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Rudolf Steiner

O Evangelho segundo Marcos


Considerações esotéricas
sobre o Mistério do Gólgota

Dez conferências proferidas em Basiléia (Suiça)


De 15 a 24 de setembro de 1912

Tradução:
Heinz Wilda
Nota preliminar
Alguns leitores deste ciclo de conferências, não tendo presenciado os
acontecimentos da época em que elas foram proferidas na Sociedade Teosófica — então
sob a autoridade de Annie Besant —, talvez se escandalizem com o tom polêmico de
várias passagens, em particular contra a concepção do Cristo defendida por aquela
personalidade. Para compreender esse tom polêmico, será necessário levar em conta
que naquela época, para muitas pessoas a quem se dirigiam tais observações, a
autoridade de Annie Besant ainda era bastante significativa; e que este orador precisava
defender sua concepção do Cristo, que outra não é senão a que vem apresentada aqui.
Agora que tais contendas pertencem ao passado, muitas pessoas opinam a favor da
eliminação desses trechos polêmicos. Todavia, é opinião dos editores que as
conferências deveriam ser simplesmente conservadas como documento histórico, tal
como foram proferidas na época; mesmo porque, para muitas pessoas poderia ser
interessante saber contra que tipo de superstição, contrária a qualquer sensibilidade
ocidental, essa concepção do Cristo apresentada aqui tinha de ser defendida. Encarando
a questão do ângulo apropriado, com certeza perceberemos que para o conferencista
não se tratava de uma disputa dogmática em voga nas sociedades e seitas filosóficas da
época, e sim da defesa do que ele assumia como uma responsabilidade, perante sua
própria consciência científica, contra uma crença confusa inventada a partir de
interesses pessoais e que, por seu próprio caráter absurdo, não seria aceita por pessoas
sensatas. No entanto, no seio da Sociedade Teosófica ela foi considerada equivalente ao
que defendia este conferencista. No mundo real, às vezes também pode ter importância
o que contraria qualquer razão.
O fato de este conferencista se ver obrigado a manter seu ponto de vista sobre o
Cristo, defendido desde 1902 e nunca antes contestado pelos ilustres membros da
Sociedade Teosófica, a par de outros fatos questionáveis, levou aquela Sociedade, sob a
autoridade de Annie Besant, a excluir todos os membros que, diante de sua
argumentação, desaprovavam a crença confusa defendida por ela. Fica patente que
essa Sociedade agiu como um juiz qualquer de heresias, num assunto que não havia sido
tratado por este conferencista como uma disputa dogmática. Ele não queria senão
entrar num debate objetivo. Contudo, as coisas tomaram o rumo que sempre tomam
quando uma opinião objetiva se depara com um fanatismo oriundo de interesses
pessoais. O resultado foi a união, dessas pessoas excluídas, numa Sociedade
Antroposófica que vem crescendo desde então. E se levarmos em conta as ridículas
calúnias lançadas ao mundo contra a Sociedade Antroposófica, e em particular contra
este conferencista, principalmente pelo ídolo teosófico Annie Besant e por muitas
pessoas encerradas no nevoeiro dessa idolatria — além de muitas outras coisas
emanadas do seio daquela sociedade em nome do ‘mais nobre amor à humanidade’ —,
poderemos considerar essa separação da Sociedade Antroposófica como algo
inteiramente benéfico. E também muitos leitores destas conferências, que na época se
interessaram pela separação, hão de aceitar a menção de disputas surgidas aqui e ali
como um documento relativo a algo a ser compreendido a partir daquele contexto, e
também como testemunho das muitas dificuldades de alguém que tenta defender um
assunto por razões puramente objetivas. E quem não puder concordar com isso, que
seja bastante tolerante e, sem rancor, passe por alto os assuntos que acredita não lhe
dizerem respeito, mas que, todavia, possuíam um certo significado para as pessoas
presentes a estas conferências na época.
Berlim, 1918
Rudolf Steiner

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15 de setembro de 1912

O fundamento espiritual da História


Como se sabe, o Evangelho segundo Marcos se inicia com as seguintes palavras:
“Este é o princípio do Evangelho de Jesus Cristo.” Na verdade, para uma pessoa que
busca a compreensão desse evangelho nos dias de hoje, essas primeiras palavras já
encerram, necessariamente, três enigmas. O primeiro deles reside nas palavras “Este é
o princípio...” — princípio de quê? Como podemos compreender esse princípio? O
segundo mistério é “...princípio do Evangelho...”. O que seria, no sentido
antroposófico, a palavra ‘Evangelho’? E o terceiro é aquele de que já falamos em muitas
ocasiões: a figura do próprio Cristo Jesus.
Para quem busca com seriedade o conhecimento e o aprofundamento de seu
próprio ser, já deve estar claro que a humanidade se encontra em evolução, em
progresso, e que por isso a compreensão deste ou daquele assunto, desta ou daquela
revelação tampouco é estática, encerrada no tempo, e sim algo que progride. De modo
que, na verdade, as coisas mais profundas da humanidade exigem necessariamente,
com o passar do tempo, uma compreensão cada vez melhor, mais profunda e mais séria
da evolução e do progresso. Foi somente em nossa época que chegamos a um momento
crítico para a compreensão de um assunto como o Evangelho de Marcos, o que veremos
nos três enigmas mencionados. Vagarosa e paulatinamente, mas também com clareza,
foi sendo preparado o que hoje em dia poderá levar a uma verdadeira compreensão
desse evangelho e do significado de “... princípio do Evangelho...”. Qual é a razão
disso?
Basta remontarmos a algum tempo atrás, e veremos que o que foi capaz de mover
os espíritos pode e deve ter mudado também a forma de se compreender um assunto
como este. Se retrocedermos até antes do século XIX, verificaremos que nos séculos
XVIII, XVII, as pessoas que em sua vida espiritual se ocupavam dos Evangelhos tinham
bases de compreensão totalmente diferentes das bases da humanidade de hoje. Que
opinião podia formar uma pessoa do século XVIII que quisesse inserir-se no processo
evolutivo da humanidade caso não estivesse ligada — foram muito poucas nos séculos
passados — a esta ou aquela iniciação ou escola de ocultismo e, ao atuar no mundo,
assimilasse o que a vida exterior, exotérica lhe oferecia? Mesmo os mais bem-
informados e instruídos não eram capazes de visualizar a vida da humanidade mais do
que durante três milênios, um deles — bastante anuviado — antes da nossa era cristã e
dois ainda não completos desde o advento do cristianismo. Três milênios era o que essa
pessoa visualizava. Remontando-se ao primeiro milênio, apresentava-se ao observador,
como uma pré-história miticamente obscura da humanidade, a era da antiga Pérsia.
Esta, somada ao que existia de conhecimentos isolados sobre a antiga cultura egípcia,
foi considerada anterior à História propriamente dita, iniciada com a civilização grega.
Essa civilização grega formou, de certo modo, a base para a contagem temporal
propriamente dita, e todos os que desejavam aprofundar-se na vida humana partiam da
cultura grega. E foi dentro da civilização grega que surgiu todo o conteúdo proveniente
de Homero, dos poetas trágicos gregos e dos escritores gregos em geral a respeito dos

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primórdios desse povo e de sua participação na humanidade. Assistiu-se então ao
gradativo declínio da cultura grega, exteriormente sufocada pela cultura romana.
Porém isso só ocorreu exteriormente, pois no fundo a cultura romana só dominava a
grega no plano político; na realidade ela adotava a formação, a cultura e o modo de ser
dos gregos. Podemos dizer que politicamente os romanos venceram os gregos, mas
espiritualmente os gregos venceram os romanos. E no decorrer desse processo — em que
a cultura grega venceu espiritualmente a romana, em que os gregos conseguiram
transmitir, por centenas e centenas de vias, suas realizações à cultura romana, da qual
tudo isso fluiu para as demais, ou seja, para o mundo —, abriram-se os canais para a
penetração do cristianismo. Este sofreu, no entanto, uma transformação significativa
com a participação dos povos nórdico-germânicos no progresso dessa cultura greco-
romana. Foi com essa confluência de elementos gregos, romanos e cristãos que
transcorreu, para as pessoas do século XVIII, o segundo milênio da história da
humanidade — o primeiro milênio da era cristã.
Vemos então como o segundo milênio cristão — o terceiro da cultura da
humanidade para as pessoas do século XVIII — principia. Embora tudo pareça continuar
como antes nesse terceiro milênio, se o analisarmos com mais profundidade veremos
que as coisas mudaram bastante. Para isso, basta mencionar dois personagens, um
pintor e um poeta, os quais, embora tenham vivido apenas alguns séculos após a
passagem do milênio, evidenciam essencialmente como o novo surgiu na cultura ociden-
tal, Prosseguindo depois em seus efeitos. Essas duas figuras foram Giotto e Dante —
Giotto como pintor e Dante como poeta. Eles representaram o início de tudo o que se
seguiu, e sua contribuição se tornou a base da formação da cultura ocidental.
Eram esses os três milênios que se apresentavam como panorama.
Veio então o século XIX. Hoje em dia, uma pessoa disposta a estudar mais a fundo
toda a formação da cultura contemporânea terá possibilidade de compreender tudo o
que ocorreu no século XIX e tudo o que mudaria então, nas almas e nos corações. A
perspectiva das pessoas do século XVIII alcançava somente a cultura grega; a era pré-
grega era algo nebuloso, vago. Durante o século XIX, aconteceu algo que poucas pessoas
compreenderam e que ainda hoje não é devidamente considerado: a influência muito
intensa do Oriente na cultura ocidental. Essa introdução do Oriente, de modo todo
peculiar, é que teve um papel relevante na transformação ocorrida com o advento do
século XIX. Ela teve uma influência, tanto benéfica quanto nociva, sobre tudo o que
lentamente fluiu para a cultura e continuará fluindo cada vez mais; e isso exigirá uma
nova compreensão das coisas, que a humanidade até então compreendia de forma
completamente diferente.
Dentre algumas outras figuras e individualidades que se evidenciaram e exerceram
influência na cultura ocidental, personificando mais ou menos tudo o que havia na alma
de um indivíduo do início do século XIX interessado na vida espiritual, podemos citar
Davi, Homero, Dante, Shakespeare e Goethe, este último acabando de inserir-se nessa
esfera. A futura historiografia não deverá ter dúvidas acerca do valor espiritual marcado
por essas cinco figuras nessa época de transição do século XVIII para o XIX. Mais do que
podemos supor, vivia nas mais sutis emoções das almas algo que podemos chamar de
sensibilidades, de verdades dos Salmos — algo que no fundo já se encontrava em
Homero e que em Dante assumiu uma configuração grandiosa, tendo-se expressado já
em Shakespeare, apesar de não existir nele próprio, tal qual é vivida pelos homens
modernos. A luta da alma humana pela verdade encontrou, porém, sua expressão
máxima na história do ‘Fausto’; ela vivia de tal forma em todas as almas que
freqüentemente se dizia: “Todo homem que busca a verdade tem em si algo como uma
natureza de Fausto.”

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A tudo isso se somava uma nova perspectiva, ultrapassando os três milênios que
abrangem as cinco figuras mencionadas. Por caminhos à primeira vista totalmente
insondáveis para a História exotérica, a vida espiritual da Europa fora impregnada por
um grande sopro oriental. Não era só o fato de se haverem juntado às mencionadas
obras poéticas o que os Vedas e o Bhagavad Gita tinham a oferecer; tampouco foi
apenas a oportunidade de conhecer essas obras poéticas orientais que provocou, em
relação ao mundo, um sentimento marcadamente distinto daquele dos Salmos e do que
se podia encontrar em Homero e Dante; na verdade, surgiu algo que se inseria por
caminhos secretos e só se tornou mais visível no século XIX. Basta lembrarmos um único
nome que causava sensação por volta da metade do século XIX, e logo saberemos que
algo do Oriente penetrava na Europa por caminhos misteriosos: basta aludirmos ao
nome de Schopenhauer. O que é que nos chama sobretudo a atenção em Schopenhauer,
sem considerarmos o elemento teórico de seu sistema, e sim o conteúdo de sentimentos
e sensações que permeia todo o seu modo de pensar? É a profunda afinidade desse
homem do século XIX com o modo de pensar e sentir ariano-oriental. Em todas as frases
e, poder-se-ia dizer, na acentuação dos sentimentos em Schopenhauer, vive o elemento
oriental mesclado ao ocidental. E isso se transmitiu a Eduard von Hartmann na segunda
metade do século XIX.
Acabamos de dizer que isso penetrava por caminhos misteriosos. Poderemos
compreender melhor esses caminhos ao verificar que no curso do desenvolvimento do
século XIX aconteceu uma grande transformação, uma espécie de metamorfose de todo
o pensar e sentir humanos, não apenas num único lugar, mas em toda a vida espiritual
da Terra. Para se entender o que ocorria no Ocidente, basta comparar qualquer
elemento da religião ou da filosofia, qualquer coisa escrita sobre a vida espiritual do
século XIX com algo pertencente ao início do século XVIII. Logo perceberemos a radical
transformação ocorrida com a divulgação, pela humanidade, de todas as indagações
sobre os segredos universais mais sublimes, fazendo com que os homens também
aspirassem por novos questionamentos, por novos modos de sentir, e tornando patente
que o que a religião costumava oferecer aos homens não os satisfazia mais. Por toda
parte havia a exigência de algo mais profundo, mais oculto e subjacente da religião. E
isso não apenas na Europa. Caracteristicamente, por volta da virada do século XVIII para
o XIX, em todo o mundo civilizado as pessoas começaram, por um impulso interior, a
pensar de modo diferente. Formando uma idéia mais exata da situação, podemos dizer
que ocorreu uma aproximação geral dos povos e das formações étnicas, provocando de
modo muito peculiar um entendimento entre os membros das mais diversas confissões
de fé. Podemos citar aqui um exemplo comprobatório do que acabamos de descrever.
Na década de trinta do século XIX, surgiu na Inglaterra um brâmane que se
declarava partidário, no âmbito da cultura brâmane, da doutrina do Vedanta. Seu nome
era Ram Mohun Roy, falecido em Londres em 1836. Foi bastante forte sua influência
sobre um grande número de contemporâneos interessados nessas questões. O que
causava estranheza era o fato de, por um lado, ele se apresentar como um
incompreendido reformador do hinduísmo, e por outro, na verdade, ser compreendido
em todas as suas declarações por todos os europeus atualizados com a cultura da época.
As idéias transmitidas por ele eram compreendidas não apenas a partir do orientalismo,
mas a partir da razão humana em geral.
Ram Mohun Roy apresentava-se dizendo mais ou menos o seguinte: “Vivo no meio
do hinduísmo, e nele são veneradas as mais variadas figuras divinas. Quando pergunto a
meus compatriotas por que fazem isso, eles respondem que simplesmente estão
seguindo um costume antigo, não conhecendo outra coisa; assim ocorreu com seus pais
e seus antepassados. Minha opinião é que com isso se chegou à mais crassa idolatria, a

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uma idolatria tão reprovável que desonra toda a grandeza original da confissão religiosa
de minha pátria. Essa confissão, em parte contraditória, está preservada nos Vedas; mas
foi vertida para o sistema Vedanta por Viasa, em sua forma mais pura, a fim de
possibilitar sua percepção pelo pensamento humano.” Era isso o que ele queria
professar. Com tal finalidade, não só fez traduções dos diferentes idiomas
incompreensíveis para a língua compreensível da índia, como também separou extratos
do que considerava mais apropriado e correto na doutrina e os difundiu entre as
pessoas. Ora, o que Ram Mohun Roy pretendia com isso? Ele acreditava ter reconhecido,
no que se manifestava através dos diversos deuses e do que era venerado na idolatria,
uma doutrina pura de um deus arqui-universal, de um deus espiritual que vive em todas
as coisas, não sendo mais reconhecido pela idolatria mas penetrando necessariamente
no coração das pessoas. E quando esse brâmane hindu falava dos detalhes do que
considerava a verdadeira doutrina Vedanta, a legítima confissão hindu, as pessoas não
tinham a impressão de estar ouvindo algo estranho: os que o compreendiam com
bastante clareza sentiam em sua pregação uma espécie de fé racional, possível de ser
alcançada por qualquer um desde que este se voltasse para o Deus único com base em
sua própria razão.
Ram Mohun Roy teve sucessores, entre eles Rabindranath Tagore. Um fato
interessante é que um de seus seguidores, um indiano, proferiu em 1870 uma palestra
sobre o tema ‘Cristo e o cristianismo’. É sumamente interessante o fato de um indiano
falar sobre Cristo e o cristianismo. No entanto, o verdadeiro mistério do cristianismo é
totalmente estranho a esse orador; ele não toca no assunto. Percebe-se, ao longo da
conferência, que ele não é capaz de compreender o fato fundamental, ou seja, que o
cristianismo não tem sua origem num mestre, e sim no próprio Mistério do Gólgota, num
fato histórico, na morte e ressurreição. Não obstante, o que ele compreende e lhe
parece evidente é que o Cristo Jesus representa uma figura bastante significativa, de
grande importância para o coração humano, devendo constituir uma figura ideal para
toda a História. É muito curioso ouvir um indiano falar do Cristo, ouvi-lo dizer que, se as
pessoas se aprofundassem no cristianismo, este ainda deveria passar por um
aperfeiçoamento até mesmo no próprio Ocidente. “Porque”, dizia ele, “não me parece
ser o verdadeiro cristianismo aquilo que os europeus trazem para minha pátria”.
Esses exemplos nos mostram que não só na Europa as mentes começaram a querer
ver por detrás das correntes religiosas; isso também acontecia na longínqua índia, e em
muitos outros lugares da Terra onde se começava a encarar as doutrinas espirituais de
um ponto de vista totalmente novo, diverso do que havia sido aceito por séculos e
milênios até então. Essa metamorfose das almas no século XIX só será plenamente
entendida com o passar no tempo. E só a historiografia futura reconhecerá que tais
processos — aparentemente dizendo respeito a umas poucas pessoas e, não obstante,
tendo penetrado por milhares de vias em nossos corações e almas, alojando-se em todas
as pessoas interessadas na vida espiritual — provocaram uma completa renovação, uma
grande transformação de todas as questões e de toda forma de entendimento frente às
concepções antigas. Assim, hoje já existe realmente, no mundo inteiro, um grande
aprofundamento em seu estudo e compreensão.
O que nosso movimento espiritual deseja é responder a essas questões. Da maneira
como são formuladas, elas não podem ser respondidas nem pelas antigas tradições nem
pelas ciências modernas. Hoje a humanidade é levada, através de todo o processo de
sua evolução, a formular perguntas impossíveis de serem respondidas senão pela
pesquisa nos mundos supra-sensíveis. Gradualmente foram surgindo, também na vida
espiritual do Ocidente, muitas coisas que evocavam as mais belas tradições do Oriente.
Os Senhores sabem que sempre expusemos como da própria vida espiritual do Ocidente

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resulta a lei da reencarnação, e quão pouco precisamos adotá-la como um fato histórico
do budismo quanto, por exemplo, adotar hoje o princípio pitagórico a partir das
tradições históricas. Esse detalhe sempre foi enfatizado. No entanto, com o surgimento
da idéia da reencarnação da alma moderna, foi construída a ponte para algo que per-
durou pelos três milênios que citei anteriormente; pois esse período não havia
realmente colocado a doutrina da reencarnação no centro de seu pensar — com exceção
da figura do Buda. O horizonte se ampliou, ampliou-se a perspectiva em direção à
evolução da humanidade para além desses três milênios, e por toda parte surgiram
novas indagações, indagações que só podem ser respondidas a partir da Ciência
Espiritual.
Para começar, formulemos a questão decorrente do início deste Evangelho: o fato
de neste Evangelho de Marcos constar o “principio do Evangelho de Jesus Cristo”.
Lembremo-nos de que justamente a essas palavras iniciais se segue não apenas a
citação dos antigos trechos dos Profetas, mas também a anunciação do Cristo por João
Batista, expressa nas palavras: “Cumpriu-se o tempo; o reino do Divino se derrama
sobre a existência terrena.” O que significa tudo isso?
À luz da moderna pesquisa científico-espiritual, tentemos visualizar a época que
abriga esse ‘cumprimento’ em seu centro. Examinemos o que isso significa: um tempo
antigo se cumpriu, um tempo novo começa. Poderemos compreendê-lo melhor dirigindo
nossa atenção a uma época mais remota e logo depois a uma mais recente, de modo
que entre ambas venha a situar-se o Mistério do Gólgota. Escolhamos, portanto, algo
ocorrido antes desse mistério e algo ocorrido depois dele; analisemos também as
diferenças entre essas duas épocas, para descobrirmos até que ponto se encerrou um
tempo antigo e até que ponto começou um novo, isso sem perder-nos em abstrações
inúteis.
Eu gostaria de chamar sua atenção para coisas surgidas no primeiro milênio da
evolução da humanidade aqui considerado. Dos tempos mais remotos desse primeiro
milênio sobressai a figura de Homero, famoso poeta e bardo grego. Para a humanidade,
contudo, preservou-se pouco mais que o nome desse a quem são atribuídas duas obras
épicas situadas entre os maiores feitos da humanidade: a Ilíada e a Odisséia. E mesmo
em relação ao nome de Homero, surgiram dúvidas profundas no século XIX. Homero se
nos apresenta como um fenômeno que mais admiramos quanto mais o conhecemos. Seus
personagens se apresentam às nossas almas de maneira mais viva e intensa do que
quaisquer outras figuras políticas da cena grega. Muitas personalidades que se
interessaram em estudar Homero disseram que a precisão da descrição e a maneira
como ele apresentava os fatos faziam supor ter sido ele médico. Outros vêem nele um
artista, um escultor; e outros ainda acreditam ter sido ele uma espécie de artesão.
Napoleão chegou a admirar a tática e a estratégia em sua narrativa, e alguns ainda o
vêem como um mendigo que vadiava pelo país. Mesmo que não sirvam para outra coisa,
essas diferentes opiniões fazem emergir a individualidade toda singular de Homero.
Escolhemos para estudar aqui apenas um de seus personagens, o de Heitor.
Observem sua figura na Ilíada, a maneira plástica e ao mesmo tempo arredondada e
perfeita como é descrita. Observem também sua relação com a cidade natal Tróia, com
sua esposa Andrômaca, sua relação com Aquiles, com o exército e com o alto comando.
Evoquem em suas almas esse homem, com todas as qualidades de um esposo dedicado e
suscetível às ilusões, apegado à sua cidade natal como era comum na Antigüidade —
pensem em sua relação com Aquiles —, como só é possível no caso de um grande
homem. Dotado de um humanismo profundo e abrangente, eis como nos aparece Heitor
descrito por Homero. E assim que ele nos chega de priscas eras (obviamente o que
Homero descreve precede sua própria época, encontrando-se, portanto, ainda mais nas

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trevas do passado), sobressaindo-se como uma figura que, como todos os outros
personagens de Homero, se revela bastante mítica para o homem moderno. É para esse
personagem que chamo sua atenção. Que céticos e toda uma classe de filósofos
duvidem da existência de um Heitor, como até mesmo duvidam que o próprio Homero
tenha existido; quem, no entanto, considerar os fatos por razões puramente humanas,
ficará convencido de que Homero não relata senão acontecimentos reais, sendo Heitor
uma figura que realmente pisou o chão de Tróia, da mesma maneira como Aquiles e
outros. Eles se revelam pessoas de verdade vivendo na Terra, e nós os vislumbramos
através dos tempos como indivíduos de uma espécie totalmente diferente — indivíduos
que, apesar de serem de difícil compreensão nos dias de hoje, podem surgir diante de
nossas almas em todos os detalhes, por meio do trabalho do poeta. Deixemos nossas
almas deleitar-se com uma figura como Heitor, que foi vencido por Aquiles, a figura real
de um dos principais comandantes do exército troiano. Uma figura como essa é um
protótipo da humanidade da época pré-cristã, permitindo-nos avaliar o perfil das
pessoas naquele tempo, antes de o Cristo viver na Terra.
Outra figura de destaque, uma figura do quinto século pré-cristão, foi um grande
filósofo que passou a maior parte de sua vida na Sicília: Empédocles. Foi ele quem
primeiro falou a respeito dos quatro elementos — fogo, água, ar e terra; disse também
que tudo o que acontece no âmbito da matéria deriva da mistura e separação desses
quatro elementos segundo os princípios de ódio e amor reinantes neles. A atuação de
Empédocles na Sicília manifestou-se sobretudo na criação de importantes instituições
estatais e em suas andanças pelo país, conduzindo as pessoas à vida espiritual. Uma vida
repleta de aventuras, bem como de profunda espiritualidade, se nos apresenta quando
contemplamos Empédocles. Talvez muitos tenham dúvidas a seu respeito, mas a Ciência
Espiritual sabe que ele viveu na Sicília como estadista, iniciado e mago, assim como
Heitor viveu em Tróia, conforme descrito por Homero. Para caracterizar a posição
peculiar de Empédocles no mundo, podemos citar o fato — verdadeiro — de ele ter
encontrado seu fim precipitando-se na cratera do Etna, consumindo-se no fogo para
unir-se a toda a existência do Universo que o envolvia. Assim se nos apresenta esse
segundo personagem da época pré-cristã.
Observemos agora esses personagens com os recursos da Ciência Espiritual
moderna. Para começar, sabemos que essas figuras reaparecerão, que suas almas
voltarão. Vamos procurá-las em algumas épocas da era pós-cristã, sem considerar as en-
carnações intermediárias; isso nos dará algo da mutabilidade dos tempos, dará a
possibilidade de compreendermos o impacto que o Mistério do Gólgota provocou na
evolução da humanidade. Se pudermos dizer que figuras como Heitor e Empédocles
reapareceram, e perguntar de que modo se apresentaram entre os homens da era pós-
cristã, então teremos possibilitado às almas vislumbrar o impacto do Mistério do
Gólgota, o cumprimento e o novo início dos tempos. Como antropósofos sérios, todos
nós aqui reunidos não temos necessidade de assustar-nos com as comunicações da
genuína Ciência Espiritual, que pode ser comprovada por fatos exteriores.
Na era pós-cristã, surgiu uma figura poética para a qual eu gostaria de chamar sua
atenção. Essa ‘figura poética’ remonta a uma personalidade real que viveu
efetivamente. Trata-se de Hamlet, criado por Shakespeare. Quem o conhece, na
medida em que seja possível conhecê-lo externamente, mas sobretudo quem o conhece
por meio da Ciência Espiritual, sabe que Hamlet, de Shakespeare, nada mais era senão a
recriação do verdadeiro príncipe dinamarquês, que de fato havia vivido outrora. A figura
de Hamlet, criada por Shakespeare, viveu de fato. Não posso entrar em detalhes para
demonstrar de que modo se relacionam a figura poética de Shakespeare e o personagem
histórico, mas gostaria de referir-me ao resultado produzido pela Ciência Espiritual.

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Com essa evidência pretendo demonstrar-lhes de que modo um espírito da Antigüidade
reaparece na era pós-cristã. A verdadeira figura que serviu de base para a personagem
de Hamlet, criada por Shakespeare, é Heitor. Em Hamlet vivia a mesma alma que havia
vivido em Heitor. Um exemplo tão característico como esse, evidenciando de modo
bastante convincente a diversidade na manifestação da alma, é bem apropriado para se
conhecer o que aconteceu nessa ínterim. Por um lado se nos apresenta uma
personalidade como a de Heitor na era pré-cristã; por outro, o Mistério do Gólgota
provoca seu impacto na evolução da humanidade, e a centelha caída na alma de Heitor
faz nascer dela o modelo de Hamlet, de quem Göethe disse ser uma alma incapaz de
dominar qualquer situação e à qual nenhuma basta; uma alma encarregada de uma
missão que ela não pode cumprir. Pode-se perguntar por que Shakespeare expressou
isso dessa forma. Ele mesmo o ignorava. Quem, no entanto, conhece essas correlações
por meio da Ciência Espiritual, sabe muito bem quais forças jaziam ali ocultas. O poeta
cria no inconsciente, pois por assim dizer a figura surge primeiramente em sua alma,
aparecendo-lhe depois como num painel — sem que ele tenha consciência disso — toda a
individualidade relacionada com ela. Por que motivo Shakespeare realça e enfatiza com
clareza justamente as características peculiares a Hamlet que provavelmente nenhum
observador contemporâneo teria notado? Pelo fato de as observar no cenário da época,
ele sente a transformação ocorrida numa alma na transição de uma vida antiga para
uma nova. Hamlet envolto em dúvidas, cético, não-versado nas situações da vida,
irresoluto, evoluiu a princípio do certeiro Heitor.
Quero chamar-lhes a atenção para uma outra figura da época moderna que
também foi apresentada aos contemporâneos mediante uma imagem poética. Trata-se
de uma obra cujo personagem principal certamente viverá por muito tempo ainda na
humanidade, mesmo que seu autor não signifique, para a posteridade, mais do que
significam hoje Homero e Shakespeare, uma vez que de um deles nada se sabe e do
outro se sabe bem pouco. Já estarão esquecidos os relatos de colecionadores de
anedotas e biógrafos a respeito de Göethe, já se terá esquecido há muito tempo o
aspecto de Göethe pelo qual hoje as pessoas se interessam, a despeito da arte
tipográfica e de outros meios modernos, e ainda se erguerá, em sua imponência e
plasticidade vivas, a figura de Fausto criada por ele. Da mesma forma como hoje as
pessoas nada sabem de Homero, porém muito de Heitor e Aquiles, um dia nada saberão
sobre a personalidade de Göethe — o que será bom —, mas continuarão sempre sabendo
quem é Fausto.
Fausto é mais uma dessas figuras que, tal como aparecem na literatura e também
no caso da obra de Göethe, são como uma espécie de ponto final e remontam a um
personagem real. Ele viveu como um personagem do século XVI, mas não do modo como
Göethe o descreve. Por que, então, Göethe o pinta dessa maneira? Este mesmo o
ignorava. Mas quando dirigia seu olhar interior a Fausto tal qual fora legado pela
tradição, e que eleja conhecia do teatro de fantoches de sua infância, atuavam nele
forças de algo que se ocultava em Fausto — uma encarnação anterior de Fausto:
Empédocles, o antigo filósofo grego. Tudo isso irradiava para dentro da figura de
Fausto. E podemos dizer o seguinte: se Empédocles se precipita na cratera do Etna,
unindo-se ao elemento ígneo da Terra, que espiritualização maravilhosa dessa mística
natural pré-cristã — que assim se torna fato real — constitui a cena final ao Fausto de
Göethe: a ascensão de Fausto ao elemento ígneo do céu por meio do Pater Seraphicus,
e assim por diante!
Gradual e vagarosamente, uma nova direção espiritual se faz presente nas
aspirações mais profundas das pessoas. Já havia muito tempo começara a manifestar-se
nos espíritos mais profundos da humanidade, mesmo sem que estes soubessem coisa

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alguma sobre reencarnação e carma, o seguinte fato: ao contemplar uma alma
abrangente que quisessem descrever a partir dos fundamentos de sua vida interior, eles
descreviam o que transparecia das encarnações anteriores. Shakespeare descreveu
Hamlet, tal qual o conhecemos, sem saber que em Hamlet e Heitor vivia a mesma alma;
da mesma forma, Göethe descreveu Fausto como se por detrás dele estivesse a alma de
Empédocles, com todas as suas peculiaridades. Contudo, é característica o fato de a
continuação e o progresso da espécie humana se darem dessa forma.
Destaquei duas figuras típicas, das quais podemos deduzir que os vultos antigos se
apresentam, em nossa era pós-cristã, com as profundezas de suas almas abaladas,
orientando-se na vida com bastante dificuldade. Neles permanece o que antigamente já
fazia parte deles. Se, por exemplo, nos deixamos inspirar pela personalidade de Hamlet,
sentimos que nele se encontra toda a força de Heitor; no entanto, percebemos que essa
força não consegue exteriorizar-se na era pós-cristã — inicialmente ela encontra
obstáculos, e sobre ela atuou um início, enquanto no caso das figuras da Antigüidade se
presencia um término. Tanto Heitor como Empédocles representam um final. Eles se nos
apresentam como plasticamente acabados. Todavia, o que continua a impulsionar a
humanidade deve encontrar novos caminhos para as encarnações vindouras. Assim
ocorre com Heitor no Hamlet e com Empédocles no Fausto, que encerra toda a
insondável aspiração às profundezas da natureza, todo o elemento empedocliano, e só
em função dessa natureza profunda pode dizer: “Quero esconder a Bíblia por algum
tempo embaixo do banco, quero ser somente um naturalista e um médico, e não mais
um teólogo.” Ele possuía grande necessidade de conviver com entidades demoníacas, o
que o fazia vagar pelo mundo, admirando tudo à sua volta mas sem nada compreender.
Esse é um reflexo do elemento empedocliano que, no entanto, não consegue adaptar-se
ao que o homem precisa ser depois que irrompe uma nova era.
Com estas explicações, meu propósito foi mostrar a enorme reviravolta que se
produziu nessas almas eminentes, a cujo respeito todo mundo pode obter informações;
essa enorme reviravolta se faz notar particularmente ao nos aprofundarmos no assunto.
Quando perguntamos o que aconteceu entre as antigas e as recentes encarnações dessas
individualidades, a resposta é sempre a mesma: o Mistério do Gólgota — aquilo que o
Batista anunciava ao dizer: “Cumpriu-se o tempo; os reinos do Espírito — ou os reinos
dos céus — transformaram-se no reino dos homens.” Sim, foi um poderoso impacto esse
dos reinos dos céus sobre o dos homens! E quem quiser interpretar tal impacto ape nas
exteriormente, não, conseguirá compreendê-lo. Ele foi tão grande que os vultos da
Antigüidade, bastante sólidos, foram obrigados a recomeçar sua evolução na Terra. O
Mistério do Gólgota representa o fim da era antiga; o que foi cumprido expirou, e como
resultado os seres humanos daquela época se nos apresentam como personalidades
concluídas. Logo, porém, algo novo fez com que as almas recomeçassem uma nova
etapa em sua evolução, no sentido de reformular e refundir tudo novamente; com isso
as almas que antes eram grandes nos parecem pequenas, sendo obrigadas a
transformar-se em almas infantis, uma vez que recomeçaram algo totalmente novo. E
isso o que devemos gravar bem na alma se quisermos compreender o início do Evangelho
segundo Marcos, que menciona um ‘princípio’. Sim, trata-se realmente de um princípio
que abala as almas no que estas possuem de mais profundo, trazendo um impulso
totalmente novo para a evolução da humanidade, um ‘princípio do Evangelho’.
O que é o ‘Evangelho’? É algo oriundo dos reinos que freqüentemente descrevemos
como sendo das hierarquias dos seres superiores, onde se encontram os Anjos, os
Arcanjos; ele se eleva acima do mundo humano. Isso nos abre a perspectiva para um
sentido mais profundo da palavra ‘Evangelho’. O Evangelho é um impulso advindo do
Alto através do reino dos Arcanjos, dos Anjos, algo que emerge desses reinos e penetra

10
na humanidade. No fundo, todas as traduções abstratas correspondem pouco a esse
sentido. Em verdade, a palavra ‘Evangelho’ já alude ao fato de que em dado momento
algo começa a fluir para a Terra. 1 Até então o processo só ocorre no reino dos Anjos e
Arcanjos; descendo à Terra ele agita as almas, e com mais intensidade justamente as
mais fortes. E o princípio — que tem, portanto, um prosseguimento —, esse é
assinalado, e isso significa que o Evangelho perdura. O início foi dado naquela época, e
no fundo veremos que toda a evolução da humanidade desde então é uma continuação
do início da descida, a partir do reino dos Anjos, do impulso que se pode denominar
Evangelho.
Para caracterizar cada um dos Evangelhos, devemos aprofundar ao máximo nossa
pesquisa; particularmente no Evangelho de Marcos, temos a evidência de que este só
poderá ser compreendido ao entendermos, em seu sentido verdadeiro, a evolução da
humanidade com todos os seus impulsos, com tudo o que sucedeu em seu transcorrer.
Meu intuito é demonstrar-lhes isso não exteriormente, mas sim sob o aspecto das almas,
enfatizando que só o reconhecimento da reencarnação, quando esta se torna verdadeiro
objeto de pesquisa, pode mostrar-nos a evolução de uma alma como a de Heitor ou de
Empédocles, evidenciar todo o significado do impulso nascido pelo advento do Cristo.
Sem isso podemos imaginar coisas muito belas, porém sempre estaremos presos à
superfície. Contudo, o que — oculto por trás de todos os acontecimentos exteriores —
era o impulso do Cristo só se evidencia realmente ao empregarmos a pesquisa espiritual
para iluminar a vida, a fim de conhecer não só como a vida se processa em seus
pormenores, mas também na seqüência de encarnações. É preciso levar a sério a idéia
de reencarnação, introduzi-la na História para que se torne um elemento vivo aí dentro,
e então se evidenciará indubitavelmente o efeito do maior impulso, o evento do
Gólgota. E é especialmente nas almas que se manifestará o impulso que tantas vezes
tivemos ocasião de descrever.

2
16 de setembro de 1912

A Bíblia como fonte de conhecimento


Lembrando-se do que foi, em certo sentido, o ponto principal e o objetivo das
considerações de ontem, os Senhores poderão imaginar a grande diferença existente
entre as formas de expressão do íntimo da entidade humana na era anterior e na
posterior ao Mistério do Gólgota. Na verdade, eu não pretendia apresentar-lhes uma
caracterização, e sim exemplos, no âmbito da Ciência Espiritual, de almas da antiga e
da nova era nas quais poderíamos perceber a transformação sofrida nessas diferentes
épocas. A razão para tal transformação incisiva só será compreendida após o término
deste ciclo de conferências.
Como introdução, agora eu desejaria apontar somente um ponto já mencionado
várias vezes, em nossas considerações dedicadas a assuntos semelhantes: que o fato de
o homem se conscientizar, tornar-se cônscio de seu eu humano, cuja formação e
manifestação constituem a missão do planeta Terra, na verdade só ocorreu graças ao
Mistério do Gólgota. Com alguma aproximação podemos dizer que, olhando em
retrospecto para a evolução da humanidade, descobriremos que as almas dos homens
ainda não eram realmente individualizadas, estando ainda como que presas à condição

1
Em sua origem grega - evaggélion -, essa palavra significa ‘boa nova’. (N.E.)

11
de alma grupal. Esta ligação com o estado de alma grupal é o que ocorre justamente
com as figuras mais destacadas, sobre as quais podemos dizer que um Heitor, um
Empédocles são representantes típicos, em estado de alma grupal, de toda a sua
comunidade humana: Heitor, emerso do que constituía a alma de Tróia, imagem da
alma grupal do povo troiano numa forma bem determinada, se bem que especializado,
mas tão enraizado na alma grupal como Empédocles. Reencarnados na era pós-cristã,
encontram-se ambos diante da necessidade de vivenciar plenamente a consciência do
eu. É a transição do estado de alma grupal para a exteriorização da alma individual que
propicia um enorme impulso para a frente. Isso faz com que almas tão firmemente
coesas como Heitor, por exemplo, apareçam bastante vacilantes na era pós-cristã, como
se não estivessem à altura da vida (como no caso da alma de Hamlet) e, por outro lado,
que uma alma como a de Empédocles, reencarnada na era pós-cristã como a alma de
Fausto no século XVI, aparentemente se torne uma espécie de aventureiro, levado a
diversas situações das quais tem dificuldade em se desvencilhar e sendo mal
interpretado por seus contemporâneos, até mesmo por toda a posteridade.
Diversas vezes enfatizei que o que se passou desde o tempo do Mistério do Gólgota
até hoje ainda não possui, para uma tal evolução, um significado importante nos termos
que acabamos de descrever. Tudo se encontra apenas no início, pois os grandes
impulsos que podem ser atribuídos ao cristianismo só se manifestarão no futuro da
evolução terrestre. É necessário enfatizar continuamente: o cristianismo ainda se
encontra no início de seu grande desenvolvimento. Se quisermos inserir-nos nessa
grande evolução, precisaremos acompanhar com nossa compreensão o contínuo evoluir
das revelações, dos impulsos iniciados com o advento do cristianismo.
Antes de mais nada, será necessário aprendermos, num futuro próximo, algo bem
definido — e não será necessária uma clarividência muito grande para convencer-nos
disso — que constituirá um bom início para uma compreensão avançada do cristianismo;
será preciso aprender a ler a Bíblia de uma maneira totalmente nova. Hoje em dia ainda
existem muitos obstáculos para isso. A culpa cabe em parte ao fato de, em muitas
comunidades, a compreensão da Bíblia ter sido cultivada de um modo meio adocicado-
sentimental, sendo também usada como um manual para toda espécie de situações
pessoais, e não como um livro para o conhecimento. Se alguém tem necessidade de
melhorar algo em certas situações pessoais da vida, entrega-se à leitura de um ou outro
capítulo bíblico, procura assimilar um ou outro aspecto, e só muito raramente vai além
de um mero relacionamento pessoal com a Bíblia. Por outro lado, a erudição das últimas
décadas — para ser exato, de todo o século XIX — dificultou bastante a verdadeira
compreensão da Bíblia, dilacerando-a e afirmando que, por exemplo, o Novo
Testamento seria uma compilação de toda espécie de literatura reunida mais tarde, e
que o Antigo Testamento também seria uma coleção de coisas disparatadas, compiladas
em diversas épocas. Por isso a Bíblia consistiria numa série de fragmentos, dando
facilmente a impressão de ser um agregado de trechos 'costurados' ao longo dos tempos.
Esse tipo de erudição está-se popularizando, e muita gente já é da opinião de que
o Antigo Testamento é composto por muitas partes isoladas. No entanto essa opinião
prejudica o que deverá ser, em futuro próximo, uma leitura verdadeira e séria da Bíblia.
Quando se introduzir essa nova maneira de ler a Bíblia, teremos uma compreensão
muito melhor de muita coisa que deve ser dita a respeito de seus mistérios, inclusive do
ponto de vista antroposófico. Será necessário, por exemplo, considerar o Antigo
Testamento como um todo, até o ponto em que finaliza nas edições comuns da Bíblia.
Não se pode crer em tudo o que é dito contra a unidade do Antigo Testamento. A
tremenda força dramática e a força espiritual interna, inerentes à composição e à
construção de todo o Antigo Testamento, serão descobertas quando for abandonada a

12
visão unilateral no sentido da edificação pessoal, escolhendo-se pontos de vista
diversos. Deve-se dirigir a atenção ao Antigo Testamento e a seu conteúdo como um
todo, o qual, conforme temos visto nos últimos anos mediante nosso desenvolvimento
esotérico, chegará ao mundo através da Ciência Espiritual. Só chegaremos a isso
descobrindo nele um certo sentido espiritual-artístico, constatando como sua
composição é artística, como a trama toda se entrelaça e se solta — não tanto no
sentido compositivo externo, mas visto por um senso artístico profundo. Só então
visualizaremos o maravilhoso painel dramático como uma unidade, como um todo, não
mais pensando que cada trecho se origina de fontes diferentes; então se revelará o
espírito unitário presente na Bíblia.
Veremos que na Bíblia reina um fluxo progressivo totalmente dominado por um
espírito unitário, desde a época do primeiro relato da Criação, ao longo do tempo dos
Patriarcas, do tempo dos Juizes, passando pelo tempo dos Reis judaicos, confluindo num
maravilhoso e dramático ponto culminante no Livro dos Macabeus, nos filhos de
Matatias, nos irmãos de Judas, que lutam contra o rei Antíoco da Síria. Há em tudo isso
uma força dramática intrínseca, que no final alcança um certo ponto culminante. Não
se trata de um simples modo de dizer ou de um fraseado qualquer quando alguém,
dotado de faculdades ocultas de observação, diz ser acometido por estranhas sensações
ao chegar ao fim daquele livro, onde a soma dos sete filhos da mãe macabéia com os
cinco filhos de Matatias resultam numa estranha dozena, a dozena que encontramos
também em outras ocasiões ao sermos introduzidos nos segredos da evolução: no final
do Antigo Testamento, o número doze é apresentado num ponto culminante! A
princípio, podemos até sentir-nos constrangidos ao ler sobre a morte sob martírio dos
sete filhos macabeus. Como eles são torturados um por um, e como se levantam depois
— quanta dramaticidade isso contém! Como o primeiro deles apenas sugere o que, no
fim, o sétimo expressa como a afirmação da imortalidade da alma, lançando ao rei a
expressão: “Malfeitor, nada queres saber do ressuscitador de minha alma!” Deixemo-nos
invadir por essa intensificação dramática, de um filho para outro, e então perceberemos
as forças contidas na Bíblia (v. II Macabeus, 7). Ao deixarmos de lado o tradicional modo
adocicado-sentimental de ler e adotarmos essa visão dramático-artística, a Bíblia nos
inspirará por si mesma o fervor religioso. Por meio dela a arte se tornará religião. E
então as pessoas começarão a perceber coisas bem singulares.
Talvez a maioria dos Senhores se lembre de que neste mesmo local, ao
contemplarmos o Evangelho de Lucas, eu relatei que na realidade toda a figura
grandiosa do Cristo Jesus nasceu da união de duas almas, das almas de dois meninos
Jesus. Sabemos que a alma de um deles era nada mais, nada menos do que a de
Zaratustra, fundador do zaratustrismo; e talvez os Senhores ainda tenham diante de
seus olhos espirituais o fato de aquele menino Jesus descrito no Evangelho de Mateus
subentender, à primeira vista, o Zaratustra reencarnado. A alma de Zaratustra vivia
naquele menino Jesus.
Que fato se nos apresenta aí, realmente? Falamos do fundador do zaratustrismo, o
grande iniciado de tempos passados, e da cultura persa, a qual, atravessando a evolução
da humanidade até determinado ponto, reaparece no âmbito do antigo povo hebraico;
temos uma transição do elemento protopersa para o elemento do antigo povo hebraico,
por intermédio da alma de Zaratustra. Ora, o que ocorre exteriormente na História
Universal, na vida dos homens, não é no fundo senão a revelação e a manifestação dos
processos e forças espirituais interiores; por isso, estudando o que a história exotérica
nos relata, podemos considerá-la a expressão do plano espiritual interior, dos fatos que
vivem no âmbito espiritual.
Coloquemos esta imagem diante de nossas almas: Zaratustra se transfere da

13
cultura persa para o antigo elemento hebraico. E agora contemplemos o Antigo
Testamento — basta lermos os títulos de seus capítulos. A pesquisa clarividente
confirma que os fatos relativos a Zaratustra foram exatamente como os que descrevi
naquela ocasião; isso se evidencia ao acompanharmos a trajetória da alma de
Zaratustra. E agora confrontemos esse resultado não só com o que é relatado na Bíblia,
mas também com o que é confirmado pela pesquisa convencional.
O antigo povo hebraico estabelece seu reino na Palestina. O reino original se
divide; primeiramente advém o cativeiro assírio, depois o babilônico. Sobrevém depois a
subjugação do antigo povo hebraico pelos persas. O que significa tudo isso? Todos esses
fatos da História Universal têm um sentido, obedecem aos processos interiores de
natureza espiritual-anímica. Por que aconteceu tudo isso? Por que os antigos povos
hebraicos, oriundos da Palestina, são introduzidos de tal modo no elemento caldaico, no
assírio-babilônico, no persa, e depois são libertados por Alexandre Magno? Expressando
isso sucintamente, pode-se dizer que significa apenas um transição exterior de
Zaratustra do elemento persa para o judaico. Os judeus foram buscá-lo, foram
conduzidos a ele até a subjugação ao elemento persa, porque Zaratustra queria vir ao
seu encontro. A história exotérica é uma expressão maravilhosa desses processos.
Observando, porém, o assunto por intermédio da Ciência Espiritual, saberemos que a
história exotérica é o veículo para a transição de Zaratustra partindo do elemento
persa, que no fundo engloba primeiramente o antigo elemento hebraico. Depois de ser
suficientemente incorporado pelo elemento persa, o antigo elemento hebraico foi
retirado por Alexandre Magno, e o que restou constituiu o meio ambiente necessário
para Zaratustra, tendo passado de um povo para o outro.
É claro que só podemos salientar alguns pontos; mas se lançarmos um olhar para
toda aquela época, para toda a história do povo hebraico — com sua fase crítica na
época dos reis, dos profetas, do cativeiro babilônico, da conquista pelos persas até a
época dos Macabeus —, e se procurarmos entender o Evangelho de Marcos, cujo início
contém uma sentença profética de Isaías, compreenderemos toda a maravilhosa
magnificência dos profetas judaicos desde Elias, que se reencarnou em João Batista.
Deixando, por enquanto, esse fato de lado, analisemos os profetas intermediários.
Podemos dizer que os resultados provenientes da Ciência Espiritual nos capacitam a
contemplar esse elemento profético judaico de uma maneira bem peculiar. A quem nos
referimos ao falar dos grandes líderes espirituais das épocas antigas? Aos iniciados. Eles
são iniciados por terem alcançado seu alto nível espiritual depois de passar pelos vários
locais de iniciação, galgando degrau por degrau por meio do conhecimento, até alcançar
a visão espiritual e a comunhão com os impulsos espirituais atuantes no mundo,
incorporando tais impulsos à vida no plano físico. Por isso, ao ouvir falar de um iniciado
do povo persa, indiano ou egípcio, imediatamente nos perguntamos: de que maneira
esse iniciado galgou a escada da iniciação no âmbito de seu povo? Essa pergunta se
justifica em todos os casos, menos ao se tratar dos profetas. Existe, na verdade, uma
espécie de orientação teosófica que mistura tudo e fala dos profetas dos antigos
hebreus do mesmo modo como fala dos iniciados de outros povos; mas isso não nos
ajuda a conhecer coisa alguma.
Basta lermos a Bíblia — e justamente a Bíblia demonstra tratar-se de um
documento fiel — e estudarmos os profetas de Isaías até Malaquias, passando por
Jeremias, Ezequiel, Daniel; basta nos aprofundarmos no que a Bíblia diz a seu respeito,
e veremos que não é possível enquadrá-los no esquema geral da iniciação. Onde consta
que os profetas judaicos percorreram o mesmo caminho de iniciação que os iniciados
dos demais povos? Conta-se que eles surgiram ao sentir na alma a voz de Deus, que os
capacitou a ver as coisas diferentemente do ser humano comum, a predizer o destino

14
futuro de seu povo e também o futuro da História Universal. Era como se uma força
elementar emanasse de suas almas. Conta-se que eles não passaram pela iniciação da
maneira já conhecida dos outros profetas. No caso dos profetas judaicos, a visão
espiritual do que eles tinham a dizer a seu povo, à humanidade, manifestava-se como
que a partir de uma genialidade. Assim também é o modo como eles recorrem à sua voz
e a seus dons proféticos. Quando um profeta comunica algo, diz ter-lhe sido transmitido
por Deus mediante seus emissários, ou que a profecia lhe adveio como uma verdade
elementar direta. Isso nos leva a indagar como seriam essas figuras de profetas
judaicos, que exteriormente se assemelham aos iniciados de outros povos — com
exceção de Elias e sua reencarnação, o Batista. Se examinarmos suas almas por meio da
Ciência Espiritual, do ocultismo, descobriremos algo muito estranho. Se juntarmos tudo
o que a História e a tradição religiosa dizem a seu respeito com o que passarei a
comunicar-lhes como resultado de uma pesquisa científico-espiritual, os Senhores terão
uma confirmação disso.
Se observarmos com atenção essas almas dos profetas judaicos, descobriremos que
são reencarnações de seres humanos iniciados em outros povos, onde já haviam
alcançado um certo grau de iniciação. Portanto, remontando ao passado de um dos
profetas judaicos, chegaremos a outros povos. Lá encontraremos a alma de um iniciado
pertencente por muito tempo a um desses povos; ele passou pelo umbral da morte e se
reencarnou no povo judaico. Se quisermos encontrar encarnações anteriores das almas
de Jeremias, Isaías, Daniel, etc, deveremos procurá-las nesses outros povos. Falando de
maneira trivial, podemos dizer que houve uma paulatina concentração de iniciados de
outros povos no povo judaico, onde eles aparecem na figura dos profetas. Com isso
também se explica por que seu dom profético surge como uma exteriorização elementar
de seu interior. Trata-se da reminiscência de seu conhecimento como iniciado,
adquirido em diversos lugares, mas que nem sempre se exterioriza da forma clara e
harmoniosa revelada em encarnações anteriores. Isso acontece porque a alma
anteriormente encarnada num corpo persa ou egípcio terá de acomodar-se primeiro à
corporalidade do povo judaico. Possivelmente, muita coisa já assimilada por essa alma
não conseguirá manifestar-se. Acontece que o ser humano, ao progredir de uma
encarnação a outra, continua com tudo o que existia nele antes; às vezes, porém,
alguma coisa pode parecer desarmônica e caótica, devido às dificuldades criadas pela
corporalidade.
Verificamos, assim, que os profetas judaicos transmitiram a seu povo uma série de
impulsos espirituais que em muitos casos representavam reminiscências grandiosas,
porém desordenadas, da iniciação passada. Esse é um fato peculiar desses profetas
judaicos. E qual é a razão disso? É que toda a humanidade, em sua evolução, passou por
esse ponto transitório onde tudo o que havia sido dispersamente assimilado ficou
concentrado como num foco, renascendo do sangue do povo do Antigo Testamento. Por
isso, ao longo de toda a história do antigo povo hebraico destaca-se, como em nenhum
outro povo — isso só ocorria em tribos, mas não em povos que já se haviam unido em
‘etnias’ — a afinidade, o fluxo do sangue através das gerações. Tudo o que constitui a
missão histórico-universal do povo do Antigo Testamento baseia-se na continuidade do
fluxo sangüíneo através das gerações. Por isso, toda pessoa destinada a pertencer
plenamente ao povo judaico é sempre designada como filho de Abraão, Isaac e Jacó, ou
seja, daquele elemento que primeiro se evidenciou no sangue de Abraão, Isaac e Jacó.
Era nesse fluxo sangüíneo contínuo que deviam encarnar-se os elementos iniciáticos dos
outros povos. A iniciação dos diferentes povos reunia-se, como raios convergentes, num
ponto central que era o sangue do antigo povo hebraico. Foi preciso que a parte anímica
da evolução da humanidade passasse por esse povo. É importante termos em mente esse

15
fato oculto, pois só assim compreenderemos que o Evangelho de Marcos está, logo em
seu início, alicerçado no elemento do Antigo Testamento.
O que ocorre, então, nessa convergência de elementos iniciáticos dos diversos
povos naquele centro único? Logo saberemos. Considerando a progressão dramática do
Antigo Testamento como um todo, verificamos que a convergência do elemento
iniciático dos diversos povos contribuiu para a gradativa formação do conceito de
imortalidade, que culmina no caso dos filhos macabeus. Mas agora será preciso
assimilarmos em nossa alma o significado original desse conceito de imortalidade, de
modo a considerarmos a consciência que o homem tem de sua relação com o mundo
espiritual.
Eu gostaria de chamar sua atenção para um detalhe. Procurem seguir de perto os
trechos do Antigo Testamento onde consta que o elemento divino ilumina a vida
humana. Muitas vezes é relatado o seguinte, como na história de Tobias, por exemplo:
quando algo está para acontecer — quando, por exemplo, Tobias envia seu filho para
realizar um trabalho —, aparece-lhe o Arcanjo Rafael sob forma aparentemente humana
(Tobias, 5). Em outra ocasião, aparecem outras entidades supra-sensíveis das
hierarquias superiores. É a intervenção do elemento divino-espiritual no mundo dos
homens, fazendo com que o ser humano experimente esse elemento como algo exterior,
com o qual ele se defronta no mundo concreto. No Livro de Tobias, Rafael vem ao
encontro daquele a quem deve conduzir, como se um ser humano se encontrasse
fisicamente com outro. Estudando o Antigo Testamento, podemos verificar que
freqüentemente as relações com o mundo espiritual se dão dessa maneira, existindo
muitos trechos que tratam desse assunto. Mas em seu transcurso se revela uma
progressão bastante dramática, cujo ponto culminante acontece no martírio e na morte
dos sete filhos macabeus, que do fundo de suas almas exprimem o estado de comunhão,
e até mesmo de ressurreição de suas almas no elemento divino. Encontramos nesses
filhos macabeus, assim como nos irmãos de Judas, uma firme certeza de sua
imortalidade interior, que nos últimos instantes ainda os leva a defender seu povo
contra o rei Antíoco da Síria. O elemento espiritual é captado cada vez mais
interiormente. E o progresso dramático se torna ainda maior quando acompanhamos o
Velho Testamento desde a aparição de Deus a Moisés na sarça ardente — o que
demonstra a peculiaridade de sua aproximação como algo concreto — até a certeza
íntima que brota dos filhos macabeus: a de que, uma vez mortos na Terra, eles serão
ressuscitados no reino de seu Deus, por intermédio do que neles vive.
Esse é um progresso imponente, que revela uma unidade interior no Antigo
Testamento. Tal consciência de ser aceito por Deus, de ser como que retirado da Terra
por Ele e fazer parte da Divindade, não é mencionada no Antigo Testamento — se acaso
esse membro da alma humana, acolhido pela Divindade e incorporado ao mundo divino,
será em verdade ressuscitado. Todavia, todo o decurso é conduzido de forma a
fortalecer cada vez mais a consciência de que a alma humana, pelo que é, acaba
penetrando no elemento espiritual. O comportamento passivo com relação ao Deus
Jeová transforma-se gradualmente numa ativa consciência interior da essência da alma.
Esse processo atravessa o Antigo Testamento numa intensificação evidente, de página
em página. O conceito de imortalidade nasce e se desenvolve paulatinamente no
decorrer do Antigo Testamento.
E, curiosamente, observa-se a mesma progressão na esfera dos profetas.
Verificamos que a história e as promessas de cada profeta, um após outro, tornam-se
cada vez mais interiorizadas: mais uma vez um elemento dramático, de maravilhosa e
crescente intensidade. Quanto mais retrocedemos no passado, mais se fala de eventos
relativos ao decurso exterior; e quanto mais avançamos no tempo, tanto mais se fala

16
também da força interior, da esperança interior e da sensação de afinidade com o
divino-espiritual.
Assim, uma intensificação gradual ocorre até o momento em que o Antigo
Testamento nos leva ao início do Novo. O Evangelho de Marcos encadeia-se diretamente
a todas essas situações; pois logo no início anuncia que pretende conceber o evento do
Cristo Jesus no sentido da antiga tradição dos profetas, entendendo seu aparecimento
conforme as palavras dos profetas Malaquias ou Isaías:
Eis que envio meu anjo diante de ti, o qual te preparará o caminho. Escutai
aquele que clama no deserto; preparai o caminho do Senhor, endireitai suas
veredas. [Marcos 1, 2-3.]
Com isso, como que numa tônica transpassando toda a história do Antigo
Testamento, aponta-se o aparecimento do Cristo Jesus. E o Evangelho prossegue com as
palavras que se ouvem nitidamente, bastando querer ouvi-las: “Ora, hoje existe
alguém, o Batista, que fala praticamente do mesmo modo como falaram os profetas.” E
como se apresenta coesa e grandiosa a figura do Batista, assim caracterizada: os velhos
profetas falavam de um emissário de Deus e diziam como este, na solidão, apontaria o
caminho que o Cristo Jesus teria de percorrer através da evolução universal. E o
Evangelho segundo Marcos prossegue:
Assim apareceu João Batista no deserto, pregando o batismo para o
reconhecimento da culpabilidade humana. [Marcos 1, 4.]
Ora, é desta forma que devem ser traduzidas as palavras, numa versão objetiva. O
que elas significam, na verdade, é o seguinte: “Dirigi vossa atenção ao espírito dos
antigos profetas, que se adaptaram a um novo relacionamento com a Divindade, a uma
nova crença de imortalidade; olhai a figura de João Batista, que veio até nós e falou de
uma forma de evolução que nos permite reconhecer a culpabilidade do homem.” Tudo
isso nos apresenta João Batista como uma figura imponente.
E, a seguir, a figura maravilhosa do próprio Cristo Jesus é apresentada no
Evangelho de Marcos com uma intensificação dramática simples e, ao mesmo tempo,
grandiosa como em nenhum outro lugar. Peço-lhes dirigir a isso o olhar da alma. O que é
dito lá? E mais ou menos o seguinte: “Dirigi o olhar para a figura do Batista; só o
compreendereis se considerardes os antigos profetas judaicos, cuja voz reviveu nele.”
Todo o povo judaico ia até ele para ser batizado, pois havia muita gente que reconhecia
a voz dos antigos profetas falando através dele. Isso consta no início do Evangelho de
Marcos. Vemos diante de nós João Batista, a voz viva dos antigos profetas, vemos o povo
caminhar até ele, e vemos como ele — limitando-nos inicialmente a esse evangelho — é
reconhecido pelos homens como o profeta ressurreto. Este é o primeiro aspecto. Então
entra em cena a figura do próprio Cristo. Por enquanto, omitiremos o assim chamado
batismo por João no rio Jordão e o que aconteceu depois, inclusive a história das
tentações, e dedicaremos nossa atenção à grandiosa intensificação dramática que se nos
apresenta justamente no Evangelho de Marcos.
Depois da apresentação do Batista e do relato sobre como os homens se posicionam
em relação à sua pessoa e à sua missão, o próprio Cristo Jesus nos é apresentado. Mas
de que forma nos é mostrado o Cristo? De início, simplesmente é relatada sua presença;
mas ele é reconhecido não somente pelos seres humanos, mas também por outros seres.
Isso é importante. Ele aparece cercado por pessoas que querem ser curadas, que
querem afastar os demônios atuantes nelas. Trata-se de pessoas não somente habitadas
por almas humanas, mas também possuídas por espíritos supra-sensíveis que agem
através delas. E num trecho significativo nos é dito que esses espíritos reconhecem o
Cristo [Marcos 1, 23-26]. Os seres humanos reconhecem o Batista e fazem-se batizar por

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ele. Os espíritos supra-sensíveis reconhecem o Cristo, a ponto de ele ser obrigado a
ordenar que não falem a seu respeito. O Evangelho diz o seguinte: surge uma entidade
que é reconhecida não só pelos homens, mas é reconhecida e considerada perigosa por
entidades supra-sensíveis. Esta é a grandiosa intensificação que se nos apresenta logo
no início do Evangelho: de um lado João Batista, reconhecido e venerado pelos homens
e, de outro, aquele que é reconhecido e temido por seres supra-sensíveis relacionados,
porém, com a Terra, os quais o temem a ponto de reconhecer que devem agora retirar-
se. Eis o Cristo Jesus. Em nenhum lugar temos essa dramática intensificação com tal
simplicidade.
Em vista disso, sente-se a necessidade de certas coisas que, de outra maneira,
passariam despercebidas nas almas dos homens. Eu gostaria de chamar sua atenção para
um único trecho que, por ser o Evangelho de Marcos tão singelo e tão grandioso, pode
ficar mais em evidência que os demais. Com certeza os Senhores se lembrarão de que
logo no início desse evangelho, onde se fala da designação dos doze apóstolos e de sua
nomeação, ele chama dois deles de ‘filhos do trovão’ [Marcos 3, 17]. Esse é um detalhe
que deve ser bem destacado, caso queiramos compreender o Evangelho. Por que ele os
chama de ‘filhos do trovão’? Porque, para que se tornem seus discípulos, ele lhes
transmite um elemento oriundo de fora da Terra, pois esse é o evangelho dos reinos dos
Anjos e Arcanjos, algo totalmente novo, e não basta mais falar exclusivamente de seres
humanos, mas também de um elemento celestial, supra-terrestre — o eu —, sendo
necessário enfatizar isso. Ele os chama de ‘filhos do trovão’ para mostrar que também
os seus possuem uma ligação com o elemento supra-terrestre. O mundo mais próximo
ligado ao nosso é o mundo elemental, por cujo intermédio se explica o que atua em
nosso mundo. E o Cristo dá a seus discípulos nomes que expressam o fato de o nosso
mundo confinar com um mundo supra-sensível. Ele lhes dá os cognomes derivados das
propriedades do mundo elemental. E o caso, por exemplo, quando chama Simão de
‘homem de pedra’ [Marcos 3,16]; com isso alude também a um elemento supra-sensível.
Assim, por todo o Evangelho anuncia-se a chegada do Angelium, dos impulsos advindos
do mundo espiritual.
Para se compreender isso basta ler corretamente o Evangelho, aceitando a
hipótese de este ser ao mesmo tempo um livro do qual se extrai a mais profunda
sabedoria. Todo o progresso realizado consiste na individuação das almas, capacitando-
as a travar relações com o mundo supra-sensível mediante o elemento da alma
individual, e não mais apenas mediante o elemento da alma grupal. E aquele que se
apresenta diante da humanidade de modo a ser reconhecido entre os seres terrestres,
mas também pelas entidades supra-sensíveis, tem o dom de incutir nas almas dos que
deverão servi-lo algo de um elemento supra-sensível, e com isso algo do melhor
elemento humano. Ele necessita dos homens que já fizeram os maiores progressos em
suas almas à maneira antiga.
É bastante interessante acompanhar a evolução anímica daqueles que o Cristo
Jesus reuniu à sua volta, daqueles que ele chamou para serem seus Doze. Eles
passaram, em toda a sua simplicidade e da maneira mais grandiosa, pelo que eu
pretendi demonstrar-lhes ontem no exemplo das encarnações de almas humanas
distanciadas pelo tempo. O ser humano deve primeiro encontrar seu caminho para o
individual. Inicialmente ele tem dificuldades em orientar-se quando se vê transferido de
uma alma enraizada no elemento étnico para a do indivíduo. Foi o que aconteceu com
os Doze. Eles estavam profundamente enraizados num povo que se havia encontrado de
maneira grandiosa em sua unidade étnica. E quando o Cristo os reencontrou, eles
estavam como que desnudos em suas almas, estavam com a alma simples. Deve-se
considerar que os intervalos entre as encarnações são bem irregulares. O Cristo dirigiu

18
seu olhar para os Doze: reapareciam aquelas mesmas almas que se haviam encarnado
nos sete filhos macabeus e nos cinco filhos de Matatias, em Judas e seus irmãos; foi
desse grupo que se compôs o apostolado. Eles se encontravam como que jogados no
meio dos pescadores e da gente simples; contudo, numa época em que o elemento
judaico se havia elevado a um ponto culminante, eles tinham plena consciência de que
esse elemento constituía, na época, a mais sublime força. Porém era apenas força, e
agora que se agrupava em torno do Cristo, apresentava-se individualizada. Imaginemos
uma pessoa totalmente descrente que encarasse apenas do ponto de vista artístico o
fato de, no final do Antigo Testamento, aparecerem sete e cinco, e no início do Novo
reencontrarem-se os Doze. Basta olharmos para isso simplesmente como elemento de
composição artística para nos comovermos com a singeleza e a grandeza da Bíblia,
mesmo sem considerar que os Doze se componham dos cinco filhos de Matatias e dos
sete filhos da mãe macabéia. Haveremos de aprender a aceitar a Bíblia também como
uma obra de arte; só então nascerá em nós o sentimento da grandeza contida na obra
de arte que é a Bíblia. E chegaremos a perceber com que se deve relacionar o que ali
está inserido artisticamente.
Chamo sua atenção para mais um detalhe. Entre os cinco filhos de Matatias, no
Antigo Testamento, um deles se chama Judas. Naquela época, é ele quem luta mais
valentemente por seu povo, conseguindo fazer um pacto com os romanos contra o rei
Antíoco da Síria [v. I Macabeus, 8]. É o mesmo Judas que mais tarde terá de passar pela
prova de cometer a traição, pois é ele quem, estando mais intimamente ligado ao
antigo elemento hebraico, não é capaz de encontrar a transição para o elemento
cristão, precisando passar primeiro pela dura prova da traição. Considerando novamente
o elemento puramente artístico-compositivo do Evangelho, vemos destacar-se
maravilhosamente a figura, diríamos, grandiosa de Judas nos últimos capítulos do Antigo
Testamento e de Judas no Novo Testamento. O curioso, nesse processo sintomático, é
que o Judas do Antigo Testamento conclui um pacto com os romanos, abrindo caminho
para tudo o que aconteceria depois — ou seja, o curso tomado pelo cristianismo através
do elemento romano para manifestar-se no mundo. Essa é, diríamos, a conseqüência. E
se a isso eu acrescentasse outros detalhes que podem ser conhecidos, mas que não
podem ser relatados numa palestra diante de um auditório tão vasto, os Senhores
perceberiam como justamente na reencarnação posterior desse Judas se dá a fusão do
elemento romano com o elemento cristão, e como o Judas reencarnado é o primeiro a
obter, por assim dizer, o grande sucesso na propagação do cristianismo romanizado. Os
Senhores perceberiam também que a conclusão do pacto do Judas do Antigo
Testamento com os romanos constitui o preâmbulo profético do que alguém posterior
realiza, apresentando-se ao ocultista como o Judas reencarnado, aquele que devia
sofrer a dura provação anímica da traição. E os resultados de sua atuação, evidenciados
como cristianismo na cultura romana e cultura romana no cristianismo, afiguram-se,
simultaneamente, como uma renovação da aliança do Judas do Antigo Testamento com
os romanos, transposta ao plano espiritual.
Tomando-se conhecimento dessas coisas, chega-se paulatinamente a compreender
que, do ponto de vista espiritual e independentemente do resto, a obra de arte mais
sublime jamais criada é a própria evolução humana. Basta ter olhos para isso. Mas acaso
seria, afinal, tão injustificado exigir isso da alma humana? Penso que se um espectador
de um drama qualquer, com um enredo e um desfecho dramáticos e transparentes, não
possuir capacidade para discernir sua estrutura, não reconhecerá nele senão uma
seqüência de eventos que podem simplesmente ser descritos um após outro. É mais ou
menos isso o que faz a História Universal exotérica, que nunca será uma obra de arte —
permanecerá sempre uma seqüência de eventos. Acontece que a humanidade acaba de

19
chegar ao momento em que deverá começar a compreender a estrutura progressiva
imanente dos acontecimentos, com seu enredo e seu desfecho na evolução da humani-
dade. Veremos então que é a própria evolução da humanidade que faz entrar em cena,
naquele instante, as figuras individuais que impulsionam os processos, que atam e
desatam nós. E só chegaremos a reconhecer a posição do homem na evolução da
humanidade quando conhecermos o processo histórico.
No momento em que tirarmos a evolução de seu estado de mera seqüência
cronológica para considerá-la como um organismo, será preciso realmente colocar cada
detalhe no lugar que lhe cabe e diferenciá-los todos, como já se faz naturalmente em
outros campos. Ora, a astrônomo nenhum ocorrerá equiparar o Sol aos planetas. Ele
considera natural que o Sol seja um astro singular, e o encara como um monon em
oposição aos planetas. Assim, quem puder discernir as particularidades da evolução da
humanidade considerará natural incluir um ‘Sol’ entre os grandes líderes da
humanidade. Seria uma insensatez incluir o Sol do nosso sistema planetário na mesma
categoria dos planetas, como Júpiter, Marte, etc; da mesma forma, seria absurdo
colocar o Cristo no mesmo plano dos Bodhisatvas e dos outros líderes da humanidade.
Considerando-se a simplicidade dos fatos, deveria ser indiscutível que a hipótese da
reencarnação do Cristo seja absurda, inaceitável. 2 Mas será preciso realmente um
aprofundamento no assunto, um entendimento de sua verdadeira dimensão, e não
apregoá-lo como um dogma, um sectarismo qualquer. Quando falamos de uma
cristologia em seu verdadeiro sentido cosmológico, não precisamos dar-lhe preferência
frente a outras religiões. Seria o mesmo que uma religião estipular em seus escritos que
o Sol é igual aos planetas, e alguém aparecesse dizendo que seria preciso destacá-lo da
série dos planetas. Como resultado, o grupo se revoltaria contra isso, dizendo que seria
um favorecimento do Sol! Porém não se trata disso — trata-se apenas do
reconhecimento da própria verdade.
E é isso o que acontece com o cristianismo. Trata-se simplesmente do
reconhecimento da verdade, de uma verdade que toda religião na Terra poderá aceitar
hoje, se assim desejar. E se as religiões levarem a sério a aceitação das outras
confissões e não utilizarem isso como um simples rótulo, tampouco se importarão com o
fato de o Ocidente não ter adotado um Deus nacional, e sim um Deus que nada tem a
ver com uma nacionalidade, pois trata-se de uma entidade cósmica. Os hindus falam de
seus deuses nacionais. É natural que eles tenham conceitos diferentes das pessoas que
não adotaram um Deus nacional germânico, reconhecendo uma entidade que não se
encarnou em sua terra, mas longe delas, em outro povo. Só se alguém pretendesse
elevar Wotan3 acima de Krishna é que poderíamos falar de uma contraposição do
princípio cristão-ocidental ao hindu-oriental. No caso do Cristo, não é isso o que ocorre.
Desde o início ele não pertence a povo algum, e sim realiza o que há de mais belo no
princípio científico-espiritual: reconhecer a verdade sem distinção de cor, raça,
nacionalidade, etc.
Observar essas coisas objetivamente deve ser a meta de nosso esforço. Só
conhecendo profundamente os Evangelhos é que poderemos discernir sua verdade
fundamental. O que foi dito hoje sobre o Evangelho de Marcos, em sua sublime
singeleza e intensidade dramática, da personalidade de João Batista à do Cristo Jesus,
demonstra-nos o verdadeiro conteúdo desse Evangelho.

2
Steiner se opõe aqui à teoria da reencarnação moderna do Cristo num corpo físico, conforme defendia
Annie Besant na época (v. tb. ‘Nota preliminar’ do Autor). (N.E.)
3
Personagem da mitologia germânica. (N.E.)

20
3
17 de setembro de 1912

A antiga e a nova atuação espiritual


O início do Evangelho de Marcos nos conduz à grandiosa figura de João Batista.
Ontem, já apontamos quão significativa é a introdução de João Batista, por um lado, e
quão significativa é sua contraposição ao Cristo Jesus, por outro. Ao contemplar o
Evangelho de Marcos em sua simplicidade, obtemos logo uma significativa impressão da
figura de João Batista. Quando nos aprofundarmos em suas bases científico-espirituais,
ela nos revelará toda a sua grandeza. Muitas vezes tive oportunidade de explicar que
devemos entender o Batista, inclusive no sentido do próprio Evangelho — pois sabemos
que o Evangelho revela isso expressamente —, como uma reencarnação do profeta Elias
[v. Mateus 2,14]. Do ponto de vista da Ciência Espiritual, portanto, temos de encarar a
figura do Batista frente ao que nos é revelado sobre a figura do profeta Elias, para
podermos entender bem o motivo mais profundo da instituição do cristianismo e do
Mistério do Gólgota. Queremos aqui apenas esboçar os fatos sucintamente, visto que por
ocasião da última assembléia geral da seção alemã da Sociedade Teosófica, em Berlim,
falei sobre o profeta Elias com um pouco mais de detalhes. 4
Tudo o que a Ciência Espiritual, a pesquisa oculta tem a dizer sobre o profeta Elias
é confirmado plenamente pelo que a própria Bíblia diz, se bem que uma leitura
superficial dos capítulos correspondentes a Elias deixe, sem dúvida, muita coisa
inexplicada. Quero chamar a atenção somente para um ponto:
Na Bíblia, lemos que Elias desafia todos os sequazes e todo o povo do rei Ahab, sob
cuja égide vive; que enfrenta os sacerdotes de Baal, seus oponentes; que institui dois
altares: num deles ordena que os sacerdotes de Baal depositem seu animal sacrificai e
no outro ele coloca o seu próprio. Com isso, é demonstrada toda a futilidade deles, a
inexistência de grandeza espiritual no deus Baal, ao passo que no sacrifício de Elias se
revela a grandeza e a importância de Javé ou Jeová. Trata-se de uma vitória de Elias
sobre os sequazes de Ahab. Conta-se então a curiosa história do rei Ahab e seu vizinho
Nabot, dono de um vinhedo; Ahab deseja apoderar-se deste, do qual Nabot não
concorda em se desfazer, pois como herança de seus ancestrais esse vinhedo lhe é
sagrado. Encontramos, pois, dois fatos na Bíblia: — Por um lado nos é relatado que
Jezabel, a rainha, se torna inimiga de Elias e declara que se empenhará em que ele seja
morto, da mesma maneira como seus oponentes, os sacerdotes de Baal, haviam sido
mortos por causa de sua vitória no altar sacrificai. Porém, tal como a Bíblia nos relata,
essa morte não ocorre pela mão de Jezabel; ao contrário, o que acontece é algo bem
diferente. Nabot, o vizinho do rei, é chamado para uma festa de penitência junto com
os outros dignitários do povo, e durante essa festa ele é assassinado por instigação de
Jezabel [v. I Reis, caps. 18-21].
Podemos, portanto, dizer o seguinte: a Bíblia parece nos contar que Nabot foi
assassinado a mando de Jezabel; porém ela anuncia que deseja assassinar Elias, e não
Nabot. Verificamos, portanto, que os relatos não coincidem. Então a pesquisa oculta
entra em cena para nos mostrar os fatos como são verdadeiramente: devemos ver em
Elias um espírito abrangente que, por assim dizer, anda de modo invisível pelo país de
Ahab e, oportunamente, penetra na alma de Nabot, como que impregnando-a; Nabot
representa então a personalidade física de Elias. De modo que ao falar da personalidade
4
‘O profeta Elias à luz da Ciência Espiritual’. Berlim, Casa dos Arquitetos, 14.12.1911. [Sétima conferência
em Menschengeschichte im Lichte der Geistesforschung, GA-Nr. 61 (2ª ed. Dornach: Rudolf Steiner Verlag,
1983).]

21
de Nabot estamos, na verdade, falando da personalidade física de Elias. No sentido
bíblico, Elias é a figura invisível, enquanto Nabot é sua expressão visível no mundo
físico. Tudo isso foi exposto detalhadamente na palestra ‘O profeta Elias à luz da
Ciência Espiritual’. Se, no entanto, considerarmos toda a extensão da obra de Elias e
preenchermos nossa alma com seu espírito, tal como a Bíblia no-lo apresenta,
poderemos dizer que de modo geral, no caso de Elias, estamos na presença do espírito
global do antigo povo hebraico. Tudo o que move e compenetra o antigo povo hebraico
está compreendido no espírito de Elias. Podemos encará-lo como o espírito do povo dos
antigos hebreus. A pesquisa científico-espiritual nos mostra que ele é grandioso demais
para poder habitar plenamente a alma de sua figura terrena, a alma de Nabot. Ele paira
à sua volta como uma nuvem; contudo não habita somente o corpo de Nabot, mas vaga
por todo o país como um elemento da natureza, atuando na chuva e na luz do sol. Isso
se evidencia claramente ao lermos toda a narração que logo começa, apresentando-nos
a solução que Elias dá à seca e à aridez e a toda a desgraça do país, por meio de sua
relação com os mundos divino-espirituais. Sua ação se faz sentir qual um elemento da
natureza, uma lei da natureza propriamente dita. O melhor meio de chegarmos a
conhecer o que existe no espírito de Elias é deixar-nos levar pela atmosfera do salmo
104, com toda a sua descrição de Javé ou Jeová como a divindade da natureza que tudo
permeia. É claro que não devemos considerar Elias idêntico a essa divindade
propriamente dita; ele é a imagem terrena dessa divindade, uma imagem que é ao
mesmo tempo a alma do antigo povo hebraico. Esse espírito de Elias é uma espécie de
Jeová diferenciado, um Jeová terreno, ou, como diz o Antigo Testamento, é como o
semblante de Jeová.
Vendo deste ângulo, percebe-se que é lançada uma luz bastante significativa sobre
o fato de o mesmo espírito que vive em Elias-Nabot reaparecer em João Batista. De que
modo ele atua no Batista? Segundo a Bíblia, e principalmente segundo o Evangelho de
Marcos, ele atua por meio do batismo. O que é, na realidade, o batismo? Qual é sua
finalidade? Por que é efetuado por João Batista nas pessoas que consentem em
submeter-se a ele? Para conhecer melhor a questão, devemos aprofundar-nos um pouco
no efeito causado pelo batismo nos batizandos.
Os batizandos eram submersos na água. Nesse exato momento, eles
experimentavam o que, como já descrevi várias vezes, ocorre quando uma pessoa
recebe um choque por uma repentina ameaça de morte — por exemplo, quando cai na
água e corre o perigo de afogar-se, ou se sofre uma queda das montanhas. O corpo
etérico sofre um afrouxamento e se retira parcialmente do corpo físico. A conseqüência
é ocorrer o que sempre ocorre no homem imediatamente após a morte: ele
experimenta uma espécie de retrospecção da vida passada. Esse é um fato bem
conhecido, sendo freqüentemente descrito também pelos pensadores materialistas de
nossos dias. Algo semelhante ocorria também no batismo por João no rio Jordão, onde
as pessoas eram submersas na água. Não se tratava do batismo como o conhecemos hoje
em dia; o batismo por João causava o afrouxamento do corpo etérico das pessoas,
fazendo com que elas vissem além do que conseguiam compreender com a inteligência
habitual. Elas conseguiam visualizar sua vida no espírito, e também as influências que
essa vida sofria na esfera espiritual. E viam ainda o que o Batista pregava: que o tempo
antigo se havia cumprido e que uma nova era se iniciava. Durante a submersão, em
alguns instantes de clarividência as pessoas viam que a humanidade chegara a um
momento crítico de sua evolução; chegavam ao fim os velhos tempos em que os homens
se identificavam com uma alma grupai. Condições totalmente diferentes deviam surgir,
e as pessoas conseguiam ver isso em seu corpo etérico liberado. Um novo impulso e
novas qualidades devem permear a humanidade.

22
Por isso o batismo por João era um ato cognitivo: “Mudai vossa mente; não olhai
simplesmente para trás, para onde quer que seja possível, e sim dirigi vosso olhar para
algo novo: o Deus capaz de revelar-se no eu humano está próximo, assim como estão
próximos os reinos do Divino.” Além de pregar isso, o Batista, ao ministrar o batismo no
rio Jordão, fazia com que as pessoas o reconhecessem. E aqueles que haviam recebido o
batismo sabiam então, pela observação clarividente, embora apenas muito breve, que
as palavras de João representavam um fato histórico universal.
Somente contemplando essas correlações é que conseguimos perceber
corretamente o espírito de Elias, que também atuava em João Batista. Reconhecemos
então em Elias o espírito do povo judaico, o espírito do povo do Antigo Testamento.
Como era esse espírito? Em certo sentido, tratava-se do espírito do eu; porém não se
revelava como o espírito de um ser humano individual, e sim aparecia em Elias como o
espírito de todo o povo. Era o espírito não-diferenciado. O que mais tarde deveria
habitar o ser humano individual ainda foi em Elias a alma grupai, por assim dizer, do
antigo povo hebraico. Ao aproximar-se a era joanina, o que desceria como alma
individual em cada seio humano ainda estava no mundo supra-sensível; ainda não havia
atingido o coração de cada ser humano. Ainda não chegara ao ponto de manifestar-se
em Elias e descer para a individualidade de Nabot — apenas pairava em volta de sua
personalidade individual. A diferença consistia somente no fato de, em Elias, isso se
manifestar mais nitidamente do que em cada membro individual do antigo povo
hebraico. O fato importante anunciado pelo próprio Elias-João foi que o espírito que
pairava acima da humanidade e de sua história penetrava cada vez mais nos corações
individuais. Ao batizar as pessoas, ele queria dizer que o que até então habitava o
mundo supra-sensível, agindo a partir dele, deveria ser acolhido nas almas como
impulsos dos reinos dos céus adentrando os corações humanos. O próprio espírito de
Elias mostra como isso, multiplicado, deverá entrar nos corações humanos para que os
homens cada vez mais estejam em condições de acolher o Cristo no decorrer da
História. O batismo por João possuía este sentido, ou seja, o de que Elias estava pronto
para preparar o lugar para o Cristo. Isso estava contido no ato do batismo por João no
rio Jordão. “Quero aprontar o lugar para ele, quero preparar-lhe o caminho para os
corações dos homens; não quero somente pairar sobre os homens, mas entrar em seus
corações para que ele também possa entrar.”
Se é assim que ocorre, o que podemos esperar? Nada mais natural senão
esperarmos que em João Batista volte a manifestar-se o que já observamos em Elias, ou
seja, que na grandiosa figura do Batista não atuasse somente essa personalidade indivi-
dual, mas algo também maior, que o envolvia como uma aura. Contudo, esse algo maior
estendia sua ação além dessa personalidade individual, criando como que uma
atmosfera comum àqueles entre os quais agia o Batista. Assim como Elias atuava como
uma atmosfera, também podemos esperar que volte a atuar como uma atmosfera na
pessoa de João Batista. Podemos inclusive esperar que essa entidade espiritual de Elias,
agora ligada a João Batista, continue sua ação espiritual também quando o Batista não
mais existir, quando deixar de ser o que é. E o que pretende essa entidade espiritual?
Ela quer preparar o caminho para o Cristo. Podemos, então, dizer o seguinte: é possível
que o Batista deixe de existir como pessoa física, porém sua entidade espiritual
permanecerá como uma atmosfera espiritual na região em que ele atuou, e essa
atmosfera espiritual preparará o terreno em que o Cristo possa realizar seu feito. Eis o
que podemos esperar. Podemos expressar tudo isso com mais clareza dizendo: João
Batista partiu, mas continua existindo o que ele é como espírito de Elias; e é nisso que o
Cristo Jesus pode atuar da melhor forma é aí que ele pode, da melhor forma,
derramar suas palavras. É nessa atmosfera remanescente — na atmosfera de Elias — que

23
o Cristo Jesus pode melhor cunhar suas ações. É isso o que podemos esperar. E o que
nos relata o Evangelho de Marcos?
É extraordinariamente característico o fato de o Evangelho de Marcos aludir duas
vezes ao que acabo de enunciar. Na primeira vez ele diz que logo após a prisão de João
chegou Jesus à Galiléia, anunciando ali a doutrina dos reinos celestiais [Marcos 1, 14].
João estava preso — portanto, sua pessoa física estava impedida de atuar; mas na
atmosfera criada por ele entra a figura do Cristo Jesus. E a mesma cena aparece
significativamente pela segunda vez, nesse evangelho, de forma grandiosa. Basta lê-lo
corretamente. No sexto capítulo, temos toda a descrição da ordem de decapitação de
João Batista dada pelo rei Herodes. Porém isso é muito curioso, pois levantaram-se
algumas suposições acerca do fato de a personalidade física de João não ter sido apenas
aprisionada, mas eliminada por meio da morte. Alguns supõem que a força milagrosa
mediante a qual o Cristo Jesus atua proviria do fato de ele próprio ser Elias — ou um dos
profetas. Devido à sua consciência pesada, Herodes passa por um pressentimento muito
estranho; ao ficar sabendo tudo o que acontece por intermédio do Cristo Jesus, ele diz:
“João, aquele que mandei decapitar, ressuscitou.” [Marcos 6,16.] Herodes sente que
agora, tendo desaparecido como pessoa física, João se faz presente mais do que nunca.
Sente que sua atmosfera, sua espiritualidade — que outra não é senão a de Elias — está
presente. Herodes, em sua consciência torturada, dá-se conta de que João Batista, isto
é, Elias, está presente. O estranho também é que Jesus, depois da morte de João
Batista, veio justamente à mesma região em que este havia atuado. Aí lemos um trecho
estranho, ao qual lhes peço dedicar uma atenção toda especial por não dever passar
despercebido, pois no Evangelho as palavras não são apenas ornamentos da fala, ainda
não estão escritas em estilo jornalístico. Aí é dito algo muito importante. O Cristo Jesus
junta-se ao grupo dos que eram discípulos de João Batista, e essa situação é expressa
numa frase a ser considerada: “E quando ele saiu viu uma grande multidão” — frase que
só poderia referir-se aos discípulos de João — “e teve compaixão deles...”. Por que
compaixão? Porque eles haviam perdido seu mestre, porque ficaram sem João, de quem
é relatado que, pouco antes, havia sido decapitado e enterrado. A situação é descrita
com mais clareza ainda no que segue: “...pois eles se mostravam qual ovelhas que não
têm pastor, e ele começou a ensinar-lhes muita coisa.” [Marcos 6, 34.] É impossível
apontar com mais clareza o fato de ele ensinar os discípulos de João. Ele os ensina, pois
o espírito de Elias, que também é o de João Batista, ainda atua entre eles. Assim, esse
trecho significativo do Evangelho de Marcos aponta com força dramática o fato de o
espírito do Cristo Jesus penetrar no que havia sido preparado pelo espírito de João-
Elias. Tudo isso, no entanto, é apenas um ponto central a cujo redor se agrupam outras
coisas muito significativas. Eu gostaria apenas de chamar sua atenção para mais um
detalhe.
Muitas vezes dei a entender de que modo esse espírito de Elias-João continuou
atuando, por meio de seus impulsos, na História Universal. Entre nós, antropósofos aqui
reunidos, que podemos aprofundar-nos também em fatos ocultos, o assunto pode ser
discutido livremente. Algumas vezes já aludi ao fato de a alma de Elias-João ter
reaparecido no pintor Rafael. Esse é um dos fatos capazes de chamar a atenção para o
modo como se realizam as metamorfoses da alma, principalmente em conseqüência do
grande impacto exercido pelo Mistério do Gólgota. Uma vez que na era pós-cristã uma
alma como essa também devia atuar por intermédio da personalidade individual, o que
em tempos antigos foi tão universalmente abrangente reaparece numa personalidade
tão diferenciada como foi Rafael. Acaso não se percebe que o que paira como uma aura
ao redor de Elias-João também acontece com Rafael — sucedendo em seu caso algo
semelhante ao dos outros dois, algo do qual se pode dizer que é grande demais para

24
penetrar numa personalidade individual, pairando em seu redor, de modo que as
revelações recebidas pela personalidade física tenham o efeito de uma iluminação? Sem
dúvida, esse é o caso de Rafael.
Existe uma comprovação, se bem que aparentemente pessoal, mas nem por isso
menos estranha, em favor desse fato — uma comprovação cujos elementos já tive
oportunidade de indicar em Munique.5 Mesmo assim eu gostaria de abordar aqui esse
tema, a fim de elaborar não só a personalidade do Batista, mas toda a entidade Elias-
João e a posterior evolução de sua alma em Rafael. Quem quiser aprofundar-se honesta
e sinceramente no que Rafael representava, deverá nutrir sentimentos bastante
peculiares a respeito do assunto.
Chamei atenção para o moderno historiador da arte Herman Grimm, dizendo que
ele foi capaz de produzir com certa facilidade uma biografia de Michelangelo mas que,
em compensação, tentou três vezes realizar uma espécie de biografia de Rafael. Como
Herman Grimm não foi um ‘erudito’ comum — que em geral consegue tudo —, e sim um
homem universal, de coração aberto ao que pretendia compreender e pesquisar, ao
terminar uma nova tentativa de escrever sobre a vida de Rafael era obrigado a
confessar que não se tratava em absoluto de uma vida de Rafael. E assim recomeçava
sempre, sem nunca satisfazer-se com seu trabalho. Pouco antes de sua morte, ele
tentou novamente — sabemo-lo por suas obras póstumas — assimilar a vida de Rafael do
modo como seu coração pedia. Até mesmo o título que o novo tratado deveria exibir era
característico: ‘Rafael como potência mundial’. Ele tinha a impressão de que,
acercando-se sinceramente da entidade ‘Rafael’, ninguém poderia descrevê-lo senão
como potência mundial, como algo capaz de transparecer através de toda a História
Universal. É muito natural que um escritor moderno não se sinta, por assim dizer, muito
à vontade para introduzir suas palavras se tiver de fazê-lo com a mesma franqueza e
liberdade dos evangelistas. Mesmo o melhor dentre os escritores teria receio de
proceder dessa forma, apesar de em muitos casos as palavras pertinentes surgirem com
naturalidade, em função das figuras que ele deve descrever. É muito estranho o que
Herman Grimm diz a respeito de Rafael nos primeiros capítulos escritos pouco antes de
sua morte, onde podemos realmente perceber algo das proporções dessa figura que foi
Elias-João.
Se, por milagre, Michelângelo tivesse ressurgido dentre os mortos para viver
novamente entre nós, caso o encontrasse eu abriria respeitosamente caminho
para ele passar; mas se Rafael cruzasse meu caminho eu o seguiria, para ter a
oportunidade de escutar algumas palavras de sua boca. No caso de Leonardo e
Michelângelo, poderíamos limitar-nos a relatar o que eles representavam para sua
época; no de Rafael, devemos partir do que ele significa para nós hoje. Os dois
anteriores estão encobertos por um véu tênue — o que não acontece com Rafael,
que se inclui entre aqueles cujo crescimento fica longe de estar concluído.
Podemos imaginar uma futura sucessão de gerações de seres humanos descobrindo
novos enigmas em Rafael. [Fragmente, vol. II, pág. 171.]
Herman Grimm descreve Rafael como potência mundial, como um espírito que
atravessa os séculos, os milênios, espírito que não cabe numa pessoa só. Mas em
Herman Grimm podemos ler também outras palavras que, como eu já disse, extravasam
da franqueza e da honestidade de sua alma. E estas parecem querer exprimir que em
Rafael existe algo como uma grande aura pairando à sua volta, tal como o espírito de

5
Em ‘A Teosofia e a vida espiritual da atualidade’, conferência especial proferida em 30.8.1912. [Editada
como conferência avulsa em Vonderlnitiation. Von Ewigkeit und Augenblick. Von Geisteslicht und
Lebensdunkel, GA-Nr. 138 (4ªed. Dornach: Rudolf Steiner Verlag, 1986).]

25
Elias pairava em torno de Nabot. Seria possível encontrar palavras diferentes das de
Herman Grimm para isso?
Rafael é um cidadão da História Universal. É como um dos quatro rios que,
segundo a crença do mundo antigo, fluíam do Paraíso. [Fragmente, vol. II, pág.
153.]
Isso quase poderia ter sido escrito por um evangelista, e poderíamos encontrar até
palavras semelhantes para descrever Elias. Isso significa que até o moderno historiador
da arte pode perceber os grandes impulsos universais que perpassam as épocas. Para
compreender a Ciência Espiritual moderna, basta tão-somente aprofundar-nos nas
necessidades anímicas e espirituais das pessoas que se esforçam ansiosamente para
alcançar a verdade na evolução da humanidade.
É assim que João Batista se nos apresenta, e esses sentimentos nos ajudam tanto
na leitura das primeiras palavras do Evangelho de Marcos como logo depois, no sexto
capítulo. A Bíblia não é um livro com o mesmo efeito de um livro da moderna erudição,
no qual, por assim dizer, se esboça ‘claramente’, à vista dos leitores, o que eles devem
ler. Atrás de sua composição, de seu estilo artístico maravilhosamente oculto, a Bíblia
esconde muita coisa do que tem a anunciar a respeito dos mistérios. Assim, atrás dessa
composição artística oculta ela esconde também certas coisas a respeito do Batista.
Permitam-me chamar sua atenção para um detalhe que talvez os Senhores devam
aceitar apenas como verdade relacionada com a sensação ou o sentimento; mas se
estiverem dispostos a aceitar outras verdades que não as do intelecto, poderão concluir
que a Bíblia as contém ao falar da relação do espírito e da alma de Elias com o espírito
e a alma de João Batista. Vejamos em que medida isso acontece e, tão brevemente
quanto possível, procuremos sentir um trecho da narração de Elias no Antigo
Testamento:
Elias levantou-se e seguiu em direção a Sarepta. E tendo chegado à porta da
cidade, apareceu-lhe uma mulher viúva recolhendo lenha. Ele a chamou e disse:
Dá-me um pouco de água para beber num vaso.
E quando ela foi buscá-lo, Elias a chamou e disse: Traze-me também um bocado
de pão.
Ela respondeu: Tão certo como o Senhor teu Deus vive, eu não tenho pão, mas
somente um pouco de farinha na panela e um pouco de azeite na ânfora. Ando
juntando uns gravetos a fim de usá-los no fogão para mim e meu filho, para que
possamos comer e depois morrer.
Elias disse-lhe: Não tema, vai e fazes como disseste; mas primeiro faze, desse
pouco de farinha, um pãozinho para mim e traze-o; depois deveras fazê-lo
também para ti e teu filho.
Porque assim fala o Senhor, o Deus de Israel: A farinha que está na panela não
faltará, nem diminuirá na ânfora o azeite, até o dia em que o Senhor fizer cair a
chuva sobre a terra.
A mulher foi e fez como Elias lhe havia dito. E ele comeu e ela também, e toda a
sua casa durante algum tempo.
E não faltou farinha na panela, nem diminuiu o azeite na ânfora, conforme o
Senhor tinha predito através de Elias. [I Reis 17, 10-16.]
O que podemos ler nessa narrativa de Elias? Lemos sobre a chegada de Elias à casa
de uma viúva e uma curiosa multiplicação dos pães. A presença do espírito de Elias faz
com que nada falte, apesar de haver pouco pão. Vemos que o pão se multiplica no
momento da chegada do espírito de Elias à casa da viúva. Ele faz acontecer o que nos é
descrito como a multiplicação dos pães. Poderíamos dizer o seguinte: do Antigo
Testamento reluz o fato de, com o aparecimento de Elias, ser produzida uma

26
multiplicação dos pães.
E agora leiamos o sexto capítulo do Evangelho segundo Marcos, que começa com a
narrativa da decapitação de João por Herodes e da chegada e encontro do Cristo Jesus
com o grupo de discípulos de João. Sintamos em nossas almas a atmosfera deste
capítulo.
Ao desembarcar, ele viu uma grande multidão, e teve compaixão deles, porque
eram como ovelhas sem pastor; e começou a ensinar-lhes muitas coisas.
E como já era tarde, seus discípulos chegaram-se a ele, dizendo: Este lugar é
solitário, e a hora já está avançada; despeça-os a fim de que possam ir às quintas
e povoados próximos comprar alguma coisa para comer.
E respondendo, disse-lhes ele: Dai-lhes vós de comer. E eles responderam: Como
podemos comprar pão para dar-lhes de comer com duzentos dinheiros?
Ele, porém, disse-lhes: Quantos pães tendes vós? Ide ver. Depois de terem
verificado, disseram-lhe: Cinco pães e dois peixes.
Ele então ordenou-lhes que se sentassem todos sobre a relva verde, o que fizeram
em grupos de cem e de cinqüenta.
Pegando os cinco pães e os dois peixes, ele elevou os olhos ao céu, disse a
bênção, partiu os pães e deu-os a seus discípulos para que os servissem a eles;
distribuiu também os dois peixes entre todos.
Todos comeram e ficaram saciados [...]. [Marcos 6, 34-42.]
Os Senhores conhecem a história: uma multiplicação dos pães mediante o espírito
de Elias-João. A Bíblia não se exprime claramente, no mesmo sentido que tem hoje a
palavra ‘claramente’, mas insere no elemento da composição o que quer dizer. E quem
souber avaliar verdades ligadas ao sentimento quererá demorar com o seu no trecho da
Bíblia onde se relata como Elias encontra a viúva e multiplica o pão, e depois onde o
Elias renascido abandona o corpo físico, e o Cristo Jesus, em sua atmosfera e sob nova
forma, realiza o que se interpreta como a multiplicação dos pães.
São esses os passos e as concatenações internas da Bíblia, indicando-nos como, no
fundo, a idéia de haver uma ‘compilação de fragmentos’ não passa de uma erudição
vazia, sendo que um conhecimento bíblico verdadeiro nos possibilita reconhecer o
espírito unitário da composição, não importando quem seja esse espírito. É assim que se
nos apresenta a figura do Batista.
É bastante curioso como o próprio Batista se insere na obra do Cristo Jesus. Por
duas vezes temos a indicação de que o próprio Cristo Jesus adentra a aura do Batista,
ou seja, a esfera onde a personalidade física se retira cada vez mais e finalmente
abandona por completo o plano físico. Por outro lado, o singelo Evangelho de Marcos
nos informa, em palavras muito claras, como agora tudo muda em conseqüência da
entrada do Cristo Jesus no elemento de Elias-João, fazendo com que um novo im pulso
seja dado ao mundo.
Para se compreender isso, é necessário ter em vista todo o quadro apresentado no
Evangelho — de um lado, a partir do momento em que, após a prisão de João Batista, o
Cristo surge para falar dos reinos divinos, até o ponto em que se fala do assas sinato de
João por Herodes; e depois os capítulos seguintes. Considerando-se em seu verdadeiro
caráter todos esses relatos até a história de Herodes, verificamos que todos eles visam a
proporcionar-nos uma visão bastante clara da essência do Cristo Jesus. Ontem mesmo já
chamamos sua atenção para a forma de atuação dessa essência do Cristo, de modo que
ele é reconhecido não só pelos homens, mas também pelos espíritos demoníacos e pelos
seres supra-sensíveis. Isso é o que se nos apresenta, à primeira vista, de maneira
saliente e marcante. Mas logo se nos evidencia que o que reside no Cristo é diferente do
que residia em Elias-Nabot, pois o espírito de Elias não conseguia penetrar totalmente

27
em Nabot.
O sentido do Evangelho de Marcos é relatar como o Cristo penetra por completo
em Jesus de Nazaré, preenchendo toda a sua personalidade física, e como age nele o
que reconhecemos como o eu humano em geral. Ora, o que horroriza tanto os demô nios
que mantêm os homens possessos, quando o Cristo os enfrenta? E o que os obriga a dizer
“Tu és aquele que traz Deus em si”, e a reconhecê-lo como uma potência divina na
personalidade que força os demônios a identificar-se e a abandonar a pessoa por meio
do poder inerente à personalidade individual do homem [Marcos 1, 24; 3, 11; e 5, 7]. É
por isso que os primeiros capítulos do Evangelho segundo Marcos destacam tanto essa
figura que, de certo modo, aparece como contraste para Elias-Nabot e também para
Elias-João. Enquanto nesses o elemento que confere alma não podia habitar
plenamente, no Cristo Jesus ele está plenamente contido. Por isso, embora viva nele
um princípio cósmico, totalmente individual, o Cristo Jesus defronta-se com as outras
pessoas, inclusive com as que ele cura, como personalidade humana particular.
Atualmente, é comum tais narrativas do passado serem recebidas num sentido bem
peculiar. Especialmente muitos dos naturalistas modernos ou monistas (como também
se denominam) recebem-nas assim, ao defender certas cosmovisões. Podemos
caracterizar esse sentido dizendo que esses bons eruditos, esses bons filósofos da
natureza opinam secretamente, e com vergonha de admiti-lo, que teria sido melhor o
Senhor Deus ter deixado para eles a tarefa de organizar o mundo; pois eles o teriam
feito melhor. Um desses eruditos jura que a sabedoria só chegou à humanidade nos
últimos vinte anos; outros, ainda, contam apenas os últimos cinco anos e consideram
superstição o que existia anteriormente. Eles lamentam profundamente que, ao passar
o Cristo Jesus pela Terra, ainda não existisse uma medicina científica moderna, com
todos os seus diversos remédios; e consideram que teria sido mais sensato se todas
aquelas pessoas pudessem ter sido curadas pelos métodos da medicina moderna —
como, por exemplo, a sogra de Simão e outros. Ora, em sua opinião um Deus perfeito
seria aquele que organizasse seu intelecto segundo as concepções dos modernos
eruditos naturalistas; ele não teria deixado os homens suspirar tanto tempo pela mo-
derna erudição científico-natural. Assim, do modo como o bom Deus o organizou, o
mundo saiu um pouco estragado em comparação com o que um erudito naturalista teria
feito. Eles não o dizem — envergonham-se de dizê-lo; não obstante, isso se insi nua nas
entrelinhas. Basta dar nome às coisas que hoje circulam entre os eruditos materialistas.
Se pudéssemos falar a sós com um desses senhores, talvez ouvíssemos que na verdade a
única saída é ser ateu, pois bem se vê quão pouco o bom Deus conseguiu curar os
contemporâneos do Cristo Jesus pelos métodos da moderna Ciência Natural.
No entanto, existe algo que essas pessoas não consideram, ou seja: que devem
sinceramente levar a sério a palavra ‘evolução’, usada por elas com tanta freqüência;
que tudo deve estar contido na evolução, para o mundo poder chegar a seu destino: não
basta buscar um plano estabelecido pela ciência moderna para se criar um mundo.
Pensando assim, não se sabe que antigamente toda a constituição do ser humano, a
composição de seus corpos mais sutis, era totalmente diferente. Naquele tempo, os
métodos da Ciência Natural não teriam sido de utilidade alguma para a personalidade
humana. O corpo etérico era muito mais ativo e mais potente do que hoje — havia
maiores possibilidades de se atuar sobre o corpo físico por meio do corpo etérico. E
quando — falemos sucintamente — se curava com ‘sentimentos’ que fluíam de uma
pessoa à outra, o efeito era bem diverso do que ocorre hoje. Quando o corpo etérico
era mais potente e ainda dominava o corpo físico, os ‘medicamentos’ psico-espirituais
atuavam de modo bem diferente. Como os seres humanos tinham uma constituição
diferente, os meios de cura também tinham de sê-lo. Um erudito naturalista que ignore

28
isso dirá não acreditar em milagres, pois na verdade essas curas são milagres, e isto
precisa ser eliminado. Um moderno teólogo esclarecido encontra-se hoje num embaraço
todo especial, pois quer preservar as coisas, mas está preso ao atual preconceito de que
tais curas não são possíveis, não passando de ‘milagres'’. Busca-se então toda sorte de
explicações para a possibilidade ou impossibilidade dos milagres. Só que não se sabe de
uma coisa: tudo o que é descrito até o sexto capítulo do Evangelho de Marcos não era
absolutamente milagre para aquele tempo, assim como hoje em dia não é milagre
influenciar esta ou aquela função do organismo humano mediante um medicamento
qualquer. Naquele tempo, ninguém teria pensado em milagre se alguém, estendendo a
mão, dissesse a um leproso: “Eu quero — então fica limpo!” Todo o efeito natural que
transbordava do Cristo era o medicamento. Hoje já não teria efeito, pois a ligação entre
o corpo etérico e o corpo físico é bem diferente. Naquele tempo, porém, os médicos
curavam principalmente assim. Por isso, não é de admirar que o Cristo Jesus tenha
curado os leprosos por meio da compaixão e com a imposição das mãos. Isso era óbvio
naquele tempo. O que deve ser salientado neste capítulo é algo totalmente diverso, e
temos de tê-lo em vista.
Consideremos como, por exemplo, antigamente se formavam os médicos, menores
ou maiores. Eles eram formados em escolas anexas às dos mistérios, e assimilavam
forças que, através deles, atuavam a partir dos mundos supra-sensíveis — de modo que
os médicos daquele tempo eram como uma espécie de médiuns para forças supra-
sensíveis. Eles transmitiam forças supra-sensíveis por sua própria mediunidade, à qual
eram elevados nas escolas médicas de mistérios. Quando um médico desses colocava sua
mão sobre um doente, não eram suas próprias forças que fluíam, e sim forças
provenientes do mundo supra-sensível. Essa capacidade de servir de canal para a
atuação de forças supra-sensíveis era uma conseqüência de sua iniciação nas escolas de
mistérios. Os homens daquela época não se teriam assombrado muito com descrições de
curas de leprosos ou de doentes febris por meio desses processos psíquicos. O aspecto
significativo disso não eram as curas em si, mas o fato de aparecer alguém capaz de
operá-las sem ter cursado uma escola de mistérios; alguém trazendo em sua própria
alma a força que antes fluía dos mundos superiores, tendo essas forças se tornado
pessoais e individuais. Era preciso apresentar o fato de que o tempo se cumprira, e que
a partir de então o homem não podia mais ser um canal de forças supra-sensíveis — isso
chegara ao fim. Tal fato se havia evidenciado também às pessoas batizadas por João no
rio Jordão: esse tempo havia terminado, sendo necessário que tudo a ser realizado no
futuro o fosse pelo eu humano, pelo cerne íntimo e divino do ser humano; e alguém
entre eles realizava por si mesmo o que os demais faziam com a ajuda dos seres que
vivem nos mundos superiores e cujas forças os influenciavam.
Nós não compreenderemos a Bíblia em seu verdadeiro sentido se interpretarmos o
processo de cura como algo extraordinário. Foi no crepúsculo dessa era antiga que tais
curas ainda puderam ocorrer, e aí se diz que o Cristo realiza curas na época do arrebol
— mas com as novas forças disponíveis daí em diante. Por isso também é descrito com
plena clareza como o Cristo Jesus atua de pessoa para pessoa. Sempre é enfatizado que
ele atua de pessoa para pessoa, especialmente ao curar a mulher no quinto capítulo do
Evangelho de Marcos. Ele a cura quando ela se aproxima e segura seu manto, e ele
sente que uma corrente de forças flui de seu interior. Essa narrativa nos é feita da
seguinte maneira: — A mulher se aproxima do Cristo Jesus e agarra seu manto.
Inicialmente ele nada faz; ela sim — ela agarra seu manto. Dele parte uma corrente de
energia. Por que motivo? Não pelo fato de, nesse caso, ele a haver emitido, mas pelo
fato de ela a haver extraído — o que ele só nota mais tarde. Isso é apresentado com
toda a clareza. E como ele se expressa ao percebê-lo? “Filha, tua fé te ajudou; vai em

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paz e fica curada de teu mal.” Só nesse instante ele percebe que o reino divino flui para
seu interior e irradia dele novamente. Ele não está ali como os antigos exorcistas de
demônios se apresentavam a seus pacientes. Acreditando o doente ou não, a força que
descia dos mundos supra-terrestres por intermédio do curandeiro afluía para ele. Agora,
porém, que se tratava do eu, este devia cooperar; tudo se tornara individualizado. É a
descrição desse fato que importa, e não o que era natural na época, ou seja, a
possibilidade de se agir sobre o corpo por meio da alma; importava, isso sim, que ao
iniciar-se a nova era deveria estabelecer-se uma nova relação entre um eu e outro.
Antigamente, o espírito habitava os mundos superiores e pairava sobre o ser humano;
agora os reinos dos céus chegavam mais perto e instalavam-se nos corações dos homens,
habitando-os como a um centro. Este é o aspecto importante. Para tal cosmovisão, o
exterior físico e a moral interior confluíram numa nova forma, e de um modo tal que
desde a fundação do cristianismo até nossos dias só podia ser fé, e partir de agora pode
tornar-se saber.
Imaginemos, em tempos antigos, um paciente idoso que se encontrasse, como
acabo de descrever, diante de seu médico, seu curandeiro. Forças mágicas eram
buscadas nos mundos supra-sensíveis por meio do médico, preparado nas escolas de
mistérios; tais forças fluíam através do corpo do médico para o paciente. Não havia
qualquer correlação com a situação moral do paciente, pois nenhuma passagem do
processo tocava ainda seu eu. Não importava seu estado moral, pois as forças afluíam
magicamente dos mundos superiores. Chegava agora uma nova era.
Então o aspecto moral e físico da cura confluíram de nova forma. Sabendo disso,
podemos compreender uma outra narrativa:
Passaram-se dias até que ele retornasse a Cafarnaum; e anunciou-se que ele
estava em casa.
Muita gente se reuniu, de modo que não sobrava mais lugar diante da porta; e ele
lhes dirigiu a palavra.
Levaram até ele um gotoso, carregado por quatro homens.
Não conseguindo chegar com este até ele por causa da multidão, descobriram o
telhado, fazendo com que a maça com o gotoso descesse através da fresta.
E Jesus, percebendo a sua fé, disse ao gotoso: Filho, teus pecados te são
perdoados. [Marcos 2, 1-5.]
O que teria dito um médico antigo? O que esperavam os fariseus, doutores das
Escrituras, para que a cura acontecesse? Teriam esperado que um médico antigo
dissesse: “As forças que entram em ti e em teus membros paralisados farão com que te
movimentes.” E o que diz o Cristo Jesus? “Teus pecados te são perdoados”, ou seja, o
elemento moral do qual participa o eu. Eis uma linguagem que os fariseus não
compreendem. Eles não podem compreendê-la. Parece-lhes blasfêmia alguém falar
desse modo, pois em sua concepção não se pode falar de Deus senão como alguém que
habita os mundos superiores e de lá atua, sendo que os pecados não pedem ser
perdoados senão a partir desses mundos superiores. Eles não compreendem que perdoar
pecados é algo relacionado com quem cura. Por isso o Cristo prossegue:
O que é mais fácil dizer ao gotoso: “Teus pecados estão perdoados”, ou dizer:
“Levanta-te, pega tua maça e anda”?
Para que saibais que o Filho do Homem possui pleno poder para perdoar os
pecados na Terra (e, dirigindo-se ao gotoso),
digo-te: levanta-te, pega tua maça e vai para casa!
E ele se levantou, pegou logo a sua maca e deixou a casa à vista de todos. [Marcos
2, 9-12.]

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Ele une o aspecto moral ao modo mágico de curar, estabelecendo assim a transição
do estado isento de um eu àquele pleno do mesmo. É com isso que nos deparamos em
todas as narrativas. Devemos compreender as coisas nesse sentido, pois é assim que são
relatadas. Comparando o que a Ciência Espiritual tem a dizer com o que nos é contado
na Bíblia a respeito da absolvição dos pecados', encontramos as mais estranhas
explicações; porém nenhuma é satisfatória, pois não se conhecia a verdadeira signi-
ficação do Mistério do Gólgota.
Uma fé — disse eu —, era o que tinha de ser. Por que uma fé? Porque a
manifestação do moral no físico não se realiza numa única encarnação. Observando uma
enfermidade física de alguém hoje em dia, não devemos relacionar suas qualidades
morais com as físicas nesta mesma encarnação. Somente ao considerarmos as várias
encarnações é que aparece a inter-relação do moral com o físico em seu carma. Como
até aqui o carma não foi levado em conta, ou o foi muito pouco, podemos dizer que até
agora o nexo entre o moral e o físico pôde ser apenas uma fé. Agora que podemos
abordar o Evangelho segundo a Ciência Espiritual, isso se torna saber. Então o Cristo
está ao nosso lado como um iluminado acima do carma, ao revelar: “Esse eu posso
curar, pois percebo em sua personalidade que seu carma lhe permite levantar-se agora
e andar.”
É justamente num trecho da Bíblia como este que vemos como ela só pode ser
compreendida com os recursos da Ciência Espiritual moderna. Eis nossa tarefa:
demonstrar como esse livro universal contém realmente a mais profunda sabedoria
sobre a evolução da humanidade. Um dia, quando se compreender o efeito cósmico do
Mistério do Gólgota na Terra, seu significado cósmico-terreno e terreno-cósmico, nunca
mais se poderá considerar uma ofensa a qualquer outra fé religiosa do mundo o que
pode ser dito com base nos Evangelhos. O Evangelho segundo Marcos nos dá um bom
motivo para ressaltar isso cada vez mais, no decorrer destas conferências. Pelos motivos
indicados no fim da conferência de ontem, e sobretudo porque não é possível encerrar o
verdadeiro conhecimento da Bíblia numa confissão determinada, é que ela deve tornar-
se propriedade universal. Sua verdade intrínseca fará com que esse conhecimento,
fundamentado na Ciência Espiritual, confira o mesmo valor a todas as confissões
religiosas do mundo. Isso trará uma reconciliação entre essas religiões, cujo início
poderia ser a palestra daquele indiano sobre ‘Cristo e o Cristianismo’, referida por mim
na primeira conferência, na qual ele, embora preso a todos os preconceitos de seu
povo, encarou o Cristo num sentido interconfessional. O esforço para compreender a
figura do Cristo passa a constituir a missão da atuação científico-espiritual nas
diferentes crenças religiosas — pois a mim parece que o movimento espiritual deve ter
como missão um aprofundamento nas diversas religiões, de modo a compreender em
profundidade sua essência interior.
Aproveito a oportunidade para reiterar o que já mencionei várias vezes, isto é,
como se posicionará um budista que é teósofo frente a um teósofo cristão. O budista
dirá: “Depois que o Bodhisatva se transformou num Buda, após a morte o Gautama Buda
alcançou uma altura tal que não tem mais necessidade de voltar à Terra.” E o cristão
teósofo responderá: “Eu compreendo, pois acredito na mesma coisa a respeito do teu
Buda ao encontrar o caminho para o teu coração e acreditar no que tu acreditas.” Isso
significa compreender a religião do outro, elevar-se à religião do outro. O cristão que se
tornou teósofo é capaz de compreender tudo o que o outro diz. O que, porém, dirá o
budista que se tornou teósofo? Ele dirá: “Procuro compreender a essência do
cristianismo, isto é, que no caso do Cristo não se trata meramente do fundador de uma
religião, pois o Mistério do Gólgota é um fato impessoal. Acontece que o homem Jesus
de Nazaré não se apresentou como fundador de uma religião; o Cristo penetrou nele,

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morreu na cruz e assim consumou o Mistério do Gólgota.”
O importante é que esse Mistério do Gólgota constitui um fato cósmico. O budista
dirá então: “Daqui em diante compreenderei isso, pois terei captado o cerne essencial
de tua religião, tal como captaste o da minha; não apresentarei mais o Cristo como um
indivíduo que se reencarnará, pois o que importa para ti é o que sucedeu. Seria
estranho eu dizer que o cristianismo necessitará de correções, ou que, compreendendo
melhor o Cristo Jesus, não o teriam crucificado após três anos, pois deveriam tratar de
modo diferente o fundador de uma religião. O que realmente importa é que o Cristo foi
crucificado!” Não se trata, no caso, de pensar que se cometeu uma injustiça e por isso o
cristianismo poderia ser corrigido. Budista algum que se tenha tornado teósofo poderia,
hoje, dizer outra coisa senão o seguinte: “Da mesma forma como compreendes o cerne
essencial de minha religião, procuro compreender o da tua.”
O que sucederá se os seguidores dos diferentes sistemas religiosos chegarem a
compreender-se mutuamente, se o cristão disser ao budista “Creio em teu Buda da
mesma maneira como tu”, e se o budista disser ao cristão “Posso compreender o
Mistério do Gólgota como tu o compreendes”? Qual será o destino da humanidade
quando algo assim se generalizar? Haverá paz para os homens e reconhecimento
recíproco das religiões. E isso acontecerá necessariamente. E o movimento teosófico
deverá ser uma verdadeira compreensão recíproca das religiões. Pois seria contrário ao
espírito da Teosofia se um cristão, tornado teósofo, dissesse ao budista: “Não é certo
que Gautama, após ter-se tornado Buda, não deverá reencarnar-se; ele deverá aparecer
como homem físico no século XX.” O budista então responderia: “Então tua Teosofia
serve apenas para escarnecer de minha religião?” Haveria assim uma desunião ao invés
de paz e harmonia entre as religiões. Da mesma forma, o cristão deveria dizer ao
budista que advogasse uma melhora no cristianismo: “Se afirmares que o Mistério do
Gólgota foi um engano e que o Cristo deverá reaparecer num corpo físico para que
tenha agora um destino melhor, não estarás fazendo qualquer esforço para
compreender minha religião; estarás escarnecendo dela.” A Teosofia não se presta a
escarnecer de uma confissão religiosa, seja antiga ou recém-fundada; pois de outra
forma se trataria de um movimento baseado no escárnio mútuo, e não na cooperação
mútua entre as religiões.
Devemos gravar bem isso em nossas almas para compreender o espírito e o cerne
oculto da Teosofia. E nada melhor para entendê-lo do que estendermos a todas as
religiões a força e o amor reinantes nos Evangelhos. Nas próximas conferências,
mostrarei como o Evangelho segundo Marcos tem um papel importante no cumprimento
desse objetivo.

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4 18 de setembro de 1912

A dualidade na pregação do Cristo


Ao começar minha conferência de hoje, eu gostaria de dirigir sua atenção a duas
imagens da evolução humana dos últimos milênios, ligadas à nossa visão espiritual. A
primeira se refere a um acontecimento situado por volta da metade e do fim do sé culo
V da era pré-cristã. Apesar de ser algo conhecido, eu gostaria, não obstante, de enfocá-
lo pela visão anímica.
Sabemos que o Buda, no país dos hindus, conseguira reunir à sua volta um grande
número de discípulos, dando origem a um movimento poderoso que fluiu do Oriente em
enormes levas, atravessando os séculos e trazendo salvação e liberação interior para as
almas, elevação e consciência da humanidade para muitas pessoas. Para caracterizar
esse acontecimento, basta dirigirmos nossa atenção ao principal momento da doutrina e
da atuação do Buda.
A vida, tal como é consumada pelo homem em suas encarnações na Terra, é
sofrimento, provocado pelo fato de o próprio homem, na seqüência de suas
encarnações, sujeitar-se ao impulso de encarnar-se sempre de novo. A meta a ser
alcançada é a libertação desse impulso para a reencarnação terrestre, isto é, elevar-se
a um estado em que a alma não sinta mais estar ligada à existência por meio dos
sentidos e dos órgãos físicos, conseguindo assim ascender ao Nirvana, como é chamado
esse estado.
Esse é o grande ensinamento que fluiu dos lábios do Buda: a vida é sofrimento, e o
homem deveria encontrar os meios para libertar-se dele a fim de poder participar do
Nirvana. Para usar uma expressão que traduz em conceitos correntes e exatos a
tendência inerente a essa doutrina do Buda, poderíamos dizer que, por força e poder de
sua individualidade, o Buda dirigia a visão de seus discípulos à existência terrena e
procurava propiciar-lhes, da infindável plenitude de sua compaixão, os meios para a
elevação de suas almas aos céus, juntamente com tudo o que elas continham: o
pensamento e a filosofia do homem.
É isso o que podemos expressar como uma fórmula, pregnante e realista, se
quisermos descrever esse impulso que emana da grande pregação do Buda em Benares.
Vemos, assim, o Buda reunir em torno de si discípulos que lhe são fiéis. O que se reflete
na alma desses discípulos? O que se evidencia como sua confissão? Que o anseio da alma
humana tem por objetivo a libertação do desejo de reencarnações, do apego à vida nos
sentidos, buscando o auto-aperfeiçoamento, à medida que o ser se liberta de tudo o
que o liga à vida sensorial para ligá-lo a tudo o que o mantém unido à sua origem divino-
espiritual. Eram esses os sentimentos dos discípulos do Buda: o desejo de libertação de
todas as atribulações da vida e o estabelecimento de uma ligação com o mundo
espiritual apenas mediante o sentimento da alma experimentado na compaixão, bem
como a aspiração ao aperfeiçoamento espiritual e a renúncia a todo e qualquer desejo,
reduzindo-se ao mínimo possível qualquer ligação exterior do homem com tudo o que o
prende à existência. Foi desse modo que os discípulos do Buda passaram pelo mundo;
era assim que eles viam a finalidade e o objetivo de seu aprendizado.
Acompanhando a evolução do budismo através dos séculos, podemos perguntar: o
que existia nas almas e nos corações dos seguidores do budismo em expansão? — e
recebemos então como resposta: as pessoas possuíam metas supremas, e no âmago de
todo o seu pensar e sentir vivia aquela figura grandiosa do Buda, a visão de tudo o que
ele havia dito em suas palavras tão arrebatadoras e significativas a respeito da

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libertação dos sofrimentos da vida. A poderosa e abrangente autoridade do Buda vivia
no centro de todo o pensar e de todo o sentir, nos corações de seus discípulos e de seus
seguidores através dos séculos. O que o Buda dizia era, para eles, palavra sagrada.
Por que essas palavras representavam, para os discípulos e seguidores do Buda,
uma mensagem advinda diretamente do céu? Porque eles viviam na crença e na fé de
que sob a árvore Bodhi lhe havia sido revelado o verdadeiro conhecimento da existência
universal, a Luz, o Sol do Universo. O que importa é essa disposição característica para
o sagrado e o singular que vivia nos corações dos discípulos do Buda. Enfoquemos tudo
isso por meio de nossa visão espiritual, tentando compreender o que sucedeu meio
milênio antes do Mistério do Gólgota.
Enfoquemos agora uma outra imagem da História Universal. Acontecimentos
distanciados entre si em mais ou menos um século podem ser considerados como que
simultâneos em relação às longas épocas da evolução da humanidade. Um século
significa pouco ao considerarmos milênios e mais milênios da evolução humana. Por
isso, podemos dizer o seguinte: embora apareça somente um século mais tarde, a
imagem que agora pretendemos evocar diante de nossas almas pode ser considerada
quase simultânea a esse evento do Buda que acabamos de descrever.
No século V antes da era cristã, uma outra individualidade reúne à sua volta, na
antiga Grécia, discípulos e fiéis. Esse também é um fato bastante conhecido; mas para
chegarmos a entender a evolução dos últimos séculos, é bom termos em vista a imagem
dessa individualidade. É Sócrates quem vemos, na antiga Grécia, reunir discípulos em
tomo de si. E para podermos inseri-lo neste contexto, basta evocarmos a imagem que
dele traçou o grande filósofo Platão, a qual parece ser corroborada por outro grande
filósofo, Aristóteles. Basta considerarmos a forma impressionante como Platão esboçou
a imagem de Sócrates para podermos dizer que Sócrates foi o inaugurador de um
movimento muito importante no Ocidente. Quem observar todo o caráter da evolução
cultural do Ocidente notará: o que se pode chamar de elemento socrático exerceu uma
influência decisiva sobre tudo o que caracteriza essa cultura. Mesmo que esse elemento
socrático do Ocidente se propague, através das vagas da História Universal, com mais
sutileza que o elemento budista no Oriente, é lícito traçarmos um paralelo entre
Sócrates e o Buda. Porém os alunos e discípulos de Sócrates e do Buda devem ser
encarados de um ponto de vista um tanto peculiar. Poderíamos dizer que tudo o que
caracteriza a distinção entre Ocidente e Oriente torna-se patente ao considerarmos a
diferença fundamental entre Sócrates e o Buda.
Sócrates reunia seus discípulos em torno de si. Como se sentia perante eles? A arte
de relacionar-se com eles foi chamada de ‘parto espiritual’, porque ele se empenhava
em extrair da própria alma dos alunos o que estes deveriam aprender. Ele formulava as
perguntas de modo a colocar em movimento a disposição básica interna de tais almas;
dessa maneira não lhes transmitia coisa alguma de si, mas extraía tudo de dentro delas.
O elemento um tanto sucinto e sóbrio que caracteriza a cosmovisão e a arte de Sócrates
se deve ao fato de ele apelar à independência e à razão imanente de cada discípulo,
enquanto passeava com eles pelas ruas de Atenas — de um modo um tanto diferente,
mas também semelhante ao do Buda em seus passeios. Contudo, enquanto o Buda
anunciava o que havia recebido pela iluminação sob a árvore Bodhi, e enquanto ao
longo dos séculos atuava o que ele havia recebido do mundo espiritual e transmitira a
seus discípulos para que isso continuasse vivendo neles, Sócrates não teve a mínima
pretensão de continuar vivendo como ‘Sócrates’ nos corações de seus alunos. Quando
estava com eles, nem sequer pretendia transferir algo de si próprio às suas almas —
muito pelo contrário, estimulava-os para que extraíssem tudo de si mesmos. Nada do
que fosse parte de Sócrates deveria ser transferido às almas de seus discípulos.

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É impossível imaginar maior diferença do que a existente entre o Buda e Sócrates.
Na alma do discípulo do Buda, este devia viver com tudo o que representava, ao passo
que na alma do discípulo de Sócrates nada devia existir dele mesmo, do mesmo modo
como numa criança recém-nascida nada se acrescenta de sua parteira. O elemento
espiritual devia emergir dos discípulos de Sócrates por meio de sua arte de 'parteiro
espiritual', que deixava as pessoas livres para desenvolver-se e extraía delas o que já
existia em seu interior. Era isso o que pretendia Sócrates. Poderíamos também
caracterizar a diferença entre Sócrates e o Buda com as seguintes palavras: se uma voz
descesse do céu indicando o que os discípulos do Buda deveriam aprender, certamente
teria dito: “Acendei em vós o que vivia no Buda, para encontrar, por intermédio dele, o
caminho à existência espiritual!” Para caracterizar de modo semelhante o que Sócrates
pretendia, poderíamos dizer que ele exortava cada um de seus discípulos clamando:

Torna-te o que és!”
Ao evocarmos em nossas almas essas duas imagens, não será oportuno dizermos
que temos aí duas correntes diametralmente opostas da evolução da humanidade? De
algum modo elas se tocam, mas apenas nas extremidades. Não devemos misturar as
coisas; devemos caracterizá-las segundo suas diferenças, e depois indicar os pontos em
que existe uma unidade possível. Imaginando o Buda face a face com um discípulo,
poderíamos dizer que, por meio de palavras sublimes e repetições constantes — que são
imprescindíveis e não podem ser excluídas da reprodução de seus discursos —, ele se
empenhava em evocar em sua alma o que poderia elevá-lo aos mundos espirituais,
utilizando o que ele próprio havia experimentado sob a árvore Bodhi. Todas as palavras
eram escolhidas por ele a fim de apregoar o estado de enlevo na Terra, constituindo-se
numa manifestação celestial do mundo superior e sendo pronunciadas por uma boca que
falava sob a impressão direta da iluminação recebida.
E de que modo podemos imaginar Sócrates confrontando-se com seu discípulo? Ao
pretender explicar a relação do homem com o Divino por meio das mais singelas
considerações intelectuais do dia-a-dia, ele tenta esclarecer a esse discípulo a maneira
como este deve pensar e como se relacionam as concatenações lógicas. Esse discípulo é
sempre remetido às coisas mais sóbrias e corriqueiras, a fim de aplicar ao conhecimento
adquirido o que lhe é possível conquistar por meio da lógica comum. Uma única vez
Sócrates parece elevar-se a uma altura tal que, diríamos, fala a seus discípulos com a
linguagem do Buda. E quando ele se prepara para a morte. Ao falar sobre a imortalidade
da alma, pouco antes de seu falecimento, sua linguagem é de um iluminado supremo;
nessa mesma ocasião, porém, ele fala de um modo que suas declarações só podem ser
compreendidas se considerarmos toda a sua vivência pessoal. E por isso que o diálogo
platônico sobre a imortalidade da alma toca diretamente nossos corações, fala à nossa
alma ao ouvirmos Sócrates dizer mais ou menos o seguinte: “Acaso durante toda a
minha vida não aspirei a alcançar, por meio da Filosofia, o que o homem pode alcançar
para libertar-se do mundo dos sentidos? E agora que minha alma está para desprender-
se de todo o mundo sensório, não deveria ela penetrar alegremente em seu elemento?
Não deveria eu penetrar alegremente no que sempre aspirei internamente enquanto
buscava como filósofo?”
Quem for capaz de captar toda a atmosfera desse diálogo de Sócrates no Fédon, de
Platão, sentir-se-á transportado a um sentimento semelhante aos que emanam dos
ensinamentos sublimes do Buda, quando este fala aos corações de seus discípulos. E no
que diz respeito às diferenças, aos opostos dessas duas personalidades, podemos dizer
que em determinado ponto elas se elevam de modo a se estabelecer uma unidade
também entre o que é distinto. Atentando ao Buda, perceberemos o seguinte: de modo
geral, suas alocuções provocam, todas elas, a mesma sensação que se tem frente ao

35
discurso de Sócrates sobre a imortalidade da alma. Refiro-me, nesse caso, ao estado, à
tensão da alma. Por outro lado, raramente encontramos no Buda (só em certas ocasiões)
o que geralmente permeia as outras alocuções de Sócrates, sempre visando a conduzir o
homem à sua própria razão. Sentimos formalmente algo como um diálogo socrático
deslocado quando o Buda tenta explicar ao aluno Sona que não é conveniente
permanecer somente na existência sensorial, apegar-se a ela, ou apenas mortificar-se,
vivendo à maneira dos antigos que assim procediam; pelo contrário, é aconselhável
tomar o caminho do meio. Face a face com seu discípulo Sona, o Buda diz algo como:
“Ora, Sona, será que conseguirás tocar bem o alaúde se as cordas estiverem demasiado
frouxas? Será que conseguirás tocá-lo com as cordas por demais tensas?” E Sona
responde: “Não, eu não conseguirei tocar bem o alaúde se as cordas estiverem
demasiado frouxas ou excessivamente tensas.” “Quando, então”, diz o Buda,
“conseguirás tocar bem o alaúde?” “Quando as cordas não estiverem nem frouxas nem
tensas demais", responde Sona. E o Buda diz: “A mesma coisa sucede com relação ao
homem. Ele não alcançará todos os conhecimentos caso se entregue demais à vida dos
sentidos; e tampouco os alcançará caso apenas se retire da vida exterior em
mortificação. O caminho do meio, que se deve tomar em relação à tensão da corda,
também deve ser escolhido no que diz respeito à disposição anímica do homem.” [V.
Vinaya-pitaka I, 181 da edição H. Oldenberg.]
Pode-se dizer que esse diálogo do Buda com seu discípulo Sona poderia igualmente
ter sido conduzido por Sócrates, pois este apela à inteligência de seus discípulos
exatamente desse modo. O que acabo de relatar é um ‘diálogo socrático’ que o Buda
conduziu com seu aluno Sona. Um diálogo desse tipo, porém, é tão raro na vida do Buda
como aquele diálogo ‘budista’ de Sócrates com seus discípulos a respeito da
imortalidade da alma, pouco antes de sua morte.
É preciso frisar sempre que só caracterizando as coisas dessa maneira poderemos
alcançar a verdade. Fica mais fácil caracterizá-la dizendo que a evolução da
humanidade é impulsionada por grandes líderes, e no fundo estes proclamam sempre a
mesma coisa, só que de formas diferentes. Esses líderes, em suas diversas linguagens,
são apenas diferentes manifestações da unidade. Certamente isso é verdadeiro, só que
expresso do modo mais trivial possível. O que importa é nos esforçarmos para conhecer
bem os assuntos, é procurarmos a unidade e a diferenciação, caracterizando as coisas
segundo sua diversidade e buscando a unidade superior a partir dela. É necessário fazer
essa observação metódica pela simples razão de que ela corresponde à vida em geral no
tocante aos assuntos espirituais. É fácil dizer que todas as religiões compõem uma
unidade, para depois caracterizarmos essa unidade dizendo que todos os diversos
fundadores de religiões apresentaram apenas diferentes formulações da unidade. Por
mais belas que sejam as palavras, tal caracterização é infinitamente trivial. O resultado
seria o mesmo que caracterizar a priori duas figuras como o Buda e Sócrates apenas se-
gundo uma unidade abstrata, sem procurar a diferenciação polar entre elas. Porém,
assim que as reduzirmos às suas formas mentais, logo reconheceremos de quê se trata.
Pimenta e sal, açúcar e páprica são ingredientes colocados na mesa para temperar
comida; todos eles formam um conjunto único, ou seja, ‘temperos para comida’.
Contudo, só por formarem uma unidade ninguém vai querer equipará-los uns aos outros,
pondo, por exemplo, pimenta ou sal no café em lugar do açúcar. O que não se pode
aceitar na vida comum tampouco se deve aceitar no âmbito espiritual. Não se deve
aceitar a afirmação de que Krishna ou Zaratustra, Orfeu ou Hermes sejam, no fundo,
apenas formas diversas da unidade. Para uma caracterização séria e sincera, tal
enunciado não teria mais valor do que se disséssemos que pimenta e sal, açúcar e
páprica são, na verdade, formas diversas da entidade única chamada ‘temperos para

36
comida’. É importante entendermos realmente tais detalhes metódicos, e não
simplesmente aceitarmos o mais cômodo em lugar do verdadeiro.
As duas figuras, o Buda e Sócrates, nos aparecem como duas formas diferentes e
diametralmente opostas da corrente evolutiva humana. E ao reuni-las numa unidade
superior, tal como demonstramos, podemos acrescentar uma terceira, que também
representa uma grande individualidade em cujo redor se reúnem alunos e discípulos: o
Cristo Jesus. O Evangelho de Marcos nos relata sobre o relacionamento do mestre com
seus doze discípulos mais próximos com a mesma clareza enfatizada por nós em outro
contexto, o do Buda e Sócrates — com toda a clareza possível. E qual é a expressão mais
nítida, mais concisa, mais concentrada desse relacionamento? É a que nos diz o
seguinte:
O Cristo defronta-se — vários trechos do Evangelho aludem a isso — com a multidão
que quer ouvi-lo. Ele fala a essa multidão em imagens ou parábolas, como diz o
Evangelho. Em quadros grandiosos e singelos, o Evangelho de Marcos nos relata como
ele apresenta à multidão certos fatos profundamente significativos da História Universal
e da evolução da humanidade. Então é dito: estando a sós com seus discípulos mais
íntimos, ele lhes interpretava tais imagens. O Evangelho de Marcos nos dá um exemplo
especial de como ele fala à multidão em imagens e como estas são interpretadas para
os discípulos mais íntimos.
E ele lhes ensinava muito em parábolas, e lhes dizia em sua doutrina:
Eis que saiu um semeador a semear. Enquanto semeava, uma parte caiu ao longo
do caminho; vieram as aves do céu e comeram-na. Outra parte caiu sobre o solo
pedregoso, onde havia pouca terra; germinou depressa, porque não havia
profundidade na terra, mas quando saiu o sol foi queimada pelo calor, e como não
tinha raiz, secou. Outra parte caiu entre os espinhos, que cresceram e a
sufocaram; e não deu frutos. Outra caiu numa terra boa; deu frutos que vingaram
e cresceram, e um grão produziu trinta, outro sessenta, outro cem. E disse: quem
tem ouvidos para ouvir, que ouça!
E quando se encontrava a sós com os Doze, estes o interrogaram a respeito das
parábolas. E ele lhes disse: O semeador semeia a palavra. Uns encontram-se no
meio do caminho onde a palavra é semeada; assim que a ouvem, aparece Satanás
e lhes tira essa palavra. Outros recebem a semente em terreno pedregoso; são
aqueles que, ao ouvir a palavra, logo a aceitam com alegria; mas não têm raízes,
são filhos do momento. Assim que surge a tribulação ou a perseguição por causa
dessa palavra, eles sucumbem imediatamente.
Outros ainda recebem a semente entre espinhos; ouvem a palavra, mas as
solicitudes do mundo, a sedução da riqueza e os outros afetos desordenados a
afogam e ela não dá frutos.
E outros, finalmente, recebem a semente na terra boa; ouvem a palavra,
recebem-na e esta se torna frutífera: uma dá trinta, outra sessenta, outra cem.
[Marcos 4, 2-9.]
Eis um exemplo completo do modo como o Cristo Jesus ensinava. Temos
informações de como o Buda ensinava, e de como ensinava Sócrates. Do Buda podemos
dizer, em nossa linguagem ocidental, que ele levava ao reino dos céus o que os homens
experimentavam na Terra. De Sócrates dizia-se que todo o seu pensamento poderia ser
caracterizado pelo fato de trazer a Filosofia do Céu para a Terra, pois apelava
diretamente à inteligência terrena. Podemos, portanto, imaginar claramente a relação
dessas duas individualidades com seus discípulos.
E como o Cristo Jesus se relacionava com seus discípulos? Era diferente seu
relacionamento com a multidão: ele a ensinava por meio de parábolas que, todavia,
eram interpretadas somente para seus discípulos mais chegados. A estes ele explicava o

37
que eles eram capazes de entender, o que podiam imediatamente captar pelo
entendimento humano. Precisamos, portanto, usar termos mais complexos se quisermos
caracterizar o modo como o Cristo ensinava. Os ensinamentos do Buda caracterizavam-
se por um traço comum a todos; por isso havia apenas um tipo entre os discípulos
diretos do Buda. Os discípulos de Sócrates também eram de um tipo uniforme: todo o
mundo podia ser discípulo de Sócrates; pois na verdade ele desejava somente extrair o
que já existia anteriormente na alma do homem. Só há um tipo de relacionamento de
Sócrates com seus discípulos. O do Cristo Jesus apresenta-se de duas maneiras: um com
os discípulos mais íntimos e outro com a multidão. Por que isso?
Para descobrirmos as implicações aí envolvidas, devemos procurar compreender o
significado de todo o momento da transição dos tempos, representado ante nossa alma
pelo Mistério do Gólgota. Findam os tempos em que a antiga clarividência constituía
uma faculdade do homem em geral. Quando mais retrocedermos na evolução do
homem, tanto mais veremos que a antiga clarividência constituía um patrimônio geral
do homem, isto é, mais os homens eram capazes de visualizar os mundos espirituais. De
que modo isso acontecia? Sua vidência era uma visão dos mistérios universais em
imagens, em imaginações inconscientes ou subconscientes — uma clarividência onírica
em imagens oníricas, e não em conceitos racionais do tipo que o homem moderno evoca
em si quando quer alcançar o conhecimento. Antigamente não existia o que temos, hoje
em dia, no campo da ciência ou simplesmente no pensamento popular: a inteligência e
o julgamento racionais. O homem se encontrava diante do mundo exterior, limitando-se
simplesmente a observá-lo; ele não o desmembrava em conceitos, não possuía lógica e
não raciocinava em combinações a respeito das coisas. O homem moderno encontra
dificuldade em imaginar tais coisas, pois hoje em dia tudo passa pelo raciocínio. Porém
o ser humano antigo não raciocinava assim. Ele passava diante das coisas, percebia e
fixava suas imagens. E quando vislumbrava seu mundo onírico imaginativo nos intervalos
entre a vigília e o sono, ele conseguia compreender o que via — via imagens.
Para termos uma idéia mais concreta a esse respeito, imaginemos que há muitos e
muitos milênios uma pessoa estivesse observando o mundo ao seu redor. Teria
constatado a existência de um mestre explicando algo a seus alunos, e se aproximaria
para escutar-lhe as palavras. E, no meio de tantos alunos, ele poderia ter observado um
deles recebendo as palavras fervorosamente; um outro as recebia mas as abandonava
em seguida; e um terceiro estava tão absorvido por seu egoísmo que nem as escutava.
Porém uma coisa essa pessoa de antigamente não poderia ter feito: comparar
mentalmente os três alunos; mas no estado entre a vigília e o sono tudo retornava a ela
como uma imagem em sua alma. Ela poderia, por exemplo, ver algo como um semeador
a semear — fato que teria realmente visto como imagem clarividente —, uma parte das
sementes caindo em terra boa e dando bons frutos, a outra parte caindo numa terra de
má qualidade e a terceira em terra pedregosa. A segunda daria menos frutos, e a
terceira nenhum. O homem antigo não teria comentado o fato da mesma forma como o
homem moderno, dizendo que um aluno assimila as palavras, um outro não e assim por
diante. Porém nos estágios transitórios entre a vigília e o sono ele via a imagem e via a
explicação. Jamais teria falado a esse respeito de modo diferente. Se alguém lhe
tivesse pedido uma explicação sobre o relacionamento entre o mestre e seus alunos tal
como ele o via, teria descrito essa sua imagem onírica clarividente. Era essa a realidade
para ele, e a explicação sobre o assunto também. É desse modo que ele teria falado.
Ora, a multidão presente diante do Cristo Jesus possuía apenas os últimos vestígios
dessa clarividência; porém as almas ainda estavam em condições de escutar quando se
falava, em imagens, sobre o progresso do ser e da evolução da humanidade. O Cristo
falava à multidão como a alguém que tivesse preservado a última herança da antiga

38
clarividência e a houvesse trazido para a vida comum das almas.
E quem eram os discípulos íntimos? Dissemos anteriormente que os Doze se
compunham dos sete filhos da mãe macabéia e dos cinco filhos de Matatias. Eles
atravessaram toda a fase do antigo povo hebraico até chegar ao estado de forte ênfase
do eu imortal. Eles eram realmente os primeiros dentre os que o Cristo poderia ter
escolhido para apelar ao que vivia em cada uma das almas; de modo que deveriam
tornar-se um novo ponto de partida para o desenvolvimento humano. Falando à
multidão, ele pressupunha que esta o compreendesse com base no que lhe restava como
herança da antiga clarividência; falando aos discípulos, ele pressupunha que estes
fossem os primeiros capazes de compreender as coisas da maneira como falamos hoje
aos homens sobre os mundos superiores. Era, pois, necessário que por todo o tempo de
transição Jesus falasse de duas maneiras distintas: uma quando falava à multidão, outra
quando se dirigia a seus discípulos mais íntimos. Ele os coloca no meio da multidão
como os Doze escolhidos por ele. A compreensão racional do que se refere aos mundos
superiores e aos mistérios da evolução da humanidade, e que no futuro se tornaria um
bem comum dos homens, deveria ser tarefa do círculo mais restrito de discípulos do
Cristo. Tomando como exemplo tudo o que ele disse a seus discípulos na exegese da
parábola, podemos dizer que ele usava também palavras socráticas e, da mesma forma,
extraía das almas o que havia dito — com a diferença de que Sócrates se restringia mais
às condições terrestres, à lógica comum, enquanto o Cristo, dirigindo-se a seus
discípulos íntimos, discursava sobre assuntos espirituais, porém à maneira socrática.
Quando o Buda falava a seus discípulos, fazia-o de modo a explicar-lhes os assuntos
espirituais tal como eram recebidos por sua iluminação, mediante a permanência da
alma humana nos mundos superiores. Quando o Cristo falava à multidão, expressava o
que a alma do homem comum experimentara antigamente nos mundos superiores.
Poderíamos dizer que ele falava à multidão como se fosse um Buda popular; a seus
discípulos ele falava como um Sócrates superior, espiritualizado. Sócrates extraía da
alma de seus discípulos a inteligência individual, terrena; o Cristo extraía da alma de
seus discípulos a inteligência celestial. O Buda passava a seus discípulos a iluminação
celestial; o Cristo transferia à multidão, por meio de suas parábolas, a iluminação
terrena.
Peço-lhes comparar estas três imagens: em terras longínquas, no país do Ganges, o
Buda com seus discípulos — o oposto de Sócrates; lá na Grécia, Sócrates com seus
discípulos — o oposto do Buda. E então surge aquela curiosa síntese, a curiosa ligação
quatro a cinco séculos mais tarde. Assim os Senhores têm um dos exemplos mais
importantes do processo que regula a evolução humana.
A evolução da humanidade progride passo a passo. Muita coisa que nos foi relatada
através dos anos, nas primeiras fases do conhecimento da Ciência Espiritual, poderia
parecer a muita gente uma espécie de teoria, ou uma simples doutrina. Muitos terão
pensado, por exemplo, que seria uma mera teoria o enunciado de que a alma do homem
deve ser concebida como um conjunto das almas da sensação, do intelecto e da
consciência. É certo que há pessoas muito rápidas no julgar. Verificamos que há pessoas
muito mais rápidas em seu julgamento do que as que logo aceitam o primeiro esboço de
uma evolução posterior como algo acabado. Sem dúvida, existem ainda juízos
completamente diferentes. É bom para nós, antropósofos, dirigir também nossa atenção
à maneira como não se deve pensar.
Às vezes nos deparamos com exemplos grosseiros de como não se deveria pensar,
os quais, todavia, muita gente acredita serem a forma certa de pensamento. Hoje de
manhã alguém me deu um belo exemplo de uma maneira estranha de pensar. Menciono-
o aqui apenas como um daqueles exemplos que deveríamos gravar bem em nossas

39
almas, pois nós, como antropósofos, deveríamos trabalhar em função de um
aperfeiçoamento contínuo da alma, e não somente contentar-nos com o conhecimento
dos vícios do mundo. Por isso, não é por motivos pessoais e, sim, por uma razão
espiritual que uso como exemplo o que me foi dito hoje de manhã.
Contaram-me que numa certa região da Europa vive um cavalheiro que há muito
tempo mandou publicar as coisas mais inexatas sobre os ensinamentos da ‘Teosofia’ de
Steiner, ou sobre o modo como este se relaciona com o movimento espiritual em geral.
Acontece que hoje chamaram a atenção de uma pessoa, perguntando-lhe por que seu
amigo, o mesmo cavalheiro que mencionei, mandou publicar uma coisa dessas. Em
resposta, a pessoa em questão disse que seu amigo “está começando agora a estudar de
maneira intensiva as obras do Dr. Steiner”. Contudo, já faz alguns anos que ele publicou
sua crítica, e agora é dada a desculpa de que atualmente ele está começando a estudar
essas coisas! Esse é um modo de pensar inconcebível dentro do nosso movimento. Ao
escrever a respeito, os historiadores futuros levantarão a seguinte questão: teria alguma
vez ocorrido a alguém, anos após seu pronunciamento sobre algo, querer desculpar-se
dizendo que somente agora está começando a familiarizar-se com o assunto?
Essas coisas fazem parte da educação antroposófica, e só conseguiremos progredir
quando realmente se tornar um consenso que tais fatos devem ser totalmente
impossíveis em nosso movimento. Não raciocinar dessa maneira faz parte de uma
integridade interior. Ora, não se consegue avançar um passo sequer no conhecimento da
verdade quando ainda se é capaz de emitir tais juízos. É dever do antropósofo observar
essas coisas, e não passar insensivelmente por cima delas com a desculpa de uma
‘benevolência geral’. No mais elevado sentido da palavra, é uma insensibilidade para
com a pessoa perdoar-lhe tais procedimentos, pois assim ela será carmicamente
condenada à perda de sua essência e à insignificância após a morte. Chamar sua
atenção para tais coisas alivia sua existência após a morte. É esse o significado mais
profundo da questão.
Assim sendo, também aqui deve ser atribuída a devida importância ao fato de, logo
de início, ser proposta a seguinte verdade: a alma do homem possui três componentes —
a alma da sensação, a alma do intelecto e a alma da consciência. 6 Já no decorrer dos
anos se evidenciou que tal assunto se reveste de um significado bem mais profundo do
que o de uma simples divisão sistemática da alma. Sabemos que na era pós-atlântica se
desenvolveram gradativamente as mais diversas culturas: a proto-índica, a protopersa, a
egipto-caldaica, a greco-latina e agora a nossa. E foi demonstrado que a essência da
cultura egipto-babilônio-caldaica consistiu no fato de a alma da sensação haver passado
por uma evolução peculiar. Na época greco-latina houve igualmente uma cultura
particular da alma do intelecto, e em nossa época uma cultura da alma da consciência.
É dessa maneira que esses três períodos nos são apresentados. Assim, eles atuam na
educação e na evolução da própria alma humana. Esses três membros da alma não são
mero produto da fantasia, e sim algo vivo que, nas épocas subseqüentes, também se
desenvolve subseqüentemente.
Tudo deve ter sempre um nexo. O anterior deve ser sempre estendido ao posterior
e, do mesmo modo, no anterior deve ser antecipado o posterior. Em que período
cultural vivem o Buda e Sócrates? Eles vivem no centro da manifestação mais expressiva
da alma do intelecto — na quarta época pós-atlântica. Ambos têm nesse contexto sua
missão, sua tarefa.
O Buda tem a tarefa de preservar e conduzir a cultura da alma da sensação da

6
A esse respeito v., do Autor, Teosofia, cap. ‘A natureza do homem’ (5â ed. São Paulo: Antroposófica,
1996.) (N.E.)

40
época precedente — a terceira — para a quarta. O que o Buda proclamou e seus
discípulos acolheram em seus corações foi a transmissão da luz do terceiro período
cultural pós-atlântico — da alma da sensação — para o quarto período, a época da alma
do intelecto. Desse modo, a época da alma do intelecto foi aquecida, vivificada e
iluminada pelos ensinamentos do Buda, pelo que fora produzido na época da alma da
sensação, ainda permeada pela clarividência. O Buda é o grande conservador da cultura
da alma da sensação na cultura da alma do intelecto.
Que missão cabe a Sócrates, surgido um pouco mais tarde?
Sócrates situa-se igualmente na época da alma do intelecto. Ele apela à
individualidade do ser humano, o que só emergirá totalmente em nossa época cultural,
a quinta época. Sua missão é fazer penetrar, de forma ainda abstrata, a alma da
consciência na época da alma do intelecto.
O Buda preserva o precedente. Por isso, o que ele proclama se mostra qual uma
luz aquecedora, brilhante; Sócrates antecipa o que em seu tempo ainda era porvir, o
que constitui a característica da época da alma da consciência. O que ele proclama
parece sóbrio, cerebral, árido.
Assim sendo, na quarta época cultural se intercalam a terceira, a quarta e a
quinta; a terceira é conservada pelo Buda, a quinta é antecipada por Sócrates. Coube
ao Ocidente e ao Oriente acolher esses dois períodos culturais — o Oriente, acolhendo a
magnitude do passado; o Ocidente, empenhando-se em antecipar numa época anterior o
que deveria emergir na posterior.
Uma linha reta nos leva dos tempos primordiais da evolução da humanidade,
quando o Buda sempre aparecia como Bodhisatva, até a época em que o Bodhisatva se
elevou até chegar a Buda. Trata-se de uma grande e contínua evolução, tendo como
final o Buda; um final verdadeiro pelo fato de então o Buda passar por sua última
encarnação terrestre, não descendo mais à Terra. Foi uma época magnífica a que
terminou naquele tempo — época que trouxe das eras primordiais o que fora a cultura
da alma da sensação da terceira época cultural pós-atlântica, fazendo-a brilhar
novamente. Lendo os discursos do Buda desse ponto de vista, poderemos transportar-
nos a esse estado de espírito, e certamente o advento da época da alma do intelecto
terá para nós um valor totalmente diverso. Quem ler os discursos do Buda com essa
disposição poderá dizer que tudo neles fala diretamente ao coração humano. Por trás
disso, porém, encontra-se algo que não pertence ao coração, e sim a um mundo
superior. Daí aquele movimento ritmado das repetições dos discursos, tão antipáticas ao
homem intelectual comum mas que podemos compreender justamente ao passar do
elemento físico ao etérico, que é o primeiro elemento supra-sensível logo depois do
sensível. Quem compreender que por detrás do corpo físico há muitos processos
atuantes no corpo etérico, compreenderá também por que os discursos do Buda
repetem sempre muitos detalhes. Não se deve subtrair o peculiar da atmosfera dos
discursos excluindo-lhes as repetições. Alguns abstracionistas o fizeram, acreditando
criar algo de bom ao conservar apenas o conteúdo e descartando essas repetições. O
importante, porém, é que se preserve tudo tal como foi transmitido originalmente pelo
Buda.
Observando agora Sócrates, mas por enquanto deixando de lado todo o rico
material que as descobertas da Ciência Natural e humana trouxeram à luz desde então,
podemos dizer — considerando o modo como Sócrates abordava as coisas corriqueiras —
que as pessoas que hoje em dia estudam a Ciência Natural encontram em toda essa
matéria o método socrático. É que na verdade as pessoas o procuram e querem
aprendê-lo. É uma linha grandiosa essa que começa com Sócrates, continua até nossa
época e ganhará uma perfeição cada vez maior.

41
Temos, portanto, uma corrente da evolução da humanidade que chega até o Buda,
onde encontra seu término; e temos uma outra corrente que começa em Sócrates e
conduz a um futuro ainda distante. Sócrates e o Buda situam-se lado a lado qual dois
núcleos de cometas, se me permitem essa imagem: no caso do Buda, a cauda luminosa
do cometa envolvendo o núcleo e refulgindo em direção a indefinidas perspectivas do
passado; no caso de Sócrates, a cauda luminosa do cometa envolvendo igualmente o
núcleo e luzindo para longe, para bem longe, para indefinidas distâncias futuras. Dois
cometas que se afastam em direções diametralmente opostas e cujos núcleos reluzem
simultaneamente — eis a imagem que eu gostaria de empregar para ilustrar como
Sócrates e o Buda se situam lado a lado.
Passa-se meio milênio e ocorre algo como uma união entre as duas correntes, por
intermédio do Cristo Jesus. Já descrevemos esse evento, destacando alguns fatos que
mereceriam uma atenção maior. Amanhã, continuaremos nessa caracterização a fim de
encontrar uma resposta à pergunta: em que consiste a verdadeira missão do Cristo
Jesus, quanto à alma do homem?

5 De Krishna ao Cristo
19 de setembro de 1912

Ontem procuramos observar de certo ponto de vista a situação histórico-universal


da época do Mistério do Gólgota. Procuramos fazê-lo considerando a vida de dois líderes
importantes da humanidade, o Buda e Sócrates, que precederam aquele fato em alguns
séculos. Pudemos notar que o Buda representa o significativo término de uma corrente
evolutiva. Lá está esse Buda no quinto e sexto séculos antes do Mistério do Gólgota,
proclamando o que desde então ficou conhecido como a Revelação de Benares, a qual se
tornou uma doutrina de profundo significado. Nela, o Buda resume e renova o que
afluíra às almas dos homens desde os tempos remotos do passado, proclamando-o da
forma como haveria de ser proclamado meio milênio antes do Mistério do Gólgota aos
povos e raças para os quais a doutrina era mais apropriada justamente dessa forma. A
razão pela qual o Buda pode ser considerado a conclusão de uma corrente universal
torna-se mais evidente se atentarmos a seu grande antecessor que, de certo modo, já
cai na penumbra da evolução da humanidade: Krishna, o grande mestre indiano que nos
aparece, num sentido totalmente diferente, como o ponto final de revelações
milenares.
Podemos situar Krishna alguns séculos antes do Buda; mas não é isso o que importa
agora. O principal é o seguinte: quanto mais nos deixarmos impressionar pelo que
caracteriza Krishna e o Buda, tanto mais nos convenceremos de que, sob certo aspecto,
a pregação do Buda se manifesta em Krishna sob uma luz ainda mais brilhante,
chegando a seu término no Buda. Desenvolveremos esse assunto logo adiante.
De fato, no nome ‘Krishna’ concentra-se algo que ilumina a evolução espiritual da
humanidade através de muitos e muitos milênios. E se nos aprofundarmos em tudo o
que poderia significar a revelação, a anunciação de Krishna, nossa visão se elevará a
sublimes alturas da revelação espiritual humana, diante das quais teremos a seguinte
sensação: não pode mais haver, de maneira alguma, um progresso ou elevação no que
se refere a tudo o que essas revelações refletem ou contêm. O que ressoa da revelação
de Krishna é algo supremo. Naturalmente, reunimos na pessoa de Krishna muitas
revelações encontradas em outros que o antecederam; mas tudo o que, no decorrer de

42
milênios e séculos antes dele, gradativamente inspirara aqueles destinados a ser seus
precursores, foi renovado e resumido em Krishna, levado a um termo e revelado a seu
povo. No decorrer da evolução da humanidade mais recente, talvez exista uma única
coisa comparável, de certo modo, às palavras de Krishna sobre os mundos divino e
espiritual, sobre a relação desses mundos com o ser humano e o curso dos
acontecimentos mundiais — enfim, comparável à espiritualidade à qual nos devemos
elevar se quisermos penetrar no sentido mais profundo de sua doutrina.
Pode-se dizer que, de certa maneira, a revelação de Krishna é uma doutrina
oculta. Por que uma doutrina oculta? Simplesmente porque poucas pessoas alcançam a
aptidão interior para galgar as alturas espirituais necessárias à compreensão dessas
coisas. Não é preciso isolar ou reter por meios exteriores as coisas reveladas por
Krishna, a fim de mantê-las ocultas; elas só permanecem assim por um único motivo:
somente poucas pessoas conseguem elevar-se à altura suficiente para sua compreensão.
Por mais que sejam divulgadas entre as pessoas e passadas de mão em mão, essas
revelações, não obstante, permanecem ocultas. Isso porque o meio para tirá-las desse
estado consiste não em distribuí-las entre as pessoas, mas em elevar as almas para que
os homens possam sintonizar-se com elas. Essas coisas pairam numa certa altura do
desenvolvimento espiritual, exprimindo-se numa forma que representa o ponto
culminante desse desenvolvimento. Quem acolhe as palavras oriundas de tais revelações
não deve pensar que já as conheça, mesmo sendo um erudito do século XX. É
perfeitamente compreensível que em muitos círculos se negue a existência de doutrinas
ocultas, pois assim as pessoas podem acreditar que, por possuírem o conteúdo das
palavras, possuem tudo. Porém a qualidade da doutrina oculta reside no fato de as
pessoas não compreenderem o que possuem.
Existe ainda algo, dizia eu, comparável a isso. O que se pode ligar ao nome de
Krishna é comparável a algo sintonizado com três nomes de épocas posteriores e
relativamente conhecidos; só que aí aparece de modo bem diferente, mais conceituai e
filosófico. Refiro-me a tudo o que, na época moderna, está ligado a estes três nomes:
Fichte, Schelling e Hegel. Com relação ao que seja doutrina oculta, até certo ponto
podemos comparar as doutrinas dessas três pessoas com outras ‘doutrinas ocultas’ da
humanidade. É que, embora finalmente seja possível possuir essas três doutrinas,
ninguém poderá negar que elas permaneceram como genuínas doutrinas ocultas no mais
amplo sentido da palavra, pois poucas pessoas se dispõem a tomar posição quanto às
idéias expostas por eles. Por uma certa cortesia filosófica, diria eu, alguns círculos
filosóficos tornaram a falar em Hegel hoje em dia, e se alguém afirma o que acabo de
dizer recebe como resposta que ainda há pessoas se ocupando com Hegel. Se
verificarmos, porém, o que essa gente produz e com que contribui para a compreensão
de Hegel, com maior razão teremos de convencer-nos de que para eles Hegel continua
sendo uma verdadeira doutrina oculta. O fato de nas obras de Fichte, Schelling e Hegel
aparecer, de forma abstrata e conceitual, o que o Oriente nos irradia através dos
ensinamentos de Krishna, não nos facilita a identificação de sua semelhança; para isso
seria necessária uma constituição bem peculiar da alma humana. A esse respeito
gostaríamos de exprimir-nos com toda a clareza.
Uma pessoa que hoje em dia possua não uma formação média, mas uma superior,
ao tomar nas mãos uma obra filosófica de Fichte ou Hegel e começar a lê-la pensará que
se trata apenas de uma continuação no desenvolvimento conceituai. Provavelmente a
maioria das pessoas concordará que não se sente à vontade ao abrir, por exemplo, a
‘Enciclopédia das Ciências Filosóficas’ de Hegel, que começa falando sobre o ‘ser’,
depois sobre o ‘não ser’, o ‘'vir-a-ser’, o ‘existir’, etc. Pode-se ouvir uma opinião como
a seguinte: “Ora, alguém elucubrou algo na mais suprema abstração conceituai; pode

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ser muito bonito, porém não satisfaz meu coração, minha alma, meu calor humano.”
Conheço muita gente que abandonou a mencionada obra de Hegel após ter lido três ou
quatro páginas. Há, todavia, um detalhe que eles não querem confessar: talvez resida
neles próprios a culpa por não se entusiasmarem por essa obra, por não suportarem
lutas interiores que conduzem alguém do inferno ao céu. Muita gente tem receio de
confessar isso — pois existe uma possibilidade de se experimentarem lutas vitais
internas por causa dos ‘conceitos abstratos’ desses três filósofos, não sentindo apenas o
calor vital, mas toda a ascensão desde o extremo frio até o extremo calor vitais.
Podemos sentir como essas coisas foram escritas diretamente com sangue humano, e
não apenas com conceitos abstratos. A herança que ficou de Krishna pode ser
comparada a essa fase evolutiva mais recente da ascensão humana às alturas espi-
rituais; existe, no entanto, uma diferença significativa entre elas. O que nos é revelado
na obra de Fichte, Schelling e Hegel, os mais amadurecidos pensadores do cristianismo,
também nos é apresentado em Krishna na forma apropriada para a era pré-cristã. Em
que consiste, afinal, a revelação de Krishna? Trata-se de algo que jamais chegou a
repetir-se, devendo ser aceito em sua superioridade porque não poderá ser
sobrepujado. Quem puder compreender essas coisas terá uma noção, uma idéia da força
da luz espiritual que brilha em nossa direção quando age em nós a atmosfera cultural da
qual surgiu Krishna. Basta contemplarmos essas coisas em seu verdadeiro sentido.
Assimilando as palavras — para dar apenas alguns exemplos extraídos do Bhagavad Gita
— pronunciadas por Krishna para revelar sua própria natureza, poderemos experimentar
certos conhecimentos, sentimentos e sensações que descreveremos mais adiante. Assim
diz Krishna [no décimo canto]:
Sou o espírito do devir, seu princípio, seu meio e seu fim. Dentre os seres, eu sou
o mais nobre de tudo o que jamais veio a ser. Dentre os seres espirituais sou
Vishnu, sou o Sol entre os astros, a Lua entre as luzes, sou o fogo entre os
elementos, o Meru sublime entre os picos, o grande mar do mundo entre as
águas, Ganga entre os rios, Asvattha entre o conjunto das árvores. Sou, no
verdadeiro sentido da palavra, o soberano dos homens e de todos os seres que
vivem; dentre as serpentes, sou aquela que é eterna e que é o próprio
fundamento da existência.
Vejamos mais uma manifestação da mesma cultura encontrada nos Vedas:
Os Devas reúnem-se em volta do trono do Onipotente e, em devoção, perguntam
quem ele é. E ele responde [o Onipotente, o Deus universal, no sentido proto-
índico]: “Se existisse outro além de mim, eu me descreveria por ele. Eu já era
desde a eternidade, e serei por toda a eternidade. Sou a primeira causa de tudo,
a causa de tudo o que existe no Oeste, Leste, Norte e Sul; sou a causa de tudo o
que existe nas alturas, lá em cima, e nas profundezas, lá embaixo. Sou tudo, sou
mais velho do que tudo o que é. Sou o Soberano dos soberanos. Sou a própria
Verdade, a própria Revelação, sou a causa da revelação. Sou o conhecimento, sou
a devoção e sou o direito. Eu sou onipotente.”
E quando, no âmbito dessa cultura, se pergunta — assim é descrito nesse antigo
documento — a causa de tudo, a resposta é:
A causa do mundo é o fogo, é o Sol e é a Lua também; assim também o é este
Brahma puro, e esta água, e esta mais sublime das criaturas. Todos os momentos,
todas as semanas, meses, séculos, milênios e milhões de anos provêm dele,
nasceram de sua personalidade radiante que ninguém é capaz de compreender,
nem em cima nem embaixo, nem na periferia e nem no centro onde nos
encontramos.
Tais palavras ressoam até nós desde os tempos primordiais. Entreguemo-nos a elas.

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Que sentimentos evocam em nós quando as contemplamos imparcialmente? Nelas são
expressas certas coisas importantes. Vimos que Krishna diz algo a seu respeito; vimos
também que algo foi dito a respeito do deus universal e da causa universal. A partir do
nível de conhecimentos como os aqui expressos foram ditas coisas jamais reveladas de
modo mais grandioso, mais significativo. E sabemos que elas jamais poderiam ser ditas
de modo mais grandioso e significativo. Isto significa que foi inserido algo na evolução
da humanidade, algo que deveria permanecer em sua forma original para ser acolhido
assim, algo que chegou a um termo. Onde quer que posteriormente se raciocinasse
sobre essas coisas e se acreditasse necessária uma modificação para exprimi-lo em
conceitos mais claros, isso jamais foi conseguido; jamais alguém foi capaz de dizê-lo de
uma forma melhor. Seria francamente uma ousadia alguém pretender fazê-lo.
Vejamos primeiramente o trecho do Bhagavad Gita, em que Krishna como que
caracteriza sua própria essência. O que é que ele caracteriza? O modo como ele fala é
bastante curioso. Ele diz ser o espírito do que se tornou existente, Vishnu entre os
espíritos do céu, o Sol entre os astros, a Lua entre as luzes, o fogo entre os elementos e
assim por diante. Se quisermos parafraseá-lo numa única fórmula, poderíamos dizer que
Krishna se autodenomina a essência presente em tudo, sendo, portanto, a essência que
em toda parte representa o que há de mais puro, mais divino. Conforme enunciado
naquele trecho, onde quer que tentemos ver por trás das coisas e procuremos descobrir
sua natureza, nos depararemos com a essência de Krishna. Tomemos um certo número
de plantas da mesma espécie e procuremos sua essência, que não é visível mas se revela
nas diversas formas vegetais visíveis. O que existe por trás delas como sua essência? É
Krishna! Porém não devemos imaginar esse ser como apenas idêntico a uma planta, e
sim como o mais sublime, mais puro na forma; de modo que em parte alguma temos
apenas a própria essência, e sim essa essência na forma mais pura, nobre e sublime.
Portanto, do que fala Krishna, afinal? De nada mais senão do que o ser humano
pode reconhecer como sua própria essência ao aprofundar-se em si mesmo; mas não da
essência que ele representa na vida comum, e sim do que está por trás da manifestação
comum do homem e de sua parte anímica. Ele fala da natureza humana que está em
nós, pois a verdadeira natureza humana é una com o Universo. A cognição não é, pois,
algo que se comporta egoisticamente em Krishna; trata-se do que, em Krishna, aponta
para o mais sublime no homem, podendo ser visto como idêntico e comum ao que vive
como essência em todas as coisas.
Do mesmo modo como hoje em dia falamos de alguma coisa que temos em mente,
Krishna fala sobre o que tinha em mente para sua cultura. Ao perscrutarmos nossa
própria natureza, de início percebemos o eu tal como se encontra descrito no livro O
conhecimento dos mundos superiores. O eu comum distingue-se do Eu Superior, supra-
sensível, que não aparece na existência sensorial mas existe de forma a não estar
apenas dentro de nós, mas simultaneamente na essência de todas as coisas. Se falamos,
portanto, de nosso Eu Superior, ou seja, da entidade superior que habita o ser humano,
não se trata daquele do qual o homem normalmente diz “eu sou”, apesar de possuir o
mesmo som em nossa linguagem. Na boca de Krishna este não teria emitido o mesmo
som; ele se refere à entidade anímica do homem no sentido da acepção daquela época,
tal como hoje falamos de um eu.
Como foi possível que a manifestação de Krishna soasse tão semelhante ao que
hoje só conseguimos exprimir como conhecimento supremo? A razão disso é que a
cultura da qual surgiu Krishna foi precedida, nos milênios anteriores, pela cultura
clarividente da humanidade, onde as pessoas estavam acostumadas a elevar-se à visão
clarividente ao enfocar a essência das coisas. Podemos compreender uma linguagem
como a do Bhagavad Gita considerando-a como marco final da antiga cosmovisão

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clarividente. Quando o ser humano dos tempos antigos se transportava para o estado
intermediário entre o sono e a vigília — um estado corriqueiro entre os homens daquela
época —, ele penetrava de tal modo nas coisas que não se estabelecia uma barreira
entre as coisas e as pessoas, como se dá em nossa visão sensorial: ele pas sava a sentir-
se como parte de todos os seres, formando com eles uma só unidade. Ele se sentia unido
à parte melhor das coisas, e sua melhor parte encontrava-se em todas as coisas. E se as
pessoas não partirem de um sentir abstrato como o do homem moderno, e sim da
maneira como sentia o homem antigo, tal como acabamos de descrever, então
compreenderão palavras como as de Krishna, que nos ressoam do Bhagavad Gita.
Poderão compreendê-las se formularem a seguinte pergunta: como o antigo ser humano
clarividente via a si mesmo? A resposta é que o estado natural dos homens dos tempos
antigos era análogo ao que o homem moderno consegue invocar para si mediante o
aprendizado da Ciência Espiritual, por cujo intermédio ele liberta seu corpo etérico,
sentindo-se assim integrado a tudo o que constitui a essência das coisas; entretanto, o
processo antigo não era idêntico a esse aprendizado. Nesses estados que vinham como
que espontaneamente, os homens se sentiam dentro das próprias coisas. E quando as
revelações, as visões eram expressas em belas e magníficas palavras, então se
manifestavam como, por exemplo, as revelações de Krishna.
Foi por isso que também se pôde atribuir a Krishna as seguintes palavras dirigidas a
seus contemporâneos: “Eu gostaria de proclamar o que os melhores dentre nós viram
quando se encontravam nos estados supra-sensíveis, e como vislumbraram sua relação
com o mundo. Porque o futuro não encontrará mais esses seres humanos, e vós não
sereis mais como eram os patriarcas. Meu desejo é exprimir em palavras o que os
patriarcas viram, para que isso seja preservado, pois não existe mais em estado natural
na humanidade.” Formular em palavras adequadas àquela época o que havia sido
transmitido à humanidade durante séculos, eis o intuito das revelações de Krishna, para
que também os tempos posteriores, não podendo vê-lo mais, tivessem isso como algo
revelado.
E é também desse modo que podemos entender as outras palavras. Imaginemos
que na época das revelações de Krishna um aluno tivesse perguntado a um sábio mestre:
“Ora, mestre, o que existe por trás dessas coisas que meus olhos estão vendo agora?”
Provavelmente o mestre teria respondido: “Por trás dessas coisas que somente teus
olhos físicos vêem encontra-se a espiritualidade, o elemento supra-sensível.” Mas nos
tempos antigos os homens ainda viam esse elemento supra-sensível naturalmente. E o
primeiro mundo supra-sensível adjacente ao nosso mundo sensível é o mundo etérico,
ao qual sua visão ainda tinha acesso. Nele está a causa de todas as coisas sensíveis. Os
homens daquela época eram capazes de ver o que constituía essa causa. Hoje posso
apenas exprimir em palavras o que antes se via: “E fogo, é o Sol” — porém não do modo
como agora se apresenta o Sol, pois para a antiga clarividência o que nossos olhos vêem
agora era justamente o mais invisível; a bola solar branca, incandescente, era escura,
mas para todos os lados se estendiam seus efeitos, as irradiações da aura solar, que se
espalhavam em imagens multicoloridas, concentrando-se depois. Porém tudo isso
acontecia de um modo tal que o que penetrava nas coisas era ao mesmo tempo luz
criadora — era o Sol e também a Lua, igualmente vista de modo diverso —, pois dentro
de todo esse conjunto estava Brahma em seu estado puro.
O que é Brahma em seu estado puro? Inspirando e expirando o ar, o homem
materialista imagina estar inspirando só oxigênio. Isso, porém, é um engano. Com cada
porção de ar inspiramos e expiramos o próprio espírito que vive nesse ar que
respiramos, entrando e saindo de nós. Porém, do ponto de vista da antiga clarividência,
isso não se parece com o que o materialista vê, e que constitui apenas um mero

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preconceito de sua parte. Os antigos clarividentes tinham consciência de que o que
estava sendo inspirado era o elemento etérico do Espírito — Brahma, a fonte da vida.
Assim como hoje em dia se acredita que a vida provenha do oxigênio do ar, o homem
antigo sabia que a vida provém de Brahma, e que ele próprio, homem, vive à medida
que o assimila. O Brahma puríssimo é a razão da existência de nossa própria vida.
E quais são os níveis conceituais a que se eleva a antiga sabedoria pura, aquela
sabedoria etérica, luminosa? Hoje em dia, as pessoas acreditam ser capazes de pensar
muito refinadamente. Vendo, porém, o modo como elas confundem tudo ao explicar
algo, perdemos o respeito pelo pensamento moderno, principalmente pelo pensamento
lógico. Relativamente a esse assunto, eu gostaria de incluir aqui uma pequena
digressão, aparentemente abstrata, abreviando-a ao máximo.
Imaginemos deparar-nos com um animal amarelado e dotado de uma juba; então
chamamos esse animal de leão. Aí começamos a perguntar: o que é um leão? E a
resposta será: um animal predador. Continuamos perguntando: o que é um animal
predador? Resposta: um mamífero. E ainda: o que é um mamífero? Resposta: um ser
vivo. E assim prosseguimos, descrevendo uma característica por meio da outra. A
maioria das pessoas considera um sinal de muita lucidez o fato de se continuar a
perguntar dessa maneira, como exemplifiquei aqui no caso do leão, do animal, do
mamífero, etc. Freqüentemente, fazemos o mesmo tipo de pergunta ao tratar os
assuntos espirituais, inclusive os mais sublimes. Nas conferências onde, por exemplo, há
o costume de se entregarem papéis com perguntas no final, muitas vezes encontramos
as mesmas perguntas que continuam infinitamente, como por exemplo: o que é Deus? —
ou: qual é o princípio do Universo? — ou: como será o fim do mundo? Em verdade,
muitas pessoas querem saber o que é Deus, o princípio ou o fim do mundo da mesma
maneira como perguntam o que seria um leão.
Os homens pensam que o que vale para o dia-a-dia também deveria valer para os
assuntos mais sublimes. Não imaginam que, com relação aos assuntos sublimes,
justamente o característico é não se poder mais formular questões dessa maneira. É
que, ao avançar de uma pergunta à outra — do leão à fera, e assim por diante —,
finalmente devemos chegar a algo que não mais será possível descrever, onde não terá
mais sentido perguntar: o que é isso? — pois a finalidade dessa pergunta é receber um
predicado para o sujeito. Num certo ponto, porém, deve haver um ser supremo
compreensível por si mesmo. A pergunta “O que é Deus?” é um absurdo, no sentido
lógico. É possível continuar qualquer seqüência de perguntas até o ponto supremo;
porém a esse ponto supremo não deve ser agregado qualquer predicado, pois logo viria
a resposta: “Deus é...” Então, o que descreve Deus deveria ser maior ainda. Essa seria a
contradição mais curiosa possível.
O fato de essa pergunta ser formulada ainda hoje confirma quão sublime se
revelou Krishna nos tempos antigos, ao dizer: “Os Devas reúnem-se em volta do trono do
Onipotente e, em devoção, perguntam quem ele é. E ele responde: ‘Se existisse outro
além de mim, eu me descreveria por ele.’ “ Porém ele não o faz; não se descreve por
outro. E assim poderíamos dizer que nós, tal como os Devas, também somos levados em
humildade e devoção à presença da cultura primordial divina, admirando-a em sua
grandiosa culminância lógica; e que ela não venceu pelo pensamento, e sim pela antiga
clarividência, ou seja, pelo fato de as pessoas perceberem que depois de terem chegado
às causas cessam as perguntas, já que as causas são distinguidas. Então ficamos em
atitude de admiração diante do que nos chegou desses tempos primordiais, como se os
espíritos que no-lo transmitiram quisessem dizer: “Chegou ao fim o tempo em que os
homens podiam visualizar diretamente o interior dos mundos espirituais. Futuramente
isso não ocorrerá mais. Nós, porém, gostaríamos de registrar o que outrora foi legado à

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clarividência humana e que poderemos alcançar se nos elevarmos às alturas
espirituais.”
Assim, encontramos registradas no Bhagavad Gita, nos Vedas, todas as coisas que
podem ser condensadas em Krishna como que numa finalização, jamais podendo ser
superadas. Embora possam revelar-se a uma nova clarividência, elas jamais poderão ser
sondadas pelos seres humanos por meio das faculdades adquiridas posteriormente. Por
isso, se nos restringimos a todo o campo da cultura humana representada pela cultura
comum, pela cultura exterior acessível aos sentidos, é sempre justificado dizermos o
seguinte: excetuando-se o que porventura possa ser conquistado por uma clarividência
adquirida pelos métodos corriqueiros, a antiga revelação sagrada que atingiu sua
conclusão em Krishna jamais poderá ser alcançada novamente, no âmbito dessa cultura
ordinária. Contudo, mediante sua evolução, sua aprendizagem na Ciência Espiritual, a
alma pode erguer-se novamente e reconquistá-la. O que outrora foi outorgado à
humanidade pelas vias normais — se é que podemos empregar este termo —, como
ocorria então, não poderia mais ser dado para a situação cotidiana, em estados a serem
alcançados naturalmente. Foi por isso que essas verdades decaíram. Se alguns
pensadores como Fichte, Schelling e Hegel conseguiram elevar seu pensamento ao mais
alto grau de pureza possível, podemos reencontrar essas coisas novamente — se bem
que não tão plenas de vida nem com tanto carisma pessoal como em Krishna, mas sob
forma de idéias —, todavia jamais captadas tão naturalmente como o foram pelos
homens na antiga clarividência. E a partir do espírito, que referi tantas vezes,
constatamos que paulatinamente a antiga clarividência se desvanece no decorrer da era
pós-atlântica.
Fazendo uma retrospectiva do primeiro período cultural pós-atlântico e
retrocedendo à era proto-índica, podemos dizer que não existem documentos a
respeito, pois naquele tempo os homens possuíam a capacidade de ver dentro do mundo
espiritual; somente por meio da Crônica do Akasha podemos descobrir o que foi
revelado à humanidade naquele período. Essa foi uma revelação elevada. Pouco a
pouco, esse nível espiritual da humanidade foi decrescendo cada vez mais, e no segundo
período cultural pós-atlântico, o protopersa, as revelações ainda existiam, porém não
de forma tão pura. Menos puras ainda eram elas no terceiro período cultural, o egipto-
caldaico. Se quisermos saber quais suas condições reais, deveremos considerar que não
existem documentos desses primeiros períodos culturais — e não apenas dos povos que
lhes deram seu nome. Falando do período proto-índico, referimo-nos a uma cultura que
não nos deixou qualquer documento escrito. Tampouco temos algo escrito da cultura
protopersa; tudo o que temos são apenas ecos do que nos foi transmitido pela tradição.
Somente a partir da cultura babilônio-caldaica — portanto, do terceiro período cultural
— é que existem documentos. Paralelamente à cultura protopersa, no entanto, houve
um segundo período na cultura hindu; e na época da cultura egipto-caldaico-babilônica
surgiu na índia um terceiro período, durante o qual se iniciaram as primeiras inscrições.
As anotações contidas nos Vedas, por exemplo, e que depois penetraram na vida
exterior, datam somente da última época desse terceiro período cultural. Esses são os
documentos que falam também de Krishna.
Portanto, ao falar de documentos ninguém pode referir-se ao primeiro período
cultural hindu. Ora, tudo o que temos como documentos são apenas anotações feitas no
terceiro período da antiga índia, uma vez que nesse período se extinguiam cada vez
mais os restos da antiga clarividência. É tudo o que podemos reunir em torno da pessoa
de Krishna. Por isso, o que a antiga saga do povo indiano nos relata é algo que pode ser
pesquisado no mundo exterior. Se observarmos as coisas em seus fundamentos, veremos
que sempre coincidem com o que se pode constatar nos documentos concretos. Quando

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findou a terceira era universal e os seres humanos perderam seus dons originais, surgiu
Krishna, para conservar o que ainda poderia ser perdido.
A qual era se refere a tradição, ao dizer que Krishna apareceu na terceira era
universal? Aquela que denominamos era cultural egipto-caldaica. E é exatamente com o
que caracterizamos que coincide tal ensinamento indiano-oriental de Krishna. Quando a
antiga clarividência e todos os tesouros que ela incluía começaram a perder-se para a
humanidade, Krishna surgiu e os revelou, para que pudessem conservar-se para a
posteridade. Portanto, Krishna representa o término de algo grandioso e sublime. Tudo
o que tem sido dito durante todos estes anos em nossos círculos condiz perfeitamente
com o conteúdo dos documentos do Oriente, se soubermos lê-los corretamente. É uma
grande tolice falar, nesse sentido, em ‘elemento ocidental’ e ‘elemento oriental’; o que
importa é falarmos com plena compreensão do que nos foi revelado, e não ensinarmos
no Ocidente ou no Oriente com estas ou aquelas palavras. E quanto mais nos
aprofundarmos no que foi revelado, tanto mais perceberemos que isso condiz com todas
as tradições.
Por isso Krishna se nos afigura como um término. Poucos séculos mais tarde surge o
Buda. Em que sentido poderíamos designar Buda como o outro pólo do término? Como se
coloca o Buda em relação a Krishna?
Recordemos o que acabamos de citar como característica de Krishna. Proclamador
de grandiosas revelações clarividentes dos tempos primordiais, em palavras que a
posteridade pode compreender e sentir nelas o eco da antiga clarividência da
humanidade, assim se nos apresenta Krishna. Sua revelação é, para os homens, algo que
eles podem aceitar e que representa a sabedoria do mundo espiritual, do mundo das
causas dos fatos espirituais, oculto por detrás do mundo sensível. As revelações de
Krishna contêm isso em palavras grandiosas. E se nos aprofundarmos nos Vedas, que
incluem em resumo essa revelação de Krishna, poderemos dizer: esse é o mundo em que
o homem está em casa, o mundo situado por detrás do que os homens vêem, do que
seus ouvidos ouvem, do que as mãos tocam; tu, alma do homem, pertences ao mundo
que Krishna te anuncia.
Que sentimentos existiram na própria alma do homem nos séculos seguintes? Essa
alma podia ver como as maravilhosas revelações antigas falavam da verdadeira pátria
espiritual e celestial da humanidade. Podia olhar à sua volta, vendo com os olhos,
ouvindo com os ouvidos, apalpando as coisas para senti-las, refletindo a seu respeito
com um intelecto que não penetrava mais no espiritual revelado por Krishna. E a alma
podia dizer a si mesma: “Eis a doutrina sagrada dos tempos antigos, que tem como
função transmitir o conhecimento da pátria espiritual situada à nossa volta, à volta
daquele único mundo que podemos conhecer agora. Nós não vivemos mais nessa pátria
espiritual. Fomos expulsos do que Krishna descreve como o mais sublime dos mundos.”
Então surge o Buda. Como fala ele, a respeito do que Krishna havia descrito como
as glórias do mundo, às almas dos homens que só percebem o que seus olhos vêem e
seus ouvidos ouvem? Ele diz: “Ora, é verdade que viveis no mundo dos sentidos. O
impulso que vos impele de encarnação em encarnação vos conduziu até aí. Eu vos falo
do caminho que poderá tirar-vos deste mundo e levar-vos àquele do qual falou Krishna.
Falo-vos do caminho pelo qual sereis libertados do mundo que não é o mundo de
Krishna.” Qual uma nostalgia em relação ao mundo de Krishna — eis como soavam, nos
séculos posteriores, os ensinamentos do Buda. Neste sentido, o Buda se nos apresenta
como o último sucessor de Krishna, o sucessor de Krishna destinado a vir. Se o Buda
tivesse falado sobre o próprio Krishna, de que maneira poderia tê-lo feito? Poderia ter
dito mais ou menos o seguinte: “Eu vim para preconizar-vos novamente aquele que é
maior do que eu e que veio antes de mim. Se dirigirdes vossa mente a Krishna, que é

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maior do que eu, podereis saber o que se alcança ao deixar o mundo onde não vos
encontrais mais como na verdadeira pátria espiritual. Eu vos mostro os caminhos da
libertação do mundo dos sentidos. Conduzo-vos de volta ao mundo de Krishna.” E dessa
forma que o Buda poderia ter falado. Só que ele não usou exatamente essas palavras;
ele as disse de maneira um pouco diferente, como:
No mundo em que viveis há sofrimento, sofrimento, sofrimento. O nascimento é
sofrimento, a velhice é sofrimento, a doença é sofrimento, a morte é sofrimento;
estar junto do que não se ama é sofrimento; cobiçar o que se ama e não conseguir
alcançá-lo é sofrimento.
A ‘Senda das Oito Sabedorias’ é uma doutrina que não ultrapassa o anunciado por
Krishna, pois declara justamente o que Krishna já havia declarado. “Eu vim depois dele,
que é maior do que eu, e quero mostrar-vos o caminho de volta àquele que é maior do
que eu” — eis os sons histórico-universais que do país do Ganges ressoam até nós.
Avancemos agora um pouco para oeste. Evoquemos uma vez mais em nossas almas
a figura do Batista, e recordemos as palavras que o Buda poderia ter dito: “Eu vim
depois dele, depois de Krishna, pois ele é maior do que eu; e vos indicarei o caminho de
volta para ele e para fora do mundo que não contém o mundo divino do qual ele vos
falou. Dirigi vossa mente ao passado!” E agora a figura do Batista. Como falou ele?
Como exprimiu suas concepções e os fatos que lhe foram apresentados no mundo espi-
ritual? Ele também apontou uma outra pessoa; porém não disse, como o Buda poderia
ter dito, “eu vim depois dele”. O que ele disse foi: “Depois de mim virá alguém maior
do que eu.” [Marcos 1, 7.] E isso o que o Batista diz. Ele não diz “aqui no mundo há
sofrimento, e eu vos conduzirei para fora deste mundo”; o que diz é o seguinte:
“Mudai vossa mente. Não olhai mais para trás, mas olhai para a frente! Quando o
maior de todos chegar, estará cumprido o tempo — quando o mundo celestial penetrar
no mundo onde há sofrimento, quando nas almas humanas penetrar, de forma renovada,
o que elas perderam como revelações dos tempos antigos.” [Mateus 3, 2.]
Temos, pois, o Buda como sucessor de Krishna e João Batista como antecessor do
Cristo Jesus. Tudo se inverte. Assim se nos apresentam os seis séculos que se passaram
entre esses dois eventos. Temos novamente os dois cometas com seus núcleos: um
deles, Krishna, com seu núcleo representando tudo o que aponta para o passado, e o
Buda, que também ao passado conduz os seres humanos; e o outro cometa, apontando
para adiante com seu núcleo — o Cristo —, e aquele que se apresenta como seu
antecessor. Considerando-se o Buda como o sucessor de Krishna e João Batista como o
antecessor do Cristo, temos, numa fórmula das mais simples, o que ocorria naquela
época da evolução humana em torno do Mistério do Gólgota. Devemos encarar as coisas
deste ângulo, se quisermos compreendê-las.
Não se trata de algo relacionado com alguma crença religiosa. Esses não são
assuntos que possamos conectar a esta ou aquela religião, pois são simplesmente fatos
da História Universal. E quem puder compreender seu significado mais profundo jamais
os apresentará de outra maneira. Será que desta forma estaremos subtraindo algo de
alguma manifestação da humanidade? É estranho dizerem às vezes que o cristianismo
ocupa, entre nós, uma posição mais elevada do que as outras religiões. Ora, será que
importa essa definição de ‘superior’ ou ‘inferior’? Não seriam essas definições as mais
abstratas que poderíamos usar — ‘mais alto’, ‘mais baixo’, ‘maior’ ou ‘menor’?
Estaremos louvando menos a Krishna do que os que o elevam acima do Cristo? Não nos
interessa se algo é mais elevado ou menos elevado, pois nossa intenção é caracterizar
as coisas como são na realidade. O que importa não é o fato de situarmos o cristianismo
como sendo um tanto mais ou um tanto menos elevado, e sim que ninguém nos diga

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estarmos tratando os assuntos relativos ao cristianismo de modo incorreto. Procurem os
textos relativos a Krishna e verifiquem se em algum lugar se diz algo mais elevado do
que estamos dizendo a seu respeito. O que resta são verbalismos vazios. Porém, a
verdade surge ao atuar aquele senso de verdade que alcança a essência das coisas.
Ao caracterizarmos aqui esse Evangelho tão claro e grandioso, temos tido
oportunidade de analisar toda a posição cósmico-terrena do Cristo. Por isso tivemos de
enfatizar a grandeza de algo que chegou a seu término séculos antes do Mistério do
Gólgota, quando despontou a nova aurora do porvir da humanidade.

6
20 de setembro de 1912

Do atemporal à evolução histórica


Ontem procuramos dar-lhes uma idéia da revelação de Krishna e de sua relação
com o que surgiu posteriormente na evolução da humanidade: a revelação por
intermédio do Cristo. Apontamos especialmente o fato de essa revelação de Krishna ser
considerada o termo de uma longa corrente evolutiva da humanidade, a época
clarividente primitiva. Relembrando, nesse sentido, o que ontem ficamos sabendo sobre
esse término resumido da revelação de Krishna, podemos dizer o seguinte: o que se
obteve no âmbito dessa revelação veio, por isso mesmo, a participar da evolução da
humanidade, porém atingiu um certo desfecho, não podendo tornar-se ainda mais
elevado. Pode-se dizer que certas doutrinas transmitidas outrora devem ser aceitas por
toda a evolução posterior exatamente da forma como foram expressas.
Agora é necessário aprofundar-nos, de um certo ponto de vista, no que há de
peculiar nessa revelação. Poderíamos classificá-la como uma revelação que, no sentido
humano propriamente dito, não conta com o tempo nem com a seqüência temporal.
Tudo o que não conta com o tempo como um fator real já está contido na doutrina de
Krishna. O que se quer dizer com isso?
A cada primavera, vemos as plantas brotar da terra, crescer e amadurecer,
frutificar e produzir sementes; e se essas sementes forem novamente incorporadas à
terra, no próximo ano veremos brotar e amadurecer plantas idênticas, que novamente
produzirão sementes. Tal processo repete-se ano após ano. Contando com lapsos de
tempo abrangidos pelo homem à primeira vista, podemos dizer que se trata de uma
verdadeira repetição. Os lírios, as prímulas, as rosas possuem todos os anos o mesmo
aspecto. O que constitui sua essência repete-se de forma idêntica a cada ano. De certo
modo, podemos encontrar um fenômeno semelhante nos animais. Observando o animal
isolado, a espécie isolada do leão, da hiena, do macaco, perceberemos que de certo
modo existe, desde o início, uma predisposição para o que deverá surgir de cada uma
dessas espécies. É por isso que temos certa razão em não falar de educação no caso dos
animais. Irrefletida-mente, porém, certas pessoas começaram, recentemente, a
empregar toda espécie de conceitos educacionais e pedagógicos também para os
animais. Todavia, isso não pode ser considerado como o principal nem como
característica correta. No fundo, vemos confirmada a repetição na natureza ao
considerarmos pequenos espaços de tempo. Através dos séculos vemos que a primavera,
o verão, o outono e o inverno se repetem regularmente. E somente se nos referíssemos
a lapsos de tempo muito extensos, que normalmente escapam à observação humana,
sentiríamos a necessidade de contar com o conceito de tempo; então perceberíamos

51
como as coisas transcorrem de modo diferente. Poderíamos imaginar também que, por
exemplo, o modo como o sol nasce e se põe poderia alterar-se num futuro longínquo.
Porém essas são considerações que não vêm ao caso senão ao avançarmos para a Ciência
Espiritual propriamente dita. Para o que o homem pode observar à primeira vista — para
a natureza astronômica, por assim dizer —, vale a repetição do idêntico ou semelhante,
tal como acontece especialmente no retorno anual das formas vegetais. Nessa
repetição, o tempo como tal não é relevante. Sua simples existência não o torna, no
fundo, um fator realmente ativo.
Isso será diferente se tomarmos em consideração a vida humana isolada. Como
todos sabem, nós dividimos a vida humana em períodos subseqüentes que se repetem.
Distinguimos um período desde o nascimento até o final da dentição, ou seja, até o
sétimo ano de vida aproximadamente; um segundo período do sétimo ao décimo quarto
ano — até a puberdade —; um outro do décimo quarto ao vigésimo primeiro, e assim por
diante. Em suma, distinguimos períodos de sete anos na vida humana; podemos já dizer
que nesses períodos certas coisas se repetem. Porém um outro fator, além dessas
simples repetições, torna-se muito mais óbvio: é a transformação progressiva, o próprio
progresso que aí ocorre — pois no segundo setênio a natureza humana é completamente
diferente do que no primeiro, assim como no terceiro. Não podemos dizer que, tal como
a planta se repete na planta, o homem do primeiro setênio se repetiria no segundo, etc.
Na vida humana, vemos o tempo desempenhar um papel real em seu progresso; aí ele
significa algo.
Ao vermos como o que tem significado para o indivíduo é aplicável a toda a espécie
humana, poderíamos dizer que, no decurso da evolução sucessiva de toda a
humanidade, nos é evidenciada tanto uma como outra coisa. Basta determo-nos um
pouco na chamada era pós-atlântica. Como primeiro período cultural pós-atlântico
distinguimos o proto-índico, como segundo o proto-persa, como terceiro o egipto-
caldaico, como quarto o greco-latino e como quinto o período atual, sendo que mais
dois se seguirão ao nosso até o advento de mais uma grande catástrofe. Esse progresso
da evolução mostra freqüentemente similitudes nos períodos consecutivos que, de certo
modo, podem ser comparados com a repetição do idêntico, tal como observamos, por
exemplo, de ano para ano no reino vegetal. Podemos ver como, analogamente ao
impulso dado às plantas pela terra a cada primavera, os períodos evolutivos ocorrem
porque no início dessas épocas chegam à humanidade certas revelações, e uma espécie
de corrente de vida espiritual lhes dá o impulso necessário. A partir desse primeiro
impulso, vemos edificar-se então a evolução subseqüente, que frutifica e fenece quando
o período chega ao fim, identicamente às plantas que morrem ao se aproximar o
inverno. Paralelamente, porém, nos períodos consecutivos podemos verificar algo
similar ao desenvolvimento do ser humano individual, no qual se pode dizer que o
tempo desempenha um importante papel, evidenciando-se como um elemento real.
Uma segunda época, a proto-persa, as sementes não são plantadas da mesma forma
como na primeira, ou na terceira — a egipto-caldaica —, pois os impulsos são sempre
diferentes, sempre novos e intensificados, da mesma forma como na vida humana, onde
os diversos períodos de sete anos possuem, em sua progressão, várias diferenças entre
si.
No decorrer do tempo, foram surgindo lenta e paulatinamente para a humanidade
as revelações resultantes da soma do conhecimento. Nem todas as correntes étnicas
estavam sempre e simultaneamente receptivas a tudo. Vemos, assim, que a corrente
evolutiva da humanidade que findou com o Mistério do Gólgota carecia, de certo modo,
do sentido do tempo como fator real. No fundo, tal sentido do tempo como fator real
falta a todo o conhecimento oriental. O que o distingue particularmente é o senso de

52
repetição do igual. É por isso que a cognição oriental apreende de modo grandioso tudo
o que se evidencia como repetição do idêntico.
O que entra em consideração, ao atentarmos a essa repetição do idêntico nos
períodos culturais consecutivos? Vejamos o exemplo do crescimento dos vegetais. Como
podemos ver, as plantas brotam da terra na primavera; trata-se de sua criação. Vemos
como essas plantas crescem e amadurecem até atingir um certo clímax, e depois
fenecem; ao fenecer, elas já trazem dentro de si a semente para uma nova planta.
Trata-se, portanto, de um processo tríplice na evolução da planta: o surgimento, o
crescimento e o amadurecimento, depois o murchar e o fenecer; e no murchar temos de
novo o germe para algo idêntico. Aqui não importa muito o tempo, e sim a repetição,
que pode ser melhor compreendida pelo conceito de trindade. As faculdades cognitivas
da sabedoria oriental que precedeu o cristianismo eram especialmente orientadas para
a apreensão do sentido do vir-a-ser repetitivo. E a grandeza da cosmovisão oriental
consiste na tendência unilateral para o acontecimento cíclico repetitivo e, por assim
dizer, intemporal. Com seu término, por toda parte deparamos com as trindades, que
no fundo são a expressão clarividente do fator oculto por detrás do surgir, perecer e
restabelecer-se. Brahma, Shiva, Vishnu — esta trindade constitui, como um conjunto de
potências criadoras, a base de tudo. Na era precedente à revelação de Krishna, essa
trindade podia ser conhecida por meio da clarividência. Seu reflexo encontra-se em
toda parte onde o significado do tempo é a repetição consecutiva do idêntico.
O sentido relativo ao conhecimento numa nova era é que surge a capacidade da
visão histórica, isto é, de incluir o tempo na consideração do que é importante para a
evolução, de compreender o tempo como um fator real. O desenvolvimento de um
senso histórico, da faculdade de discernir a História em sua veracidade foi
especialmente reservado ao conhecimento ocidental. As duas correntes evolutivas, a do
Oriente e a do Ocidente, distinguem-se na medida em que o Oriente encara o mundo
como totalmente alheio à História, enquanto o Ocidente segue a priori um impulso de
considerar o mundo historicamente. O primeiro impulso, o estímulo para essa
contemplação histórica, parte da cosmovisão hebraica antiga.
Observemos agora, lado a lado, os elementos essenciais das cosmovisões orientais.
Aí se fala sempre das eras universais repetitivas. Ouvimos os relatos do que ocorreu no
início e no fim da primeira era universal, depois o que sucedeu no início e no fim da
segunda e no da terceira também. O segredo da evolução universal na época de Krishna
se apresenta da seguinte maneira: quando a antiga cultura da terceira era universal se
tornou árida e seca, tendo entrado em seu período outonal e hibernai, apareceu
Krishna, filho de Vasudeva e Devaki, a fim de reunir o que podia transportar-se como
germe, como uma nova semente para os tempos futuros, ou seja, da terceira para a
quarta era universal. As diferentes eras se nos afiguram como os anos subseqüentes no
crescimento vegetal. O elemento essencial das cosmovisões orientais são os ciclos de
épocas que contêm em si o elemento da repetição.
Comparemos agora essas cosmovisões, em sua estrutura mais profunda e em sua
intemporalidade, com o que se nos depara logo no início do Antigo Testamento. Ah,
existe uma diferença considerável em relação às cosmovisões orientais! Podemos
perceber como aí já se insere uma linha cronológica real e contínua. Começa com o
Gênesis, a Criação, à qual se segue a história da humanidade. Os sete dias da Criação, a
época dos Patriarcas, etc. revelam-nos um progresso contínuo, desde o tempo de Abraão,
passando por Isaac e Jacó — tudo é vir-a-ser, tudo é História. Onde estão as repetições?
Não há uma repetição abstrata, por exemplo, do primeiro dia da Criação no segundo. Os
Patriarcas não se repetem nos Profetas, a época dos Reis não se repete na dos Juizes, e
assim por diante. Segue-se a época do cativeiro. Por todo o texto, somos introduzidos

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no processo em que o tempo desempenha um papel real, tal como na vida humana
individual. Em todo o Antigo Testamento o tempo aparece como fator real, porém
abstraído daquilo que se repete. O progresso se insere como um elemento especial no
texto do Antigo Testamento, que é o primeiro grande exemplo da visão histórica dos
fatos, um legado recebido pelo Ocidente.
Lenta e gradativamente, os homens aprendem o que lhes é revelado no decurso do
tempo. Em certo sentido, é justamente quando surgem novas revelações que sempre
ocorre novamente uma espécie de recaída no período anterior. Eventos grandiosos e
significativos foram revelados no início do movimento teosófico; só que aconteceu
justamente o fato curioso de, desde o início, a vida teosófica quase não ter sido afetada
pela abordagem histórica dos mesmos. Podemos convencer-nos disso lançando um olhar
ao excelente e meritório livro de Sinnet7 intitulado Budismo esotérico. Todos os
capítulos impregnados de História são aceitos sem dificuldades pela mentalidade
ocidental. Porém ao lado disso há um outro elemento que podemos chamar de
‘elemento não-histórico’ — aquele elemento inusitado que trata de ciclos pequenos e
grandes, da seqüência de ‘rondas’ e raças, onde as coisas sempre são apresentadas
como se as repetições fossem o elemento principal; onde à segunda ‘ronda’ se segue a
terceira, uma raça principal se segue a outra raça principal, uma raça inferior se segue
a outra e assim por diante. Sentimo-nos prisioneiros de uma espécie de engrenagem,
onde a ênfase está nas repetições. Isso significou uma recaída num modo de pensar já
superado da humanidade.
No entanto, o modo de pensar que se mostra adequado à cultura ocidental é o
histórico. E qual é a conseqüência desse elemento histórico nessa cultura? É justamente
o conhecimento da convergência única de toda a evolução terrestre. O Oriente via a
evolução tal como o processo anual repetitivo dos vegetais. Assim, em cada período
surgiam os grandes iniciados individuais, que repetiam — pelos menos é o que se
enfatiza preferencialmente: o que eles repetiam — o que já existia antes. De forma
abstrata, enfatiza-se que cada um é apenas a configuração peculiar de um único ser que
continua se desenvolvendo nas épocas subseqüentes. O interesse principal era
apresentar o idêntico, do mesmo modo como no reino vegetal, observando-se de
preferência o que se manifesta como forma, sem distinguir os diferentes anos. Apenas
num caso especial o homem observa uma distinção nos diferentes anos também na vida
vegetal. Ao descrever um lírio ou uma folha de videira, não lhe interessa se a planta
cresceu no ano de 1857 ou 1867, porque os lírios são todos iguais, sendo várias
manifestações idênticas de uma determinada espécie de lírio. Poder-se-ia dizer que só
quando esse ‘elemento apolíneo’' genérico, invariável e repetitivo passa, também no
crescimento vegetal, para o ‘elemento dionisíaco’, é que o homem atribui especial
valor ao fato de cada ‘ano’ transcorrer diferentemente do outro: nas safras da uva.
Nesse caso, ele acha muito importante levar em conta essa distinção; mas de modo
geral não tem interesse em dizer, por exemplo, que esta ou aquela forma de lírio data
do ano de 1890 ou 1895.
Assim sendo, em certo sentido o Oriente não tinha qualquer interesse — embora
não se deva forçar a comparação — em distinguir entre as encarnações do Bodhisatva na
terceira e na segunda ou primeira eras. Tratava-se da encarnação do ‘único’. É essa
ênfase no único, no invariável que constitui a característica não-histórica da
contemplação oriental e, no fundo, de todas as concepções da época pré-cristã, com
exceção da visão histórica do Antigo Testamento. Com o Antigo Testamento se iniciou —
preparando o que se aperfeiçoaria depois, no Novo Testamento — a visão histórica. O

7
Teósofo colaborador de Annie Besant. (N.E.)

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que importa, no caso, é a observação da linha da evolução em si como um todo, não se
devendo considerar apenas o que se repete nos diversos ciclos, mas o que configura o
foco de toda a evolução. Nesse caso, justifica-se dizer que é simplesmente um absurdo
negar a existência de tal foco.
É nesse ponto que os diversos povos da Terra devem entender-se primeiro e
convencer-se de que esse elemento histórico é absolutamente necessário para uma
visão verdadeiramente realista da humanidade. Hoje em dia, ainda é possível escutar
pessoas dizer no Oriente, mesmo diante de um cristianismo sincero e não fanático ou
sectário, que pretenda afirmar-se objetivamente ao lado das outras religiões do
Oriente: “Os Senhores têm apenas um Deus que se encarnou uma vez na Palestina; nós,
porém, temos muitas encarnações de Deus, e portanto estamos à frente.” Do ponto de
vista de um oriental, tal resposta será perfeitamente natural, pois relaciona-se com seu
dom peculiar de enxergar exclusivamente a repetição do único. Para o ocidental, ao
contrário, deve prevalecer o fato de que o todo possui um centro de gravidade. Falar
em várias encarnações do Cristo é tão errôneo quanto dizer: “Bem, é um absurdo uma
balança ter um único ponto de apoio, colocando-se de um lado a carga e de outro os
pesos; apoiemos a balança em dois, três ou quatro pontos!” Isso, porém, é um absurdo.
A balança só pode ter um único ponto de apoio. Para se compreender toda a evolução é
preciso procurar o ponto de apoio único, o centro de gravidade, e não pensar que o
melhor seria encontrarmos várias encarnações do Cristo. A este respeito, as nações, os
povos de toda a Terra terão de entender-se: no decurso da própria História teve de
surgir paulatinamente a mentalidade histórica, a concepção histórica digna do homem,
no sentido mais elevado.
Esse modo de contemplar a evolução humana começou a surgir paulatinamente,
partindo, por assim dizer, dos estados mais primitivos. Encontramos uma primeira
interpretação histórica da evolução no Antigo Testamento, na sempre repetida ênfase
ao fato essencial de o povo hebraico pertencer ao sangue de Abraão, Isaac e Jacó; de
esse sangue correr pelas gerações seguintes, sendo o que daí resulta, no fundo, uma
forma de descendência sangüínea, de reprodução sangüínea. Tal como o ser humano
atesta seu desenvolvimento na seqüência de suas épocas vitais, evidenciando o papel
desempenhado pelo tempo, assim também acontece no povo do Antigo Testamento. E
se nos aprofundarmos ainda mais nos detalhes, poderemos perceber que a sucessão de
gerações do povo do Antigo Testamento é semelhante à vida de um indivíduo humano
enquanto desenvolvimento natural, ou seja, enquanto processo evolutivo em virtude de
sua predisposição física. O Antigo Testamento descreve-nos o que ocorria quando algo
passava de pai para filho e deste para seu filho, e assim por diante. Descreve também
como as confissões de fé surgiam e se conservavam entre os descendentes
consangüíneos. O que acontece de significativo na vida natural de um indivíduo, por
meio do sangue, aplica-se também a todo o corpo do povo do Antigo Testamento. E
assim como na pessoa individual o elemento anímico se evidencia particularmente em
certa fase, desempenhando um papel especial, isso também é constatado — de modo
bem interessante — na evolução histórica do Antigo Testamento.
Se observarmos as crianças, veremos que nelas predomina o natural. As
necessidades do corpo físico prevalecem, a princípio; o anímico ainda está oculto, ainda
não emergiu totalmente. O bem-estar do corpo é o resultado de impressões agradáveis
provenientes de fora. Impressões desagradáveis e penosas do mundo externo
manifestam-se também nas expressões anímicas da criança. O homem cresce e a alma
se sobrepõe gradativamente ao que nele se desenvolveu de modo natural, fato que
acontece numa certa fase da vida. Isso ocorre geralmente aos vinte anos, embora possa
variar de um indivíduo para outro, ao emergir sobretudo o anímico já existente nele.

55
Dores e necessidades físicas passam a um segundo plano, emergindo especialmente a
configuração anímica.
Sobrevém então uma fase em que o homem se sente inclinado a deixar o anímico
em segundo plano. A duração desta fase também varia entre os indivíduos. Pode ser que
um ou outro mantenha esse seu elemento anímico particular por toda sua vida; mas sem
dúvida existe algo mais, se bem que muitas vezes, aos vinte anos, a pessoa aprecie
demonstrar sua própria natureza a ponto de imaginar que o mundo esteja somente à
espera da revelação de seu elemento anímico específico. Isso se torna patente
especialmente em pessoas com uma forte tendência espiritual — por exemplo, alguém
com tendências filosóficas especiais. Freqüentemente a pessoa nessa fase se comporta
como se o mundo só estivesse aguardando sua presença para descobrir o sistema
filosófico correto, uma vez que somente sua essência anímica seria a apropriada. Não há
dúvida de que disso também possa resultar algo correto e benéfico.
Depois vem a época em que a pessoa começa a ver o que os outros têm a dar ao
mundo, transformando-se no porta-voz de terceiros e assimilando o que foi realizado
até então.
O Antigo Testamento representa todo o corpo do antigo povo hebraico, em
analogia ao homem individual. Podemos ver como tudo se desenvolve devido às
peculiaridades raciais desse povo na época de Abraão, Isaac e Jacó, e como tudo
depende justamente dessas peculiaridades sangüíneas e raciais. Podemos dizer que, até
determinado ponto, certas peculiaridades raciais se apresentam como impulsoras no
Antigo Testamento. Em dado momento, o povo desenvolve sua alma num processo
semelhante ao do indivíduo humano que exterioriza sua natureza anímica aos vinte
anos. É então que surge o profeta Elias, manifestando-se como toda a alma peculiar do
antigo povo hebraico. A ele se seguem os outros profetas, dos quais eu lhes disse, há
poucos dias, que são as almas dos mais diversos iniciados dos outros povos, reunidos no
povo do Antigo Testamento. A alma desse povo ouve por intermédio deles o que as
almas dos outros povos têm a dizer. Esse legado de Elias e das almas dos outros povos,
por meio dos profetas encarnados no povo do Antigo Testamento, intercalam-se como
numa grandiosa harmonia ou numa grande sinfonia.
Assim amadurece a corporalidade do antigo povo hebraico. E de certo modo ele
morre, na medida em que acolhe em sua fé e sua crença somente o elemento espiritual,
num processo maravilhosamente relatado na história dos macabeus. Poderíamos dizer
que no relato dos macabeus se revela o povo do Antigo Testamento envelhecido, que
como tal se retira mas demonstra claramente, nos filhos desses macabeus, a consciência
da eternidade da alma humana. A eternidade do indivíduo transparece como cons-
ciência do povo. Quando morre a corporalidade do povo, sua alma parece ressurgir como
uma semente de forma totalmente nova. Onde está essa alma?
Essa alma de Elias, ao penetrar e viver no Batista, é ao mesmo tempo a alma do
povo do Antigo Testamento. E o que se passa com essa alma no momento em que o
Batista é encarcerado e decapitado por Herodes? Já dissemos que essa alma se liberta,
deixa o corpo, mas continua atuando como uma aura em cuja esfera penetra o Cristo
Jesus. Mas onde está a alma de Elias, a alma de João Batista? O Evangelho de Marcos
nos diz claramente que a alma de João Batista, de Elias, torna-se a alma grupai dos
Doze — continua vivendo nos Doze. É de um modo bastante singular, como que
artisticamente desenhado, que o Evangelho de Marcos cita isso ao relatar, antes de falar
sobre a morte de João Batista, como o Cristo Jesus ensina a grande multidão, por um
lado, e seus discípulos isoladamente, por outro. Já falamos a esse respeito. Porém isso
muda quando a alma de Elias se liberta de João Batista e continua vivendo como a alma
grupai dos Doze. Lendo o texto, os Senhores notarão claramente que a partir daí o

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Cristo Jesus é bem mais exigente junto a seus discípulos, no tocante à compreensão de
algo superior. E o estranho é justamente o que ele lhes exige e a reprimenda que lhes
faz depois, por não terem compreendido. Leiam esse livro com atenção!
Já tive oportunidade de apontar-lhes um aspecto da questão: o fato de se falar de
uma multiplicação dos pães por ocasião da visita de Elias à viúva em Sarepta, e
novamente de uma multiplicação dos pães quando a alma de Elias se liberta de João
Batista. Agora, porém, o Cristo exige de seus discípulos que se esforcem para
compreender o sentido dessa multiplicação dos pães. Antes ele não lhes fala dessa
maneira. Porém ao desejar que compreendam o significado do destino de João Batista,
após a decapitação por Herodes, o efeito dos cinco pães sobre os cinco mil — quando se
reúnem as sobras em doze cestos —, e o que acontece com os sete pães e os quatro mil
— quando se recolhem as sobras em sete cestos —, ele lhes diz:
Ainda não notais nem compreendeis nada? Ainda tendes vossa alma obscurecida?
Tendes olhos e não vedes, tendes ouvidos e não ouvis, e não refletis que dividi
cinco pães para cinco mil homens. Quantos cestos recolhestes, cheios de pedaços?
Eles lhe respondem: doze. E quando dividi sete pães em quatro mil, quantos
cestos recolhestes, cheios de pedaços? E eles lhe respondem: sete.
E ele lhes diz: Ainda não compreendeis? [Marcos 8, 17-21.]
Ele os repreende energicamente por não serem capazes de compreender o sentido
dessas revelações. Por quê? Por saber o seguinte: “Agora o espírito de Elias está livre e
vive em vós; e cada vez mais deveis tornar-vos dignos de acolhê-lo em vossas almas,
aptos a compreender, mais do que antes, as verdades superiores.” Quando falava à
multidão, o Cristo Jesus o fazia em parábolas, em imagens, pois as pessoas ainda eram
remanescentes daquelas que viam o supra-sensível nas imaginações, no conhecimento
imaginativo; por isso ele tinha de falar às multidões da mesma forma como os antigos
clarividentes. Para aquelas pessoas oriundas do povo do Antigo Testamento e que se
tornaram seus discípulos, ele podia interpretar as parábolas socraticamente, ou seja,
segundo a razão comum. Para esses ele podia interpretar as parábolas; podia dirigir-se à
nova mentalidade, agora natural para a humanidade após o fim da antiga clarividência.
Porém pelo fato de o espírito de Elias ter-se aproximado dos Doze como alma grupai e
tê-los envolvido como uma aura comum, eles se tornaram, ou pelos menos puderam
tornar-se, clarividentes num sentido mais elevado, conseguindo visualizar — como
conjunto dos Doze e iluminados pelo espírito de Elias-João — o que não lhes era possível
como indivíduos. Era para isso que o Cristo queria educá-los.
Para quê desejava ele educá-los? O que significa realmente esse relato sobre a
multiplicação dos pães — uma vez cinco pães sendo distribuídos entre cinco mil pessoas,
com doze cestos cheios de sobras, e da segunda vez sete pães para quatro mil pessoas,
com sete cestos cheios de sobras? Ora, isso sempre representou um estranho enigma
para os intérpretes da Bíblia. Hoje eles chegaram a um consenso e dizem que na ocasião
as pessoas teriam levado o pão consigo, e quando foram agrupadas em filas tiraram os
pedaços dos bolsos. É isso o que hoje em dia consta como consenso, até mesmo entre os
que pretendem ater-se firmemente ao Evangelho. Sem dúvida, se aceitarmos as coisas
de um modo tão superficial, estas se reduzirão a uma simples ornamentação, a uma
cerimônia. Não se sabe mais por que todo esse episódio é relatado. Por outro lado,
naturalmente, não devemos pensar em magia negra; pois a materialização real de uma
quantidade abundante de pão a partir de cinco ou sete pães seria magia negra. Porém
não se trata disso, nem tampouco de um processo arranjado especialmente para os
filisteus, ou seja, uma encenação em que as pessoas tivessem trazido os pães e os
tivessem desembrulhado na hora. O relato, na verdade, significa algo muito especial. Já

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aludi a isso na interpretação dos outros Evangelhos, e o próprio Evangelho indica com
bastante clareza do que se trata.
E os apóstolos reuniram-se com Jesus e lhe contaram tudo o que haviam feito e
ensinado.
E ele lhes disse: Retirai-vos para um lugar solitário e descansai um pouco. [Marcos
6, 30-31.]
Devemos observar bem esta alocução. O Cristo Jesus envia os discípulos a um lugar
solitário para descansarem um pouco, isto é, para poderem sentir-se transportados a um
estado que a pessoa atinge num local ermo. E o que vêem eles aí, num estado
diferente? Ao serem envolvidos pelo espírito de Elias-João, eles são conduzidos a uma
espécie de nova clarividência. Até então, o Cristo lhes havia interpretado as parábolas;
agora ele os envolve numa nova clarividência. E o que eles vêem? Em imagens
abrangentes, visualizam toda a evolução da humanidade, vêem o futuro e como os seres
humanos do futuro se aproximarão gradativamente do impulso do Cristo. Os discípulos
vêem em espírito o que aqui é relatado como a dupla multiplicação dos pães. Trata-se
de um ato de clarividência que, como tal, se comporta como qualquer outro ato de
clarividência: passa quase despercebido quando não estamos acostumados a ele. E por
isso que os discípulos não o compreendem por tanto tempo.
É principalmente isso o que nos ocupará cada vez mais intensamente no decorrer
destas conferências — por ficar mais patente no Evangelho segundo Marcos —: o fato de
os relatos passarem cada vez mais das experiências dos sentidos exteriores para a
descrição de momentos de clarividência, sendo que só compreenderemos o Evangelho se
o entendermos do ponto de vista da pesquisa espiritual. Podemos constatar, digamos, a
influência do Cristo nas pessoas da época logo após a decapitação [de João Batista].
Inicialmente, com a visão dos sentidos físicos o próprio Cristo aparece como uma
personagem solitária, sem muito campo de ação. Contudo, a visão clarividente
desenvolvida no sentido moderno leva em conta a ação do tempo. O Cristo não se ma-
nifesta apenas entre as pessoas que então vivem na Palestina, mas também entre os
que nascerão nas gerações subseqüentes. Todos se reúnem à sua volta, e o que ele lhes
pode dar também o está dando a milhares e milhares de pessoas. E é desse modo que os
apóstolos, os Doze, o vêem. Eles vêem sua atuação iniciar-se naquela época e perdurar
através dos milênios, lançando o impulso espiritual para todas as perspectivas do futuro
e ao encontro de todos os seres humanos vindouros. E isso o que eles vislumbram. Trata-
se de um processo onde eles estão, em espírito, unidos em medida especial com o
Cristo.
Devemos ter em mente que daí em diante o elemento espiritual começa a permear
todo o relato do Evangelho de Marcos. A peculiaridade disso é a sensação de um
constante crescimento desse Evangelho; esse fato nos ocupará ainda nas próximas
conferências. Agora eu gostaria de chamar-lhes a atenção para um detalhe, para uma
cena que só pode ser compreendida pela forma de pesquisa da Ciência Espiritual. Trata-
se de uma cena que acontece logo depois daquela que acabamos de descrever.
E Jesus e seus discípulos seguiram pelas aldeias de Cesaréia de Filipe. E no
caminho ele interrogou seus discípulos, dizendo-lhes: O que dizem as pessoas de
mim, sobre quem eu seria?
Eles lhe responderam: Alguns afirmam que serias João Batista, outros Elias e
outros ainda que serias um dos profetas.
E ele perguntou-lhes: E vós, quem dizeis que eu sou? E Pedro respondeu-lhe: Tu és
o Cristo.
E ele ordenou-lhes severamente que não dissessem isso a ninguém.
Começou então a dizer-lhes que o Filho do Homem deveria padecer muito, ser

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rejeitado pelos anciãos, pelos príncipes dos sacerdotes e pelos escribas, ser morto
e ressuscitar depois de três dias. Falava claramente sobre essas coisas. Pedro,
chamando-o à parte, começou a repreendê-lo. Mas Jesus, voltando-se e vendo
seus discípulos, repreendeu Pedro dizendo: Afasta-te de mim, Satanás, pois não
pensas nas coisas de Deus, mas nas dos homens. [Marcos 8, 27-33.]
Poderíamos bem dizer: que osso duro de roer para a pesquisa dos Evangelhos! Ora,
o que significa, afinal, todo o conteúdo desse trecho? Se não aplicarmos os métodos da
pesquisa espiritual, tudo permanecerá, de certo modo, incompreensível. O Cristo
interroga os discípulos: “Quem os homens dizem que eu sou?” E eles respondem:
“Alguns dizem que és João Batista.” Mas João Batista fora decapitado pouco antes, e o
Cristo já havia começado a pregar quando João Batista ainda vivia. Poderão as pessoas
dizer tal absurdo, confundindo o Cristo com João Batista enquanto este ainda vive? A
afirmação de que ele seria Elias ou um dos outros profetas ainda faria sentido. Mas
então Pedro diz: "Tu és o Cristo" — ou seja, declara algo sumamente grandioso, algo que
só poderia emanar do que é mais sagrado nele. E poucos momentos depois o Cristo lhe
diria: “Satanás, afasta-te de mim! Tu dizes algo que não é de Deus, mas dos homens.”
Pode alguém acreditar que, depois de Pedro ter pronunciado aquelas grandiosas pala-
vras, o Cristo o insultasse chamando-o de Satanás? Ou seria possível compreender isso
quando o texto diz, inicialmente “Ele ordenou-lhes severamente que não dissessem isso
a ninguém”, o que significa “Não digam a ninguém que Pedro me tomou pelo Cristo 5? E
depois o texto continua: “Começou então a declarar-lhes que o Filho do Homem deveria
padecer muito, ser rejeitado e morto e ressuscitar depois de três dias. Falava
claramente sobre essas coisas.” E depois que Pedro o repreende por causa disso, ele o
chama “Satanás”! E o mais curioso é o seguinte: “Jesus e seus discípulos saíram pelas
aldeias de Cesaréia de Filipe” — e assim por diante; sempre é relatado como eles lhe
falam, e mais uma vez é dito: “Ele começou a ensiná-los” — e assim por diante. Mas
depois se lê: “Jesus, voltando-se e olhando para seus discípulos, repreendeu Pedro.”
Antes se dizia que ele lhes falava e ensinava. Ora, será que fez tudo isso de costas para
eles? — pois o texto diz “...voltando-se e olhando para seus discípulos”. Será que ele
lhes dava as costas, falando para o ar?
Bem se vê que há todo um emaranhado incompreensível nesse único trecho. É de
admirar que tais coisas sejam aceitas sem se buscar um esclarecimento real e
verdadeiro. Procurem em todas as interpretações dos Evangelhos: ou se passa por cima
desses trechos, ou se procura citar coisas das mais curiosas. Houve também disputas e
discussões; mas poucos poderão afirmar que tais discussões fizeram deles pessoas mais
inteligentes.
Procuremos então ater-nos ao que já expus e relembrá-lo em nossas almas. Após
termos indicado que, após a morte de João Batista e a transformação da alma de Elias-
João em alma grupal dos discípulos, acontece o primeiro ‘milagre’ verdadeiro, cujo
significado nos será esclarecido gradualmente, encontramos um trecho totalmente
incompreensível relatando-nos que o Cristo se dirige a seus discípulos perguntando-lhes:
“O que os homens acreditam que esteja acontecendo agora?” Sem dúvida, pode-se
formular a pergunta também desta forma; pois o que realmente importava às pessoas
era conhecer a origem desses efeitos. E os discípulos respondem — usemos um modo de
expressão trivial: “As pessoas pensam que apareceu João Batista ou Elias, ou um dos
outros profetas; e que em conseqüência disso se produzem os efeitos já observados.”
“Mas o que pensais vós sobre a origem dessas coisas?”, pergunta-lhes o Cristo Jesus. E
Pedro diz: “Elas provêm do fato de seres o Cristo.” Com isso Pedro, no sentido do
Evangelho de Marcos, coloca-se a si mesmo, com seu conhecimento, como o ponto
crucial do desenvolvimento da humanidade. O que, na verdade, ele quis dizer com isso?

59
Observemos bem o que ele realmente disse.
Em épocas anteriores, os grandes líderes da humanidade eram os iniciados que
haviam sido conduzidos até o último grau de iniciação nos sagrados mistérios. Eram
homens que haviam chegado até o portal da morte, submergido nos elementos,
permanecido durante três dias fora do corpo físico. Nesses três dias eles haviam passado
pelos mundos supra-sensíveis e depois ressuscitado, tornando-se então os emissários
desses mundos. Os iniciados que haviam passado por esse processo se tornaram sempre
grandes líderes na humanidade. E agora Pedro diz “Tu és o Cristo”, ou seja, “Tu és um
líder que não passou pelos mistérios, vindo do Cosmo e sendo agora um líder da
humanidade”. Ao menos uma vez deveria acontecer historicamente, no plano terrestre,
o que em geral acontecia de modo diferente na iniciação. O que Pedro enunciava com
essas palavras era algo extraordinário. E o que teve de ser dito a Pedro? Foi preciso
dizer-lhe que isso não devia ser divulgado entre os homens, devendo permanecer como
um mistério, segundo as leis mais antigas e sagradas. Não se pode divulgar os mistérios.
Nesse momento, tal fato tinha de ser dito a Pedro.
Acontece, porém, que com o Mistério do Gólgota todo o sentido da evolução
posterior da humanidade consistiu em expor ao plano da História Universal o que
outrora acontecia exclusivamente nas profundezas dos mistérios. Mediante o que
aconteceu no Gólgota, isto é, a permanência do Cristo no túmulo por três dias e sua
ressurreição, expôs-se historicamente ao plano terrestre o que geralmente acontecia
nas profundezas, na reclusão dos mistérios. Em outras palavras, havia chegado o
momento em que algo considerado como lei sagrada — o fato de os mistérios terem de
ser mantidos em segredo — devia ser rompido. Tais leis do sigilo acerca dos mistérios
foram instituídas pelos próprios homens. Agora, porém, os mistérios têm de ser
revelados pelo Mistério do Gólgota. Trata-se da maior decisão da História Universal,
partindo da alma do Cristo, quando ele se propõe o seguinte: o que até então devia ser
sigiloso, de acordo com a lei dos homens, agora deve ser revelado perante todos os
olhos e perante a História Universal.
Imaginemos o Cristo num momento de reflexão histórico-universal: “Eu visualizo
toda a evolução da humanidade. Suas leis me proíbem falar sobre a morte e a
ressurreição e sobre o mistério sagrado da iniciação. Não. Eu fui enviado pelos deuses à
Terra para tornar isso manifesto. Não posso guiar-me pelo que dizem os homens, e sim
pelo que dizem os deuses.” Nesse momento, prepara-se a decisão de tornar os mistérios
manifestos. E o Cristo tem de afastar de sua alma a indecisão que porventura adviesse,
realizando o desejo de ver preservado na evolução o que fora criado pela lei humana.
“Afasta-te de mim, irresolução, e que cresça em mim a decisão de apresentar à hu-
manidade tudo o que até aqui permaneceu oculto nas profundezas dos mistérios!” Para
reforçar essa afirmação e rechaçar o que poderia torná-lo irresoluto, o Cristo diz
“Afasta-te de mim!”, e nesse momento decide executar o que fora o objetivo de seu
Deus ao enviá-lo à Terra.
Temos assim o mais sublime monólogo de toda a História Universal, de toda a
evolução terrestre, o monólogo de Deus sobre a revelação dos mistérios. Não é de
admirar que o monólogo de Deus não seja compreensível de imediato ao intelecto
humano, e que seja necessário sondarmos as profundezas se quisermos ser, apenas
razoavelmente, dignos de compreender esse monólogo, pelo qual o feito de Deus
prossegue um pouco mais. Amanhã continuaremos.

60
21 de setembro de 1912

7
A revelação iniciática do Cristo
Sem dúvida seria bem melhor se, nos comentários ligados à interpretação de um ou
de outro evangelho, pudéssemos abstrair-nos totalmente dos demais; o resultado seria a
mais pura e melhor compreensão da tônica de cada um deles. Todavia, quando não se
lança um ou outro raio de luz de um evangelho para o outro, é natural surgirem
facilmente alguns equívocos. Assim, o que ontem foi declarado o “mais sublime
monólogo da História Universal” poderia ser mal-interpretado se alguém recorresse
apenas superficialmente ao que, por exemplo, comentamos a respeito desse trecho no
Evangelho de Mateus e foi dito também por ocasião das conferências de Berna. Uma
objeção formulada desse ponto de vista seria, num sentido lógico mais profundo, como
se existisse a seguinte declaração: “Aqui neste púlpito esteve, certa vez, um homem
que tinha à sua esquerda um buquê de rosas” — e em outra ocasião se lesse: “Neste
púlpito esteve certa vez um homem que tinha à sua direita um buquê de rosas” —, e
uma pessoa que não tenha estado presente na ocasião dissesse: “Isso não soa correto,
pois ora o ramalhete esteve do lado direito, ora do lado esquerdo”. O importante, no
caso, é saber onde se encontrava o observador, e então as duas afirmações estarão
corretas. É desse modo que devem ser considerados os Evangelhos. Eles não constituem
uma biografia abstrata do Cristo Jesus, e sim a descrição de um mundo rico de fatos
exteriores e ocultos.
Para reforçar esse ponto de vista, tomemos o que ontem denominamos o “mais
sublime monólogo da História Universal”, o monólogo de Deus. Devemos ter em mente
que o que se passou na continuação de todo esse processo ocorreu de modo todo
especial entre o Cristo Jesus e seus discípulos mais chegados. Como informação
adicional a esse tipo de consideração, devemos acrescentar o que foi dito ontem sobre a
atuação do espírito de Elias como uma espécie de alma grupal dos discípulos, depois de
ter sido libertado do corpo físico de João Batista. Os acontecimentos daquele tempo
não se deram de forma a poderem ser relatados de uma maneira exotérica simples, e
sim de uma forma muito mais complexa. Havia uma correlação íntima e profunda entre
a alma do Cristo e a alma dos Doze. O que acontecia na alma do Cristo eram processos
muito significativos para aquela época, processos ricos e múltiplos. No entanto, tudo o
que acontecia na alma do Cristo repetia-se nas almas dos discípulos como uma espécie
de imagem espelhada, refletida, porém dividida em doze partes; de modo que cada um
dos Doze vivenciava uma parte refletida do que sucedia na alma do Cristo, porém cada
um dos Doze de modo um pouco diferente.
O que se apresentava na alma do Cristo como uma grandiosa harmonia ou uma
sinfonia espelhava-se na alma de cada um dos Doze como doze instrumentos musicais
diferentes. Por isso, podemos descrever qualquer ocorrência relativa a um ou a vários
discípulos partindo de dois ângulos distintos. Podemos descrever de que modo se
apresenta na alma do Cristo determinado acontecimento, a exemplo do que
descrevemos ontem como o grande monólogo histórico-universal do Cristo Jesus. Porém,
o mesmo evento ocorre na alma de Pedro como uma imagem reflexa; a mesma vivência
anímica ocorre em Pedro. Mas enquanto neste abrange tudo o que é humano, no Cristo
Jesus representa apenas um doze avós de todo o humanismo, uma décima segunda
parte ou um signo zodiacal de todo o espírito Crístico. Por isso, é necessário apresentar
o processo de maneira diferente com relação ao próprio Cristo Jesus.

61
É assim que devem ser apresentados os fatos no sentido do Evangelho de Marcos;
pois nele são relatados aspectos marcantes, em especial o que se passava na alma de
Jesus. No Evangelho segundo Mateus, pelo contrário, as descrições se relacionam mais
com a alma de Pedro e com as contribuições do Cristo Jesus para a interpretação das
vivências da alma de Pedro. Prestem atenção às palavras especialmente acrescentadas
no Evangelho de Mateus para a narrativa do ponto de vista de Pedro. Ora, por que ali
são acrescentadas as seguintes palavras: “Bem-aventurado és tu, Simão, filho de Jonas,
pois não foi a carne e o sangue que o revelou a ti, mas, sim meu Pai que está nos céus”?
[Mateus 16,17.] Em outras palavras: algo do que a alma do Cristo sentia, sentia-o
também a de Pedro. Porém o fato de a alma de Pedro sentir que seu mestre é o Cristo
deve-se à circunstância de ele ter sido elevado a uma vivência no Eu Superior e, após
ser dominado por ela, ter caído em si logo depois. Contudo, foi-lhe possível penetrar no
conhecimento que, com outra intenção e com outro objetivo, se desenrolava na alma do
Cristo. Devido a essa sua capacidade é que lhe foi conferido o poder das chaves, citado
pelo Evangelho de Mateus e a cujo respeito já falei quando da interpretação desse
evangelho. Em contraposição, no Evangelho de Marcos só ressaltamos enfaticamente as
palavras indicadoras de que o evento, à parte do que ocorria em Pedro, se desenrolou
simultânea e paralelamente ao monólogo de Deus.
É assim que devemos considerar as coisas. Então sentimos também como o Cristo
Jesus procede com os seus, como os conduz de etapa em etapa — como, depois que o
espírito de Elias-João se transfere para eles, ele pode introduzi-los mais do que antes na
compreensão dos segredos espirituais. Só então podemos sentir o significado da cena da
transfiguração ou transformação, que se segue ao monólogo de Deus descrita por nós
ontem, no final. Esse é mais um elemento importante na composição dramática do
Evangelho de Marcos. Para esclarecer essa ‘transfiguração’, devemos apontar alguns
pontos relativos a muitos aspectos necessários à compreensão da narrativa nos
Evangelhos. Comecemos com o seguinte:
No Evangelho de Marcos, bem como nos outros, lemos freqüentemente a
declaração do Cristo dizendo que o Filho do Homem teria de padecer muito, que seria
agredido pelos escribas e sacerdotes, que seria morto e ressuscitaria, porém depois de
três dias. E por toda parte encontramos a indicação, até certo ponto bastante clara, de
que no início os discípulos não conseguem compreender essa referência ao Filho do
Homem que padece, morre e é ressuscitado. É justamente esse trecho que eles têm
dificuldade em compreender [Marcos 9, 31-32]. Qual é a razão desse estranho fato? Por
que os discípulos encontram dificuldade justamente quanto à compreensão do Mistério
do Gólgota propriamente dito? O que é, na verdade, esse Mistério do Gólgota? Já
aludimos a isso. Trata-se nada mais, nada menos do que da emergência da iniciação das
profundezas dos mistérios para o plano da História Universal. É claro que existe uma
diferença bem significativa entre uma iniciação qualquer e o Mistério do Gólgota. A
diferença reside no seguinte:
Os iniciados nos mistérios dos diferentes povos passavam, de uma maneira geral,
pelas mesmas experiências. Eram obrigados a suportar padecimentos e a passar por uma
morte aparente de três dias, durante a qual o espírito permanecia nos mundos
espirituais, fora do corpo, sendo depois reconduzido de volta a ele. Assim esse espírito
se tornava capaz de relembrar tais experiências do mundo espiritual agindo como
mensageiro dos mistérios daquele mundo. Pode-se dizer, portanto, que a iniciação
consiste numa passagem pela morte, se bem que não uma morte separando
definitivamente o espírito do corpo físico, mas apenas durante um certo período. Uma
permanência fora do corpo físico e um retorno a ele, transformando-se a pessoa em
questão num mensageiro dos mistérios divinos, eis o que é a iniciação. A inicia ção se

62
dava após cuidadoso preparo, colocando-se o iniciando em condições de condensar
dentro de si as forças da alma a ponto de conseguir viver naqueles três dias e meio sem
precisar dos instrumentos de seu corpo físico. Após esses três dias e meio ele devia unir-
se novamente a esse corpo físico. Passava por essas experiências elevando-se, por assim
dizer, a um mundo superior, longe dos acontecimentos históricos corriqueiros.
O Mistério do Gólgota, embora semelhante em procedimento externo, foi diferente
em sua essência interior. Os acontecimentos ocorridos durante a permanência do Cristo
no corpo de Jesus de Nazaré levaram esse corpo efetivamente à morte, mas o espírito
do Cristo permaneceu três dias fora desse corpo físico e depois retornou; porém não
retornou a esse mesmo corpo físico, e sim ao corpo etérico, condensado a ponto de os
próprios discípulos poderem percebê-lo, de acordo com o relato dos Evangelhos. Assim,
o Cristo pôde caminhar e tornar-se visível também após o acontecimento do Gólgota.
Com isso a iniciação, outrora conduzida de modo velado e oculto aos olhos físicos
comuns, nas profundezas dos mistérios, foi colocada como um acontecimento histórico
único perante toda a humanidade. E assim ela foi, de certo modo, retirada dos
mistérios, sendo realizada pelo Cristo à vista de todos. Foi esse fato que marcou o
término do mundo antigo e o princípio de uma nova era. De acordo com o que já foi
relatado aqui sobre os profetas, vimos que o espírito do profetismo, com suas
comunicações ao antigo povo hebraico, foi diferente do espírito da iniciação dos outros
povos, cujos dirigentes eram iniciados pelos métodos acima descritos. No que concerne
ao povo hebraico, não se tratava de iniciações iguais às dos outros povos, e sim, como
já vimos, de um aparecimento elementar do espírito nos corpos daqueles que se
revelavam como profetas — algo que se manifestava como gênio da espiritualidade. Para
que isso aconteça, vemos aparecer nos profetas medianos aquelas almas iniciadas em
outros povos em encarnações anteriores, a fim de vivenciar, no que transmitem ao povo
hebraico, como que uma reminiscência do conteúdo recebido em sua própria iniciação.
Havia, assim, uma diferença entre a iluminação da vida espiritual no povo do Antigo
Testamento e a dos outros povos. Nesses últimos isso acontecia por meio do ato de
iniciação, enquanto no povo do Antigo Testamento isso se dava mediante os dons
conferidos às pessoas que atuavam como profetas entre o povo.
Pela atuação de seus profetas, o povo hebraico foi preparado para experimentar
aquela iniciação singular que agora já não era a de um ser humano, mas a de uma
individualidade cósmica — se bem que não seja totalmente correto falar de iniciação
nesse caso. Assim o povo foi preparado para receber o que deveria substituir a antiga
iniciação: olhando corretamente para o Mistério do Gólgota. Essa é também a razão
pela qual os apóstolos, como filhos do povo do Antigo Testamento, não compreendem
imediatamente as palavras que caracterizam a iniciação. O Cristo Jesus fala da iniciação
falando em encaminhar-se para a morte, permanecer três dias no túmulo e depois ser
ressuscitado. Eis a descrição da iniciação. Se ele tivesse descrito a seus discípulos a
iniciação em outras palavras, eles o teriam compreendido. Uma vez que esse modo de
falar não era usual entre o povo do Antigo Testamento, os Doze não o compreenderam
de início. Por isso se justifica apontarmos o assombro dos discípulos e seu
desconhecimento quando o Cristo fala da paixão, da morte e da ressurreição do Filho do
Homem.
O relato histórico apresenta essas coisas inteiramente dentro do espírito dos
acontecimentos. O antigo iniciado, ao experimentar sua iniciação fora do corpo físico,
encontrava-se num mundo superior, e não no mundo dos sentidos comuns. Pode-se dizer
que fora do corpo ele permanecia unido aos fatos de um plano superior. Ao regressar
novamente a seu corpo, o que lhe representavam essas vivências no mundo espiritual?
Elas eram uma recordação. Ao relatá-las, ele se lembrava desse estado fora do corpo

63
físico do mesmo modo como nos lembramos de nossas vivências de ontem ou
anteontem; e podia dar testemunho delas. No essencial, não passava disso o que os
iniciados tinham em suas almas, ou seja, eles traziam os segredos dos mundos
espirituais tal como a alma humana guarda as recordações do passado. Do mesmo modo
como a alma se une ao que guarda como recordação, os iniciados também guardavam
dentro de si os segredos dos mundos espirituais, permanecendo unidos a eles.
Por que isso ocorria? A razão é que até a época do Mistério do Gólgota a alma do
homem na Terra não se encontrava em condições de permitir a entrada dos reinos dos
céus, a penetração dos mundos supra-sensíveis no eu. Esses reinos não chegavam até o
verdadeiro eu, não conseguiam unir-se a ele. Só era capaz de entrar nos mundos supra-
sensíveis quem pudesse enxergar ou vislumbrar além de si mesmo por meio da
clarividência, comum nos tempos antigos, quando as pessoas saíam do eu, por assim
dizer, em sonhos ou pela iniciação. Dentro do eu, porém, não havia qualquer
compreensão ou capacidade de julgamento em relação aos mundos superiores. Assim
ocorria outrora. Antes do Mistério do Gólgota, o ser humano, mesmo empregando todas
as forças próprias do eu, não era capaz de unir-se aos mundos espirituais.
Era este o segredo que se manifestaria aos homens pelo batismo de João — o fato
de haver chegado o tempo em que os reinos dos céus deveriam descer até o eu terreno,
iluminando-se dentro dele. Ora, é bem verdade que através dos tempos sempre se
mencionou que antigamente o homem não era capaz de alcançar os mundos supra-
sensíveis apenas com o que vivenciava em sua alma. Havia uma espécie de desarmonia,
nos tempos antigos, entre a vivência da verdadeira pátria do homem, o mundo
espiritual, e o que ocorria no íntimo humano, se quisermos chamar de eu a antiga
disposição anímica. Esse íntimo humano encontrava-se segregado do mundo espiritual;
unia-se a ele apenas em estados excepcionais. Mas o que acontecia quando toda a
potência e todos os impulsos daquilo que mais tarde viria a ser o ‘eu’ — e que deveria
permanecer no ser humano —, quando toda a potência desse eu ainda não destinado ao
físico humano preenchia o homem mediante, digamos, a iniciação ou a recordação de
uma iniciação anterior numa encarnação posterior, penetrando como energia na
corporalidade humana? O que acontecia é o que apontamos sempre: nas épocas pré-
cristãs, a energia do eu excedente à corporalidade humana não encontrava, por assim
dizer, lugar suficiente no corpo, rompendo os limites do que lhe estava destinado.
Portanto, tais pessoas que traziam dentro de si algo a mais do mundo supra-
sensível, algo que já nos tempos pré-cristãos de certo modo lembrava o que o eu viria a
ser posteriormente, rompiam sua corporalidade com a força desse eu, excessivamente
potente para o tempo pré-cristão. Isso é caracterizado, por exemplo, pelo fato de que
em certas individualidades, possuidoras dessa energia do eu, esse eu só pode
permanecer nelas numa encarnação quando o corpo é lesado ou se torna facilmente
vulnerável num ponto, que então é atingido. Por possuir em si algo mais, nesse ponto o
ser humano se torna mais exposto ao ambiente do que no resto de sua corporalidade.
Basta lembrarmos a vulnerabilidade de Aquiles em seu calcanhar, a vulnerabilidade de
Sigfried, a de Édipo, onde a força do eu rompe o elemento corpóreo. A existência de um
ferimento nos indica que somente um corpo rompido constitui um invólucro adequado
para a grandeza do eu, para a força sobre-humana do eu que o habita.
Se formularmos de uma outra maneira o que realmente se deseja expressar com
isso, talvez possamos senti-lo de um modo bem mais significativo. Suponhamos que na
era pré-cristã uma pessoa fosse permeada — mesmo inconscientemente — por todas as
forças que viriam posteriormente permear o eu, e submergisse com essa, poderíamos
dizer, superforça do eu, essa força sobre-humana em seu corpo físico. Ela teria de
romper seu corpo e vê-lo de uma forma diversa do que se ali estivesse presente um eu

64
— ou um elemento íntimo — mais débil. Para o ser humano dos tempos antigos, que
abrigasse em si toda a potência do eu necessária para ele sair de seu corpo, este
pareceria diferente. Ele o teria visto rompido sob a ação da força do super-eu e coberto
de lesões, uma vez que nos tempos antigos somente um eu — ou um elemento íntimo —
débil permeia tão fracamente o corpo que este pode permanecer intacto.
O que acabo de dizer foi expresso pelos profetas. No respectivo trecho [Zacarias
12, 10] diz-se mais ou menos o seguinte: — Ao observar seu corpo, o ser humano que
concentra em si toda a energia do eu percebe-o perfurado, lesado, cheio de cavidades.
A força superior do eu, que nos tempos antigos ainda não podia habitar o interior
humano, perfurava, permeava e lesava seu corpo. Esse é um impulso que atravessa a
evolução de humanidade porque, devido à influência luciférica e arimânica, na era pré-
cristã o ser humano recebeu uma porção menor de seu eu, ao invés do eu pleno. E
sendo adequado apenas a essa porção menor, e não a toda a força do eu, o corpo se
rompia. No Cristo Jesus, o eu pleno, a entidade mais forte do eu penetrou de uma só
vez; por isso esse físico apresentou-se não apenas com uma única ferida, como foi o
caso de muitas individualidades humanas na era pré-cristã que possuíam um super-eu,
mas com cinco feridas, necessárias por causa do extravasamento da entidade do Cristo,
isto é, do eu pleno do ser humano além da forma adequada da corporalidade. Por causa
desse extravasamento é que foi erguida a cruz que suportou o corpo do Cristo, no plano
físico da História, para mostrar o estado em que se encontraria o corpo humano se, por
um determinado momento, se concentrasse nele a totalidade da essência humana. Uma
grande parte dessa essência já foi perdida pelo homem por causa da influência
luciférica e arimânica.
Do ponto de vista da Ciência Espiritual, a imagem do Gólgota nos apresenta um
profundo mistério. Quem compreende a natureza da humanidade e da condição
humana, assim como a natureza do eu terreno e sua relação com a forma do corpo
humano, sabe que a impregnação desse eu terreno no corpo humano não poder ser
idêntica à impregnação normal num homem comum. Uma pessoa que saia de si mesma e
se observe de fora poderá perguntar: “Como deveria ser a constituição de meu corpo se
nele houvesse penetrado a plenitude do eu?” — e em resposta poderia ver cinco feridas.
É da própria natureza humana e da essência terrena que resulta a figura da cruz com o
Cristo e as duas feridas no Gólgota Essa imagem do Mistério do Gólgota é o resultado do
que nos é possível conhecer a partir da observação da natureza humana. O notável é
que existe — e não apenas pela clarividência, onde é natural ver-se a cruz erguida no
Gólgota e o modo como ocorre a crucificação, contemplando-se a verdade desse
acontecimento histórico — uma possibilidade de até mesmo conduzir a razão humana ao
ponto de, quando muito aguçada, transformar-se em imaginação e fantasia, porém
plenas de verdade, provocando a aparição dessa imagem do Gólgota; isso quando se
entende o que é o Cristo e como este se relaciona com a forma do corpo humano. Foi o
que ocorreu freqüentemente com os mais antigos pintores cristãos, nem sempre
clarividentes, mas que pela força do conhecimento desse mistério foram impelidos à
imagem do Gólgota, para assim pintá-la. Justamente naquele grandioso momento de
transição da evolução da humanidade é que foi proporcionada à ‘alma-eu’ do ser
humano a compreensão da entidade do Cristo, isto é, do eu arquetípico do homem.
A clarividência possibilita a visão do Mistério do Gólgota fora do corpo. De que
modo? Tendo-se chegado a um relacionamento com o Mistério do Gólgota dentro do
corpo, hoje também é possível visualizá-lo nos mundos superiores, e com isso chegar à
comprovação plena desse grandioso momento culminante da evolução humana. Mas
também é possível uma compreensão a seu respeito, e nas palavras que acabo de
pronunciar é dada a possibilidade desse entendimento, caso se medite e pondere

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bastante sobre o que foi dito. Se alguém o considerar de difícil compreensão, isso se
justifica, pois é natural estar entre as coisas mais difíceis aquilo que conduz a alma do
homem à plena compreensão do mais grandioso, do supremo e mais significativo
acontecimento surgido na Terra. De certo modo, os discípulos deviam ser conduzidos a
isso; e, dentre eles, os que se provaram mais aptos para uma nova compreensão da
evolução da humanidade foram Pedro, Tiago e João.
É importante que esse período tão significativo, ocorrido na época do Mistério do
Gólgota, seja analisado dos mais diversos ângulos. Por isso, foi muito proveitosa a
oportunidade que tivemos hoje de manhã de ouvir a narração hegeliana desse momento
[na conferência de Michael Bauer ‘Como Hegel via a grande virada dos tempos?’]. Todas
as contribuições da compreensão humana confluíram para o mais significativo dos
acontecimentos, o qual, após um amadurecimento de séculos, consumou-se naquele
instante do Mistério do Gólgota, preparando e configurando daí em diante a evolução
posterior da humanidade. Isso ocorreu em vários pontos da Terra. Desde que
procedamos corretamente, podemos acompanhar os acontecimentos não apenas na
Palestina, onde se deu o evento do Gólgota propriamente dito, mas também em outros
locais da Terra, embora o mesmo não estivesse ocorrendo ali. O declínio e a nova
ascensão da humanidade, seu reerguimento pelo efeito do Mistério do Gólgota,
difundido por todo o mundo ocidental, tudo isso nós podemos acompanhar. Podemos
acompanhar principalmente o declínio, e o modo de fazê-lo é bastante interessante.
Remontando uma vez mais ao mundo grego, observemos de que forma se passaram
as coisas meio milênio antes do Mistério do Gólgota. No Oriente, onde surgiu Krishna, de
certo modo as pessoas estavam à frente de sua época. Esse passo adiante, porém, era o
declínio da antiga clarividência. Existe algo de peculiar nessa cultura, por exemplo na
índia. Na época imediatamente posterior à era atlântica, adveio o primeiro grande
apogeu cultural pós-atlântico, onde ainda existia, para a alma humana, a mais pura
visão do mundo espiritual. No caso dos Rishis, esta se ligava à maravilhosa capacidade
de descrever o conteúdo visto, para que este pudesse ter efeito nas épocas posteriores,
e mais tarde, finda a antiga clarividência, pudesse ser preservado para a posteridade
em importantes revelações, como as do próprio Krishna. Essa clarividência autêntica
terminou no final da terceira era. Porém as imagens das visões foram versadas em
palavras maravilhosas, preservadas e transmitidas assim através dos escritos. O que
aconteceu mais a oeste — na Grécia, por exemplo — jamais ocorreu na Índia.
Prestando bem atenção ao mundo indiano, podemos dizer que a antiga
clarividência se extingue, mas os videntes, dos quais o mais importante foi Krishna,
formulam em palavras maravilhosas as visões de outrora. Tudo isso passa a existir em
palavras, nos Vedas. E quem se aprofunda nessas palavras experimenta sua ressonância
na alma. Nesse caso, porém, não nasce o que nasceu, por exemplo, em Sócrates ou em
outros filósofos. O que se pode denominar razão ou juízo ocidental não se manifesta nas
almas indianas. O que pretendemos definir no sentido mais eminente, ao referir-nos à
força primordial do eu, não aparece de modo algum na índia. Por isso, logo após a
extinção da antiga clarividência evidencia-se algo diverso: o impulso para a ioga — a
ascensão disciplinada aos mundos que se perderam de modo natural. A ioga torna-se
uma clarividência artificial. Na verdade, a filosofia da ioga toma imediatamente o lugar
da antiga clarividência, sem que haja uma fase intermediária puramente racional, como
por exemplo na filosofia grega. Isto não ocorre no caso da índia, onde tal fase
intermediária não existe. Revendo a filosofia do Vedanta de Viasa, podemos dizer que
ela não é tão elaborada como os ensinamentos das cosmovisões ocidentais, nem tão
permeada de idéias e de razão, tendo sido como que trazida dos mundos superiores e
traduzida em palavras humanas. O peculiar é não ter sido conquistada com conceitos

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humanos, não ter sido excogitada como o elemento socrático ou platônico, e sim vista
por meios clarividentes.
É difícil perceber essas coisas com clareza; existe, porém, uma possibilidade de
identificar essa diferença ainda hoje. Consultem qualquer compêndio de Filosofia ou
qualquer exposição de um sistema filosófico ocidental. De que modo foi obtido, na
maioria dos casos, o que hoje se chama Filosofia? Observando o trabalho de alguém que
se possa considerar um filósofo sério, podemos perceber que os sistemas são elaborados
mediante o emprego do julgamento lógico, do raciocínio lógico. Tudo isso se forma aos
poucos. Os que fazem filosofia desse modo não conseguem compreender o fato de, no
fundo, o que eles formulam de conceito em conceito também poder, em certo sentido,
ser visto em clarividência, manifestar-se à visão clarividente. Por isso é tão difícil fazer-
se entender quando se tem uma visão instantânea de alguns filosofemas que, sendo
normalmente elocubrados de idéia em idéia com ‘suor e lágrimas’, nesse caso não
exigem o percurso de cada um dos caminhos mentais. É assim que são percebidos, pela
via da clarividência, os conceitos da filosofia do Vedanta. Eles não são elaborados com
‘suor e lágrimas’, a exemplo das filosofias européias, e sim visualizados pela
clarividência; são os últimos remanescentes da antiga clarividência, diluídos em
conceitos abstratos, ou as primeiras conquistas, ainda tênues, da ioga no mundo supra-
sensível.
Os homens que habitavam mais a oeste passaram por outras experiências. Aí
deparamos com estranhos e importantes acontecimentos internos da evolução da
humanidade. Consideremos um filósofo notável do século VI da era pré-cristã: Ferécides
de Siros. Um filósofo notável! Um filósofo que não é reconhecido como tal pelos
filósofos modernos. Há livros de Filosofia modernos que dizem isso expressamente. Vou
citar literalmente duas palavras mencionadas ao dizerem que tudo nele não passa de
descrição e simbologia pueris: um deles, que hoje se julga especialmente superior
àquele filósofo antigo, chama-o de “pueril e genial”. Em Siros, pois, meio milênio antes
da era cristã, surgiu um curioso pensador. Verdade é que ele coloca as coisas de um
modo diferente dos outros pensadores, posteriormente chamados filósofos. Ferécides de
Siros diz, por exemplo, o seguinte: tudo o que se vê no mundo tem seus fundamentos
numa trindade constituída por Cronos, Zeus e Cton. De Cronos nascem os elementos
aéreo, ígneo e aquoso. E com tudo o que nasce dessas três potências se conflita uma
espécie de ente serpentino chamado Ofioneus.
Estudando suas descrições, mesmo não sendo dotados de clarividência, mas apenas
com um pouco de fantasia, podemos ter uma noção clara de tudo isso: Cronos,
apresentado não só como o tempo que flui abstratamente, mas como uma entidade
real, visivelmente configurada; e da mesma maneira Zeus, o éter infinito, como a
oniessência vivificada em si mesma; e Cton, o elemento que faz o celestial tornar-se
terreno, condensando no planeta Terra a trama espalhada no espaço para que tenha
uma existência terrestre. Tudo se passa na Terra, mesclando-se a isso uma espécie de
entidade serpentina como elemento hostil. Para acompanhar e compreender o que o
estranho Ferécides descreve, precisamos recorrer à pesquisa espiritual, pois ele é um
dos últimos remanescentes da antiga clarividência. Ele enxerga as causas detrás do
mundo dos sentidos, descrevendo-as por meio de seu dom clarividente, e naturalmente
desagrada aos que trabalham somente com conceitos. Ele vê a interação viva dos deuses
bons e a intervenção das potências adversas, descrevendo-os tal como aparecem ao
clarividente; vê como de Cronos, do tempo real, nascem os elementos.
Portanto, nesse filósofo Ferécides de Siros temos um homem que ainda enxergava
com sua alma o mundo aberto por sua consciência clarividente, descrevendo-o de modo
que possamos acompanhá-lo. Assim, ainda vive ele, no mundo ocidental, no século VI

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antes de Cristo. Tales, Anaximenes, Anaximandro, Heráclito, quase contemporâneos
seus, já se apresentam de modo diferente. Aí realmente se confundem dois mundos.
Mas qual é o aspecto de suas almas? Nelas está extinta, paralisada a antiga
clarividência, restando, quando muito, a nostalgia dos mundos espirituais. O que eles
vivenciam, no lugar onde existiam resquícios da antiga clarividência no sábio de Siros,
onde ele ainda enxergava o mundo elemental das causas? Para eles, esteja se fechara;
eles não o enxergam mais. É como se esse mundo quisesse cerrar-se para eles e, embora
ainda existindo parcialmente, se esquivasse deles, obrigando-os a formar conceitos
abstratos pertencentes ao eu, em lugar da antiga clarividência. É esse o aspecto dessas
almas. Nessas almas ocidentais predomina um estado muito estranho, tendendo para a
razão e o julgamento, qualidades que justamente distinguem o eu. Podemos percebê-lo
em certas almas, como, por exemplo, quando Heráclito descreve, com uma derradeira
tintura de visão clarividente, o fenômeno do fogo vivo como a razão de todas as coisas.
Quando Tales descreve a água — mas não a água físico-sensível, assim como Heráclito
tampouco se refere ao fogo físico-sensível —, existe algo do mundo elemental que eles
ainda conseguem entrever mas que lhes foge, obrigando-os a formular conceitos
abstratos. Vislumbrando o interior dessas almas, podemos compreender como foi
possível chegar até nossa era um eco dessa disposição interior.
Quem dera nossos contemporâneos não passassem tão irrefletidamente por cima
de certas coisas! Na obra de Nietzsche há um trecho capaz de comover-nos
profundamente, mas que passa facilmente despercebido. Encontra-se nos escritos
póstumos intitulados ‘A filosofia na era trágica dos gregos’, onde eles descreve Tales,
Anaximenes, Anaximandro, Heráclito e Empédocles. Logo no início há um trecho — é
preciso acompanhá-lo com o sentimento — em que Nietzsche captou algo do que foi
vivenciado pelas almas desses eminentes e solitários pensadores gregos. Leiam esse
trecho de Nietzsche, onde ele diz o seguinte: qual teria sido a situação das almas dessas
figuras filosóficas heróicas, que passaram pela transição da era da visão viva — da qual
nem Nietzsche teve conhecimento, embora a vislumbrasse —, quando a antiga vitalidade
das almas foi substituída por conceitos abstratos, áridos e prosaicos, como o sóbrio,
abstrato e frio conceito ‘ser’, em lugar da vitalidade característica da antiga
clarividência? E Nietzsche sente bem: é como se nosso sangue se solidificasse ao
passarmos do mundo da vitalidade para o mundo dos conceitos de Tales ou Heráclito;
quando estes usam definições como ‘ser’ e ‘vir-a-ser’, sentimo-nos transportados de um
evolver caloroso para a região gélida dos conceitos.
É preciso sentir-nos transportados à época em que viviam esses homens para
sentirmos sua situação ao aproximar-se o Mistério do Gólgota — colocar-nos em seus
lugares para sentir o vago eco dos tempos antigos enquanto eles tinham de contentar-se
com o juízo abstrato do eu humano, do qual antigamente não necessitavam. O mundo
dos conceitos continuou enriquecendo-se; não obstante, no começo dessa evolução os
filósofos gregos só conseguiam apreender os conceitos mais simples. Como eles se
atormentam com esses conceitos, com esse abstrato ‘ser’! Como se atormentam, por
exemplo, os filósofos da escola eleática com essa abstração! É assim que se preparam as
verdadeiras qualidades abstratas do eu.
Imaginemos agora uma alma situada no Ocidente, preparada para essa missão do
Ocidente, mas trazendo ainda em si fortíssimas ressonâncias da antiga clarividência. Na
índia, essas ressonâncias extinguiram-se há muito tempo; no Ocidente, porém, elas
ainda subsistem. O impulso da alma é penetrar no mundo elemental, mas a consciência
não o consegue. Nessas almas não pode surgir um sentimento como o do Buda. Este
teria dito: “Fomos lançados no mundo dos sofrimentos; portanto, livremo-nos dele.”
Não, as almas do Ocidente desejavam captar algo do que estava diante delas. No que

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ficara para trás elas não conseguiam penetrar; e à sua frente havia apenas os conceitos
frios, gélidos. Imaginemos uma alma como a de Ferécides de Siros; ele é o último capaz
de visualizar o que existe no mundo elemental. Imaginemos, porém, uma das outras
almas. Ela não pode ver como os elementos nascem vivos de Cronos. Não consegue ver a
entidade serpentina Ofioneus provocar a disputa com os deuses superiores, porém em
sua imaginação capta que existe algo agindo para dentro da esfera dos sentidos. Sua
visão não chega até Cronos, porém alcança o que no mundo sensível nasce de Cronos:
fogo, água, ar e terra. Sua alma não percebe que os deuses superiores são combatidos
pelos inferiores, que o deus-serpente Lúcifer se revolta; vê, porém, de que maneira
reinam a desarmonia e a harmonia, a amizade e a inimizade. Percebe o amor e o ódio
como conceitos abstratos, e o fogo, a água, o ar e a terra como elementos abstratos. O
que atualmente ainda penetra nas almas, isso ela vê; mas o que foi visto pelos
contemporâneos de épocas anteriores, isso está encoberto.
Imaginemos uma alma ainda plenamente incluída na vitalidade das épocas
anteriores, porém não sendo capaz de ver dentro do mundo espiritual, mas apenas de
captar seu reflexo exterior — pois, devido à sua missão especial, lhe é ocultado o que
antes tornava os homens felizes; por outro lado, do novo mundo do eu ela nada mais
possui senão alguns conceitos, aos quais tem de prender-se: então teremos diante de
nós a alma de Empédocles, se quisermos captar seu íntimo. Empédocles é quase
contemporâneo do sábio de Siros, tendo vivido cerca de sessenta anos depois dele. Não
obstante, sua alma configura-se de forma totalmente diversa. Ele tinha de atravessar o
rubicão entre a antiga clarividência e a conceituação abstrata do eu. Vemos aí dois
mundos entrechocar-se de súbito, e vemos o eu começar a sentir-se vagamente a
caminho de sua plena realização. Distinguimos as almas dos antigos filósofos gregos,
condenadas a acolher em primeiro lugar o que hoje chamamos de razão e lógica e
esvaziadas das antigas revelações. Nessas almas é que haveria de derramar-se o novo
impulso, o impulso do Gólgota.
Assim era a natureza das almas ao surgir esse impulso. Elas tinham de aspirar a um
novo conteúdo, pois só assim poderiam compreender esse impulso. No pensamento
indiano, quase não existe transição comparável ao que temos nos solitários pensadores
gregos. É por isso que a filosofia indiana, tendo passado diretamente à doutrina da ioga,
não oferece possibilidade de se encontrar uma transição para o Mistério do Gólgota. Já
a filosofia grega estava preparada para aspirar a ele. Vejam como a gnose, em sua
filosofia, anseia pelo Mistério do Gólgota. É no solo grego que surge a filosofia do
Mistério do Gólgota, pois as melhores dentre as almas gregas estão sequiosas por acolhê-
lo.
É preciso ter boa vontade para compreender o que ocorreu durante a evolução da
humanidade; então se poderá captar algo do que, digamos, soa como uma chamada e
um eco na superfície da Terra. Olhando para a Grécia e, mais adiante, para a Sicília,
observando essas almas das quais Empédocles é uma das mais eminentes, escutamos
uma estranha chamada. Como podemos caracterizá-la? Como falam tais almas?
Imaginemos a alma de Empédocles dizendo: “Tenho um conhecimento histórico da
iniciação, e sei que por meio dela os mundos supra-sensíveis foram introduzidos na alma
do homem. Todavia, agora surgiu uma nova era. A iniciação não nasce mais
diretamente; a alma do homem entrou num novo estágio. Necessitamos de um impulso
novo para chegar até o eu. Onde estás, impulso capaz de ocupar o lugar da antiga
iniciação não mais possível de experimentar, propondo ao novo eu o mesmo mistério
que antes continha a antiga clarividência?” E a outra chamada advinda do Gólgota
responde: “Obedecendo aos deuses e não aos homens, pude trazer à luz do dia os
segredos dos mistérios e revelá-los a toda a humanidade, para que diante dela se

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apresente o que outrora se ocultava nas profundezes dos mistérios.”
Uma reivindicação do mundo ocidental no sentido de uma nova solução do enigma
universal — assim se nos apresenta o que, por exemplo, nasceu nas almas gregas do sul
da Europa. E uma resposta, todavia compreensível apenas em direção ao Ocidente,
parece-nos ser o grande monólogo de Deus, sobre o qual já falamos no final da
conferência de ontem e continuaremos a falar amanhã.

8
22 de setembro de 1912

A simbologia oculta do Evangelho


Sabemos que, no Evangelho de Marcos, a assim chamada cena da transfiguração se
segue ao grande monólogo histórico-universal. Já mencionei várias vezes que a cena da
transfiguração representa uma espécie de iniciação superior para os três discípulos
levados ao ‘monte’ onde a cena acontece. Nesse momento eles são introduzidos, com
mais profundidade ainda, nos mistérios que lhes são sucessivamente entregues para a
direção e a liderança posteriores da humanidade. De várias exposições anteriores,
sabemos que essa cena encerra uma série de mistérios. Um detalhe nos Evangelhos e
nos outros escritos ocultos revela tratar-se de algo misterioso a alusão ao ‘monte’. O
monte como tal sempre significa, em se tratando de um assunto oculto, que as pessoas
levadas a seu cume deverão ser introduzidas em certos mistérios da existência. O
Evangelho de Marcos nos faz sentir isso de maneira particularmente marcante por um
certo motivo, que saltará aos olhos de quem o ler atenta e corretamente.
Chamo-lhes a atenção para o terceiro capítulo, do versículo 7 ao 24, ou a rigor só
até o 22; basta lermos este trecho com um pouco de sensibilidade para aí algo nos
chamar a atenção. Freqüentemente salientamos o significado oculto da expressão
‘conduzir ao monte’; no capítulo mencionado, porém, deparamos com um significado
triplo: não é apenas a expressão 'conduzir ao monte' que nos chama a atenção. Ao lermos
atentamente os três parágrafos de Marcos, notamos no versículo 7 o seguinte: “Jesus
retirou-se com seus discípulos para o lado do mar” — e assim por diante. Primeiramente
somos conduzidos a uma cena à beira-mar. Depois lemos, no versículo 13: “Tendo
subido a um monte, chamou a si os que queria.” E, em terceiro lugar, lemos nos
versículos 20 e 21: “Então foi para casa, para onde acorreu tanta gente que eles nem
conseguiam se alimentar. Quando os seus ouviram isto, saíram para detê-lo, pois diziam
estar ele fora do juízo.”
A três lugares somos remetidos: ao mar, ao monte e à casa. Da mesma forma como
a expressão ‘monte’ sempre nos faz lembrar a ocorrência de algo importante no sentido
oculto, assim também o fazem as outras duas alusões. Nos escritos ocultos, a menção a
‘ser conduzido ao mar’ e ‘ser conduzido para casa'’ sempre encerra um significado
oculto. Uma certa circunstância nos faz deduzir ser esse o caso nos Evangelhos.
Lembremos que não se trata somente do Evangelho de Marcos; de modo geral, também
nos outros Evangelhos a expressão ligada ao 'mar' é uma revelação peculiar, uma
manifestação especial. Quando, por exemplo, os discípulos atravessam o mar e lhes
aparece o Cristo, inicialmente eles o consideram um fantasma, mas verificam a seguir
ser ele mesmo, em pessoa, quem aparece à sua frente [Marcos 6, 45-52]. Em outros
trechos dos Evangelhos, também verificamos haver freqüentemente referências a

70
eventos ocorridos à beira-mar ou através do mar. No ‘monte’ ele inicialmente nomeia
os Doze, ou seja, outorga-lhes uma missão mediante um ensinamento oculto. E também
no ‘monte’ que ocorre a transfiguração oculta. ‘Em casa’ é onde seus parentes o
declaram ‘fora do juízo’ — eis o terceiro mistério. Todos os três revestem-se do maior e
mais abrangente significado.
Para compreendermos o que significa neste contexto a expressão ‘à beira-mar’,
devemos recordar algo que repetidamente expliquei. Já relatamos como nosso período
terrestre pós-atlântico foi precedido da chamada era atlântica; nesta o ar ainda se
encontrava impregnado por densas massas nebulosas, de modo que os seres humanos,
vivendo sob condições físicas diferenciadas, tinham as feições e a vida anímica
completamente diversas, por possuírem ainda a antiga clarividência. Isso, porém,
estava condicionado à natureza totalmente distinta do corpo físico, ao fato de este
‘estar abrigado’ nas massas nebulosas. De tudo isso restou como que uma herança
antiga da humanidade. Se na era pós-atlântica alguém era introduzido em situações
ocultas ou se aproximava delas por uma circunstância qualquer, como foi o caso dos
discípulos de Jesus, a pessoa se tornava mais sensível às condições do meio ambiente e
da natureza. Podemos dizer que a moderna natureza robusta do ser humano pós-
atlântico fazem com que não haja muita diferença se a pessoa atravessa o mar, se ela
se encontra às suas margens, se sobe um monte (logo mais veremos o que isso significa)
ou se está em sua casa. O modo como os olhos vêem, como a mente pensa, não
depende tanto do lugar em que a pessoa está. Porém quando se inicia uma visão mais
sutil, quando se ascende às condições espirituais universais, o ente humano comum
revela o quanto é grosseiro.
Quando, na época em que a consciência clarividente se inicia, a pessoa viaja pelo
mar — onde as condições são bem diferentes, mesmo que ele viva na costa marítima —,
essa consciência clarividente fica sintonizada com algo diverso do que sintonizaria em
solo firme. No solo firme é preciso, por assim dizer, um grande esforço para se
provocarem forças clarividentes. O mar as libera mais facilmente, porém apenas as
forças relacionadas com algo bem determinado — não com tudo. Por sua vez, há uma
grande diferença se a consciência clarividente atua na planície ou na montanha, nas
alturas. Nas alturas, a consciência clarividente sensitiva está sintonizada com algo bem
diverso do que na planície. E o resultado dessas diferentes sintonias no mar ou na
montanha é algo realmente bem distinto.
À beira-mar — sem dúvida isso pode ser alcançado também na cidade, porém com
esforços maiores, enquanto aqui nos referimos a resultados espontâneos —, junto à
água, nas massas nebulosas, a consciência clarividente se torna especialmente
sintonizada com as imaginações, com tudo o que é imaginativo, utilizando tudo o que já
alcançou.
Na montanha, no ar rarefeito, na relação modificada entre oxigênio e nitrogênio, a
tendência da clarividência é mais a de vivenciar inspirações e permitir que surjam
forças clarividentes novas. Por isso a expressão ‘subir a um monte’ não tem significado
apenas simbólico — as condições montanhosas favorecem a possibilidade de se
desenvolverem novas forças ocultas. E a expressão ‘andar à beira-mar’ tampouco é
simbólica, tendo na verdade sido escolhida justamente porque entrar em contato com o
mar favorece a visão imaginativa, a utilização das forças ocultas. E o mais difícil para as
forças ocultas é quando a pessoa está em casa, não importando se esteja sozinha ou se
os seus estejam presentes. É relativamente fácil acreditar que uma pessoa vivendo por
muito tempo à beira-mar — sendo propícias as condições — possa ter visões através do
véu da corporalidade, e que uma pessoa vivendo nas montanhas possa chegar a grandes
alturas espirituais; mas a única impressão que se pode ter de uma pessoa que esteja em

71
casa é a de estar ela fora de seu corpo, de estar ‘fora de seu juízo’. Não que ela não
pudesse desenvolver suas forças ocultas, mas a situação não combina bem com o
ambiente, não parece ser tão natural como nos outros dois casos, do mar e da
montanha.
Por isso, o fato de o Evangelho citar exatamente as situações ora descritas reveste-
se de um sentido muito profundo, pois tudo isso foi extraído das condições naturais
ocultas. O Evangelho relata isso de um modo objetivamente oculto. Assim, veremos
sempre o seguinte:
Certas forças já são utilizadas quando energias curativas ou clarividentes se
desenvolvem, quando se fala de ‘estar à beira-mar’ ou se trata de um acontecimento
ocorrido à beira-mar. Por isso o Cristo Jesus aparece aos seus no mar em imaginação,
com a diferença de estar realmente presente em todo o acontecimento, pois tem o dom
de exteriorizar-se. Os discípulos o vêem, embora ele não esteja ali em seu corpo físico.
Como a diferença do local físico não importa numa vivência como essa, ele está ao
mesmo tempo ‘junto deles’ no mar. É por essa razão que se fala do monte quando se
trata do desenvolvimento das forças anímicas dos apóstolos. E é por isso também que se
fala do monte por ocasião da nomeação dos Doze, quando ele, por assim dizer, destina
suas almas a acolher o espírito grupai de Elias. E fala-se novamente do monte quando o
Cristo se mostra em toda a sua imagem histórico-universal e cósmica. Por isso é que a
transfiguração também ocorre no monte.
É justamente desse ponto de vista que devemos encarar a cena da transfiguração.
Os que se mostram capacitados a ser introduzidos nos segredos mais profundos do
Mistério do Gólgota são os três discípulos Pedro, Tiago e João. À visão clarividente que
se abre aos três aparecem transfigurados, ou seja, em sua essência espiritual, de um
lado Elias e de outro Moisés, tendo o próprio Cristo Jesus no meio, agora porém — como
é indicado imaginativamente no Evangelho — na figura pela qual pode ser reconhecido
em sua natureza espiritual. Isso também é detalhadamente indicado no Evangelho de
Marcos:
E ele se transfigurou diante deles.
Suas vestes tornaram-se brancas e resplandecentes, tão alvas quanto nenhum
lavadeiro na Terra poderia torná-las.
E apareceu-lhes Elias com Moisés, e eles conversavam com Jesus. [Marcos 9, 2-4.]
Após o grande monólogo de Deus, uma conversa a três. Que maravilhosa progressão
dramática! Por toda parte os Evangelhos estão repletos de composições artísticas desse
tipo, mostrando sua grandiosidade. Após termos ouvido o monólogo de Deus, ouvimos
agora uma conversa a três. E que conversa! Inicialmente, vemos Elias e Moisés ao lado
do Cristo Jesus. O que querem dizer-nos essas figuras?
A figura de Moisés deve ser bastante conhecida dos Senhores, inclusive por seu
lado oculto, freqüentemente enfocado por nós. Sabemos que a sabedoria histórico-
universal escolheu o intermédio de Moisés para a transição dos tempos antigos para a
época do Mistério do Gólgota. De nossas considerações sobre o Evangelho de Lucas,
sabemos que naquela figura de Jesus citado particularmente pelo Evangelho de Mateus
podemos identificar o Zaratustra reencarnado. Sabemos também que esse Zaratustra
cuidou, exterior e interiormente, do preparo de seu posterior aparecimento. Em várias
ocasiões já indiquei que, por processos ocultos especiais, o corpo etérico de Zaratustra
foi cedido e transferido para Moisés, para que suas forças passassem a atuar nele. A
imagem de Elias e Moisés ao lado do Cristo Jesus nos mostra, em Moisés, as forças que
conduzem das formas primitivas da cultura para o que devia ser transmitido à

72
humanidade pelo Cristo Jesus e pelo Mistério do Gólgota.
Mas também num outro sentido, Moisés é uma figura de transição. Sabemos que
ele não trazia em si apenas o corpo etérico de Zaratustra, mas com este também sua
sabedoria, que podia manifestar-se em sua própria pessoa; até certo ponto, ele também
foi iniciado nos mistérios dos outros povos. Devemos interpretar como uma cena
especial de iniciação o encontro de Moisés com o sacerdote madianita Jetro. Já falamos
a seu respeito; ele aparece no Antigo Testamento [II Moisés 2, 16-21]. Ali nos é indicado
claramente que Moisés, ao encontrar aquele sacerdote solitário, chega a conhecer,
além dos mistérios iniciáticos do judaísmo, também os dos outros povos; e incorpora-os
à sua natureza, que se encontra particularmente fortalecida pela presença do corpo
etérico de Zaratustra. Desse modo, por intermédio de Moisés chegaram ao povo judaico
os mistérios iniciáticos de todo o mundo circunvizinho; pode-se dizer que Moisés
preparou, num grau inferior, o que deveria ser realizado depois pelo Cristo Jesus. Essa
era uma das correntes que deviam conduzir ao Mistério do Gólgota.
A outra corrente, também já citada antes, era oriunda do elemento que vivia
naturalmente no povo judaico enquanto tal. Moisés contribuiu para a confluência entre
a corrente que atravessou gerações desde Abrão, Isaac e Jacó e o que havia de possível
no mundo daquela época. Nesse processo, contudo, deveria sempre ser preservado o
que estivesse intimamente relacionado com a natureza do antigo povo hebraico. A que
estava predestinado esse povo? A ser a preparação para a época que procuramos evocar
em nossa visão interior apontando, por exemplo, a cultura grega e uma vez mais,
ontem, a pessoa de Empédocles. Com isso voltamos a indicar a época em que o ser
humano perdeu as antigas faculdades clarividentes, a visão do mundo espiritual, quando
então nasce o juízo — que é algo próprio do eu —, ou seja, nasce o eu entregue a si
próprio.
Integrar ao eu o que, pela própria natureza humana, pode ser-lhe integrado por
intermédio de seu sistema sangüíneo, eis a que foi destinado o antigo povo hebraico.
Nesse povo deveria simplesmente realizar-se tudo o que o organismo físico do ser
humano tinha a dar. A esse organismo físico do homem está ligada a intelectualidade.
Do organismo físico do antigo povo hebraico deveria ser tomado o elemento capaz de
fomentar as capacidades do homem ligadas a essa intelectualidade. Os outros povos
deveriam fazer irradiar para o organismo terreno tudo o que pudesse ser introduzido
pela iniciação — portanto, do exterior. A contribuição advinda da própria natureza
humana, a partir do contexto sangüíneo, deveria surgir do antigo povo hebraico. E por
isso que a continuidade do contexto sangüíneo e a preservação das faculdades legadas
ao sangue desde os tempos de Abrão, Isaac e Jacó são observadas com tanto rigor. O eu
está ligado ao sangue, e deveria ser integrado ao organismo do antigo povo hebraico
através do sangue, processo que só pôde realizar-se pela hereditariedade.
Já mencionei o fato — indicado no Antigo Testamento com o sacrifício de Isaac e o
impedimento do mesmo por Abraão — de esse povo ser o escolhido pela Divindade para
ser presenteado à humanidade e proporcionar o invólucro físico externo para o eu. A
doação, por Deus, desse invólucro físico à humanidade na figura do antigo povo judaico
é representada pela cena do pretenso sacrifício do filho de Abraão. Se Abraão tivesse
sacrificado Isaac, teria também sacrificado o organismo que deveria propiciar à
humanidade a base física para a intelectualidade e para o eu. O filho lhe é devolvido —
e com ele toda a organização corpórea presenteada por Deus. É esse o gesto grandioso
que envolve essa restituição de Isaac [I Moisés 22,1-19]. Com isso, também se alu de à
corrente espiritual revelada em Moisés na cena da transfiguração — tudo o que deve
confluir para o evento do Mistério do Gólgota mediante o instrumento do povo judaico.
E o que nos revela a imagem de Elias? Aí é fielmente estabelecida a correlação

73
entre a totalidade da revelação divina que vive no povo judaico e o que acontece pelo
Mistério do Gólgota. O capítulo 25 do IV Livro de Moisés nos relata a sedução de Israel
pela idolatria e como este é salvo por um homem. A firmeza desse homem faz com que
os israelitas, o antigo povo hebraico, não sejam totalmente induzidos à idolatria. Quem
é esse homem? É aquele que, segundo o IV Livro de Moisés, possuía a força para
apresentar-se à frente do povo que ameaçava entregar-se à mesma idolatria dos povos
vizinhos e de intervir em favor do Deus revelado por Moisés; tratava-se de uma alma
forte. Tal intervenção em favor de Deus geralmente é traduzida na língua alemã por
eifern [‘bradar’]; porém não pretendemos usar essa palavra num sentido negativo, mas
somente para indicar uma ‘intervenção enérgica’. No IV Livro de Moisés, 25,10-12,
lemos o seguinte:
O Senhor falou com Moisés dizendo:
Finéias, filho de Eleazar, filho do sacerdote Aarão, afastou minha ira dos filhos
de Israel porque foi animado com seu zelo por mim, para que eu não
extinguisse os filhos de Israel em meu próprio zelo.
Por isso dizes: Eis que lhe dou minha aliança da paz.
Foi isso o que Jeová disse a Moisés. De acordo com a doutrina oculta dos antigos
hebreus, devemos ver nesse trecho algo extraordinariamente significativo, o que é
confirmado pela moderna pesquisa oculta. Sabemos que de Aarão descendem as
gerações dos que representam o sumo sacerdócio do antigo povo de Israel, e nos quais
perdura a essência do que foi transmitido à humanidade pelos hebreus. Tanto essa
antiga doutrina oculta quanto a pesquisa esotérica moderna nos indicam que Jeová
informou a Moisés que na pessoa de Finéias, filho de Eleazar e neto de Aarão, ele
entregou ao povo hebraico um sacerdote especial cuja missão foi intervir em seu favor,
tendo-se unido a ele. E tanto essa antiga doutrina oculta quanto a pesquisa oculta
moderna revelam que no corpo de Finéias vive a mesma alma que viria a existir
posteriormente em Elias. Com isso temos uma linha de encarnações sucessivas, da qual
já havíamos indicado certos pontos isolados. No neto de Aarão temos a alma que nos
interessa; ela atua em Finéias. Podemos reencontrá-la em Elias-Nabot e depois em João
Batista; conhecemos inclusive seu caminho posterior através da evolução da
humanidade. De um lado nos é apresentada essa alma em imagem e, de outro, a alma
do próprio Moisés.
Assim sendo, devemos encarar a cena da transfiguração no monte como uma
confluência. É a espiritualidade de toda e evolução terrestre que conflui ali — algo cuja
essência flui no levitismo através do sangue judaico. Ora, temos à nossa frente a alma
de Finéias, filho de Eleazar e neto de Aarão, temos Moisés e temos também o realizador
do Mistério do Gólgota. Pedro, Tiago e João, os três discípulos que seriam iniciados,
mediante suas imaginações tomariam conhecimento de como convergiram essas forças,
essas correntes espirituais. E se ontem tentei descrever algo como um grito ressonante
da Grécia para a Palestina e um outro em retorno, na verdade isso significou mais do
que uma mera ilustração imaginativa dos fatos; deveria preparar o grande colóquio
histórico-universal, ocorrido realmente. Os discípulos Pedro, Tiago e João deveriam ser
iniciados no tema do qual viriam tratar as três almas — uma das quais pertencente ao
povo do Antigo Testamento, a outra trazendo em si muita coisa por ser a alma de
Moisés, enquanto a terceira se unia à Terra como divindade cósmica. Era isso o que os
discípulos deveriam visualizar.
Sabemos que eles não conseguiram sentir isso de imediato em seus corações, não
tendo compreendido logo as frases. Isso, porém, acontece com muitas vivências no
âmbito do ocultismo. A experiência se dá na imaginação e não é compreendida, sendo

74
que muitas vezes isso só ocorre nas encarnações subseqüentes.
Então se compreende tanto melhor quanto mais nossa própria compreensão se
adapta ao que vimos no início. Porém sentir, isso sim, nós podemos: lá em cima, no
monte, as três potências universais, e embaixo os três que devem ser iniciados naqueles
grandiosos mistérios cósmicos. De todas essas coisas, poderá resultar para nossa alma a
sensação de que o Evangelho, se compreendido corretamente, e sobretudo bem
apreendido em suas graduações dramáticas e em sua composição artística — que é
sempre uma expressão de fatos ocultos —, aponta para a grande reviravolta ocorrida por
ocasião do Mistério do Gólgota.
O Evangelho, quando interpretado pela pesquisa oculta, usa uma linguagem
bastante clara. O importante é os homens aprenderem cada vez mais a compreender
que, nos diversos pontos do Evangelho, é realmente necessário saber sempre o que
importa neste ou naquele trecho; só assim poderemos descobrir o ponto
particularmente importante numa ou noutra parábola, num ou noutro relato. É curioso
observarmos que, frente aos detalhes mais importantes do Evangelho, as interpretações
teológicas e filosóficas usuais quase sempre partem do curioso ponto de vista do qual
partiria alguém que não atrelasse seus cavalos à frente da carroça, como se faz
geralmente, mas ao contrário, procedimento que na linguagem trivial é chamado de
‘enfrear o cavalo pela cauda’. É o que acontece, de fato, com muitos exegetas e
comentaristas: não são percebidos os pontos importantes.
Por ser bastante significativo para nossas considerações, eu gostaria de chamar
logo sua atenção para um trecho do capítulo 14 do Evangelho de Marcos:
Estando Jesus em Betânia, na casa de Simão, o leproso, e estando à mesa, uma
mulher veio trazendo um vaso de alabastro contendo um bálsamo precioso de
nardo, abriu o vaso e derramou-o sobre sua cabeça.
Alguns dos que estavam presentes indignaram-se e diziam entre si: Para quê esse
desperdício de bálsamo?
Poder-se-ia vendê-lo por mais de trezentos dinheiros e dá-los aos pobres. E
irritaram-se contra ela.
Mas Jesus disse: Deixai-a; por que a molestais? Ela me fez
uma boa obra.
Porque sempre tendes os pobres convosco, e quando quiserdes podereis fazer-lhes
o bem; a mim, porém, não me tendes o tempo todo.
Ela fez o que podia; embalsamou antecipadamente meu corpo para a sepultura.
Em verdade vos digo: onde quer que o Evangelho for pregado em todo o mundo, o
que ela fez também será contado em sua memória. [Marcos 14, 3-9.]
O correto seria sempre reconhecer que tal trecho contém algo surpreendente. E a
maioria das pessoas, se for sincera, confessará ver com simpatia os que reclamaram do
desperdício de bálsamo, pois não teria sido necessário derramá-lo na cabeça de alguém.
A maioria acreditará, de fato, que teria sido melhor vendê-lo pelos trezentos dinheiros
e dar esse dinheiro aos pobres. Como são sinceros, talvez considerem as palavras do
Cristo bastante duras ao dizer ser mais sensato deixá-la realizar sua obra do que dar aos
pobres os trezentos dinheiros resultantes da venda do bálsamo. Deve haver, por trás
disso, alguma coisa fazendo com que não nos sintamos indignados por toda essa
narrativa. O Evangelho ainda faz algo mais; nem sequer é delicado nesse ponto. Ora, se
um certo número de pessoas concorda que seria melhor dar aos pobres os trezentos
dinheiros possíveis de ser recebidos pelo bálsamo, o Evangelho nos quer dizer que os
que assim opinam pensam semelhantemente a uma outra pessoa — pois prossegue
assim:
[...] onde quer que o Evangelho for pregado em todo o mundo, o que ela fez

75
também será contado em sua memória.
Então Judas Iscariotes, um dos Doze, foi ao encontro dos príncipes dos sacerdotes
para entregar-lhes Jesus.
Ao ouvi-lo, eles se alegraram e prometeram dar-lhe dinheiro. E ele procurou uma
ocasião oportuna para entregá-lo. [Marcos 14, 9-11.]
Foi Judas Iscariotes quem mais se escandalizou com o desperdício do bálsamo! E os
que também se escandalizaram são equiparados a ele. O Evangelho não é nem um pouco
delicado nisso, pois deixa bem claro: os que reclamaram do derrame do bálsamo são do
mesmo tipo de Judas, que vendeu o Senhor por trinta dinheiros. O que quer dizer é o
seguinte: “Vejam, são assim as pessoas que querem vender o bálsamo por trezentos
dinheiros; Judas é apegado ao dinheiro.” De modo algum o Evangelho deve ser
retocado, pois o retoque impede uma interpretação correta e objetiva. Devemos
encontrar o ponto que realmente importa. Encontraremos ainda outros exemplos
mostrando-nos que o Evangelho não tem receio de reproduzir, às vezes, aspectos
secundários de um modo um tanto escandaloso, para que o aspecto principal se ilumine
com bastante clareza.
O que realmente importa, nesse episódio particular? Eis o que o Evangelho nos
quer dizer: não é apenas a existência nos sentidos que tem valor e significado, nem é
onde o homem deve fixar-se; antes de mais nada, é o mundo supra-sensível que o
homem deve acolher, sendo também importante dirigirmos nossa atenção ao que deixou
de ter significado nessa existência dos sentidos. O corpo do Cristo Jesus, cuja unção
antes do sepultamento é apenas antecipada por essa mulher, não terá mais importância
quando se desligar da alma; porém deve-se fazer algo em favor do que tem valor e
significado além da existência sensorial. É isso o que se destaca particularmente nesse
fato. Por isso é usado para esse fim justamente algo para o qual a própria cons ciência
natural do homem acredita ter de atribuir um valor máximo na existência sensorial.
O Evangelho escolhe aqui um exemplo especial para indicar que às vezes é
necessário tirar da existência sensorial alguma coisa para entregá-la ao espírito, ao
âmbito em que entra o eu quando livre do corpo. Aqui é escolhido um exemplo
aparentemente bastante impiedoso, ou seja, o fato de se privar os pobres de algo que é
dado ao espírito, ao eu, para quando este se encontrar livre do corpo. Não se dá
destaque ao que valoriza a existência terrena, e sim ao que penetra no eu e irradia a
partir dele. Isso é demonstrado aqui de um modo particularmente drástico. É por isso
que se estabelece a associação com Judas Iscariotes, que concretiza a traição por se
sentir especialmente atraído pela existência sensorial, misturando-se aos que, de
maneira pouco delicada, o Evangelho denomina verdadeiros filisteus, embora seja uma
alusão um tanto forte. Para Judas só tem importância o que possui valor na existência
sensorial, como também para os que acreditam que o bem possível de se obter por
trezentos dinheiros tenha um significado maior do que aquilo que ultrapassa a
existência sensorial.
É preciso chamar sempre a atenção para o essencial, e não para o secundário. O
Evangelho será sempre reconhecido quando o valor do espiritual foi reconhecido. Em
toda parte onde forem reconhecidos os fatos espirituais, esse exemplo também será
reconhecido como apropriado. Onde quer que se pretenda destacar o valor do supra-
sensível para o eu, o desperdício do bálsamo será considerado como algo insignificante.
Um trecho específico onde se pode captar nitidamente o estilo metódico-artístico
com que o Evangelho apresenta os fatos ocultos da evolução da humanidade é o
seguinte, que é também uma espécie de cruz para quem deseje interpretá-lo:
No dia seguinte, ao sair de Betânia, ele sentiu fome.

76
De longe avistou uma figueira que tinha folhas, e aproximou-se para ver se
encontrava algo nela. Mas quando chegou mais perto não viu senão folhas, pois
não era época de figos.
E dirigindo-se à árvore, disse: Jamais, na eternidade, deverá alguém comer teus
frutos! E seus discípulos o ouviram. [Marcos 11, 12-14.]
Toda pessoa deveria perguntar honestamente: não é estranho constar no Evangelho
que um deus se aproxima de uma figueira, procura figos e não os encontra,
adicionando-se ainda o motivo por que ele não os encontra — pois consta expressamente
“não era época de figos” —, ou seja, numa época em que não há figos ele vai até a
figueira, procura figos, não os encontra e depois diz: “Jamais, na eternidade, deverá
alguém comer teus frutos!”? Vejamos quais são as interpretações comumente atribuídas
a essa história, que de modo sucinto e prosaico não diz outra coisa senão que o Cristo
Jesus estranhamente sente fome, vai ao encontro de uma figueira numa época em que
esta não dá figos, não os encontra e então amaldiçoa a árvore, para que por toda a
eternidade ela não dê mais frutos. Ora, o que significa a figueira, e por que razão isso
tudo é relatado? Quem for capaz de ler os escritos ocultos reconhecerá na ‘figueira’ —
ainda veremos essa concatenação no Evangelho — uma situação idêntica àquela do Buda
sentado sob a ‘árvore Bodhi’, onde recebe a inspiração para o Sermão de Benares. Sob a
‘'árvore Bodhi’ significa o mesmo que sob a ‘figueira’. Historicamente, em relação à
clarividência humana a época do Buda foi a ‘época dos figos’, ou seja, a época em que
se recebia, como no caso do Buda, a inspiração sob a árvore Bodhi — ou sob a figueira.
Na época do Cristo Jesus isso já havia mudado, e é isso o que os discípulos deveriam
aprender. Havia chegado um ponto da história universal em que a árvore sob a qual o
Buda havia recebido a inspiração não dava mais frutos.
Na alma do Cristo se refletia o que ocorria em toda a humanidade. Em Empédocles
da Sicília vemos um representante da humanidade, um representante de muitos seres
humanos que também sentiam fome, pois suas almas não encontravam mais a revelação
que outrora lhes era familiar, devendo contentar-se agora com as abstrações do eu; por
isso podemos dizer que Empédocles sentia fome, a fome de espírito que todos os
homens dos novos tempos sentiam. Toda a fome da humanidade se descarregou na alma
do Cristo Jesus, antes do advento do Mistério do Gólgota.
Os discípulos deviam compartilhar desse mistério e ter conhecimento dele. O
Cristo os leva até a figueira e lhes revela o segredo da árvore Bodhi. Por ser um detalhe
insignificante, ele omite o fato de o Buda ainda haver encontrado frutos naquela
figueira. Agora, porém, já não era mais o tempo dos ‘figos’ que o Buda havia colhido da
árvore Bodhi na época do Sermão de Benares; agora o Cristo precisava constatar que,
por toda a eternidade, os frutos do conhecimento da árvore de onde se havia derramado
a luz de Benares não vingariam mais, devendo originar-se agora do Mistério do Gólgota.
Com que fato nos deparamos aqui? Com o fato de o Cristo Jesus caminhar com seus
discípulos de Betânia a Jerusalém e nessa ocasião surgir neles uma sensação, uma
energia particularmente poderosa que desperta em suas almas forças clarividentes,
inclinando-os especialmente à imaginação. Nos discípulos são despertadas forças
clarividentes e imaginativas. Nessa clarividência eles vêem a árvore Bodhi, a figueira, e
o Cristo Jesus os faz perceber que dessa árvore não podem mais resultar os frutos do
conhecimento; pois a época dos figos, isto é, do antigo conhecimento, já passara. Essa
árvore ficará ressequida por toda a eternidade, e uma nova árvore deverá nascer,
constituída da madeira morta da cruz — onde não vingam os frutos do antigo
conhecimento, mas os que resultarão, para a humanidade, do Mistério do Gólgota, que
está ligado à cruz como um novo símbolo. Ao invés daquela cena da história universal
representada pelo Buda sentado embaixo da árvore Bodhi, surge a imagem do Gólgota,

77
onde se ergue uma outra árvore, a árvore da cruz; desta pendeu o fruto vivo do Deus-
Homem, que se revelou para irradiar o novo conhecimento de uma árvore que
continuará se desdobrando e dando frutos por toda a eternidade.

9
23 de setembro de 1912

A compreensão do advento do Cristo


Já repetimos algumas vezes, nestas conferências, que no futuro haverá uma certa
mudança no relacionamento dos homens com os Evangelhos, pelo fato de eles virem a
perceber sua composição profundamente artística; e que o fundo oculto, os impulsos
histórico-universais retratados nos Evangelhos só serão vistos à luz correta quando o
leitor se aprofundar em sua composição artística. Como já pudemos indicar nos últimos
dias com relação a diversos trechos, nesse sentido a literatura e a arte dos Evangelhos
se inserem também em todo o processo evolutivo da humanidade.
Falamos daquelas figuras solitárias da Grécia, que experimentavam claramente em
suas almas a extinção, o progressivo desaparecimento da antiga visão clarividente. Em
compensação, elas passaram a um estado a partir do qual deve desenvolver-se o eu do
homem, a consciência moderna, a conceituação e as representações abstratas. Podemos
apontar ainda outro aspecto que, de certa forma, evidencia justamente na cultura
grega uma espécie de fim da cultura da humanidade, algo como um desfecho para, a
partir de uma nova premissa, se enveredar por um novo caminho. Refiro-me à arte
grega. Por que é que na Europa as pessoas procuraram com a alma, por assim dizer, o
país dos gregos, ou seja, o país da beleza, vendo na maravilhosa configuração da forma
humana um ideal evolutivo do homem — e isso não apenas na época da Renascença, pois
já no classicismo moderno espíritos como Göethe também procuravam com a alma este
país dos gregos, ou seja, o país da bela forma? Isso ocorreu porque de fato, na Grécia, a
beleza que fala diretamente à contemplação da forma exterior chegou a um certo
termo, a um desfecho num certo auge.
A coerência interna da forma — eis com que nos defrontamos na beleza, na arte
grega. Podemos perceber imediatamente, na composição da obra de arte grega, o que
ela quer expressar! Isso se nos manifesta de imediato e se transmite aos nossos
sentidos. A razão da grandeza da arte grega é que ela se exteriorizou por completo.
Poderíamos dizer que, nesse sentido, a arte dos Evangelhos também evidencia um novo
começo, um começo que até hoje não foi devidamente compreendido. Uma composição
interior, um entrelaçamento interior da trama artística, sendo simultaneamente os fios
ocultos, existe de maneira especial também nos Evangelhos. Por isso é tão importante o
que mencionamos ontem, isto é, que por toda parte percebamos realmente o ponto
principal de qualquer exposição, de qualquer narrativa.
Justamente no Evangelho de Marcos, o Cristo é proposto — mais por todo o tom da
apresentação do que pelo teor lingüístico — como uma figura cósmica ao mesmo tempo
terrena e supra-terrena, assim como o Mistério do Gólgota também é tratado como um
fato terreno e supra-terreno. Porém algo mais se destaca, e é aqui, no final desse
Evangelho, que nos deparamos com o elemento sutilmente artístico. E frisado o
seguinte: um impulso cósmico irradiava para o interior dos assuntos terrenos,
iluminando-os; cabia aos seres terrenos, aos seres humanos na Terra, dedicar
compreensão a esse impulso. Talvez em nenhum outro contexto seja tão mencionado
como no Evangelho de Marcos que, para a compreensão do que irradiava do Cosmo para
o interior da existência terrena, no fundo é necessária toda a evolução da Terra, tendo

78
sido essa compreensão absolutamente impossível na época do Mistério do Gólgota. E é
justamente por causa da inexistência de tal compreensão naquele tempo — quando esta
recebeu apenas seu primeiro impulso, começando a crescer pouco a pouco na evolução
posterior da humanidade — que esse fato foi apresentado de um modo tão maravilhoso
pela composição artística desse Evangelho. Nós notaremos essa sutileza da composição
artística se nos interessarmos em saber o grau de entendimento que naquela época
existiu com relação ao Mistério do Gólgota.
Havia, em essência, a possibilidade de uma tríplice compreensão, que podia partir
de três fatores: primeiro, daqueles que eram os discípulos mais próximos do Cristo
Jesus; por toda parte, no Evangelho, eles surgem como os escolhidos pelo próprio
Senhor, aos quais ele confiava muitas coisas para uma compreensão superior da
existência. É deles, portanto, que podemos esperar a mais perfeita compreensão do
Mistério do Gólgota. E que tipo de compreensão é essa? Quanto mais nos aproximamos
do final do Evangelho de Marcos, mais notamos a sutileza com que isso foi inserido em
sua composição. Essa compreensão dos discípulos diletos do Cristo, superior àquela dos
líderes do povo do Antigo Testamento, nos é indicada ao pesquisarmos todos os pontos
importantes.
Aí se encontra uma conversa do Cristo Jesus com os saduceus onde, a princípio, ele
trata da imortalidade da alma. Se a leitura for superficial, não se descobrirá com
facilidade o conteúdo dessa conversa; a fala dos saduceus, bastante estranha, diz o
seguinte: — Dentre sete irmãos, um que era casado morre e sua mulher se casa com o
segundo. Depois da morte do segundo ela se casa com o terceiro, e assim por diante,
até que ela mesma morre, mas somente após ter-se casado com o sétimo irmão. Os
saduceus não compreendem como, existindo a imortalidade, esses sete irmãos se
relacionariam com aquela mulher na vida espiritual. Essa é a famosa objeção dos
saduceus, a qual, como talvez alguns dos Senhores saibam, não foi feita somente na
época do Mistério do Gólgota, encontrando-se também em muitos livros modernos como
contestação da imortalidade — prova de que hoje ainda não existe uma plena
compreensão do assunto nos círculos dos que escrevem tais livros. Qual a razão dessa
conversa? Se nos aprofundarmos no assunto, justamente pela resposta do Cristo fica
evidente que as almas se tornam celestiais após a morte, e que não há casamento entre
os seres do mundo supra-terreno. Portanto, não há problema algum no fato citado pelos
saduceus, que na verdade se refere essencialmente às condições terrenas, não tendo
significado para o mundo extraterreno. Em outras palavras, o Cristo Jesus falou de
condições extraterrenas que quis abordar conforme sua adequação ao entendimento da
vida supra-física.
Aproximando-se do final do Evangelho, os Senhores encontrarão outra conversa,
em que o Cristo é questionado a respeito do matrimônio [Marcos 10, 1-12]. Ele discute
com os judeus eruditos a possibilidade de a lei de Moisés permitir que se libere a mulher
mediante uma carta de divórcio. Qual foi o aspecto importante na resposta do Cristo
Jesus ao dizer: “Tal lei vos foi dada por Moisés porque vossos corações são duros e
precisais de tal instituição”? O importante é que agora ele fala de modo diferente sobre
todas as coisas. Fala sobre o relacionamento entre o homem e a mulher tal qual existia
antes da passagem da evolução humana pela tentação das forças luciféricas. Ou seja,
ele fala de algo cósmico, supra-terreno; dirige o assunto para algo supra-terreno. O
importante é que ele conduz as conversas para além do que se relaciona com a
existência nos sentidos, para além das circunstâncias dessa existência, para além da
evolução terrena comum. O significativo é ele mostrar, já nisso, estar trazendo à Terra
relações cósmicas, supra-terrestres com seu aparecimento no mundo e falar delas aos
seres terrenos.

79
De quem, portanto, podemos esperar ou, até certo ponto, exigir que
compreendam melhor o discurso do Cristo Jesus sobre as relações cósmicas? Daqueles
que a princípio ele escolheu como seus discípulos. Podemos, pois, dizer que a
compreensão inicial se caracterizaria da seguinte forma: os discípulos escolhidos teriam
entendido o Mistério do Gólgota a ponto de captar o conteúdo supra-terreno e cósmico
desse fato da História Universal. É isso o que se poderia ter esperado dos discípulos
escolhidos por ele.
Um segundo tipo de compreensão a ser esperado teria sido aquele por parte dos
líderes do povo do Antigo Testamento, dos pontífices e altos juizes, bem como de todos
os que conheciam as Escrituras e a evolução histórica desse povo. O que poderíamos ter
exigido deles? O Evangelho diz claramente: não se pode esperar deles uma compreensão
das relações cósmicas do Cristo Jesus. Contudo, é esperada uma compreensão para o
fato de o Cristo Jesus ter vindo para o antigo povo hebraico e ter inserido, por seu
nascimento, sua própria individualidade no sangue desse povo — sendo ele filho da casa
de Davi e estando intimamente ligado à essência do que, com Davi, penetrava no povo
judaico. Isso nos leva ao segundo tipo de compreensão, a essa compreensão menor.
Perto do final do Evangelho de Marcos nos é indicado, de uma maneira maravilhosa, que
a missão de Jesus representa o ponto culminante da missão de todo o povo judaico,
sublinhando-se cada vez mais o fato de tratar-se de um filho de Davi. Notemos a sutil
composição artística desses relatos. Enquanto se exige dos discípulos compreensão
quanto ao envio do herói cósmico, dos membros do povo judaico espera-se compreensão
para o fato de haver chegado o término da missão de Davi. E esse o segundo ponto. O
povo judaico deveria ter compreendido que sua própria missão chegava ao fim,
experimentando uma reativação.
E de onde surgiria o terceiro tipo de compreensão? Nesse caso, as exigências
diminuem. É notável a sutileza da composição artística que o Evangelho de Marcos nos
apresenta. Essa exigência menor é feita aos romanos. Leiam o final do Evangelho de
Marcos — e agora estou falando sempre e apenas desse evangelho —, onde os pontífices
entregam o Cristo Jesus aos romanos. Eles ainda lhe perguntam se queria falar do
Cristo, se queria declarar-se fiel ao Cristo — caso em que se ofenderiam, pois ele estaria
falando de sua missão cósmica —, ou se queria afirmar ser um rebento da estirpe de
Davi. Por que Pilatos, o romano, se ofende? Unicamente porque ele se teria feito passar
por ‘Rei dos Judeus’ [Marcos 15, 1-15].
Os judeus deveriam compreender que ele representava um ponto culminante na
evolução de seu próprio povo. Os romanos deveriam compreender que ele significava
algo na evolução do povo judaico — não um ponto culminante, mas algo como um líder.
O que teria acontecido se os romanos tivessem compreendido isso? Nada de diferente do
que deveria acontecer de qualquer modo. Sabemos que o judaísmo se estendeu por todo
o mundo ocidental através de Alexandria. Os romanos poderiam ter mostrado
compreensão pela chegada do momento histórico universal da propagação da cultura
judaica. Mesmo assim, isso é ainda menos do que os doutores da lei deveriam
compreender. Os romanos deveriam ter compreendido somente a importância dos
judeus como parte do mundo. A falta dessa compreensão — que teria sido uma missão
da época — é indicada pelo fato de Pilatos não entender que o Cristo Jesus seja
considerado rei dos judeus, interpretando isso como uma insignificância.
Em resumo, seria de esperar uma tríplice compreensão pela missão do Cristo
Jesus: primeiro, a compreensão dos discípulos escolhidos quanto ao elemento cósmico
do Cristo; segundo, a compreensão dos judeus pelo que se propagou no próprio povo
judaico; e terceiro, a compreensão dos romanos pelo fato de o povo judaico deixar de
expandir-se apenas na Palestina e começar a espalhar-se por uma parte maior da Terra.

80
Tudo isso está oculto na composição artística do Evangelho de Marcos. E também
as respostas a essas três questões nos são dadas com clareza total.
A primeira questão deve ser a seguinte: será que os apóstolos, os discípulos
escolhidos, estavam à altura da compreensão que se esperava deles? Será que haviam
reconhecido o Cristo Jesus como o Espírito Cósmico? Sabiam estar entre eles alguém que
não era apenas o homem apresentando-se como tal, e sim alguém envolto numa aura,
pela qual eram trazidas à Terra forças e leis cósmicas? Será que eles compreenderam
isso?
Que o Cristo Jesus exigiu deles essa compreensão está claramente indicado no
Evangelho. Quando os dois discípulos filhos de Zebedeu se aproximaram e pediram para
sentar-se um à sua direita e outro à sua esquerda, ele disse:
Não sabeis o que estais pedindo. Podereis beber o cálice que eu vou beber, ou
receber o batismo que eu vou receber? [Marcos 11, 38.]
A princípio, os discípulos prometem fazê-lo. Que Jesus lhes exige isso nos é
indicado com clareza nesse trecho. O que poderia ter acontecido então? Duas
possibilidades: — Uma seria que os discípulos escolhidos teriam realmente passado por
tudo o que aconteceu no âmbito do Mistério do Gólgota, tendo sido mantidos os laços
entre eles e o Cristo até esse acontecimento. O Evangelho segundo Marcos nos mostra
claramente não ter sido essa, mas sim outra alternativa a que se realizou. No momento
em que ele foi preso, todos fugiram; e Pedro, que prometera não se chocar com coisa
alguma, renegou-o três vezes antes de o galo cantar duas vezes [Marcos 14, 66—72]. E
essa a narrativa pelo lado dos apóstolos. Porém, como narrar não ter sido isso o que
ocorreu pelo lado do próprio Cristo?
Coloquemo-nos com toda a humildade — pois assim deve ser — na alma do Cristo
Jesus, que até o último momento procurou manter os laços com as almas dos apóstolos;
imaginemo-nos, na medida do possível, na alma do Cristo durante a seqüência do
processo. Essa alma poderia muito bem formular a seguinte pergunta histórico-
universal: “Será que conseguirei que ao menos as almas dos discípulos mais próximos se
elevem à altura suficiente para vivenciar comigo tudo o que tem de acontecer até o
Mistério do Gólgota?” É diante desta pergunta que se encontra a própria alma do Cristo.
Grandioso é o momento em que Pedro, Tiago e João são conduzidos ao Monte das
Oliveiras e Jesus quer comprovar por si mesmo se é capaz de mantê-los — os eleitos —
consigo. No caminho para lá, ele fica temeroso. Ora, meus amigos, alguém acredita ou
pode acreditar que o Cristo sentisse medo diante da morte, diante do Mistério do
Gólgota, e que transpirasse sangue no Monte das Oliveiras pela proximidade desse
evento? Isso significaria pouca compreensão por esse mistério. Pode até ser teológico,
mas não faz sentido. Por que o Cristo se entristece? Ele não estremece diante da cruz —
isso é óbvio. Ele estremece pensando o seguinte: “Será que estes que levo comigo
conseguirão superar o momento em que deverão decidir se querem acompanhar-me com
sua alma, vivenciando tudo até à cruz?” Que seu estado de consciência se mantenha
alerta o bastante para suportar tudo até a crucificação, eis o que deve ser decidido. É
esse o ‘cálice’ que se aproximou dele. E ele os deixa sós para que possam permanecer
‘em vigília’, ou seja, num estado de consciência que lhes permita compartilhar daquilo
que ele deverá vivenciar. Então ele se afasta e ora:
Pai, afasta de mim esse cálice; não se faça, porém, o que eu quero, mas o que tu
queres. [Marcos 14, 36.]
Isso significa: “Não me deixes passar pela experiência de ficar só como Filho do
Homem, mas faze com que os outros venham comigo.” E, voltando, ele os encontra

81
dormindo. Eles não conseguiram manter aquele estado de consciência. Ele repete a
tentativa e novamente eles fracassam. Tenta mais uma vez, e eles fracassam de novo.
Com isso lhe fica claro que está sozinho, e que os discípulos não compartilham dos
acontecimentos que o levarão à cruz. O cálice não se afastou! Ele está destinado a
realizar o feito sozinho, na grande solidão da alma.
O mundo tinha o Mistério do Gólgota, porém ainda não a compreensão relativa a
ele na época em que sucedeu. Nem mesmo os escolhidos e eleitos foram capazes de
elevar-se ao primeiro tipo de compreensão. Como é maravilhosa a expressão artística
desses fatos quando aprendemos a perceber os verdadeiros motivos ocultos no conteúdo
dos Evangelhos!
Quanto ao segundo tipo de compreensão, podemos indagar como os líderes dos
judeus compreendiam aquele que deveria surgir da estirpe de Davi qual flor da evolução
dó antigo povo hebraico. Uma das primeiras passagens indicando-nos a compreensão
desse povo para com o descendente da estirpe de Davi encontra-se no décimo capítulo
do Evangelho de Marcos. Trata-se daquela passagem decisiva em que o Cristo se
aproxima de Jerusalém e é reconhecido pelo povo hebraico como o sucessor de Davi.
E eles chegaram a Jerico. E quando ele saiu de lá com seus discípulos e uma
grande multidão, encontraram Bartimeu, um mendigo cego filho de Timeu,
sentado junto ao caminho.
Quando este ouviu dizer que se tratava de Jesus, o Nazareno, começou a gritar e
a dizer: Jesus, filho de Davi, tem piedade de mim!
E muitos o ameaçaram, para que se calasse. Mas ele gritava cada vez mais forte:
Filho de Davi, tem piedade de mim! [Marcos 10, 46-48.]
O grito do cego é expressamente caracterizado como sendo “Filho de Davi!” O
intuito, portanto, é apenas chamar atenção para “Filho de Davi”.
E Jesus, parando, disse: Chamai-o. E eles chamaram o cego dizendo-lhe: Tem
confiança, levanta-te, pois ele te chama.
Ele, porém, jogando seu manto para trás, levantou-se de um salto e foi ao
encontro de Jesus.
E Jesus disse-lhe: Que queres que eu te faça? O cego disse-lhe: Raboni, fazes com
que eu veja.
Então lhe disse Jesus: Vai, tua fé te salvou. No mesmo instante ele viu, e passou a
segui-lo pelo caminho. [Marcos, 10, 49-52.]
Isso significa que ele exigia apenas fé. Será que não poderíamos refletir por que se
faz menção à cura de um cego, entre outros relatos? Por que este fato se encontra tão
isolado no texto? As pessoas deveriam aprender algo sobre o elemento compositivo do
Evangelho. Não é absolutamente a cura o que importa, mas o fato de, no meio de toda
a multidão, uma única pessoa, o cego, ter clamado com toda a força: “Jesus, filho de
Davi!” Os que enxergam não o reconhecem. O cego, que não o vê fisicamente,
reconhece-o. Com isso, portanto, pretende-se demonstrar como os demais são cegos, e
como aquele homem tinha de tornar-se cego para vê-lo. O que importa nessa passagem
é a cegueira, e não a cura, bem como o pouco que o Cristo é compreendido.
Prosseguindo no texto, podemos encontrar por toda parte o Cristo falando da
penetração do elemento cósmico na individualidade humana; ele fala do cósmico — e é
importante que isso se encontre formulado justamente neste contexto, quando o Cristo
aparece como o ‘Filho de Davi’ — ao falar da imortalidade, dizendo que Deus é um deus
dos vivos, e não dos mortos, que esse é o Deus de Abrão, Isaac e Jacó, que continua
vivendo em seus sucessores, embora sob outras formas, uma vez que vive em suas
individualidades. Isso pode ser entendido mais claramente no trecho em que ele se

82
refere ao homem, o que neste está adormecido e o que deve ser despertado. Aí é dito
que não se trata do mero filho físico de Davi, pois o próprio Davi fala do ‘Senhor’, e não
do filho materializado [Marcos 12, 35-37]. Em todo o contexto se fala do ‘Senhor’ na
individualidade do homem, daquilo que deve brotar da estirpe de Davi no momento em
que declina a influência do Cristo Cósmico.
Cumpre ainda apontar especialmente um trecho próximo ao final do Evangelho de
Marcos — um trecho que passa despercebido quando não entendido devidamente, mas
que exerce um efeito comovente sobre a alma quando existe essa compreensão. É onde
consta que o Cristo acaba de ser entregue aos poderes temporais e deverá ser
condenado, estando-se procurando motivos para tal. Antes disso, é descrita sua atuação
no templo, quando ele expulsou os vendilhões e derrubou suas mesas, pronunciando
palavras bem peculiares que penetraram nas almas de todos eles. Nada lhe aconteceu
em conseqüência disso. Ele chama expressamente a atenção para o seguinte:
“Escutastes tudo isto e, agora que me encontro diante de vós, estais procurando falsas
acusações contra mim, tendo-me prendido com os meios comuns por intermédio de um
traidor, como se prende uma pessoa que tenha cometido algo grave! Enquanto estive
entre vós no templo, nada fizestes.” Uma comovente passagem! Somos levados a
compreender que, no fundo, o Cristo atua por toda parte de maneira tal que nada se
pode fazer contra ele. Não deveríamos, nesse caso, indagar a razão disso? Sua atuação
tem realmente o efeito de indicar, no mais eminente sentido, o advento da grande
transição na evolução universal, na medida em que ele diz: “Os primeiros serão os
últimos e os últimos serão os primeiros.” [Marcos 9, 35.] Ele lança contra eles
ensinamentos terríveis, se considerarmos os ensinamentos e a compreensão do Antigo
Testamento. Então nada acontece. Depois disso ele é preso na escuridão da noite,
apontado por um traidor; e quase se tem a impressão de que nesse ato de prisão
ocorreu algo como uma briga. Essa passagem é comovente:
O traidor lhes havia dado uma senha, dizendo: Aquele a quem eu beijar,
prendam-no e levem-no em segurança.
Assim que Jesus chegou, aproximou-se imediatamente dele dizendo-lhe: Rabi,
Rabi! — e o beijou.
Eles lançaram as mãos sobre ele e o prenderam.
Um deles, porém, sacando da espada, feriu o servo do sumo sacerdote e lhe
decepou uma orelha.
E Jesus, tomando a palavra, disse-lhes: Como seu eu fosse um assassino, viestes
com espadas e varapaus para prender-me; todos os dias eu estava entre vós,
ensinando no templo, e não me prendestes; mas isto acontece para que se cum-
pram as Escrituras. [Marcos 14, 44-49.]
O que aconteceu, para que inicialmente não fizessem nada contra ele, e
posteriormente procurassem motivos para prendê-lo como se fosse um assassino? Só
poderemos realmente compreender o que ocorreu se concentrarmos nossa atenção nas
profundezas ocultas das coisas. Já apontei que no decorrer do Evangelho de Marcos são
indiscriminadamente relatados fatos ocultos e fatos puramente físicos. E mostrarei
claramente que a esfera de ação do Cristo não se restringia apenas à personalidade de
Jesus de Nazaré; quando exteriorizado, isto é, fora do corpo físico, ele atuava sobre os
discípulos ao ir ter com eles à beira-mar. Enquanto seu corpo físico se encontrava num
lugar qualquer, ele podia, fora desse corpo, transmitir às almas dos discípulos tudo o
que ele próprio irradiava como impulso, como espírito. E o Evangelho segundo Marcos
nos mostra claramente como as pessoas captam o que ele prega e ensina nesse estado
exteriorizado, fora do corpo físico. É nas almas que isso vive. Elas não o compreendem,

83
mas se habituam com isso. Trata-se de algo ao mesmo tempo terreno e supra-terreno,
existente na individualidade do Cristo e na multidão.
O Cristo está sempre ligado a uma aura abrangente e atuante. Essa aura atuante
existia devido à sua união com as almas das pessoas escolhidas, permanecendo
enquanto existisse essa união. O cálice não estava superado. As pessoas escolhidas não
haviam demonstrado qualquer compreensão. Então a aura se retirou gradativamente do
homem Jesus de Nazaré, e o Cristo e o Filho do Homem, Jesus de Nazaré, tornaram-se
cada vez mais estranhos entre si. No fim de sua vida Jesus de Nazaré ficou cada vez
mais solitário, e a ligação do Cristo com ele era cada vez mais frouxa, cada vez mais
solta.
Enquanto o elemento cósmico estava presente até o momento descrito como a
transpiração do sangue no Getsêmani, enquanto até esse momento o Cristo se
encontrava plenamente unido a Jesus de Nazaré, agora tal ligação é desfeita por causa
da incompreensão dos homens. E enquanto nada acontecia quando o Cristo Cósmico
atuava no templo expulsando os vendilhões e proferindo os mais tremendos discursos,
agora os soldados podiam aproximar-se, pois Jesus de Nazaré mantinha apenas uma
fraca ligação com o Cristo. Embora ainda se veja a presença do elemento cósmico, este
é cada vez menos ligado ao Filho do Homem. É isso o que torna a situação tão
comovente. Uma vez não se tendo obtido a tríplice compreensão, o que restava aos
homens? O que podiam eles prender, condenar e crucificar? O Filho do Homem. E
quanto mais o faziam, mais o elemento cósmico, que entrara na vida terrena como um
impulso jovem, ia-se retraindo. À medida que se retraía, permanecia diante dos que
proclamavam e cumpriam o juízo apenas o Filho do Homem, em torno do qual somente
pairava esse elemento cósmico jovem que, como tal, tivera de descer à Terra.
Nenhum outro evangelho senão o de Marcos nos diz que restou apenas o Filho do
Homem, e que o elemento cósmico somente pairava em torno dele. Por isso, em
nenhum outro evangelho vemos com tanta concisão a evasão do elemento cósmico dos
homens no exato momento em que estes começam, em sua insensatez, a maltratar o
Filho do Homem. O elemento cósmico jovem, que a partir daquela virada dos tempos
fora inserido como impulso na evolução terrena, evadira-se. O que se tinha era o Filho
do Homem, e isso é claramente frisado no Evangelho de Marcos. Leiamos novamente o
trecho em questão e verifiquemos se esse evangelho não salienta como, justamente
nesse ponto dos acontecimentos, o elemento cósmico se relaciona com o humano.
E Jesus, tomando a palavra, disse-lhes: Como seu eu fosse um assassino, viestes
com espadas e varapaus para prender-me;
todos os dias eu estava entre vós, ensinando no templo, e não me prendestes; mas
isto acontece para que se cumpram as Escrituras.
Então, abandonando-o, fugiram todos. [Marcos 14, 48-50.]
Ele fica sozinho. O que ocorreu com o jovem elemento cósmico? Imaginemos essa
solidão do homem que estivera permeado pelo Cristo, agora obrigado a confrontar-se
com os soldados como se fora um assassino. E os que deveriam compreendê-lo fogem.
“Então, abandonando-o, fugiram todos”, diz o versículo 50; depois lemos, nos versículos
51 e 52:
Um jovem o seguia, vestido apenas com um lençol fino, e prenderam-no.
Ele, porém, deixando o lençol, fugiu nu.
Quem é esse jovem? Quem é esse que foge? Quem é esse que aparece ao lado do
Cristo Jesus, quase nu, e foge totalmente despido? Trata-se do impulso cósmico, do
Cristo que se evade, conservando apenas uma tênue ligação com o Filho do Homem.
Estes versículos 51 e 52 encerram muita coisa. Esse impulso novo nada conserva do que

84
envolveu o homem nos tempos antigos. Ele é o impulso cósmico novo, totalmente nu, da
evolução terrena. Ele permanece em Jesus de Nazaré. E nós o reencontramos depois no
capítulo 16, que começa assim:
Passado o sábado, Maria Madalena e Maria, mãe de Tiago, e Salomé compraram
aromas para embalsamar Jesus. E na madrugada do primeiro dia da semana,
chegaram ao sepulcro ao nascer do sol.
E diziam entre si: quem há de retirar para nós a pedra da entrada do sepulcro?
Mas erguendo os olhos, viram que a pedra já havia sido removida; e ela era
bastante grande.
Ao entrar no túmulo, viram um jovem sentado do lado direito, vestindo uma
túnica branca; e elas ficaram assustadas. Ele, porém, disse-lhes: Não temais. Vós
procurais Jesus Nazareno, o crucificado; ele ressuscitou. [Marcos 16, 1-6.]
Trata-se do mesmo jovem. Em nenhuma outra parte da composição artística dos
Evangelhos encontramos esse jovem, que escapa aos homens no momento da
condenação do Filho do Homem e volta depois dos três dias, atuando dali em diante
como o princípio cósmico da Terra. Comparando os Evangelhos, os Senhores verificarão
que em nenhum trecho, a não ser nos dois citados, esse jovem se nos apresenta de
maneira tão grandiosa. Aí temos o necessário para compreender o profundo sentido,
dado particularmente pelo Evangelho de Marcos, ao fato de se tratar de um evento
cósmico, do Cristo Cósmico. Só agora se compreende como também a restante
composição artística desse evangelho levou tal fato em conta.
É tão estranho que, após a descrição desse significativo evento da dupla aparição
do jovem, o Evangelho de Marcos se encerre rapidamente, acrescentando apenas
algumas frases. Ora, talvez se pudesse imaginar a possibilidade do acréscimo de alguma
intensificação — talvez uma intensificação do aspecto sublime ou magnificente —, mas
não de algo comovente e significativo para a evolução terrena depois da apresentação
do monólogo de Deus, do colóquio sobre a Terra, no monte ao qual são chamados os três
discípulos que, no entanto, não conseguem compreendê-lo; depois vem o Getsêmani, a
cena no Monte das Oliveiras, quando o Cristo é forçado a admitir que os escolhidos não
são capazes de alcançar a compreensão dos fatos iminentes; a via crucis solitária, que
termina na paixão e na crucificação do Filho do Homem; sua solidão histórico-universal,
abandonado por aqueles que havia escolhido e também, aos poucos, pelo próprio
princípio cósmico. De modo que, tendo compreendido a missão e o significado do jovem
que escapa à vista e às mãos dos homens, compreenderemos também, em
profundidade, as palavras: “Meu Deus, meu Deus, por que me abandonaste?” [Marcos
15, 34.] Então ocorre o reaparecimento do jovem; em seguida há uma breve referência
à sua natureza espiritual e supra-sensível; é só devido às circunstâncias peculiares do
momento que ele aparece aos sentidos físicos, primeiramente a Maria Madalena. E
“depois disto, ele se mostrou sob outra forma a dois deles, enquanto iam para o campo”
[Marcos 16,12]. O corpo físico não poderia ter-se mostrado ‘sob outra forma’.
Depois o Evangelho chega rapidamente ao final, apontando para o futuro em
relação ao que não podia ser compreendido na época; pois a humanidade, tendo
chegado ao ponto mais baixo de sua descida, tinha de ser remetida em direção a esse
futuro. Também nessa preparação para o futuro temos de apreciar plenamente a
qualidade artística da composição. Afinal, como podemos considerar, senão como uma
referência ao futuro, o que emana do observador dessa tríplice falta de compreensão
enquanto ele estava para cumprir o Mistério do Gólgota? Podemos considerar que ele
esteja apontando a necessidade de os homens, na medida em que avançam para o
futuro, aprimorarem cada vez mais sua compreensão do que aconteceu na época.
E só conseguiremos ir de encontro a isso com uma compreensão adequada se

85
atentarmos ao que o Evangelho de Marcos nos proporciona de modo tão marcante,
admitindo o seguinte: a compreensão do que significou o Mistério do Gólgota deverá
crescer sempre, através das épocas vindouras. Por isso acreditamos que, pelo que aqui
denominamos nosso movimento antroposófico, estamos de fato cumprindo algo
apontado a princípio no Evangelho: oferecer uma nova compreensão para o que o Cristo
pretendia no mundo. Dada a dificuldade dessa nova compreensão, dada a constante
possibilidade de se confundir a natureza do Cristo, ele próprio a esclarece:
Então, se alguém vos disser: Eis o Cristo aqui!, ou: Ei-lo acolá!, não deis crédito.
Porque se levantarão falsos Cristos e falsos profetas, que farão alarde de grandes
milagres e prodígios para enganar, se possível, até mesmo os escolhidos.
Ficai, pois, de sobreaviso, e lembrai-vos de que eu vos predisse tudo. [Marcos 13,
21-23.]
Em todas as épocas, nos séculos depois do evento do Gólgota, houve suficiente
oportunidade para se observarem essas palavras de advertência. Quem tiver ouvidos
para escutar, ainda hoje poderá ouvir as palavras que nos ressoam do Gólgota: “Então,
se alguém vos disser: Eis o Cristo aqui!, ou: Ei-lo acolá!, não deis crédito. Porque se
levantarão falsos Cristos e falsos profetas, que farão alarde de grandes milagres e
prodígios para enganar, se possível, até mesmo ‘os escolhidos’.” Como podemos
posicionar-nos perante o Mistério do Gólgota? Nas poucas frases marcantes que o
Evangelho de Marcos ainda contém depois de nos ter falado tão comoventemente,
encontramos ainda a derradeira frase em que se fala dos discípulos após terem recebido
um impulso do jovem, do Cristo Cósmico, apesar de antes terem demonstrado tão pouca
compreensão. Eles saíram a pregar por toda parte, atuando com eles o Senhor, e
confirmando a Palavra com os sinais que a acompanhavam. O Senhor atuava junto!
Assim se afirma no sentido do Mistério do Gólgota. Não que o Senhor pudesse encarnar-
se de algum modo no corpo físico; quando compreendido, ele atuou junto a partir dos
mundos supra-sensíveis, e o fará sempre quando se atuar em seu nome — sem a vaidade
de apresentá-lo fisicamente —, e está espiritualmente presente entre os que, em
verdade, compreendem seu nome. Corretamente compreendido, o Evangelho de Marcos
fala do Mistério do Gólgota de modo a também encontrarmos a possibilidade de sua
correta realização. Justamente no detalhe contido somente no Evangelho de Marcos,
isto é, no curioso relato sobre o jovem que, no momento decisivo, como que se
desprende do Cristo Jesus, nos é indicado como compreender corretamente o
Evangelho. Tendo fugido, os escolhidos não vivenciaram tudo o que aconteceu e que nos
é relatado. No meio da composição, mais uma cena é inserida artisticamente; do modo
mais claro possível, nos é apresentada uma cena à qual os discípulos não se
encontravam presentes, e que não contou com a presença de testemunhas oculares.
Mesmo assim, tudo é relatado. Essa questão ainda nos ocupará, e procuraremos
esclarecê-la ainda mais — lançando, com isso, também uma luz sobre o restante.
Ora, de onde provém o restante, que os discípulos não presenciaram? As tradições
judaicas relatam isso bem diversamente do que aqui nos Evangelhos. Já que, com
relação ao Mistério do Gólgota, os que relatam a seu respeito não o presenciaram, de
onde se origina a notícia daquilo que ninguém, dentre os que propagaram o
cristianismo, pode ter visto realmente?
Essa questão nos levará a aprofundar-nos ainda mais no assunto.

10
24 de setembro de 1912

00 86
Ecce Homo — ‘Eis o Homem’
Segundo vimos ontem, no Evangelho de Marcos um trecho se exclui do convívio do
Cristo Jesus com seus discípulos escolhidos. Isso também ocorre nitidamente nos outros
Evangelhos. Assim, os acontecimentos transcorridos desde a entrega, ou seja, o
julgamento, a condenação e a crucificação do Cristo Jesus não foram presenciados pelos
que lhe estavam mais próximos. Esse é mais um traço expresso de modo bem proposital
no Evangelho. A intenção é demonstrar o caminho que os homens devem adotar para
chegar à compreensão do Mistério do Gólgota, e como na época subseqüente, ou seja,
após o cumprimento daquele mistério, eles podem chegar a essa compreensão. Ela deve
ser alcançada bem diferentemente de qualquer outro fato histórico da evolução da
humanidade. A melhor prova disso é um fato ocorrido da forma mais nítida justamente
em nossa época.
Desde o século XVIII se tem procurado para a consciência moderna, a partir dos
mais diversos pontos de vista, uma espécie de apoio, por assim dizer, para a crença no
Mistério do Gólgota. Essa procura passou pelas mais variadas fases. Até boa parte do
século XVIII, no fundo pouca gente se preocupou com a natureza dos documentos
históricos — no sentido em que se costuma falar de tais documentos — capazes de
confirmar a existência do Cristo Jesus. Nas almas humanas em questão, prevalecia de
forma por demais viva o efeito emanado do Mistério do Gólgota. O efeito que o nome do
Cristo Jesus exercera através dos séculos era demasiadamente claro para que as pessoas
sentissem necessidade de questionar se havia algum documento testemunhando sua
existência. Para os que professavam a fé no Cristo, sua existência era óbvia; e
igualmente óbvia — muito mais do que hoje se crê — era a convicção da essência ao
mesmo tempo humana e sobre-humana, divino-espiritual do Cristo Jesus.
Porém, os tempos materialistas se aproximaram cada vez mais, e com eles foram
introduzidas na evolução da humanidade todas as coisas necessariamente ligadas a essa
concepção materialista. Essa concepção não tolera a idéia da existência de uma
individualidade humana superior; e absolutamente não tolera que a personalidade
externa remeta a um elemento espiritual no homem. Para a visão materialista mais
radical de nossa época, todas as pessoas possuem a mesma aparência. Todas andam
sobre duas pernas, têm uma cabeça e um nariz em determinado lugar do rosto, dois
olhos, cabelos na cabeça, etc. Nossa época materialista vê, pois, como desse modo
todos os homens têm a mesma aparência. Por que razão deveriam as pessoas desta
época procurar algo atrás desse ser exterior? Sem dúvida isso ofende a quem não tem
como convencer-se de que, na presente encarnação, por trás dele se oculta algo muito
significativo, do mesmo modo como em seus semelhantes. O materialismo não admite
isso. Foi assim que se perdeu a possibilidade de compreender que o Cristo poderia ter
existido no homem Jesus de Nazaré. A medida que o século XIX avançava, perdia-se
totalmente a idéia da existência do Cristo. As atenções dirigiam-se cada vez mais a
Jesus de Nazaré, que tanto poderia ter nascido em Nazaré como em outro lugar e vivido
como um homem qualquer, ainda que tivesse propagado belos princípios e sofrido de
alguma maneira a morte em martírio. O homem Jesus tomava cada vez mais o lugar do
Cristo dos séculos anteriores. Isso era algo muito óbvio para a concepção materialista.
Conseqüentemente, também foi muito óbvio que no século XIX se desenvolvesse a
pesquisa sobre a vida de Jesus. Nem a teologia esclarecida procura outra coisa senão
essa pesquisa; da mesma maneira como se recolhem dados sobre a vida de Carlos
Magno, de Otto, o Grande ou de qualquer outra personalidade, assim também ela
procura verificar os dados biográficos de Jesus de Nazaré. Porém é muito difícil

87
averiguar esses dados; por enquanto, os principais documentos existentes são os
Evangelhos e as epístolas de Paulo. Mas é claro que os Evangelhos não podem,
propriamente, ter valor como documentos históricos. Ao todo eles são quatro, e para
uma observação materialista exterior até se contradizem. Contudo, no decorrer da
pesquisa sobre a vida de Jesus procurou-se todo tipo de saídas para tal situação. Nessa
pesquisa sobre a vida de Jesus, há uma certa fase da qual por ora podemos abstrair e
que, por ter incidido na época materialista, levou as pessoas a não acreditarem mais em
‘milagres’; por isso elas davam as mais estranhas interpretações a esses milagres
contados pelos Evangelhos. Essas interpretações eram mais ou menos como aquela que
explicava a aparição do Cristo Jesus no mar: ele não o teria atravessado fisicamente
com seus pés —já vimos como isso se deu —, pois na realidade os discípulos não teriam
conhecido a ordem física universal. Numa certa fase bastante exagerada da pesquisa
sobre a vida de Jesus, a coisa foi explicada como se os apóstolos estivessem passando de
barco e o Cristo Jesus estivesse caminhando na margem, de modo que as pessoas
situadas na margem oposta poderiam facilmente ter-se enganado e acreditado que ele
estivesse caminhando sobre as águas. Isso sem mencionarmos outros exageros
particularmente racionalistas como, por exemplo, no caso da transmutação da água em
vinho, quando teria sido introduzida clandestinamente [na água] uma essência de vinho!
Houve até alguém querendo explicar o batismo por João no rio Jordão pela simples
coincidência da passagem de um pombo voando naquele exato momento. Existe de
tudo. Quanta coisa mais não existe no campo da chamada ciência rigorosa, objetiva!
Podemos, porém, desconsiderar por completo todas essas excrescências.
Limitemo-nos a considerar a pesquisa mais séria — que, sem conseguir explicar o
supra-sensível, procurava materialisticamente encará-lo como um simples acessório.
Mesmo sem se acreditar no Cristo Jesus, sem se acreditar que alguém nascido em
Nazaré, como filho de um carpinteiro, tivesse estado no templo aos doze anos de idade,
etc.; mesmo excluindo-se todos os aspectos supra-sensíveis e criando-se uma
combinação do que coincide ou não nos Evangelhos, talvez fosse possível extrair algo
como uma biografia de Jesus de Nazaré. Procurou-se fazer isso da maneira mais variada
possível. As biografias eram, naturalmente, muito diferentes entre si, pois havia muita
gente empenhada em escrevê-las. Não pretendemos, porém, deter-nos na análise dos
detalhes. Houve também, na pesquisa sobre a vida de Jesus, uma época em que se
imaginava Jesus de Nazaré como um ser humano superior, talvez um Sócrates superior,
do mesmo modo como se concebe esse filósofo segundo uma ótica materialista.
E essa a pesquisa sobre a vida de Jesus, a qual pretendia sobretudo uma biografia
de Jesus de Nazaré e, no fundo, ainda deveria causar muita polêmica. Na verdade, duas
coisas nela causavam indignação: — Primeiramente, sua posição frente aos próprios
documentos. Ora, os Evangelhos não são documentos no sentido em que, hoje em dia,
falamos de documentos tal qual os consideram os historiadores modernos. O motivo
principal disso é existirem neles muitas contradições que foram mantidas ao longo do
tempo. O outro motivo é que, nos últimos anos, a pesquisa sobre a vida de Jesus foi
aprofundada por pessoas que achavam dever estudar certos trechos dos Evangelhos em
formulações repetitivas, das quais sabemos que se referem a fatos supra-sensíveis. Tais
pessoas, porém, presas a crenças materialistas, ao defrontar-se com essas coisas não
podiam simplesmente eliminá-las de sua pesquisa, como se fez na pesquisa oficial sobre
a vida de Jesus. Assim, nos últimos anos elas foram levadas a uma outra coisa, à
pesquisa do Cristo, ao passo que a pesquisa da vida de Jesus culminou no ‘homem
simples de Nazaré’, expressão cunhada por um professor moderno. Isso era bastante
conveniente a essas pessoas; agradava-lhes que não lhes fosse exigido o reconhecimento
de algo superior nos Evangelhos. Era mais conveniente falar do ‘homem simples de

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Nazaré’ do que esforçar-se para alcançar a compreensão sobre o Homem de Deus.
No entanto, o Homem de Deus foi encontrado. Surgiu então a chamada ‘pesquisa
do Cristo’, o que é bastante peculiar. Ela surgiu de uma forma bastante grotesca no
escrito Ecce Deus e outras obras de Benjamin Smith. Nelas essa pesquisa do Cristo se
empenha em demonstrar o seguinte: — Em realidade, jamais existiu um Jesus de
Nazaré; trata-se apenas de uma lenda. Contudo os Evangelhos falam do Cristo Jesus.
Quem é este Cristo Jesus? Ora, é um deus inventado, uma imagem ideal. — E é natural
que, desse ponto de vista, as pessoas tenham suas boas razões para negar a existência
real de Jesus de Nazaré; pois os Evangelhos falam do Cristo atribuindo-lhe dons que não
podem existir segundo a concepção materialista. Por isso, fica evidente que ele não
pode ter existido do ponto de vista histórico, devendo ter sido uma personagem de
ficção, nascido da arte poética da época do Mistério do Gólgota. Assim, de certo modo
houve um retorno de Jesus ao Cristo, nestes últimos anos; porém esse Cristo não
representa algo real, e sim vive apenas no pensamento humano. Hoje tudo paira no ar,
por assim dizer, nesse campo.
Naturalmente, o grande público ainda não sabe muito a respeito dos aspectos aí
envolvidos. No fundo, porém, a base da ciência relativa ao Mistério do Gólgota está
solapada, não há solo firme em parte alguma. A pesquisa sobre a vida de Jesus está
liquidada, pois não consegue comprovar coisa alguma, e a pesquisa sobre o Cristo não
pode, absolutamente, ser levada a sério. O que importa é o efeito extraordinário
provocado por aquela entidade ligada ao Mistério do Gólgota. Se tudo isso é uma
invenção poética, a época materialista deveria, então, concordar em deixar de levá-la a
sério o quanto antes; pois uma época materialista não deveria acreditar na mais
importante missão de todos os tempos se esta fosse uma simples poesia. É que a nossa
época ‘esclarecida’ foi muito longe na acumulação de contradições, ignorando até que
ponto, justamente no campo científico, faz jus aos dizeres: “Senhor, perdoai-os, pois
eles não sabem o que fazem.” Isso se aplica efetivamente a toda pesquisa moderna
sobre Jesus e sobre o Cristo que não esteja alicerçada séria e dignamente em
fundamentos espirituais.
O próprio Evangelho alude claramente ao que surgiu em nossa época da maneira
acima descrita. As pessoas que pretendem ser materialistas, não acreditando senão no
que a consciência materialista vê mediante sua percepção sensorial, não conseguem
encontrar o caminho até o Cristo Jesus. Esse caminho foi interrompido pelo fato de
aqueles mais achegados ao Cristo o terem abandonado precisamente no momento da
consumação do Mistério do Gólgota, reencontrando-o somente mais tarde — portanto,
não tendo chegado a presenciar o que aconteceu, no plano físico, na Palestina. Por
outro lado, todo o mundo sabe que não foram apresentados quaisquer documentos
confiáveis nesse sentido. Não obstante, no Evangelho de Marcos, bem como nos outros
Evangelhos, temos descrições justamente desse Mistério do Gólgota.
Em que se baseiam tais descrições? É extremamente importante analisar isso.
Tomemos a narrativa contida no Evangelho de Marcos. Ele nos indica claramente que,
depois de consumado o Mistério do Gólgota e após a ressurreição, o jovem de roupa
branca — ou seja, o Cristo Cósmico — mostrou-se novamente aos discípulos, exercendo
uma forte influência sobre eles. Compenetrados por essa força, os apóstolos — como
Pedro, por exemplo — se abriram à visão clarividente daquilo que não puderam ver com
seu olhos físicos devido à sua fuga dos acontecimentos. A visão de Pedro e dos outros
que foram chamados a tornarem-se discípulos após a ressurreição do Cristo Jesus
tornou-se clarividente, permitindo-lhes ver o Mistério do Gólgota.
Existe apenas um caminho clarividente para a compreensão desse Mistério do
Gólgota, a despeito de sua realização no plano físico. Eis o que devemos ter em mente.

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O Evangelho nos indica isso claramente ao descrever como os mais categorizados
fugiram no momento decisivo; conseqüentemente, numa alma como a de Pedro, após
ter ela recebido o impulso do Cristo ressuscitado, reluziu a lembrança do que
acontecera após a fuga. Normalmente, o ser humano recorda-se apenas do que
presenciou com seus sentidos. No caso de uma clarividência como a que surgiu nos
discípulos, ocorre, em contraste com a recordação comum, que na memória se gravam
acontecimentos não presenciados diretamente pela própria pessoa. E assim, baseado
em sua memória, Pedro ensinava àqueles dispostos a escutá-lo, transmitindo-lhes o que
lembrava mesmo sem tê-lo presenciado.
Foi desse modo que se chegou à revelação do Mistério do Gólgota e sua doutrina.
Porém o impulso que partiu do Cristo e se transmitiu a apóstolos como Pedro, por
exemplo, pôde propagar-se aos discípulos desses apóstolos. Um desses discípulos de
Pedro foi aquele que originalmente compilou — apenas em caráter verbal — o assim
chamado Evangelho segundo Marcos. Dessa maneira o impulso evidenciado em Pedro
transmitiu-se à alma de Marcos, de modo que o próprio Marcos viu reluzir nela o fato
realizado em Jerusalém como Mistério do Gólgota. Marcos foi discípulo de Pedro por
longo tempo. Depois chegou a um lugar onde verdadeiramente dispôs do ambiente ideal
para conferir a seu Evangelho justamente o matiz requerido por este.
Durante todas as nossas considerações — talvez ainda surjam outros aspectos que
possamos abordar — vimos que o Evangelho de Marcos nos transmite nitidamente toda a
grandeza e todo o significado cósmicos do Cristo. O autor original desse evangelho foi
estimulado a enaltecer a grandeza cósmica do Cristo por influência, dentre outros
motivos, do local em que se instalou após ter sido discípulo de Pedro. Ele se transferiu
para Alexandria, no Egito, onde nessa época a erudição teosófico-filosófica dos judeus
possuía um certo nível; aí ele pôde assimilar os melhores aspectos da gnose paga. Lá
pôde conhecer as concepções, muito difundidas naquele tempo, relativas à origem da
entidade humana a partir do espírito, ao contato da entidade humana com Lúcifer e
Árimã, à acolhida das forças luciféricas e arimânicas na alma do homem. Ele pôde
extrair da gnose paga tudo o que propiciava a compreensão da origem do homem a
partir do Cosmo, no decorrer da construção do nosso planeta. Mas justamente nesse
lugar, situado no Egito, Marcos também pôde ver o forte contraste entre a
predestinação original do ser humano e o resultado de sua evolução.
Isso se evidencia mais fortemente na cultura egípcia, naquela cultura emanada das
revelações mais sublimes, exteriorizadas em sua arquitetura — principalmente nas
pirâmides e palácios — e na cultura da Esfinge. Porém essas grandes obras da cultura
egípcia foram as primeiras a entrar em decadência, tendo sucumbido cada vez mais aos
piores abusos da magia negra e da corrupção espiritual, especialmente no terceiro
período cultural. Quem possuísse a necessária visão espiritual ainda conseguia
vislumbrar os mais profundos segredos no que se praticava no Egito, pois tudo partia da
pura sabedoria original de Hermes; mas para isso era preciso possuir uma alma capaz de
enxergar profundamente, e não a corrupção existente. Já na época de Moisés essa
corrupção havia avançado muito, tendo já ele sido obrigado a extrair da cultura egípcia
o que nela havia de melhor — e não obstante, quase invisível a uma alma tão nobre
como a sua — para que isso pudesse ser preservado para a posteridade por intermédio
da alma mosaica. Então a corrupção prosseguiu, no sentido espiritual.
O modo como a humanidade chegou a decair, a converter-se totalmente ao
materialismo, principalmente em relação às suas concepções, eis o que se apresentava
vivamente diante da alma de Marcos. E ele experimentou justamente algo que hoje o
homem pode experimentar de novo — se bem que de forma bem diversa, mas com
algumas semelhanças —, mas, na verdade, apenas a pessoa dotada de sentimento e

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sensibilidade para tal. É que hoje estamos efetivamente vivenciando o renascimento da
cultura egípcia. Muitas vezes eu enfatizei as curiosas concatenações ocorridas durante a
evolução da humanidade, tendo dito que dentre os sete períodos culturais consecutivos
de uma era maior destaca-se o quarto período, ligado à cultura grega e ao Mistério do
Gólgota. Porém o terceiro período — com a cultura egipto-caldaica — faz-se sentir
novamente em nossa atual cultura, embora de forma não-espiritual, na ciência
moderna. Em nossa atual cultura materialista, até mesmo em suas manifestações
culturais exteriores, presenciamos um certo ressurgimento desse terceiro período
cultural dentro do quinto. Da mesma forma, o segundo período cultural reaparecerá no
sexto e o primeiro no sétimo. E assim que os diversos períodos se relacionam. Temos
salientado isso freqüentemente. Hoje se vivência o que, naquele tempo, um espírito
como o de Marcos pôde vivenciar de modo bem mais intenso.
Observando a cultura atual — e não há necessidade de dizer isso ao mundo
exterior, pois este não suportaria ouvi-lo — e abstraindo-nos dos fenômenos mais
radicais de corrupção, poderemos dizer o seguinte: tudo se tornou mecanizado; na
verdade, nossa cultura materialista venera apenas os mecanismos, se bem que as
pessoas não chamem isso de orar ou venerar. Porém as forças da alma que antigamente
eram dirigidas às entidades espirituais são, hoje, orientadas para as máquinas e os
mecanismos, sendo-lhes dedicada uma atenção que outrora certamente era dedicada
aos deuses. Isso ocorre principalmente com relação à ciência, essa ciência que nem
mesmo sabe como é fraca sua ligação com a realidade, por um lado, e com a verdadeira
lógica, por outro.
De um ponto de vista mais elevado, podemos afirmar que hoje existem na
humanidade aspirações e um anseio profundamente intensos. Numa conferência em
Munique, falamos sobre o anseio em nossa época, e especialmente sobre o modo como
este se manifesta em cada alma. Na ciência ‘oficial’ propriamente dita, contudo, esse
anseio não existe; existe, isso sim, uma certa satisfação saturada, porém uma satisfação
ligada a algo estranho: o irreal e o ilógico. Em nenhum lugar essa ciência é capaz de
reconhecer quão profundamente se encontra enredada no inverso de qualquer lógica.
Tudo isso é percebido e vivenciado por todos nós, e o que ocorre realmente é que na
evolução da humanidade um pólo deve inflamar-se no pólo oposto. É justamente essa
insuficiência da ciência exterior, esse seu elemento irreal e ilógico, esse ufanismo sem
ao menos suspeitar de sua verdadeira situação, que paulatinamente fará surgir na alma
do homem a reação mais nobre, o anseio pelo espiritual em nosso tempo.
As pessoas profundamente absorvidas por nosso mundo antinatural e ilógico ainda
passarão muito tempo zombando da Ciência Espiritual, pilheriando com ela ou até
apontando nela uma série de perigos. Pela força interior dos fatos, porém, o pólo
oposto se acenderá espontaneamente. E se os que entendem um pouco dessas coisas
não caíssem na doença das transigências e enxergassem as coisas com clareza, o
processo poderia ser mais rápido do que é hoje. Ora, a experiência sempre se repete:
basta aparecer um erudito e declarar algo que um outro acredite ser ‘totalmente
antroposófico’, e logo se faz um grande alarde a respeito. E se alguém chega até mesmo
a pregar no púlpito algo que um outro acredite também ser ‘totalmente antroposófico’,
então é feito um alarde ainda maior. O que importa não é fazer essas transigências, e
sim nos entregarmos inequivocamente à vida espiritual e permitir que ela atue sobre
nós por meio de seus impulsos. Quanto mais nos convencermos de que a chama interna
da vida espiritual deve ser acesa, não havendo razão alguma para adotarmos algo
despropositado do raciocínio materialista do nosso tempo, tanto melhor para nós. Isso é
diferente de demonstrar que a ciência verdadeiramente progressista está em harmonia
com a pesquisa espiritual. Isso é possível demonstrar — realmente é possível, passo a

91
passo.
Ora, essa ciência materialista comete, em cada uma das páginas de suas obras,
absurdos lógicos do tipo apontado repetidamente e de maneira humorística por um de
nossos amigos; ele nos chamou a atenção para o lapso lógico do professor Schlaucherl
(extraído de Fliegende Blätter8), que queria provar por qual via um sapo podia
realmente ouvir. Para esse fim, o professor fez o sapo pular sobre a mesa e depois
bateu sobre o tampo. O sapo pulou para fora; portanto, ele escutou. Depois o professor
lhe arrancou as pernas e bateu novamente sobre a mesa. Dessa vez o sapo não pulou;
portanto, o sapo escutava com as pernas. Ora, quando ainda as possuía, ele conseguia
pular para fora da mesa ao som das batidas, mas depois não o fez mais.
Aliás, os eruditos também usam o sapo para suas experiências; suas conclusões
lógicas em outros campos seguem exatamente esse exemplo, tal como na tão decantada
pesquisa do cérebro. Nela se aposta o seguinte: — Se existe esta ou aquela parte do
cérebro, o homem pode ter, por exemplo, a memória vocabular, ou ser capaz de nutrir
este ou aquele pensamento. Se essa parte deixar de existir, não lhe será mais possível
ter esses pensamentos, ou ele perderá a memória vocabular — como no caso do sapo,
que escuta com as pernas. Não existe lógica alguma nessas coisas. A constatação de que
o ser humano consegue pensar com uma parte de seu cérebro e, na falta desta, não o
consegue mais, não tem fundamento diferente do que no caso do sapo que não escuta
ao lhe arrancarem as pernas. Trata-se da mesma coisa, só que as pessoas não percebem
que todas essas conclusões não se baseiam senão em falhas de raciocínio. Seria possível
comprovar essas falhas em quase tudo o que hoje é aceito como fato científico
concreto. Todavia, quanto mais enganos se cometem, mais se glorifica a ciência
materialista e mais se vocifera contra a Ciência Espiritual.
Isso produzirá cada vez mais a reação mais nobre, o anseio pela Ciência Espiritual.
Só que será uma reação adequada ao nosso tempo, porém a mesma que uma alma como
a de Marcos teve de experimentar numa época que evidenciava claramente a
decadência da humanidade quanto à sua antiga elevação espiritual, bem como sua
descida ao mero apego ao material. Isso provocou nele a tão profunda compreensão
para o fato de o impulso máximo acontecer num âmbito supra-sensível; e nisso Marcos
recebeu o apoio de seu mestre. O que Pedro lhe transmitiu não foi algo que podia ter-se
originado numa tradição sensorial do Mistério do Gólgota, como se alguém pudesse ter
visto com seus olhos físicos o que ocorrera em Jerusalém; tudo isso foi investiga do
posteriormente, pela clarividência. Foi desse modo que surgiram todas as notícias sobre
o Cristo Jesus e o Mistério do Gólgota. O Mistério do Gólgota foi um acontecimento
desenrolado no plano físico, mas que só pôde ser vislumbrado posteriormente, pela
clarividência. Peço-lhes ter bem em mente que o Mistério do Gólgota foi um evento
físico-sensível, mas que o caminho para sua compreensão deve ser procurado pelas vias
supra-físicas ou supra-sensíveis, não obstante os relatos dos documentos tradicionais.
Quem não compreender isso poderá discutir o valor de um ou de outro Evangelho.
Quem, no entanto, conhece os fatos não terá necessidade de questionar tudo isso: já
sabe que devemos ler através das comunicações falhas que os Evangelhos apresentam
freqüentemente, para atentarmos ao que a pesquisa clarividente consegue desvendar
ainda hoje. Pesquisando a verdade do que sucedeu naquela época, saberemos, pelas
reconstituições segundo os dados da Crônica do Akasha, de que maneira devemos
conceber os Evangelhos e como devemos interpretar os diversos trechos relativos ao que
se afigurou como a verdadeira dignidade, a verdadeira essência do ser humano, naquela
época em que a humanidade havia caído mais profundamente de suas alturas

8
‘Folhas volantes’, folhetim humorístico da época. (N.T.)

92
espirituais.
As potências divino-espirituais deram ao homem sua imagem, sua forma exterior.
Desde os antigos tempos lemúricos, porém, o conteúdo dessa forma exterior se
encontrara sempre sob a influência das forças luciféricas, e no decurso posterior da
evolução também das forças arimânicas. Foi sob tais influências que chegou a
desenvolver-se o que os homens chamaram de ciência, conhecimento, compreensão.
Não é de estranhar que justamente naquele tempo pudesse ter sido apresentada à
humanidade a verdadeira essência supra-sensível do ser humano, e que os homens mal a
tenham reconhecido, mal tenham tomado ciência da nova situação humana. O saber, o
conhecimento do homem havia-se envolvido cada vez mais com a existência nos
sentidos, distanciando-se cada vez mais da verdadeira essência humana. É isso o que
devemos considerar ao dirigirmos mais uma vez nossa atenção ao Filho do Homem
abandonado, à figura do homem apresentada no momento em que, segundo o Evangelho
de Marcos, o Cristo Cósmico já se encontrava numa ligação bastante frágil com ele.
Perante a humanidade que presenciava tudo, lá estava o Homem, o Homem em sua
figura tal qual lhe havia sido dada pelas potências divino-espirituais. Ele se apresentava,
porém, enobrecido e espiritualizado pela atuação do Cristo em Jesus de Nazaré havia
três anos. Era assim que ele se apresentava a seus semelhantes. O entendimento dos
homens havia chegado somente até ao ponto em que a influência milenar de Lúcifer e
Árimã assim o permitira. À sua frente, porém, estava o homem que durante três anos
havia expurgado essas influências, reconstituindo diante dos outros homens o que fora o
Homem antes da vinda de Lúcifer e Árimã. Foi só pelo impulso do Cristo Cósmico que o
homem pôde ser reconduzido ao estado em que se encontrava ao ser colocado no
mundo físico, oriundo do mundo espiritual. Lá estava o Espírito da Humanidade, o Filho
do Homem, diante dos que naquela época eram os juizes, os carrascos de Jerusalém;
porém ele se encontrava no estado que o homem podia alcançar após expurgar de sua
natureza humana tudo o que havia sido trazido à Terra. Ao consumar-se o Mistério do
Gólgota, ali estava o Homem diante de seus contemporâneos, diante do qual eles
deveriam ter-se postado em veneração, dizendo: “Eis-me aí em minha verdadeira
essência, em meu ideal máximo; eis-me aí na forma à qual devo chegar mediante o mais
ardente esforço que possa provir de minha alma. Aqui estou eu diante do único ser
digno de ser adorado e venerado, diante do divino em mim, a cujo respeito os apóstolos
deveriam ter declarado, caso tivessem a capacidade do autoconhecimento: ‘Nada existe
de comparável, em essência e grandeza, ao que se nos apresenta no Filho do Homem’.”
Eis o autoconhecimento que a humanidade deveria ter possuído naquele momento
histórico. Mas o que ela fez? Cuspiu no Filho do Homem, açoitou-o e levou-o ao local da
crucificação. Esse é o dramático ponto de transição entre o que deveria ter acontecido
— o reconhecimento de que naquele momento ocorria algo incomparável no mundo — e
o que nos é apresentado. O ser humano nos é apresentado como alguém que, ao invés
de conhecer a si próprio, desabona-se e se mata por não se conhecer, e somente
mediante essa lição cósmica será capaz de receber o impulso para, paulatinamente,
conquistar sua essência na perspectiva posterior da evolução terrestre.
Assim ocorreu o momento histórico-universal, e assim devemos caracterizá-lo se
quisermos fazê-lo corretamente, conforme nos é indicado pelo Evangelho de Marcos em
frases marcantes e majestosas. Ora, tudo isso não é para ser apenas compreendido, e
sim também sentido. Daquele descrédito na própria essência originou-se então o que foi
descrito em Karlsruhe, em meu ciclo de conferências ‘De Jesus a Cristo’ 9, como o
9
Conferências proferidas de 4 a 14.10.1911 em Karlsruhe, Alemanha: vide Von Jesus zu Christus, GA-Nr.
131 7ª ed. Dornach, Rudolf Steiner Verlag, 1988). Edição prevista em português, trad. de Rudolf Lanz (S.
Paulo: Antroposófica, 1996). (N.E.)

93
‘fantoma’.10 Pelo fato de o homem desprestigiar sua própria essência, o que era imagem
e semelhança da Divindade se transformou em ‘fantoma’, que se prolifera e,
multiplicado, pode penetrar nas almas durante a evolução posterior da humanidade, tal
como foi apresentado no ciclo de Karlsruhe.
Deste ponto de vista, notaremos uma grande diferença entre o que o Evangelho
segundo Marcos deseja realmente transmitir e o que hoje se pretende dele. Quem
compreende um evangelho, e em particular o Evangelho de Marcos, de modo a sentir o
que ele transmite em sua maravilhosa composição artística e na profundidade de seu
conteúdo, verá esse sentimento transformar-se numa realidade interior verdadeira — a
qual, aliás, deve existir quando se busca uma relação com o Cristo Jesus. A alma não
poderá deixar de entregar-se à contemplação, imbuída de sensibilidade, chegando à
seguinte idéia a respeito do Evangelho de Marcos: “Como os homens que estiveram em
torno do Filho do Homem, seres humanos como eu, estiveram presos ao engano, quando
deveriam ter enxergado a si mesmos em seu mais elevado ideal!”
Sendo pertencente à nossa era materialista, alguém pode facilmente escrever ou
deixar escapar uma observação que hoje em dia se ouve ou se lê com freqüência,
principalmente entre os monistas supersticiosos — quero dizer, monistas esclarecidos:
“Por que a existência é assim? Ninguém ainda conseguiu dar uma resposta a essa
pergunta. Por que sofremos dor? O Buda, o Cristo, Sócrates, Giordano Bruno, não foram
capazes de levantar sequer uma ponta desse véu.” Essa questão é repetida em
incontáveis variações. As pessoas que escrevem isso não percebem que se declaram
muito mais elevadas do que o Buda, o Cristo, Sócrates e outros, e que entendem as
coisas nesse sentido.
Como é que as coisas poderiam ser diferentes numa época em que qualquer
professor particular pensa compreender melhor os fatos acontecidos na História, sendo
que qualquer um deles escreve seus livros como uma obrigação profissional?
Esta declaração poderia parecer motivada por uma mania de criticar nossa época.
Não, não se trata disso. É que essas coisas devem tocar nossas almas, pois só assim
adquiriremos o correto distanciamento para apreciar algo tão extremamente grandioso
como os Evangelhos, em particular o Evangelho de Marcos. Não é por outro motivo,
senão pelo fato de os homens só conseguirem elevar-se às alturas espirituais com muita
lentidão, que essas coisas são constantemente mal-entendidas e apresentadas às
pessoas nas mais extremas caricaturas. Os Evangelhos são grandiosos em todos os seus
detalhes, e no fundo todo detalhe nos ensina algo extraordinário.
Assim sendo, ainda no último capítulo do Evangelho de Marcos podemos ainda
aprender algumas coisas. Certamente eu deveria falar ainda por muito tempo, se
quisesse expor todos os grandiosos pensamentos desse Evangelho. Contudo, um detalhe
logo no início do capítulo 16 nos mostra quão profundamente o autor penetrou nos
mistérios da existência. Foi justamente o autor do Evangelho de Marcos quem penetrou
fundo nos segredos da existência. Ele sabia que — conforme acabamos de citar — a
humanidade descera de sua altura espiritual para cair no materialismo. Sabia quão
pequena era a capacidade humana de compreensão quanto à essência do homem, e o
quanto era reduzida a disposição das pessoas, na época do Mistério do Gólgota, para
entender o que lá ocorreu.
Ora, lembrem-se de algo que freqüentemente tenho exposto a respeito dos
elementos masculino e feminino, dizendo que o elemento feminino — não como
individualidade, como a mulher isolada, mas como ‘feminilidade’ — de certo modo não
10
Neologismo proposital traduzido de Phantom, distinguindo-se de ‘'fantasma’' (Gespenst) segundo a
concepção do próprio Autor. Vide tb. Rudolf Steiner, Seres elementares e seres espirituais, 2ª conf, trad.
de Christa Glass (2ª ed. São Paulo: Antroposófica, 1996). (N.E.)

94
desceu totalmente ao plano físico, enquanto o homem — novamente não como
indivíduo, não como o ser em cada encarnação, mas como a própria ‘masculinidade’ —
ultrapassou o ponto mais baixo, de modo que em realidade a verdadeira essência
humana se encontra no meio, entre o homem e a mulher. É por isso que o ser humano
alterna o sexo em encarnações subseqüentes. É fato conhecido que a mulher é capaz de
assimilar mais facilmente as idéias espirituais, devido a diferenças na formação de seu
cérebro e no modo de usá-lo. Por outro lado, devido à sua corporeidade física exterior,
o homem é muito mais inclinado a identificar-se com o materialismo, porque — dito de
um modo corriqueiro — seu cérebro é mais rígido. O cérebro feminino é mais maleável,
menos resistente, não tão enrijecido — sem entrar aqui absolutamente em questão a
personalidade individual. Aí esse aspecto não deve ser levado em conta, nem no bom
nem no mau sentido; pois há muito corpo feminino com uma cabeça bastante teimosa,
para não falar do contrário. Porém no geral o cérebro feminino é mais facilmente
utilizável quando se trata da compreensão de algo especial, contanto que exista
vontade para tal. E por isso que o evangelista faz as mulheres aparecer primeiro, uma
vez consumado o Mistério do Gólgota.
Passado o sábado, Maria Madalena e Maria, a mãe de Tiago, e Salomé compraram
aromas para embalsamar Jesus.
E é para elas que primeiro aparece o jovem, ou seja, o Cristo Cósmico; só depois
ele aparece aos adeptos masculinos. Até nesses detalhes de composição entra o
verdadeiro ocultismo, a verdadeira Ciência Espiritual — nos detalhes da composição e no
conteúdo dos Evangelhos, e em especial do marcante Evangelho de Marcos.
É só sentindo desse modo o que emana dos Evangelhos, deixando-nos estimular por
nossos sentimentos e emoções, que encontraremos o caminho para o Mistério do
Gólgota. Então não existirá mais a dúvida sobre sua autenticidade, num sentido his-
tórico exterior. Essa dúvida pode ficar para ser examinada por quem nada entende do
assunto. Aqueles, porém, que encontrarem o caminho da Ciência Espiritual para sentir e
compreender os Evangelhos verificarão que, a princípio, estes não pretendem ser
documentos históricos, e sim textos a serem vertidos para nossas almas. E então estas
se sentirão comovidas — sem documentos — pelo que sentirem e viverem ao dirigir o
olhar para o Mistério do Gólgota, ao perceber a decadência da compreensão, da
sabedoria e do conhecimento humano perante a entidade humana que deveria ter sido
venerada em sábio autoconhecimento como ideal supremo, ao invés de ser tripudiada e
crucificada. Desse sentimento virá então a energia suprema para a elevação ao que o
ideal do Gólgota irradia para todos os que desejam senti-lo e percebê-lo. A ligação da
Terra com os mundos espirituais só será percebida pelos homens quando estes
compreenderem que a Realidade Espiritual, o Cristo, viveu como entidade cósmica no
corpo de Jesus de Nazaré; quando compreenderem que todos os outros líderes da
humanidade foram enviados pelo Cristo como seus precursores, como aqueles que
deveriam preparar-lhe o caminho, para que ele pudesse ser reconhecido e
compreendido. Em verdade, todos esses preparativos foram de pouca valia no momento
da consumação do Mistério do Gólgota, pois no momento crucial tudo falhou. Porém
chegará o tempo em que as pessoas compreenderão não apenas o Mistério do Gólgota,
mas também os outros acontecimentos agrupados em torno dele, os quais ajudarão a
compreender cada vez mais o próprio Mistério do Gólgota.
Por enquanto, talvez os povos europeus ainda sejam encarados com incredulidade
por não seguirem o exemplo de muitos outros povos, que só reconhecem como
verdadeira religião as confissões religiosas nascidas de suas próprias nações ou raças —
como, por exemplo, na índia, onde vale apenas o que provém do próprio sangue. Ah,

95
sim, no campo da Teosofia fala-se freqüentemente da igualdade e do reconhecimento
de todas as religiões, enquanto na verdade só se quer impingir a própria, declarando-a
como a religião da sabedoria11. Os europeus não podem fazer isso, pois nenhum povo
europeu possui ainda hoje alguma divindade nacional, surgida em sua própria terra,
como ocorre entre os povos asiáticos. O Cristo Jesus pertence à Ásia, e os povos
europeus o adotaram e se deixaram influenciar por ele. Não existe qualquer egoísmo na
acolhida do Cristo; e seria uma total deturpação dos fatos a possível comparação do
modo de expressão europeu relativo ao Cristo Jesus com o de outros povos em relação
às suas divindades nacionais, como por exemplo os chineses ao falar de Confúcio ou os
hindus ao referir-se ao Buda ou a Krishna.
Sobre o Cristo Jesus pode-se falar meramente do ponto de vista da História
objetiva, que basicamente exorta ao autoconhecimento do homem, tão deturpado na
época do Mistério de Gólgota. Por seu intermédio, contudo, foi dada à humanidade a
possibilidade de tomar consciência de si mesma, embora para o conhecimento, para o
conhecimento exterior, naquela ocasião tudo tenha falhado na humanidade, com
relação ao Mistério do Gólgota, conforme vimos. Um dia, porém, todas as religiões se
entenderão e colaborarão cada vez mais entre si, a fim de compreender o significado do
Mistério do Gólgota e tornar seu impulso acessível aos homens.
Se um dia as pessoas se convencerem de que, ao se falar do Cristo, não se estará
tratando de uma confissão religiosa egoísta, e sim de um fato histórico da evolução da
humanidade igualmente relativo a todas as confissões religiosas, então será possível
alcançar o cerne da sabedoria e da verdade em todas as religiões. E a medida da não-
aceitação da Ciência Espiritual em seu verdadeiro sentido indica o grau em que o
significado mais profundo e verdadeiro do Mistério do Gólgota ainda é rejeitado; por
outro lado, a medida da compreensão relativa à Ciência Espiritual é dada pela mesma
medida de compreensão pelo Mistério do Gólgota. Assim, o cristão que adere à Ciência
Espiritual se entende com todos os outros seres humanos do mundo. Num acesso de
orgulho desmedido, todavia perfeitamente justificado e compreensível, o representante
de um outro sistema religioso poderá dizer: “Seus cristãos têm apenas uma única
encarnação de Deus, enquanto nós temos várias, possuindo, portanto, uma riqueza
maior de divindades.” O cristão não deveria responder a isso colocando a questão no
mesmo nível com relação ao Cristo Jesus, pois nesse caso não teria compreendido o
Mistério do Gólgota. O correto é o cristão poder dizer — também à pessoa que pode
demonstrar muitas encarnações do fundador de sua religião: “Sim, certamente, mas
todos os que se reencarnaram várias vezes não puderam consumar o Mistério do
Gólgota. Basta procurar isso, do modo como é apresentado no cristianismo, em qualquer
das outras religiões!”
Em outras ocasiões, já expus que, acompanhando a vida do Buda, chegamos ao
ponto correspondente à transfiguração do Cristo no Evangelho de Marcos — ponto em
que, atingindo o extremo de sua vida humana, o Buda se dissolve em luz, o que
corresponde à verdade esotérica. O que acontece com o Cristo na cena da
transfiguração — conforme se encontra exposto em O cristianismo como fato místico —
é que ele não apenas vivência a transfiguração como indivíduo isolado, mas conversa
com Elias e Moisés no monte, isto é, no local onde geralmente se passam os
acontecimentos cósmicos. Só após essa cena da transfiguração é que principia o
Mistério do Gólgota. Os documentos evidenciam esse fato tão claramente que no fundo
sua negação parece impossível, pois ele é reconhecido até pela confrontação entre o

11
Alusão ao movimento teosófico de Annie Besant, do qual Rudolf Steiner se desligara (v. ‘Nota preliminar’
do Autor). (N.E.)

96
que se passou na vida do Buda e na do Cristo. E, no fundo, também o que eu disse hoje
sobre os sentimentos que afloram em nossas almas, ao encararmos a grande
incompreensão dos homens para com o Filho do Homem, é apenas uma conseqüência do
que já foi apontado em meu livro O cristianismo como fato místico.

***

Ao final das considerações sobre Evangelho de Marcos, posso dizer, em certo


sentido, o seguinte: o programa referente ao estudo do cristianismo, proposto no início
de nosso movimento antroposófico na Europa, está detalhadamente concluído. Ao
iniciarmos, estabelecemos as bases para sabermos até onde as religiões podem revelar
uma evolução que culmina no problema do Cristo. Estudamos cada um dos Evangelhos e
os diversos fenômenos universais; procuramos aprofundar-nos cada vez mais nos
labirintos da vida oculta, elaborando o que havia sido exposto na ocasião 12Procuramos
prosseguir em nosso trabalho elaborando coerentemente detalhes, fato que havia sido
expresso claramente no ponto de partida. Não seria esse o procedimento mais natural a
adotar quanto ao problema Crístico, no âmbito do movimento antroposófico na Europa
Central? Tendo em vista todo esse trabalho, é inconcebível que nos exijam converter-
nos doravante, como o fizeram algumas pessoas, a uma idéia do Cristo inventada três
anos atrás. Ultimamente, declarou-se várias vezes que a Sociedade Teosófica deveria
ser um campo para todas as opiniões. Certamente deveria sê-lo. Todavia, o assunto
adquire um outro aspecto quando se exige que ela seja também um campo para
diferentes opiniões subseqüentes emitidas pela mesma personalidade, ou seja, quando
essa mesma personalidade muda de opinião, como há quatro anos atrás, e exige que a
Sociedade Teosófica seja um campo para essa opinião. Talvez isso seja possível, mas
não se pode exigir que os outros também o façam, e nem que sejam chamados de
heréticos. Contudo, na Europa Central se vai mais além: chama-se o branco de preto e o
preto de branco!
Este é justamente um momento solene, em que colocamos um ponto final em
nosso trabalho dos últimos dez anos, de acordo com o programa. Mantenhamo-nos
firmes nele, sem desanimar nem demonstrar incompreensão para com os outros. Não
obstante, desejamos ter clareza em nossas ações, mantendo-nos firmes em nossas bases
sem desnortear-nos por nada, mesmo que chamem o branco de preto e o preto de
branco. Ou mesmo que se afirme, em relação a tudo o que é realizado dentro do
movimento antroposófico da Europa Central, que este abriga fanáticos e dogmáticos,
embora cada um esteja empenhando muita energia para dar o melhor de si sem dar
satisfações a autoridade alguma; ou mesmo se as pessoas que falam de um dogma que
mal completa três anos pretendam criar uma oposição a esse terrível dogma da Europa
Central. É doloroso verificar os disparates cometidos hoje em dia com o nome do Cristo;
porém isso também nos autoriza a não ver no uso de tal palavra mais do que um termo
técnico objetivo. Estamos apenas assinalando o fato em questão, sem emoção, sem
crítica; cabe ao próprio fato objetivo a culpa de ser designado com tal palavra.
Quanto a nós, os fatos surgidos de uma verdadeira compreensão de algo como o
Evangelho segundo Marcos não conduzem a outro fim senão o de continuarmos
trabalhando no sentido que reconhecemos como correto, tendo-nos provado sua
validade não só pelo programa geral, já deduzido dos fatores positivos, mas também
pelo que todos os dias acrescentamos de novo aos diferentes fatos concretos e questões
12
V. os ciclos de conferências do Autor sobre os três outros Evangelhos: O Evangelho segundo Lucas, O
Evangelho segundo Mateus e O Evangelho segundo João, trad. Jacira Cardoso (2ª ed. São Paulo:
Antroposófica, 1996). (N.E.)

97
emergentes. O prosseguimento, passo a passo, no estudo dos fenômenos que
pretendemos pesquisar nos deu uma confirmação do que foi dito em nosso ponto de
partida.
Desta forma, não poderá surgir em nós, mesmo ao contemplarmos o Supremo, um
outro sentimento que não uma genuína e autêntica aspiração à verdade. Quando nos
aproximamos dessas coisas de modo realmente espiritual, elas trazem em si a força
sanadora necessária para dissipar o erro e para nos convencermos de que, no fundo,
somente a falta de vontade para conhecer a verdade é que impede os homens de trilhar
o caminho que lhes é aberto do terrestre para o cósmico ao se pesquisar o Cristo
Cósmico em Jesus de Nazaré. Este caminho se nos evidencia claramente ao
compreendermos uma obra como o Evangelho de Marcos. Tais obras, abrindo-se à
compreensão das pessoas pela contemplação científico-espiritual, serão difundidas
paulatinamente entre os homens em geral, sendo cada vez mais bem compreendidas. E
cada vez mais serão vistas no Evangelho as palavras que tiveram de ser encontradas,
sem mesmo levar em conta as aparências materiais, pela observação clarividente
posterior ao Mistério do Gólgota. Os evangelistas descreveram os acontecimentos físicos
posteriormente, a partir da observação clarividente. É preciso compreender e
reconhecer a necessidade disso, uma vez que os contemporâneos dos acontecimentos na
Palestina não podiam entender o que se passava; pois o próprio evento deveria provocar
o impulso para sua compreensão. Antes dele, não poderia ter existido ninguém capaz de
compreendê-lo; primeiro ele deveria exercer seu efeito, para depois ser compreendido.
É que o próprio Mistério do Gólgota é a chave para sua compreensão. O Cristo tinha de
completar toda a sua atuação até o Mistério do Gólgota; só então poderia começar a
emanar de sua pessoa a compreensão para seus feitos. Então por meio do que ele era
pôde acender-se o Verbo, que é simultaneamente a manifestação de sua verdadeira
essência.
Assim sendo, por intermédio do que o Cristo era se acende o Verbo primordial, que
nos é comunicado e pode ser reconhecido na contemplação clarividente — esse Verbo
que também anuncia a verdadeira natureza do Mistério do Gólgota. Podemos também
pensar nesse Verbo ao falar das próprias palavras do Cristo, das palavras que ele
também acendeu nas almas dos que podiam compreendê-lo, tendo assim conseguido
caracterizar e descrever sua essência a partir da vivência da alma humana.
Os homens acolherão os impulsos do Mistério do Gólgota enquanto a Terra existir.
Depois virá um intervalo entre a Terra' e ‘Júpiter’, provocando uma transformação não
apenas do próprio planeta, mas também de tudo o que o circunda, entrando o conjunto
no caos e passando por um pralaya. Não só a própria Terra se transformará durante o
pralaya, mas também o céu pertencente a ela e que lhe foi dado pelo Verbo anunciado
pelo Cristo. O Verbo aceso por ele nos que o reconheceram e que persistirá nos que o
reconhecem, eis a verdadeira essência da existência terrestre. Uma compreensão
correta nos é proporcionada pela verdade do versículo que nos indica a evolução
cósmica, a mudança pela qual passará o aspecto da Terra e o aspecto do Céu depois que
a Terra tiver alcançado seu objetivo, e Terra e Céu tiverem passado. Porém esse Verbo
do Cristo, que pode ser proferido sobre o Céu e a Terra, perdurará se compreendermos
corretamente os Evangelhos. Compreendendo seus mais íntimos impulsos sentimos não
só a verdade, mas também a força do Verbo que se nos comunica sob forma de energia
e nos mantém firmes sobre o solo terrestre, fazendo-nos olhar à nossa volta enquanto
acolhemos com plena compreensão as palavras:
Céu e Terra passarão, porém as minhas palavras não passarão. [Mateus 24, 35.]
As palavras do Cristo jamais passarão, mesmo que o Céu e a Terra passem. O

98
conhecimento oculto nos permite falar assim, pois as verdades que foram ditas sobre o
Mistério do Gólgota perdurarão. O Evangelho de Marcos inflama em nossas almas o
conhecimento de que o Céu e a Terra passarão, mas o que podemos saber sobre o
Mistério do Gólgota nos acompanhará por todas as eras vindouras, mesmo quando Céu e
Terra tiverem passado.

99

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