deve considerar como uma das principais ideias dos es-
tudos culturais o conceito de diversidade cultural. Esse conceito deveria ser
difundido nas instituições de educação para que desde a escola os membros da
sociedade refletissem sobre outras culturas, exercitando o respeito às diferenças
culturais. Essa ideia é reforçada por Gadotti (1992, p. 23):
https://goo.gl/cCV4Tq
Para aprofundar a discussão sobre cultura, você pode ler A invenção da cultura, de
Roy Wagner (2012). Esse autor mostra como o próprio conceito de cultura foi criado
e pode ser pensado. Essa é uma discussão atual e que contempla a nova forma de
refletir sobre as diferentes sociedades.
Mas você sabe qual é a importância de estudar essas questões no âmbito dos
estudos culturais? A seguir, você pode ver alguns apontamentos de Meneses
(1999). A partir deles, você vai ver como aplicar os conceitos que estudou até
aqui e como refletir sobre questões relevantes para o relacionamento com
o outro no mundo contemporâneo. Considere, então, os elementos a seguir.
[...] qualquer coisa que possa ser lida como um texto cultural e que contenha
em si mesma um significado simbólico sócio-histórico capaz de acionar for-
mações discursivas pode se converter em um legítimo objeto de estudo: desde
a arte e a literatura, as leis e os manuais de conduta, os esportes, a música e
a televisão, até as atuações sociais e as estruturas do sentir.
Para refletir ainda mais sobre a diversidade das formas de vida e sobre a subjetividade
do outro, assista ao filme Moin, un noir (1958), do antropólogo Jean Rouch. O material
pode ser encontrado online com legendas em português. A proposta do filme é
mostrar o cotidiano de pessoas que migraram para a Costa do Marfim nos anos 1950
e que passaram por um choque cultural ao deixar a África tradicional, que conheciam,
e adentrar o mundo moderno, que acabavam de acessar.
RÍOS, A. Los estudios culturales y el estúdio de la cultura em América Latina. In: MATO,
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Leituras recomendadas
ADORO, T.; HORKHEIMER, M. A indústria cultural: o iluminismo como mistificação das
massas. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 2002.
EAGLETON, T. A ideia de cultura. São Paulo: UNESP, 2011.
ORGANIZAÇÃO DAS NAÇÕES UNIDAS PARA A EDUCAÇÃO, A CIÊNCIA E A CULTURA.
Declaração universal sobre a diversidade cultural. 2002. Disponível em: <http://unesdoc.
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THOMPSON, J. Ideologia e cultura moderna. Rio de Janeiro: Vozes, 2001.
WAGNER, R. A invenção da cultura. São Paulo: Cosac Naify, 2012.
Conteúdo:
ESTUDOS
CULTURAIS E
ANTROPOLÓGICOS
Introdução
Neste capítulo, você vai aprender a distinguir os conceitos de raça e etnia,
mas também vai perceber que a ideia de raça vem sendo ressignificada e
até mesmo valorizada como um componente étnico importante atrelado
à identidade. Inicialmente, o conceito de raça estava ligado às questões
fenotípicas dos grupos sociais, mas você vai perceber que essa afirmação
não tem tanto fundamento científico assim.
Na sequência, vamos associar esses conceitos com questões histórico-
-sociais, a fim de compreender como a ideia de raça dividiu os grupos
sociais e até mesmo hierarquizou uns sobre os outros. Alguns pontos
históricos mundiais são relevantes, e cabe destacar algumas questões
nacionais que se valeram desses conceitos para a construção da iden-
tidade brasileira.
Ao final, discutiremos sobre o preconceito racial e as suas implicações
no mundo atual. Nesse sentido, serão apresentados alguns movimen-
tos étnicos que buscam valorizar aspectos culturais no contexto em
que vivem. Assim, você terá uma visão ampla de como raça e etnia são
agenciadas desde o passado até os dias atuais!
rentes — muitas vezes percebidas pelas cores — que compõem a base para as
sociedades que conhecemos hoje? Para isso, vamos estudar o próprio termo
raça e problematizar os seus usos.
Cabe deixar de lado o termo raça usado pelas ciências biológicas e tão
difundido nos séculos XVIII e XIX, que entendiam como pertinente a ideia de
raças humanas para diferenciar os grupos sociais — e até mesmo hierarquizá-
-los —, para compreender que a única raça existente é a raça humana. Neves
4 Etnia e raça
(2006) compreende que esse termo só faz sentido se for utilizado no âmbito
sociológico, no qual são levadas em consideração as origens do grupo, tanto
pelos traços fisionômicos como pelos aspectos culturais, abarcando as suas
complexidades históricas e a identidade dos seus membros.
Silva e Soares (2011) destacam que esse “novo” uso do termo vem se
consolidando; porém, em outros momentos, diferentes conceitos tentaram
dar conta de identificar os grupos sociais de forma que considerassem a sua
pluralidade sem hierarquizá-los, como explicam a seguir:
Apesar dessas novas leituras conceituais e usos das palavras, o que confere uma
mudança histórica altamente comum e saudável no campo das mentalidades,
o conceito de “raça”, por muitas vezes foi deixado de lado em detrimento de
outros, não completamente substituidores, mas que talvez fizessem o mesmo
papel definidor e classificador dessas pessoas unidas por características,
cultura e instituições semelhantes e, num contexto de luta por igualdades,
experiências parecidas de resistência e/ou percepção de todo um sistema
insistentemente segregacionista. Atualmente, um desses outros conceitos
seria o de “etnia”, que tem origem do grego ethnos, o que entendemos não só
como um conjunto de pessoas da comunidade. É o pertencimento do grupo,
independente dos laços consanguíneos e a construção de ações coletivas
(SILVA; SOARES, 2011, p. 106).
[...] o regime nazista não terá como único objetivo a destruição das outras raças.
Este é apenas um de seus aspectos. O outro [aspecto] é o de expor a própria
raça ao perigo absoluto e universal da morte. O risco de morrer, a exposição
à destruição total é um princípio inscrito entre os deveres fundamentais da
obediência nazista e entre os objetivos essenciais da política.
Finlândia 2.000 ? ?
[...] as pessoas não se iludem com relação ao racismo no Brasil; sejam bran-
cas, negras ou mestiças, elas sabem que existe preconceito e discriminação
racial. O que o mito racial no brasileiro faz é dar sustentação a uma etiqueta
e regra implícita de convívio social, pela qual se deve evitar falar em racis-
mo, já que essa fala se contrapõe a uma imagem enraizada do Brasil como
nação. Transgredir essa regra cultural não explicitada significa cancelar ou
suspender, mesmo que temporariamente, um dos pressupostos básicos que
regulam a interação social do cotidiano, que é a crença na convivência não
conflituosa dos grupos raciais.
https://goo.gl/Dm4C8C
[…] tomam como base para sua implementação a extrema desigualdade racial
brasileira no acesso ao ensino superior. Os argumentos favoráveis concentram-
-se nesse sentido, afirmando a necessidade de um enfrentamento direto da
sociedade brasileira a esse respeito, o que implica o reconhecimento de que o
Brasil é um país racialmente desigual e que tal situação é fruto de discrimina-
ção e preconceito, e não de uma situação de classe social (LIMA, 2010, p. 87).
A implantação das cotas não se deu sem polêmicas, e desde então são
produzidas avaliações sobre o programa em inúmeros estados.
[...] inexistência biológica das raças; caráter ilegítimo das ações de “repara-
ção” aos danos causados pela escravidão em tempo presente; risco de acirrar
o racismo no Brasil; possibilidade de manipulação estatística da categoria
“parda”; inviabilidade de identificação racial em um país mestiço; a questão
da pobreza como determinante da exclusão social.
Por outro ladro, também é preciso evidenciar pontos que foram vantajosos
e que conseguiram provocar uma nova configuração da população no acesso
à educação superior. Logo, a mesma pesquisa destacou:
Para compreender mais sobre o processo de implementação das cotas em termos das
discussões sobre raça e etnia, leia o artigo A reserva de vagas para negros nas universidades
brasileiras, de Yvonne Maggie e Peter Fry.
https://goo.gl/xfpMVn
12 Etnia e raça
BLUMER, H. The nature of racial prejudice. In: HUNTER, G. Industrialization and Race
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FOUCAULT, M. Genealogia del racismo. La Plata: Altamira, 1996.
FREYRE, G. Casa-grande e senzala: formação da família brasileira sob o regime da eco-
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Etnia e raça 13
Leituras recomendadas
AZEVEDO, C. M. M. Abolicionismo: Estados Unidos e Brasil, uma história comparada.
São Paulo: Anna Blume, 2003.
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Conteúdo:
CIÊNCIA
POLÍTICA E
TEORIA GERAL
DO ESTADO
Felipe Scalabrin
Ciência política e teoria
geral do Estado
Objetivos de aprendizagem
Ao final deste texto, você deve apresentar os seguintes aprendizados:
Introdução
A ciência política e a teoria geral do Estado são disciplinas diretamente
relacionadas com a organização da vida em sociedade. Apresentam-se
como fonte indispensável para a compreensão das relações de poder
e da atuação do Estado ao tratarem de temas relevantes como poder
político, direitos políticos, democracia, legitimidade do poder, formas de
governo, sistemas de governo e funções do Estado.
Neste capítulo, você verá os conceitos básicos que orientam a disci-
plina, com a diferenciação entre ciência política e teoria geral do Estado,
e, ao final, identificará a importância prática e teórica do estudo.
Considerações iniciais
Não é nova a ideia segundo a qual o homem somente pode ser compreendido a
partir da sua inserção na vida em sociedade. De fato, o ser humano é agregador
e depende, pela sua própria essência, da aproximação com o outro. Conforme
Aristóteles, o homem é um ser político. Em paralelo, a condição humana
também traz uma constante autorreflexão: o homem busca conhecimento e
aprofundamento das estruturas que lhe são apresentadas. É nessa linha de
8 Ciência política e teoria geral do Estado
pública, como nela influem os atos legislativos, ou com a força dos parla-
mentos, sob a égide de grupos socioeconômicos poderosíssimos, empresta à
democracia algumas de suas peculiaridades mais flagrantes.
Conceitos fundamentais
A seguir, você identificará os conceitos de ciência política e teoria geral do
Estado e conhecerá suas diferenças e semelhanças.
Ciência política
A política, enquanto prática humana relacionada com a noção de poder, é objeto de
debate e reflexão desde o passado longínquo. Dessa forma, muitas obras clássicas
são referência até hoje, com relevância para Platão, Aristóteles, Nicolau Maquia-
vel, Thomas Hobbes, John Locke, Alexis de Tocqueville, Rousseau, Karl Marx,
George Burdeau, entre tantos outros. A palavra remonta à noção grega de pólis.
Sobre o conceito de ciência política, Dalmo Dallari (2013, p. 17) destaca
que ela “faz o estudo da organização política e dos comportamentos políticos,
tratando dessa temática à luz da Teoria Política, sem levar em conta os elemen-
tos jurídicos”. Essa definição considera que o elemento central do estudo é a
política e, por essa razão, deságua na noção de poder. Com efeito, a ciência
política é centrada no estudo do poder e, portanto, da autoridade (DUVERGER
apud DIAS, 2013, p. 9). Em síntese, o objeto da ciência política é o poder.
Para melhor estudar o seu objeto, é possível identificar quatro campos de
atuação da ciência política (DIAS, 2013):
e influindo sobre ele” (DALLARI, 2013, p. 18). É evidente, com isso, que o
estudo do Estado também diz respeito às condições de possibilidade de sua
compreensão (MORAIS, 2010).
Em termos práticos, as questões abordadas na teoria geral do Estado já
eram tratadas pelos autores clássicos da ciência política. A sistematização,
como disciplina autônoma, deveu-se principalmente à doutrina alemã do final
do século XIX e início do século XX, notadamente com Georg Jellinek e a
sua teoria geral do Estado (Allgemeine Staatslehre, 1911).
Diferenças e semelhanças
Apresentadas as definições de ciência política e teoria geral do Estado, verifica-
mos, com clareza, que as disciplinas não se confundem. Enquanto a primeira diz
respeito às relações de poder, a segunda diz respeito às relações com o Estado. É
certo, por outro lado, que “não há possibilidade de desenvolver qualquer estudo ou
pesquisa de Ciência Política sem considerar o Estado” (DALLARI, 2013, p. 17).
A ciência política, com efeito, é disciplina mais ampla e da qual a teoria
geral do Estado faz parte. Essa, aliás, é a concepção de Herman Heller (apud
DIAS, 2013), que já apontava a dificuldade em diferenciar ambos os fenômenos.
De todo modo, para ele, há uma dependência recíproca entre ambas: a teoria
geral do Estado é também pressuposto da ciência política.
Há, por outro, uma inevitável aproximação entre ambas. É que as duas se
debruçam sobre a convivência humana, o Estado e a política:
[...] não somente para saber como se constituem, nem somente no sentido de
uma obra de arte ou de uma teoria da constituição, mas, em última instância,
no sentido de que constituem uma ciência da ordem. Têm uma tarefa comum,
pois têm que responder à velha questão de como nós, seres humanos, podemos
chegar a ter uma vida racional e boa (DIAS, 2013, p. 14).
https://goo.gl/sqAVQN.
12 Ciência política e teoria geral do Estado
Importância da disciplina
Variadas razões justificam o estudo da ciência política e da teoria geral do
Estado. Com efeito, a disciplina tem relevo jurídico e, na pena de Dalmo de
Abreu Dallari, podem ser identificadas três razões para se considerar a matéria
importante (DALLARI, 2013).
A primeira razão é de consciência: quem vive em sociedade precisa saber a
sua organização e o papel que deve cumprir, sob pena de se tornar um autômato
despido de intelectualidade e sem vontade própria.
A segunda razão é de ordem crítica. Assim, devem ser conhecidas as
formas e os métodos pelos quais os problemas sociais serão conhecidos e
as soluções propostas para que se “evite o erro de pretender o transplante,
puro e simples, de fórmulas importadas, ou a aplicação simplista de ideias
consagradas, sem a necessária adequação às exigências e possibilidades da
realidade social” (DALLARI, 2013, p. 13).
A terceira razão é de ordem prática. Isso porque a ciência política e da
teoria geral do Estado colaboram, de forma incisiva, para a elaboração da
ordem jurídica. São, portanto, passos necessários para a compreensão do
Direito de determinada sociedade. Essa perspectiva prática revela ainda o
enfrentamento que deve existir entre as construções teóricas e o cotidiano
daqueles inseridos em determinada comunidade jurídica. De fato, não há
qualquer utilidade em uma reflexão sobre o papel da autoridade e do Estado
que não considere as peculiaridades da sociedade na qual está inserida. Por
isso, deve ser acrescentada uma última boa razão para o estudo da disciplina.
A quarta razão proposta é reativa. De fato, compreender os institutos
é, também, encontrar as suas qualidades e os seus defeitos, suas virtudes
e seus vícios, de modo a buscar o aprimoramento das instituições. Assim,
por exemplo, no que concerne à teoria geral do Estado, não basta apenas
identificar a existência de propostas decorrentes do programa estatal, mas
cumpre perquirir sobre a efetividade da sua atuação. Se o Estado brasileiro
tem uma agenda, cumpre verificar se ela vem sendo cumprida. E, no âmbito
da ciência política, se há um debate sobre a democracia, cumpre refletir sobre
a real possibilidade de participação da comunidade na tomada de decisão. De
igual modo, mudanças nas regras do jogo político podem receber uma reflexão
mais tenaz em razão das posturas adotadas.
Ciência política e teoria geral do Estado 13
Felipe Scalabrin
Revisão técnica:
ISBN 978-85-9502-189-1
CDU 321.01
Introdução
Você já percebeu que todas as sociedades civilizadas estão organizadas
em torno de um Estado? Realmente, o cenário mundial confirma que o
convívio organizado do homem é centrado nessa figura considerada
uma sociedade política. Com efeito, as razões pelas quais esse fenômeno
ocorre são indispensáveis para uma correta compreensão das relações
entre o Estado, o indivíduo e outros grupos sociais. Compreender as
origens do Estado significa, também, identificar os limites do seu poder.
Neste capítulo, você estudará as teorias sobre a origem do Estado,
diferenciando a sua formação natural e a sua formação histórica, bem
como conhecerá a importância da teoria contratualista.
Apesar de a expressão Estado ser uma inovação difundida no século XVII, a noção de
uma sociedade política organizava já existia na Antiguidade.
Origem do Estado 27
Formação do Estado
A formação do Estado é tema que suscita divergências. Variadas seriam as
possíveis causas para o surgimento dessa sociedade política, sendo frequente
a classificação entre formação originária e formação derivada (AZAMBUJA,
2008). A primeira estaria relacionada ao avanço na organização de um agru-
pamento pela primeira oportunidade, isto é, sem que houvesse uma ordem
política anterior. A segunda diz respeito a situações em que novos Estado
surgem a partir de outros já existentes. Nesse caso, falamos em fracionamento
(quando uma parte do território de um Estado é desmembrada e se constitui
um novo Estado) ou em união (quando dois ou mais Estados se reúnem para
formar um novo Estado).
Teorias naturalistas
As teorias naturalistas buscam explicar a formação originária do Estado a
partir de uma condição espontânea do ser humano. Segundo essas teorias,
haveria uma formação espontânea do Estado, que dispensa qualquer ato volun-
tário da comunidade. Assim, o surgimento do Estado não depende de qualquer
ato específico do homem, mas seria produto da sua natural caminhada em
sociedade. Trata-se, portanto, de uma formação natural e, dessa forma, não
contratual do Estado.
A formação natural do Estado é assim defendida por Darcy Azambuja:
Teorias contratualistas
As teorias contratualistas buscam explicar a formação originária do Estado a
partir de um ato voluntário do ser humano. Segundo essas teorias, a formação
do Estado depende de uma convenção expressa realizada entre os integrantes
de uma sociedade. Assim, em linhas gerais, o surgimento do Estado dependeria
de um ato concreto de reunião e aceitação, por alguns denominado contrato
social. Trata-se, portanto, de uma formação contratual do Estado.
Origem do Estado 29
pelo Estado (DIAS, 2013). Por essa razão, o seu pensamento é inspiração do
modelo absolutista.
Ao pensamento de Hobbes, contrapõe-se Locke — defensor das liberda-
des individuais e fervoroso antagonista do modelo absolutista. Para ele, no
estado de natureza, o homem já possui um domínio racional de suas paixões
e seus interesses, de modo que não se pode considerar a existência de uma
guerra potencial. Pelo contrário, nesse estágio inicial da sociedade, há uma
paz relativa que permite ao homem identificar os seus limites e reconhecer
a existência de alguns direitos. De fato, no pensamento de Locke, existem
diversos direitos inatos ao homem, como a vida, a liberdade e a propriedade.
Falta, porém, uma força coercitiva apta a solucionar conflitos que possam
surgir (MORAIS; STRECK, 2010).
A necessidade de uma força coercitiva para assegurar a proteção dos direitos
inatos ao homem conduz à elaboração de um pacto entre os integrantes da
sociedade. Surge, então, o contrato social como ferramenta de legitimação do
poder e de manutenção dos direitos naturais. Assim, o pacto se sustenta na
necessidade de proteção de direitos previamente existentes e na sua proteção
contra possíveis conflitos. Surgem, assim, o estado civil e a fonte da autoridade
estatal. Verificamos, nesse panorama, o caráter individualista de Locke: o
surgimento do estado civil se dá para resguardar os direitos naturais de cada
sujeito (MORAIS; STRECK, 2010), em especial, a propriedade (APPIO,
2005). O poder do Estado, nessa linha, já surge limitado aos direitos naturais
antes existentes.
Como podemos perceber, enquanto Hobbes via no Estado um ente ple-
nipotente, Locke identifica no Estado um ente com poder delimitado. Por
essa razão, defende ele que os sujeitos do contrato podem se opor ao Estado
quando houver violação a direitos naturais. Existe, pois, direito de resistên-
cia na sociedade política defendida por Locke (MORAIS; STRECK, 2010).
Ainda, para ele, quando já instaurados a sociedade e o Estado, além do limite
inicial decorrente dos direitos naturais, deverá ser observado o princípio
da maioria. Assim, haverá uma proeminência do Poder Legislativo sobre o
Poder Executivo (MORAIS; STRECK, 2010). Além disso, a observância da
lei é impositiva, porque é fundada no próprio contrato social — o deixar de
seguir a lei criado pelo Poder Legislativo é o mesmo que querer retornar ao
estado natural (APPIO, 2005).
Origem do Estado 31
Assim, fica claro que o poder soberano, por mais que seja totalmente abso-
luto, sagrado e inviolável, não ultrapassa nem pode ultrapassar os limites
das convenções gerais, e que todo homem pode dispor plenamente dos seus
bens e da sua liberdade naquilo que foi estipulado por essas convenções; de
modo que o soberano nunca tem direito de sobrecarregar mais um súdito que
o outro, uma vez que seu poder não é mais competente, quando o assunto se
torna particular” (ROUSSEAU, 2017, p. 40).
Introdução
Neste capítulo, você vai ler a respeito do nascimento de importantes
sistemas governamentais responsáveis pelo funcionamento de cada país.
Primeiro, serão analisados e nomeados cada um dos sistemas, ou seja, o
presidencialismo, o semipresidencialismo e o parlamentarismo. Na sequ-
ência, será aprofundado o estudo dos sistemas de governo presidencial
e parlamentar, relacionando-os e diferenciando-os entre si.
Aproveite a análise dos sistemas de governo e comprove a sua im-
portância para o Estado.
Presidencialismo
O presidencialismo é o sistema de governo adotado pelo Brasil e pela maioria
dos países americanos. Esse fato decorre principalmente em razão do seu
surgimento, visto que, ao contrário do sistema parlamentarista, o sistema
presidencial não evoluiu com o tempo, como ocorreu com o parlamentarismo.
O sistema presidencial nasceu nos Estados Unidos da América (EUA)
em consequência da revolução liberal norte-americana e da Constituição de
1787 (Filadélfia), a qual previa a monarquia constitucional eletiva, ou melhor,
a república como forma de governo e a adoção do presidencialismo como
sistema. Nesse novo sistema, um indivíduo seria eleito pelo povo e teria a
responsabilidade de exercer a função de chefe de Estado e chefe de governo. No
caso dos EUA, o primeiro presidente eleito foi George Washington (1789–1797).
No presidencialismo, o presidente é eleito por meio do sufrágio univer-
sal (voto) para administrar e governar o Estado por um período de 4 anos,
sendo possível, em alguns países, a reeleição presidencial por igual período.
Ressalta-se que, junto com o presidente, também é eleito o vice-presidente. O
presidente, diversamente do primeiro-ministro (sistema parlamentar), exerce
a função de chefe de Estado e chefe de governo; por isso, detém maior poder
hierárquico, como, por exemplo, o de rejeitar lei propostas pelo Congresso.
No Congresso (Poder Legislativo), os membros que o compõem (bicameral
— duas câmaras) são eleitos por meio de sufrágio universal, como, por exemplo,
os deputados e senadores; já os ministros são indicados pelo presidente. Assim,
é possível perceber a separação de poderes elaborada por Montesquieu, sobre-
tudo no que diz respeito ao Executivo na pessoa do presidente e ao Legislativo
em relação ao Congresso. Nesse sentido, ao final, há dois centros de poder
106 Sistemas de governo
https://goo.gl/I6Ra5J
No caso do Brasil, a Constituição Federal de 1988 prevê, nos arts. 84 a 86, as atribuições e
responsabilidades do presidente da República; já os arts. 44 a 75 abordam a organização
do Poder Legislativo brasileiro. Leia e estude os artigos constitucionais.
Sistemas de governo 107
Semipresidencialismo
O semipresidencialismo é uma mescla do parlamentarismo e do presidencia-
lismo. Tal sistema se originou na França (Revolução Francesa), com a culmi-
nação da Constituição de 1791 e a instituição da monarquia constitucional.
Posteriormente, com a Constituição de 1793, surgiu na França o governo da
assembleia — parlamento.
No semipresidencialismo, ainda que o presidente possua autonomia de
poder, compartilha-a com o primeiro-ministro. Logo, diferentemente do sistema
presidencialista e do parlamentarismo, o presidente exerce a função de chefe
de Estado, e o primeiro-ministro, a função de chefe de governo. Ao povo, por
meio do sufrágio universal, é concedido o poder de eleger o presidente e os
membros que compõem as câmaras parlamentares.
Convém destacar que, no sistema semipresidencial, o presidente tem o
poder de primeiro-ministro, mas cabe ao Parlamento, em caso de necessi-
dade, destituir o primeiro-ministro. Essa regra, porém, não é absoluta, pois o
presidente tem o poder discricionário de dissolver ao Parlamento; logo, com
isso, destitui-se o primeiro-ministro.
Parlamentarismo
O parlamentarismo é um sistema de governo representativo que, diferentemente
do presidencialismo, originou-se por meio de longo e contraditório processo
evolutivo político monárquico, decorrente de embates de poder entre os con-
108 Sistemas de governo
O parlamento inglês, por exemplo, é bicameral (ou seja, composto por duas
câmaras): a comum ou alta, cujos membros são eleitos por voto, e a dos lordes
ou baixa, cujos membros são nomeados pelo rei. Convém destacar que alguns
países que adotam o sistema parlamentar utilizam o sistema unicameral (única
câmara), como é o caso da Grécia.
No parlamentarismo, para que o parlamento seja dissolvido, é necessária
a realização de eleições, fato distinto do sistema semipresidencial. Essa pos-
sibilidade, no sistema parlamentar, decorre do fato de não haver prazo fixo
Sistemas de governo 109
para que o primeiro-ministro ocupe o cargo, uma vez que a sua adoção e o
seu funcionamento do governo dependem da confiança com o Parlamento.
Você sabe dizer quais e quantos países adotam o regime parlamentar?
Aproveite o estudo do tema e investigue.
Para saber mais sobre o tema e analisar as vantagens e desvantagens de cada sistema
de governo, consulte o livro Ciência política (BONAVIDES, 2007).
110 Sistemas de governo
Leituras recomendadas
BASTOS, C. R. Curso de teoria do Estado e ciência política. 6. ed. São Paulo: Saraiva, 2004.
BOBBIO, N. A teoria das formas de governo. 9. ed. Brasília: Editora Universidade de
Brasília,1997.
FERRAJOLI, L. Poderes selvagens: a crise da democracia italiana. São Paulo: Saraiva, 2014.
SARTORI, G. Elementos de teoría política. Madrid: Alianza Editorial, 2002.
STRECK, L. L.; MORAIS, J. L. B. de. Ciência política e teoria geral do Estado. 7. ed. Porto
Alegre: Livraria do Advogado, 2010.
Revisão técnica:
ISBN 978-85-9502-189-1
CDU 321.01
Introdução
Não há Estado sem um correspondente regime de governo. Para su-
prir uma lacuna a esse respeito, a partir do século XVIII, difundiu-se o
regime democrático. Assim, cumpre perquirir acerca da democracia, o
seu conceito e as suas espécies, bem como refletir sobre as suas reais
possibilidades de concretização no Estado contemporâneo.
Neste capítulo, você vai ler a respeito da democracia em suas múltiplas
facetas, passando pela dimensão conceitual e histórica. Vai também
diferenciar democracia direta, semidireta e representativa, bem como
analisar a crise na democracia atual.
A democracia do passado
Enquanto organização política, o Estado se apresenta por meio de variados
regimes de governo diferentes. Com efeito, o tema das formas de governo
suscita polêmica desde a Antiguidade. Com o advento do Estado moderno,
entretanto, a ideia de democracia se sedimenta e permite a afirmação de
alguns valores fundamentais, como a noção de governo do povo, que jaz na
essência dessa expressão. A presença de um Estado democrático na acepção
atual, porém, possui as suas raízes no século XVIII e não desconsidera as
influências do passado (DALLARI, 2013).
Na Antiguidade, o Estado grego vivenciou a democracia em termos práticos
e teóricos. No plano teórico, Aristóteles destacou, na sua insuperável reflexão
sobre as espécies de governo, que poderia caber a um só indivíduo, a um grupo
76 Estado e democracia
A democracia do presente
A força do pensamento democrático implicou a utilização desse regime de
governo na maioria dos Estados do século XXI. Na atualidade, são raros os
governos que não se proclamem democráticos (BONAVIDES, 2009). Ainda
78 Estado e democracia
Democracia indireta — nela, o poder político é exercido pelo povo por meio
de representantes eleitos, razão pela qual também é denominada democracia
representativa. Nesse caso, o povo confere um mandato a alguns cidadãos
para que eles exerçam o poder político. É esse regime democrático que pro-
move o surgimento de uma classe específica de sujeitos cujos propósitos são
a elaboração e discussão de novas leis e a administração do poder público. É
a classe política. A partir do século XIX, a especialização dá mais um passo
Estado e democracia 79
Democracia semidireta — nela, o poder político é exercido pelo povo por meio
de representantes eleitos, mas que também conta com institutos que permitem
a discussão de determinados temas diretamente pelo povo. A democracia
semidireta é uma aproximação da democracia representativa e da democracia
direta, com a criação de instrumentos que “[...] fazem efetiva a intervenção do
povo” (BONAVIDES, 2009). Nessa forma, portanto, a atuação do povo não
se limita à eleição de governantes e legisladores, mas compreende também a
efetiva tomada de decisão.
Na democracia semidireta, avulta a participação jurídica do povo, já que,
em casos específicos, torna-se diretamente competente pela ordem normativa
a estabelecer a tomada de decisão sobre certos assuntos. Caberá, entretanto,
a cada Estado definir a extensão da participação direta do povo. No plano
teórico, alguns autores apresentam os seguintes institutos de atuação do
povo na democracia semidireta:
A democracia do futuro
A adoção generalizada de formas democráticas semidiretas revelou as defici-
ências do modelo e as crises a ele inerentes. Assim, Paulo Bonavides destaca
a crise na legitimidade dos partidos políticos e a fragilidade dos institutos de
manifestação direta do povo.
Quanto aos partidos políticos, “a lição de nossa época demonstra que não raro
os partidos, considerados instrumentos fundamentais da democracia, se corrom-
pem” (BONAVIDES, 2009, p. 299), ou seja, desviam-se de seus interesses e não
mais espelham os ideais políticos que defendiam, vitimando o povo do logro. De
fato, nos dias atuais, existe uma intensa crise de legitimidade dos partidos políticos.
Quanto aos institutos de participação direta tradicionalmente reconhe-
cidos, vimos a sua ineficiência (BONAVIDES, 2009). Mecanismos idealizados
como autênticos meios de transformação social sucumbiram a uma realidade
indiferente e conservadora, sendo pouco empregados e, quando utilizados,
trazendo resultados conservadores e sem significativo impacto (BONAVIDES,
2009). Assim, a presença de instrumentos de participação não teve o condão
de atrair o povo para o cenário político.
Nessa mesma linha, Norberto Bobbio faz uma intensa crítica ao modelo
democrático representativo e destaca que essa democracia se tornou um am-
biente de promessas não cumpridas.
Para ele, as seis promessas não cumpridas pela democracia represen-
tativa são (BOBBIO, 1997):
https://goo.gl/jeEtNf
[...] decorre não do sufrágio universal como nas outras esferas de poder,
mas de uma legitimação procedimental que encontra no irrestrito acesso ao
84 Estado e democracia
BOBBIO, N. O futuro da democracia: uma defesa das regras do jogo. 6. ed. Rio de
Janeiro: Paz e Terra, 1997.
BONAVIDES, P. Ciência política. 16. ed. São Paulo: Malheiros, 2009.BRASIL. Lei nº 9.709,
de 18 de novembro de 1998. Regulamenta a execução do disposto nos incisos I, II e III
do art. 14 da Constituição Federal. 1998. Disponível em: <http://www.planalto.gov.
br/ccivil_03/leis/l9709.htm>. Acesso em: 27 set. 2017.
DALLARI, D. de A. Elementos de teoria geral do Estado. 32. ed. São Paulo: Saraiva, 2013.
FIGUEIREDO, L. V. Instrumentos da administração consensual: a audiência pública e
sua finalidade. Revista de Direito Administrativo, Rio de Janeiro, v. 5, n. 18, mar./abr. 2003.
LUCAS, J. R. Democracia e participação. Brasília: Universidade de Brasília, 1985. RIBEIRO,
D. G., SCALABRIN, F. O papel do processo na construção da democracia: para uma
nova definição da democracia participativa. Scientia Iuris, Londrina, v. 13, nov. 2009.
ROUSSEAU, J.-J. Do contrato social. Petrópolis: Vozes, 2017.
Leituras recomendadas
AZAMBUJA, D. Teoria geral do Estado. 4. ed. São Paulo: Globo, 2008.
BOBBIO, N. Estado, governo, sociedade, para uma teoria geral da política. 14. ed. São
Paulo: Paz e Terra S/A, 2007.
JELLINEK, G. Teoria general del Estado. Buenos Aires: Albatros, 1954.
MORAIS, J. L. B. de; STRECK, L. L. Ciência política e teoria do Estado. 7. ed. Porto Alegre:
Livraria do Advogado 2010.
Encerra aqui o trecho do livro disponibilizado para
esta Unidade de Aprendizagem. Na Biblioteca Virtual
da Instituição, você encontra a obra na íntegra.
CIÊNCIA POLÍTICA
E TEORIA GERAL
DO ESTADO
Felipe Scalabrin
Formas de governo
Objetivos de aprendizagem
Ao final deste texto, você deve apresentar os seguintes aprendizados:
Introdução
Neste capítulo, você estudará as formas de governo. Com base em uma
análise histórica, analisará a evolução da classificação das formas de go-
verno, a forma como ocorreu a separação de poderes e como tal divisão
reflete no progresso de uma sociedade democrática.
Cada tema deste capítulo é fundamental para que você entenda o
funcionamento político do Brasil e de outros povos.
Formas de governo
Para compreender as atuais formas de governo, é importante analisar como o
tema foi discutido por pensadores como Platão, Aristóteles, Políbio, Maquiavel,
Bodin, Hobbes, Vico, Montesquieu, Hegel, Marx e Bobbio. Para tanto, o estudo
da concepção filosófica e política de governo desenvolvida por esses teóricos
permitirá analisar as atuais formas e sistemas de governo, bem como a crise
na separação de poderes.
Para o professor José Geraldo Brito Filomeno, o governo “é um conjunto
dos órgãos do Estado que colocam em prática as deliberações dos órgãos
legislativos” (FILOMENO, 2016, p. 97). Para os filósofos gregos anteriores a
Cristo, Platão e Aristóteles, o governo deveria ser analisado a partir de duas
vertentes: a pura (ideal) e a impura ou degenerada. Para Platão, as formas
de governo ideais seriam a monarquia e a aristocracia, consideradas formas
únicas. Já as formas corruptas de governo seriam a oligarquia, a timocracia, a
democracia e a tirania. A oligarquia seria a forma corrompida da aristocracia,
Formas de governo 97
na tirania, pela queda desta última se gera o governo dos melhores. Quando
a aristocracia por sua vez degenera em oligarquia, pela força da natureza, o
povo se insurge violentamente contra os abusos dos governantes, nascendo
assim o governo popular. Com o tempo, a arrogância e a ilegalidade dessa
forma de governo levam à oclocracia.
Para saber mais sobre o processo, leia A constituição reinventada pela jurisdição cons-
titucional (SAMPAIO, 2002).
No caso da Operação Lava-Jato, fica visível o fato de não ser mais possível separar
corruptor e corrompido. Dada a força de grandes empresas, os poderes e os seus
dirigentes, eleitos ou não pelo povo, tornaram-se reféns de empresas privadas e,
como medidas extremistas, passaram a criar barreiras para se autodefenderem, em
total desprezo às normas legais.
BASTOS, C. R. Curso de teoria do Estado e ciência política. 6. ed. São Paulo: Saraiva, 2004.
BOBBIO, N. A teoria das formas de governo. 9. ed. Brasília: Universidade de Brasília,1997.
BONAVIDES, P. Ciência política. São Paulo: Malheiros, 2007.
FERRAJOLI, L. Poderes selvagens: a crise da democracia italiana. São Paulo: Saraiva, 2014.
FILOMENO, J. G. B. Teoria geral do Estado e da constituição. 10. ed. rev., atual. e ampl.
Rio de Janeiro: Forense, 2016.
FILOMENO, J. G. B. Manual de teoria geral do Estado e ciência política. 6 ed. Rio de
Janeiro: Forense Universitária, 2006.
MAQUIAVEL. O príncipe. São Paulo: Martin Claret, 2003. t. 1.
MONTESQUIEU. Do espírito das leis. São Paulo: Abril Cultural, 1973.
SAMPAIO, J. A. L. A constituição reinventada pela jurisdição constitucional. Belo Hori-
zonte: Del Rey, 2002.
Leituras recomendadas
ACQUAVIVA, M. C. Teoria geral do Estado. 3. ed. Barueri: Manole, 2010.
MORAES, A. de. Direito constitucional. 32. ed. rev. e atual. São Paulo: Atlas, 2016.
BITTAR, E. C. B. Teoria do Estado: filosofia política e teoria da democracia. 5. ed. rev.
atual. e modificada. São Paulo: Atlas, 2016.