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SOCIOLOGIA

RICHARD T. SCHAEFER
6a EDIÇÃO
Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)
(Câmara Brasileira do Livro, SP, Brasil)

S294s Schaefer, Richard T.


Sociologia [recurso eletrônico] / Richard T. Schaefer ;
tradução: Eliane Kanner, Maria Helena Ramos Bononi ;
revisão técnica: Noêmia Lazzareschi, Sérgio José Schirato. –
6. ed. – Dados eletrônicos. – Porto Alegre : AMGH, 2014.

Publicado também como livro impresso em 2006.


ISBN 978-85-8055-316-1

1. Sociologia. I. Título.

CDU 316
Catalogação na publicação: Ana Paula M. Magnus – CRB 10/2052

Índice para catálogo sistemático:


1. Sociologia 301
Entendendo Sociologia  3

N
as suas tentativas de sobreviver disfar- afetado pelos conteúdos de uma revista de aventura
çada em uma trabalhadora de baixa em quadrinhos, os sociólogos se preocupam em saber
renda disfarçada em diferentes cidades como grupos inteiros de pessoas são afetados por esses
dos Estados Unidos, a jornalista Barbara fatores, e como a própria sociedade pode ser alterada
Ehrenreich desvendou padrões de inte- por eles. Assim, os sociólogos não estão preocupados
ração humana e usou métodos de estudo com o que um indivíduo faz ou deixa de fazer, mas com
relacionados à investigação sociológica. Esse excerto o que as pessoas fazem como membros de um grupo,
do seu livro Nickel and Dimed: On (Not) Getting By in ou na interação com os outros, e o que isso significa
America [Miséria à americana] descreve como Ehren- para os indivíduos e para a sociedade como um todo.
reich deixou sua casa confortável e assumiu a identi- Como campo de estudo, a sociologia tem uma
dade de uma dona-de-casa divorciada de meia-idade, abrangência extremamente ampla. Você verá neste
sem diploma universitário, e com pouca experiência de livro a gama de tópicos que os sociólogos investigam
trabalho. Ela foi em busca de um emprego que pagasse – do suicídio ao hábito de ver televisão, da sociedade
melhor e de uma forma de vida mais econômica para Amish aos padrões econômicos globais, da pressão
ver se conseguiria sobreviver. Meses depois, completa- entre os pares às técnicas de bater carteira. A sociologia
mente exausta e desmoralizada pelas regras de trabalho, observa como os outros influenciam o nosso compor-
Ehrenreich pôde confirmar o que já suspeitava antes de tamento; como as grandes instituições sociais, como o
começar: sobreviver naquele país como um trabalhador governo, a religião e a economia, nos afetam; e como
de baixa renda é uma aposta difícil de ganhar. nós mesmos afetamos outros indivíduos, grupos ou até
O estudo de Ehrenreich revelou uma sociedade de- organizações.
sigual, o que constitui um tópico central da sociologia. Como se desenvolveu a sociologia? De que forma
A desigualdade social tem uma influência determi- ela é diferente das outras ciências sociais? Este capítulo
nante nas interações e instituições humanas. Certos vai explorar a natureza da sociologia como um campo
grupos de pessoas controlam recursos escassos, usam de pesquisa e como um exercício de “imaginação so-
o poder e recebem tratamento especial. A foto que abre cial”. Olharemos para a disciplina como uma ciência
este capítulo ilustra outro foco comum dos sociólogos, e considerar sua relação com as outras ciências so-
os elementos da cultura que definem uma sociedade. ciais. Conheceremos três pensadores pioneiros – Émile
Na Índia, as histórias em quadrinhos são uma forma Durkheim, Max Weber e Karl Marx – e examinaremos
muito popular de mídia que reflete valores culturais as perspectivas teóricas que se desenvolveram a partir
centrais. do trabalho deles. Por fim, vamos considerar as formas
Embora possa ser interessante saber como um indi- como a sociologia nos ajuda a desenvolver uma imagi-
víduo faz para pagar suas contas, ou mesmo pode ser nação sociológica.

como o acesso à tecnologia da computação pode reduzir


o que é Sociologia?
a desigualdade, e por que as relações entre homens e mu-
lheres em Seattle são diferentes daquelas em Cingapura,
“O que a sociologia tem a ver comigo ou com a minha
por exemplo.
vida?” Como estudante, você também poderia ter feito
A sociologia é, de modo bem simples, o estudo sis-
essa pergunta ao se matricular no curso de Introdução
temático do comportamento social e dos grupos huma-
à Sociologia. Para obter a resposta, considere estes pon-
nos. Ela focaliza as relações sociais, como essas relações
tos: Você é influenciado pelo que vê na televisão? Você
influenciam o comportamento das pessoas, e como as
usa a Internet? Você votou nas últimas eleições? Você
sociedades, a soma de tais relações, se desenvolvem e
participa das bebedeiras no campus? Você usa medicina
mudam.
alternativa? Essas são apenas algumas das situações do
dia-a-dia descritas neste livro, sobre as quais a sociologia
A Imaginação Sociológica
traz alguma luz. Mas, como indica o texto de abertura, a
sociologia também observa grandes problemas sociais. Na tentativa de entender o comportamento social, os
Usamos a sociologia para investigar por que milhares de sociólogos se baseiam em um tipo incomum de pensa-
empregos migraram dos Estados Unidos e foram para mento criativo. Um importante sociólogo, C. Wright
países em desenvolvimento, que forças sociais promo- Mills, descreve tal pensamento como a imaginação
vem o preconceito, o que leva alguém a se juntar a um sociológica – uma consciência da relação entre o indiví-
movimento social e a trabalhar por mudanças sociais, duo e a sociedade mais ampla. Essa consciência permite
Você é o que você tem?

U se sua imaginação sociológica para analisar


o “mundo material” de três sociedades dife-
rentes. As fotos são do livro Material World:
A Global Family Portrait [Mundo material: um retrato da
recursos naturais? Que meios de comunicação estão
disponíveis para cada uma delas? Por que você acha que
a família de Mali tem tantas panelas, cestos e utensílios
para servir alimentos? O que os livros e a Bíblia da
família global]. Os fotógrafos selecionaram uma família família norte-americana (Texas) nos revelam sobre sua
“estatisticamente média” em cada país que visitaram história e seus interesses? Como você acha que cada
e fotografaram essa famílias com todos os seus bens, família reagiria se passasse a viver com os pertences das
na casa onde moram. São mostradas, aqui, famílias nos outras duas famílias?
Estados Unidos (Texas), em Mali e na Islândia. Essas fotos nos informam que, quando olhamos
O que os bens materiais nos revelam sobre o tipo para os bens materiais das pessoas, aprendemos algo
de transporte, os alimentos, o tipo de moradia e o sobre os fatores sociais, econômicos e geográficos que
estilo de vida de cada cultura? Como o clima interfere influenciam seu modo de vida. As fotos também podem
nos bens que as pessoas possuem? Que influência teria nos levar a pensar sociologicamente sobre os nossos
o tamanho da família na posição econômica ocupada próprios bens materiais, e o que eles revelam sobre nós
por essa família? Que bens se destinam ao lazer, e e nossa sociedade (Menzel, 1994).
quais à subsistência? Como essas famílias empregam os
A família Skeen em Pearland, Texas, nos Estados Unidos.

4
A família Natoma (incluindo o marido, duas esposas e os
pertences das esposas) em Kouakourou, Mali.

A família Thoroddsen em Hafnarfjördur, Islândia.

5
6  Capítulo 1

que todos nós (não apenas os sociólogos) compreen-


Use a Sua Imaginação Sociológica
damos as ligações existentes entre o nosso ambiente
social pessoal imediato e o mundo social impessoal que Você está caminhando por uma rua da sua cidade. Ao olhar
nos circunda e que colabora para nos moldar. Barbara à sua volta, não pode deixar de notar que metade das
Ehrenreich certamente usou a imaginação sociológica pessoas, ou mais, está acima do peso. Como você explica
quando estudou os trabalhadores de baixa renda (Mills sua observação? Se você fosse C. Wright Mills, como acha
[1959], 2000a). que explicaria isso?
Um elemento-chave da imaginação sociológica é
a capacidade de uma pessoa poder ver a sua própria A Sociologia e as Ciências Sociais
sociedade como uma pessoa de fora o faria, em vez de
fazê-lo apenas da perspectiva das experiências pessoais e A sociologia é uma ciência? O termo Ciência se refere a
um corpo de conhecimentos obtidos por métodos basea-
dos preconceitos culturais. Tomemos como exemplo algo
dos na observação sistemática. Da mesma forma que ou-
bem simples, os esportes. No Brasil, centenas de milhares
tras disciplinas científicas, a sociologia envolve o estudo
de pessoas de todos os níveis sociais vão semanalmente
sistemático e organizado dos fenômenos (nesse caso, o
aos estádios torcer por seus times de futebol e gastam
comportamento humano) para ampliar a compreensão.
milhares de reais em apostas. Em Bali, Indonésia, dezenas
Todos os cientistas, estejam eles estudando cogumelos
de espectadores se juntam ao redor de um ringue para
ou assassinos, tentam coletar informações precisas por
apostar em animais bem-treinados que participam das
meio de métodos de estudo que sejam os mais objetivos
rinhas de galos. Em ambos os exemplos os espectadores
possível. Eles se baseiam no registro cuidadoso das obser-
exaltam os méritos dos seus favoritos e apostam nos me-
vações e na coleta de dados.
lhores resultados das competições que são consideradas
Evidentemente, há uma grande diferença entre so-
normais em uma parte do mundo, mas pouco comuns ciologia e física, entre ecologia e astronomia. Ciências
em outra. naturais são o estudo das características físicas da natu-
A imaginação sociológica nos permite ir além das reza e das maneiras pelas quais elas interagem e mudam.
experiências e observações pessoais para compreender A astronomia, a biologia, a química, a geologia e a física
temas públicos de maior amplitude. O divórcio, por são todas ciências naturais. Ciências sociais são o estudo
exemplo, é um fato pessoal inquestionavelmente difícil das características sociais dos seres humanos, e das ma-
para o marido e para a esposa que se separam. Entretanto, neiras pelas quais eles interagem e mudam. As ciências
C. Wright Mills defende o uso da imaginação sociológica sociais incluem a sociologia, a antropologia, a economia,
para ver o divórcio não apenas como um problema pes- a história, a psicologia e as ciências políticas.
soal de um indivíduo, mas sim como uma preocupação Essas disciplinas das ciências sociais têm um foco
da sociedade. Usando essa perspectiva, podemos notar comum no comportamento social das pessoas, mesmo
que um aumento na taxa de divórcio na verdade redefine que cada uma delas tenha uma orientação particular.
uma instituição social fundamental – a família. Os lares Os antropólogos geralmente estudam culturas passadas
hoje com freqüência incluem padrastos, madrastas e e sociedades pré-industriais que existem até hoje, bem
meio-irmãos cujos pais se divorciaram e casaram nova- como as origens dos seres humanos. Os economistas
mente. exploram as maneiras pelas quais as pessoas produzem
A imaginação sociológica é uma ferramenta que nos e trocam mercadorias e serviços, bem como o dinheiro
proporciona poder. Ela nos permite olhar para além de e outros recursos. Os historiadores estão preocupados
uma compreensão limitada do comportamento humano, com as pessoas e os eventos do passado, e seu significado
ver o mundo e as pessoas de uma forma nova, através de para nós hoje. Os cientistas políticos estudam as relações
uma lente mais potente do que o nosso olhar habitual. internacionais, os atos do governo e o exercício do poder
Pode ser algo tão simples como entender por que um e da autoridade. Os psicólogos investigam a personali-
colega de quarto prefere música sertaneja ao hip-hop, ou dade e o comportamento individual. Então, o que fazem
essa outra forma de olhar as coisas poderá revelar uma os sociólogos? Eles estudam a influência que a sociedade
maneira totalmente diferente de compreender as outras tem nas atitudes e nos comportamentos das pessoas, bem
populações do mundo. Por exemplo, depois dos ataques como na maneira como as pessoas interagem e formam
terroristas aos Estados Unidos em 11 de setembro de a sociedade. Como os seres humanos são animais sociais,
2001, vários cidadãos passaram a querer entender como os sociólogos examinam cientificamente as nossas rela-
os muçulmanos em todo o mundo percebiam o país ções sociais com os outros.
deles, e o porquê desses ataques. Este livro vai oferecer Vamos considerar como as diferentes ciências sociais
a você a oportunidade de exercitar a sua imaginação podem abordar o tema polêmico da pena de morte. Os
sociológica em diversas situações. Vamos começar com historiadores estariam interessados no desenvolvimento
uma que talvez lhe seja mais familiar. da pena capital do período colonial até o presente. Os eco-
Entendendo Sociologia  7

nomistas poderiam fazer uma pesquisa para comparar os uma pessoa de fora – de maneira respeitosa, mas sempre
custos das pessoas encarceradas durante toda a vida com questionando.
as despesas das apelações que ocorrem nos casos de pena
de morte. Os psicólogos observariam os casos individuais Sociologia e Senso Comum
e avaliariam o impacto da pena de morte na família da
vítima e na do preso executado. Os cientistas políticos A sociologia focaliza o estudo do comportamento hu-
estudariam as diferentes posições assumidas pelos po- mano. Entretanto, todos nós temos experiências com o
líticos eleitos e as implicações dessas posições em suas comportamento humano, e pelo menos algum conheci-
campanhas para reeleição. mento sobre ele. Todos nós também podemos ter teorias
E qual seria a abordagem dos sociólogos? Eles po- sobre por que uma pessoa vai viver na rua, por exemplo.
deriam verificar como a raça e a etnia afetam o resultado As nossas teorias e opiniões geralmente se baseiam em
dos casos de pena de morte. De acordo com um estudo nosso “senso comum” – ou seja, nas nossas experiências e
publicado em 2003, 80% dos casos de pena de morte nos conversas, naquilo que lemos, ou que vemos na televisão
Estados Unidos envolvem vítimas de cor branca, apesar e assim por diante.
de apenas 50% de todas as vítimas de assassinato serem Em nossa vida diária, confiamos no nosso senso co-
brancas (ver Figura 1–1). Parece que a raça da vítima mum para resolver situações não-familiares. Entretanto, esse
influencia a decisão sobre se o réu será condenado à pena conhecimento chamado senso comum, embora seja preciso
capital (ou seja, assassinato punível com a morte) e se ele algumas vezes, não é sempre confiável, porque ele se baseia
realmente será executado no final. Assim, o sistema de em crenças comumente aceitas, e não na análise sistemática
justiça criminal parece tender a impor penas mais pesa- dos fatos. No passado constituía senso comum aceitar que a
das quando as vítimas são brancas, do que quando elas Terra era plana – uma visão questionada corretamente por
pertencem a uma das minorias. Pitágoras e Aristóteles. Noções incorretas consideradas de
Os sociólogos colocam sua imaginação sociológica senso comum não pertencem apenas a um passado distante,
para funcionar em diversas áreas – incluindo as áreas mas permanecem até hoje.
do envelhecimento, da família, da ecologia humana e Nos Estados Unidos, hoje o “senso comum” diz que
da religião. Neste livro você vai ver como os sociólogos as pessoas jovens vão ao cinema onde está sendo exibido
desenvolvem teorias e fazem pesquisas para estudar e A paixão de Cristo ou a concertos de rock cristão porque a
entender melhor as sociedades. E você será encorajado a religião está se tornando mais importante para elas. Con-
usar a sua imaginação sociológica para examinar os Esta- tudo, essa noção particular de “senso comum” – como a
dos Unidos e o Brasil (além de outras sociedades) como noção de que a Terra era plana – não é verdadeira, e não se
baseia na pesquisa sociológica. Em 2003, pesquisas anuais
feitas com universitários do primeiro ano mostram um de-
FigurA 1-1 clínio na porcentagem de pessoas que freqüentam serviços
religiosos, mesmo ocasionalmente. Um número crescente
Raças das Vítimas nos Casos de Pena de Morte de universitários declara não ter preferência religiosa. A
tendência inclui não apenas religiões organizadas, mas
também outras formas de espiritualidade. Poucos estu-
dantes rezam ou meditam mais hoje do que no passado, e
Negros poucos consideram seu nível de espiritualidade muito alto
14% (Sax et al., 2003). O Brasil não é exceção. A evangelização
Hispânicos 4% de jovens foi o tema principal da 44a Assembléia Geral da
Outros 1% Conferência Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB). No
Brancos 81% maior país católico do mundo, onde dos 34 milhões de
jovens que se confessam, católicos menos de 10% freqüen-
tam os serviços religiosos.
Da mesma forma, os desastres em geral não pro-
duzem pânico. Logo após uma catástrofe, como uma
explosão, por exemplo, grandes organizações e estruturas
Obs.: Esses dados referem-se a todos os casos de pena de morte de sociais surgem para lidar com os problemas da comu-
1976 a 30 de janeiro de 2004.
nidade. Nos Estados Unidos, por exemplo, um grupo
Fonte: Death Penalty Information Center, 2004.
de operações de emergência freqüentemente coordena
A pena de morte tende a ser imposta quando a vítima é branca. serviços públicos e mesmo certos serviços em geral de-
Nos Estados Unidos, 50% de todas as vítimas de assassinatos sempenhados pelo setor privado, como a distribuição de
são brancas, mas nos casos julgados com possibilidade de pena alimentos. O processo decisório torna-se mais centrali-
de morte, a porcentagem de vítimas brancas é de mais de 80%. zado nos momentos de crise. No Brasil, por exemplo, a
8  Capítulo 1

Os sociólogos não estão par-


ticularmente interessados na razão
pela qual um indivíduo comete sui-
cídio; eles estão mais preocupados
com a identificação das forças so-
ciais que sistematicamente levam
algumas pessoas a se suicidarem.
Para fazer essa pesquisa, os soció-
logos desenvolvem uma teoria que
oferece uma explicação geral sobre
o comportamento suicida.
Podemos pensar que as teorias
são tentativas de explicar, de uma
forma abrangente, eventos, forças
materiais, idéias ou comportamentos.
Em sociologia, uma teoria é um con-
junto de afirmações que busca expli-
car problemas, ações, ou comporta-
mentos. Uma teoria efetiva pode ter
Estudantes universitários freqüentam menos cerimônias religiosas hoje do
que no passado, apesar da presença de ministros no campus, tal como
um poder explicativo e de previsão.
este do centro de jesuítas na Fairfield University, em Connecticut. Ou seja, ela pode nos ajudar a ver a
A pesquisa sociológica confirma uma tendência de queda na prática de relação entre fenômenos aparente-
uma religião. mente isolados, bem como a enten-
der como um tipo de mudança em
um ambiente leva a outras mudanças.
defesa civil assume a responsabilidade por este trabalho A World Health Organization [Organização Mundial
de atendimento às vítimas de catástrofes, como grandes da Saúde] (2002) calculou que 815 mil pessoas come-
incêndios e inundações, coordenando as ações de resgate teram suicídio em 2000. Mais de cem anos antes, um
e as operações de emergência em conjunto com o Corpo sociólogo tentou olhar para o suicídio de forma científica.
de Bombeiros e a Polícia. Émile Durkheim ([1897] 1951) desenvolveu uma teoria
Como outros cientistas sociais, os sociólogos não bastante original sobre a relação entre suicídio e fatores
aceitam algo como um fato porque “todo mundo sabe sociais. Ele estava basicamente preocupado não com as
disso”. Ao contrário, cada informação precisa ser testada personalidade das vítimas do suicídio, mas sim com as
e registrada, e depois analisada em relação a outras infor- taxas de suicídio e como elas variavam de um país para
mações. Os sociólogos se baseiam nos estudos científicos outro. Como resultado, quando observou o número de
para descrever e compreender o ambiente social. Às ve- suicídios informados na França, Inglaterra e Dinamarca
zes, as descobertas dos sociólogos podem parecer simples em 1869, comparou também a população total de cada
senso comum, porque eles lidam com facetas familiares país para determinar a sua taxa de suicídio. Ele descobriu
da vida diária. A diferença é que tais descobertas foram que, enquanto na Inglaterra apenas 67 suicídios eram in-
testadas pelos pesquisadores. O senso comum agora nos formados por milhão de habitantes, na França eles eram
diz que a terra é redonda. Mas essa noção particular de 135 a cada milhão de habitantes; e na Dinamarca, 277 a
senso comum baseia-se em séculos de trabalhos científi- cada milhão de habitantes. A pergunta então passou a ser:
cos que começaram com as descobertas feitas por Pitágo- “Por que a Dinamarca tem uma taxa comparativamente
ras e Aristóteles. alta de suicídios informados?”.
Durkheim foi ainda muito mais fundo em sua in-
vestigação das taxas de suicídio, o que resultou no seu
O que é teoria Sociológica? trabalho considerado um marco, O suicídio, publicado
em 1897. Ele se recusou a aceitar explicações sobre o sui-
Por que as pessoas cometem suicídio? A resposta tradicio- cídio que não fossem comprovadas, incluindo as crenças
nal de senso comum é que a pessoa herda o desejo de se de que forças cósmicas ou tendências hereditárias provo-
matar. Um outro ponto de vista é que as manchas escuras cavam tais mortes. Ao contrário, Durkheim manteve seu
do sol levam as pessoas a se matarem. Essas explicações foco nos fatores sociais, tais como na coesão dos grupos
podem não parecer particularmente convincentes para os religiosos, sociais e de trabalho.
pesquisadores contemporâneos, mas elas representam as A pesquisa de Durkheim sugeria que o suicídio,
crenças da maior parte das pessoas até 1900. embora fosse um ato solitário, estava relacionado à vida
Entendendo Sociologia  9

tado como um ato eminentemente pessoal. Com certeza,


Durkheim ofereceu uma explicação mais científica para
as causas do suicídio do que as manchas escuras do Sol
ou as tendências hereditárias. Sua teoria trouxe um poder
de previsão, uma vez que sugere que as taxas de suicídio
aumentam ou diminuem em conjunto com certas mu-
danças econômicas e sociais.
Evidentemente, uma teoria – mesmo a melhor delas
– não é uma afirmação final sobre o comportamento
humano. A teoria do suicídio de Durkheim não é exce-
ção. Os sociólogos continuam a examinar os fatores que
contribuem para as diferenças nas taxas de suicídio em
todo mundo e a taxa de suicídios de uma determinada
sociedade. Por exemplo, embora a taxa de suicídio geral
da Nova Zelândia seja apenas marginalmente mais alta
do que a taxa dos Estados Unidos, a taxa de suicídio
entre pessoas jovens é 41% mais alta na Nova Zelândia.
Os sociólogos e os psiquiatras daquele país sugerem que
a sua sociedade, composta de grupos esparsos em regiões
remotas, mantém padrões exagerados de masculinidade
que são particularmente difíceis para os jovens rapazes.
Os adolescentes homossexuais que não conseguem se
adaptar às preferências de seus pares nos esportes ficam
particularmente vulneráveis ao suicídio (Shenon, 1995).
No Brasil, a taxa de suicídio é relativamente baixa, man-
tendo-se em torno de 0,056% de toda a população há
Os desastres produzem pânico ou uma resposta
muitas décadas. Por isso, o suicídio no País não é, na lin-
estruturada e organizada? O senso comum
poderia nos dizer que a resposta é pânico, mas, na guagem de Émile Durkheim, um fato social patológico,
realidade, os desastres requerem muita estrutura dada a baixa regularidade com que se apresenta.
e organização para lidar com os seus resultados.
Quando o ataque terrorista de 11 de setembro de
Use a Sua Imaginação Sociológica
2001 destruiu o centro de comando de emergências
da cidade de Nova York, os funcionários Se você fosse o sucessor de Durkheim na sua pesquisa
rapidamente restabeleceram esse centro para dirigir sobre o suicídio, como investigaria os fatores que podem
as buscas e os esforços para resgate das pessoas. explicar o aumento das taxas de suicídio entre jovens nos
Estados Unidos hoje?

o desenvolvimento da
em grupo. Os protestantes tinham uma taxa de suicídio sociologia
muito mais alta do que os católicos, as pessoas soltei-
ras apresentavam uma taxa muito mais alta do que as As pessoas sempre mostram-se curiosas sobre temas
casadas, e os soldados tendiam a se matar mais do que sociológicos – como nos relacionamos com os outros, o
os civis. Além disso, parecia haver taxas mais altas de que fazemos para viver, quem selecionamos para nossos
suicídio em períodos de paz do que em momentos de líderes. Filósofos e autoridades religiosas das socieda-
guerra ou revolução, e mais nos períodos de instabilidade des antigas e medievais fizeram inúmeras observações
econômica e recessão do que em tempos de prosperidade. sobre o comportamento humano. Eles não testavam ou
Durkheim concluiu que as taxas de suicídio de uma so- verificavam cientificamente essas observações; e, mesmo
ciedade refletem a medida em que as pessoas estão ou não assim, suas observações com freqüência se tornavam o
integradas na vida de grupo da sociedade. fundamento dos códigos morais. Muitos filósofos antigos
Émile Durkheim, como muitos outros cientistas previram que o estudo sistemático do comportamento
sociais, desenvolveu uma teoria para explicar como o humano seria realidade no futuro. A partir do século
comportamento individual pode ser compreendido em XIX, os teóricos europeus deram contribuições pioneiras
um contexto social. Ele apontou a influência dos grupos para o desenvolvimento de uma ciência do comporta-
e das forças sociais sobre algo que sempre havia sido no- mento humano.
10  Capítulo 1

Harriet Martineau
Os estudiosos refletiram sobre os trabalhos de Comte
principalmente por meio das traduções da socióloga
inglesa Harriet Martineau (1802–1876). Martineau era
também uma pioneira. Ela realizou observações perspi-
cazes sobre os costumes e as práticas sociais tanto da sua
terra natal, a Grã-Bretanha, quanto dos Estados Unidos.
O livro de Martineau, Society in America A sociedade
([1837] 1962), abordou a religião, a política, a educação
das crianças e a imigração naquela jovem nação. Ela dá
atenção especial às distinções das classes sociais e a fato-
res como gênero (sexo) e raça. Martineau ([1838] 1989)
também escreveu o primeiro livro sobre os métodos
sociológicos.
Os escritos de Martineau enfatizaram o impacto
que a economia, a lei, o comércio, a saúde e a popula-
ção podiam ter sobre os problemas sociais. Ela pregou
a favor dos direitos das mulheres, da emancipação dos
escravos e da tolerância religiosa. Mais tarde, a surdez
não a impediu de ser uma ativista. Na visão de Marti-
neau (1877), os intelectuais e os estudiosos não deviam
apenas oferecer observações sobre as condições sociais;
eles deviam agir em relação às suas convicções de uma
Harriet Martineau, uma das pioneiras da sociologia,
forma que beneficiasse a sociedade. É por isso que ela
estudou o comportamento social tanto da sua terra fez pesquisas acerca da natureza dos empregos femini-
natal, a Grã-Bretanha, quanto dos Estados Unidos. nos e apontou para a necessidade de investigações mais
aprofundadas sobre o assunto (Deegan, 2003; Hill e
Hoecker-Drysdale, 2001).
Os Primeiros Pensadores
Herbert Spencer
Augusto Comte
Outra importante contribuição para a disciplina da so-
O século XIX foi um período tumultuado na França. A ciologia foi dada por Herbert Spencer (1820–1903). Um
monarquia francesa havia sido deposta na revolução de inglês vitoriano relativamente próspero, Spencer (diferen-
1789, e Napoleão tinha sido derrotado na sua tentativa de temente de Martineau) não se sentia compelido a corrigir
conquistar a Europa. No meio daquele caos, os filósofos ou a melhorar a sociedade; ao contrário, ele simplesmente
pensavam como a sociedade poderia ser melhorada. Au- esperava entendê-la melhor. Buscando bases no estudo de
gusto Comte (1798–1857), considerado o filósofo mais Charles Darwin – Sobre a origem das espécies –, Spencer
influente do início do século XIX, acreditava que uma aplicou o conceito de evolução das espécies nas socieda-
ciência teórica da sociedade e uma investigação sistemá- des para explicar como elas mudam ou evoluem com o
tica do comportamento eram necessárias para melhorar passar do tempo. Da mesma forma, ele adaptou a visão
a sociedade. Ele definiu o termo Sociologia aplicando-o à revolucionária de Darwin sobre a “sobrevivência do mais
ciência do comportamento humano. forte” argumentando que é “natural” que algumas pessoas
De acordo com o que escreveu durante o século XIX, sejam ricas e outras, pobres.
Durkheim temia que os excessos da Revolução Francesa A abordagem da mudança na sociedade feita por
tivessem prejudicado permanentemente a estabilidade da Spencer foi extremamente popular durante sua vida.
França. Mesmo assim, ele esperava que o estudo sistemá- Diferentemente de Comte, ele sugeria que, uma vez que
tico do comportamento social finalmente levasse a intera- as sociedades mudariam no final, ninguém precisava ser
ções humanas mais racionais. Na hierarquia das ciências muito crítico sobre os arranjos sociais atuais, ou trabalhar
de Comte, a sociologia ficava no topo. Ele a chamava de ativamente por mudanças sociais. Esse ponto de vista
“rainha”, e os seus praticantes, de “sacerdotes-cientistas”. agradou muitas pessoas influentes na Inglaterra e nos
Esse teórico francês não apenas batizou a sociologia Estados Unidos, que tinham interesse na manutenção do
como também apresentou um desafio muito ambicioso status quo e não confiavam nos pensadores sociais que
para a disciplina que nascia. endossavam mudanças.
FUNDAMENTOS DA
SOCIOLOGIA E
ANTROPOLOGIA

Sandro A. de Araujo
Émile Durkheim e
a sociologia como
ciência autônoma
Objetivos de aprendizagem
Ao final deste texto, você deve apresentar os seguintes aprendizados:

 Reconhecer Émile Durkheim como um dos fundadores da sociologia


do Direito.
 Caracterizar o fato social a partir de Émile Durkheim.
 Apresentar os conceitos políticos, jurídicos e específicos de Durkheim.

Introdução
Neste capítulo, você vai ler sobre um dos maiores nomes da sociologia
pura e do Direito: Émile Durkheim, um clássico que influencia autores
até os dias de hoje. Ainda neste capítulo, você vai conhecer os conceitos
fundamentais da sua obra, como de anomia, solidariedade e divisão do
trabalho, conceitos interligados fundamentais para a compreensão da
teoria de Émile Durkheim.

Émile Durkheim e a sociologia do Direito

Preliminares biobibliográficas
Émile Durkheim (1858–1917), junto com Karl Marx e Max Weber, é consi-
derado um dos pilares da disciplina que conhecemos hoje como sociologia.
Nasceu em 15 de abril de 1858, em Épinal, França. Formou-se na École Normale
Superieure (Paris), à época dirigida por Fustel de Coulanges, e, mais tarde,
lecionou em Bourdoux, onde escreveu:

 A divisão do trabalho social, como tese de doutoramento (1893);


2 Émile Durkheim e a sociologia como ciência autônoma

 As regras do método sociológico (1895);


 O suicídio (1897);
 Lições de sociologia;
 Física dos costumes e do Direito (cursos ministrados entre 1896–1900).

Lecionou na Sorbonne em 1902, como professor auxiliar na cátedra de


educação, disciplina da qual se tornou titular em 1906, mudando, em 1910, o
nome da cátedra para sociologia. Assim, tornou-se o primeiro professor dessa
disciplina. Os seus principais discípulos foram:

 o antropólogo Marcel Mauss, que era seu sobrinho;


 o historiador Gustav Glotz;
 o jurista Léon Duguit.

A Figura 1 apresenta a biografia de Émile Durkheim.


Émile Durkheim e a sociologia como ciência autônoma 3

Figura 1. Biografia de Émile Durkheim.


Fonte: Aron (1997, p. 369).

Sociologia do Direito
Para Durkheim, a sociologia do Direito tem a incumbência de dar conta de
certas tarefas. Segundo ele, tendo em vista o papel que o Direito representa
na manutenção da ordem, o sociólogo deve investigar:

 as causas históricas das regras jurídicas;


 as funções das regras jurídicas;
 o funcionamento (como são aplicadas) das regras jurídicas.

Para ele, o Direito é coextensivo à vida social: “A sociedade tende inevi-


tavelmente a se organizar, e o Direito é a esta organização naquilo que ela
possui de mais estável e mais preciso” (DURKHEIM, 1995, p. 31-32).
4 Émile Durkheim e a sociologia como ciência autônoma

Para Durkheim, a regra jurídica é definida como uma regra de conduta


dotada de uma sanção (DURKHEIM, 1995). Essa ênfase dada à sanção é
típica de um pensamento obcecado com a ordem.
Ao analisar a sanção, ele a divide em duas: a repressiva e a restitutiva.
A primeira consiste em impor um sofrimento ao indivíduo, privando-o de
algum bem, como a vida, a liberdade, a honra, a fortuna, entre outros. A se-
gunda consiste na recondução de uma relação perturbada à sua forma normal
(DURKHEIM, 1995). Cada tipo de sanção corresponde a uma função e um
fundamento (Quadro 1).

Quadro 1. Tipos de sanção.

Repressiva Restitutiva

Fundamento Sentimento Utilidade


da sanção

Função da sanção Vingança Restauração

Dessa forma, podemos também classificar o Direito em Direito repressivo,


que é aquele que utiliza as sanções repressivas, e o Direito restitutivo ou
cooperativo, que é aquele que utiliza as sanções restitutivas.

Fato social e instituições

Objeto
Embora Durkheim tenha estabelecido como conceito central do seu pensa-
mento o conceito de fato social, na segunda edição das Regras do método
sociológico, ele começa a utilizar o termo instituição. Instituição e fato social
são termos que preservam a objetividade do fenômeno social. Por ser mais
corrente no âmbito do pensamento jurídico, parece mais adequado a uma
sociologia do Direito.
Assim, Durkheim define sociologia como “[...] a ciência das insti-
tuições, de sua gênese e de seu funcionamento” (DURKHEIM, 1986. p.
31). Segundo ele, as instituições são as “[...] crenças e modos de conduta
instituídos pela comunidade” (DURKHEIM, 1986. p. 31). Como exemplos
Émile Durkheim e a sociologia como ciência autônoma 5

de instituições, ele traz o Estado, a família, o Direito de propriedade e o


contrato (DURKHEIM, 1986).
Os fatos sociais e as instituições trazem consigo duas características essen-
ciais: a exterioridade e o caráter vinculativo ou coercitivo. O autor conceitua
exterioridade da seguinte forma:

Para que haja um fato social, é preciso que vários indivíduos combinem sua
ação e que desta combinação resulte um produto novo. E como esta síntese
tem lugar fora de nós (posto que nela entra uma pluralidade de consciências),
tem necessariamente como efeito o de fixar, instituir fora de nós certas ma-
neiras de agir e certos juízos que não dependem de cada vontade individual
considerada à parte (DURKHEIM, 1986, p. 30-31).

Como exemplo, podemos citar o sistema linguístico, a moral, a moda, a


moeda, entre outros, que são típicos fenômenos exteriores às consciências
individuais.
Com relação à segunda característica, temos que tanto a instituição quanto
o fato social se impõem ao indivíduo. Um exemplo disso é a paternidade, que
é um fenômeno biológico, mas, enquanto instituição/fato social, cria uma
série de deveres. É certo que: “[...] cada um de nós fabrica para si, sua moral,
sua religião, sua técnica. Não há conformismo social que não comporte toda
uma série de matizes individuais. Contudo, o campo de variações permitidas
é limitado” (DURKHEIM, 1986, p. 31).

Método
Quanto ao método utilizado por Durkheim, temos três regras:

Primeira regra — “Os fatos sociais devem ser concebidos como coisas”
(DURKHEIM, 1986, p. 18). Decorrem dessa regra duas consequências: a coisa
é exterior ao indivíduo, o que acarreta que essa coisa só pode ser conhecida
pela experiência; o elemento psicológico não é relevante: na verdade, é im-
possível determinar com exatidão os motivos subjetivos que deram origem
a uma instituição.

Segunda regra — deve haver uma prioridade do todo, da sociedade, com


relação à parte, o indivíduo. Pois, segundo Durkheim, a vida de uma célula não
se encontra nos átomos que a compõem, mas no modo como estão associados
(DURKHEIM, 1986). Desse modo, o todo mostra-se irredutível às partes
que o compõem, uma vez que possui propriedades que não estão presentes
6 Émile Durkheim e a sociologia como ciência autônoma

nas partes. A sociedade, pois, é irredutível à soma dos indivíduos. De fato,


se partirmos dos indivíduos, nunca podemos compreender o que ocorre no
grupo, uma vez que os membros do grupo agem de modo diferente do que
fariam se estivessem isolados.

Terceira regra — a ideia de que um fato social só pode ser explicado por
um outro fato social.

Principais conceitos

Solidariedade
Esse conceito fundamental na teoria de Durkheim pode ser descrito como o
vínculo objetivo, relação pacífica, existente entre os indivíduos em determinada
sociedade. A solidariedade, por sua vez, pode fundamentar-se na semelhança
entre indivíduos — chamada, então, de solidariedade mecânica — ou na sua
diferença — denominada, então, solidariedade orgânica.
A solidariedade mecânica é típica de sociedades primitivas, nas quais não
ocorreu uma especialização das funções sociais. A consciência individual
depende diretamente da consciência coletiva e segue todos os seus movi-
mentos, “[...] como o objeto possuído segue aqueles que o seu proprietário
lhe imprime” (DURKHEIM, 1995, p. 107). É essa analogia que justifica o
termo mecânica. Mas como se dá a consciência coletiva na solidariedade
mecânica? A consciência coletiva é o conjunto das crenças e sentimentos
comuns à média dos membros de uma mesma sociedade. Como é forte,
abrange todas as esferas da vida.
A solidariedade orgânica, por sua vez, é a solidariedade fundada na dife-
rença. É típica das sociedades modernas, em que a divisão do trabalho provoca
a diferenciação entre as pessoas. O termo orgânica é utilizado em analogia
com os órgãos de um ser vivo: estes são diferentes, e é a sua diferença que
os torna indispensáveis uns aos outros. Cada membro da sociedade funciona
como órgão de um organismo.

Divisão do trabalho social


A divisão social do trabalho consiste na especialização das funções em
todos os âmbitos da vida social: econômico, político, religioso, militar,
político, científico, artístico, entre outros. Essa divisão não pode ser confun-
Émile Durkheim e a sociologia como ciência autônoma 7

dida com a divisão técnica do trabalho, que consiste na decomposição do


trabalho em várias fases, atribuindo a cada trabalhador a responsabilidade
sobre uma fase.
As causas da divisão do trabalho dizem respeito à passagem da solidariedade
mecânica para a orgânica, em que pode haver:

 crescimento demográfico;
 crescimento da densidade demográfica (razão entre indivíduos e
superfície);
 crescimento no número de trocas entre os indivíduos de uma sociedade
(a chamada densidade moral).

Quanto mais numerosos os indivíduos que procuram viver em conjunto, mais intensa é
a luta pela vida. A diferenciação social (especialização) é a solução pacífica da luta pela
vida. Com a diferenciação, deixa de ser necessário eliminar a maioria dos indivíduos,
a partir do momento em que, diferenciando-os, cada um fornece uma contribuição
que lhe é própria para a vida do grupo.

ARON, R. As etapas do pensamento sociológico. São Paulo: Martins Fontes, 1997.


DURKHEIM, É. Da divisão do trabalho social. São Paulo: Martins Fontes, 1995.
DURKHEIM, É. Las reglas del método sociológico. México: Fondo de Cultura Económica,
1986.
ÉMILE DURKHEIM. In: Academia Brasileira de Direito do Estado. 2015. Disponível em:
<http://abdet.com.br/site/emile-durkheim/>. Acesso em: 01 fev. 2018.
ECONOMIA
POLÍTICA

Filipe Prado
Macedo da Silva
Karl Marx e a luta de classes
Objetivos de aprendizagem
Ao final deste texto, você deve apresentar os seguintes aprendizados:

 Identificar a influência de Karl Marx na sociologia.


 Relacionar as mudanças ocorridas, decorrentes da Revolução Industrial,
com o surgimento do capitalismo, na visão de Marx.
 Analisar a teoria da luta de classes enquanto força motriz da história.

Introdução
Neste capítulo, você vai estudar as principais contribuições teóricas de
Karl Marx, um importante intelectual social e econômico que analisou
e criticou as transformações produzidas pelo domínio do sistema de
produção capitalista. Karl Marx influenciou fortemente os arcabouços
teóricos da sociologia e a forma de enxergar as lutas de classes. Para
isso, construiu uma teoria da luta de classes e um conjunto de reflexões
acerca das mudanças ocorridasem decorrência da Revolução Industrial
e de como isso mudaria para sempre as relações sociais entre as classes
dominantes (burgueses) e dominadas (trabalhadores).

A influência de Karl Marx na sociologia


Não há dúvidas de que Karl Marx foi um importante teórico para o campo da
sociologia (NETTO, 2006). Isso porque, até hoje, as contribuições teóricas de
Karl Marx ajudam a explicar a sociedade atual — pelo menos, nos últimos 150
anos. Foi nesse mesmo período — a partir da Revolução Industrial — que a
sociedade capitalista se consolidou como forma de organização social e material.
Em outras palavras, as obras literárias de Karl Marx, em especial o livro O
Capital, em que ele analisou profundamente as raízes do capitalismo, trouxeram
“novas formas de enxergar o mundo e a sociedade que nascia”, e que perdura
até hoje — a sociedade capitalista.
2 Karl Marx e a luta de classes

E o que está envolvido na análise de Karl Marx? Nesse sentido, a grande


influência de Karl Marx está em seus profundos conhecimentos e/ou reflexões
sobre o modo de produção capitalista (NETTO, 2006). É nesse momento
histórico que as contribuições sociológicas de Karl Marx ganham o mundo
cientifico e político, a partir de uma nova visão acerca do “novo mundo de
prosperidade material e econômica”.
Esse “novo mundo de prosperidade material e econômica” surgia ao
mesmo tempo em conexão com uma “nova sociedade ou civilização”, com
características predominantemente urbanas e industriais. Assim, a sociedade
pós-Revolução Industrial baseava-se em uma “nova razão de vida individual e
coletiva moderna”, e estruturava-se em “novas relações sociais”, com “novas
classes sociais” (SILVA, 2010).
Sendo assim, a análise sociológica de Karl Marx tinha como “núcleo duro”
o capital e a sua reprodução social. Isso incluiu entender o seu entorno e o seu
funcionamento, a fim de compreender como a sociedade tratava a mercadoria,
as relações de trabalho, as relações entre nações, os meios de produção, a
relação com a moeda, entre outros (MARX, 2008).
Por exemplo, ao iniciar seus pressupostos sobre a produção de mercado-
rias, Karl Marx buscou entender como as ferramentas e o trabalhador eram
utilizados na produção e na reprodução de mercadorias, e como as relações
sociais evoluem ou se transformam. Além disso, ele escreveu fortemente
sobre o “mundo burguês” que nascia em torno ao capitalismo, adquirindo
protagonismo social, político e econômico — ou seja, um sistema econômico
de ordem burguesa (MANDEL, 1968; NETTO, 2006).
Paralelamente ao “mundo burguês”, nascia ainda, com a urbanização e a
industrialização em massa, um “mundo do proletariado”, com a massificação
dos trabalhadores urbanos industriais. Já, no século XIX, eram visíveis as
transformações da sociedade inglesa, que passava de um “plano rural rudi-
mentar” para um “plano urbano mecanizado”, em que os padrões da sociedade
tradicional (mais socializada e religiosa) davam lugar a novos padrões seculares
e econômicos (mais racionais e pragmáticos) (SILVA, 2010).
Em suma, Karl Marx destacou que a sociedade capitalista era formada por:
burgueses e trabalhadores. Os burgueses estabeleciam-se em torno dos meios
de produção — terra, matérias-primas, máquinas, etc. Já os trabalhadores,
alienados dos meios de produção, estruturavam-se em torno da sua força de
trabalho. Ambas são distintas, mas são necessárias uma para a existência da
outra, de acordo com Karl Marx (MARX, 1983).
Em outras palavras, “a sociedade burguesa não pode existir sem os traba-
lhadores”, e o capitalismo não pode prosperar sem a evidente divisão social
Karl Marx e a luta de classes 3

entre essas duas classes sociais (MARX, 1983; NETTO, 2006). Além do
mais, a lógica da sociedade capitalista não existe sem alguns dos mecanismos
predominantes nas relações produtivas como, por exemplo, a alienação do
trabalhador e o “fetichismo da mercadoria”.
Em todas as suas obras, Karl Marx trabalhou bastante as distinções entre
as classes sociais do capitalismo e suas novas relações — moldando novos
paradigmas sociais. Por exemplo, na Antiguidade, a luta de classe acontecia
pelo permanente confronto entre os senhores e os escravos — enquanto, na
Idade Média, esse conflito evidenciava-se no esforço dos servos contra os
senhores feudais. Ou seja, em qualquer momento da história, inclusive do
capitalismo, existem relações sociais de opressão (MARX, 2008).
Essas relações sociais de opressão — segundo Karl Marx — produzem con-
flitos e geram a possibilidade de uma revolução social com a perspectiva de novas
relações produtivas. Foi no Manifesto Comunista que Karl Marx escreveu que “os
proletários nada têm a perder a não ser seus grilhões, tendo um mundo a ganhar
[sob outras perspectivas]”. Essa foi a recomendação de Karl Marx em 1848.
É claro que existem inúmeras interpretações sobre a obra de Karl Marx, e
análises conflitantes entre os próprios marxistas sobre essas questões teóricas
e metodológicas. Em geral, Karl Marx tinha até uma visão otimista com
relação à luta de classes, acreditando que, no final desse processo histórico,
os trabalhadores construiriam uma nova sociedade dos proletários.
Nessa sociedade dos proletários, a grande maioria da sociedade definiria os
objetivos dessa nova sociedade — comunista ou socialista; esse seria o curso
natural da história. Como frisou Karl Marx, assim como aconteceu no escravismo
e no feudalismo, o capitalismo chegaria ao fim com uma grande crise interna, que
colapsaria a economia, as instituições e as relações sociais de produção. Dessa
forma, as crises seriam cada vez mais constantes nas economias industrializadas,
revelando as contradições internas em que o sistema econômico capitalista se
estrutura, e logo, “se autodestrói estruturalmente” (NETTO, 2006).
Do ponto de vista econômico e sociológico, as crises capitalistas poderiam, em
geral, se resumir às crises de acumulação, ou crises da mais-valia (SILVA, 2010).
Isso significa que — economicamente — quando os burgueses não conseguem
mais aumentar a mais-valia, seja em termos absolutos ou em termos relativos,
entram socialmente em crise, pressionando a outra classe social a aumentar a
mais-valia. Isso quer dizer que, nas crises capitalistas, os burgueses são obri-
gados a explorarem cada vez mais os trabalhadores — em busca de melhores
resultados econômicos, ou seja, da produção de mais-valia absoluta e relativa.
Consequentemente, as relações sociais de produção capitalista não ficam
apenas restritas aos efeitos do campo econômico. Também produzem fortes
4 Karl Marx e a luta de classes

efeitos sobre o campo social e o campo político. Logo, Karl Marx percebeu
e influenciou não somente as relações de produção, mas também as relações
sociais (ou da sociedade) e as relações políticas — como fundamentais para
a compreensão da dinâmica das lutas de classes (KISHTAINY et al., 2013;
MARX, 1983; SILVA, 2010).

O modo de produção é um conceito elaborado por Karl Marx (e utilizado pelos seus
seguidores, os marxistas) para definir o conjunto das forças produtivas e das relações de
produção em seu entorno. Às vezes, o modo de produção pode se confundir, de certa
maneira, com a estrutura econômica de uma sociedade qualquer — incluindo assim a
produção, a distribuição, a circulação e o consumo. Historicamente, distinguem-se vários
modos de produção: o comunista primitivo, o escravista, o feudal, o capitalista e o socialista.
De acordo com Karl Marx, pelo menos na visão teórica, numa formação social concreta,
podem estar presentes diferentes modos de produção, tendo ao menos um como domi-
nante (SANDRONI, 2005). Por exemplo, recentemente, o modo de produção que é mais
dominante é o capitalista. Logo, cabe destacar que Karl Marx, em sua obra mais importante,
O Capital, ocupa-se fundamentalmente em analisar e teorizar sobre o modo de produção
capitalista. Em outras palavras, ele busca entender como ocorre a produção capitalista, a
distribuição capitalista entre as classes sociais e a circulação capitalista nas sociedades, e
como o consumo se organiza entre os agentes socioeconômicos e as instituições.

As mudanças ocorridas em decorrência


da Revolução Industrial
Com a ascensão do mercado e dos processos industriais, o período feudal
chegou categoricamente ao seu fim, dando lugar ao sistema de produção
capitalista (MARX, 1983). Assim, a visão de Karl Marx surgiu num período
extremamente turbulento da história europeia (BELL, 1961). A Revolução
Industrial já havia encontrado seu rumo na Europa, deixando em seu rastro
grande riqueza material e muita pobreza social.
Na prática, Karl Marx e seu companheiro intelectual Friedrich Engels
tiveram a grande oportunidade de presenciar o novo conjunto de inovações
técnicas que surgem com a Revolução Industrial. Essas novas técnicas pro-
dutivas produziram diferentes custos sociais no desenvolvimento capitalista,
surgindo em toda a sociedade fenômenos e problemas sociais em larga escala.
Karl Marx e a luta de classes 5

Tudo isso era fruto das mudanças geradas pela Revolução Industrial — que
foi o principal fenômeno da história humana na consolidação do sistema capi-
talista como regime produtivo. Por exemplo, na Inglaterra, registros revelam
que a Revolução Industrial causou profundas transformações sociais — como
exploração e alienação extrema do trabalhador, ampliação da pobreza, aumento
do desemprego e, ainda, concentração do capital e da produção (SILVA, 2010).
Na realidade, Karl Marx, em O Capital, detalha minuciosamente o funcio-
namento do sistema capitalista de maneira magistral. É por isso que muitos
acham a leitura de O Capital complexa e densa — e com níveis elevados de
abstração (intelectual).
Nessa sua obra seminal, Karl Marx analisou inicialmente o processo de
produção do capital, ressaltando o quanto a sociedade industrial passou a va-
lorizar a mercadoria e o dinheiro como importantes elementos do processo de
troca social. Daí, a mudança percebida por Karl Marx: no sistema capitalista,
a perspectiva era transformar dinheiro/capital em mercadoria e, depois, em
mais dinheiro/capital (D — M — D’).
Para isso, novas lógicas de trabalho e novos mecanismos de valorização
do capital passaram a ser gerados no seio da sociedade capitalista. Aqui cabe
destacar a diferença que Karl Marx apontou entre capital constante e capital
variável — além de diferenciar a mais-valia absoluta da mais-valia relativa.
Esses conceitos fundamentais da economia marxista revelaram uma profunda
alteração na lógica produtiva da sociedade.
No capitalismo, de acordo com Karl Marx (1983), a mais-valia consiste no
valor do trabalho não pago ao trabalhador. Cabe pontuar que, na sociedade
capitalista, diferentemente do escravismo ou feudalismo, o preço da força de
trabalho é medido mediante o salário. O salário é a remuneração pela compra da
força de trabalho por parte dos proprietários do meio de produção — criando um
sistema social em que as relações, portanto, são mediadas pelo salário (monetá-
rio). Karl Marx destacou que, ainda que o salário seja a nova forma das relações
sócio-produtiva, existe cada vez mais aquela parte do esforço do trabalho de que
o trabalhador não pode se apropriar, pois é a parte com a qual o proprietário do
meio de produção executa a sua acumulação de capital (MARX, 1983, 2008).
Além do mais, a partir da Revolução Industrial, a lei geral da acumulação
capitalista passou “a reinar como a lógica dominante do sistema capitalista”
(SILVA, 2010). Em poucas palavras, a produção passou a ser apenas uma etapa
para a acumulação do capital — sendo que o capital passa a ser a riqueza
mais desejada da economia. A acumulação em termos absolutos e relativos
tornou-se a pedra de toque da sociedade.
6 Karl Marx e a luta de classes

Aquelas relações de troca simplistas (ou seja, o escambo) e relações de


trabalho não assalariadas ficaram para trás nas estruturas sociais predomi-
nantemente capitalistas (SILVA, 2010). Assim, no capitalismo, a monetização
da economia passou a ser a palavra de ordem, em uma lógica econômica, social
e política em que o poder passou a ser do capital (BELL, 1961).
Do outro lado, o progresso capitalista fez surgir as primeiras manifestações
dos trabalhadores contra a nova estrutura social e econômica da sociedade.
Na segunda década do século XIX, começaram a surgir as primeiras ideias
socialistas, sobretudo na França e na Inglaterra, que tornavam claro que a
classe operária teria que tomar consciência de sua exploração, das péssimas
condições de trabalho, da falta de unidade [...] de classe, e da falta de uma
doutrina alternativa que servisse de bandeira para a luta [...]” (SILVA, 2010).
Portanto, a exploração dos trabalhadores, agora em massa, foi outro marco
estrutural introduzido pela Revolução Industrial e ampliado pela consolidação
do sistema capitalista de produção. Karl Marx revelou em suas análises que “o
valor de uma mercadoria se baseava no trabalho necessário para produzi-lo,
e que os capitalistas (ou proprietários dos meios de produção) organizavam
os preços dos bens finais somando o preço do trabalho ao custo inicial do
produto e depois adicionavam o lucro” (KISHTAINY et al., 2013).
Logo, para elevar os lucros ou a mais-valia, os proprietários dos meios
de produção mantêm os salários baixos, introduzem novas tecnologias para
aumentar a eficiência produtiva e, portanto, condenam grandes contingentes
de trabalhadores a condições degradantes de trabalho, monotonia e, por fim,
desemprego. Ou seja, a Revolução Industrial trouxe “progresso econômico
com deterioração social” (SILVA, 2010).
Outra mudança importante observada por Karl Marx foi no campo da
concorrência entre os capitalistas (SANDRONI, 2005). A tendência — se-
gundo Karl Marx — é que cada vez menos produtores controlem os meios de
produção, e uma burguesia cada mais restrita concentre cada vez mais riqueza.
No longo prazo, isso criaria monopólios que poderiam explorar não somente
os trabalhadores, mas também os consumidores (KISHTAINY et al., 2013).
Assim sendo, as fileiras do exército industrial de reserva crescem/incham
com os ex-burgueses excluídos e com os desempregados. Esse movimento
levaria a uma maior complexidade da sociedade e dos mercados, revelando
e ampliando cada vez mais as contradições internas do sistema capitalista de
produção mercantil (SILVA, 2010).
Em síntese, sob o capitalismo, Karl Marx notou que os meios de produção
pertencem cada vez mais a uma minoria, que explora o trabalho da maioria
e obtém lucro. Paralelamente, essa ganância pelo lucro leva a uma super-
Karl Marx e a luta de classes 7

produção dos bens procurados, causando uma crise produtiva na economia.


Isso produz, de maneira cíclica e cada vez mais profunda, crises econômicas
que geram instabilidade social e econômica, gerando agitação social. É essa
“agitação social” que torna os trabalhadores cada vez mais conscientes de
sua exploração e mais instruídos para derrubarem as classes dominantes que
controlam a produção. É isso que leva a uma revolução segundo Karl Marx,
alterando mais uma vez a lógica da sociedade.

É importante destacar que Karl Marx é uma coisa, e o Marxismo é outra coisa. O que
isso quer dizer? Enquanto o primeiro trata-se do autor e de suas obras, sobretudo, o
Manifesto Comunista (de 1848), a Contribuição à Crítica da Economia Política (de 1858)
e O Capital (de 1867, 1885 e 1894), o segundo — o Marxismo — é uma denominação
consagrada para a obra teórica de Karl Marx e Friedrich Engels e de seus seguidores. Em
poucas palavras, o Marxismo “constitui uma fundamentação ideológica do moderno
comunismo” (SANDRONI, 2005). Essa também chamada Escola do Pensamento Marxista
baseia-se, principalmente, na obra O Capital, defendendo uma teoria da mais-valia e o
capitalismo como um sistema transitório, sujeito a crises cíclicas, e que por efeito do
agravamento de suas contradições internas, cairá a partir da revolução.

A teoria da luta de classes enquanto


força motriz da história
Karl Marx elaborou também uma teoria da luta de classes, buscando explicar
melhor os conflitos existentes no sistema capitalista. Segundo ele, “as desi-
gualdades sociais observadas no seu tempo eram provocadas, em sua análise,
pelas relações de produção do capitalismo, que dividem toda a sociedade em
proprietários (burgueses) e não proprietários (proletariado)” (SILVA, 2010). São
essas desigualdades que constituem as bases das classes sociais (MARX, 1983).
Logo, as relações entre a sociedade no capitalismo se caracterizam por
relações antagônicas, de oposição, incompatibilidade, exploração e complemen-
taridade entre as classes sociais (BELL, 1961; MARX, 1983). Daí a percepção
de que o conceito de luta de classes é inseparável do conceito materialista da
história (MARX, 2008). Porém, o que isso quer dizer?
De acordo com Karl Marx, “a história não passa de um registro cruel dos
esforços do homem para ganhar ascendência material”. Ele acreditava que
todos os conflitos repousavam em questões econômicas, e tais lutas eram
8 Karl Marx e a luta de classes

entre os que tinham e os que não tinham (MARX, 1983). Essas lutas eram a
força motriz das sociedades capitalistas, e a razão inevitável e absoluta dos
conflitos internacionais (SILVA, 2010).
Novamente cabe observar que, no sistema capitalista, Karl Marx identificou
relações de exploração da classe dos proprietários (a burguesia) sobre os traba-
lhadores (o proletariado). Isso porque a posse dos meios de produção, sob a forma
legal de propriedade privada, faz com que os trabalhadores, a fim de assegurar
a sobrevivência, tenham que vender sua força de trabalho ao capitalista, “[...]
o qual se apropria do produto do trabalho de seus operários” (MARX, 1983).
Em termos práticos, essas relações são de obstinação e antagonismo,
na medida em que os interesses de cada classe são inconciliáveis e, muitas
vezes, inegociáveis (SILVA, 2010). O burguês deseja preservar seu direito
à propriedade dos meios de produção e das mercadorias, além da máxima
exploração do trabalhador, seja reduzindo os salários, seja ampliando a jor-
nada de trabalho. Por sua vez, o trabalhador procura diminuir a exploração
ao batalhar por uma jornada de trabalho menor, além de melhores salários e
participação nos lucros do empresário.
Por outro lado, as relações entre as classes são complementares, pois uma só
existe em relação à outra (MARX, 1983). Karl Marx observou que só existem
proprietários porque há uma massa de despossuídos, cuja única propriedade é
sua força de trabalho. Em suma, as classes sociais são, apesar “de sua oposição”,
complementares e interdependentes
Mesmo assim, para Karl Marx a luta de classes deve, necessariamente,
acarretar a vitória do proletariado sobre a burguesia, e, uma vez conseguida esta
vitória e desaparecido o antagonismo entre capital e trabalho, a luta de classes
deixará de existir para sempre. Esse é o avanço histórico previsto por Karl Marx.
Além do mais, Karl Marx ampliou, na teoria da luta de classes, o conceito
de alienação do trabalhador, mostrando que a industrialização, a propriedade
privada e o salário afastaram o trabalhador dos meios de produção — ferra-
mentas, matérias-primas, terras e máquinas —, que estavam sob o controle
dos capitalistas (MARX, 2008; SILVA, 2010).
Karl Marx (1983) destaca que essa é a base da alienação econômica do
homem sob o capital. Do ponto de vista político, o homem também ficou
alienado, pois o liberalismo criou a lógica de um Estado como um órgão
político imparcial, capaz de representar toda a sociedade — e todas as suas
classes — e dirigi-la pelo poder delegado pelos indivíduos.
No entanto, Karl Marx mostrou que, na sociedade de classes, esse Estado
representava apenas as classes dominantes, e agia conforme seus interesses e
objetivos. Em outras palavras, no capitalismo, o Estado é um Estado burguês, a
Karl Marx e a luta de classes 9

serviço dos interesses do capital. Dessa maneira, essa questão estatal maximiza a
luta de classes como “motor de transformação da história humana” (SILVA, 2010).
É comum associar sempre os escritos de Karl Marx aos movimentos dos
trabalhadores e aos conflitos ou às negociações perpetradas pelos sindicatos.
Isso porque é importante lembrar que os trabalhadores são, em qualquer país, a
maioria da população. Foi, neste sentido, que Karl Marx destacou a importância
da luta de classes: sempre os trabalhadores seriam maioria, e logo, precisavam
de consciência para se organizarem e romperem os paradoxos da história.

1. Marx não tinha a mesma Assinale abaixo a alternativa que


compreensão dos cientistas sociais identifica essa nova ordem:
sobre o papel da ciência. Se para Max a) Comunismo.
Weber, por exemplo, a ciência social b) Feudalismo.
deveria se afastar da esfera moral c) Escravismo.
e política, para Durkheim e Marx, d) Primitivo.
pelo menos nesse ponto os dois e) Indústria.
concordavam, cabia a ela produzir um 3. Sobre as mudanças sociais, Marx
conhecimento capaz de conduzir os tinha um ponto de vista que
homens a uma vida melhor e a uma chamou de concepção materialista
sociedade mais justa. Embora tenha da história. Assinale a alternativa
escrito sobre várias fases da história, que descreve essa visão:
Marx concentrou-se principalmente: a) Não são os valores ou as ideias que
a) na Revolução Francesa. os homens detêm que promovem
b) no positivismo de Augusto Comte. as principais mudanças sociais,
c) nas mudanças ocorridas devido ao essas mudanças são induzidas
desenvolvimento do capitalismo. por influências econômicas.
d) nas ideias de Émile Durkheim b) O estudo dos fatos sociais é
e nos fatos sociais. que levariam a uma maior
e) nas grandes navegações. compreensão da sociedade.
2. É uma ideologia política e c) Conforme essa visão, o capitalismo
socioeconômica, sem divisão era muito parecido com os modos
de grande escala entre ricos e de produção que o antecederam.
pobres, ou seja, a ausência de uma d) Conforme essa visão, o capitalismo
pequena classe monopolizando era uma fase passageira e a
as riquezas e a grande maioria sociedade logo voltaria ao
das pessoas recebendo poucos modo de produção feudal.
benefícios que seu trabalho gera. e) Conforme essa visão, o
Seria uma sociedade mais humana capitalismo era a última fase
do que a que conhecemos. de evolução da sociedade.
10 Karl Marx e a luta de classes

4. A teoria dos modos de produção d) também chegaria ao fim, abrindo


sucessivos, que se iniciou pela análise espaço para outro modo de
estruturada das sociedades humanas, produção, fruto de decisões
teve início com o que Marx chamou políticas, que quisessem o
de "comunismo primitivo", a partir melhor para a sociedade.
de estudos de pequenos grupos e) também chegaria ao fim, abrindo
do passado remoto. Nesses grupos, espaço para outro modo de
tudo o que era adquirido era de produção, gerado a partir de
propriedade comum, e não havia decisões da classe burguesa.
divisões de classe. Mas esses grupos 5. Ao contrário do comunismo primitivo,
evoluíram e a propriedade privada Marx previa um comunismo
surgiu, inclusive a escravidão, como moderno, que teria a sua disposição
na Grécia e Roma antiga. A partir daí, todos os benefícios do sistema
as sociedades desenvolveram-se com capitalista altamente produtivo.
base na agricultura e em relações Assinale a alternativa que
de propriedade feudal, que era melhor descreve essa forma
dividida entre proprietários de terra, de comunismo moderno.
camponeses e arrendatários, forçados a) Seria uma forma avançada e
a trabalhar para os proprietários para sofisticada de comunismo, capaz
sobreviver. Esse modo de produção de cumprir o princípio comunista
também chegou aos seus limites. que diz “de cada um conforme
A partir desses estudos, Marx sua capacidade, a cada um,
concluiu que o capitalismo: conforme sua necessidade”.
a) nunca chegaria ao fim. Como b) Seria uma forma avançada e
era um sistema novo, totalmente sofisticada de comunismo, capaz
diferente dos modos de produção de cumprir o princípio comunista
que o antecederam, ele sempre que diz que a propriedade
encontraria formas de se renovar. privada é a base da sociedade.
b) também chegaria ao fim, abrindo c) Seria uma forma primitiva
espaço para outro modo de de comunismo, conforme o
produção, gerado a partir de modelo dos tempos remotos,
trabalhadores descontentes, que estudados por marx.
desenvolveriam uma consciência d) Seria uma forma avançada e
de classe, pondo fim à propriedade sofisticada de comunismo,
privada e estabelecendo porém, serviria de retorno
as relações comunais. ao sistema feudal.
c) chegaria ao fim e, como era e) Seria uma forma avançada e
um sistema novo, sucumbiria, sofisticada de comunismo, mas
e a sociedade retornaria que levaria a um novo modo
ao sistema feudal. de produção, o primitivo.
Karl Marx e a luta de classes 11

BELL, J. F. História do pensamento econômico. Rio de Janeiro: Zahar, 1961.


KISHTAINY, N. et al. O livro da economia. São Paulo: Globo, 2013.
MANDEL, E. A formação do pensamento econômico de Karl Marx: de 1843 até a redação
de O Capital. Rio de Janeiro: Zahar Editores, 1968.
MARX, K. Contribuição à crítica da economia política. 2. ed. São Paulo: Expressão Popular,
2008.
MARX, K. O capital: critica da economia política. São Paulo: Abril Cultural, 1983.
NETTO, J. P. O que é marxismo. São Paulo: Brasiliense, 2006.
SANDRONI, P. Dicionário de economia do século XXI. Rio de Janeiro: Record, 2005.
SILVA, F. P. M. O fator trabalho na teoria econômica. Lauro de Freitas, BA: Editorial FPMS,
2010.

Leituras recomendadas
CARCANHOLO, R. A. Marx, Ricardo e Smith: sobre a teoria do valor trabalho. Vitória:
Edufes, 2012.
RÍO, H. Marx para principiantes. Buenos Aires: Era Naciente, 2004.
Encerra aqui o trecho do livro disponibilizado para
esta Unidade de Aprendizagem. Na Biblioteca Virtual
da Instituição, você encontra a obra na íntegra.
Conteúdo:
Anthony Giddens Sociologia
Anthony Giddens Sociologia

Completamente revisada e atualizada, esta referência única oferece um panorama esclarecedor sobre os últimos acontecimentos
globais e sobre as novas ideias no campo da sociologia. Os debates clássicos também são minuciosamente abordados, explicando
até as ideias mais complexas de maneira clara e envolvente.

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mente acessível a todos os públicos. Sociologia é um livro empolgante e envolvente, que busca ajudar os leitores a compreender
o valor de pensar sociologicamente.

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inteiramente novo sobre guerra e terrorismo.

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• Seções adicionais de “Reflexão Crítica” foram inseridas ao texto para estimular a compreensão
e o entendimento dos leitores.

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Livro-texto campeão de vendas por mais de 20 anos, a 6ª edição estabelece o padrão para o estudo introdutório da sociologia.
Fonte ideal para estudantes de sociologia e certamente uma inspiração para a nova geração de sociólogos.

ANTHONY GIDDENS é Ex-Diretor da London School of Economics.

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02516 _Giddens_Sociologia.indd 1 13/03/2017 15:10:32


Anthony Giddens é ex-diretor da London School of Economics.

Philip W. Sutton é professor na University of Leeds e na Robert Gordon University.

G453s Giddens, Anthony.


Sociologia / Anthony Giddens ; tradução: Ronaldo Cataldo
Costa ; revisão técnica: Fernando Coutinho Cotanda. – 6. ed. –
Porto Alegre : Penso, 2012.
847 p. : il. color. ; 28 cm.

ISBN 978-85-63899-26-2

1. Sociologia. I. Título.

CDU 316

Catalogação na publicação: Ana Paula M. Magnus – CRB 10/2052

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26 Anthony Giddens

uma classe de trabalhadores assalariados – uma classe traba-


lhadora. À medida que a industrialização avançava, grandes
quantidades de camponeses que se sustentavam trabalhando
na terra se mudaram para as cidades em processo de expan-
são ajudaram a formar uma classe trabalhadora industrial ur-
bana. Essa classe trabalhadora também costuma ser chamada
de proletariado.
Marx acreditava que o capitalismo era um sistema ineren-
temente classista, no qual as relações de classe se caracterizam
pelo conflito. Embora os donos do capital e trabalhadores de-
pendam uns dos outros – os capitalistas precisam da mão de
obra e os trabalhadores precisam do salário – a dependência
é muito desequilibrada. A relação entre as classes é de explo-
ração, pois os trabalhadores têm pouco ou nenhum controle
sobre o seu trabalho, e os empregadores podem obter lucro
apropriando-se do produto da mão de obra dos trabalhadores.
Marx enxergou que o conflito de classe quanto aos recursos
econômicos se tornaria mais agudo com o passar do tempo.
Karl Marx
Mudança social: a concepção materialista da história
As ideias de Karl Mark (1818-1883) contrastam
nitidamente com as de Comte e Durkheim, mas, como eles, O ponto de vista de Marx baseia-se naquilo que chamou de
Marx procu-rou explicar as mudanças que estavam ocorrendo concepção materialista da história. Segundo essa visão, não
na sociedade durante a época da Revolução Industrial. são as ideias ou os valores que os seres humanos detêm que
Quando jovem, as ati-vidades políticas de Marx o colocaram são as principais fontes de mudanças sociais; ao invés disso,
em conflito com as au-toridades alemãs; depois de uma breve as mudanças sociais são primordialmente induzidas por in-
estadia na França, ele se exilou permanentemente na Grã- fluências econômicas. Os conflitos entre as classes propor-
Bretanha. Marx testemunhou o crescimento de fábricas e da cionam a motivação para o desenvolvimento histórico – eles
produção industrial, bem como as desigualdades resultantes. são o “motor da história”. Conforme escreveu Marx no co-
Seu interesse no movimento ope-rário europeu e nas ideias meço do Manifesto Comunista, “a história de todas a socieda-
socialistas refletia em seus escritos, que cobriam uma des que existiram até nossos dias tem sido a história da luta
diversidade de temas. Grande parte do seu trabalho se de classe” (Marx e Engels 2001 [1848]). Embora Marx tenha
concentrava em questões econômicas, mas, como sempre se concentrado sua atenção mais no capitalismo e na sociedade
preocupou em conectar os problemas econômicos com moderna, ele também analisou como as sociedades se desen-
instituições sociais, sua obra era, e ainda é, rica em visões volveram no decorrer da história. Segundo ele, os sistemas
sociológicas. Mesmo seus críticos mais severos consideram sociais fazem uma transição de um modo de produção para
seu trabalho importante para o desenvolvimento da outro – às vezes gradualmente, às vezes por uma revolução –
sociologia. como resultado de contradições em suas economias. Ele pro-
pôs uma progressão de estágios históricos que começa com
as sociedades comunistas primitivas de caçadores e coletores
Capitalismo e luta de classe e passa pelos antigos sistemas escravagistas e sistemas feudais
Embora tenha escrito sobre várias fases da história, Marx baseados na divisão entre proprietários de terras e servos. O
concentrou-se principalmente nas mudanças nos tempos surgimento de mercadores e artesãos marcou o começo de
modernos. Para ele, as mudanças mais importantes estavam uma classe comercial ou capitalista, que deslocou a nobreza
ligadas ao desenvolvimento do capitalismo. O capitalismo é proprietária de terra. De acordo com essa visão da história,
um sistema de produção que se diferencia radicalmente de Marx argumentava que, assim como haviam se unido para
todos os sistemas econômicos anteriores, envolvendo a pro- derrubar a ordem feudal, os capitalistas também seriam su-
dução de bens e serviços vendidos a uma ampla variedade de plantados por uma nova ordem instalada: o comunismo.
consumidores. Marx identificou dois elementos básicos nas Marx teorizou a inevitabilidade de uma revolução de tra-
empresas capitalistas. O primeiro é o capital – qualquer re- balhadores que derrubaria o sistema capitalista e anunciaria
curso, incluindo dinheiro, máquinas ou mesmo fábricas, que uma nova sociedade, na qual não haveria classes – nenhuma
possa ser usado ou investido para criar recursos futuros. A divisão de grande escala entre ricos e pobres. Ele não quis
acumulação do capital acompanha um segundo elemento, a dizer que todas as desigualdades entre os indivíduos desapa-
mão de obra assalariada. A mão de obra assalariada refere- receriam, pelo contrário, a sociedade não seria mais dividida
-se ao conjunto de trabalhadores que não possuem os meios em uma pequena classe que monopoliza o poder econômico
para sua sobrevivência, mas que devem buscar emprego pro- e político e a grande massa de pessoas que recebem poucos
porcionado pelos donos do capital. Marx argumentava que benefícios pela riqueza que seu trabalho gera. O sistema eco-
aqueles que possuem o capital – capitalistas – formam uma nômico passaria a ser de propriedade comum, e se estabele-
classe dominante, ao passo que a massa da população forma ceria uma sociedade mais humana do que a que conhecemos

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28 Anthony Giddens

atualmente. Marx argumentava que, na sociedade do futuro, e os valores também têm um grande impacto nas mudanças
a produção seria mais avançada e eficiente do que a produção sociais. A elogiada e discutida obra de Weber, A ética protes-
sob o capitalismo. tante e o espírito do capitalismo (1992 [1904-195]), propõe
O trabalho de Marx teve uma profunda influência no que os valores religiosos – especialmente aqueles associados
mundo do século XX. Até apenas uma geração atrás, mais de ao puritanismo – tinham importância fundamental para criar
um terço da população da terra vivia em sociedades, como a uma perspectiva capitalista. Ao contrário de outros pensado-
União Soviética e os países do Leste Europeu, cujos governos res sociológicos, Weber argumentava que a sociologia devia
afirmavam derivar sua inspiração das ideias de Marx. se concentrar na ação social, e não em estruturas sociais. Ele
argumentava que a motivação e as ideias humanas eram as for-
Max Weber ças por trás da mudança – ideias, valores e opiniões tinham
Como Marx, Max Weber (1864-1920) não pode ser simples- o poder de causar transformações. Segundo Weber, os indiví-
mente rotulado como sociólogo; seus interesses e preocu- duos têm a capacidade de agir livremente e de moldar o futuro.
pações cobriam muitas áreas. Nascido na Alemanha, onde Ele não considerava, como Durkheim e Marx, que as estrutu-
passou a maior parte da sua carreira acadêmica, Weber foi ras existiam fora ou independentemente dos indivíduos. Pelo
um indivíduo muito estudioso. Seus escritos cobriam os cam- contrário, as estruturas da sociedade eram formadas por uma
pos da economia, do direito, da filosofia e da história com- complexa inter-relação de ações. E era trabalho da sociologia
parativa, além da sociologia. Grande parte do seu trabalho entender os significados por trás dessas ações.
também estava relacionada com o desenvolvimento do capi- Alguns dos textos mais influentes de Weber refletem sua
talismo moderno e as maneiras em que a sociedade moderna preocupação com a ação social, ao analisar a peculiarida-
era diferente de formas anteriores de organização social. Por de da sociedade Ocidental em relação a outras civilizações
uma série de estudos empíricos, Weber propôs algumas das importantes. Ele estudou as religiões da China, Índia e do
características básicas das sociedades industriais modernas Oriente Próximo e, no decorrer dessas pesquisas, fez gran-
e identificou debates sociológicos cruciais que permanecem des contribuições para a sociologia da religião. Comparando
centrais para os sociólogos atualmente. os principais sistemas religiosos da China e da Índia com os
Em comum com outros pensadores da sua época, Weber do Ocidente, Weber concluiu que certos aspectos das crenças
buscou entender a natureza e as causas das mudanças sociais. cristãs tiveram grande influência na ascensão do capitalismo.
Ele foi influenciado por Marx, mas também foi bastante crítico Ele argumentava que a perspectiva capitalista nas sociedades
de algumas das principais visões de Marx. Ele rejeitava a con- Ocidentais não emergiu, conforme supunha Marx, apenas de
cepção materialista da história e considerava os conflitos de mudanças econômicas. Na visão de Weber, as ideias e os va-
classe menos significativos do que Marx. Segundo a visão de lores culturais ajudaram a moldar a sociedade e nossos atos
Weber, os fatores econômicos são importantes, mas as ideias individuais.

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Sociologia 29

os indivíduos estavam cada vez mais envolvidos em cálculos


racionais e instrumentais, que levavam em conta a eficiência
e as consequências futuras dos seus atos. Na sociedade in-
dustrial, havia pouco espaço para o sentimento e para fazer
as coisas simplesmente porque vinham sendo feitas daquele
modo há gerações. Weber descreveu o desenvolvimento da
ciência, da tecnologia moderna e da burocracia coletiva-
mente como racionalização – a organização da vida social
e econômica segundo os princípios da eficiência e com base
no conhecimento técnico. Se, nas sociedades tradicionais, a
religião e os costumes antigos definiam as posturas e valores
das pessoas, a sociedade moderna foi marcada pela raciona-
lização de um número cada vez maior de áreas da vida, da
política à religião e à atividade econômica.
Segundo Weber, a Revolução Industrial e a ascensão do
capitalismo foram evidências da tendência mais ampla para
a racionalização. O capitalismo não é dominado pelo confli-
to de classe, como argumentava Marx, mas pela ascensão da
ciência e da burocracia: organizações de grande escala. We-
ber considerava o caráter científico do Ocidente como um
de seus aspectos mais característicos. A burocracia, o único
modo de organizar grandes quantidades de pessoas efetiva-
mente, expande-se com o crescimento econômico e político.
Weber usou o termo “desencantamento” para descrever a
maneira em que o pensamento científico no mundo moder-
no havia varrido as forças do sentimentalismo do passado.
Todavia, Weber não era totalmente otimista quanto ao
resultado da racionalização. Ele temia que a disseminação da
burocracia moderna para todas as áreas da vida nos aprisio-
nasse em uma “jaula de ferro”, da qual haveria pouca chan-
ce de escapar. A dominação burocrática, ainda que baseada
em princípios racionais, poderia esmagar o espírito humano,
tentando regular todas as esferas da vida social. Ele se preo-
cupava particularmente com os efeitos sufocantes e desuma-
Max Weber (1864-1920). nizantes da burocracia e suas implicações para o destino da
democracia. A agenda aparentemente progressista da Era do
Um elemento importante na perspectiva sociológica Iluminismo do século XVIII, de progresso científico, aumen-
de Weber foi a ideia do tipo ideal. Os tipos ideais são mo- tando a riqueza e a felicidade produzida enquanto rejeitava
delos conceituais ou analíticos que podem ser usados para costumes tradicionais e superstições, também tinha um lado
se entender o mundo. No mundo real, os tipos ideias rara- obscuro e com novos perigos.
mente, ou nunca, existem – muitas vezes, apenas alguns dos
seus atributos estão presentes. Todavia, essas construções Abordagens teóricas modernas
hipotéticas podem ser muito proveitosas, pois é possível en- Os primeiros sociólogos estavam unidos em seu desejo de
tender qualquer situação do mundo real comparando-a com compreender as mudanças nas sociedades em que viviam.
um tipo ideal. Dessa forma, os tipos ideais servem como um Porém, eles queriam fazer mais que apenas representar e
ponto de referência fixo. É importante mostrar que, com o interpretar os acontecimentos momentâneos do seu tempo.
tipo “ideal”, Weber não queria dizer que a concepção era um Todos tentaram desenvolver maneiras de estudar o mundo
objetivo perfeito ou desejável. Ao invés disso, Weber queria social que pudessem explicar como as sociedades funciona-
dizer que era uma forma “pura” de um certo fenômeno. We- vam e quais eram as causas das mudanças sociais. Ainda as-
ber usou os tipos ideais em seus escritos sobre formas de bu- sim, como já vimos, Durkheim, Marx e Weber empregaram
rocracia e mercados econômicos. abordagens bastante diferentes em seus estudos. Por exem-
plo, onde Durkheim e Marx se concentram na intensidade
Racionalização de forças externas ao indivíduo, Weber usa, como ponto de
Segundo a visão de Weber, a emergência da sociedade mo- partida, a capacidade de os indivíduos agirem de maneiras
derna foi acompanhada por importantes mudanças em pa- criativas sobre o mundo externo. Onde Marx aponta para a
drões de ação social. Ele acreditava que as pessoas estavam predominância de questões econômicas, Weber considera
se afastando de crenças tradicionais fundamentadas em su- significativa uma variedade muito mais ampla de fatores. Es-
perstição, religião, costumes e hábitos antigos. Pelo contrário, sas diferenças de abordagem persistiram através da história

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72 Anthony Giddens

A religião no coração do capitalismo?


Segundo Weber, se olharmos o desenvolvimento
econômi-co do Ocidente, encontraremos algo bastante
diferente: uma atitude de acumulação de riqueza que não
se encontra em nenhuma outra parte da história. Essa
atitude é o que Weber chamou de “espírito do capitalismo”
– um conjunto de cren-ças e valores encontrado nos
primeiros mercadores e indus-trialistas capitalistas. Essas
pessoas tinham um forte impulso de acumular riqueza
pessoal. Ainda assim, ao contrário dos ricos em outras
partes, eles não tentavam usar suas riquezas acumuladas
para ter um estilo de vida luxuoso. Seu modo de vida, de
fato, era de abnegação e frugalidade; eles viviam de forma
sóbria e calma, ocultando as manifestações comuns de
afluência. Essa combinação incomum de características,
que Weber tentou mostrar, foi vital para o
desenvolvimen-to econômico ocidental, pois, ao contrário
dos ricos em eras anteriores e em outras culturas, esses
grupos não dissipavam sua riqueza: pelo contrário, eles a
reinvestiam para promover uma expansão maior das
empresas que dirigiam.
O núcleo da teoria de Weber é que as atitudes envolvidas
no espírito do capitalismo derivavam da religião. O cristianis-
mo, em geral, teve o papel de promover essa perspectiva, mas
a força motivadora essencial foi proporcionada pelo impacto
do protestantismo, em particular: o puritanismo. Os primeiros
capitalistas eram principalmente puritanos, e muitos aderiam
aos pontos de vista calvinistas. Weber argumentava que certas
doutrinas calvinistas eram a fonte direta do espírito do capita-
lismo. Uma delas era a ideia de que os seres humanos são ins-
trumentos de Deus na Terra, chamados pelo Todo-Poderoso
para trabalhar em uma vocação – uma ocupação para a glória
Max Weber: capitalismo e religião maior de Deus.
Em um importante trabalho, A ética protestante e o Um segundo aspecto importante do calvinismo era a
espírito do capitalismo (1992 [1904-1905]), Weber tenta noção de predestinação, segundo a qual apenas certos indi-
abordar um problema fundamental: por que o capitalismo víduos predestinados estão entre os “eleitos” – para entrar
se desenvolveu no Ocidente e em nenhum outro lugar? Por no paraíso, na vida eterna. Na doutrina original de Calvino,
aproximadamen-te 13 séculos depois da queda da Roma nada que uma pessoa faça na Terra pode mudar se ela é um
antiga, outras civili-zações foram muito mais proeminentes dos eleitos; isso já foi predeterminado por Deus. Todavia,
do que o Ocidente na história mundial. A Europa, de fato, essa crença causava tanta ansiedade entre seus seguidores
era uma área bastante insignificante do planeta, enquanto que foi modificada, permitindo que os crentes reconheces-
a China, a Índia e o Im-pério Otomano no Oriente sem certos sinais de elegibilidade.
Longínquo eram grandes potên-cias. Os chineses, em O sucesso no trabalho em uma determinada vocação,
particular, estavam muito à frente do Ocidente em termos indicado pela prosperidade material, tornou-se o principal
de desenvolvimento tecnológico e eco-nômico. O que sinal de que uma pessoa era verdadeiramente um dos eleitos.
aconteceu para trazer uma onda de progresso econômico à Criou-se um forte ímpeto para o sucesso econômico entre
Europa a partir do século XVII? grupos influenciados por essas ideias. Ainda assim, ele era
Para responder essa questão, segundo Weber, acompanhado pela necessidade de que o crente vivesse uma
devemos mostrar o que separa a indústria moderna dos vida sóbria e frugal. Os puritanos acreditavam que a luxúria
tipos anterio-res de atividade econômica. Encontraremos o era um mal, de modo que o impulso de acumular riqueza era
desejo de acu-mular riqueza em muitas civilizações ligado a um estilo de vida severo e simples.
diferentes, e isso não é difícil de explicar: as pessoas Os primeiros empreendedores tinham pouca consciên-
valorizam a riqueza em relação a conforto, segurança, cia de que estavam ajudando a fazer mudanças significativas
poder e prazer que ela pode trazer. na sociedade; eles eram impelidos, acima de tudo, por mo-
Elas querem ser livres de carências e, tendo tivos religiosos. O estilo ascético – ou seja, abnegado – dos
acumulado ri-queza, a utilizam para viver puritanos se tornou uma parte intrínseca da civilização mo-
confortavelmente. derna. Conforme escreveu Weber:

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Sociologia 73

Os puritanos querem seguir uma vocação. A teoria de Weber, como a análise de Marx sobre o ca-
Somos forçados a fazê-lo. Pois quando o ascetismo saiu das pitalismo, certamente é bem-sucedida nesses sentidos, pro-
celas monásticas para a vida cotidiana, e começou a domi- porcionado um trampolim para uma vasta quantidade de
nar a moralidade mundana, ele fez a sua parte em construir pesquisas e análises teóricas subsequentes. A abordagem de
o tremendo cosmos da ordem econômica moderna.... Desde
Weber à sociologia também forma a base para a tradição co-
que o ascetismo começou a remodelar o mundo e a nele se
desenvolver, os bens materiais adquiriram um poder cada nhecida como interacionismo.
vez maior e finalmente inexorável sobre a vida dos homens,
como em nenhum período anterior da história.... A ideia do Interacionismo simbólico, fenomenologia e
dever na vocação ronda nossas vidas como o fantasma de etnometodologia
crenças religiosas mortas. (1992, p. 182) Juntamente com Max Weber, credita-se ao behaviorista so-
cial norte-americano George Herbert Mead ter estabelecido
Avaliação as bases para uma abordagem geral da sociologia chamada
A teoria de Weber tem sido criticada por muitos ângulos. interacionismo. Esse é um rótulo geral que cobre todas as
Alguns argumentam, por exemplo, que a perspectiva que ele abordagens que investigam as interações sociais entre indiví-
chamava de “o espírito do capitalismo” pode ser identifica- duos, em vez de partir da sociedade ou das estruturas sociais
da nas primeiras cidades mercantes italianas do século XII, que a constituem. Os interacionistas muitas vezes rejeitam
muito antes de se ouvir falar em calvinismo. Outros afirmam a própria noção de que as estruturas sociais existem objeti-
que a noção fundamental de “trabalhar em uma vocação”, vamente, ou simplesmente não as levam em conta. Herbert
que Weber associou ao protestantismo, já existia nas crenças Blumer (que cunhou o termo “interacionismo simbólico”)
católicas. Ainda assim, os elementos essenciais da visão de argumentava que toda a conversa sobre estruturas sociais ou
Weber ainda são aceitos por muitos, e a tese que ele defen- sistemas sociais é injustificada, pois somente se pode dizer
dia permanece tão audaz e esclarecedora quanto na época em que existem, realmente, indivíduos e suas interações.
que foi formulada. Se a tese de Weber é válida, o desenvolvi- O interacionismo simbólico concentra-se na interação
mento econômico e social moderno foi influenciado decidi- no nível micro e na maneira em que os significados são cons-
damente por algo que, à primeira vista, parece muito distante truídos e transformados entre os membros da sociedade. G.
dele – um conjunto de ideais religiosos. Isso é algo que Marx H. Mead (1934) argumentava que o self do indivíduo é um self
não enxergou dentro das relações econômicas capitalistas. social, produzido no processo de interação, ao invés de ser
A teoria de Weber cumpre vários critérios importantes biologicamente dado. A teoria de Mead traça a emergência e
do pensamento teórico em sociologia. Primeiramente, ela é o desenvolvimento do self através de uma série de estágios na
contraintuitiva –sugere uma interpretação que rompe com infância, e suas ideias sobre o self social fundamentam grande
aquilo que sugeriria o senso comum. Assim, a teoria desen- parte da pesquisa interacionista (ver o Capítulo 1 para uma
volve uma perspectiva nova sobre as questões que aborda. A discussão das ideias de Mead). O lar dessa perspectiva, por
maioria dos autores antes de Weber quase não pensava na 30 anos, até 1950, foi o departamento de sociologia da Uni-
possibilidade de que ideias religiosas pudessem ter exercido versidade de Chicago (conhecido como a Escola de Chicago),
um papel fundamental na origem do capitalismo. Em segun- embora, de maneira alguma, todos os sociólogos de Chicago
do lugar, a teoria dá sentido a algo que, de outra forma, se fossem interacionistas simbólicos. O departamento também
torna intrigante: por que os indivíduos quereriam viver fru- era o lar da abordagem “ecológica” de Louis Wirth, Robert
galmente enquanto fazem grandes esforços para acumular ri- E. Park e Ernest Burgess (ver o Capítulo 6, “Cidades e vida
queza? Em terceiro, a teoria é capaz de esclarecer circunstân-
urbana”, para uma discussão dessa abordagem). Todavia, a
cias além daquelas que se propunha a explicar originalmente.
base institucional para os principais interacionistas, incluindo
Weber enfatizava que estava tentando entender apenas as
Mead, foi um fator importante para ampliar a abordagem.
origens iniciais do capitalismo moderno. Todavia, parece ra-
Possivelmente, o interacionista simbólico de maior êxito
zoável supor que valores paralelos aos instilados pelo purita-
seja Erving Goffman. Os estudos de Goffman sobre os “asi-
nismo podem estar envolvidos em outras situações de desen-
los” mentais, processos de estigmatização e as maneiras em
volvimento capitalista bem-sucedido. Finalmente, uma boa
que as pessoas apresentam seus selves em encontros sociais
teoria não é apenas aquela que se mostra válida. Também é
se tornaram clássicos sociológicos, tanto por seu estilo meto-
aquela que é frutífera em termos do quanto gera novas ideias
dológico e observacional quando por seus resultados. Ao de-
e estimula novas pesquisas.
senvolver sua “análise dramatúrgica”, que trabalha com a me-
táfora do teatro, as ideias de Goffman tiveram uma influência
REFLEXÃO CRÍTICA muito ampla sobre estudantes de todo o mundo.
A teoria de Weber sobre a origem do capitalismo vai além do
conceito de Merton de uma “teoria intermediária”. Porém, será
que os estudos existentes podem testá-la efetivamente? Liste
todos os elementos do capitalismo descritos por Weber. O que
a teoria acrescenta à nossa compreensão da natureza, caráter
e provável desenvolvimento futuro do capitalismo moderno?

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TEORIAS DA
COMUNICAÇÃO

Rafaela Queiroz Ferreira Cordeiro


A Escola de Frankfurt e
a Escola de Chicago
Objetivos de aprendizagem
Ao final deste texto, você deve apresentar os seguintes aprendizados:

„„ Definir as características da produção da Escola de Chicago de Sociologia.


„„ Identificar as particularidades metodológicas da Escola de Frankfurt
de Teoria Crítica.
„„ Reconhecer as características de uma escola de pensamento.

Introdução
Neste texto, você conhecerá dois importantes movimentos da tradição
sociológica do início do século XX: a Escola de Frankfurt e a Escola de
Chicago. Essas duas escolas se vincularam a importantes institutos de
pesquisas e universidades das cidades em que se desenvolveram. Apesar
do tratamento conjunto de ambas, elas constituem dois movimentos
diferentes, como você verá.

A Escola de Chicago de Sociologia


Os Estados Unidos têm abrigado diversas pesquisas sobre os meios de co-
municação. No início do século XX, os pesquisadores Robert Ezra Park
(1864–1944), Ernest Burgess (1886–1966) e Charles H. Cooley (1864–1929)
se reuniram em torno da Escola de Chicago. Essa escola, por meio de uma
abordagem microssociológica sobre a cidade, passou a investigar o objeto da
comunicação (ARAÚJO, 2013). Mais precisamente, desde a década de 1910, a
comunicação no território norte-americano se encontra relacionada ao projeto
de construção de uma ciência social sobre bases empíricas, sendo a Escola

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140 A Escola de Frankfurt e a Escola de Chicago

de Chicago a sede desse mesmo projeto. Assim, a perspectiva microssociológica


sobre os meios de comunicação que fazem parte da organização social é parte
de uma reflexão mais ampla. Essa reflexão tem relação com o papel da ciência
na resolução dos desequilíbrios sociais.

A hegemonia da Escola de Chicago dura até por volta das vésperas da Segunda Guerra
Mundial. Posteriormente, o enfoque da pesquisa sobre os Meios de Comunicação de
Massa (MCM) é deslocado para análises quantitativas. Desse modo, nos anos 1940, a
supremacia da Escola de Chicago é suplantada pela da Mass Communication Research
(MATTELART; MATTELART, 1997b).

Contexto da Escola de Chicago


Nessa tradição teórica, a cidade se apresentava como um local privilegiado
para se observar o processo comunicativo. Entre o final do século XIX e o
início do XX, as cidades estavam passando por grandes transformações. Essas
mudanças traziam impactos profundos nas relações estabelecidas entre as
pessoas e nas atividades sociais que elas exerciam. Era preciso, então, outro
olhar sobre a cidade, pois ela passara a se construir de forma muito diferente.
Assim, nesse novo contexto urbano, marcado pela industrialização e pela
urbanização, uma nova abordagem sobre a sociedade passava a ser “solici-
tada”. Ou seja, se requeriam estudos que trouxessem formas de compreender
os problemas causados por esses acontecimentos. O crime, a prostituição, o
abandono e a dependência eram alguns dos problemas que estavam associados
ao aumento do anonimato, do isolamento entre os indivíduos e da incerteza
incrementada pela vida moderna. Só que, além das mudanças sociais e econô-
micas trazidas pela industrialização e pela urbanização, as diversas formas de
cultura de massa – tais como música, livro, revista, jornal, filme, etc. – foram
apontadas como colaboradoras do aumento do crime, do declínio da moral
social, do agravamento da brutalidade e da impessoalidade – esta última em
virtude da perda da ligação com os outros indivíduos pertencentes a uma
mesma comunidade (MCQUAIL, 2000).
Com a diminuição da integração social, os pesquisadores norte-americanos
passaram a conceber os meios de comunicação de massa como possíveis

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A Escola de Frankfurt e a Escola de Chicago 141

potencializadores dessa integração. No entanto, é importante você considerar


o modo distinto de interpretação da influência gerada pelos MCM. Nesse
sentido, a forma como os pesquisadores viam esses meios estava relacionada
a uma atitude otimista ou pessimista do observador quanto às mudanças da
sociedade. Logo, os meios de comunicação poderiam ser observados em termos
negativos – em virtude do aumento do crime, da imoralidade e da solidão –,
mas também positivos – pois poderiam ser capazes de ligar os indivíduos
por meio de novas experiências. Ademais, a primeira parte do século XX se
caracterizava tanto pelo ápice do nacionalismo, da revolução e do conflito
social como pelo pensamento progressivo, pelo avanço da democracia e pela
evolução científica e tecnológica (MCQUAIL, 2000, p. 39).

De 1915 a 1935, muitas pesquisas da Escola de Chicago foram dedicadas a temas como
imigração e integração dos imigrantes na sociedade norte-americana. Robert Ezra Park,
que era um jornalista militante pela causa negra, foi uma das figuras de destaque da
Escola de Chicago. Segundo Mattelart e Mattelart (1997b, p. 30-31), Park transforma
a sua prática jornalística e elabora uma forma “superior” de reportagem a partir das
pesquisas sociológicas feitas nos bairros da periferia. Em um dos seus estudos sobre
as comunidades étnicas, o pesquisador questiona a função assimiladora dos jornais
e, em especial, das publicações feitas em línguas estrangeiras. Ele também reflete
sobre a natureza da informação, o profissionalismo do jornalismo e a diferença entre
informação e propaganda.
De acordo com Clark (1969 apud MCQUAIL, 2000), Robert Park e o seu aluno Herbert
George Blumer (1900-1987) foram alguns dos que destacaram o potencial positivo
dos meios de comunicação de massa na pesquisa realizada sobre a assimilação de
imigrantes nos Estados Unidos. Além disso, para McCornack (1961 apud MCQUAIL,
2000), os MCM também apresentavam um potencial positivo. Na sua perspectiva,
uma sociedade moderna e em mudança se apresenta de forma segmentada. Nela, a
única função dos meios de comunicação é proporcionar à indústria e à sociedade uma
coerência, isto é, uma “síntese da experiência” e uma “consciência do todo”.

Características da Escola de Chicago


Uma das características fundamentais dessa escola é a objetividade cientí-
fica. Esse princípio leva a outros dois, que são: a investigação indutiva e a
imparcial. Para essa tradição, a sociedade deve ser compreendida por meio
do método científico, do indutivismo e da neutralidade. Esses métodos são as

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142 A Escola de Frankfurt e a Escola de Chicago

bases dos estudos realizados pelas ciências naturais. Além disso, o enfoque
sociológico dessa escola se dá no espaço da cidade, isto é, no meio urbano, em
especial no que envolve as cidades norte-americanas e o processo de exclusão
urbana. Segundo Mattelart e Mattelart (1997b, p. 30), a cidade é observada
como um laboratório social: caracterizada pelos signos de desorganização,
marginalidade, aculturação, assimilação e mobilidade, ela é o espaço privi-
legiado de estudo da Escola de Chicago.
O sociólogo alemão Georg Simmel (1858–1918) e o francês Gabriel Tarde
(1843–1904) influenciaram as pesquisas norte-americanas sobre a cidade
com seus conceitos próximos de “situações concretas”. Suas influências
ajudaram os americanos a criar ferramentas científicas para analisar atitu-
des e comportamentos relativos ao espaço urbano. O biólogo alemão Ernest
Haeckel (1834–1919) também exerce influência nos estudos dessa tradição
sociológica por meio da noção de ecologia como a ciência das relações do
organismo com o meio ambiente. Na ecologia humana ou economia biológica,
expressão usada por Park, a luta pelo espaço é o que rege as relações entre
os indivíduos. Essa luta ou competição é observada como um princípio
de organização. Isso ocorre porque, nas sociedades dos homens, além da
competição, existe a divisão do trabalho. Esses dois fatores resultam em
formas de cooperação competitiva que constituem o nível biótico da orga-
nização humana. Há também o nível social ou cultural, que se impõe como
direção ou controle. Assumido pela comunicação e pela moral, esse nível
regula a competição, levando os indivíduos a partilharem uma experiência,
se vinculando à sociedade.
Você pode encontrar ainda, no pragmatismo de John Dewey (1859–1951),
George Herbert Mead (1863-1931) e, principalmente, Charles Cooley (1864-
1929), outras influências para essa escola. Cooley, inclusive, é anterior a Park
na análise dos processos comunicacionais. É ele quem usa primeiramente a
expressão grupo primário para indicar grupos que se constituem pela asso-
ciação e pela cooperação íntima entre si. Esse tipo de análise era importante
para avaliar os impactos trazidos pela urbanização, pela industrialização e
pelos novos meios de comunicação. Ela também era relevante para compre-
ender que o indivíduo poderia viver uma experiência singular e única, mas
estava ao mesmo tempo submetido ao processo de homogeneização dessa
experiência. Essa visão ambivalente sobre o processo de individualização do
cidadão urbano surge na noção de mídia da Escola de Chicago, pois os MCM
são observados tanto como elementos de emancipação do indivíduo como
de aceleramento da superficialidade das relações sociais (MATTELART;
MATTELART, 1997b, p. 35-36).

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Indutivismo
O indutivismo é uma das características marcantes da Escola de Chicago.
Esse procedimento investigativo se relaciona à noção de objetividade, que é
a base para a construção do objeto científico. A esse respeito, é importante
você ficar atento ao que significa o indutivismo e à sua oposição com relação
ao dedutivismo: enquanto o primeiro parte de uma realidade particular, o
segundo é indagado por meio de uma hipótese levantada para a pesquisa, a
qual se procura validar na prática.
No processo dedutivo, se parte de uma verdade já conhecida, já dada.
Essa verdade funciona como um pressuposto geral. Assim, os casos a serem
pesquisados serão demonstrados a partir dela. Dito de outro modo: na dedução,
é demonstrado que uma verdade sabida se aplica a todos os casos particulares
iguais, conforme aponta Chauí (2013, p. 78). É por esse motivo que comumente
se fala que na dedução o pesquisador vai do geral ao particular ou do universal
ao individual. Já na indução, o pesquisador segue o caminho oposto. Com
ela, ele parte de casos particulares iguais ou semelhantes para procurar uma
lei, definição, verdade ou teoria geral. Essa lei, por sua vez, poderá explicar
todos esses casos particulares. Desse modo, a definição, explicação ou teoria
não é dada no início nem é o ponto de partida da pesquisa, como no percurso
dedutivo. Na trajetória investigativa de caráter indutivo, a teorização é o ponto
final. É esse o trajeto seguido pela Escola de Chicago. Por meio desse método,
essa escola estudaria os processos comunicativos pelo critério de objetividade
científica, que é a base para a ciência. Além disso, você precisa saber que a
razão é um importante elemento para guiar a indução, pois é formada por
um conjunto de regras específicas. Se essas regras não forem consideradas,
a indução poderá ser invalidada (CHAUÍ, 2013).

A Escola de Frankfurt de Teoria Crítica


De acordo com Wolf (1999), a Escola de Frankfurt de Teoria Crítica repre-
senta a corrente oposta da Mass Communication Research. Isso ocorre porque
ela se contrapõe ao conhecimento que estava sendo elaborado pela Pesquisa
Administrativa norte-americana. A Teoria Crítica é comumente associada
ao grupo de pesquisadores que frequentaram o Instituto de Pesquisa Social da
Universidade de Frankfurt, fundado em 1923. A identidade central da abor-
dagem crítica se dá na construção analítica dos fenômenos investigados e na
capacidade de relacionar esses fenômenos às forças sociais que os engendram.

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144 A Escola de Frankfurt e a Escola de Chicago

Desse modo, a pesquisa dessa teoria se propõe como uma teoria social ou
da sociedade vista como um todo. Vale a pena você considerar que esse é
um forte ponto de contraposição da Teoria Crítica à Pesquisa Administrativa.
Isso pois a Pesquisa Administrativa se especializa em disciplinas setoriais,
as quais se dedicam a estudar campos de competência distintos. Então, essas
disciplinas acabam, por meio dessa múltipla diferenciação e especialização,
se desviando do entendimento da sociedade de forma global. Além disso,
exercem muito mais uma função de manutenção da ordem social existente,
no ponto de vista dos estudiosos críticos. Nas palavras de Wolf (1999, p. 83),
“[...] a teoria crítica pretende ser o oposto, pretende evitar a função ideológica
das ciências e das disciplinas setorializadas.”.
Desse modo, a Teoria Crítica não trabalha com a noção de dados como
informações extraídas da realidade. Nessa abordagem, os dados são produtos
históricos, se constituem numa situação histórico-social determinada. É por
isso que essa teoria é nomeada de Teoria Crítica ou de caráter crítico: nessa
visão, não há dados ou verdades absolutas. Ela é uma teorização, uma pesquisa
ou um estudo que se faz na prática.

A análise realizada pela Escola de Frankfurt envolve uma investigação teórica que é
contextualizada na sua prática. Dito de outro modo, a teoria deve partir da prática,
pois é na prática que os problemas sociais surgem. Nessa concepção de pesquisa, os
resultados obtidos na investigação feita por essa escola também devem ser ancorados
na realidade.

Contexto da Escola de Frankfurt


Durante a República de Weimar – que é a forma histórica de nomear o Estado
alemão entre os anos de 1919 e 1933 –, o filósofo e sociólogo alemão Max
Horkheimer (1895–1973) e o economista, cientista social e filósofo alemão
Friedrich Pollock (1894–1970) fundam o Instituto de Pesquisa Social. Esse
instituto também é conhecido como Escola de Frankfurt, pois era filiado
à Universidade de Frankfurt. Essa instituição se tornou famosa por ser a
primeira de origem alemã de abordagem teórica marxista. No início, seus
estudos tomam como objeto tanto a economia capitalista como a história do

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A Escola de Frankfurt e a Escola de Chicago 145

movimento operário. Em e 1930, quando Horkheimer passa a assumir a direção


do instituto, ele traz um novo direcionamento ao programa.
Após a tomada do poder por Hitler, com a ascensão do nazismo, Horkheimer
foi desligado da direção do centro e, com essa ação, todos os membros judeus
fundadores também o foram. O instituto acaba sobrevivendo porque, desde a
sua origem, era financiado por empresários que faziam parte da comunidade
judaica. Com a transferência dos fundos do centro para os Países Baixos –
antiga denominação da costa da Europa ocidental que abarcava principalmente
a Holanda e a Bélgica –, se criam anexos para dar continuidade aos estudos do
instituto, como em Genebra e Paris. Entre os anexos criados, o único conside-
rado estável para os pesquisadores exilados foi o da Universidade Columbia, em
Nova Iorque. Lá, Horkheimer, o sociólogo alemão Leo Löwenthal (1900–1993)
e o filósofo e sociólogo alemão Theodor W. Adorno (1903–1969) passam a
trabalhar em um dos prédios cedidos pela universidade norte-americana, em
especial no chamado Institute of Social Research (Instituto de Pesquisa Social)
(MATTELART; MATTELART, 1997a; WOLF, 1999).

Caraterísticas da Escola de Frankfurt


Os filósofos da Escola de Frankfurt se inspiraram na perspectiva marxista não
ortodoxa (marxismo libertário) de interpretar a história. Esse método, contudo,
passou por modificações porque foi retomado em confluência com outras
áreas do saber, tais como a filosofia da cultura, a ética e a psicossociologia. O
projeto dos filósofos era unir Marx e Freud. De maneira geral, Horkheimer e
Adorno compartilham do ponto de vista epistemológico comum e se opõem
à visão empírica adotada pelos estudos norte-americanos. Para eles, não era
o objeto da pesquisa que deveria ser adaptado aos métodos empregados, mas
os métodos ao objeto.
Exilados nos Estados Unidos, Horkheimer e Adorno questionaram a trans-
formação cultural ocorrida a partir dos anos 1940. Essa escola de pensamento
crítico se interroga, assim, sobre as consequências do desenvolvimento dos
novos meios de produção e transmissão cultural, recusando a ideia de que as
inovações tecnológicas fortaleceriam necessariamente o sistema democrático.
Dito de outro modo, a Teoria Crítica observa os meios de comunicação de massa
como meios de poder e dominação (MATTELART; MATTELART, 1997a).
Uma das críticas feitas pela Teoria Crítica se dá quanto à separação do
indivíduo da sociedade, separação esta que é resultado da histórica divisão de
classes. Nessa avaliação, a Escola de Frankfurt apresenta a sua tendência para
a crítica dialética da Economia Política (Marxismo). Desse modo, o ponto de

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146 A Escola de Frankfurt e a Escola de Chicago

partida dos estudos críticos é a análise do sistema econômico de mercado (o


capitalismo). Além da retomada dos aspectos fundamentais do materialismo
marxista, os pesquisadores dessa escola realizam uma abordagem original:
Horkheimer, Adorno, Marcuse e Habermas, só para citar alguns, observam
os temas estruturais da sociedade, como autoritarismo, indústria cultural e
transformação dos conflitos sociais em sociedades industrializadas, por meio
dos fenômenos supraestruturais da cultura. E, ao fazerem isso, observam que
as ciências sociais que se reduzem a técnicas de pesquisa e classificação de
dados supostamente “objetivos” ignoram as suas possibilidades de intervenção
e modificação social (WOLF, 1999).

Indústria cultural é uma expressão usada por Adorno e Horkheimer pela primeira
vez na obra Dialética do Iluminismo, iniciada em 1942 mas só publicada em 1947. Essa
expressão, empregada para substituir cultura de massa, foi usada para indicar um
sistema de produção, transmissão e consumo cultural promovido pelos meios de
comunicação de massa, os quais impõem uma padronização e uma organização
dos gostos do público. À primeira vista, as necessidades dos indivíduos parecem ser
atendidas, porém esses indivíduos são inseridos em um círculo de manipulação que
atende perfeitamente à lógica do sistema capitalista. Além disso, a indústria cultural
fornece um ar de similitude a todos os bens que, padronizados, servem para “satisfazer”
às demandas – estas são supostamente os critérios a que os padrões de produção
devem atender. Com esse modo industrial de produção cultural, objetos são construídos
por meio de uma marca de serialização-padronização-divisão do trabalho. Assim, a
racionalidade técnica, supervalorizada na sociedade, promove a transformação da
cultura em mercadoria e, consequentemente, dissolve e degrada o seu papel e o seu
traço crítico (WOLF, 1999, MATTELART; MATTELART, 1997a).

Assim, a Teoria Crítica acaba sendo, ou pelo menos tenta ser, uma teoria
da sociedade que busca uma avalição crítica do próprio fazer científico.
Ademais, a Sociologia, disciplina, aliás, que é retomada pela Escola de Frank-
furt, só se transforma em crítica da sociedade quando considera as tensões
que existem nela, tais como as que ocorrem entre as instituições e a vida, sem
dissolver o social no natural (WOLF, 1999).
Por fim, é importante que você saiba que a Escola de Frankfurt se baseia
no materialismo, influenciado pelos estudos de Karl Marx (1818–1883) e
Friedrich Engels (1820–1895). No entanto, esse método é abordado pela escola

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A Escola de Frankfurt e a Escola de Chicago 147

por meio da interdisciplinaridade, uma vez que é formado pelos seguintes


campos de estudo: Economia Política (Marxismo), Sociologia (Teoria da
Cultura), Psicologia (em especial a Psicanálise) e Epistemologia (esta também
é conhecida como Filosofia ou por meio da nomeação Teoria do Conhecimento).
Além disso, o materialismo é interdisciplinar porque é tomado a partir da
situação prática da teorização.

O marxismo permitiu entender que os “fatos” humanos são instituições sociais e


históricas. Portanto, são produzidos pelas condições sociais e históricas nas quais as
ações e os pensamentos se realizam. Você pode considerar também que os ditos fatos
humanos “primários” foram as relações dos homens com a natureza em busca de
sobrevivência. Dessas relações, surgiram as de trabalho e, a partir delas, foram criadas
as primeiras instituições sociais, a saber, a da família, a do pastoreio e agricultura, a da
troca e comércio. Então, as primeiras instituições sociais originadas foram as econômicas.
Para que elas fossem mantidas, os grupos sociais precisaram elaborar ideias e valores
aceitos por todos, de tal forma que legitimassem a importância e a necessidade
das instituições criadas. Além dessas ideias e valores, instituições de poder foram
elaboradas para sustentar as relações sociais e esses mesmos valores (ou ideologias)
produzidos. Assim, você pode afirmar que o marxismo ofereceu uma base para que
as ciências humanas pudessem entender as relações entre o plano psicológico e
social da existência do homem; entre o econômico e as instituições sociais e políticas;
entre todas essas supracitadas e o conjunto de ideias e práticas produzidas por uma
sociedade. Ademais, o marxismo possibilitou a compreensão de que as modificações
ocorridas ao longo da história resultam de processos sociais, políticos e econômicos
que são lentos, e não instantâneos. E é a materialidade da vida econômica que
comanda as esferas da vida do indivíduo. Por fim, ciências como Sociologia, Ciência
Política e História, à luz das ideias discutidas pelo marxismo, passaram a observar os
fenômenos humanos como resultados de contradições, lutas e conflitos determinados
pelas relações econômicas que exploram o trabalho da maioria em virtude de uma
pequena minoria privilegiada da sociedade (CHAUÍ, 2013, p. 307).

A constituição de uma escola de pensamento


Do ponto de vista de Guillemard (apud BECKER, 1996), uma escola de
pensamento consiste em um grupo de pesquisadores que compartilham um
“pensamento” ou uma fundamentação epistemológica. Dito de outro modo,
compartilham ideias gerais, pontos e questões de pesquisas e estudos. Eles

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148 A Escola de Frankfurt e a Escola de Chicago

não necessariamente precisam estar juntos, nem trabalhar no mesmo espaço,


nem ter se encontrado fisicamente. Assim, você pode considerar que uma
escola de pensamento se caracteriza por apresentar objetivos, programas de
pesquisa e referenciais teóricos em comum. No entanto, a noção de escola
não se fundamenta numa suposta homogeneidade compartilhada entre os
pesquisadores. Isso significa que, embora existam pesquisas em torno de
teorias e objetivos partilhados, o que permite abarcá-las em uma categorização
específica – pertence a uma escola X, que se diferencia da escola Y, ou, ainda,
é da Escola de Chicago ou da Escola de Frankfurt, por exemplo –, é preciso
pensar que há variações dentro de cada escola de pensamento. Logo, podem
existir distintos resultados obtidos pelas pesquisas realizadas por pesquisadores
de uma mesma escola.
A respeito dessa discussão, é importante você saber o seguinte: de maneira
geral, para que um determinado conjunto de investigações seja agrupado como
uma escola de pensamento específica, é preciso que sejam atendidas algumas
condições. Entre essas condições, estão a abertura para interdisciplinaridade
nas pesquisas; a ligação com uma universidade, um instituto e/ou um centro
de pesquisa; a presença de representantes que são líderes; e a constituição
de uma forte rede acadêmica de pesquisa (BECKER, 1996).

O conhecimento científico
Discutir sobre o que significa uma escola de pensamento leva também a pensar
sobre o que significa produzir conhecimento científico. Fazer científico, ciência
e objetividade científica, por exemplo, são palavras usadas frequentemente
para tratar da produção teórica dentro de um domínio metodológico guiado por
regras da razão, isto é, do que comumente se define como “ciência”. Mas o que
é a própria ciência? Não é possível falar ao certo nem definir objetivamente o
que é a ciência. Algumas definições situam o conhecimento científico como
parte das disciplinas sociais e excluem desse domínio as áreas humanas. Outras
reduzem a atividade científica a uma suposta busca “desinteressada” pelo
conhecimento verdadeiro; e há ainda as que a identificam com a tecnologia.
Para muitos, a ciência constitui um conjunto de conhecimentos “puros” que
são produzidos por métodos objetivos, rigorosos, neutros, os quais capturam o
real de forma diferente da filosofia e da arte, por exemplo (JAPIASSU, 1975).
Embora pareça ser uma discussão simples, não se tem uma resposta. Na
verdade, há várias. E sabe por quê? Porque não há uma definição certa e uma
errada, nem uma definição “verdadeira” em oposição a uma “falsa”, nem
muito menos imparcialidade e neutralidade na forma de definir e conceituar.

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A Escola de Frankfurt e a Escola de Chicago 149

A própria elaboração do conhecimento não pode ser objetiva – aqui no sentido


estrito do termo –, pois a ciência pode ser muitas coisas: a procura de um
saber, uma forma de interpretar o real, uma instituição com suas instâncias
administrativas, políticas ou ideológicas e até uma “aventura” intelectual
que conduz a um conhecimento teórico ou a uma pesquisa específica. Dito
de outro modo, não há ciência “pura”. A ciência é um “produto humano”
que funciona dentro de um contexto sócio-histórico. Logo, o cientista é um
indivíduo social, política e historicamente situado e não dotado de um saber
inteiramente racional e objetivo.
A razão do cientista não é imutável; ela pode mudar ao longo do tempo e
do espaço, além de sofrer influência da sua subjetividade. Logo, a escolha do
objeto a ser estudado deve ser observada por meio de algumas perspectivas:
nunca sendo um ato neutro, pode ter considerável influência do olhar pessoal
do pesquisador. Contudo, também é possível que o pesquisador opte por
investigar um objeto que esteja além do seu campo de atuação ou escolha
pessoal. Seja qual for o caminho que leve à escolha do objeto pesquisado, é
possível que a pesquisa seja desenvolvida por meio de influências pessoais,
mas não seja determinada por elas (CORDEIRO, 2017).

As noções de neutralidade e/ou imparcialidade foram trazidas dos estudos das ciências
sociais. Contudo, não existem neutralidade e imparcialidade no sentido estrito. O
que existe é a referenciação da pesquisa no seu contexto social. Nesse sentido, a
pesquisa científica se insere dentro de um processo que envolve a escolha sobre o
tema a ser estudado e a forma de sua abordagem (referencial teórico-metodológico).
Nesse processo, é possível que a opinião do pesquisador – que é um sujeito como
qualquer outro, influenciado pelas suas experiências e pelas condições sócio-históricas
da sociedade em que vive – influencie ou interfira durante a investigação do objeto
estudado, porém ela pode também não ser determinante (CORDEIRO, 2017).

Considerações finais
Como você observou, a Escola de Chicago de Sociologia e a Escola de
Frankfurt de Teoria Crítica constituíram dois movimentos teóricos que
ocorreram no início do século XX. Embora tenham se caracterizado como
tradições distintas dos estudos sobre os meios de comunicação de massa, essas

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150 A Escola de Frankfurt e a Escola de Chicago

duas escolas de pensamento estavam associadas a importantes institutos de


pesquisas e instituições universitárias, a saber, a Universidade de Chicago
e a Universidade de Frankfurt, respectivamente. Além disso, partiam de
referenciais teóricos distintos. Na primeira, o estudo microssociológico das
interações sociais reside na metodologia etnográfica. Já na segunda, o objeto
conduz a metodologia investigativa, e a teoria (ou o estudo teórico do objeto)
deve ser ancorada ou embasada na prática.
Ademais, a Escola de Chicago se baseia na investigação indutiva. Isto é, ela
estuda os processos comunicativos a partir da noção de objetividade científica,
destacando a racionalidade como elemento para a trajetória da pesquisa. Já a
Teoria Crítica se baseia no materialismo interdisciplinar, o qual se caracteriza
por ancorar a teoria na prática, isto é, por posicionar e contextualizar o conhe-
cimento. Para a Teoria Crítica, o que existe são situações e práticas marcadas
pela história ou ainda diagnósticos parciais da realidade, e não verdades
absolutas. Desse modo, se os pesquisadores dessa abordagem fossem estudar
um problema social qualquer, como o aumento da taxa de analfabetismo em
certas cidades brasileiras e a sua diminuição em outras, os dados referentes
a essas taxas deveriam ser apresentados por meio de uma contextualização,
uma ancoragem no contexto social, e não serem pressupostos por meio de uma
análise empírica que se atém a uma verdade a ser verificada ou validada. A
Escola de Chicago analisaria esse problema por meio do contato direto com
uma cidade em particular, por exemplo, levantando dados próprios. A partir
daí, se tentaria chegar a uma explicação geral sobre o aumento dessa taxa por
meio de uma construção teórica específica. Você pode considerar que ambas
as escolas revolucionaram a forma de analisar a vida social na sua época.

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A Escola de Frankfurt e a Escola de Chicago 151

ARAÚJO, C. A. A pesquisa norte-americana. In: HOHLFELDT, A.; MARTINO, L. C.; FRANÇA,


V. (Coord.). Teorias da comunicação: conceitos, escolas e tendências. 13. ed. Petrópolis:
Vozes, 2013. p. 119-130.
BECKER, H. A escola de Chicago. Mana, Rio de Janeiro, v. 2, n. 2, p. 177-188, 1996.
CHAUÍ, M. Iniciação à filosofia. São Paulo: Ática, 2013.
CORDEIRO, R. Q. F. Nominações, vozes e pontos de vista sobre a loucura na e pela mídia:
da reforma psiquiátrica ao boom das doenças mentais. 2017. 474 f. Tese (Doutorado
em Linguística)–Programa de Pós-Graduação em Letras, Universidade Federal de
Pernambuco, Recife, 2017.
JAPIASSU, H. Introdução. In: JAPIASSU, H. O mito da neutralidade científica. Rio de
Janeiro: Imago, 1975. p. 8-18.
MATTELART, A.; MATTERLAT, M. Indústria cultural, ideologia e poder. In: MATTELART, A.;
MATTELART, M. História das teorias da comunicação. São Paulo: Loyola, 1997a. p. 73-112.
MATTELART, A.; MATTERLAT, M. Os empirismos do novo mundo. In: MATTELART, A.;
MATTELART, M. História das teorias da comunicação. São Paulo: Loyola, 1997b. p. 29-56.
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WOLF, M. A teoria crítica. In: WOLF, M. Teorias da comunicação. 5. ed. Lisboa: Presença,
1999. p. 82-99.

Leituras recomendadas
ADORNO, T.; HORKHEIMER, M. A indústria cultural: o iluminismo como mistificação
de massa. In: LIMA, L. C. Teoria da cultura de massa. 5. ed. São Paulo: Paz e Terra, 2000.
p. 169-220.
BECKER, H. S. Métodos de pesquisa em ciências sociais. 4. ed. São Paulo: Hucitec, 1999.
JAPIASSU, H. O mito da neutralidade científica. Rio de Janeiro: Imago, 1975.
RUFATO, M. de A. Imigração e relações raciais na cidade moderna: a teoria social de
Louis Wirth. 2010. 147 f. Dissertação (Mestrado em Sociologia)–Faculdade de Filosofia,
Letras e Ciências Humanas, Universidade de São Paulo, São Paulo, 2010.

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ANTROPOLOGIA
E CULTURA

Priscila Farfan Barroso


O que é antropologia:
ramificações e atribuições
Objetivos de aprendizagem
Ao final deste texto, você deve apresentar os seguintes aprendizados:

„ Justificar a construção do pensamento antropológico.


„ Definir as ramificações e atribuições da antropologia.
„ Descrever os encaminhamentos da antropologia nas últimas décadas.

Introdução
Antropologia pode ser melhor compreendida enquanto disciplina cien-
tífica a partir do seu desenvolvimento ao longo do tempo. Desde os
primeiros viajantes que entraram em contato com outros povos até o
intenso contato cultural permitido pela globalização, está em questão o
modo como olhamos aqueles que são diferentes de nós. Assim, refletindo
sobre esse olhar podemos conhecer e aprofundar a compreensão e o
entendimento dos povos existentes.
Neste capítulo, você aprofundará o seu conhecimento sobre a constru-
ção do pensamento antropológico, além de conhecer suas ramificações
e atribuições existentes. Com isso, perceberá quais são as possibilidades
de aplicações conceituais em nosso cotidiano.

Construindo o pensamento antropológico


Você busca explicações para o que acontece no mundo? Você se questiona por
que algo aconteceu de um jeito e não de outro? Você tem curiosidade sobre
as formas de vida de outras culturas? Pensar sobre o que os homens fazem,
como fazem e por que fazem, faz parte da racionalidade humana (Figura 1).
Esses questionamentos possibilitam ao homem refletir sobre sua condição
humana no mundo, e assim compreender modos de viver diferentes dos seus.
2 O que é antropologia: ramificações e atribuições

Figura 1. A famosa estátua “O Pensador”, de Auguste Rodin, que simboliza o pensamento


humano.
Fonte: Ghiraldelli (2013).

Como nos ensina o antropólogo Roberto Cardoso de Oliveira (2000), cabe


ao pesquisador olhar, ouvir e escrever sobre o encontro etnográfico, a fim de
produzir o registro sobre outras sociedades. Por isso, a aprendizagem desses
três atos de forma sistemática e metodológica permite o desenvolvimento do
pensamento antropológico e uma maior atenção para com o mundo que nos
rodeia. Assim, você começará conhecendo como foram os primeiros contatos
com povos distantes que originaram a formação de uma literatura etnográfica.
Nos séculos XVI-XIX, as viagens às Índias, as descobertas realizadas
pelos europeus para expansão colonial e o comércio exterior nos altos mares
do Oceano Pacífico resultaram em relatos, escritos e descrições. Esse material
era produzido por viajantes, aventureiros, missionários, administradores
coloniais, sobre a experiência dos encontros com outras culturas e sociedades,
integrando os primeiros registros do encontro com o outro. As descrições
apresentavam, muitas vezes, esses povos como pitorescos e assustadores,
principalmente aqueles que tinham a prática do canibalismo. Mas, pela forma
de se organizar socialmente, de habitar o mundo e de se comportar, os povos
indígenas eram vistos pelos europeus como seres primitivos, selvagens, mais
O que é antropologia: ramificações e atribuições 3

próximo dos animais do que dos humanos. O historiador e cronista português


Gândavo (2004, p. 135) conta as impressões sobre os indígenas:

A língua que usam, por toda costa [...] Carece de três letras convém a saber,
não se acha nela F, nem L, nem R, coisa digna de espanto, porque assim
não têm Fé, nem Lei, nem Rei, e essa maneira vivem desordenadamente,
sem terem além disto conta, nem peso, nem medida.

Deste modo, a vida nos trópicos da América do Sul causava estranha-


mento aos europeus que esperavam dominar esses povos e levar a verdadeira
“civilização” a eles.

O livro do viajante de Hans Staden, Viagem ao Brasil, conta sobre o encontro com os
indígenas na América do Sul, as relações entre esses povos com os portugueses e como
se dava os ritos e cerimônias dos ditos “selvagens”. Em um dos trechos, ele apresenta
a antropofagia presente nesses povos:

Voltando da guerra, trouxeram prisioneiros. Levaram-nos para sua cabana: mas


a muitos feridos desembarcaram e os mataram logo, cortaram-nos em pedaços
e assaram a carne [...] Um era português [...] O outro chamava-se Hyeronimus;
este foi o assado de ontem. (STADEN, 1930).

Ramificações e atribuições da antropologia


Podemos dizer que a Antropologia tem ramificações com origens, caracterís-
ticas, conceitos e representantes diferentes. Vamos chamar essas ramificações
de “paradigmas” (OLIVEIRA, 1988), já que alguns não são escolas, propria-
mente constituídas como tal, e assim, conseguimos agrupar seus elementos
característicos para destacar a importância e contribuição de cada.

Evolucionismo Social
A partir de 1830, influenciada pelas ideias evolucionistas da Biologia, surge
o embrião de uma antropologia evolucionista, na Inglaterra. O filósofo inglês
Herbert Spencer foi um dos maiores influenciadores, pois apostava na escala
4 O que é antropologia: ramificações e atribuições

evolutiva ascendente, baseada na noção de “estágios”, de modo que todos os


seres humanos, em sociedade, passariam por cada processo até que evoluíssem
(BARNARD; SPENCER, 2002).
Essas ideias foram apropriadas para o estudo do homem e reforçaram a
explicação de que as sociedades passariam pelos mesmos estágios até que
se alcançassem a “civilização”, sendo essa um processo unilinear. Assim,
durante o século XIX, temos três representantes do evolucionismo social, são
eles: Lewis Henry Morgan, Edward Burnett Tylor e James George Frazer.
Morgan era norte-americano e trabalhou por muito tempo entre os Iroque-
ses, que viviam no Lago Erie da América do Norte, e outros povos americanos,
em contato com os nativos por meio da tradução de um intérprete. Ele investigou
as formas de governo, o sistema de parentesco e questão da propriedade, a fim
de estabelecer evidências na sistematização do progresso humano.
O inglês Tylor realizou estudos comparativos a partir da ideia de uni-
dade psíquica humana. Seu objetivo era dissecar a civilização em detalhes e
classificá-los em graus apropriados, sendo que, para ele, era mais importante
compreender a distribuição geográfica e histórica do que a vida dos nativos.
Nesse sentido, o autor se apoiava em relatos de fenômenos das culturas aná-
logas, que eram tomadas como evidências dessa progressão.
Frazer era escocês, mas atuou como professor na Inglaterra. Ele queria
encontrar leis gerais que pudessem ser presumidas de fatos particulares nas
diferentes sociedades. Na sua obra O Ramo de Ouro (1890), ele estudou a
magia nas sociedades primitivas como sendo o embrião de um processo
contínuo e evolutivo para chegar no desenvolvimento da ciência, tal qual se
dá nas sociedades contemporâneas.

Para conhecer mais sobre o pensamento do Evolucionismo cultural e suas ideias bases,
você pode ler o livro Evolucionismo cultural de Castro, 2005.
O que é antropologia: ramificações e atribuições 5

Escola Sociológica Francesa


Fundada por Émile Durkheim, no final do século XIX, essa escola defende
que a sociedade é uma realidade sui generis. Em 1895, ele publicou o livro As
regras do método sociológico, apresentando esta proposta metodológica para
o estudo da sociedade. Portanto, caberia a sociologia estudar os ‘fatos sociais’,
sendo que eles agiriam sobre os indivíduos de forma coercitiva, externa e geral.
O seu sobrinho, Marcel Mauss (1974, p. 41), deu continuidade às suas
ideias e aprofundou a abordagem de estudo, pois, para ele, o estudo da
sociedade, a partir de características, poderia elucidar a totalidade dessa
sociedade, chegando, então, ao conceito de “fato social total”. Com isso,
por meio do método comparativo, Mauss estudou a reciprocidade e a troca
de objetos entre pessoas ou grupos sociais defendendo a dádiva como fun-
damento da vida social.
Esse compromisso é entendido como o vínculo das almas em que se deve
dar um presente, não se deve recusá-lo e ainda é preciso retribuí-lo. A leitura
feita por Mauss é de que o objeto ainda tem algo do doador, mas permanece
com o recebedor, e, entre eles, se estabelece uma parceria e também uma
condição hierárquica. Ou seja, as trocas sociais que fundam a reciprocidade
estão em um “sistema de prestações totais”, (MAUSS, 1974, p. 45) que tem
caráter voluntário (aparentemente livre e gratuito) e obrigatório (imposto e
interessado), e essas trocas perpassam fenômenos jurídicos, econômicos,
religiosos, estéticos e mesmo morfológicos.

Funcionalismo
Considerado o pai da Antropologia Britânica, Bronislaw Malinowski (1984) desen-
volveu uma análise por meio do funcionalismo e afirmava que todas as partes de
uma cultura local desempenham um papel de funcionamento. Logo, o pesquisador
teria que fazer um trabalho de campo intensivo para apreender todos os detalhes
culturais. No início, esses detalhes pareceriam arbitrários e sem sentido – tanto
nas práticas da população local, quanto no modo das pessoas sobreviverem no
ambiente local – mas, com a acumulação de dados anotados durante o tempo
em que o pesquisador permanece em campo, alguns núcleos de sentido viriam
à tona, e o antropólogo seria o mediador dos significados da sociedade do outro.
Entre 1914 e 1918, ele foi autorizado a realizar trabalho de campo na Nova
Guiné, entre os trobriandeses, aprendendo o uso da língua nativa, por meio
da observação participante entre os nativos, o que possibilitou, em 1992, a
publicação do livro Argonautas do Pacífico Ocidental.
6 O que é antropologia: ramificações e atribuições

Enquanto Malinowski aposta no aprofundamento de estudo sobre uma


cultura, Radcliffe-Brown (2013) se baseia em uma perspectiva metodológica
comparativa, uma vez que ele prefere traçar comparações entre o povo estu-
dado e outros povos. Seu objetivo era realizar generalizações sobre a forma
estrutural da sociedade e entender sua continuidade ao longo do tempo.
Assim, Malinowski e Radcliffe-Brown rompem definitivamente com
os fundamentos tradicionais da antropologia e adotam uma orientação
sincrônica do estudo da sociedade, de maneira científica. Para o primeiro,
deve-se analisar a totalidade dos aspectos da cultura nativa, como o pes-
quisador a vê, com o objetivo de delinear as leis e padrões de todos os
fenômenos culturais (MALINOWSKI, 1984). Já para o segundo, cabe o
estudo da sociedade humana na perspectiva de seus fenômenos sociais,
nos quais se buscam relações existentes – de caráter funcional - entre as
formas de associação dos indivíduos, de modo a estabelecer características
gerais das estruturas sociais apreendidas através de observações reais
(RADCLIFFE-BROWN, 2013).

Culturalismo norte-americano
Franz Boas se opôs aos métodos dedutivistas das análises comparativas e
defendeu o método da indução empírica, a fim de não enquadrar os fenômenos
em um conceito que não lhe cabia. Assim, ele analisou os costumes semelhantes
entre tribos vizinhas, para traçar paralelos considerando o contexto social na
perspectiva histórica e geográfica. Logo, Boas preferiu elucidar o conceito de
cultura de modo plural, holístico, integrado, de acordo com regiões culturais
determinadas, para só então estabelecer leis gerais e generalizações teóricas.
Ruth Benedict e Margereth Mead são discípulas de Boas e dão continuidade
aos estudos de culturas particulares, a partir dos anos 20 nos Estados Unidos.
Esses estudos levam em consideração a noção de cultura como transmissão
geracional e a formação da personalidade na relação entre o indivíduo e o
grupo. Em 1934, Benedict publica seu livro Padrões de cultura. Nele, aborda
as configurações das feições culturais para compreender o papel da cultura na
definição da personalidade. Mais tarde, Mead publica Sexo e Temperamento,
em 1935, e apresenta a relação entre o temperamento e os diferentes papéis
sexuais em termos de um padrão dominante.
O que é antropologia: ramificações e atribuições 7

Acesse o link a seguir e veja um dos documentários


produzidos pela antropóloga Margaret Mead em
sociedades das ilhas do Pacífico.

https://goo.gl/SbMweA

Estruturalismo
Em 1908, Claude Lévi-Strauss nasce em Bruxelas, mas é em Paris que ele será
reconhecido como antropólogo renomado. Seus estudos buscavam a análise das
estruturas da mente humana, a fim de evidenciar as estruturas das sociedades
como relações constantes, apesar da diversidade e das diferenças entre elas.
Assim, por meio das estruturas do inconsciente, estudadas nos fenômenos
conscientes, Lévi-Strauss (1973) acessaria as leis gerais do pensamento humano
e, nessa estrutura rígida e imutável, desvendada no plano lógico, estariam
articuladas simbolismos e ação social.
Um de seus estudos, As estruturas elementares do parentesco, de 1947,
investigou as classificações definidas pelos membros de um grupo em
relação ao sistema de parentesco e a aliança das sociedades, permeando
questões que perpassariam das sociedades primitivas até as sociedades
ditas contemporâneas.
A proibição do incesto é explicada sociologicamente como um tabu que
impediria os grupos de se fecharem entre si, de modo que a aliança entre os
grupos proporia relações de consanguinidade. Ao mesmo tempo, a circulação
de mulheres asseguraria a troca entre os indivíduos e os grupos.

Antropologia nas últimas décadas


Em 1973, Clifford Geertz publica A interpretação das culturas, fundando
a Antropologia Interpretativa nos Estados Unidos, baseada no paradigma
hermenêutico. Geertz se filiou às ideias de Evans-Pritchard, no que se referia
8 O que é antropologia: ramificações e atribuições

a questionamento da antropologia como ciência e na proposição de um caráter


mais interpretativo para a disciplina, aproximando-a de outras matérias no
âmbito das Ciências Humanas. Para ele, “a cultura não era mais gramática
a ser desvendada, e sim uma língua a ser traduzida a partir da cultura do
antropólogo para os membros de outras culturas” (BARNARD, 2003, p. 158).
Assim, Geertz foi o expoente interpretativista na antropologia americana.
O conceito de cultura, em Geertz, terá um caráter semiótico e será designado
como teia de significados constituída pelo homem, conforme inspiração em
Max Weber, o que dá abertura para estabelecer o seu estudo a partir de uma
ciência interpretativa, na busca por significados, e não necessariamente por leis
que regem a sociedade. Nesse sentido, a “cultura é compreendida como uma
entidade relativamente autônoma que o antropólogo tem como desafio desvendar
os símbolos presentes através da interpretação” (GEERTZ, 2008, p. 15).
Nesse sentido, caberia ao antropólogo a prática etnográfica, realizando
uma “descrição densa” (GEERTZ, 2008, p. 13) sobre a cultura do outro, por
meio de escritos em diários, genealogias entre os indivíduos, mapeamento do
campo de modo sistemático, para compreender o contexto cultural em que
ocorre a ação simbólica. Essa interpretação elucidada não é única e também
não reivindica status de verdade absoluta, é apenas uma afirmação etnográfica
sobre sua interpretação das estruturas de significado socialmente estabelecidas.

Os estudos de Geertz sobre as brigas de galo balinesa, em 1958, apresentam expressões


simbólicas de disputas e desavenças que representam as relações entre os homens
naquela sociedade. Por meio da briga animal, evidencia-se a condição humana daqueles
que apostam, treinam galos e assistem as rinhas.

No final do século XX, o antropólogo norte-americano James Clifford


publica A experiência etnográfica, a fim de pensar sobre a autoridade da
produção etnográfica e as possibilidades de escritura do outro. Com isso,
aproxima a literatura da antropologia e aposta na ideia de que as etnografias são
verdades parciais, afastando-se da noção totalizante que algumas ramificações
da antropologia pretendiam dar para as etnografias realizadas.
Para Clifford (1998), a cultura é considerada como polissêmica, aberta,
multifacetada, com inúmeros significados, que são interpretados e negociados
O que é antropologia: ramificações e atribuições 9

entre o antropólogo e seus interlocutores. Logo, a etnografia sobre o outro traz


uma representação polifônica, através do discurso textual, implicando uma
ética e uma estética metodológica para compreensão de determinada realidade.
Marcus Georges escreve com Clifford A escritura da cultura, em 1986,
para evidenciar a relação entre a antropologia e o colonialismo, questionando
sobre as dimensões políticas e poéticas da etnografia. Deste modo, os autores
defendem que os modos narrativos e os recursos retóricos, utilizados pelo
antropólogo na escrita sobre o outro, também incidem na apresentação desse.
Desde o século XIX, a Antropologia vem se firmando como uma disciplina
científica difundida nas principais universidades existentes, tanto como curso
de graduação, quanto como matéria introdutória a ser cursada nas diferentes
áreas do conhecimento. Nesse sentido, como enfatiza Feldman-Bianco (2011,
p. 4), a pesquisa antropológica é:

[...] extremamente relevante para desvendar problemáticas que estão na


ordem do dia sobre a produção da diferença cultural e desigualdades
sociais, saberes e práticas tradicionais, patrimônio cultural e inclusão social
e, ainda, desenvolvimento econômico e social. No quadro da globalização
contemporânea, além de contribuir cada vez mais para a formulação de
políticas públicas e propostas para a sociedade, a antropologia apresenta
os aparatos necessários para expor a dimensão humana da ciência, tec-
nologia e inovação. Ao mesmo tempo, no curso de seus processos de
transformação e internacionalização, surgem novos desafios e perspecti-
vas para o ensino, a pesquisa e a atuação de antropólogos e antropólogas.

BARNARD, A. History and theory in anthropology. Cambridge: Cambridge University


Press, 2003.
BARNARD, A.; SPENCER, J. Encyclopedia of cultural and social anthropology. London:
Routledge, 2002.
CLIFFORD, J. A experiência etnográfica: antropologia e literatura no século XX. Rio de
Janeiro: Editora UFRJ, 1998.
FELDMAN-BIANCO, B. A antropologia hoje. Ciência e Cultura, São Paulo, v. 63, n.
2, abr. 2011. Disponível em: <http://cienciaecultura.bvs.br/scielo.php?script=sci_
arttext&pid=S0009-67252011000200002&lng=en&nrm=iso>. Acesso em: 21 ago. 2017.
10 O que é antropologia: ramificações e atribuições

GÂNDAVO, P. de M. de. A primeira história do Brasil: história da província de Santa Cruz


a que vulgarmente chamamos de Brasil. 2. ed. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2004.
GEERTZ, C. A interpretação das culturas. Rio de Janeiro: LTC, 2008.
GHIRALDELLI, P. A filosofia como passeio e como digestão. 2013. Disponível em: <http://
ghiraldelli.pro.br/filosofia/a-filosofia-como-passeio-e-como-digestao.html>. Acesso
em: 21 ago. 2017.
LÉVI-STRAUSS, C. Antropologia estrutural I. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 1973.
MALINOWSKI, B. Argonautas do pacífico ocidental. São Paulo: Abril Cultural, 1984.
MAUSS, Marcel. Sociologia e Antropologia. São Paulo: E.P.U., 1974.
OLIVEIRA, R. C. de. O trabalho do antropólogo. 2. ed. Brasília: Paralelo 15; São Paulo:
Editora Unesp, 2000.
OLIVEIRA, R. C. de. Sobre o pensamento antropológico. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro;
Brasília: CNPq, 1988.
RADCLIFFE-BROWN, A. R. Estrutura e função na sociedade primitiva. 2. ed. Petrópolis:
Vozes, 2013.
SILVA, B. S. Documentário: estranhos no exterior: as correntes da tradição - Franz Boas.
Boteco Literário, c2017. Disponível em: <http://botecosociologico.blogspot.com.
br/2014/06/documentario-estranhos-no-exterior-as.html>. Acesso em: 24 ago. 2017.
STADEN, Hans. Viagem ao Brasil. Rio de Janeiro: Oficina Industrial Gráfica, 1930. Dis-
ponível em: <https://tendimag.files.wordpress.com/2012/12/hans-staden-viagem-
-ao-brasil-1930.pdf>. Acessado em: 21 ago. 2017.

Leituras recomendadas
BARTH, F. One discipline, four ways: british, german, french, and american anthropology.
Chicago: The University of Chicago Press, 2005.
CASTRO, C. (Org.). Evolucionismo cultural. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2005.
FREEMAN, D. Margaret Mead and Samoa: the making and unmaking of an anthropo-
logical myth. New York: Penguin Books, 1985.
OLIVEIRA, R. C. de. Evolucionismo cultural. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2005.
ESTUDOS
CULTURAIS E
ANTROPOLÓGICOS

Priscila Farfan Barroso


O fazer antropológico
Objetivos de aprendizagem
Ao final deste texto, você deve apresentar os seguintes aprendizados:

 Identificar as influências do trabalho do antropólogo.


 Distinguir as novas metodologias do fazer antropológico.
 Reconhecer os dilemas éticos do antropólogo.

Introdução
Neste capítulo, você vai conhecer algumas influências metodológicas e
conceituais do fazer antropológico enquanto disciplina científica. Como
você pode imaginar, a transformação da antropologia em uma disciplina
científica não se deu de uma hora para outra. Assim, é preciso entender
as etapas desse processo.
Ao longo do texto, você também vai conhecer algumas metodologias
utilizadas no fazer antropológico que podem ser usadas em outras áreas
de conhecimento. São elas: a etnografia, o estudo longitudinal e o survey.
Além disso, você vai ver os dilemas e limites éticos do fazer antropológico,
que envolve desde a construção do tema de pesquisa até a produção
do relatório ou a publicação da pesquisa em livro.

Influências do trabalho antropológico


O trabalho do antropólogo foi se constituindo como disciplina com o passar dos
anos. Para a realização de uma pequena genealogia desse processo, é neces-
sário considerar a história e retomar o momento em que povos de continentes
diferentes se encontraram pela primeira vez. Um marco dessa trajetória foram
as grandes navegações do século XV. Nesse período, como você sabe, surgiu
o interesse dos europeus por povos que habitavam terras afastadas das suas.
Naquele momento histórico, a ideia dos europeus não era somente conhe-
cer como os povos até então desconhecidos moravam e o que faziam. Eles
desejavam principalmente se familiarizar com o modo de vida desses povos
2 O fazer antropológico

para melhor dominá-los, subordiná-los e até escravizá-los, já que eram tidos


como “primitivos”. Assim, para os europeus, esses povos que viviam além-mar
eram considerados menos humanos e deveriam se submeter à civilização para
acessar o “progresso”, o “conhecimento” e a “ciência”.
Esse pensamento dos europeus é o que se chama de etnocentrismo. Segundo
Rocha (1984, p. 5), “Etnocentrismo é uma visão do mundo onde o nosso próprio
grupo é tomado como centro de tudo e todos os outros são pensados e sentidos
através dos nossos valores, nossos modelos, nossas definições do que é a existência”.
Assim, o etnocentrismo não é característico somente dos europeus, mas
de todo grupo social existente, como reforça Laraia (2001, p. 75):

O etnocentrismo, de fato, é um fenômeno universal. É como uma crença de


que a própria sociedade é o centro da humanidade, ou mesmo a sua única
expressão. As autodenominações de diferentes grupos refletem este ponto de
vista. Os Cheyene, índios das planícies norte-americanas, se autodenominavam
"os entes humanos"; os Akuáwa, grupo Tupi do Sul do Pará, consideram-se
"os homens"; os esquimós também se denominam "os homens"; da mesma
forma que os Navajo se intitulavam "o povo". Os australianos chamavam as
roupas de "peles de fantasmas", pois não acreditavam que os ingleses fossem
parte da humanidade; e os nossos Xavante acreditam que o seu território tri-
bal está situado bem no centro do mundo. É comum assim a crença no povo
eleito, predestinado por seres sobrenaturais para ser superior aos demais. Tais
crenças contêm o germe do racismo, da intolerância e, frequentemente, são
utilizadas para justificar a violência praticada contra os outros. A dicotomia
"nós e os outros" expressa em níveis diferentes essa tendência. Dentro de uma
mesma sociedade, a divisão ocorre sob a forma de parentes e não parentes. Os
primeiros são melhores por definição e recebem um tratamento diferenciado.
A projeção desta dicotomia para o plano extra grupal resulta nas manifestações
nacionalistas ou formas mais extremadas de xenofobia. O ponto fundamental
de referência não é a humanidade, mas o grupo. Daí a reação, ou pelo menos
a estranheza, em relação aos estrangeiros.

Então, o encontro entre colonizadores e outros povos permitiu a coleta de


descrições, desenhos e materiais de outras culturas. Mas tudo ainda ocorria de
maneira bastante exploratória e sem uma metodologia específica. Os materiais
coletados não tinham status de veracidade e eram tidos mais como relatos, cartas e
romances que contavam, de forma até fansiosa e macabra, a vida de outros povos.
Somente no século XVIII é que a antropologia começa a se consolidar como
disciplina, definindo seu objeto de estudo, delimitando formas de estudá-lo e pro-
duzindo análise científica sobre esse objeto. É o que explica Laplantine (2003, p. 7):
O fazer antropológico 3

[…] apenas no final do século XVIII é que começa a se constituir um saber


científico (ou pretensamente científico) que toma o homem como objeto de
conhecimento, e não mais a natureza; apenas nessa época é que o espírito
científico pensa, pela primeira vez, em aplicar ao próprio homem os mé-
todos até então utilizados na área física ou da biologia. Isso constitui um
evento considerável na história do pensamento do homem sobre o homem.
[…] Trata-se, desta vez, de fazer passar este último do estatuto de sujeito do
conhecimento ao de objeto da ciência. […] Para que esse projeto alcance suas
primeiras realizações, para que o novo saber comece a adquirir um início
de legitimidade entre outras disciplinas científicas, será preciso esperar a
segunda metade do século XIX, durante a qual a antropologia se atribui ob-
jetos empíricos autônomos: as sociedades então ditas “primitivas”, ou seja,
exteriores às áreas de civilização europeias ou norte-americanas. A ciência,
ao menos tal como é concebida na época, supõe uma dualidade radical entre
o observador e seu objeto.

Para conhecer mais sobre a constituição da antropologia como disciplina, sugerimos a


leitura do livro Textos básicos de Antropologia, de Celso Castro. Esse livro apresenta a
história do pensamento antropológico e destaca alguns antropólogos que
constituíram estudos importantes na disciplina.

Você também deve atentar à contribuição das ciências biológicas para a


constituição da disciplina da antropologia. Afinal, a metodologia de classifica-
ção e comparação realizada pelas ciências biológicas influenciou os primeiros
ensaios sobre o homem em sociedade. Eriksen e Nielsen (2007, p. 28) trazem
mais informações sobre esse período:

Finalmente, surgiu a ciência internacionalizada. O pesquisador global se


torna uma figura popular — e o protótipo é, naturamente, Charles Darwin
(1809–1882), cuja Origem das espécies (1859) se baseava em dados coleta-
dos durante uma circum-navegação de seis anos ao redor do globo. […] Não
surpreende que a antropologia tenha surgido como disciplina nesse período.
O antropólogo é o pesquisador global prototípico que depende de dados de-
talhados sobre pessoas do mundo todo. Agora que esses dados se tornavam
disponíveis, a antropologia podia estabelecer-se como disciplina acadêmica.
4 O fazer antropológico

Assim, a antropologia passa a desenvolver estudos sobre o homem, mas


esses estudos não são algo focado em um ou outro homem, e sim nas socie-
dades humanas como um todo. Com isso, a pretensão da antropologia é de
“[...] constituir os ‘arquivos’ da humanidade em suas diferenças significativas”
(LAPLANTINE, 2003, p. 12).

Metodologias do fazer antropológico


Mas o que faz o antropólogo? Ele vai a campo e faz etnografia ao conversar com
as pessoas, anotar o que vê e o que dizem, tirar fotos ou fazer vídeos e pesquisar
documentos. Posteriormente, ele produz relatórios, discute com seus pares e
reflete sobre o que viu e ouviu. Ou seja, essa disciplina envolve o fazer antro-
pológico, que é aprendido na teoria e também no cotidiano de trabalho. Agora
você pode se perguntar o seguinte: quem não é antropólogo pode utilizar algumas
metodologias próprias do fazer antropológico? A resposta é sim. Contudo, para
haver legitimidade, deve-se ter o cuidado de não banalizar as metodologias do
fazer antropológico. É o que evidencia Oliveira (2011, p. 120–121):

A apropriação, por outras áreas, das teorias e metodologias antropológicas


nos levam a pensar e repensar nossa identidade intelectual, bem como o fazer
antropológico nesta era pós-tudo, como diria Geertz. A ampliação do que
vem sendo produzido, em termos de conhecimento acadêmico, na interface
entre a antropologia e as diversas áreas do conhecimento, longe de constituir
uma ameaça para o campo da antropologia, perfaz um engrandecimento da
produção acadêmica nesta área, ainda que devamos tomar cuidado com o
que se está produzindo, quais os limites e quais os diálogos travados com a
literatura antropológica, com seus conceitos e referenciais teóricos, afinal,
como nos coloca Dauster (2007), não podemos resumir o diálogo da antropo-
logia com as demais áreas do conhecimento a uma utilização instrumental da
etnografia, até mesmo porque esta constitui mais que “técnica” de coleta de
dados, mas sim uma forma de interpretar a realidade social, cujo substrato
encontra-se atrelado a um campo de conhecimento específico e a questões
suscitadas pela antropologia.

Desse modo, você pode perceber que o fazer antropológico implica conhecer
as ferramentas e teorias da área da antropologia, mas também requer certa
postura do pesquisador em meio ao grupo social estudado. Afinal, como o
objeto de estudo é o ser humano, os desafios da pesquisa incluem as formas
de relacionamento entre pesquisadores e pesquisados. A seguir, você vai ver
algumas metodologias do fazer antropológico que compõem a cientificidade
O fazer antropológico 5

da disciplina e que a consolidam como mais um dos campos de estudos das


ciências humanas.
A primeira metodologia que você vai conhecer aqui é a etnografia. Ela
propõe a observação e a participação em grupos sociais orientadas por proble-
mas de pesquisa. Assim, o pesquisador busca se inserir no grupo com certas
ideias preconcebidas, podendo retificá-las ou modificá-las completamente. A
proposta de Malinowski (1998) inclui ficar um longo período de tempo com
o grupo para compreendê-lo, evitando fazer apenas viagens rápidas. Cuche
(1999, p. 45) reforça essa mesma ideia ao dizer que “A transformação de uma
etnografia de viajantes ‘que apenas passam’ em uma etnografia de estada de
longa duração modificou completamente a apreensão das culturas particulares”.
Então, ainda que o modo de pesquisar cada grupo social tenha suas especi-
fidades, cabe compreender os principais pontos a que o pesquisador deve estar
atento a fim de encarnar uma postura condizente com o fazer antropológico
proposto. Eckert e Rocha (2008, p. 2) explicam melhor essa questão:

A pesquisa etnográfica, constituindo-se no exercício do olhar (ver) e do


escutar (ouvir), impõe ao pesquisador ou à pesquisadora um deslocamento
de sua própria cultura para se situar no interior do fenômeno por ele ou por
ela observado através da sua participação efetiva nas formas de sociabilidade
por meio das quais a realidade investigada se lhe apresenta.

A segunda metodologia que pode ser realizada no âmbito do fazer antro-


pológico é a pesquisa longitudinal. Aqui, a ideia é que as “[...] pessoas de
um único grupo são estudadas em diferentes épocas de suas vidas” (BOYD;
BEE, 1977, p. 42). Contudo, nem sempre um trabalho acadêmico realizado
por estudantes, por conta dos prazos, permite esse tipo de estudo. Assim,
esse tipo de metodologia não é tão comum, ainda que alguns pesquisadores
optem por ela.
Cunha (2014, p. 411) discorre sobre essa questão ao evidenciar as possibi-
lidades e potencialidades do estudo longitudinal na etnografia:

Mudando a conjuntura, uma nova investigação terá provavelmente de formular


novas questões, em vez de limitar-se a alimentar as mesmas questões com novos
dados ao longo do tempo. Ao prosseguir no rumo traçado de início, o risco é,
paradoxalmente, o de distorcer a historicidade que se procura captar precisa-
mente através de uma revisitação do terreno. Revisitação não equivale, pois,
a replicação. É precisamente a ausência de rigidez da abordagem etnográfica
que se pode revelar a mais adequada para captar o sentido das transformações.
6 O fazer antropológico

Por último, você deve conhecer a metodologia do survey (questionário).


Ela é a mais utilizada em pesquisas sociológicas e pode ajudar o antropólogo
a mapear aspectos da cultura e analisar comportamentos a partir da amostra
de um grupo social.
Nesse sentido, pode-se utilizar o survey para pesquisas políticas, questões
sociais, situações de consumo, entre outros. A ideia é desvendar aspectos que não
são facilmente explicáveis. Além disso, um mesmo questionário pode ser aplicado
em diferentes públicos. Dessa forma, é possível apreender o que muda de um
para outro. Bryman (1989, p. 104) sistematiza as informações sobre o assunto:

[...] a pesquisa de survey implica a coleção de dados [...] em um número de


unidades e geralmente em uma única conjuntura de tempo, com uma visão
para coletar sistematicamente um conjunto de dados quantificáveis no que diz
respeito a um número de variáveis que são então examinadas para discernir
padrões de associação [...].

Essas variáveis têm de ser analisadas previamente pelos pesquisadores


para que eles possam verificar se elas podem ajudá-los a compreender a rea-
lidade. Afinal, “[...] uma variável, por definição, deve ter variação; se todos os
elementos na população têm a mesma característica, esta característica é uma
constante na população e não parte de uma variável” (BABBIE, 1999, p. 124).

Dilemas éticos do antropólogo


Agora que você já conhece os principais aspectos e metodologias que envolvem o
fazer antropológico, deve considerar que essas práticas têm diversos limites. Tais
limites devem provocar a reflexão do pesquisador sobre os desafios da pesquisa.
Além disso, o pesquisador deve buscar soluções possíveis para que a pesquisa se
realize a contento. Estes são os três principais limites da prática antropológica:

1. o limite dos prazos acadêmicos;


2. os limites do encontro com o outro;
3. os limites surgidos após a produção do trabalho.

O primeiro deles considera o fazer antropológico circunscrito ao trabalho


acadêmico. Antes mesmo de iniciar o estudo, essa questão se impõe como
desafio para o pesquisador. Isso ocorre porque o contexto de realização da
O fazer antropológico 7

pesquisa afeta diretamente os resultados do estudo. Silva (2009, p. 28) explica


melhor esses pontos:

[...] não se pode esquecer que a antropologia é uma forma de conhecimento


definida segundo os limites impostos pelas regras da academia. O desenvolvi-
mento do trabalho de campo sofre, portanto, os constrangimentos relacionados
com o modo pelo qual a escolha do tema, das hipóteses e das perspectivas
teóricas, para citar apenas alguns itens presentes num projeto de pesquisa, é
negociada na academia que o acolhe e legitima. E nessa negociação, além dos
“méritos científicos” inerentes ao projeto de pesquisa, deve-se considerar a
influência das políticas acadêmicas (linhas de pesquisa institucionalizadas,
estabelecimentos, reorganização ou fortalecimento dos núcleos de pesquisa-
dores, afirmação de lideranças intelectuais, etc.) na escolha dos temas, regiões
geográficas, grupos sociais, etc. que compõem o “recorte” das pesquisas.

Mesmo que se trate de uma pesquisa pontual de disciplina, cabe refletir


sobre os pontos evidenciados a fim de que se possa realizar um exercício
fidedigno à proposta do fazer antropológico. Assim, o pesquisador não tem
controle total de sua pesquisa, mas pode direcioná-la da maneira mais adequada,
de acordo com os objetivos em questão.
O segundo ponto a ser ilustrado enfoca justamente o diálogo entre o pes-
quisador e o grupo pesquisado. Segundo Oliveira (2000, p. 24), esse diálogo
“Faz com que os horizontes semânticos em confronto — do pesquisador e do
nativo — abram-se um ao outro, de maneira a transformar um tal conjunto em
um verdadeiro ‘encontro etnográfico’”. Em algumas situações, esses diálogos
possibilitam trocas mais densas; em outras, essas trocas são mais truncadas por
conta de questões subjetivas. Nesse sentido, não apenas o pesquisador escolhe
quem vai pesquisar, mas também precisa ser escolhido pelos nativos, uma vez
que a pesquisa envolve o relacionamento entre seres humanos.
Assim, esse diálogo implica não somente um pesquisador que demanda
algo do pesquisado. O próprio pesquisador tem de aprender, de negociar e de
compreender como se dá a comunicação discursiva de quem ele pesquisa.
Ferreira (2010, p. 147) evidencia essa questão quando argumenta que o diálogo
antropológico implica uma aprendizagem da conversa com o nativo:

Já que as metodologias usadas pelos antropólogos dependem fundamentalmen-


te de processos linguísticos, é preciso considerar as dimensões comunicativas
da aquisição de informações como requisito tanto para a adequação da me-
todologia aos contextos culturais a serem estudados (BRIGGs, 1986) quanto
para a garantia de uma postura ética na relação de pesquisa. Dessa forma,
8 O fazer antropológico

podemos evitar situações em que as questões formuladas pelo pesquisador


são incompatíveis com o sistema de comunicação nativo.

Ao mesmo tempo, é importante você considerar a possibilidade de utilizar


o termo de consentimento livre e esclarecido ao travar relações com os inte-
ressados em participar da pesquisa, conforme exige a Resolução nº 196/1996
do Conselho Nacional do Ministério da Saúde. Afinal, a pesquisa com seres
humanos implica certos cuidados do pesquisador. Esse termo deve ser elaborado
pelo pesquisador, aprovado pelo Comitê de Ética em Pesquisa e assinado pelo
pesquisador e pelo pesquisado. Depois, destina-se uma via para cada um.

Para aprofundar a discussão e conhecer mais sobre o debate nacional relacionado à ética
em pesquisa antropológica, leia Antropologia e ética: o debate atual no Brasil, organizado
pela Associação Brasileira de Antropologia. Nessa obra, são discutidos aspectos gerais
da ética em pesquisa e também questões envolvendo a multidisciplinaridade.

Entretanto, você deve notar que, na área de antropologia, há dificuldade


de seguir à risca essa resolução, já que ela é baseada em pesquisas da área das
ciências biológicas. Contudo, a pesquisa antropológica se relaciona às ciências
humanas e se realiza durante o fazer antropológico. Nesse processo, nem sempre
se tem o controle de quais caminhos são percorridos e de quais pessoas são
encontradas. Então, o essencial é que você se guie pelos princípios éticos e que
informe aos seus interlocutores, de forma clara, quais são as suas intenções
e os objetivos da pesquisa. Ferreira (2010, p. 143) aprofunda essa discussão:

Nas pesquisas antropológicas, a ética está vinculada ao plano das relações


sociais; portanto, diz respeito à linguagem e à comunicação. No empreen-
dimento etnográfico, o antropólogo conversa, interage e consolida vínculos
com as pessoas. Essa relação não está dada a priori, mas sim emerge duran-
te a própria interação do antropólogo com os participantes da pesquisa. A
reflexão ética [...] deve orientar a construção dessa relação e o processo de
interação dialógica voltado para a compreensão do outro. Nesse sentido, o
consentimento dado por determinado grupo social para a realização de um
estudo antropológico advém da relação estabelecida em campo.
O fazer antropológico 9

O terceiro ponto se refere aos limites éticos decorrentes da produção do


trabalho escrito e da veiculação pública desse trabalho. Ao escrever sobre
a vida das pessoas, o pesquisador deve ter o cuidado de manter o sigilo das
suas identidades. Por exemplo, na tese de Machado (2008) sobre bebês que
nascem com a genitália ambígua — dita como intersexo —, a antropóloga
optou por trocar os nomes dos envolvidos por nomes de anjos, fazendo um
paralelismo com o fato de o senso comum dizer que os anjos não têm sexo.
Esse é um exemplo de estratégia e subterfúgio que os pesquisadores podem
utilizar para manter a ética de pesquisa.
Quando você escreve um relatório sobre aqueles que pesquisa, é importante
não só disponibilizar o produto final para eles, que gentilmente lhe concederam
seu tempo e sua convivência, como também buscar saber a opinião deles sobre
os resultados da pesquisa. Esse processo é conhecido como restituição dos
dados. Veja:

Na pesquisa, podemos pensar que a restituição dos dados também pode ser
uma forma de prolongar o trabalho de campo, as interações, a relação com os
nativos. Nesse caso, a receptividade da pesquisa e a restituição confundem-se
em relação às interações estabelecidas, engajamento e responsabilidade com
o campo. O duplo produto final da enquete, seja sob a forma de relatório para
o projeto de financiamento ou artigo para a revista científica, sublinha a dis-
tinção entre dois papéis: ciência “pura” versus ciência “aplicada”. Entretanto,
trata-se de distinção ideal. Nas situações concretas, observa-se ambiguidade
entre esses dois papéis, uma vez que um ou outro é reivindicado e um ou outro
argumento pode ser utilizado segundo o contexto. A publicação de artigos e
livros é uma forma importante de difusão da pesquisa no meio acadêmico,
no entanto, essas publicações tendem a repercutir pouco para os pesquisados
(FERREIRA, 2015, p. 2.645).

Portanto, evidencia-se que o pesquisador produz seus trabalhos finais sem


saber da repercussão da publicação dos dados. Mesmo assim, ao apresentar a
sua análise aos pesquisados, ele deve construir esse processo de restituição.
Muitas vezes, esse é o momento positivo em que o pesquisador é reconhecido
pelo seu esforço de compreender o grupo social que pesquisou. Em outros
casos, os pesquisados podem não gostar de algumas interpretações. Nessa
situação, é necessário negociar a respeito do que fazer com publicações futuras.
Você deve ter em mente que o produto da pesquisa não vai sempre agradar
a todos. Por isso, cabe ao pesquisador ter o cuidado de não expor os pesqui-
sados a situações perigosas. Logo, o debate sobre ética em pesquisa não está
finalizado. Ele é uma problemática de reflexão importante e deve ser sempre
considerado pelo pesquisador.
10 O fazer antropológico

BOYD, D. B.; BEE, H. A criança em crescimento. São Paulo: Harper & Row do Brasil, 1977.
BABBIE, E. Métodos de pesquisas de survey. Belo Horizonte: UFMG, 1999.
BRYMAN, A. Research methods and organization studies. Great Britain: Routledge, 1989.
CUCHE, D. A noção de cultura em ciências sociais. Bauru: UDUSC, 1999.
CUNHA, M. I. C. Linhas de redefinição de um objeto: entre transformações no terreno e
transformações na antropologia. Etnográfica, v. 18, n. 2, 2014. Disponível em: <https://
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ECKERT, C.; ROCHA, A. L. C. da. Etnografia: saberes e práticas. Revista Iluminuras, v. 9, n.
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ERIKSEN, T. H.; NIELSEN, F. S. História da antropologia. Petrópolis: Vozes, 2007.
FERREIRA, J. Restituição dos dados na pesquisa etnográfica em saúde: questões para
o debate a partir de experiências de pesquisas no Brasil e França. Ciência & Saúde
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FERREIRA, L. O. A dimensão ética do diálogo antropológico: aprendendo a conversar
com o native. In: FLEISCHER, S.; SCHUCH, P. (Org.). Ética e regulamentação na pesquisa
antropológica. Brasília: LetrasLivres : Editora Universidade de Brasília, 2010.
LAPLANTINE, F. Aprender antropologia. São Paulo: Brasiliense, 2003.
LARAIA, R. Cultura: um conceito antropológico. 14. ed. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2001.
MACHADO, P. S. O sexo dos anjos: representações e práticas em torno do gerenciamento
sociomédico e cotidiano da intersexualidade. Tese (Doutorado) - Programa de Pós-
-graduação em Antropologia Social, UFRGS, 2008.
MALINOWSKI, B. Argonautas do pacífico ocidental. São Paulo: Abril Cultural, 1998.
O fazer antropológico 11

OLIVEIRA, A. A Antropologia dos não antropólogos e outras questões etnocêntricas.


Revista Anthropológicas, ano 15, v. 22, n. 2, 2011. Disponível em: <https://periodicos.ufpe.br/
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OLIVEIRA, R. C. de. O trabalho do antropólogo. Brasília: Paralelo 15, 2000.
ROCHA, E. P. G. O que é o etnocentrismo? São Paulo: Brasiliense, 1984.
SILVA, T. T. A produção social da identidade e da diferença. In: SILVA, T. T. (Org.). Identidade
e diferença: a perspectiva dos estudos culturais. Petrópolis: Vozes, 2009.

Leituras recomendadas
ALVES, A. M. Fazendo antropologia no baile: uma discussão sobre observação-par-
ticipante. In: VELHO, G.; KUSCHNIR, K. (Org.). Pesquisas urbanas: desafios do trabalho
antropológico. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2003.
BRASIL. Ministério da Saúde. Conselho Nacional de Saúde. Resolução nº 196, de 10 de
outubro de 1996. Disponível em: <http://bvsms.saude.gov.br/bvs/saudelegis/cns/1996/
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CASTRO, C. Textos básicos de antropologia: cem anos de tradição: Boas, Malinokvski,
Levi-Strauss e outros. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2003.
GUERRIERO, I. C. Z.; MINAYO, M. C. de. S. O desafio de revisar aspectos éticos das pes-
quisas em ciências sociais e humanas: a necessidade de diretrizes específicas. Physis
Revista de Saúde Coletiva, v. 23, n. 3, 2013.
GUILHEM, D.; DINIZ, D. O que é ética em pesquisa. São Paulo: Brasiliense, 2012.
MINAYO, M. C. S., GUERRIERO, I. C. Z. Reflexividade como éthos da pesquisa qualitativa.
Ciência & Saúde Coletiva, v. 19, n. 4, 2014.
SANTOS, R. J. Antropologia para quem não vai ser antropólogo. Porto Alegre: Tomo, 2005.
SARTI, C.; DUARTE, L. F. D. (Org.). Antropologia e ética: desafios para a regulamentação.
Brasília: ABA, 2013.
VÍCTORA, C. Antropologia e ética: o debate atual no Brasil. Niterói: UFF, 2004.
Conteúdo:
ESTUDOS
CULTURAIS E
ANTROPOLÓGICOS

Priscila Farfan Barroso


Etnografia
Objetivos de aprendizagem
Ao final deste texto, você deve apresentar os seguintes aprendizados:

 Identificar o conceito de etnografia.


 Distinguir a etnografia dentro do quadro geral da antropologia.
 Definir quais os objetivos da etnografia.

Introdução
Neste capítulo, você vai aprender o conceito de etnografia e compre-
ender como surge essa ideia ao conhecer e analisar outras culturas. Ao
mesmo tempo, vai perceber a vinculação da etnografia à disciplina da
antropologia, compreendendo quais as suas relações e potencialidades.
Nesse sentido, etnografia não é apenas um método, mas abrange um
arcabouço teórico metodológico para pensar o grupo pesquisado.
Por último, vai conhecer estratégias no âmbito da etnografia que aju-
dam a realizar a pesquisa com mais cuidado e compromisso. Os registros
em campo, as entrevistas e a construção da árvore genealógica podem
ajudar a “ver” o que não é possível enxergar de outra maneira.

Conceito de etnografia
Para conhecermos outras culturas, estudarmos os seus modos de vida e com-
preendermos os seus pensamentos, ainda que eles sejam diferentes dos nossos,
precisamos adotar algumas estratégias de pesquisa. Imagine que você chega a
uma sociedade totalmente diferente da sua, more durante um tempo entre as
pessoas daquele local e aprende alguns hábitos de vida próprios daquela cultura.
Aos poucos, mesmo que de forma intuitiva, você vai entendendo e compre-
endendo o modo de se alimentar, de se vestir, de falar, de cuidar da terra, de se
relacionar entre as pessoas, de se comportar, assim como as festas e as crenças
mais importantes, os motivos para rir e chorar, etc. Entretanto, no âmbito da
2 Etnografia

pesquisa acadêmica, talvez não tenhamos o tempo e a disponibilidade de nos


inteirarmos da vida do outro como teria um viajante sem destino.
Os primeiros registros sobre outros povos foram feitos por viajantes. Um
deles é alemão Hans Staden, que esteve no Brasil na época da colonização e
escreveu sobre o perfil, o modo de vida dos indígenas que habitavam essas
terras, as práticas canibais em contextos rituais e as relações que se estabeleciam
entre eles e os colonizadores (Figura 1). Pires (2013, p. 21) conta sobre Staden:

[...] apesar de ser um aventureiro alemão, portanto, sem planos de permanecer


em solo brasileiro como os portugueses e os franceses, contribuiu com as suas
obras para a formação das representações sobre a guerra índia, primeiramente
na capitania de Pernambuco e depois na de São Vicente, onde, ambas as vezes,
atuou nos conflitos armados do lado dos lusos contra seus inimigos índios
e normandos. Na segunda experiência, em São Vicente, permaneceu meses
como cativo de guerra dos tupinambá, aliados dos franceses, e, libertado por
uma tribo inimiga de seus algozes, não foi sacrificado no ritual antropofágico.

Assim, por meio das representações dos relatos dos viajantes é que a popu-
lação acessava a cultura de sociedades distantes e mesmo de culturas que não
mais existiam. Muitas vezes, essas descrições registradas pelos viajantes eram
caricatas, exageradas e até mesmo fantasiosas, mas como era a única maneira de
conhecer o que faziam outras culturas, esses relatos eram bastante difundidos.

Figura 1. Desenho de Hans Staden sobre práticas canibais dos indígenas.


Fonte: Caderno de Nosferatu (2010, documento on-line).
Etnografia 3

Contudo, no século XXI, a distância ficou menor, e a tecnologia nos


permite viajar, tornando mais fácil conhecer outras sociedades. Então,
em vez de lermos sobre o outro, vamos nós mesmos observar, analisar
e compreender aspectos de outras culturas. Assim, cabe perceber essas
diferenças entre as culturas e refletir sobre elas. Para ir além de uma obser-
vação curiosa e de fato estudar os aspectos culturais de outras sociedades,
podemos utilizar estratégias e metodologias que nos permitam compreender
as explicações correntes naquela sociedade que observamos. Por isso, de
forma mais rápida, mais explícita e mais sistemática, buscamos formas
científicas de realizar esses estudos.
Uma dessas formas é a etnografia. Na etimologia da palavra, do grego,
etno é povo e grafia é escrita; logo, o significado da palavra pressupõe
escrever sobre um povo. Laplantine (2003) enfoca que a etnografia permite
a descrição das formas de vida de determinados grupos sociais, fazendo
com que estudemos aspectos culturais diferentes dos nossos de forma
mais atenta. Como evidencia Oliveira (2000), agora não conheceremos a
cultura do outro por meio dos livros, mas será o nosso próprio corpo que
acessará outras sociedades.
Segundo explica Laplantine (2003, p. 57), “[...] a etnografia propriamente
dita só começa a existir a partir do momento no qual se percebe que o pes-
quisador deve ele mesmo efetuar no campo sua própria pesquisa, e que esse
trabalho de observação direta é parte integrante da pesquisa [...]”. Assim,
dá-se outra maneira de conhecer o outro, mais ativa, mais pessoalizada e mais
interpretativa sobre quem são, o que fazem e como pensam os membros de
outras sociedades existentes.

O pesquisador compreende a partir desse momento que ele deve deixar seu
gabinete de trabalho para ir compartilhar a intimidade dos que devem ser
considerados não mais como informadores a serem questionados, e sim como
hóspedes que o recebem e mestres que o ensinam. Ele aprende então, como
aluno atento, não apenas a viver entre eles, mas a viver como eles, a falar sua
língua e a pensar nessa língua, a sentir suas próprias emoções dentro dele
mesmo. Trata-se, como podemos ver, de condições de estudo radicalmente
diferentes das que conheciam o viajante do século XVIII e até o missionário
ou o administrador do século XIX, residindo geralmente fora da sociedade
indígena e obtendo informações por intermédio de tradutores e informadores:
este último termo merece ser repetido. Em suma, a antropologia se torna pela
primeira vez uma atividade ao ar livre, levada, como diz Malinowski, “ao vivo”,
em uma “natureza imensa, virgem e aberta” (LAPLANTINE, 2003, p. 57–58).
4 Etnografia

Indica-se a leitura de uma bela etnografia realizada em um contexto urbano, a fim de


compreender que a realização da etnografia não se dá apenas entre sociedades que
vivem longe de nós, mas também entre as mais próximas. Uma dessas etnografias
clássicas é o livro Sociedade de Esquina, no qual William Foote Whyte, conduzido por um
informante-chave, estuda determinado local — que ele chamou de Corneville — para
compreender o cotidiano de um bairro da periferia de uma grande cidade.

Entretanto, essa observação do pesquisador não deve ser feita de forma


passiva, apenas olhando para os membros de uma cultura, sem interagir com
o que acontece; pelo contrário, ele vai participar, conversar, viver e também
contar sobre si para esses nativos. Em outras palavras, propõe-se outra forma
de se relacionar com o outro, e essa relação estabelecida entre pesquisador
e nativos é levada em consideração na qualidade dos dados coletados e na
análise feita sobre essa outra sociedade.
Logo, realiza-se uma observação participante, na qual os membros da
cultura observada precisam estar de acordo com a presença daquele que vai
realizar a etnografia, como explica Oliveira (2000, p. 24):

[…] aquilo que os antropólogos chamam de "observação participante" […]


significa dizer que o pesquisador assume um papel perfeitamente digerível
pela sociedade observada, a ponto de viabilizar uma aceitação senão ótima
pelos membros daquela sociedade, pelo menos afável, de moda a não impedir
a necessária interação.

Podemos destacar dois antropólogos que iniciaram esse estudo e discu-


tiram a importância da etnografia em seus trabalhos de campo por meio da
antropologia. Um deles é Franz Boas (1858–1942) e Bronislaw Malinowski
(1884–1942). Laplantine (2003, p. 58–59) se dedica a elucidar as contribuições
de cada um deles; sobre Boas, ele afirma:

No campo, ensina Boas, tudo deve ser anotado: desde os materiais consti-
tutivos das casas até as notas das melodias cantadas pelos Esquimós, e isso
detalhadamente, e no detalhe do detalhe. Tudo deve ser objeto da descrição
mais meticulosa, da retranscrição mais fiel... [Para ele] Apenas o antropólo-
go pode elaborar uma monografia, isto é, dar conta cientificamente de uma
microssociedade, apreendida em sua totalidade e considerada em sua auto-
nomia teórica. Pela primeira vez, o teórico e o observador estão finalmente
Etnografia 5

reunidos. Assistimos ao nascimento de uma verdadeira etnografia profissional


que não se contenta mais em coletar materiais à maneira dos antiquários,
mas procura detectar o que faz a unidade da cultura que se expressa através
desses diferentes materiais.

Já sobre Malinowski (Figura 2), Laplantine (2003, p. 60–61) destaca o


posicionamento do pesquisador em meios aos nativos e as suas contribuições
para o campo de estudo:

Se não foi o primeiro a conduzir cientificamente uma experiência etnográfica,


isto é, em primeiro lugar, a viver com as populações que estudava e a recolher
seus materiais de seus idiomas, radicalizou essa compreensão por dentro, e para
isso, procurou romper ao máximo os contatos com o mundo europeu. […] Nin-
guém antes dele tinha se esforçado em penetrar tanto, como ele fez no decorrer
de duas estadias sucessivas nas ilhas Trobriand, na mentalidade dos outros, e
em compreender de dentro, por uma verdadeira busca de despersonalização, o
que sentem os homens e as mulheres que pertencem a uma cultura que não é
nossa. […] Malinowski considera que uma sociedade deve ser estudada enquanto
uma totalidade, tal como funciona no momento mesmo onde a observamos.

Figura 2. Malinowski entre os Trobriandeses.


Fonte: Etnografando (2012, documento on-line).

Assim, temos o contexto da discussão sobre o conceito de etnografia e


podemos avançar na nossa discussão, a fim de compreendermos como esse
conceito é utilizado no âmbito da antropologia — e até mesmo além dessa
disciplina.
6 Etnografia

Etnografia dentro da antropologia


Numa primeira discussão, devemos compreender que a antropologia pretende
levar em consideração a experiência do pesquisador a partir do trabalho de
campo que ele realizou. Então, o pesquisador vai estar diante do que é dife-
rente, do que é estranho e até do que assusta. Porém, essa postura que abarca
a concepção de alteridade constitui questão central na disciplina estudada.
Goldman (2005, p. 163) reforça esse ponto:

A antropologia é um dos lugares destinados pela razão ocidental para pensar


a diferença ou para explicar racionalmente a razão ou desrazão dos outros.
Desse ponto de vista, ela é, sem dúvida, parte do trabalho milenar da razão
ocidental para controlar e excluir a diferença. Por outro lado, entretanto, o
próprio fato de dedicar-se à diferença nunca é desprovido de consequências e,
em lugar de simplesmente digeri-la, a antropologia foi capaz de valorizar essa
diferença, sempre foi capaz de ao menos tentar apreendê-la sem suprimi-la,
pensá-la em si mesma, como ponto de apoio para impulsionar o pensamento,
não como objeto a ser simplesmente explicado — explicação que, aliás, acaba
por deter a própria marcha do pensamento.

Para aprofundar a discussão sobre a etnografia utilizada para a produção de dados


na pesquisa científica, leia o artigo Etnografia: Saberes e Práticas, de Ana Luiza Carvalho
da Rocha e Cornelia Eckert.

https://goo.gl/LRD2UJ

Assim, a disciplina de antropologia compreende a etnografia como parte


do processo de pesquisa que possibilita estudar o outro a partir de critérios
científicos. Como explica Mattos (2011, p. 53), a:

[...] etnografia é a especialidade da antropologia, que tem por fim o estudo e


a descrição dos povos, sua língua, raça, religião, e manifestações materiais
de suas atividades, é parte ou disciplina integrante da etnologia é a forma de
descrição da cultura material de um determinado povo [...].
Etnografia 7

Então, podemos compreender a etnografia como o exercício de olhar sobre


o outro que nos permite compreender de forma sistemática aspectos culturais
intrínsecos que, numa observação rápida, seriam difíceis de apreender. Para
reforçar essa ideia, Lévi-Strauss evidencia a etnografia como parte do trabalho
do antropólogo:

É por uma razão muito profunda, que se prende à própria natureza da dis-
ciplina e ao caráter distintivo de seu objeto, que o antropólogo necessita da
experiência do campo. Para ele, ela não é nem um objetivo de sua profissão,
nem um remate de sua cultura, nem uma aprendizagem técnica. Representa
um momento crucial de sua educação, antes do qual ele poderá possuir conhe-
cimentos descontínuos que jamais formarão um todo, e após o qual, somente,
estes conhecimentos se "prenderão" num conjunto orgânico e adquirirão um
sentido que lhes faltava anteriormente (LÉVI-STRAUSS, 1991, p. 415–416).

Tendo a etnografia como parte crucial da aprendizagem do estudo de


outras culturas, cabe ter noção da dimensão que esse conceito alcança em
termos da pesquisa científica. Peirano (2014, p. 383) se questiona critica-
mente sobre a identificação da etnografia como apenas um método, e destaca
que as produções de monografias sobre aspectos de outras culturas “[...] não
são resultado simplesmente de ‘métodos etnográficos’; elas são formulações
teórico-etnográficas. Etnografia não é método; toda etnografia é também teoria
[...]”. Assim, não está limitada apenas ao antropólogo a prática etnográfica,
mas também não cabe difundir a etnografia como simples metodologia que
se aplica a qualquer contexto de pesquisa. Como diz a antropóloga, é preciso
fazer uma boa etnografia:

A primeira e mais importante qualidade de uma boa etnografia reside, então,


em ultrapassar o senso comum quanto aos usos da linguagem. Se o trabalho de
campo se faz pelo diálogo vivido que, depois, é revelado por meio da escrita, é
necessário ultrapassar o senso comum ocidental que acredita que a linguagem
é basicamente referencial. Que ela apenas "diz" e "descreve", com base na
relação entre uma palavra e uma coisa. Ao contrário, palavras fazem coisas,
trazem consequências, realizam tarefas, comunicam e produzem resultados.
E palavras não são o único meio de comunicação: silêncios comunicam. Da
mesma maneira, os outros sentidos (olfato, visão, espaço, tato) têm implicações
que é necessário avaliar e analisar. Dito de outra forma, é preciso colocar no
texto — em palavras sequenciais, em frases que se seguem umas às outras,
em parágrafos e capítulos — o que foi ação vivida. Este talvez seja um dos
maiores desafios da etnografia — e não há receitas preestabelecidas de como
fazê-lo (PEIRANO, 2014, p. 386).
8 Etnografia

Assim, somente exercitando e praticando a etnografia é que o pesquisador


vai aperfeiçoando e percebendo questões que não estavam evidentes na pri-
meira observação. Desse modo, etnografia é muito mais que escrever sobre
o outro, porque considera um estudo complexo, uma análise cuidadosa e uma
interpretação dos dados que está baseada em teoria precedentes para chegar
a uma conclusão que contribua com o conhecimento científico.

Para além da escrita, o antropólogo pode apresentar nas monografias os registros


visuais feitos durante o trabalho de campo, a fim de explicitar aspectos culturais de
outras sociedades. Muitas vezes, essas imagens não são apenas para “ilustrar” o que é
dito, mas também compõem a argumentação teórica do que é analisado sobre aquela
cultura. Um dos exemplos mais clássicos na antropologia é a obra Balinese Character,
de Gregory Bateson e Margaret Mead, que apresentaram um estudo minucioso de
diversas práticas culturais entre os balineses.

Por isso, podemos imaginar que o produto final de análise da observação


participante é a monografia, pois “[...] é seguramente no ato de escrever,
portanto na configuração final do produto desse trabalho, que a questão do
conhecimento se torna tanto ou mais crítica [...]” (OLIVEIRA, 2000, p. 25).
Ao juntar as partes de um quebra-cabeça, o todo toma forma. Essa totalidade
não deve pretender retratar a verdade única e absoluta, mas apenas apresentar
uma versão interpretativa sobre o grupo estudado por quem realizou a pesquisa
— podendo seus leitores concordarem ou não.
Na composição desse material final, cabe lembrar que essa a escrita pode
ser composta de outros materiais (organograma, desenhos, fotos, sons, vídeos)
que ajudem o leitor a compreender a argumentação teórico-metodológica
apresentada pelo etnógrafo.

Estratégias e objetivos da etnografia


Para pesquisarmos a cultura do outro, vamos refletir sobre quais estratégias
são relevantes durante o processo da etnografia. Inicialmente, Oliveira (2000,
p. 25) nos lembra que “[...] olhar e o ouvir podem ser considerados como os
atos cognitivos mais preliminares no trabalho de campo [...]”. Podemos pensar
Etnografia 9

que, para olhar o outro, precisamos lançar mão de lentes sociológicas, a fim


de poder ver aquilo que não veríamos com um olhar banal. Assim, esse olhar
e essa escuta devem estar atentos ao que se deseja compreender durante a
observação participante.
Geertz (1978) evidencia o que pode estar contido na proposta de etnografia,
de modo que o pesquisador tenha um quadro mais completo do grupo social
que estuda. Durante a observação participante, ele não só observa, mas também
cria estratégias sistemáticas de como registrar aspectos da vida cultural de
quem é observado:

O que o etnógrafo enfrenta, de fato — a não ser quando (como deve fazer,
naturalmente) está seguindo as rotinas mais automatizadas de coletar dados
— é uma multiplicidade de estruturas conceptuais complexas, muitas delas
sobrepostas ou amarradas umas às outras, que são simultaneamente estra-
nhas irregulares e inexplícitas, e que ele tem que, de alguma forma, primeiro
aprender e depois apresentar. E isso é verdade em todos os níveis de atividade
do seu trabalho de campo, mesmo o mais rotineiro: entrevistar informantes,
observar rituais, deduzir os termos de parentesco, traçar as linhas de proprie-
dade, fazer o censo doméstico... escrever seu diário. Fazer etnografia é como
tentar ler (no sentido de "construir uma leitura de") um manuscrito estranho,
desbotado, cheio de elipses, incoerências, emendas suspeitas e comentários
tendenciosos, escrito não com os sinais convencionais do som, mas com
exemplos transitórios do comportamento modelado (GEERTZ, 1978, p. 20).

Assim, para compreender o que parecem incoerências, comentários banais


e sinais não identificáveis, os registros em cadernos de campos — também
chamados de diários — são essenciais e servem para descrever momentos,
explicitar detalhes, apresentar aspectos culturais e refletir sobre tudo o que foi
visto e falado durante a interação com os membros da sociedade pesquisada.
Weber (2009, p. 157) explica que o diário de campo:

[...] é um instrumento que o pesquisador se dedica a produzir dia após dia ao


longo de toda a experiência etnográfica. É uma técnica que tem por base o
exercício da observação direta dos comportamentos culturais de um grupo
social, método que se caracteriza por uma investigação singular [...].

Em conjunto com o diário de campo, cabe fazer entrevistas semiestru-


turadas (aquelas com questões abertas), para captar informações em maior
profundidade, que respondem aos objetivos da pesquisa. Duarte (204, p. 216)
nos provoca a pensar o que seria uma boa entrevista:
10 Etnografia

A realização de uma boa entrevista exige: a) que o pesquisador tenha muito


bem definidos os objetivos de sua pesquisa (e introjetados — não é suficiente
que eles estejam bem definidos apenas “no papel”); b) que ele conheça, com
alguma profundidade, o contexto em que pretende realizar sua investigação (a
experiência pessoal, conversas com pessoas que participam daquele universo
— egos focais/informantes privilegiados —, leitura de estudos precedentes e
uma cuidadosa revisão bibliográfica são requisitos fundamentais para a entrada
do pesquisador no campo); c) a introjeção, pelo entrevistador, do roteiro da
entrevista (fazer uma entrevista “não-válida” com o roteiro é fundamental
para evitar “engasgos” no momento da realização das entrevistas válidas);
d) segurança e auto-confiança; e) algum nível de informalidade, sem jamais
perder de vista os objetivos que levaram a buscar aquele sujeito específico
como fonte de material empírico para sua investigação.

Entretanto, é preciso ter cuidado com o discurso do pesquisado durante


a entrevista semiestruturada. Este, geralmente num contexto mais formal de
pesquisa, acaba dizendo o discurso oficial, o que é esperado, o que ele foi
treinado para dizer, quando o que o pesquisador quer muitas vezes é justamente
o que escapa desse discurso e revela a situação do cotidiano. Assim, também é
preciso considerar as conversas informais como fonte preciosa de informações,
pois é nesses momentos que podemos comparar o discurso oficial com o que
acontece na prática. Com essas ideias em mente, Zaluar (2009, p. 577) conta
como conseguiu estudar o “mundo do crime”:

O objetivo era entender os processos sociais existentes no tráfico, ou seja,


a dinâmica das relações entre fornecedores de armas e drogas, traficantes
e usuários, assim como as formações subjetivas reveladas no simbolismo e
nos rituais das interações entre os atores. Os contatos para entrevistas foram
feitos seguindo a rede de conhecidos dos usuários ou nos locais de lazer
escolhidos para a observação silenciosa. Desse modo, muitas definições e
imagens e vários significados contextuais do crime, do desvio, da droga,
da polícia, do bairro, das diversas atividades de lazer, das relações entre os
usuários, entre eles e os traficantes, entre todos e a polícia foram transmitidos
pela observação direta, por conversas informais depois registradas e pelos
relatos de experiências de nossos informantes.

Além dessas estratégias, também é pertinente para o trabalho de campo a


construção do método genealógico. Ele permite a compreensão das formações
familiares de uma sociedade, evidenciando os povos ascendentes, quem é filho
de quem, se a é cultura patrilinear ou matrilenar, e como se dão casamentos
entre grupos sociais. Rivers (1991) defendeu o uso dessa ferramenta para
os estudos de parentescos e elucidou que essa técnica elevaria o status das
Etnografia 11

ciências sociais como estudos de ciências biológicas, pois a sua construção


seguiria critérios e padrões que permitiriam um estudo científico sobre as
culturas pesquisadas.
Outra estratégia que pode garantir a inclusão num grupo social diferente
do grupo do pesquisador é a aproximação de um informante-chave. Em es-
sência, trata-se de alguém que vai introduzir o pesquisador no cotidiano da
outra cultura, explicar rapidamente o que ele não entende, apresentar pessoas
importantes para o objetivo da pesquisa, entre outros motivos. Essa abordagem
faz com que o pesquisador desenvolva um vínculo maior com essa pessoa.

Os informantes chaves são participantes que possuem conhecimentos, status,


destrezas comunicativas especiais e estão dispostos a colaborar com o inves-
tigador. Ajudam ao investigador a vencer, superar as barreiras que aparecem
no seu caminho. Tem acesso a determinados subgrupos e pessoas, que, por
outra via seria difícil alcançar. Os atores chaves devem ser escolhidos com
cuidado tendo em consideração seu nível adequado de representatividade
em relação ao grupo completo de informantes chaves. Recomenda-se que as
informações obtidas dos informantes chaves sejam claramente especificadas
e diferenciadas como nas notas de campo (LÓPEZ, 1999, p. 49).

Assim, vamos percebendo que as estratégias do pesquisador correspondem


aos objetivos da etnografia. Para coletar dados que respondam às perguntas
gerais e específicas da pesquisa, é preciso que o pesquisador utilize algumas
dessas técnicas. Entretanto, sabe-se que não há formulas a serem seguidas, pois
cada pesquisa tem suas particularidades, como evidencia Mattos (2011, p. 50):

A etnografia é um processo guiado preponderantemente pelo senso questio-


nador do etnógrafo. Deste modo, a utilização de técnicas e procedimentos
etnográficos, não segue padrões rígidos ou pré-determinados, mas sim, o senso
que o etnógrafo desenvolve a partir do trabalho de campo no contexto social
da pesquisa. Os instrumentos de coleta e análise utilizados nesta abordagem
de pesquisa, muitas vezes, têm que ser formuladas ou recriadas para atender
à realidade do trabalho de campo. Assim, na maioria das vezes, o processo
de pesquisa etnográfica será determinado explícita ou implicitamente pelas
questões propostas pelo pesquisador.

Por último, Mattos (2011) ainda sistematiza três questões da etnografia


que contribuem com o campo da pesquisa qualitativa:

1. A preocupação com uma análise holística ou dialética da cultura, isto


é, a cultura não é vista como um mero reflexo de forças estruturais da
12 Etnografia

sociedade, mas como um sistema de significados mediadores entre as


estruturas sociais e as ações e interações humanas.
2. A introdução dos atores sociais com uma participação ativa e dinâmica
no processo modificador das estruturas sociais.
3. Apresentação das interações e evidência dos processos engendrados e
de difícil visibilidade para os sujeitos que dela fazem parte.

Logo, a etnografia nos permites conhecer outra cultura de forma mais


aprofundada, pois se utiliza de estratégias específicas, de acordo com os
objetivos da pesquisa. Nesse sentido, para conhecer os grupos sociais que
são diferentes de nós, não basta chegarmos até eles: precisamos ter um olhar
mais cuidadoso e atenção redobrada, e também fazer notas sobre aquilo que
queremos compreender. Com isso, vamos explicitando os procedimentos da
pesquisa científica e reconhecendo essas estratégias dentro de um arcabouço
teórico-metodológico guiado pela disciplina da antropologia.

O livro Entre saias justas e jogos de cintura, organizado por Soraya Fleischer e Alinne
Bonetti, reúne artigos sobre os encontros dos pesquisadores e seus pesquisados.
Cada um deles conta sobre as suas experiências etnográficas, apresenta situações
inesperadas em campo e mesmo soluções surpreendentes durante a etnografia. É um
livro atual, que apresenta pesquisas contemporâneas e que motiva o leitor a perceber
que a etnografia é desafiadora e prazerosa.

https://goo.gl/sgd9SZ

CADERNO DE NOSFERATU. Antrpofágia. 2010. Disponível em: <https://cadernodenos-


feratu.wordpress.com/2010/07/07/antropofagi/>. Acesso em: 31 out. 2018.
DUARTE, R. Entrevistas em pesquisas qualitativas. Educar UFPRS, Curitiba, n. 24, p.
213-225, 2004.
ETNOGRAFANDO. Malinowski e sua contribuição à antropologia. 2012. Disponível em:
<http://etnografandoantropologia.blogspot.com/2012/05/malinowski-e-sua-contri-
buicao.html>. Acesso em: 31 out. 2018.
Etnografia 13

GEERTZ, C. A interpretação das culturas. Rio de Janeiro: Zahar, 1978.


GOLDMAN, M. Jeanne Favret-Saada: os afetos, a etnografia. Cadernos de Campo, São
Paulo, v. 13, n. 13, p. 149-153, 2005.
LAPLANTINE, F. Aprender antropologia. São Paulo: Brasiliense, 2003.
LÉVI-STRAUSS, C. Antropologia estrutural. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 1991.
LÓPEZ, G. L. O método etnográfico como um paradigma científico e sua aplicação
na pesquisa. Textura: Revista de Educação e Letras, Canoas, v. 1, n. 1, p. 45-50, 1999.
MATTOS, C. L. G. A abordagem etnográfica na investigação científica. In: MATTOS, C. L. G.;
CASTRO, P. A. (Org.). Etnografia e educação: conceitos e usos. Campina Grande: EDUEPB, 2011.
OLIVEIRA, R. C. O trabalho do antropólogo. 2. ed. São Paulo: Unesp, 2000.
PEIRANO, M. Etnografia não é método. Horizontes Antropológicos, Porto Alegre, v. 20,
n. 42, p. 377-391, jul./dez. 2014.
PIRES, V. Uma breve análise acerca da atuação interétnica dos indígenas da costa
brasileira sob a pena de viajantes europeus (1500-1627) História. Revista da Faculdade
de Letras: História, Porto, v. 3, n. 1, p. 9-28, 2013.
RIVERS, W. H. O método genealógico na pesquisa antropológica. In: CARDOSO DE
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WEBER, F. A entrevista, a pesquisa e o íntimo, ou: por que censurar seu diário de campo?
Horizontes Antropológicos, Porto Alegre, ano 15, n. 32, p. 157-170, 2009.
ZALUAR, A. Pesquisando no perigo: etnografias voluntárias e não acidentais. Mana,
Rio de Janeiro, v. 15, n. 2, p. 557-584, out. 2009.

Leituras recomendadas
BATESON, G.; MEAD, M. Balinese character: a photographic anlysis. 1942. Disponível em:
<https://archive.org/details/BatesonGregoryMeadMargaretBalineseCharacterAPhoto-
graphicAnalysis1942/page/n1>. Acesso em: 31 out. 2018.
CARDOSO, R. C. L. Aventuras de antropólogos em campo ou como escapar das ar-
madilhas do método. In: CARDOSO, R. C. L. A aventura antropológica. 2. ed. São Paulo:
Paz e Terra, 1988. p. 95-106.
DAMATTA, R. Relativizando: uma introdução à antropologia social. Petrópolis: Vozes, 1981.
PALERMO, E. G.; TOZZINI, M. A. Resenha. Campos, v. 11, n. 2, p. 137-142, 2010. Disponível
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ROCHA, A. L. C.; ECKERT, C. Etnografia: saberes e práticas. Iluminuras, Porto Alegre, v. 9,
n. 21, 2008. Disponível em: <https://seer.ufrgs.br/iluminuras/article/view/9301/5371>.
Acesso em: 31 out. 2018.
VELHO, G. Observando o Familiar. In: NUNES, E. (Org.). A aventura sociológica. Rio de
Janeiro: Zahar, 1978.
Conteúdo:
ANTROPOLOGIA
E CULTURA

Priscila Farfan Barroso


Revisão técnica:

Guilherme Marin
Bacharel em Filosofia
Mestre em Sociologia da Educação

B277a Barroso, Priscila Farfan.


Antropologia e cultura / Priscila Farfan Barroso, Wilian
Junior Bonete, Ronaldo Queiroz de Morais Queiroz ;
[revisão técnica: Guilherme Marin]. – Porto Alegre:
SAGAH, 2017.
218 p. : il ; 22,5 cm.

ISBN 978-85-9502-184-6

1. Antropologia. 2. Sociologia. 3. Cultura. I. Bonete,


Wilian. II.Queiroz, Ronaldo Queiroz de Morais. III.Título.

CDU 31

Catalogação na publicação: Karin Lorien Menoncin CRB-10/2147

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Cultura
Objetivos de aprendizagem
Ao final deste texto, você deve apresentar os seguintes aprendizados:

„„ Reconhecer o que é a cultura.


„„ Entender como uma cultura se desenvolve.
„„ Identificar o papel da cultura na antropologia.

Introdução
Neste capítulo, discutiremos o que é cultura, como se aborda esse conceito
e a sua relação com a antropologia.

Introdução à cultura
O que você entende por cultura? Você acha que todo mundo tem cultura? Ou
cultura é só o que se aprende na escola? Você precisa compreender que a cultura
não é só o que se aprende na escola. Todo mundo tem cultura, porque a cultura
é transmitida de geração a geração, de pessoa a pessoa, como herança social.
É a partir da cultura que os seres humanos convivem e aprendem a habitar
o mundo em que vivem. Assim, o homem não só passa por uma aprendizagem
cultural, através do processo de socialização, como também pode transmitir
aspectos culturais ao grupo social. Símbolos e linguagens são compartilha-
dos e compreendidos como herança social – e não como herança biológica/
genética – pelos membros de uma mesma comunidade, de modo que esses
elementos identificadores da cultura são considerados como normas e regras
fundamentais para sobreviver em uma sociedade.

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38 Cultura

Figura 1. Cultura africana


Fonte: Cultura africana (2016).

O estudo sobre a cultura pode variar de tempos em tempos, de autor para


autor, de paradigma para paradigma. Sendo assim, podemos dizer que é por
meio desse conceito que os antropólogos estudam o “outro”. O antropólogo
evolucionista Tylor (1920, p. 1) definiu cultura, em 1871, como “aquele todo
complexo que inclui conhecimento, crença, arte, moral, direito, costume e
outras capacidades e hábitos adquiridos pelo homem como membro de uma
sociedade”. Com o tempo, outros autores vão problematizando essa noção
totalizante de cultura, tornando-a mais interpretativa, mais parcial, mais
polissêmica, saindo da ideia do todo para apresentar feições da cultura.
De qualquer modo, podemos dizer que a cultura se “manifesta por meio
de diversos sistemas” (DIAS, 2010, p. 67) – como o sistema de valores, o de
normas, o de ideologias, o de comportamentos, entre outros – dentro de um
território específico, em determinada comunidade cultural, e influencia os
indivíduos na concretização das suas ações sociais. É na interação entre os
indivíduos e os grupos que são construídos e negociados os parâmetros culturais
nos quais as ações sociais se realizam, constituindo, assim, uma identidade
própria para cada cultura, como é o caso da cultura brasileira.
Portanto, podemos dizer também que a cultura é exclusiva das socie-
dades humanas, já que, a partir dela, se pode traçar a diferenciação entre
o homem e o animal. O homem é o único ser vivo que tem capacidade
para o acúmulo cultural, tanto pela quantidade dessa produção, como
pela complexidade da sua natureza. Nesse sentido, a linguagem humana é
fundamental para a comunicação simbólica, e sua importância se dá não só

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Cultura 39

pelo idioma em questão, mas também pelos gestos, sotaques e expressões


locais que denotam a circulação de sentidos em determinada cultura.
Logo, tudo o que é criado pelas sociedades humanas, para satisfazer as
suas necessidades e viver em sociedade, seja tangível ou intangível, está
englobado na cultura.

Produzido em 1922, por Robert Flaherty, este filme documenta a vida de uma família inuíte
(esquimós) durante um ano. Por meio de imagens e da sequência de cenas inusitadas,
o cineasta apresenta o modo de vida de uma família que vive praticamente isolada

https://goo.gl/Qy5Yx4

Perspectivas de análise sobre a cultura


Para aprofundar a discussão, vamos nos inspirar nas características que en-
volvem a atuação do conceito de cultura apresentada por Roque Laraia (2001).
Ele propõe cinco pontos para mostrar a operação desse conceito, são eles: a
cultura condiciona a visão do homem, a cultura interfere no plano biológico,

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40 Cultura

os indivíduos participam diferentemente de sua cultura, a cultura tem uma


lógica própria e a cultura é dinâmica.

A cultura condiciona a visão do homem


Os seres humanos são incentivados a agir de acordo com as regras e os pa-
drões culturais que são estabelecidos pelos membros da cultura. Aqueles que
destoam do proposto são considerados desviantes. Para Becker (2008, p. 22),
o desvio é visto como “produto de uma transação que tem lugar entre algum
grupo social e alguém que é visto por esse grupo como infrator de uma regra”.
Ser considerado infrator gera consequências discriminatórias nas sociedades.
Por isso, de modo geral, o indivíduo é condicionado a agir de acordo com o
padrão esperado naquela cultura.
Ainda que os homens tenham uma configuração biológica comum, o modo
como eles acionam esses mecanismos biológicos para habitar o mundo é distinto.
Dentro das sociedades, cada um pode ocupar um papel social diferente, determi-
nado pelo convívio entre os membros da comunidade. Por isso, a aprendizagem
cultural não se dá como herança biológica e sim como herança social através
da imitação e reprodução, consciente e inconsciente, dos aspectos culturais que
permeiam o ambiente social no qual os indivíduos estão mergulhados.

A cultura interfere no plano biológico


A forma como vivem os seres humanos pode afetar o organismo biológico de
diferentes maneiras, gerando impactos nas necessidades fisiológicas básicas.
Um estilo de vida baseado em uma alimentação saudável pode fazer com
que os indivíduos vivam mais do que um estilo de vida de pouco sono, má
alimentação, muito trabalho. Entretanto, não nos alimentamos apenas para
satisfazer as necessidades, mas também por prazer. O que é considerado
prazeroso é construído no âmbito da cultura.
Ainda é preciso enfatizar que o que comemos não está condicionado apenas
ao desejo, mas passa pelo o que temos de acesso a alimento em nossa cultura.
O domínio da agricultura faz com que possamos ter alimentos nas diferentes
estações, mas não é em todos os países do mundo que as frutas são frescas,
acessíveis e baratas, por exemplo.
Nas sociedades contemporâneas, somos acostumados com os chamados
“fast foods”, que são comidas de preparo rápido, industrializadas, de baixo
valor nutricional, mas com alto valor calórico. A popularização desses produ-
tos, conjuntamente com o estilo de vida agitado, faz com que cada vez mais a

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Cultura 41

população consuma esse tipo de alimento, o que gera o aumento da prevalência


da obesidade e maior probabilidade de problemas de saúde.

Para ter um melhor entendimento quanto aos prejuízos dos “fast food”, você pode assistir
ao filme “Super Size me” de Morgan Spurlock, que se alimenta apenas de comida de fast
food durante um mês, para analisar os efeitos dessa dieta hipercalórica em seu corpo.

Os indivíduos participam diferentemente de sua


cultura
Inúmeras manifestações culturais acontecem em uma sociedade. No entanto,
os seus membros participam parcialmente de todo esse arcabouço cultural.
Ninguém consegue participar de tudo o que ocorre em sua cultura, justamente
porque existem condicionantes que os limitam, como, por exemplo, gênero,
idade, papel social, estilo de vida, entre outros. Conforme os indivíduos vão se
desenvolvendo após o nascimento, acessam regras e normas na sociedade que lhes
permitem participar de diferentes manifestações culturais. Na prática religiosa

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42 Cultura

do catolicismo, quando criança, alguns são batizados, depois fazem a comunhão


e somente com mais idade é que se pode realizar a cerimônia matrimonial.
Assim, os indivíduos carregam e reproduzem aspectos culturais diferentes
durante suas vivências, fazendo com que cada ser humano contenha em si
camadas de cultura. É importante que os indivíduos conheçam e participem
de alguns aspectos culturais que possibilitem a comunicação e articulação
com os outros membros da sociedade. Saber como agir e se comportar em
determinadas situações faz parte da convivência, ainda que essa seja uma
aprendizagem processual e nem sempre se aja como deveria.
O interesse pelo futebol, a prática de ir à praia ou mesmo acompanhar as
festas de carnaval são aspectos culturais que conformam a identidade brasileira.
No entanto, não são todos os brasileiros acessam, têm interesse ou participam
do que oferece culturalmente o país. Ou seja, mesmo que estejamos imersos
em uma cultura, temos uma participação relativa e parcial no que ela propõe.

A cultura tem uma lógica própria


Cada cultura tem a sua lógica própria, que revela um encadeamento de sentidos,
pensamentos e ações que conformam a especificidade das culturas em si, de
acordo com sua origem histórica e o território habitado. O que faz sentido
para os membros de uma comunidade pode não fazer nenhum sentido para
outra sociedade. Como nos diz Laraia (2001, p. 87), “A coerência de um hábito
cultural somente pode ser analisada a partir do sistema a que pertence”.
Como compreender as pinturas corporais entre os povos indígenas? Como
não se impressionar com as danças populares? Como interpretar a fé religiosa
nas diferentes sociedades? Como os indivíduos buscam os processos de cura
para suas enfermidades? Assim, para compreendermos a lógica de outra pes-
soa, temos de nos afastar da nossa lógica, ou pelo menos estabelecer relações
que permitam desvendar e acessar a explicação do outro individuo, sem as
referências da nossa própria lógica.

A cultura é dinâmica
A cultura não está parada. A todo momento, diversos elementos culturais
são reavaliados, conscientemente e inconscientemente, sendo que alguns são
descartados, outros reinventados. Você pode comparar como estavam vestidas
as pessoas nas fotos antigas guardadas no fundo da gaveta do armário com
as vestimentas atuais, de quando saímos na rua. Pode pensar nas músicas
da sua infância e nas músicas que tocam nas rádios hoje em dia. Analisar as

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Cultura 43

gírias e palavras faladas pelos seus parentes mais antigos em relação às gírias
que você fala com seus colegas. Essas mudanças e modificações se mantêm
momentaneamente até que novas transformações na cultura modifiquem-nas.
Podemos dizer que as mudanças culturais ocorrem de modo endógeno ou
exógeno. O modo endógeno pode ser decorrente do próprio sistema cultural,
a partir dos membros que participam dessa sociedade. O modo exógeno se dá
por meio de um contato cultural, com outros povos, que acaba interferindo
em práticas culturais estabelecidas antes do contato. As mudanças podem ser
específicas ou até mesmo modificar completamente os elementos culturais
que antes faziam sentido para aquela cultura. Assim, quando descrevemos
uma determinada cultura, para um estudo científico, temos de saber que ela
não permanece estática em relação ao seu modo de estar no mundo.

Sobre as mudanças culturais e de sentidos que, nos


centros das grandes cidades, ao mesmo tempo per-
mitiram a criação de espaços de confluência e trocas
musicais, de gostos e de populações, você pode ler
a reportagem abaixo:

https://goo.gl/2WqXEJ

O estudo antropológico sobre a cultura


Ao estarmos imersos em outra cultura, participamos e conhecemos o que faz
sentido apenas ali, e não em outro contexto cultural, como o de origem do
antropólogo. Assim, a antropologia não vai ser aquela que está do ponto de
vista do observador ou do ponto de vista do observado, mas será uma “prática
que surge em seu limite, ou melhor, em sua intersecção.” (LAPLANTINE,
2003, p. 158). Logo, atentos a essa intersecção, vamos compreendendo as
regras e normas da cultura de outro individuo, desvendando seus sentidos e
suas motivações, pois, como diz Kottak (2013, p. 43), “As culturas são sistemas
humanos de comportamento e pensamento, obedecem a leis naturais, podendo,
portanto, serem estudadas de modo científico” (Figura 2).

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44 Cultura

Figura 2. Malinowski e os trobriandeses.


Fonte: Duarte (2011).

Nesse estudo, ter critério e método é crucial para acessar e perceber elemen-
tos da cultura a serem interpretados, que não são tão evidentes ao estrangeiro.
Desde o início, partimos da ideia de que toda cultura é complexa, extremamente
rica e cheia de sentidos. Como diz Cuche (1999, p. 239), “Não há cultura que
não tenha significação para aqueles que nela se reconhecem. Os significados
como os significantes devem ser examinados com a maior atenção”. Por isso,
se você está disposto a estudar o homem e a sociedade em que ele vive, cer-
tamente vai abordar a discussão de cultura. Se deseja explicar os significados
dos acontecimentos sociais do mundo em que vivemos, passará pelo estudo de
seus elementos culturais. Se acompanha as mudanças culturais nas sociedades,
será necessário compreender as modificações culturais ao longo dos tempos.
E é buscando essas significações, expressas na cultura, que vamos reco-
nhecer as diferenças culturais. Isso é fundamental para um mundo que convive
com inúmeras culturas e sociedades, próximas, cada vez mais, umas das
outras, pelos avanços tecnológicos que se popularizam rapidamente mundo
afora. Pensar na cultura como um conceito antropológico, como propõe
Laraia (2001), torna-se chave para aprofundar o olhar sobre a sociedade, além
de possibilitar aplicar esse mesmo olhar em outras áreas do conhecimento,
como Educação, História, Políticas Públicas, entre outras.
Logo, o que se deseja é reconhecer a potência das categorias de análise
dessa disciplina para a compreensão dos homens em sociedade. E aqui, o
conceito de cultura possibilita uma virada epistemológica de pensar em nós
através do olhar do outro, de modo que, ao analisar a cultura deste individuo,

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Cultura 45

tendo a cultura do observador como referência, seja possível questionar nossos


próprios parâmetros culturais. Nesse sentido, para entender outras culturas, é
preciso aprofundar o entendimento da nossa própria cultura, e, por mais pro-
ximidade que tenhamos com ela, é necessário o esforço de avaliá-la pelo olhar
do estrangeiro, que suspende seu julgamento, participa e se deixa vivenciar a
cultura junto com outra pessoa.

Antropologia e Cultura_U1_C3.indd 45 17/11/2017 16:07:00


Cultura 47

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Antropologia e Cultura_U1_C3.indd 47 17/11/2017 16:07:01


ESTUDOS
CULTURAIS E
ANTROPOLÓGICOS

Priscila Farfan Barroso


Estudos culturais
Objetivos de aprendizagem
Ao final deste texto, você deve apresentar os seguintes aprendizados:

 Definir estudos culturais.


 Listar as ideias importantes que surgiram a partir dos estudos culturais.
 Relacionar os estudos culturais a questões contemporâneas.

Introdução
Neste capítulo, você vai ver como se deu o surgimento dos estudos
culturais e qual é o seu conceito. Assim, vai estudar a construção desse
conceito e também as ideias principais que podem ser usadas como
ferramentas de estudo nessa área. Para isso, você vai se debruçar sobre
três ideias. A primeira delas é a noção de cultura como um modo de en-
xergar outras sociedades. A segunda delas é o conceito de etnocentrismo,
que se refere ao modo como as pessoas percebem o outro. A última é a
noção de diversidade cultural, que tem a ver com a riqueza das formas
de existência no mundo.
Ao fim do capítulo, você vai ver a importância dos estudos culturais e
entender como eles podem ser aplicados a questões contemporâneas.

O que são os estudos culturais?


O mundo contemporâneo é diverso e composto por inúmeras sociedades.
Cada sociedade, por sua vez, age de maneiras específicas. Assim, ainda que
não se possa conhecer a fundo todas as sociedades, saber da existência de
culturas diferentes leva a uma compreensão de mundo mais plural e diversa.
Entretanto, para compreender o outro, primeiro é preciso compreender
a si mesmo. As pessoas nascem imersas numa cultura e é a partir dela que
conhecem o mundo ao seu redor. Como afirma Laraia (2001, p. 67), “[...] a
cultura é como uma lente através da qual o homem vê o mundo [...]”. Por isso,
você deve ter noção de que alguns aspectos de culturas diferentes da sua lhe
2 Estudos culturais

parecerão familiares e outros, muitos exóticos. Por isso, você deve ter cuidado
para respeitar aquilo que não conhece. Assim como você tem o direito de ser
quem é, as pessoas de outras culturas também o tem. Nesse sentido, é preciso
pensar em termos de direitos humanos e da pluralidade de formas de vida.
A existência de um indivíduo se dá em conjunto com outros membros da
sociedade em que ele vive. Tudo o que é produzido por eles expressa o que
pensam, o que fazem e o que deixam como legado. Portanto, a produção cultural
é um reflexo das manifestações sociais que as diferentes culturas constroem.
Nesse sentido, essas manifestações sociais se explicitam por meio das práticas
sociais. Como sintetiza Hall (1997, p. 33): “[...] toda prática social tem condições
culturais ou discursivas de existência. As práticas sociais, na medida em que
dependem do significado para funcionarem e produzirem efeitos, se situam
‘dentro do discurso’, são ‘discursivas’ [...]”. Assim, acessando essas práticas
sociais juntamente aos discursos que elas constroem sobre o mundo, você
pode apreender o que é relevante para outras sociedades e comparar isso com
o que é relevante para a sua realidade.
Mas como surge a preocupação de estudar outras culturas? E como é
possível estudar essas culturas de modo relevante? Está correto dizer que
os estudos culturais se constituíram como disciplina? E como suas ideias se
espalharam por outros domínios das ciências humanas e sociais? Como você
pode imaginar, não há uma única resposta para essas questões. Contudo,
existem algumas pistas para responder a essas e outras perguntas relevantes:

Os Estudos Culturais como campo de investigação se iniciaram após a Segunda


Guerra Mundial, tendo como marco conceitual o texto “Schools of English and
Contemporary Society” de Richard Hoggart, o primeiro diretor do Center for
Contemporary Cultural Studies (CCCS), da Universidade de Birmingham, que
descrevia sobre os antecedentes históricos e a contribuição para o estudo da
cultura e da comunicação do século XX. [...] Caracterizam-se por possibilitar
diferentes posições teóricas e políticas que partilham do compromisso de
analisar práticas culturais do ponto de vista das relações de poder. [...] Seus
métodos são ambíguos e podem ser considerados uma bricolagem. Por isso,
os delineamentos relacionados ao conceito de cultura transpõem os eixos da
erudição, das tradições artísticas ou de sua hierarquia, abrindo um leque de
sentidos amplos e versáteis para o tema. Abandona-se o pressuposto elitista,
privilegiando-se a adoção de leituras das populações e do senso comum [...]
No Brasil, os Estudos Culturais se estabeleceram em meados de 1990 [...]
(KRUSE et al., 2018, p. 2).

Ou seja, há a adoção e a difusão de certa maneira de olhar para aspectos de


outras culturas. Logo, essa reflexão está de acordo com o que propõe o próprio
Estudos culturais 3

Hall (1980, p. 7), quando diz que “Os estudos culturais não configuram uma
‘disciplina’ mas uma área onde diferentes disciplinas interatuam, visando ao
estudo de aspectos culturais da sociedade [...]”. Por isso, você está convidado a
estudar mais a fundo os estudos culturais a fim de compreender a importância
de conhecer outras culturas diferentes da sua.
Hennigen e Guareschi (2006) evidenciam que a proposição de Wittgenstein
para os estudos de linguagem foi determinante para se pensar a respeito dos
significados da convivência social. O que era considerado como natural nos
modos de vida começou a ser percebido como construído por uma discursi-
vidade. Assim, compreender os meandros discursivos permite acompanhar
as diversidades de expressões e manifestações humanas no mundo. Nesse
sentido, os discursos apresentariam o contexto cultural da sociedade em
questão e também a sua complexidade:

Os discursos podem ser entendidos como histórias que, encadeadas e enre-


dadas entre si, se complementam, se completam, se justificam e se impõem a
nós como regimes de verdade. Um regime de verdade é constituído por séries
discursivas, famílias cujos enunciados (verdadeiros e não verdadeiros) esta-
belecem o pensável como um campo de possibilidades fora do qual nada faz
sentido — pelo menos até que aí se estabeleça um outro regime de verdade.
Cada um de nós ocupa sempre uma posição numa rede discursiva de modo
a ser constantemente “bombardeado”, interpelado, por séries discursivas
cujos enunciados encadeiam-se a muitos e muitos outros enunciados. Esse
emaranhado de séries discursivas institui um conjunto de significados mais
ou menos estáveis que, ao longo de um período de tempo, funcionará como
um amplo domínio simbólico no qual e através do qual daremos sentido às
nossas vidas. É esse dar sentido que faz de nós uma espécie cultural (VEIGA-
-NETO, 2000, p. 56–57).

Portanto, acompanhar um discurso é como puxar um fio do emaranhado


de lã que tece a cultura na qual o indivíduo está. Desse modo, quando você
acompanha esse fio, pode desvendar questões inimagináveis da cultura do
outro. Por meio dessas questões, é possível acessar a riqueza das diferentes
existências que habitaram ou habitam o mundo.
Entretanto, não são somente os homens que constroem os discursos sobre
o mundo. Eles também são construídos por esses mesmos discursos. Veja:

Na perspectiva dos estudos culturais, não é o sujeito que produz as práticas de


significação, são elas que vão constituir os sujeitos. Cada indivíduo tornar-se-á
sujeito à medida que se tomar a partir de certas práticas de significação, assim,
estará posicionado na rede discursiva de uma determinada forma. As práticas
4 Estudos culturais

de significação emergem de uma determinada episteme, que cria regimes de


verdade. Contudo, as práticas de significação somente se constituem como
tal à medida que são tomadas como verdades. […] Isso acontece segundo
uma contingência histórica e cultural, pois nessa perspectiva opera-se com
um sujeito que nunca é idêntico a si mesmo ao longo do tempo; ao contrário,
ele guarda uma abertura para o tempo, tempo histórico que o vai posicionar
na diferença e não no mesmo (HENNIGEN; GUARESCHI, 2006, p. 66).

Portanto, estudar os indivíduos que atuam em determinada sociedade


possibilita acessar a gama de artefatos culturais disponíveis, bem como os
significados que fazem sentido entre esses indivíduos, ainda que esses signifi-
cados se transformem com o passar do tempo. Nesse emaranhado de fios que
apresentam a cultura do outro, você vai conhecendo outros modos de existir
e também refletindo sobre o seu próprio modo de existência.

Principais ideias dos estudos culturais


Para compreender melhor o que os estudos culturais propõem, é interessante
você conhecer algumas ideias principais que orientam o estudo do outro. Você
deve ter em mente que estudar outras sociedades permite pensar no próprio
conceito de cultura. Isso acontece pois esse estudo “[...] parte do processo geral
que cria convenções e instituições, pelas quais os significados a que se atribui
valor na comunidade são compartilhados e ativados [...]” (WILLIAMS, 1969,
p. 55). Ou seja, compreender o conceito de cultura também possibilita olhar
para as significações que são compartilhadas entre os membros das sociedades.
Assim, considere esta definição de Cevasco (2003, p. 139):

[...] uma cultura em comum seria aquela continuamente redefinida pela prá-
tica de todos os seus membros, e não uma na qual o que tem valor cultural é
produzido por poucos e vivido passivamente pela maioria. Trata-se de uma
visão de cultura inseparável de uma visão de mudança social radical e que
exige uma ética de responsabilidade comum, participação democrática de
todos em todos os níveis da vida social e acesso igualitário às formas e meios
de criação cultural.

Por isso, ao conviver com membros de outra cultura, você aprende quais
práticas sociais são relevantes em seu meio social, quais motivações são perti-
nentes para aquelas pessoas, como elas resolvem os seus problemas cotidianos,
como se comunicam e se expressam diante do mundo, entre outros aspectos.
Estudos culturais 5

Laraia (2001) destaca alguns aspectos relacionados à cultura. Você deve


considerá-los em seu estudo sobre o tema. Veja a seguir.

a) A cultura condiciona a visão de mundo do homem, pois desde que


ele nasce convive com membros da sua cultura, que ensinam a ele
como se comportar e a ler o mundo à sua volta. Mas, se uma pessoa
vai morar em outro país, por exemplo, também pode aprender a viver
nesse outro contexto.
b) A cultura interfere no plano biológico, já que o que você come, o modo
como se protege do frio e do calor e a maneira como se relaciona com
os outros membros podem desencadear doenças ou mesmo aumentar
a sua qualidade de vida.
c) Os indivíduos participam diferentemente de sua cultura. Como cada
indivíduo assume uma posição na sociedade em que vive, acessa deter-
minados elementos vinculados a tal posição. Por exemplo, um sacerdote
tem acesso ao mundo religioso da sua cultura de modo totalmente
diferente de um simples fiel.
d) A cultura tem uma lógica própria, ou seja, cada sociedade explica suas
questões sobre o mundo de forma particular. Por exemplo, a vaca na
Índia é sagrada e não se pode comê-la. Já em outros países, a carne
de vaca é consumida diariamente pelos membros da sociedade sem
maiores temores.
e) A cultura é dinâmica, pois ela não é estática. A cultura dos esquimós
dos anos 1920 pode ser bem diferente daquela que eles cultivam hoje.
Por exemplo, o próprio iglu, que é a casa deles, não é mais feito de
gelo, e sim de madeira.

Para compreender a relação entre quem pesquisa e quem é pesquisado, assista ao


documentário Pierre Fatumbi Verger: mensageiro entre dois mundos (1998), de Lula Buar-
que. Esse filme, disponível no link a seguir, mostra a relação de Buarque, que também é
antropólogo, com a cultura brasileira. Ao mesmo tempo em que fotografa, etnografa
e observa o outro, ele se encanta, se apaixona e se sente um pouco pertencente a
outras culturas.

https://goo.gl/vCTsAe
6 Estudos culturais

Outra ideia relacionada aos estudos culturais é a noção de etnocentrismo.


Segundo Flores (2008, p. 5):

A palavra etnocentrismo apareceu no início do século 20, através do soció-


logo americano William G. Summer, com o significado que pode ser assim
exposto: o nosso grupo é o centro de todas as coisas e os demais grupos
são classificados e avaliados em relação a nós mesmos. Assim, do ponto de
vista etnocêntrico, a ideia de uma humanidade universal, mesmo que seja
possível concebê-la no plano da materialidade das sociedades históricas,
não estaria isenta de certas hierarquizações do tipo civilizados e bárbaros,
nativos e estrangeiros, industrializados e atrasados, brancos e negros, eu-
ropeus e indígenas, nós e eles.

Ou seja, se você partir da sua sociedade para estudar outras sociedades


e se tiver aprendido que a sua cultura é melhor do que as outras, precisará
fazer um esforço epistemológico para deixar de lado essa hierarquização. Não
é possível sobrepor uma cultura a outra, mesmo que a tendência seja fazer
isso. Ou seja, é necessário compreender que o outro não é nem melhor nem
pior, apenas diferente.
Assim, como ensina Cuche (2002), você não deve comparar culturas para não
deixar de perceber a riqueza das manifestações culturais singulares de cada uma:

[...] o conjunto cultural tem uma tendência para a coerência e uma certa
autonomia simbólica que lhe confere seu caráter original singular; e [...] não
se pode analisar um traço cultural independentemente do sistema cultural ao
qual ele pertence e que lhe dá sentido. Isto quer dizer estudar todas as culturas,
quaisquer que sejam a priori, sem compará-las e/ou "medi-las” prematuramente
em relação às outras culturas (CUCHE, 2002, p. 241).

Por último, você deve considerar como uma das principais ideias dos es-
tudos culturais o conceito de diversidade cultural. Esse conceito deveria ser
difundido nas instituições de educação para que desde a escola os membros da
sociedade refletissem sobre outras culturas, exercitando o respeito às diferenças
culturais. Essa ideia é reforçada por Gadotti (1992, p. 23):

[..] a diversidade cultural é a riqueza da humanidade. Para cumprir sua tarefa


humanista, a escola precisa mostrar aos alunos que existem outras culturas
além da sua. Por isso, a escola tem que ser local, como ponto de partida, mas
tem que ser internacional e intercultural, como ponto de chegada. [...] Escola
autônoma significa escola curiosa, ousada, buscando dialogar com todas as
Estudos culturais 7

culturas e concepções de mundo. Pluralismo não significa ecletismo, um


conjunto amorfo de retalhos culturais. Significa sobretudo diálogo com todas
as culturas, a partir de uma cultura que se abre às demais.

Nesse sentido, a própria Gadotti (1992) afirma a importância de assumir


uma perspectiva multicultural e de estimular uma abordagem de estudo que
favoreça o convívio num mundo composto por diversas sociedades. Compre-
ender as diferenças contribui para mapear, conhecer e até mesmo valorizar as
formas de manifestação humana.

Para conhecer mais sobre a formalização do respeito à diversidade cultural, leia a


Declaração Universal sobre a Diversidade Cultural, de 2002. Ela foi publicada pela UNESCO
com o objetivo de explicitar como se dá o respeito à diversidade cultural existente e
como ele se articula com os direitos humanos. Veja no link a seguir.

https://goo.gl/cCV4Tq

Estudos culturais na contemporaneidade


Agora que você já conhece os estudos culturais e as principais ideias dessa
corrente, que tal discutir a importância desses estudos e a sua aplicação nos
dias atuais? Como você viu, tendo em vista a diversidade cultural existente,
cabe relativizar algumas diferenças na comunicação com outras culturas.
Essa comunicação pode se dar por meio da linguagem ou de outras formas
pelas quais as pessoas trocam informações e convivem de forma amigável.
Almeida (1999, p. 9) explica que isso se relaciona ao:

[...] reconhecimento de uma objetividade que resulta da concordância prag-


mática parcial entre sujeitos que adotam diferentes ontologias. O fato de que
medidas de peso sejam muito variáveis entre as culturas não é uma barreira
para que comerciantes que mal se entendem linguisticamente possam encontrar
regras de tradução entre suas medidas — sem que precise haver a adoção de
um único padrão de medida, mas chegando-se a aproximações satisfatórias
para ambas as partes — ou acordos no plano pragmático.
8 Estudos culturais

O que é pensado como “acordo” também é um meio pelo qual os membros


de culturas diferentes concordam em se relacionar, apesar de suas diferenças.
Você pode considerar o comércio, o trabalho, um namoro ou mesmo uma
viagem rápida para outro país: em todos esses casos, você precisa se comunicar
com outras pessoas, não é?
Assim, mergulhar em outra cultura também permite aprender a relati-
vizar para conseguir dialogar com pessoas que têm valores diferentes, mas
que estão no mesmo mundo que você. Falando nisso, você sabe o que é o
relativismo cultural? Segundo Hoebel e Frost (1999, p. 22), esse conceito
considera que “[...] os padrões de certo e errado (valores) e dos usos e ati-
vidades (costumes) são relativos à cultura da qual fazem parte [...]”. Na sua
forma extrema, esse conceito afirma que cada costume é válido em termos
de seu próprio ambiente cultural.
Logo, num mundo plural e diverso, em que pessoas diferentes habitam o
mesmo território, cabe perceber os costumes e tradições de inúmeras culturas.
Dessa maneira, Almeida (1999, p. 21) destaca que é preciso considerar outras
“[...] culturas tão válidas quanto as nossas, [valorizando] esses [outros] povos
cuja própria existência [nos faz] questionar nossa maneira de ser, quebrando
o monopólio, que comumente nos atribuímos, da autêntica realização da
humanidade no planeta [...]”.

Para aprofundar a discussão sobre cultura, você pode ler A invenção da cultura, de
Roy Wagner (2012). Esse autor mostra como o próprio conceito de cultura foi criado
e pode ser pensado. Essa é uma discussão atual e que contempla a nova forma de
refletir sobre as diferentes sociedades.

Mas você sabe qual é a importância de estudar essas questões no âmbito dos
estudos culturais? A seguir, você pode ver alguns apontamentos de Meneses
(1999). A partir deles, você vai ver como aplicar os conceitos que estudou até
aqui e como refletir sobre questões relevantes para o relacionamento com
o outro no mundo contemporâneo. Considere, então, os elementos a seguir.

1. Respeito sincero pela cultura e sociedade dos outros povos — os diversos


comportamentos, como se alimentar, se vestir e se manifestar, devem
ser respeitados acima de tudo.
Estudos culturais 9

2. Cuidado extremo com a objetividade — não se pode simplesmente


ofender a cultura do outros. É preciso compreender os significados
subjetivos presentes na outra cultura para entender, por exemplo, o uso
da burca entre as mulheres mulçumanas.
3. Recusa de interferir e de modificar — quando você não entende as
práticas sociais de determinada cultura, a tendência é querer interferir
nelas e até mesmo modificá-las, não é? Contudo, é necessário evitar
o etnocentrismo.
4. Compreensão do anticolonialismo — não se deve interferir em movi-
mentos de libertação nacional que buscam afastar o colonialismo que
devastou culturas e impôs seu modo de vida.
5. Reflexão sobre os problemas das minorias étnicas — diante da sobre-
posição de culturas, especialmente no contexto colonial, as minorias
étnicas foram oprimidas e tiveram suas manifestações culturais des-
valorizadas em detrimento da cultura do colonizador.
6. Valorização de movimentos contra a discriminação — uma vez que as
culturas são diferentes, cabe englobá-las num contexto mais amplo e
não excluí-las. Dentro de uma sociedade, também é preciso valorizar
os diferentes perfis das pessoas para não cometer diferenciações no
âmbito da própria cultura.
7. Luta pela libertação da mulher — em diversas culturas, as mulheres
são percebidas como inferiores em relação aos homens e cabe defender
a igualdade e o respeito em relação ao gênero.
8. Novos rumos das missões — é preciso repensar a missão de evangeli-
zação que destruiu as crenças e religiões tradicionais de diversos povos
no processo da colonização.

Além desses aspectos, considere o que afirma Ríos (2002, p. 247):

[...] qualquer coisa que possa ser lida como um texto cultural e que contenha
em si mesma um significado simbólico sócio-histórico capaz de acionar for-
mações discursivas pode se converter em um legítimo objeto de estudo: desde
a arte e a literatura, as leis e os manuais de conduta, os esportes, a música e
a televisão, até as atuações sociais e as estruturas do sentir.

Assim, você também é convidado a se aproximar dessa maneira de enxergar


o mundo em que vive. A ideia é transformar a experiência por meio de uma
reflexão sobre o outro e sobre si mesmo, aproximando-se daquilo que se
considera estranho e estranhando aquilo que se considera natural.
10 Estudos culturais

Para refletir ainda mais sobre a diversidade das formas de vida e sobre a subjetividade
do outro, assista ao filme Moin, un noir (1958), do antropólogo Jean Rouch. O material
pode ser encontrado online com legendas em português. A proposta do filme é
mostrar o cotidiano de pessoas que migraram para a Costa do Marfim nos anos 1950
e que passaram por um choque cultural ao deixar a África tradicional, que conheciam,
e adentrar o mundo moderno, que acabavam de acessar.

ALMEIDA, M. W. B. Guerras culturais e relativismo cultural. Revista Brasileira de Ciências


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Conteúdo:
ESTUDOS
CULTURAIS E
ANTROPOLÓGICOS

Priscila Farfan Barroso


Etnia e raça
Objetivos de aprendizagem
Ao final deste texto, você deve apresentar os seguintes aprendizados:

 Distinguir os termos “etnia” e “raça”.


 Relacionar os conceitos de etnia e raça com questões histórico-sociais.
 Construir um raciocínio crítico sobre o preconceito racial.

Introdução
Neste capítulo, você vai aprender a distinguir os conceitos de raça e etnia,
mas também vai perceber que a ideia de raça vem sendo ressignificada e
até mesmo valorizada como um componente étnico importante atrelado
à identidade. Inicialmente, o conceito de raça estava ligado às questões
fenotípicas dos grupos sociais, mas você vai perceber que essa afirmação
não tem tanto fundamento científico assim.
Na sequência, vamos associar esses conceitos com questões histórico-
-sociais, a fim de compreender como a ideia de raça dividiu os grupos
sociais e até mesmo hierarquizou uns sobre os outros. Alguns pontos
históricos mundiais são relevantes, e cabe destacar algumas questões
nacionais que se valeram desses conceitos para a construção da iden-
tidade brasileira.
Ao final, discutiremos sobre o preconceito racial e as suas implicações
no mundo atual. Nesse sentido, serão apresentados alguns movimen-
tos étnicos que buscam valorizar aspectos culturais no contexto em
que vivem. Assim, você terá uma visão ampla de como raça e etnia são
agenciadas desde o passado até os dias atuais!

Distinção entre etnia e raça


Somos todos iguais? Essa questão é muito complexa, e é sobre ela que va-
mos nos debruçar neste capítulo. Para iniciar a discussão, precisamos saber
que, apesar de termos em comum a condição de humanidade, temos origens
2 Etnia e raça

biológicas, territoriais e culturais diferentes, e isso faz com que tenhamos


diferenças não só no modo de viver a vida, mas também em aspectos físicos.
Segundo Neves (2006), as principais espécies hominídeas consideradas
cruciais para a história da evolução humana datam de sete milhões de anos
atrás. De lá pra cá, o bipedismo, o consumo de proteína animal, a fabricação
de ferramentas, o desenvolvimento do cérebro e a construção da vida em
sociedade permitiram que o homem chegasse aos dias atuais como o conhe-
cemos. Entretanto, é importante considerar esse aspecto temporal e pensar
nos processos biológicos pelos quais a nossa sociedade passou:

O acaso na evolução biológica remete-se à existência ou não de variante


numa população exatamente no momento em que essas variantes poderiam
ser instadas à condição de solução adaptativa. A existência de variabilidade
depende de mutações, que ocorrem de forma absolutamente imprevisível no
genoma. A necessidade, por sua vez, remete-se ao desafio de sobrevivência
imposto por uma nova situação ambiental, ambiente aqui entendido no seu
sentido lato, que inclui também os competidores (NEVES, 2006, p. 81).

Em essência, para sobreviver, cada sociedade passou por processos de


adaptação em sua forma de alimentação, de vestimentas, de proteção das
intempéries climáticas e de tantos outros aspectos. Estes interferiram não
somente nas expressões culturais às quais se filiavam, mas também em as-
pectos biológicos que resultaram em mudanças físicas perceptíveis. Desse
modo, a cor da pele, a cor do olho, a cor do cabelo, a altura, o tamanho, as
formas corporais de partes do corpo são aspectos visíveis que diferenciam as
sociedades e as culturas que conhecemos.
Vamos compreender melhor como podemos analisar essas sociedades
a partir da noção de raça e etnia. Carolus Linnaeus (1758) foi quem criou a
taxonomia moderna e o termo Homo sapiens, reconhecendo quatro variedades
do homem: o americano (Homo sapiens americanus), o europeu (Homo sapiens
europaeus), o asiático (Homo sapiens asiaticus) e o africano (Homo sapiens
afer). Essa situação difundiu a ideia de que há uma diferença entre grupos
sociais a partir de cores: respectivamente, o vermelho, o branco, o amarelo
e o preto. Para refletir o que a cor nos leva a pensar sobre raça, cabe lembra
o que diz Guimarães (2008, p. 76–77): “[...] cor é uma categoria racial, pois
quando se classificam as pessoas como negros, mulatos ou pardos é a ideia
de raça que orienta essa forma de classificação [...]”.
Logo, a difusão desse conhecimento influenciou os estudos evolutivos
no sentido de reforçar a ideia de que há divisão, de certa forma homogênea,
entre os grupos sociais. Todavia, poderíamos dizer que estas são raças dife-
Etnia e raça 3

rentes — muitas vezes percebidas pelas cores — que compõem a base para as
sociedades que conhecemos hoje? Para isso, vamos estudar o próprio termo
raça e problematizar os seus usos.

O termo raça tem uma variedade de definições geralmente utilizadas para


descrever um grupo de pessoas que compartilham certas características
morfológicas. A maioria dos autores tem conhecimento de que raça é um
termo não científico que somente pode ter significado biológico quando o
ser se apresenta homogêneo, estritamente puro; como em algumas espécies
de animais domésticos. Essas condições, no entanto, nunca são encontradas
em seres humanos. (SANTOS et al., 2010, p. 122).

A explicação sobre a diferença entre as sociedades por meio da divisão


dos grupos sociais a partir das cores se torna sem fundamento, até mesmo
porque é rara a existência de sociedades isoladas. Em geral, há grandes trocas
culturais entre sociedades que vivem próximas — os seus membros inclusive
transitam por esses grupos sociais por meio de casamentos.
Guimarães (2008, p. 64–65) destaca que é preciso esclarecer uma dife-
rença importante para compreender esse termo de forma conceitual e mais
aprofundada:

O que é raça? Depende. Realmente depende se estamos falando em termos


científicos ou de uma categoria do mundo real. Essa palavra “raça” tem pelo
menos dois sentidos analíticos: um reivindicado pela biologia genética e outro
pela sociologia. [...] A biologia e a antropologia física criaram a idéia de raças
humanas, ou seja, a idéia de que a espécie humana poderia ser dividida em
subespécies, tal como o mundo animal, e de que tal divisão estaria associada
ao desenvolvimento diferencial de valores morais, de dotes psíquicos e inte-
lectuais entre os seres humanos. Para ser sincero, isso foi ciência por certo
tempo e só depois virou pseudociência. [....] Depois da tragédia da Segunda
Guerra, assistimos a um esforço de todos os cientistas — biólogos, sociólogos,
antropólogos — para sepultar a idéia de raça, desautorizando o seu uso como
categoria científica [...]. Ou seja, as raças são, cientificamente, uma construção
social e devem ser estudadas por um ramo próprio da sociologia ou das ciências
sociais, que trata das identidades sociais. Estamos, assim, no campo da cultura,
e da cultura simbólica. [...] As sociedades humanas constroem discursos sobre
suas origens e sobre a transmissão de essências entre gerações. Esse é o terreno
próprio às identidades sociais e o seu estudo trata desses discursos sobre origem.

Cabe deixar de lado o termo raça usado pelas ciências biológicas e tão
difundido nos séculos XVIII e XIX, que entendiam como pertinente a ideia de
raças humanas para diferenciar os grupos sociais — e até mesmo hierarquizá-
-los —, para compreender que a única raça existente é a raça humana. Neves
4 Etnia e raça

(2006) compreende que esse termo só faz sentido se for utilizado no âmbito
sociológico, no qual são levadas em consideração as origens do grupo, tanto
pelos traços fisionômicos como pelos aspectos culturais, abarcando as suas
complexidades históricas e a identidade dos seus membros.
Silva e Soares (2011) destacam que esse “novo” uso do termo vem se
consolidando; porém, em outros momentos, diferentes conceitos tentaram
dar conta de identificar os grupos sociais de forma que considerassem a sua
pluralidade sem hierarquizá-los, como explicam a seguir:

Apesar dessas novas leituras conceituais e usos das palavras, o que confere uma
mudança histórica altamente comum e saudável no campo das mentalidades,
o conceito de “raça”, por muitas vezes foi deixado de lado em detrimento de
outros, não completamente substituidores, mas que talvez fizessem o mesmo
papel definidor e classificador dessas pessoas unidas por características,
cultura e instituições semelhantes e, num contexto de luta por igualdades,
experiências parecidas de resistência e/ou percepção de todo um sistema
insistentemente segregacionista. Atualmente, um desses outros conceitos
seria o de “etnia”, que tem origem do grego ethnos, o que entendemos não só
como um conjunto de pessoas da comunidade. É o pertencimento do grupo,
independente dos laços consanguíneos e a construção de ações coletivas
(SILVA; SOARES, 2011, p. 106).

Assim, o termo etnia abrange a complexidade dos contextos sociais, po-


líticos e econômicos dos grupos sociais, não só enquanto identificação de
grupo, mas enquanto mobilização política para a sua existência em meio aos
outros grupos sociais. Luvizotto (2009, p. 30) explica que “[...] a concepção
de etnicidade está além da definição de culturas específicas e, portanto, é
composta de mecanismos de diferenciação e identificação que são acionados
conforme os interesses dos indivíduos em questão, assim como o momento
histórico no qual estão inseridos [...]”. Logo, com essa discussão, temos um
quadro panorâmico de como os conceitos de raça e etnia se inserem nas
sociedades e nos debates atuais.

Sobre as transformações culturais nas sociedades, leia o artigo Culturas em transforma-


ção: os índios e a civilização, da antropóloga Clarice Cohn. Ele revisita os conceitos de
cultura e de tradição a partir da ideia de mudanças culturais entre um grupo indígena
brasileiro, a fim de compreender como não há sociedade “pura” ou “intocável”.
Etnia e raça 5

Questões histórico-sociais dos conceitos


de etnia e raça
Para que você possa entender como esses conceitos foram utilizados diante
das questões histórico-sociais, vamos enfatizar alguns momentos da história
mundial e até mesmo da história nacional pertinentes a essa compreensão. É
importante perceber que alguns usos políticos dos conceitos de raça e etnia
podem explicitar diferenças entre grupos sociais dispostas pelos poderes
político e econômico ou mesmo pretendem invisibilizar aspectos específicos
de culturas que vivem no mesmo espaço territorial, a partir de uma suposta
de ideia de democracia racial.
O primeiro destaque aconteceu durante a Segunda Guerra Mundial
(1939–1945). O plano alemão de conquista do mundo se valia da diferen-
ciação dos grupos sociais para hierarquizar uns sobre os outros e valorizar
a dita raça ariana: os descendentes de uma das três grandes sociedades
humanas provenientes do Cáucaso (região da Europa Oriental e da Ásia
Ocidental, entre o Mar Negro e o Mar Cáspio). Mazowe (2008) destaca
que os nazistas optaram pelos velhos padrões coloniais europeus, tanto em
termos geopolíticos como em termos de questões raciais, para impor as
suas ideias imperiais, exterminar povos considerados diferentes dos seus e
se apresentar como raça superior.
Assim, essa era uma estratégia política de Adolf Hitler (político alemão
que foi líder do Partido Nazista) para dividir os grupos sociais, mas também
fazer com que os arianos apoiassem esse regime político por medo de morrer,
como analisa Foucault (1996, p. 210):

[...] o regime nazista não terá como único objetivo a destruição das outras raças.
Este é apenas um de seus aspectos. O outro [aspecto] é o de expor a própria
raça ao perigo absoluto e universal da morte. O risco de morrer, a exposição
à destruição total é um princípio inscrito entre os deveres fundamentais da
obediência nazista e entre os objetivos essenciais da política.

Entretanto, em nome da construção da Alemanha somente por pessoas


provenientes da raça ariana, inúmeras atrocidades foram cometidas, misturando
nazismo com eugenia — a seleção das pessoas com base em características
genéticas. Umas das consequências desse pensamento político entre os go-
vernantes alemães da época foi o holocausto, que, segundo Katz (1994, p. 28),
é descrito como “[...] fenomenologicamente único em virtude do fato de que
nunca antes um Estado se fixara, como objetivo de princípio e como política
6 Etnia e raça

de fato, a tarefa de aniquilar fisicamente cada um dos homens, mulheres e


crianças pertencentes a um povo determinado [...]”. Para ter ideia de quantos
judeus morreram nos vários países, veja os números do Quadro 1.

Quadro 1. Extermínio dos judeus na Europa

População judia População judia Percentual


País
antes da Guerra exterminada exterminado

Polônia 3.300.000 3.000.000 91

Países Bálticos 253.000 228.000 90

Alemanha e Áustria 240.000 210.000 88

Boêmia e Morávia 90.000 80.000 89

Eslováquia 90.000 75.000 83

Grécia 70.000 54.000 77

Holanda 140.000 105.000 75

Hungria 650.000 450.000 70

Bielorrússia 375.000 245.000 65

Ucrânia 1.500.000 900.000 60

Bélgica 65.000 40.000 60

Iugoslávia 43.000 26.000 60

Romênia 600.000 300.000 50

Noruega 1.800 900 50

França 350.000 90.000 26

Bulgária 64.000 14.000 22

Itália 40.000 8.000 20

Luxemburgo 5.000 1.000 20

Rússia 975.000 107.000 11

Dinamarca 8.000 120 2

Finlândia 2.000 ? ?

Total 8.861.800 5.933.900 67

Fonte: Adaptado de Coggiola (2015).


Etnia e raça 7

Diante desses números, percebemos como determinado uso da ideia de


raça pode ter consequências perversas e aterrorizantes. Um segundo destaque
para pensar nos conceitos estudados neste capítulo é em relação à difusão
de uma suposta democracia racial no Brasil do século XIX. Assim como o
nosso primeiro exemplo, essa proposta também tem implicações políticas de
modo a invisibilizar as disputas raciais da constituição do povo brasileiro.
Freyre (1995) apresenta uma convivência quase harmoniosa entre brancos,
indígenas e negros desde a colonização do Brasil, trazendo a ideia de que não
havia disputas raciais, imposições culturais ou mesmo resistência por parte dos
povos colonizados. A sua perspectiva era de evidenciar traços de diferentes
culturas que formaram o que hoje conhecemos como a cultura brasileira, mas
essa leitura foi apropriada politicamente pelos governantes da época para dizer
que havia no Brasil uma democracia racial. No entanto, apesar de esse ter sido
um discurso oficial por muito tempo, os cidadãos reconhecem no cotidiano das
cidades brasileiras que isso é um mito, como explicita Hasenbalg (1979, p. 239):

[...] as pessoas não se iludem com relação ao racismo no Brasil; sejam bran-
cas, negras ou mestiças, elas sabem que existe preconceito e discriminação
racial. O que o mito racial no brasileiro faz é dar sustentação a uma etiqueta
e regra implícita de convívio social, pela qual se deve evitar falar em racis-
mo, já que essa fala se contrapõe a uma imagem enraizada do Brasil como
nação. Transgredir essa regra cultural não explicitada significa cancelar ou
suspender, mesmo que temporariamente, um dos pressupostos básicos que
regulam a interação social do cotidiano, que é a crença na convivência não
conflituosa dos grupos raciais.

Para refletir sobre questões de desigualdades sociais vinculadas à discussão de raça


e de classe no Brasil, leia o artigo Raça ou classe? Sobre a desigualdade brasileira, do
sociólogo Jessé Souza.

https://goo.gl/Dm4C8C

Sabe-se que houve, no começo do século XIX, políticas de branqueamento


que buscavam atrair populações da Europa ao Brasil, a partir de vantagens
para a fixação desses povos no território brasileiro. Silva (2017, p. 594) explica
como se deu essa articulação:
8 Etnia e raça

[...] para o entendimento da democracia racial como dispositivo biopolítico as-


sentado na miscigenação e no chamado “projeto” de branqueamento da nação,
nomeadamente a partir dos anos 1930, quando a miscigenação e a negação
oficial do racismo passaram a ser emblemáticos nas narrativas identitárias da
nação. [...] É neste contexto que defendo a ideia de que a população negra acaba
por ser constituída como saber, pois incluída nas narrativas nacionais pelo
viés da miscigenação é excluída pelo seu virtual desaparecimento, uma vez
que o branqueamento é concebido mediante a própria ideia de miscigenação.

Mesmo evidenciando os motivos e as consequência do mito da democracia


racial, Munanga (1999, p. 125–126) explica que essas ideias influenciam até
mesmo a maneira como a nossa sociedade é constituída hoje:

Apesar do esforço dos movimentos negros em redefinir o negro, dando-lhe


uma consciência política e uma identidade étnica mobilizadoras, contrariando
a ideologia de democracia racial construída a partir de um racismo universal,
assimilacionista, integracionista — o universalismo — aqui, concordamos
com Peter Fry — essa ideologia continua forte no Brasil, na sua constituição
e na idéia da democracia racial, mesmo se há sinais [...] de uma crescente
polarização. Se a mestiçagem representou o caminho para nivelar todas as
diferenças étnicas, raciais e culturais que prejudicavam a construção do povo
brasileiro, se ela pavimentou o caminho não acabado do branquecimento, ela
ficou e marcou significativamente o inconsciente e o imaginário coletivo do
povo brasileiro.

Chamando atenção para essas situações que envolvem a discussão de raça


e etnia, pretendemos enfatizar a relevância das conceituações apresentadas e
a necessidade de um olhar crítico para a proposição de diferença dos grupos
sociais. Longe de resolver a questão, o objetivo é ampliar a percepção de como
esses conceitos estão atrelados às discussões políticas e econômicas, não só
na nossa história, mas também nos dias atuais.

Um importante aspecto histórico em relação à questão de raça e etnia se refere à


escravidão de um povo sobre o outro. Assista ao filme 12 Anos de Escravidão, de Steve
McQueen, que mostra as humilhações físicas e morais pelas quais o ser humano passa
quando está sob o domínio de outro ser humano.
Etnia e raça 9

Repensando o preconceito racial


A partir dos exemplos emblemáticos enfatizados, devemos lembrar que o
preconceito racial ainda é velado nos dias de hoje. Talvez não tão explícito
como no holocausto, na escravidão ou mesmo nas políticas de branqueamento
anteriormente citadas, o olhar com desdém para alguém de etnia diferente ou
mesmo a exclusão de um currículo por conta da cor da pele são considerados
formas de preconceito racial.
Para Blumer (1965), quatros aspectos permite evidenciar as formas de
preconceito racial por um grupo dominante: (a) de superioridade; (b) de que
a raça subordinada é intrinsecamente diferente e alienígena; (c) de monopólio
sobre certas vantagens e privilégios; e (d) de medo ou suspeita de que a raça
subordinada deseje partilhar as prerrogativas da raça dominante.
Logo, as populações que se sentem prejudicadas em função do preconceito
racial têm se organizado em movimentos sociais e se articulado para fazer
valer os seus direitos sociais. Considera-se que as políticas ações afirmativas:

[…] tomam como base para sua implementação a extrema desigualdade racial
brasileira no acesso ao ensino superior. Os argumentos favoráveis concentram-
-se nesse sentido, afirmando a necessidade de um enfrentamento direto da
sociedade brasileira a esse respeito, o que implica o reconhecimento de que o
Brasil é um país racialmente desigual e que tal situação é fruto de discrimina-
ção e preconceito, e não de uma situação de classe social (LIMA, 2010, p. 87).

Essas políticas são consequência da mobilização dos movimentos sociais


vinculados à noção de raça e etnia. Entre eles, podemos destacar:

A partir da segunda metade da década de 1990 acelera-se um processo de


mudanças acerca das questões raciais, marcado fortemente por uma aproxima-
ção entre o Movimento Negro e o Estado brasileiro. É a partir deste momento
que as reivindicações por ações mais concretas para o enfrentamento das
desigualdades raciais começam a ser cobradas. Dois acontecimentos — um
de âmbito nacional e outro, internacional — são destacados consensualmente
pelos estudiosos do tema como momentos importantes desse processo: a
Marcha Zumbi de Palmares contra o Racismo, pela Cidadania e a Vida, em
1995, ano de comemoração do tricentenário da morte de Zumbi dos Palmares,
e a Conferência de Durban, em 2001 (LIMA, 2010, p. 89).

Podemos dizer que, apesar de diferentes grupos sociais que reivindicam


a questão da identidade étnica no Brasil, como negros, indígenas, ciganos e
10 Etnia e raça

outros povos que habitam o território brasileiro, a mobilização do movimento


negro tem se destacado (Figura 1). Essas mobilizações descritas acima tiveram
consequências concretas nas implantações das cotas raciais, como explicita
Maio e Santos et al. (2010, p. 189):

Logo após a conferência, o governo brasileiro definiu um programa de po-


lítica de cotas no âmbito de alguns ministérios (Desenvolvimento Agrícola
e Reforma Agrária, Justiça e Relações Exteriores) (Moehlecke, 2002). No
plano estadual e municipal, diversas iniciativas foram realizadas para a im-
plementação do sistema de cotas. Aquela que obteve maior destaque no final
do ano de 2001 foi a da Assembléia Legislativa do Estado do Rio de Janeiro,
que estabeleceu uma porcentagem das vagas das universidades estaduais
para pretos e pardos (Maggie; Fry, 2004). A partir de 2002, o debate e a
implementação de políticas de ação afirmativa com viés racial, com foco no
sistema de cotas, estenderam-se por diversas universidades públicas, tanto
estaduais como federais. Em sua ampla maioria, com regras variadas, foram
definidos mecanismos centrados na autodeclaração dos candidatos. Já a UnB,
além de ser a primeira universidade federal a adotar o programa, estabeleceu
critérios adicionais à autodeclaração para definir os beneficiários, ou seja,
quem seriam os "negros".

A implantação das cotas não se deu sem polêmicas, e desde então são
produzidas avaliações sobre o programa em inúmeros estados.

Figura 1. Movimento por Igualdade Racial.


Fonte: Carlos (20178, documento on-line).
Etnia e raça 11

As principais críticas à política de cotas destacadas por Guarnieri e Melo-


-Silva (2017, p. 185) desde a sua implantação em 2012 apontam:

[...] inexistência biológica das raças; caráter ilegítimo das ações de “repara-
ção” aos danos causados pela escravidão em tempo presente; risco de acirrar
o racismo no Brasil; possibilidade de manipulação estatística da categoria
“parda”; inviabilidade de identificação racial em um país mestiço; a questão
da pobreza como determinante da exclusão social.

Por outro ladro, também é preciso evidenciar pontos que foram vantajosos
e que conseguiram provocar uma nova configuração da população no acesso
à educação superior. Logo, a mesma pesquisa destacou:

Os argumentos favoráveis concentraram-se na discussão sobre a constituciona-


lidade das cotas e relevância para o país. A intervenção do Estado foi colocada
como fundamental diante dos quadros de desigualdade raciais remanescentes
de fenômenos sociais que precisam ser enfrentados; destacando-se que as
“ações afirmativas” atuariam como alternativa para a busca de igualdade
através da promoção de condições equânimes entre brancos e negros (GUAR-
NIERI; MELO-SILVA, 2017, p. 185).

Assim, pretendeu-se mostrar como podemos criar estratégias e apontamentos


críticos para combater o preconceito racial, ainda que o seu processo histórico
tenha se enraizado não somente no contexto nacional, como também no contexto
internacional.

Para compreender mais sobre o processo de implementação das cotas em termos das
discussões sobre raça e etnia, leia o artigo A reserva de vagas para negros nas universidades
brasileiras, de Yvonne Maggie e Peter Fry.

https://goo.gl/xfpMVn
12 Etnia e raça

BLUMER, H. The nature of racial prejudice. In: HUNTER, G. Industrialization and Race
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Etnia e raça 13

Leituras recomendadas
AZEVEDO, C. M. M. Abolicionismo: Estados Unidos e Brasil, uma história comparada.
São Paulo: Anna Blume, 2003.
FANON, F. Pele negra, máscaras brancas. Salvador: Fator, 1983.
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NASCIMENTO, A. Combate ao racismo: discursos e projetos. Brasília: Câmara dos De-
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SOUZA, J. Raça ou classe? Sobre a desigualdade brasileira. Lua Nova, São Paulo, v. 65,
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TURRA, C.; VENTURI, G. Racismo cordial: a mais completa análise sobre o preconceito
de cor no Brasil. São Paulo: Ática, 1998.
Conteúdo:
CIÊNCIA
POLÍTICA E
TEORIA GERAL
DO ESTADO
Felipe Scalabrin
Ciência política e teoria
geral do Estado
Objetivos de aprendizagem
Ao final deste texto, você deve apresentar os seguintes aprendizados:

„„ Apresentar os conceitos básicos da disciplina.


„„ Contrastar teoria do geral do estado e ciência política.
„„ Reconhecer a importância do estudo da disciplina.

Introdução
A ciência política e a teoria geral do Estado são disciplinas diretamente
relacionadas com a organização da vida em sociedade. Apresentam-se
como fonte indispensável para a compreensão das relações de poder
e da atuação do Estado ao tratarem de temas relevantes como poder
político, direitos políticos, democracia, legitimidade do poder, formas de
governo, sistemas de governo e funções do Estado.
Neste capítulo, você verá os conceitos básicos que orientam a disci-
plina, com a diferenciação entre ciência política e teoria geral do Estado,
e, ao final, identificará a importância prática e teórica do estudo.

Considerações iniciais
Não é nova a ideia segundo a qual o homem somente pode ser compreendido a
partir da sua inserção na vida em sociedade. De fato, o ser humano é agregador
e depende, pela sua própria essência, da aproximação com o outro. Conforme
Aristóteles, o homem é um ser político. Em paralelo, a condição humana
também traz uma constante autorreflexão: o homem busca conhecimento e
aprofundamento das estruturas que lhe são apresentadas. É nessa linha de
8 Ciência política e teoria geral do Estado

raciocínio que se verifica a presença, desde priscas eras, de um pensamento


científico. A ciência surge justamente como um fenômeno de análise das rela-
ções de causa e efeito, na tentativa de sistematizar e organizar o conhecimento
adquirido. Com a vida em sociedade, não é diferente.
O estudo da organização política e dos comportamentos políticos da socie-
dade é destinado à ciência política enquanto disciplina do saber. Já o estudo
do Estado, enquanto organização jurídica da sociedade, é destinado à teoria
geral do Estado (DALLARI, 2013).
Sob a perspectiva da ciência política, relevantes aspectos da vida em
sociedade são objeto de reflexão e compreendem as definições básicas das
instituições sociais e o seu próprio funcionamento. Não é por outra razão
que o estudo da ciência política envolve temas delicados, como poder polí-
tico, direitos políticos, democracia, legitimidade do poder, Estado e governo
(MORAIS; STRECK, 2010).
Sob o enfoque da teoria geral do Estado, tantos outros importantes temas
são pontos de questionamento e abrangem não apenas a definição de Estado,
mas também as suas origens, os seus fundamentos e as suas finalidades. Por
essa razão, o estudo da teoria geral do Estado não desconsidera algumas
categorias essenciais, como as formas de Estado, as formas de governo, os
sistemas de governo e as funções do Estado.
Além disso, consideramos a possibilidade de diferentes enfoques para o
estudo. Surgem, assim, as perspectivas filosófica, sociológica e jurídica. Sob
o prisma filosófico, buscamos os fundamentos do Estado e da sociedade,
isto é, a sua justificativa teórica. Sob o prisma sociológico, identificamos os
fatos concretos que revelam a prática social na indissociável relação existente
entre o Estado e as condicionantes sociais existentes. Por fim, na perspectiva
jurídica, pretendemos evidenciar a organização e personificação do Estado
por meio do corpo normativo que o compõe (DALLARI, 2013). No ápice dessa
última formulação, devemos citar Hans Kelsen, para quem o Estado se situa
no plano do dever–ser (sollen) (DALLARI, 2013).
A esse respeito, confira a posição de Max Weber (apud BONAVIDES,
2009, p. 42):

Com efeito, na sociologia política de Max Weber, abre-se o capítulo de fecundos


estudos pertinentes à política científica, à racionalização do poder, à legitima-
ção das bases sociais em que o poder repousa, inquire-se ali da influência e
da natureza do aparelho burocrático; investiga-se o regime político, a essência
dos partidos, sua organização, sua técnica de combate e proselitismo, sua
liderança, seus programas; interrogam-se as formas legítimas de autoridade,
como autoridade legal, tradicional e carismática; indaga-se da administração
Ciência política e teoria geral do Estado 9

pública, como nela influem os atos legislativos, ou com a força dos parla-
mentos, sob a égide de grupos socioeconômicos poderosíssimos, empresta à
democracia algumas de suas peculiaridades mais flagrantes.

O componente humano presente na disciplina conjugada de ciência política e teoria


geral do Estado provoca uma compreensão que transborda a perspectiva meramente
jurídica ou sociológica. De fato, entender as relações entre o indivíduo e o Estado é
aceitar uma complexidade interdisciplinar: somente se apreende o todo se forem
considerados fatores históricos, econômicos, filosóficos e, até mesmo, psicológicos
(MORAIS, 2010).

O aspecto temporal também influencia sobremaneira o estudo da disci-


plina. Assim, algumas categorias conceituadas de determinada forma hoje
poderão não mais ter a mesma definição amanhã. Essa, aliás, é considerada
uma das grandes dificuldades do pensamento científico. Confira, a propósito,
o pensamento de Paulo Bonavides (2009, p. 39):

Mas se o oxigênio, enxofre e o hidrogênio “se comportam da mesma maneira


na Europa, na Austrália ou em Sírius”, se qualquer mudança na composição do
elemento químico encontra no cientista condições fáceis e seguras de exame
e esclarecimento, o mesmo não se dá com o fenômeno social e político. Fica
este sujeito a imperceptíveis variações, de um para outro país, até mesmo na
prática do mesmo regime; ou de um a outro século, de uma a outra geração.

Por tais razões, compreender a ciência política e a teoria geral do Estado na


atualidade é também considerar os movimentos atuais de crítica e reorganização
da estrutural estatal, notadamente em razão da reavaliação da posição do Estado
frente à sociedade e da dinâmica da globalização (CHEVALLIER, 2009). Não
se pode desconsiderar, também, a chamada crise do Estado contemporâneo,
que coloca em cheque a definição tradicional e o papel do ente estatal. Basta
considerar, como exemplo dessa crise, a questão do espaço geográfico do Estado:

As fronteiras, físicas e simbólicas, que delimitavam a esfera de influência, o es-


paço de dominação do Estado, tornaram-se porosas: os Estados são atravessados
por fluxos de todas as ordens, que eles são incapazes de controlar, de canalizar
e, se necessário, conter; já não tendo controle sob as variantes essenciais que
comandam o desenvolvimento econômico e social, a sua capacidade de regu-
lação tornou-se, concomitantemente, aleatória (CHEVALLIER, 2009, p. 32).
10 Ciência política e teoria geral do Estado

Conceitos fundamentais
A seguir, você identificará os conceitos de ciência política e teoria geral do
Estado e conhecerá suas diferenças e semelhanças.

Ciência política
A política, enquanto prática humana relacionada com a noção de poder, é objeto de
debate e reflexão desde o passado longínquo. Dessa forma, muitas obras clássicas
são referência até hoje, com relevância para Platão, Aristóteles, Nicolau Maquia-
vel, Thomas Hobbes, John Locke, Alexis de Tocqueville, Rousseau, Karl Marx,
George Burdeau, entre tantos outros. A palavra remonta à noção grega de pólis.
Sobre o conceito de ciência política, Dalmo Dallari (2013, p. 17) destaca
que ela “faz o estudo da organização política e dos comportamentos políticos,
tratando dessa temática à luz da Teoria Política, sem levar em conta os elemen-
tos jurídicos”. Essa definição considera que o elemento central do estudo é a
política e, por essa razão, deságua na noção de poder. Com efeito, a ciência
política é centrada no estudo do poder e, portanto, da autoridade (DUVERGER
apud DIAS, 2013, p. 9). Em síntese, o objeto da ciência política é o poder.
Para melhor estudar o seu objeto, é possível identificar quatro campos de
atuação da ciência política (DIAS, 2013):

„„ as instituições em que atuam os sujeitos, como o Estado e o governo;


„„ os recursos utilizados, como a influência e a autoridade;
„„ os meios para a formulação de decisões políticas (decision-making);
„„ as funções desempenhadas, como a solução consensual de conflitos e
a imposição de decisões pelos atores dotadas de autoridade.

Teoria geral do Estado


O Estado, enquanto organização política da sociedade (em determinada base
territorial e qualificada pelo poder político), também é objeto de intenso de-
bate. Aliás, apesar dessa definição inicial, o conceito de Estado é polêmico
e multifacetado, sempre dependente da perspectiva de exame (DALLARI,
2013). Sob o enfoque jurídico, seguramente haverá definição diferente da
perspectiva meramente sociológica de Estado.
A teoria geral do Estado se dedica “ao estudo do Estado sob todos os as-
pectos, incluindo a origem, a organização, o funcionamento e as finalidades,
compreendendo-se no seu âmbito tudo o que se considere existindo no Estado
Ciência política e teoria geral do Estado 11

e influindo sobre ele” (DALLARI, 2013, p. 18). É evidente, com isso, que o
estudo do Estado também diz respeito às condições de possibilidade de sua
compreensão (MORAIS, 2010).
Em termos práticos, as questões abordadas na teoria geral do Estado já
eram tratadas pelos autores clássicos da ciência política. A sistematização,
como disciplina autônoma, deveu-se principalmente à doutrina alemã do final
do século XIX e início do século XX, notadamente com Georg Jellinek e a
sua teoria geral do Estado (Allgemeine Staatslehre, 1911).

Diferenças e semelhanças
Apresentadas as definições de ciência política e teoria geral do Estado, verifica-
mos, com clareza, que as disciplinas não se confundem. Enquanto a primeira diz
respeito às relações de poder, a segunda diz respeito às relações com o Estado. É
certo, por outro lado, que “não há possibilidade de desenvolver qualquer estudo ou
pesquisa de Ciência Política sem considerar o Estado” (DALLARI, 2013, p. 17).
A ciência política, com efeito, é disciplina mais ampla e da qual a teoria
geral do Estado faz parte. Essa, aliás, é a concepção de Herman Heller (apud
DIAS, 2013), que já apontava a dificuldade em diferenciar ambos os fenômenos.
De todo modo, para ele, há uma dependência recíproca entre ambas: a teoria
geral do Estado é também pressuposto da ciência política.
Há, por outro, uma inevitável aproximação entre ambas. É que as duas se
debruçam sobre a convivência humana, o Estado e a política:

[...] não somente para saber como se constituem, nem somente no sentido de
uma obra de arte ou de uma teoria da constituição, mas, em última instância,
no sentido de que constituem uma ciência da ordem. Têm uma tarefa comum,
pois têm que responder à velha questão de como nós, seres humanos, podemos
chegar a ter uma vida racional e boa (DIAS, 2013, p. 14).

Confira a íntegra da obra de Georg Jellinek no link abaixo


ou acessando o código ao lado:

https://goo.gl/sqAVQN.
12 Ciência política e teoria geral do Estado

Importância da disciplina
Variadas razões justificam o estudo da ciência política e da teoria geral do
Estado. Com efeito, a disciplina tem relevo jurídico e, na pena de Dalmo de
Abreu Dallari, podem ser identificadas três razões para se considerar a matéria
importante (DALLARI, 2013).
A primeira razão é de consciência: quem vive em sociedade precisa saber a
sua organização e o papel que deve cumprir, sob pena de se tornar um autômato
despido de intelectualidade e sem vontade própria.
A segunda razão é de ordem crítica. Assim, devem ser conhecidas as
formas e os métodos pelos quais os problemas sociais serão conhecidos e
as soluções propostas para que se “evite o erro de pretender o transplante,
puro e simples, de fórmulas importadas, ou a aplicação simplista de ideias
consagradas, sem a necessária adequação às exigências e possibilidades da
realidade social” (DALLARI, 2013, p. 13).
A terceira razão é de ordem prática. Isso porque a ciência política e da
teoria geral do Estado colaboram, de forma incisiva, para a elaboração da
ordem jurídica. São, portanto, passos necessários para a compreensão do
Direito de determinada sociedade. Essa perspectiva prática revela ainda o
enfrentamento que deve existir entre as construções teóricas e o cotidiano
daqueles inseridos em determinada comunidade jurídica. De fato, não há
qualquer utilidade em uma reflexão sobre o papel da autoridade e do Estado
que não considere as peculiaridades da sociedade na qual está inserida. Por
isso, deve ser acrescentada uma última boa razão para o estudo da disciplina.
A quarta razão proposta é reativa. De fato, compreender os institutos
é, também, encontrar as suas qualidades e os seus defeitos, suas virtudes
e seus vícios, de modo a buscar o aprimoramento das instituições. Assim,
por exemplo, no que concerne à teoria geral do Estado, não basta apenas
identificar a existência de propostas decorrentes do programa estatal, mas
cumpre perquirir sobre a efetividade da sua atuação. Se o Estado brasileiro
tem uma agenda, cumpre verificar se ela vem sendo cumprida. E, no âmbito
da ciência política, se há um debate sobre a democracia, cumpre refletir sobre
a real possibilidade de participação da comunidade na tomada de decisão. De
igual modo, mudanças nas regras do jogo político podem receber uma reflexão
mais tenaz em razão das posturas adotadas.
Ciência política e teoria geral do Estado 13

BONAVIDES, P. Ciência política. 16. ed. São Paulo: Malheiros, 2009.


CHEVALLIER, J. O Estado pós-moderno. Belo Horizonte: Fórum, 2009.
DALLARI, D. de A. Elementos de teoria geral do Estado. 32. ed. São Paulo: Saraiva, 2013.
DIAS, R. Ciência política. 2. ed. São Paulo: Atlas, 2013.
MORAIS, J. L. B. de; STRECK, L. L. Ciência política e teoria do Estado. 7. ed. Porto Alegre:
Livraria do Advogado, 2010.
CIÊNCIA POLÍTICA
E TEORIA GERAL
DO ESTADO

Felipe Scalabrin
Revisão técnica:

Gustavo da Silva Santanna


Graduado em Direito
Especialista em Direito Ambiental Nacional
e Internacional e em Direito Público
Mestre em Direito
Professor em cursos de graduação e pós-graduação em Direito

S281c Scalabrin, Felipe


Ciência política e teoria geral do estado [recurso
eletrônico] / Felipe Scalabrin, Débora Sinflorio da Silva Melo ;
[revisão técnica: Gustavo da Silva Santanna]. – Porto Alegre :
SAGAH, 2017.

ISBN 978-85-9502-189-1

1. Formas de organização política. 2. Estado. 3. Ciência


política. 4. Teoria geral do estado. I. Melo, Débora Sinflorio
da Silva. II. Título.

CDU 321.01

Catalogação na publicação: Poliana Sanchez de Araujo – CRB 10/2094


Origem do Estado
Objetivos de aprendizagem
Ao final deste texto, você deve apresentar os seguintes aprendizados:

„„ Analisar as teorias de origem do Estado.


„„ Reconhecer a importância da teoria contratualista de Estado.
„„ Distinguir as formações natural e histórica do Estado.

Introdução
Você já percebeu que todas as sociedades civilizadas estão organizadas
em torno de um Estado? Realmente, o cenário mundial confirma que o
convívio organizado do homem é centrado nessa figura considerada
uma sociedade política. Com efeito, as razões pelas quais esse fenômeno
ocorre são indispensáveis para uma correta compreensão das relações
entre o Estado, o indivíduo e outros grupos sociais. Compreender as
origens do Estado significa, também, identificar os limites do seu poder.
Neste capítulo, você estudará as teorias sobre a origem do Estado,
diferenciando a sua formação natural e a sua formação histórica, bem
como conhecerá a importância da teoria contratualista.

Estado como sociedade política


A origem da sociedade revela que o indivíduo se reúne em torno de determi-
nados objetivos de forma organizada e, para atingir tais finalidades, aceita
ou se submete a um poder de caráter social. Assim, revelam-se os elementos
geralmente presentes na sociedade: finalidade, ordem e poder social. Em
uma perspectiva ampla, quando a finalidade almejada reside na criação de
condições gerais para a realização dos objetivos individuais, essa sociedade
é considerada política (DALLARI, 2013).
A sociedade política comunga interesses gerais e individuais, na medida
em que proporciona, a um só tempo, a consecução de fins próprios e de
objetivos comuns para todos os seus integrantes. É frequente, inclusive,
26 Origem do Estado

que se refira à busca do bem comum como a finalidade última de uma


sociedade política considerada na perspectiva mais ampla de participantes.
Nessa percepção mais ampla, quando aceita uma autoridade superior que
estabeleça as regras de convivência em torno desse objetivo comum, surge a
primeira concepção de Estado. De fato, o Estado é uma espécie de sociedade
política. A expressão Estado, porém, é reveladora de momento histórico
determinado e específico.
Coube a Maquiavel o seu emprego na obra O príncipe (1513). Diante
da importância da obra, que apontava as características para um governo
de sucesso no contexto político da Itália, o termo se difundiu ao longo do
século XVII, superando concepções mais tradicionais que faziam alusão ao
“estado” como grande propriedade particular (estados na Espanha e states
na Inglaterra) (DALLARI, 2013). Mais adiante, a expressão passou a ser
empregada apenas quando estivessem presentes algumas características
específicas. Foi então que surgiu, no século XVIII, o chamado Estado mo-
derno (DALLARI, 2013).
A dificuldade em identificar uma exata conceituação sobre o que se en-
tende por Estado deságua em similar desafio para encontrar as suas origens.
Assim, uma primeira corrente defende que a figura do Estado, associada a uma
sociedade organizada, sempre existiu. Não seria concebível uma sociedade
sem Estado. Nesse sentido, o Estado seria justamente o princípio organizador
de toda a humanidade. Por outro lado, uma segunda corrente afirma que o
aparecimento do Estado depende das conveniências e oportunidades de cada
grupo social, dependendo das condições concretas de cada agrupamento em
cada localidade. Por fim, uma terceira corrente destaca que somente pode ser
considerado Estado aquela sociedade política com características próprias e
nascida na metade do século XVII. Para essa concepção, a definição de Estado
não é generalizável, mas um produto histórico decorrente do reconhecimento
da ideia de soberania, isto é, a concentração de poder em determinado território
e sobre uma determinada comunidade — o que somente teria ocorrido no
século XVII (MORAIS; STRECK, 2010).

Apesar de a expressão Estado ser uma inovação difundida no século XVII, a noção de
uma sociedade política organizava já existia na Antiguidade.
Origem do Estado 27

Formação do Estado
A formação do Estado é tema que suscita divergências. Variadas seriam as
possíveis causas para o surgimento dessa sociedade política, sendo frequente
a classificação entre formação originária e formação derivada (AZAMBUJA,
2008). A primeira estaria relacionada ao avanço na organização de um agru-
pamento pela primeira oportunidade, isto é, sem que houvesse uma ordem
política anterior. A segunda diz respeito a situações em que novos Estado
surgem a partir de outros já existentes. Nesse caso, falamos em fracionamento
(quando uma parte do território de um Estado é desmembrada e se constitui
um novo Estado) ou em união (quando dois ou mais Estados se reúnem para
formar um novo Estado).

Teorias naturalistas
As teorias naturalistas buscam explicar a formação originária do Estado a
partir de uma condição espontânea do ser humano. Segundo essas teorias,
haveria uma formação espontânea do Estado, que dispensa qualquer ato volun-
tário da comunidade. Assim, o surgimento do Estado não depende de qualquer
ato específico do homem, mas seria produto da sua natural caminhada em
sociedade. Trata-se, portanto, de uma formação natural e, dessa forma, não
contratual do Estado.
A formação natural do Estado é assim defendida por Darcy Azambuja:

[...] só um fato é permanente e dele promanam outros fatos permanentes: o ho-


mem sempre viveu em sociedade. A sociedade só sobrevive pela organização,
que supõe a autoridade e a liberdade como elementos essenciais; a sociedade
que atinge determinado grau de evolução passa a constituir um Estado. Para
viver fora da sociedade, o homem precisaria estar abaixo dos homens ou
acima dos deuses, como disse Aristóteles, e vivendo em sociedade ele natural
e necessariamente cria a autoridade e o Estado (AZAMBUJA, 2008, p. 109).

As principais causas não contratuais para o surgimento do Estado são siste-


matizadas por Dalmo de Abreu Dallari da seguinte forma (DALLARI, 2013):

Origem familiar — considera que o núcleo familiar é a célula-mãe da socie-


dade política. De fato, a partir da reunião de diversas famílias, a complexidade
do grupo social aumenta e, assim, surge o Estado enquanto figura de reunião
da comunidade. Essa foi a proposta de Fustel de Coulanges ao tratar do sur-
gimento do Estado grego e do Estado romano.
28 Origem do Estado

Origem violenta — considera que o Estado é o resultado da natural su-


perioridade de força de determinado grupo sobre outro. Assim, lembra
Darcy Azambuja que o Estado é, durante os seus primeiros estágios, uma
organização imposta pelo vencedor para manter a dominação do vencido
(AZAMBUJA, 2008). É também denominada teoria da violência ou teoria
da conquista.

Origem econômica — considera que a reunião do sujeito em torno de um


aparato de poder organizado decorre de motivos econômicos. Assim, o Estado
proporciona a reunião de variados interesses, já que ninguém é bastante em
si. Mais do que isso, essa teoria destaca que o Estado proporciona a divisão
do trabalho e a integração de diversas atividades diferentes. Alguns autores,
como Marx e Engels, vão ao extremo dessa teoria para explicar as razões pelas
quais o Estado autoriza tantas desigualdades: na sua origem econômica, ele
institucionalizou a propriedade privada, o acúmulo de patrimônio, a divisão
de classe e, por consequência, a luta entre elas. Sobre o tema, confira a crítica
de Darcy Azambuja (2008, p. 103):

Quanto à luta de classes, o que a história e a sociologia têm demonstrado


é que ela sempre existiu como também sempre existiu a cooperação entre
as classes; que o Estado possa ser frequentemente instrumento dessa luta
é demonstrável; mas, que ele tenha nela sua origem, é história distorcida e
sociologia para propaganda política.

Origem no desenvolvimento interno — considera que toda sociedade humana


tem um Estado em potencial que surgirá à medida que a sua complexidade
aumentar. Assim, uma sociedade pouco desenvolvida dispensa a figura do
Estado, mas uma sociedade com maior desenvolvimento tem por necessidade
o surgimento do Estado. Há, em razão disso, um surgimento do Estado natu-
ralmente decorrente do progresso de uma sociedade.

Teorias contratualistas
As teorias contratualistas buscam explicar a formação originária do Estado a
partir de um ato voluntário do ser humano. Segundo essas teorias, a formação
do Estado depende de uma convenção expressa realizada entre os integrantes
de uma sociedade. Assim, em linhas gerais, o surgimento do Estado dependeria
de um ato concreto de reunião e aceitação, por alguns denominado contrato
social. Trata-se, portanto, de uma formação contratual do Estado.
Origem do Estado 29

Para o pensamento contratualista, a sociedade e o Estado são criações


artificiais da razão humana, derivadas de um consenso, tácito ou expresso, da
maioria dos indivíduos para encerrar o estado de natureza e iniciar o estado
civil. Assim, a origem e a legitimação do Estado são uma decorrência do
contrato entre os indivíduos (MORAIS; STRECK, 2010). O pensamento
contratualista, entretanto, não é uniforme, merecendo especial atenção as
ideias de Hobbes, Locke e Rousseau.
Nesse sentido, Hobbes destaca que, antes da vida em sociedade, o homem se
encontrava em uma fase primitiva, caracterizada pela insegurança e incerteza
constantes. No estado de natureza, para ele, haveria uma eterna guerra de
todos contra todos, derivada do caráter eminentemente negativo do homem
— que não possui uma natureza boa. Assim, com o intuito de preservar a
própria vida, o ser humano lança mão de um pacto em que se despoja dos seus
direitos em detrimento de segurança. Entretanto, como a transgressão é ínsita
ao homem, para garantir o cumprimento do pacto social, o grupo entrega o
poder social para um novo sujeito, que é justamente o Estado. Por essa razão,
a teoria contratualista de Hobbes justifica, a um só tempo, o surgimento da
sociedade organizada (estado civil) e do Estado. Curiosamente, a figura é
chamada, por Hobbes, de Leviatã (“metade monstro e metade deus mortal”),
ente capaz de garantir a paz e a defesa da vida dos seus súditos (MORAIS;
STRECK, 2010, p. 32).

O pensamento do autor inglês traz amplos poderes para o soberano, já que


não há parâmetros naturais para a ação estatal, uma que pelo contrato o ho-
mem se despoja de tudo, exceto da vida, transferindo o asseguramento dos
interesses à sociedade política, especificamente ao soberano. O Estado e o
Direito se constroem pela demarcação de limites pelo soberano que, por não
ser partícipe na convenção instituidora e, recebendo por todo desvinculado
o poder dos indivíduos, tem aberto o caminho para o arraigamento de sua
soberania (MORAIS; STRECK, 2010, p. 34).

Assim, em Hobbes, o Estado “já nasce com poderes supremos” (DINIZ,


2001, p. 152).
Reafirmamos que, para Hobbes, é a manutenção do pacto social que
possibilita a existência de paz entre o grupo social. As condições para o
cumprimento do contrato, por sua vez, são uma providência do soberano
— autorizado a “velar para que o temor ao castigo seja uma força maior
que o fascínio exercido pelo desejo de qualquer vantagem possa esperar de
uma violação do contrato” (DINIZ, 2010, p. 161). Com efeito, para Hobbes,
a submissão absoluta é o preço a ser pago pelo súdito pela salvação trazida
30 Origem do Estado

pelo Estado (DIAS, 2013). Por essa razão, o seu pensamento é inspiração do
modelo absolutista.
Ao pensamento de Hobbes, contrapõe-se Locke — defensor das liberda-
des individuais e fervoroso antagonista do modelo absolutista. Para ele, no
estado de natureza, o homem já possui um domínio racional de suas paixões
e seus interesses, de modo que não se pode considerar a existência de uma
guerra potencial. Pelo contrário, nesse estágio inicial da sociedade, há uma
paz relativa que permite ao homem identificar os seus limites e reconhecer
a existência de alguns direitos. De fato, no pensamento de Locke, existem
diversos direitos inatos ao homem, como a vida, a liberdade e a propriedade.
Falta, porém, uma força coercitiva apta a solucionar conflitos que possam
surgir (MORAIS; STRECK, 2010).
A necessidade de uma força coercitiva para assegurar a proteção dos direitos
inatos ao homem conduz à elaboração de um pacto entre os integrantes da
sociedade. Surge, então, o contrato social como ferramenta de legitimação do
poder e de manutenção dos direitos naturais. Assim, o pacto se sustenta na
necessidade de proteção de direitos previamente existentes e na sua proteção
contra possíveis conflitos. Surgem, assim, o estado civil e a fonte da autoridade
estatal. Verificamos, nesse panorama, o caráter individualista de Locke: o
surgimento do estado civil se dá para resguardar os direitos naturais de cada
sujeito (MORAIS; STRECK, 2010), em especial, a propriedade (APPIO,
2005). O poder do Estado, nessa linha, já surge limitado aos direitos naturais
antes existentes.
Como podemos perceber, enquanto Hobbes via no Estado um ente ple-
nipotente, Locke identifica no Estado um ente com poder delimitado. Por
essa razão, defende ele que os sujeitos do contrato podem se opor ao Estado
quando houver violação a direitos naturais. Existe, pois, direito de resistên-
cia na sociedade política defendida por Locke (MORAIS; STRECK, 2010).
Ainda, para ele, quando já instaurados a sociedade e o Estado, além do limite
inicial decorrente dos direitos naturais, deverá ser observado o princípio
da maioria. Assim, haverá uma proeminência do Poder Legislativo sobre o
Poder Executivo (MORAIS; STRECK, 2010). Além disso, a observância da
lei é impositiva, porque é fundada no próprio contrato social — o deixar de
seguir a lei criado pelo Poder Legislativo é o mesmo que querer retornar ao
estado natural (APPIO, 2005).
Origem do Estado 31

No pensamento de Locke, o soberano é limitado pelos direitos naturais e pela própria


sociedade civil. Vale lembrar que Locke, além de ser o pai do liberalismo, é considerado
uma das maiores influências históricas da Revolução Inglesa (1688) e da Revolução
Americana (1776).

O pensamento de Rousseau também é digno de referência, já que confirma


a evolução da origem do Estado de um modelo absolutista para um modelo
democrático. Com Rousseau, a tese do estado de natureza apenas facilita o
entendimento da sociedade. Na realidade, a formação de uma sociedade teria
maior caráter histórico. É célebre a sua afirmação de que, quando o primeiro
homem reivindicou propriedade e os demais, ingênuos, aceitaram, teria surgido
a sociedade. Assim, a noção de estado de natureza é emprestada apenas para
ilustrar o contrato social e a legitimidade do poder social.
Na compreensão de Rousseau, para manter a liberdade e a igualdade do
indivíduo, propõe-se que o contrato social seja uma entrega do particular (vontade
individual) para o geral (vontade geral), de modo que, quando ocorre a incursão
no estado civil, não há uma abdicação da liberdade, mas sim uma entrega dela
para toda a comunidade. E, como o sujeito faz parte do grupo social, não há
qualquer perda. Pelo contrário, no pacto social, o indivíduo mantém a sua
condição de liberdade e igualdade. É, pois, no princípio da vontade geral que
reside a legitimidade do poder em Rousseau (MORAIS; STRECK, 2010). Nessa
linha de entendimento, o poder não decorre da submissão a um terceiro, mas
da união havida entre iguais. Trata-se de concepção na qual cada um renuncia
a seus interesses particulares em detrimento da coletividade. Confira:

Enfim, dando-se cada um a todos, não se dá a ninguém, e como não haverá


nenhum associado sobre o qual não se adquira o mesmo direito que se cedeu,
ganha-se o equivalente a tudo que se perde e mais força para se conservar
aquilo que se tem. Se, afinal, retira-se do pacto social aquilo que não pertence
à sua essência, veremos que ele se reduz aos seguintes termos: cada um põe
em comum sua pessoa e todo seu poder sob suprema direção da vontade
geral; e enquanto corpo, recebe-se cada membro como parte indivisível do
todo (ROUSSEAU, 2017, p. 24).
32 Origem do Estado

A primordial contribuição desse pensamento é o tom democrático: é in-


dispensável o respeito à vontade geral encarnada na maioria. O poder, nessa
passagem, não mais pertence a um príncipe ou oligarca, mas à própria co-
munidade. Traz, por outro lado, a problemática reversa: Rousseau consagra o
despotismo da maioria e sufoca qualquer pensamento político contrário à voz
dominante (MORAIS; STRECK, 2010). Seja como for, no seu pensamento, há
uma inegável proposta de limitação do Estado, já que o soberano não tem o
direito de sobrecarregar um indivíduo em detrimento do outro (DIAS, 2013):

Assim, fica claro que o poder soberano, por mais que seja totalmente abso-
luto, sagrado e inviolável, não ultrapassa nem pode ultrapassar os limites
das convenções gerais, e que todo homem pode dispor plenamente dos seus
bens e da sua liberdade naquilo que foi estipulado por essas convenções; de
modo que o soberano nunca tem direito de sobrecarregar mais um súdito que
o outro, uma vez que seu poder não é mais competente, quando o assunto se
torna particular” (ROUSSEAU, 2017, p. 40).

A importância da teoria contratualista da formação do Estado é inegável,


já que não apenas revela a proteção de direitos do indivíduo como também
enuncia que o Estado, desde a sua origem, é limitado.

APPIO, E. Teoria geral do Estado e da constituição. Curitiba: Juruá, 2005.


AZAMBUJA, D. Teoria geral do Estado. 4. ed. São Paulo: Globo, 2008.
BONAVIDES, P. Ciência política. 16. ed. São Paulo: Malheiros, 2009.
DALLARI, D. de A. Elementos de teoria geral do Estado. 32. ed. São Paulo: Saraiva, 2013.
DIAS, R. Ciência política. 2. ed. São Paulo: Atlas, 2013.
DINIZ, A. C. de A. Direito, Estado e contrato social no pensamento de Hobbes e Locke:
uma abordagem comparativa. Revista de Informação Legislativa, Brasília, v. 29, n. 152,
out./dez. 2001.
MORAIS, J. L. B. de; STRECK, L. L. Ciência política e teoria do Estado. 7. ed. Porto Alegre:
Livraria do Advogado, 2010.
ROUSSEAU, J.-J. Do contrato social. Petrópolis: Editora Vozes, 2017.
CIÊNCIA POLÍTICA
E TEORIA GERAL
DO ESTADO

Débora Sinflorio da Silva Melo


Sistemas de governo
Objetivos de aprendizagem
Ao final deste texto, você deve apresentar os seguintes aprendizados:

„„ Apresentar os sistemas de governo.


„„ Explicar o sistema presidencialista.
„„ Explicar o sistema parlamentarista.

Introdução
Neste capítulo, você vai ler a respeito do nascimento de importantes
sistemas governamentais responsáveis pelo funcionamento de cada país.
Primeiro, serão analisados e nomeados cada um dos sistemas, ou seja, o
presidencialismo, o semipresidencialismo e o parlamentarismo. Na sequ-
ência, será aprofundado o estudo dos sistemas de governo presidencial
e parlamentar, relacionando-os e diferenciando-os entre si.
Aproveite a análise dos sistemas de governo e comprove a sua im-
portância para o Estado.

Dos sistemas de governo


Segundo o professor José Geraldo Brito Filomeno (2016, p. 191), os sistemas
de governo seriam “os tipos de exercício das funções do poder político, de
acordo com o relacionamento que mantenham entre si os órgãos das funções
legislativas, de um lado, e executiva, de outro”.
Nesse sentido, você pode entender que, independentemente do sistema de
governo adotado (presidencialismo, semipresidencialismo ou parlamentarismo)
e de ter sido criado ou ser decorrente de um processo evolutivo político, cada
um possui particularidades importantes para o funcionamento de um país.
Além disso, o sistema de governo não deve ser confundido com as formas
de governo nem com as formas de Estado (unitário, regional ou federativo);
assim, o sistema de governo se relaciona entre os Poderes Executivo e Legis-
lativo, e a forma de governo, entre os governantes e governados.
Sistemas de governo 105

Tratando-se da relação política entre Executivo e Legislativo, atualmente é


perceptível um grande embate entre esses poderes, agravado principalmente
por crises políticas que têm assolado diversos países, bem como escândalos de
corrupção envolvendo líderes políticos. O Brasil e a Venezuela, por exemplo,
principalmente desde 2016, sofrem com a desestabilização do poder, do sistema
político e das formas de governo adotadas. Como resultado, os especialistas
políticos e os parlamentares passaram a destacar a necessidade de uma ur-
gente reformulação das concepções de governo adotadas na atualidade, seja
em relação à forma de governo ou ao sistema adotado, pois, do contrário, a
sociedade seguiria sofrendo as mazelas de um desgoverno presidencialista,
parlamentarista ou semipresidencialista.

Presidencialismo
O presidencialismo é o sistema de governo adotado pelo Brasil e pela maioria
dos países americanos. Esse fato decorre principalmente em razão do seu
surgimento, visto que, ao contrário do sistema parlamentarista, o sistema
presidencial não evoluiu com o tempo, como ocorreu com o parlamentarismo.
O sistema presidencial nasceu nos Estados Unidos da América (EUA)
em consequência da revolução liberal norte-americana e da Constituição de
1787 (Filadélfia), a qual previa a monarquia constitucional eletiva, ou melhor,
a república como forma de governo e a adoção do presidencialismo como
sistema. Nesse novo sistema, um indivíduo seria eleito pelo povo e teria a
responsabilidade de exercer a função de chefe de Estado e chefe de governo. No
caso dos EUA, o primeiro presidente eleito foi George Washington (1789–1797).
No presidencialismo, o presidente é eleito por meio do sufrágio univer-
sal (voto) para administrar e governar o Estado por um período de 4 anos,
sendo possível, em alguns países, a reeleição presidencial por igual período.
Ressalta-se que, junto com o presidente, também é eleito o vice-presidente. O
presidente, diversamente do primeiro-ministro (sistema parlamentar), exerce
a função de chefe de Estado e chefe de governo; por isso, detém maior poder
hierárquico, como, por exemplo, o de rejeitar lei propostas pelo Congresso.
No Congresso (Poder Legislativo), os membros que o compõem (bicameral
— duas câmaras) são eleitos por meio de sufrágio universal, como, por exemplo,
os deputados e senadores; já os ministros são indicados pelo presidente. Assim,
é possível perceber a separação de poderes elaborada por Montesquieu, sobre-
tudo no que diz respeito ao Executivo na pessoa do presidente e ao Legislativo
em relação ao Congresso. Nesse sentido, ao final, há dois centros de poder
106 Sistemas de governo

institucionalizados, nos quais não há um órgão governamental que, em caso de


conflito entre os Poderes Executivo e Legislativo, interponha-se como mediador.
No caso do sistema presidencialista, caso o presidente, durante o seu governo,
cometa algum crime de responsabilidade, estará sujeito a processo de impea-
chment, que, caso aceito, resultará no afastamento do presidente e, caso aceito
de forma favorável pelo Senado Federal, resultará na destituição do presidente.

No caso do Brasil, a ex-presidente Dilma Rousseff foi


destituída do cargo presidencial e substituída pelo vice-
-presidente, atual presidente Michel Temer, em 2016, em
consequência de um processo de impeachment. Para saber
mais, veja o link da cronologia do processo instalado contra
a ex-presidente:

https://goo.gl/I6Ra5J

Segundo Sartori (1993), para que um sistema presidencialista seja consi-


derado puro, como é o dos EUA, deve reunir os seguintes critérios:

1. a escolha do chefe de Estado (presidente) resulta de eleições populares;


2. durante o mandato preestabelecido, o chefe de Estado não pode ser
demitido pelo voto parlamentar;
3. o chefe de Estado chefia o governo ou governos por ele próprio nomeados.

Uma das principais críticas ao sistema presidencialista é que, em razão da


aliança entre o presidente e os partidos aliados, ocorre um desequilíbrio de
poder e o favorecimento, em desprezo das obrigações governamentais e do povo.

No caso do Brasil, a Constituição Federal de 1988 prevê, nos arts. 84 a 86, as atribuições e
responsabilidades do presidente da República; já os arts. 44 a 75 abordam a organização
do Poder Legislativo brasileiro. Leia e estude os artigos constitucionais.
Sistemas de governo 107

E você, o que pensa sobre o sistema presidencialista?

Semipresidencialismo
O semipresidencialismo é uma mescla do parlamentarismo e do presidencia-
lismo. Tal sistema se originou na França (Revolução Francesa), com a culmi-
nação da Constituição de 1791 e a instituição da monarquia constitucional.
Posteriormente, com a Constituição de 1793, surgiu na França o governo da
assembleia — parlamento.
No semipresidencialismo, ainda que o presidente possua autonomia de
poder, compartilha-a com o primeiro-ministro. Logo, diferentemente do sistema
presidencialista e do parlamentarismo, o presidente exerce a função de chefe
de Estado, e o primeiro-ministro, a função de chefe de governo. Ao povo, por
meio do sufrágio universal, é concedido o poder de eleger o presidente e os
membros que compõem as câmaras parlamentares.
Convém destacar que, no sistema semipresidencial, o presidente tem o
poder de primeiro-ministro, mas cabe ao Parlamento, em caso de necessi-
dade, destituir o primeiro-ministro. Essa regra, porém, não é absoluta, pois o
presidente tem o poder discricionário de dissolver ao Parlamento; logo, com
isso, destitui-se o primeiro-ministro.

Considerando o maior equilíbrio entre os Poderes Executivo e Legislativo (estrutura


bicameral), o sistema de governo semipresidencialista tem sido cogitado por especialis-
tas políticos como a melhor alternativa de sistema de governo para gerenciar um país.

Você acha que o sistema semipresidencialista poderia ser uma alternativa


para o Brasil? Opine e discuta com os seus colegas a respeito.

Parlamentarismo
O parlamentarismo é um sistema de governo representativo que, diferentemente
do presidencialismo, originou-se por meio de longo e contraditório processo
evolutivo político monárquico, decorrente de embates de poder entre os con-
108 Sistemas de governo

selheiros (Grande Conselho) e o monarca regente do Reino Unido, o que deu


origem a revoluções e conflitos.
Os conselheiros reais, compostos por representantes do clero e da nobreza,
tinham a incumbência de auxiliar e orientar o rei na administração do reino,
fato marcado durante o século XII. Contudo, no reinado de Henrique III, o
Grande Conselho, que viria a ser chamado posteriormente de Parlamento,
era desprestigiado pelo rei e, em consequência da necessidade de apoio fi-
nanceiro, de respeito à Magna Carta de 1215 e da pressão dos membros do
Grande Conselho, Henrique III teve que ceder e conferir ao Grande Conselho
o status de Parlamento.
O parlamentarismo aflorou em razão da famosa revolução inglesa, A Glo-
riosa, que nada mais foi do que a deposição do rei Jaime II pela sua filha Maria
e pelo seu genro holandês Guilherme de Orange. Somada à Declaração de
Direitos (Bill of Rights), a revolução findou o absolutismo monárquico, pois,
a partir de então, o rei não governaria sem o apoio do Parlamento, surgindo,
dessa forma, o gabinete ministerial parlamentar (cabinet), o qual seria presidido
por um primeiro-ministro.
Diversamente do presidencialismo, no surgimento do sistema parlamentar
inglês, o rei exerceu a função de chefe de Estado e, ao primeiro-ministro,
competia a função de chefe de governo.
Segundo dados históricos, em 1721, Sir Robert Walpole foi nomeado como
primeiro-ministro inglês, competindo-lhe liderar e conduzir as decisões do
parlamento, informando-as ao soberano.
Para Sartori (1993, p. 192):

Desde o ponto de vista Legislativo é atribuído o direito e dever de legislar


sobre grande quantidade de procedimentos de natureza particular, admi-
nistrativa e meramente regulamentar. E desde o ponto de vista executivo
significa que o governo sente-se obrigado a governar — legislando, ou seja,
tornar executivas as decisões políticas (não necessariamente todas), segundo
a forma das normas jurídicas.

O parlamento inglês, por exemplo, é bicameral (ou seja, composto por duas
câmaras): a comum ou alta, cujos membros são eleitos por voto, e a dos lordes
ou baixa, cujos membros são nomeados pelo rei. Convém destacar que alguns
países que adotam o sistema parlamentar utilizam o sistema unicameral (única
câmara), como é o caso da Grécia.
No parlamentarismo, para que o parlamento seja dissolvido, é necessária
a realização de eleições, fato distinto do sistema semipresidencial. Essa pos-
sibilidade, no sistema parlamentar, decorre do fato de não haver prazo fixo
Sistemas de governo 109

para que o primeiro-ministro ocupe o cargo, uma vez que a sua adoção e o
seu funcionamento do governo dependem da confiança com o Parlamento.
Você sabe dizer quais e quantos países adotam o regime parlamentar?
Aproveite o estudo do tema e investigue.

Parlamentarismo dualista e parlamentarismo monista


Parafraseando o professor Paulo Bonavides (2007), o parlamentarismo dua-
lista seria o processo evolutivo e histórico com o encontro das prerrogativas
monárquicas em declínio, com a autoridade política do povo em ascensão,
com a igualdade e a colaboração entre o executivo e o legislativo, e meios de
ação recíproca no funcionamento do Executivo e do Legislativo.
Já o parlamentarismo monista teria como base a soberania popular, de
governo parlamentar, com predomínio da assembleia em relação à competência
do presidente da República. Para Bonavides (2007), o presidente cuja autoridade
procede o executivo seria diminuída para o exercício de uma magistratura
moral implícita nas funções de chefia de Estado.
Importante destacar que a maioria dos países europeus adota o sistema
parlamentarista.

Para saber mais sobre o tema e analisar as vantagens e desvantagens de cada sistema
de governo, consulte o livro Ciência política (BONAVIDES, 2007).
110 Sistemas de governo

BONAVIDES, P. Ciência política. São Paulo: Malheiros, 2007.


FILOMENO, J. G. B. Teoria geral do Estado e da constituição. 10. ed. rev., atual. e ampl.
Rio de Janeiro: Forense, 2016.
MEGACURIOSO. 4 coisas em que o parlamentarismo é diferente do presidencialismo. 2016.
Disponível em: <https://www.megacurioso.com.br/politica/98325-4-coisas-em-que-
-o-parlamentarismo-e-diferente-do-presidencialismo.htm>. Acesso em: 23 ago. 2017.
SARTORI, G. Nem presidencialismo, nem parlamentarismo. Revista Novos Estudos, v. 35,
mar. 1993.
RIBEIRO, R. Presidencialismo de coalizão: hora de rever algumas convicções? 2014. Dis-
ponível em: <economistax.blogspot.com.br/2014/08/presidencialismo-de-coalizao-
-hora-de.html>. Acesso em: 23 ago. 2017.

Leituras recomendadas
BASTOS, C. R. Curso de teoria do Estado e ciência política. 6. ed. São Paulo: Saraiva, 2004.
BOBBIO, N. A teoria das formas de governo. 9. ed. Brasília: Editora Universidade de
Brasília,1997.
FERRAJOLI, L. Poderes selvagens: a crise da democracia italiana. São Paulo: Saraiva, 2014.
SARTORI, G. Elementos de teoría política. Madrid: Alianza Editorial, 2002.
STRECK, L. L.; MORAIS, J. L. B. de. Ciência política e teoria geral do Estado. 7. ed. Porto
Alegre: Livraria do Advogado, 2010.
Revisão técnica:

Gustavo da Silva Santanna


Graduado em Direito
Especialista em Direito Ambiental Nacional
e Internacional e em Direito Público
Mestre em Direito
Professor em cursos de graduação e pós-graduação em Direito

S281c Scalabrin, Felipe


Ciência política e teoria geral do estado [recurso
eletrônico] / Felipe Scalabrin, Débora Sinflorio da Silva Melo ;
[revisão técnica: Gustavo da Silva Santanna]. – Porto Alegre :
SAGAH, 2017.

ISBN 978-85-9502-189-1

1. Formas de organização política. 2. Estado. 3. Ciência


política. 4. Teoria geral do estado. I. Melo, Débora Sinflorio
da Silva. II. Título.

CDU 321.01

Catalogação na publicação: Poliana Sanchez de Araujo – CRB 10/2094


Estado e democracia
Objetivos de aprendizagem
Ao final deste texto, você deve apresentar os seguintes aprendizados:

„„ Conceituar o que é democracia.


„„ Diferenciar democracia direta, semidireta e representativa.
„„ Demonstrar a crise na democracia atual.

Introdução
Não há Estado sem um correspondente regime de governo. Para su-
prir uma lacuna a esse respeito, a partir do século XVIII, difundiu-se o
regime democrático. Assim, cumpre perquirir acerca da democracia, o
seu conceito e as suas espécies, bem como refletir sobre as suas reais
possibilidades de concretização no Estado contemporâneo.
Neste capítulo, você vai ler a respeito da democracia em suas múltiplas
facetas, passando pela dimensão conceitual e histórica. Vai também
diferenciar democracia direta, semidireta e representativa, bem como
analisar a crise na democracia atual.

A democracia do passado
Enquanto organização política, o Estado se apresenta por meio de variados
regimes de governo diferentes. Com efeito, o tema das formas de governo
suscita polêmica desde a Antiguidade. Com o advento do Estado moderno,
entretanto, a ideia de democracia se sedimenta e permite a afirmação de
alguns valores fundamentais, como a noção de governo do povo, que jaz na
essência dessa expressão. A presença de um Estado democrático na acepção
atual, porém, possui as suas raízes no século XVIII e não desconsidera as
influências do passado (DALLARI, 2013).
Na Antiguidade, o Estado grego vivenciou a democracia em termos práticos
e teóricos. No plano teórico, Aristóteles destacou, na sua insuperável reflexão
sobre as espécies de governo, que poderia caber a um só indivíduo, a um grupo
76 Estado e democracia

de sujeitos ou a toda uma coletividade. Organizou-se, então, a distinção entre


monarquia, aristocracia e democracia.
Para o pensamento grego, entretanto, a noção de cidadania era restrita, de
modo que, mesmo em uma democracia, o governo não seria entregue a toda a
população. Na concepção de Aristóteles, “a virtude política, que é a sabedoria
para mandar e obedecer, só pertence àqueles que não têm necessidade de
trabalhar para viver, não sendo possível praticar-se a virtude quando se leva a
vida de artesão ou de mercenário” (DALLARI, 2013, p. 146). A crítica moderna
ao modelo democrático grego decorreu justamente da presença da escravidão,
já que pressupunha um grande grupo de sujeitos que não participariam da
vida política (BONAVIDES, 2009).
O mais célebre exemplo de democracia exercida na Antiguidade fica com a
Atenas de Péricles e historiada por Tucídides, no Livro II da História da Guerra
do Peloponeso. A partir desse relato, é possível identificar a presença de um
governo em que a democracia é louvada (MOREIRA, 1997). Esse cenário
histórico revela algumas características da democracia antiga: a liberdade
de opinião ou expressão (isagoria), a igualdade de todos perante a lei, sem
diferença de grau, classe ou riqueza (isonomia), e o livre acesso de todos ao
exercício das funções públicas (isotimia) (BONAVIDES, 2009).
Com efeito, “a referência à pratica da democracia em algumas cidades
gregas, em breves períodos, seria insuficiente para determinar a preferência
pela democracia, que se afirmou a partir do século XVIII em todo o hemisfério
ocidental, atingindo depois o restante do mundo” (DALLARI, 2013, p. 146).

Foi necessário, assim, um intenso debate de contestação ao poder concentrado nas


mãos de poucos para que o discurso sobre a democracia ganhasse fôlego, o que, de
fato, ocorreu. Novamente, contribuições teóricas e situações concretas permitiram o
advento do Estado democrático.

Assim, no plano teórico, o pensamento de Rousseau, valorizando a vontade


geral, ainda que cético quanto à possibilidade de um governo democrático,
só não foi mais importante do que o ideário de Locke. Com ele, afirmaram-
-se direitos naturais e a importância de um poder legislativo sempre sujeito
ao povo. Nessa ordem de pensamento, a comunidade mantém o poder de
Estado e democracia 77

se salvaguardar dos governantes e até mesmo do legislador. Além disso,


“quem detiver o poder legislativo ou o poder supremo de qualquer comu-
nidade, obriga-se a governá-la mediante leis estabelecidas, promulgadas e
conhecidas do povo, e não por meio de decretos que surpreendam o povo”
(DALLARI, 2013, p. 148).
Não faltaram também situações concretas que colaboraram, de forma
determinante, para a valorização da democracia. Assim, a Revolução Inglesa
testemunhou a ascensão das cartas de direitos, como, por exemplo, o Bill of
Rights (1689) e a Declaração de Independência das 13 colônias americanas,
que viriam a se tornar os Estados Unidos da América (1776), o que implicou
a afirmação do poder político e da supremacia do povo. Além disso, a Re-
volução Francesa foi propícia para reconhecer que nenhuma limitação pode
ser imposta ao indivíduo, salvo pela lei, que é expressão da vontade geral da
nação (1789). A proteção de direitos universais e da participação política é o
sustentáculo da revolução.
Essa soma de fatores permitiu a Dalmo de Abreu Dallari identificar
as características essenciais do Estado democrático do século XVIII
(DALLARI, 2013):

„„ a supremacia da vontade popular, com a possibilidade de participação


do povo na tomada de decisões do governo;
„„ a preservação da liberdade, com o reconhecimento de direitos e a não
interferência do Estado na esfera particular;
„„ a igualdade de direitos, com a proibição de tratamento diferenciado em
razão de classes ou motivos econômicos.

Apesar da importância da experiência democrática grega, a afirmação da democracia


somente tem início com o pensamento do século XVIII.

A democracia do presente
A força do pensamento democrático implicou a utilização desse regime de
governo na maioria dos Estados do século XXI. Na atualidade, são raros os
governos que não se proclamem democráticos (BONAVIDES, 2009). Ainda
78 Estado e democracia

existe, porém, grande dificuldade teórica e prática na sua identificação. De


fato, não é incomum a mera exaltação de um governo como democrático sem
que, na realidade, existam instrumentos de participação política do povo. Além
disso, controverte-se sobre a essência da democracia.
O que é a democracia? A tormentosa indagação não tem resposta fixa
perante a ciência política diante de tantas controvérsias, havendo, inclusive,
célebre crítica no pensamento de Rousseau (2017, p. 75): “Se houvesse um
povo de deuses, esse povo se governaria democraticamente”.
Sob o aspecto formal, destacamos três espécies de democracia presentes
ao longo da história. São as seguintes:

Democracia direta — nela, o poder político é exercido diretamente pelo


povo, sem qualquer intermediação ou representação. O exemplo evidente de
democracia direta estaria na Antiguidade, com os gregos. De fato, o cidadão
grego via na organização do Estado não apenas o prolongamento de suas ações,
mas o elemento condicionante de sua própria existência. Na Grécia antiga, o
interesse pela vida pública era inerente à condição de cidadão (BONAVIDES,
2009). Alguns destacam, entretanto, que nem mesmo a democracia grega
poderia ser considerada direta, na medida em que impunha severa restrição
ao conceito de cidadania. Assim, o governo poderia ser considerado do povo,
mas pouquíssimos indivíduos eram considerados “o povo”. Outro exemplo de
democracia direta estaria presente em alguns Cantões da Suíça, por meio do
Landsgemeinde. Nesses lugares, há assembleias abertas a todos os cidadãos
do Cantão para que, querendo, exerçam seu direito de voto em determinadas
questões políticas. De todo modo, mesmo nesses casos, a convocação da
assembleia depende de uma prévia aprovação de representantes eleitos para
tanto (DALLARI, 2013). Razões de ordem prática confirmam a dificuldade de
uma democracia direta na era moderna: “Até mesmo a imaginação se perturba
em supor o tumulto que seria congregar em praça pública toda a massa do
eleitorado, todo o corpo de cidadãos, para fazer as leis, para administrar”
(BONAVIDES, 2009, p. 293).

Democracia indireta — nela, o poder político é exercido pelo povo por meio
de representantes eleitos, razão pela qual também é denominada democracia
representativa. Nesse caso, o povo confere um mandato a alguns cidadãos
para que eles exerçam o poder político. É esse regime democrático que pro-
move o surgimento de uma classe específica de sujeitos cujos propósitos são
a elaboração e discussão de novas leis e a administração do poder público. É
a classe política. A partir do século XIX, a especialização dá mais um passo
Estado e democracia 79

com o surgimento dos partidos políticos. O modelo se difundiu nos Estados


Democráticos, mas não sem críticas (DALLARI, 2013). Assim, é possível
destacar que a representação somente é eficaz quando o povo tem plenas con-
dições de compreender o debate e as opções apresentadas, o que dificilmente
ocorre. Além disso, muitas vezes, a atuação do representante não condiz com
as ideias do programa partidário, revelando maior interesse pela conquista ou
manutenção do poder do que pelos interesses do mandatário (DALLARI, 2013).

Democracia semidireta — nela, o poder político é exercido pelo povo por meio
de representantes eleitos, mas que também conta com institutos que permitem
a discussão de determinados temas diretamente pelo povo. A democracia
semidireta é uma aproximação da democracia representativa e da democracia
direta, com a criação de instrumentos que “[...] fazem efetiva a intervenção do
povo” (BONAVIDES, 2009). Nessa forma, portanto, a atuação do povo não
se limita à eleição de governantes e legisladores, mas compreende também a
efetiva tomada de decisão.
Na democracia semidireta, avulta a participação jurídica do povo, já que,
em casos específicos, torna-se diretamente competente pela ordem normativa
a estabelecer a tomada de decisão sobre certos assuntos. Caberá, entretanto,
a cada Estado definir a extensão da participação direta do povo. No plano
teórico, alguns autores apresentam os seguintes institutos de atuação do
povo na democracia semidireta:

Referendo — consiste na consulta ao povo para que delibere sobre matéria


relevante, adquirindo o poder de sancionar leis ou emendas constitucionais.
A característica essencial do referendo consiste em consulta após a tomada
de uma decisão para que seja confirmada ou não. Em síntese, “o objetivo é
perguntar ao povo se ele confirma ou não uma decisão já tomada” (DALLARI,
2013, p. 154).

Plebiscito — consiste na consulta ao povo para que delibere sobre matéria


relevante antes da elaboração do ato normativo ou administrativo. Assim, a
característica essencial do plebiscito é representar uma consulta prévia ao
povo sobre determinado tema. É somente com o resultado da opinião do povo
que serão adotadas as medidas legislativas ou administrativas pertinentes.

Iniciativa popular — é a possibilidade de um número previamente deter-


minado de eleitores dar início ao processo legislativo, com a propositura de
novas leis ou emendas à Constituição.
80 Estado e democracia

Veto popular — é a faculdade conferida ao povo para que se manifeste


contrário a uma medida ou lei já devidamente elaborada e em vias de ser
colocada em execução (BONAVIDES, 2009). Aqui, um número previamente
determinado de eleitores, em prazo determinado, poderá requerer que uma
lei já publicada seja submetida à aprovação ou rejeição do eleitorado. Vale
registar que alguns autores consideram o veto espécie de referendo.

Revogação — é a faculdade conferida ao povo para que promova o término


antecipado de um mandato eletivo, isto é, antes do decurso do prazo legalmente
previsto. A revogação é, portanto, um mecanismo que permite ao povo o controle
imediato do mandato da classe política. A mais conhecida espécie de revogação
é o chamado recall previsto nos Estados Unidos da América. Por meio do recall,
o eleitorado poderá “destituir funcionários, cujo comportamento, por qualquer
motivo, não lhe esteja agradando” (BONAVIDES, 2009, p. 313), desde que
observadas, evidentemente, as regras que regulamentam o instituto.
Na experiência democrática brasileira, existem diversos instrumentos
que qualificam a democracia representativa, razão pela qual a Constituição
Federal prestigia a forma semidireta de democracia. Assim, por exemplo,
existe a possibilidade constitucional de plebiscito e referendo (art. 14, I e II,
da Constituição Federal de 1988). Ambos estão detalhados na Lei nº 9.709,
de 18 de novembro de 1998. Confira:

Art. 2º Plebiscito e referendo são consultas formuladas ao povo para que


delibere sobre matéria de acentuada relevância, de natureza constitucional,
legislativa ou administrativa.
§ 1º O plebiscito é convocado com anterioridade a ato legislativo ou admi-
nistrativo, cabendo ao povo, pelo voto, aprovar ou denegar o que lhe tenha
sido submetido.
§ 2º O referendo é convocado com posterioridade a ato legislativo ou admi-
nistrativo, cumprindo ao povo a respectiva ratificação ou rejeição.
Art. 3º Nas questões de relevância nacional, de competência do Poder Legislati-
vo ou do Poder Executivo, e no caso do § 3º do art. 18 da Constituição Federal,
o plebiscito e o referendo são convocados mediante decreto legislativo, por
proposta de um terço, no mínimo, dos membros que compõem qualquer das
Casas do Congresso Nacional, de conformidade com esta Lei (BRASIL, 1998).

A iniciativa popular também é um instituto expressamente previsto na


Constituição Federal. Em âmbito nacional, isto é, para a proposição de leis
ordinárias, ela pode ser exercida pela apresentação à Câmara dos Deputados de
projeto de lei subscrito por, no mínimo, 1% do eleitorado nacional, distribuído
por, pelo menos, cinco Estados, com não menos de 0,3% dos eleitores de cada
Estado e democracia 81

um desses Estados, nos termos do art. 61, § 2º, da Constituição Federal de


1988. Já no âmbito municipal, isto é, para a proposição de leis municipais, é
necessária a manifestação de, pelo menos, 5% do eleitorado, nos termos do
art. 29, XIII, da Constituição Federal de 1988.
A partir da existência de instrumentos formais de participação, Norberto
Bobbio (1997, p. 30) apresenta a seguinte definição: “O único modo de se chegar
a um acordo quando se fala de democracia, entendida como contraposta a todas
as formas de governo autocrático, é o de considerá-la caracterizada por um
conjunto de regras que estabelecem quem está autorizado a tomar as decisões
coletivas e com quais procedimentos”. Nesse sentido, a democracia diz respeito
ao titular do poder e ao modo pelo qual o poder é legitimamente exercido.

A democracia do futuro
A adoção generalizada de formas democráticas semidiretas revelou as defici-
ências do modelo e as crises a ele inerentes. Assim, Paulo Bonavides destaca
a crise na legitimidade dos partidos políticos e a fragilidade dos institutos de
manifestação direta do povo.
Quanto aos partidos políticos, “a lição de nossa época demonstra que não raro
os partidos, considerados instrumentos fundamentais da democracia, se corrom-
pem” (BONAVIDES, 2009, p. 299), ou seja, desviam-se de seus interesses e não
mais espelham os ideais políticos que defendiam, vitimando o povo do logro. De
fato, nos dias atuais, existe uma intensa crise de legitimidade dos partidos políticos.
Quanto aos institutos de participação direta tradicionalmente reconhe-
cidos, vimos a sua ineficiência (BONAVIDES, 2009). Mecanismos idealizados
como autênticos meios de transformação social sucumbiram a uma realidade
indiferente e conservadora, sendo pouco empregados e, quando utilizados,
trazendo resultados conservadores e sem significativo impacto (BONAVIDES,
2009). Assim, a presença de instrumentos de participação não teve o condão
de atrair o povo para o cenário político.
Nessa mesma linha, Norberto Bobbio faz uma intensa crítica ao modelo
democrático representativo e destaca que essa democracia se tornou um am-
biente de promessas não cumpridas.
Para ele, as seis promessas não cumpridas pela democracia represen-
tativa são (BOBBIO, 1997):

„„ a vontade geral como centro de poder — a realidade social demonstrou


que não existe apenas um foco de força política, como pretendiam os
idealizadores da democracia, de sorte ser impossível alcançar uma única
82 Estado e democracia

vontade geral, já que efetivamente existem, de fato, diversos núcleos


de poder que coexistem;
„„ a contenda de interesses — o representante deveria apenas buscar os
interesses de toda a coletividade, mas, de fato, busca os interesses
daqueles que o colocaram no poder;
„„ a manutenção das oligarquias;
„„ o espaço limitado — apesar de ser agora ampla a quantidade de votantes,
seu espaço de inserção no discurso político ainda é ínfimo, daí a crise
estar em “onde se vota?”, ou seja, em definir os momentos em que o
povo é efetivamente chamado a se manifestar sobre determinado tema;
„„ a persistência de um poder invisível — a noção de que existem, ainda,
instituições e órgãos que agem nas sombras, sem publicizar os seus
atos, atuando com intenções duvidosas;,
„„ o problema da cidadania — o cidadão, a partir da possibilidade de atuar
por meio da democracia, aprenderia e se transformaria em um cidadão
ativo e participante, que se engajasse na prática política — o que não
apenas não aconteceu como se procedeu ao inverso: as democracias mais
consolidadas têm por característica um povo apático e desinteressado.

Diante de tantas crises, a definição de democracia exigirá uma nova com-


preensão. Nesse ponto, tem ganhado força o discurso na defesa de uma nova
espécie de democracia. É a democracia participativa (BOBBIO, 1997). Com
efeito, o adjetivo participação:

[...] passa a ser o novo referencial em termos democráticos, inserção da (re)


qualificação do povo, para além de mero ícone, catapultando-o, assim, para o
cenário democrático como ator principal e não mais como mero coadjuvante,
como aquele que está apto de fato a reivindicar sua posição proeminente em
uma sociedade livre, solidária e justa (RIBEIRO; SCALABRIN, 2009, p. 160).

A democracia participativa implica uma ampliação do diálogo e da parti-


cipação concreta, dispensando técnicas meramente formais. Nesse estágio, a
inclusão do cidadão deve atingir todos os planos, de sorte que nem a função
jurisdicional, nem o próprio processo legislativo escapam desse fenômeno. Sendo
a democracia, também e não só, um conjunto de valores e ideais, cuja legitimidade
(política e jurídica) não se extrai apenas do voto — que se apresenta mais como
um conteúdo mínimo necessário (LUCAS, 1985). —, novos mecanismos devem
ser postos à disposição dos indivíduos para dar vida ao postulado democrático,
enquanto velhos elementos do mundo jurídico devem ser repensados.
Estado e democracia 83

Confira, no link a seguir, um texto sobre democracia par-


ticipativa para aprofundar os estudos:

https://goo.gl/jeEtNf

Diversos exemplos presentes no sistema democrático brasileiro permitem


concluir que a chegada da democracia participativa é inevitável e já permeia
todas as funções do Estado. De fato, todos os poderes constituídos já contam
com mecanismos amplos de participação direta do povo:

Poder Legislativo — há a legitimidade de qualquer pessoa para denunciar ir-


regularidades financeiras junto ao Tribunal de Contas, bem como podem ser
realizadas audiências públicas no âmbito do processo legislativo (FIGUEIREDO,
2003). Aliás, as audiências públicas surgem como canal de comunicação entre
parlamentares, cidadãos e especialistas para a criação de leis mais adequadas aos
desejos sociais. E ainda no âmbito legislativo, vale lembrarmos dos instrumentos
tradicionais da democracia semidireta: iniciativa popular, referendo e plebiscito.

Poder Executivo — no palco da Administração Pública, as consultas pú-


blicas despontam como mecanismos de inclusão dos interessados em gerir
diretamente parcela do orçamento estadual e estarem presentes na atuação
política. É o chamado orçamento participativo. Além disso, ganha fôlego a
proposta de criação de conselhos, “especializados para atuar em certo setor
das atividades sociais” (DALLARI, 2013, p. 156), nos quais haverá maior
proximidade entre cidadão e Administração Pública.

Poder Judiciário — a máquina da Justiça também gera uma forma de par-


ticipação, já que oportuniza o diálogo entre os envolvidos — as partes e o
Estado-juiz (LUCAS, 1985). Além disso, muitas vezes, o Poder Judiciário se
converte no último suspiro de esperança do cidadão, que vê o seu direito sendo
violado pelo próprio Estado. A legitimação do Poder Judiciário, por sua vez:

[...] decorre não do sufrágio universal como nas outras esferas de poder,
mas de uma legitimação procedimental que encontra no irrestrito acesso ao
84 Estado e democracia

judiciário, no contraditório, na publicidade e na fundamentação os mais altos


desígnios da legitimidade democrática, pois é através do processo (RIBEIRO;
SCALABRIN, 2009, p. 165).

Todos esses elementos permitem concluir que a democracia participativa


é aquela que melhor permite confrontar as crises do modelo anterior. A de-
mocracia, enquanto elemento político (e valorativo), deflagra uma necessária
revisão do padrão liberal de mera representatividade, e a participação surge
como novo expoente. Pari passu, a cidadania é alargada por meio de novos
modos de inclusão do indivíduo na tomada de decisão e no seu controle.

BOBBIO, N. O futuro da democracia: uma defesa das regras do jogo. 6. ed. Rio de
Janeiro: Paz e Terra, 1997.
BONAVIDES, P. Ciência política. 16. ed. São Paulo: Malheiros, 2009.BRASIL. Lei nº 9.709,
de 18 de novembro de 1998. Regulamenta a execução do disposto nos incisos I, II e III
do art. 14 da Constituição Federal. 1998. Disponível em: <http://www.planalto.gov.
br/ccivil_03/leis/l9709.htm>. Acesso em: 27 set. 2017.
DALLARI, D. de A. Elementos de teoria geral do Estado. 32. ed. São Paulo: Saraiva, 2013.
FIGUEIREDO, L. V. Instrumentos da administração consensual: a audiência pública e
sua finalidade. Revista de Direito Administrativo, Rio de Janeiro, v. 5, n. 18, mar./abr. 2003.
LUCAS, J. R. Democracia e participação. Brasília: Universidade de Brasília, 1985. RIBEIRO,
D. G., SCALABRIN, F. O papel do processo na construção da democracia: para uma
nova definição da democracia participativa. Scientia Iuris, Londrina, v. 13, nov. 2009.
ROUSSEAU, J.-J. Do contrato social. Petrópolis: Vozes, 2017.

Leituras recomendadas
AZAMBUJA, D. Teoria geral do Estado. 4. ed. São Paulo: Globo, 2008.
BOBBIO, N. Estado, governo, sociedade, para uma teoria geral da política. 14. ed. São
Paulo: Paz e Terra S/A, 2007.
JELLINEK, G. Teoria general del Estado. Buenos Aires: Albatros, 1954.
MORAIS, J. L. B. de; STRECK, L. L. Ciência política e teoria do Estado. 7. ed. Porto Alegre:
Livraria do Advogado 2010.
Encerra aqui o trecho do livro disponibilizado para
esta Unidade de Aprendizagem. Na Biblioteca Virtual
da Instituição, você encontra a obra na íntegra.
CIÊNCIA POLÍTICA
E TEORIA GERAL
DO ESTADO

Felipe Scalabrin
Formas de governo
Objetivos de aprendizagem
Ao final deste texto, você deve apresentar os seguintes aprendizados:

„„ Definir as formas de governo.


„„ Contrastar as formas de governo com a separação de poderes.
„„ Explicar a crise da separação dos poderes e os reflexos na democracia.

Introdução
Neste capítulo, você estudará as formas de governo. Com base em uma
análise histórica, analisará a evolução da classificação das formas de go-
verno, a forma como ocorreu a separação de poderes e como tal divisão
reflete no progresso de uma sociedade democrática.
Cada tema deste capítulo é fundamental para que você entenda o
funcionamento político do Brasil e de outros povos.

Formas de governo
Para compreender as atuais formas de governo, é importante analisar como o
tema foi discutido por pensadores como Platão, Aristóteles, Políbio, Maquiavel,
Bodin, Hobbes, Vico, Montesquieu, Hegel, Marx e Bobbio. Para tanto, o estudo
da concepção filosófica e política de governo desenvolvida por esses teóricos
permitirá analisar as atuais formas e sistemas de governo, bem como a crise
na separação de poderes.
Para o professor José Geraldo Brito Filomeno, o governo “é um conjunto
dos órgãos do Estado que colocam em prática as deliberações dos órgãos
legislativos” (FILOMENO, 2016, p. 97). Para os filósofos gregos anteriores a
Cristo, Platão e Aristóteles, o governo deveria ser analisado a partir de duas
vertentes: a pura (ideal) e a impura ou degenerada. Para Platão, as formas
de governo ideais seriam a monarquia e a aristocracia, consideradas formas
únicas. Já as formas corruptas de governo seriam a oligarquia, a timocracia, a
democracia e a tirania. A oligarquia seria a forma corrompida da aristocracia,
Formas de governo 97

enquanto a tirania é a forma corrompida da monarquia. Para Platão, a timocracia


seria a transição entre a constituição ideal e as formas corruptas de governo.
Segundo Bobbio (1997), para Aristóteles, não havia distinção de significado
entre governo e constituição. Em razão disso, para Aristóteles (apud BOBBIO,
1997, p. 55), o governo é o “poder exercido por um só, por poucos ou por muitos”.
Assim, a politeia (constituição — estrutura que dá ordem à cidade, determi-
nando o funcionamento de todos os cargos públicos e, sobretudo, da autoridade
soberana), para Aristóteles, seria responsável por dar forma ao sistema.
Aristóteles classificou as formas de governo como puras e impuras. As formas
puras de governo seriam o reino (monarquia), a aristocracia e a politia (timocracia);
e as formas impuras seriam a tirania, a oligarquia e a demagogia. Para Aristóteles,
as formas impuras seriam as degenerações das formas puras de governo, ou seja,
a tirania em contraposição ao reino (monarquia), a oligarquia em contraposição à
aristocracia e a demagogia em contraposição à politia (timocracia).

Para o doutrinador José Geraldo Brito Filomeno, a classificação aristotélica tem um


“caráter quantitativo, de acordo com o número dos que exercitam o poder político, e
qualitativo ou valorativo, de acordo com o posicionamento dos que exercem o mesmo
poder, em face do bem comum” (FILOMENO, 2006, p. 101).

Segundo o professor Celso Bastos (2004), Aristóteles sofisticou o esquema


das formas de governo elaborado por Platão — assim, para cada forma pura
ou ideal, agregou uma forma de governo considerada degenerada.
Para o historiador Políbio (200 a.C.–118 a.C.), as formas de governo se
classificavam em monarquia, tirania, aristocracia, oligarquia, democracia e
oclocracia (oclos latim — multidão, governo das massas). Ainda de acordo
com Políbio, essas formas formavam um movimento cíclico, ou seja, a pro-
blemática de uma forma de governo desencadearia outra forma de governo e
assim sucessivamente. Nesse sentido, veja as palavras de Políbio, citadas por
Bobbio (1997, p. 67) no livro a Teoria das formas de governo:

Em primeiro lugar se estabelece sem artifício e naturalmente o governo de


um só, ao qual segue (e do qual é gerado por sucessivas elaborações e corre-
ções) o reino. Transformando-se este no regime mau correspondente, isto é,
98 Formas de governo

na tirania, pela queda desta última se gera o governo dos melhores. Quando
a aristocracia por sua vez degenera em oligarquia, pela força da natureza, o
povo se insurge violentamente contra os abusos dos governantes, nascendo
assim o governo popular. Com o tempo, a arrogância e a ilegalidade dessa
forma de governo levam à oclocracia.

Anos mais tarde, o filósofo Nicolau Maquiavel (1469–1527), autor do livro


O príncipe, inovou com uma classificação bipartida de governo, separando-o
em república (soma da aristocracia e democracia) e principado (monarquia). De
acordo com Maquiavel (2003, p.1), “Todos os Estados, todos os domínios que
tiveram e têm autoridade sobre os homens foram e são repúblicas ou principados”.
Com relação à república, é atualmente classificada em república parlamentar e
república presidencialista; já a monarquia se classifica em monarquia absolutista,
monarquia constitucional e monarquia parlamentar ou dualista.
Para Maquiavel, a república possui características próprias, como a tempora-
lidade do governante na posição de líder do Estado, ao passo que, na monarquia,
em razão da hereditariedade, eleição e cooptação (declaração de sucessão do
trono), o rei ou monarca ocupará a posição de regente por tempo indeterminado.
Para o filósofo inglês Thomas Hobbes (1588–1679), autor do livro Leviatã, o
governo consistiria na existência de um poder soberano indivisível responsável
por determinar a condução do Estado. Por consequência, não haveria razão
em diferenciar as formas de governo como formas puras, impuras ou mistas.
Para o jurista Jean Bodin (1530–1596) e para o filósofo Giambattista Vico
(1668–1774), as formas de governo se classificavam em monarquia, aristocracia
e democracia (república popular). Convém ressaltar que Vico, assim como
Políbio, analisou as formas de governo a partir de uma vertente cíclica.
Para o jurista Montesquieu (1689–1755), seriam consideradas formas de
governo a república (o povo ou parte dele possui o poder soberano de governar),
a monarquia ou principado (o poder é governado por um indivíduo mediante
normas preestabelecidas) e o despotismo (o poder é governado ao prazer de
um indivíduo sem a observância de normas).
Já para o filósofo alemão Friedrich Hegel (1770–1831), seriam consideradas
formas de governo a monarquia, a aristocracia, a democracia, a oligarquia, a
oclocracia e o despotismo. Contudo, Karl Marx (1818–1883) inovou ao não
classificar o governo em formas, pois, para o autor, não havia importância e
sentido na classificação do governo, mas o estabelecimento de um governo único,
no qual não haveria a divisão de classes sociais (concepção política socialista).
Para Norberto Bobbio (1909–2004), em consequência da temporalidade
da ditadura e diferenciação do despotismo e da tirania, a ditadura seria uma
forma positiva de governo.
Formas de governo 99

As classificações filosóficas políticas de governo desenvolvidas por esses pensadores


foram vitais para a compreensão da realidade funcional de um povo. Reflita quais
seriam as formas de governo adotadas pelos diversos países na atualidade.

Governo e separação de poderes


Para o filósofo inglês John Locke (1632–1704), o poder derivava de um pacto
e de um contrato social, em consequência do estado de natureza e da relação
entre governante e governado. Para Locke, os poderes deveriam estar em
equilíbrio e se dividiriam em Executivo (zelar pelo cumprimento das leis),
Legislativo (poder supremo e fiduciário do Estado), Federativo e de prerrogativa
(poder de trabalhar segundo discrição para o bem público sem prescindir da
lei e ainda às vezes contra ela).
O Poder Executivo apresentaria atividade contínua com a finalidade de
conduzir os assuntos internos e externos dos Estados e de julgar e aplicar penas
àqueles que descumprissem as leis. O Legislativo deveria trabalhar na busca por
legislar em observância ao princípio da legalidade. O Poder Federativo seria o
poder conferido ao Estado de relacionar-se com outras pessoas e comunidades
alheias à república. Já a prerrogativa seria a permissão concedida pelo povo aos
seus governantes, para que, no caos do silêncio da lei sobre determinados temas,
realizassem ações de livre eleição, mesmo que fossem contrários ao texto legal.
É possível perceber que o atual Poder Judiciário, na divisão de poderes
estabelecida por Locke, era exercido pelo Poder Executivo. Mas, para Montes-
quieu (1689–1755), os poderes estatais se dividiam em Executivo, Legislativo
e Judiciário. No livro O espírito das leis, publicado em 1748, Montesquieu
(1973, p. 21) declarou que “em cada estado existem três classes de poder, o
Legislativo, o executivo das coisas pertencentes ao direito das pessoas e o
Executivo dos que pertencem ao civil”. Quanto a estes, o filósofo observou
que o último se chamaria Poder Judicial e, o outro, Poder Executivo do Estado.
Dessa forma, Montesquieu inovou ao estabelecer três formas independentes
de poder, até hoje adotadas pelos governos atuais.
Para Montesquieu, a divisão jurídica das distintas funções de poderes somente
poderia limitar-se ao uso ilegal do poder e garantir a liberdade e os direitos das
pessoas. O Legislativo seria um órgão representativo da vontade do povo destinado
à criação de leis. Além disso, também poderia apreciar, nos termos da lei, as ações
100 Formas de governo

do Executivo e dos seus membros. Já o Executivo seria um órgão com a função de


cumprir as normas elaboradas pelo Legislativo e teria o poder de vetar leis elabo-
radas pelo Legislativo. Em contraposição, o Poder Judiciário seria um órgão cuja
função seria julgar crimes e conflitos entre pessoas; por isso, deveria ser temido,
já que teria a legitimidade de privar a liberdade daquele que descumprisse a lei.
Para o filósofo suíço Jean-Jacques Rousseau (1712–1778), autor do célebre
livro Contrato social, o Poder Legislativo pertence somente ao povo, visto que
o Poder Executivo consistiria em atos particulares. Dessa forma, para Rousseau,
não seria certo que o órgão responsável por elaborar a lei fosse responsável
pela sua execução — por isso, era necessário um governo soberano, pois a
monarquia não era a única forma de governo, mais bem a soberania popular.
Para Tocqueville (1805–1859), o Poder Legislativo dividia-se em duas
assembleias (Senado e Câmara dos Deputados), compostas por representantes
eleitos por cidadãos. O Poder Executivo seria conduzido por um governante
eleito pelo povo, com a função de ser chefe do Estado com mandato temporal e
com poder regulado pelo Senado. Já o Poder Judiciário, assim como entendeu
Montesquieu, seria um órgão de grande poder, pois teria a finalidade de julgar
casos particulares. Além disso, segundo Tocqueville, o Judiciário atuaria
quando invocado e, por recorrer à Constituição para justificar a maior parte
de suas decisões, detinha significativo poder político.
O que é possível pensar sobre a atual força dos Poderes Executivo, Legis-
lativo e Judiciário?

Para saber mais sobre o processo, leia A constituição reinventada pela jurisdição cons-
titucional (SAMPAIO, 2002).

Separação de poderes e democracia atual


Para o doutrinador José Sampaio (2002, p. 430):

Nos dias atuais pode-se falar de múltiplas interpretações do princípio da


divisão dos poderes de acordo com a organização do sistema de governo sem
que se possa indicar um modelo paradigmático desse princípio, que venha a
servir de referência necessária a modelos concretos adotados pelos sistemas
Formas de governo 101

constitucionais. Antes, há uma ideia — de separação de poderes, guiadas


por um fim — de evitar tiranias e garantir o funcionamento equilibrado do
governo, que assume diversas formas em diferentes contextos sociopolíticos.
Vale dizer que não há modelo de divisão de poderes senão uma variedade de
conformações que vem a assumir na prática.

Os filósofos, ao pensarem na separação dos poderes, não poderiam imaginar


que, em consequência do aumento da corrupção e dos interesses pessoais, a
autonomia dos poderes Legislativo, Executivo e Judiciário seria ameaçada
e deixaria de existir, pois, na realidade atual, é cada vez mais frequente a
intervenção política do Poder Legislativo em desprezo do Poder Judiciário.
Países como Brasil e Espanha, por exemplo, são testemunhas da perseguição
ao Poder Judiciário, que, em razão de leis chamadas popularmente de leis
da mordaça, viram o trabalho e a autonomia do Judiciário serem cerceados.
Os diversos escândalos envolvendo empresas privadas, principalmente com
membros dos Poderes Legislativo e Executivo, demonstram a fragilidade desses
poderes em cumprir as obrigações para as quais foram pensados e criados.
Atualmente, é cada vez mais frequente haver denúncias de favorecimento
entre membros dos poderes, com a finalidade única de manter os seus cargos
e o seu poder político.

No caso brasileiro, a Operação Lava-Jato, por exemplo, revelou a participação de


membros dos três poderes em ações criminais de corrupção, ou seja, aqueles que
deveriam legislar em benefício do povo e da nação passaram a legislar em benefí-
cio próprio e de interesses privados, aqueles que deveriam cumprir as funções de
administrar os interesses públicos passaram a administrar em benefício próprio e de
terceiros e aqueles que deveriam sancionar e penalizar passaram a perdoar corruptos
e a penalizar os mais desfavorecidos.

Ora, você consegue perceber alguma semelhança com as formas degene-


radas de governo? Para o doutrinador Luigi Ferrajoli (2014, p. 40):

A crise do “alto” da democracia e de dissolução da representação, nesses úl-


timos anos, foi a crescente integração dos partidos no Estado e o consequente
desaparecimento de uma ulterior separação entre partidos e instituições com
102 Formas de governo

a sociedade. É cada vez mais estreita a relação entre dinheiro, informação


e política: dinheiro para fazer política e informação, informação para fazer
dinheiro e política, política para fazer dinheiro e informação, segundo um
ciclo vicioso que se traduz no crescente condicionamento anti ou extra re-
presentativo da ação do governo.

De fato, a visão de Ferrajoli (2014) reflete o atual cenário mundial, pois é


cada vez mais frequente a violação da democracia, que tem sido utilizada para
interesses próprios e de certa minoria. Como uma Torre de Babel, percebe-
-se que é utopia pensar em poderes autônomos e harmônicos entre si, visto a
frequente relação entre os poderes públicos e os privados.

No caso da Operação Lava-Jato, fica visível o fato de não ser mais possível separar
corruptor e corrompido. Dada a força de grandes empresas, os poderes e os seus
dirigentes, eleitos ou não pelo povo, tornaram-se reféns de empresas privadas e,
como medidas extremistas, passaram a criar barreiras para se autodefenderem, em
total desprezo às normas legais.

Ainda segundo Ferrajoli (2014), tal situação é uma aberração institucional


que comporta uma deformação do sistema político e da democracia incompa-
ravelmente mais grave do que as formas tradicionais, ainda que patológicas
e delinquenciais da corrupção.
Convém destacar que, no passado, o jurista Tocqueville (1805–1859) já sinali-
zava a crise da separação dos poderes na democracia, pois, segundo o prestigiado
jurista, todo e qualquer projeto de lei que ferisse a Constituição de um país não
deveria sequer ser apreciado — caso fosse, seria retido pelo Poder Judiciário.
Contudo, na atualidade, com um poder cada vez mais limitado e sem recursos, o
Judiciário se tornou refém dos demais poderes; em especial, do Executivo.
A ideologia de Norberto Bobbio (1909–2004) de que o principal ponto
característico da democracia seria o respeito à eleição e ao desejo do povo e
das instituições, não às ações políticas em si, não reflete a realidade, principal-
mente no caso brasileiro, com o mando e desmando de deputados, senadores,
superjuízes e presidentes, que insistem em atuar como se fossem reis e sobe-
ranos. Estaríamos diante do fim da democracia e do fortalecimento de formas
degeneradas de governo — ou, na realidade, há somente uma crise de poderes?
Formas de governo 103

BASTOS, C. R. Curso de teoria do Estado e ciência política. 6. ed. São Paulo: Saraiva, 2004.
BOBBIO, N. A teoria das formas de governo. 9. ed. Brasília: Universidade de Brasília,1997.
BONAVIDES, P. Ciência política. São Paulo: Malheiros, 2007.
FERRAJOLI, L. Poderes selvagens: a crise da democracia italiana. São Paulo: Saraiva, 2014.
FILOMENO, J. G. B. Teoria geral do Estado e da constituição. 10. ed. rev., atual. e ampl.
Rio de Janeiro: Forense, 2016.
FILOMENO, J. G. B. Manual de teoria geral do Estado e ciência política. 6 ed. Rio de
Janeiro: Forense Universitária, 2006.
MAQUIAVEL. O príncipe. São Paulo: Martin Claret, 2003. t. 1.
MONTESQUIEU. Do espírito das leis. São Paulo: Abril Cultural, 1973.
SAMPAIO, J. A. L. A constituição reinventada pela jurisdição constitucional. Belo Hori-
zonte: Del Rey, 2002.

Leituras recomendadas
ACQUAVIVA, M. C. Teoria geral do Estado. 3. ed. Barueri: Manole, 2010.
MORAES, A. de. Direito constitucional. 32. ed. rev. e atual. São Paulo: Atlas, 2016.
BITTAR, E. C. B. Teoria do Estado: filosofia política e teoria da democracia. 5. ed. rev.
atual. e modificada. São Paulo: Atlas, 2016.

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