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UMA IDÉIA

TODA AZUL
Marina Colasanti

AS FADAS ESTÃO VOLTANDO

Marina Colasanti inova, falando de fadas e de


unicórnios. Inovação corajosa. Quase uma volta às
raízes. É preciso ser uma grande escritora, ter um
talento ímpar e subir a um nível emocionalmente
estável para ousar inovações dessa ordem.
Ganham as crianças, os adultos, jovens
de todas as idades.

2.a Edição
O LIVRO

Este é um livro de contos de fadas, com cisnes, unicórnios, princesas. E antes que
alguém se espante com a temática, num mundo de avançada tecnologia espacial,
acho importante esclarecer que meu interesse e minha busca se voltam para aquela
coisa intemporal chamada inconsciente.

Não há, para as emoções, idade ou história. Nem eu, ao tentar escrevê-las, quis me
dirigir a pessoas deste ou daquele tamanho. Preocupei-me apenas em erguer estas
construções simbólicas, certo de que o material com que lidava era imemorial, e
encontraria em outros ressonância.

Teria sido talvez mais conveniente e fácil elaborar narrativas capazes de seduzir por
sua modernidade ou de espantar por seu realismo cotidiano. As fadas, eu sei, são por
muitos acusadas de alienadas e alienantes, por demais afastadas do século XX. Mas
sei também que as abóboras nunca viraram carruagens, nem mesmo no tempo em
que as carruagens eram o veículo mais veloz.

Muda a realidade externa. Mas a nossa realidade interior, feita de medos e fantasias,
se mantém inalterada. E é com esta que dialogam as fadas interagindo
simbolicamente, em qualquer idade, e em todos os tempos.

MARINA COLASANTI
UMA IDÉIA TODA AZUL Índice

Prêmios
O último rei / 4
Grande Prêmio da Crítica / 1979
Literatura Infantil da Associação Além do bastidor / 7
Paulista de Críticos de Artes
Por duas asas de veludo / 10
"O Melhor para o Jovem" / 1979
da Fundação Nacional do Um espinho de marfim / 13
Livro Infantil e Juvenil
Uma idéia toda azul / 17

Entre as folhas do verde O / 20

Para Fio após fio / 23


Fabiana e Alessandra,
fadas minhas. À primeira só / 26

Sete anos e mais sete / 30

As notícias e o mel / 33
FreEbook - Apóie essa idéia!

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O
último
rei
Todos os dias Kublai-Khan,
último rei da dinastia Mogul, subia no
alto da muralha da sua fortaleza para
encontrar-se com o vento.
O vento vinha de longe e tinha o
mundo todo para contar.

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Kublai-Khan nunca tinha saído Lua e a empinou contra o vento. Do
da sua fortaleza, não conhecia o alto, espelho do frio, a Lua trouxe a
mundo. Ouvia as palavras do vento e neve para Kublai-Khan. E um sono
aprendia. tranqüilo.
- A Terra é redonda e fácil, disse Todos os dias o vento contava
o vento. Ando sempre em frente, e seus caminhos no alto da muralha.
passo pelo lugar de onde saí. Dei Todos os dias os longos cabelos
tantas voltas na Terra, que ela está do rei deitavam-se no vento e
enovelada no meu sopro. recolhiam seus sons, como uma
Kublai-Khan achou bonito ir e harpa.
voltar sem nunca se perder. O vento contou o deserto.
Um dia o vento chegou mais frio, - O deserto, disse com língua
vindo das montanhas. quente, é lento como o trigal. E como o
- Fui pentear a neve, gelou o trigal me obedece. Ele também se
vento ao pé do ouvido do rei. A neve é curva debaixo da minha mão. Mas
pesada e macia. Debaixo do seu seus grãos não são doces como os do
silêncio as sementes se aprontam trigo. São de areia. E com areia não se
para a primavera. Só flores brancas faz o pão. As gotas do deserto
furam a neve. Só passos brancos chamam-se tâmaras.
marcam a neve. Na neve mora o Rei do Kublai-Khan quis suar com a
Sono. doçura das tâmaras. Então prendeu
Kublai-Khan teve desejo de fios de ouro nos raios do Sol e os
neve. Então prendeu fios de prata na empinou contra o vento. Do alto, o

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calor derramou-se no reino de Kublai- abandonando com os pés o alto da
Khan amadurecendo os frutos. E o rei muralha de sua fortaleza, deixou-se
bebeu o suco nas mãos em concha. levar pela corda branca, último rei
No alto da muralha gasta de Mogul, longe no céu, lá onde ele se
sempre receber o vento, o mundo tinge de mar.
punha-se aos pés do rei.
E no tempo chegou o dia em que
o vento beijou de sal a boca de Kublai-
Khan trazendo-lhe o mar.
- O mar é maior que o deserto e
mais profundo que a neve, cantou o
vento. O mar é verde como os campos,
mas seu capim cresce nas
profundezas e ninguém vê o gado que
nele pasta. O mar chama os homens e
canta. Sua voz tem nome de sereia.
Ouviu Kublai-Khan o chamado
da sereia na voz do vento?
Ninguém sabe.
Dizem os pastores da planicie
que o viram prender cordas de linho
nas pontas da grande pipa de seda.
Depois ergueu a pipa contra o vento e,

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Começou com linha verde. Não
Além sabia o que bordar, mas tinha certeza
do verde, verde brilhante.
do Capim. Foi isso que apareceu
bastidor depois dos primeiros pontos. Um
capim alto, com as pontas dobradas
como se olhasse para alguma coisa.
Olha para as flores, pensou ela,
e escolheu uma meada vermelha.
Assim, aos poucos, sem risco,
um jardim foi aparecendo no bastidor.
Obedecia às suas mãos, obedecia ao
seu próprio jeito, e surgia como se no
orvalho da noite se fizesse a brotação.
Toda manhã a menina corria
para o bastidor, olhava, sorria, e
acrescentava mais um pássaro, uma
abelha, um grilo escondido atrás de
uma haste.
O sol brilhava no bordado da
menina.
E era tão lindo o jardim que ela
começou a gostar dele mais do que

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qualquer outra coisa. caminho, todo dia a menina descia
Foi no dia da árvore. A árvore para o bordado. Escolhia primeiro
estava pronta, parecia não faltar aquilo que gostaria de ver, uma
nada. Mas a menina sabia que tinha borboleta, um louva-a-deus. Bordava
chegado a hora de acrescentar os com cuidado, depois descia pela linha
frutos. Bordou uma fruta roxa, para as costas do inseto, e voava com
brilhante, como ela mesma nunca ele, e pousava nas flores, e ria e
tinha visto. E outra, até a árvore ficar brincava e deitava na grama.
carregada, até a árvore ficar rica, e O bordado já estava quase
sua boca se encher do desejo daquela pronto. Pouco pano se via entre os fios
fruta nunca provada. coloridos. Breve, estaria terminado.
A menina não soube como Faltava uma garça, pensou ela.
aconteceu. Quando viu, já estava a E escolheu uma meada branca
cavalo do galho mais alto da árvore, matizada de rosa. Teceu seus pontos
catando as frutas e limpando o caldo com cuidado, sabendo, enquanto
que lhe escorria da boca. lançava a agulha, como seriam macias
Na certa tinha sido pela linha, as penas e doce o bico. Depois desceu
pensou na hora de voltar para casa. ao encontro da nova amiga.
Olhou, a última fruta ainda não estava Foi assim, de pé ao lado da
pronta, tocou no ponto que acabava garça, acariciando-lhe o pescoço, que
em fio. E lá estava ela, de volta na sua a irmã mais velha a viu ao debruçar-se
casa. sobre o bastidor. Era só o que não
Agora que já tinha aprendido o estava bordado. E o risco era tão

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bonito, que a irmã pegou a agulha, a
cesta de linhas, e começou a bordar.
Bordou os cabelos, e o vento
não mexeu mais neles. Bordou a saia,
e as pregas se fixaram. Bordou as
mãos, para sempre paradas no
pescoço da garça. Quis bordar os pés
mas estavam escondidos pela grama.
Quis bordar o rosto mas estava
escondido pela sombra. Então bordou
a fita dos cabelos, arrematou o ponto,
e com muito cuidado cortou a linha.

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A princesa pegou a rede, o
vidro, a caixinha dos alfinetes, e saiu
para caçar. Sempre atrás de
borboletas, não se contentava com as
Por que já tinha, caixas e caixas de vidro
duas asas em todos os aposentos do palácio.
Queria outras. Queria mais. Queria
de veludo todas.

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Nem adiantava procurar nos esperassem escondidas nas beiras do
jardins. Depois de tanta caça, de tanto escuro.
alfinete nas costas, as borboletas Era quase noite quando a viu,
sabiam que aquele não era lugar para imensa borboleta negra voando lenta
elas e até mesmo as lagartas no azul que se apagava. Correu
arrastavam para longe suas curvas querendo acompanhá-la. Tropeçou
preguiçosas em busca de um canto numa pedra, perdeu-se entre os
mais seguro para virarem borboletas. arbustos. O céu limpo, onde estava a
Talvez nos campos, quando a colheita borboleta? Pensou tê-la visto numa
estivesse madura. Mas era outono. direção. Foi para lá. Mas tudo quieto,
Talvez no bosque. só a água se encrespava na superfície
Para o bosque foi a princesa. do lago.
Durante toda a manhã procurou. Viu À noite, no palácio, só falou
duas asas coloridas mexendo entre as dela. Queria a borboleta. Se a tivesse,
folhas, lançou a rede, recolheu apenas prometeu, deixaria de caçar. Escolheu
a flor que o vento agitava. Pensou ter no quarto o melhor lugar: acima da
achado uma borboleta escura pousada cabeceira, de asas abertas sobre a
num tronco, era folha levada por cama.
formiga. Depois mais nada. Pássaros, Sonhou com a borboleta.
abelhas, salamandras passeavam Viajava deitada nas suas costas e as
tranqüilos, remexiam-se ao sol. Mas asas de veludo a afagavam no bater do
borboleta nenhuma. Como se vôo.
avisadas de sua presença, Ao amanhecer armou-se de

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arco e flecha e saiu para o bosque. cisnes negros deslizam lado a lado.
Esperou deitada, imóvel no mesmo Brilha esquecido o arco de ouro.
lugar da véspera. A manhã passou. A
tarde passou. A noite soprou seu
vento. E no vento da noite veio a
borboleta preta.
Desta vez não a perderia. Sem
tirá-la do olhar, sem errar o passo, a
princesa avançou entre as árvores,
chegou à beira do lago. E a viu descer
abrindo as grandes asas num último
esforço para pousar sem mergulho,
não borboleta, mas cisne, nobre cisne
negro.
Estremece a água do lago. A
princesa arma o arco, retesa a corda,
crava a seta de ouro no peito do cisne.
Mas é do peito dela que o
sangue espirra. E filete, e jorro,
banhando a roupa, desfazendo a seda
por onde passa, transforma seu corpo
em penas, negras penas de veludo.
O dia adormece. No lago dois

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Um
espinho
de marfim

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Amanhecia o sol e lá estava o fogueiras ouvindo no escuro o relincho
unicórnio pastando no jardim da cristalino do unicórnio.
princesa. Por entre flores olhava a Um dia, mais nada. Nenhuma
janela do quarto onde ela vinha pegada, nenhum sinal de sua
cumprimentar o dia. Depois esperava presença. E silêncio nas noites.
vê-la no balcão, e quando o pezinho Desapontado, o rei ordenou a
pequeno pisava no primeiro degrau da volta ao castelo.
escadaria descendo ao jardim, fugia o E logo ao chegar foi ao quarto da
unicórnio para o escuro da floresta. filha contar o acontecido. A princesa,
Um dia, indo o rei de manhã penalizada com a derrota do pai,
cedo visitar a filha em seus aposentos, prometeu que dentro de três luas lhe
viu o unicórnio na moita de lírios. daria o unicórnio de presente.
Quero esse animal para mim. E Durante três noites trançou com
imediatamente ordenou a caçada. os fios de seus cabelos uma rede de
Durante dias o rei e seus ouro. De manhã vigiava a moita de
cavaleiros caçaram o unicórnio nas lírios do jardim. E no nascer do quarto
florestas e nas campinas. Galopavam dia, quando o sol encheu com a
os cavalos, corriam os cães, e, quando primeira luz os cálices brancos, ela
estavam todos certos de tê-lo lançou a rede aprisionando o
encurralado, perdiam sua pista, unicórnio.
confundiam-se no rastro. Preso nas malhas de ouro,
Durante noites o rei e seus olhava o unicórnio aquela que mais
cavaleiros acamparam ao redor das amava, agora sua dona, e que dele

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nada sabia. As três luas porém já se
A princesa aproximou-se. Que esgotavam. Na noite antes da data
animal era aquele de olhos tão mansos marcada o rei foi ao quarto da filha
retido pela artimanha de suas lembrar-lhe a promessa. Desconfiado,
tranças? Veludo de pêlo, lacre dos olhou nos cantos, farejou o ar. Mas o
cascos, e desabrochando no meio da unicórnio que comia lírios tinha cheiro
testa, espinho e marfim, o chifre único de flor, e escondido entre os vestidos
que apontava ao céu. da princesa confundia-se com os
Doce língua de unicórnio veludos, confundia-se com os
lambeu a mão que o retinha. A perfumes.
princesa estremeceu, afrouxou os Amanhã é o dia. Quero sua
laços da rede, o unicórnio ergueu-se palavra cumprida, - disse o rei - virei
nas patas finas. buscar o unicórnio ao cair do sol.
Quanto tempo demorou a Saído o rei, as lágrimas da
princesa para conhecer o unicórnio? princesa deslizaram no pêlo do
Quantos dias foram preciso para amá- unicórnio. Era preciso obedecer ao pai,
lo? era preciso manter a promessa. Salvar
Na maré das horas banhavam- o amor era preciso.
se de orvalho, corriam com as Sem saber o que fazer, a
borboletas, cavalgavam abraçados. princesa pegou o alaúde, e a noite
Ou apenas conversavam em silêncio inteira cantou sua tristeza. A lua
de amor, ela na grama, ele deitado a apagou-se. O sol mais uma vez
seus pés, esquecidos do prazo. encheu de luz as corolas. E como no

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primeiro dia em que se haviam
encontrado a princesa aproximou-se
do unicórnio. E como no segundo dia
olhou-o procurando o fundo de seus
olhos. E como no terceiro dia segurou-
lhe a cabeça com as mãos. E nesse
último dia aproximou a cabeça do seu
peito, com suave força, com força de
amor empurrando, cravando o
espinho de marfim no coração, enfim
florido.
Quando o rei veio em cobrança
de promessa, foi isso que o sol
morrente lhe entregou, a rosa de
sangue e um feixe de lírios.

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Uma idéia
toda azul
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Um dia o Rei teve uma idéia. olhos se fecharam, saiu dos seus
Era a primeira da vida toda, e aposentos, atravessou salões, desceu
tão maravilhado ficou com aquela escadas, subiu degraus, até chegar ao
idéia azul, que não quis saber de Corredor das Salas do Tempo.
contar aos ministros. Desceu com ela Portas fechadas, e o silêncio.
para o jardim, correu com ela nos Que sala escolher?
gramados, brincou com ela de Diante de cada porta o Rei
esconder entre outros pensamentos, parava, pensava, e seguia adiante.
encontrando-a sempre com igual Até chegar à Sala do Sono.
alegria, linda idéia dele toda azul. Abriu. Na sala acolchoada os pés
Brincaram até o Rei adormecer do Rei afundavam até o tornozelo, o
encostado numa árvore. olhar se embaraçava em gazes,
Foi acordar tateando a coroa e cortinas e véus pendurados como
procurando a idéia, para perceber o teias. Sala de quase escuro, sempre
perigo. Sozinha no seu sono, solta e igual. O Rei deitou a idéia adormecida
tão bonita, a idéia poderia ter na cama de marfim, baixou o
chamado a atenção de alguém. cortinado, saiu e trancou a porta.
Bastaria esse alguém pegá-la e levar. A chave prendeu no pescoço em
É tão fácil roubar uma idéia. Quem grossa corrente. E nunca mais mexeu
jamais saberia que já tinha dono? nela.
Com a idéia escondida debaixo O tempo correu seus anos.
do manto, o Rei voltou para o castelo. Idéias o Rei não teve mais, nem sentiu
Esperou a noite. Quando todos os falta, tão ocupado esteve em

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governar. Envelhecia sem perceber, levantou o cortinado.
diante dos educados espelhos reais Na cama de marfim, a idéia
que mentiam a verdade. Apenas, dormia azul como naquele dia.
sentia-se mais triste e mais só, sem Como naquele dia, jovem, tão
que nunca mais tivesse tido vontade jovem, uma idéia menina. E linda. Mas
de brincar nos jardins. o Rei não era mais o Rei daquele dia.
Só os ministros viam a velhice Entre ele e a idéia estava todo o tempo
do Rei. Quando a cabeça ficou toda passado lá fora, o tempo todo parado
branca, disseram-lhe que já podia na Sala do Sono. Seus olhos não viam
descansar, e o libertaram do manto. na idéia a mesma graça. Brincar não
Posta a coroa sobre a almofada, queria, nem rir. Que fazer com ela?
o Rei logo levou a mão à Nunca mais saberiam
corrente. estar juntos como
- Ninguém mais se naquele dia.
ocupa de mim - dizia Sentado na beira da
atravessando salões e cama o Rei chorou suas
descendo escadas a duas últimas lágrimas, as
caminho das Salas do que tinha guardado para
Tempo - ninguém mais a maior tristeza.
me olha. Agora posso Depois baixou o
buscar minha linda idéia cortinado, e deixando a
e guardá-la só para mim. idéia adormecida, fechou
Abriu a porta, para sempre a sua porta.
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Na primeira corça
que disparou,

Errou.

E na segunda corça
acertou.

E beijou.

E a terceira fugiu
no

Coração de um
jovem.

Ela está entre as


folhas do

Verde O.

Entre
Canção popular da as folhas
Idade Média
do verde O

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O príncipe acordou contente. queria amar, a corça ele queria matar.
Era dia de caçada. Os cachorros latiam Se chegasse perto será que ela fugia?
no pátio do castelo. Vestiu o colete de Mexeu num galho, ela levantou a
couro, calçou as botas. Os cavalos cabeça ouvindo. Então o príncipe
batiam os cascos debaixo da janela. botou a flecha no arco, retesou a
Apanhou as luvas e desceu. corda, atirou bem na pata direita. E
Lá embaixo parecia uma festa. quando a corça-mulher dobrou os
Os arreios e os pêlos dos animais joelhos tentando arrancar a flecha, ele
brilhavam ao sol. Brilhavam os dentes correu e a segurou, chamando
abertos em risadas, as armas, as homens e cães.
trompas que deram o sinal de partida. Levaram a corça para o castelo.
Na floresta também ouviram a Veio o médico, trataram do ferimento.
trompa e o alarido. Todos souberam Puseram a corça num quarto de porta
que eles vinham. E cada um se trancada.
escondeu como pôde. Todos os dias o príncipe ia visitá-
Só a moça não se escondeu. la. Só ele tinha a chave. E cada vez se
Acordou com o som da tropa, e estava apaixonava mais. Mas a corça-mulher
debruçada no regato quando os só falava a língua da floresta e o
caçadores chegaram. príncipe só sabia ouvir a língua do
Foi assim que o príncipe a viu. palácio.
Metade mulher, metade corça, Então ficavam horas se olhando
bebendo no regato. A mulher tão calados, com tanta coisa para dizer.
linda. A corça tão ágil. A mulher ele Ele queria dizer que a amava

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tanto, que queria casar com ela e tê-la compridas, um corpo branco. Tentou
para sempre no castelo, que a cobriria levantar, não conseguiu. O príncipe lhe
de roupas e jóias, que chamaria o deu a mão. Vieram as costureiras e a
melhor feiticeiro do reino para fazê-la cobriram de roupas. Vieram os
virar toda mulher. joalheiros e a cobriram de jóias.
Ela queria dizer que o amava Vieram os mestres de dança para
tanto, que queria casar com ele e levá- ensinar-lhe a andar. Só não tinha a
lo para a floresta, que lhe ensinaria a palavra. E o desejo de ser mulher.
gostar dos pássaros e das flores e que Sete dias ela levou para
pediria à Rainha das Corças para dar- aprender sete passos. E na manhã do
lhe quatro patas ágeis e um belo pêlo oitavo dia, quando acordou e viu a
castanho. porta aberta, juntou sete passos e
Mas o príncipe tinha a chave da mais sete, atravessou o corredor,
porta. E ela não tinha o segredo da desceu a escada, cruzou o pátio e
palavra. correu para a floresta à procura de sua
Todos os dias se encontravam. Rainha.
Agora se seguravam as mãos. E no dia O sol ainda brilhava quando a
em que a primeira lágrima rolou dos corça saiu da floresta, só corça, não
olhos dela, o príncipe pensou ter mais mulher. E se pôs a pastar sob as
entendido e mandou chamar o janelas do palácio.
feiticeiro.
Quando a corça acordou, já não
era mais corça. Duas pernas só e

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Fio
após
fio

Todas as tardes, na torre mais


alta do castelo de vidro, Nemésia e
Gloxínia bordavam.
Longo era o manto de seda
branca que as duas fadas floresciam e
que uma haveria de usar.
Mas Gloxínia, nunca satisfeita
com seu trabalho, desmanchava ao
fim de cada dia o que tinha feito, para
recomeçar no dia seguinte.
Nemésia, gestos seguros,
desenhava flores e folhas de um
jardim em que todas as pétalas eram
irmãs, e a cada dia arrematava o
ponto mais adiante.

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Feriam-se os dedos de Gloxínia primeiro fio. Que na agulha de
de tanto desmanchar. Sujava-se o Gloxínia revelou-se perfeito,
pano. Os dedos de Nemésia, permitindo um bordado certo sem
tranqüilos, brotavam o manto branco. precisar a irmã recorrer à tesoura.
Faz e desmancha, na cesta de Pela primeira vez Gloxínia seguiu sem
Gloxínia esgotava-se a linha. E ao desmanchar.
pegar a última meada, a fada Encantou-se com o trabalho. Já
percebeu que não havia avançado um não dormia. Colhia o fio da teia mais
raminho sequer. Caberia à irmã acabar próxima e logo mergulhava a agulha
o manto e ficar com ele, sem que ela a cantando na cadência dos pontos
nada tivesse direito por seus esforços. obedientes. Fio após fio esqueceu-se
De nada adiantava agora da irmã. Havia linha, o bordado
procurar a perfeição. Abandonando enriquecia, e Gloxínia trabalhava feliz
por um instante a tentativa de suas no passar dos anos.
pétalas, Gloxínia aproveitou o último Chegou o dia do último ponto.
fio para bordar sobre a seda, letra por G l ox í n i a a c a b o u u m a p é t a l a ,
letra, a palavra mágica. Nemésia arrematou um espinho, e percebeu
ainda teve tempo de terminar o ponto num sorriso que nada mais havia para
e libertar mais uma rosa. Depois bordar; a primavera desabrochava no
transformou-se em aranha. manto e a seda desaparecia debaixo
Gloxínia teria agora tanta linha das ramagens.
quanta precisasse. Guardada a agulha, Gloxínia
Paciente, Nemésia teceu o levantou-se. Usaria o manto,

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surpreenderia enfim a corte. Prendeu
as fitas largas no pescoço, ajeitou a
cauda e virou-se para a porta.
Mas onde estava a porta?
Ao redor de Gloxínia, as teias de
Nemésia. Teia encostada em outra
teia, que Gloxínia rasgava sem chegar
a lugar algum, somente a outras e
mais teias.
Onde estava a corte?
Ao redor da corte, ao redor das
salas, ao redor do castelo e dos
jardins, lá fora fiava e tecia a paciente
Nemésia, esquecida da corte,
esquecida da irmã para sempre
prisioneira do seu casulo de prata.

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A
primeira

Era linda, era filha, era única.


Filha do rei. Mas de que adiantava ser
princesa se não tinha com quem
brincar?
Sozinha no palácio chorava e
chorava. Não queria saber de
bonecas, não queria saber de
brinquedos. Queria uma amiga para
gostar.
De noite o rei ouvia os soluços
da filha. De que adianta a coroa se a
filha da gente chora à noite? Decidiu
acabar com tanta tristeza. Chamou o
vidraceiro, chamou o moldureiro. E em
segredo mandou fazer o maior

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espelho do reino. E em silêncio cesta. Bichos, bonecas, casinhas, e
mandou colocar o espelho ao pé da uma bola de ouro. A bola no fundo da
cama da filha que dormia. cesta. Porém tão brilhante, que foi o
Quando a princesa acordou, já primeiro brinquedo que escolheram.
não estava sozinha. Uma menina linda Rolaram com ela no tapete,
e única olhava surpresa para ela, os lançaram na cama, atiraram para o
cabelos ainda desfeitos do sono. alto. Mas quando a princesa resolveu
Rápido saltaram as duas da cama. jogá-la nas mãos da amiga, a bola
Rápido chegaram perto e estilhaçou jogo e amizade.
ficaram se encontrando. Uma sorriu e Uma moldura vazia, cacos de
deu bom-dia. A outra deu bom-dia espelho no chão.
sorrindo. A tristeza pesou nos olhos da
- Engraçado - pensou uma - a única filha do rei. Abaixou a cabeça
outra é canhota. para chorar. A lágrima inchou, já ia
E riram as duas. cair, quando a princesa viu o rosto que
Riram muito depois. Felizes tanto amava. Não só um rosto de
juntas, felizes iguais. A brincadeira de amiga, mas tantos rostos de tantas
uma era a graça da outra. O salto de amigas.
uma era o pulo da outra. E quando Não na lágrima que logo caiu,
uma estava cansada, a outra dormia. mas nos cacos todos que cobriam o
O rei, encantado com tanta chão.
alegria, mandou fazer brinquedos - Engraçado, são canhotas -
novos, que entregou à filha numa pensou.

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E riram. um sorriso, um lado de nariz. Depois,
Riram por algum tempo depois. nem isso, pó brilhante de amigas
Era diferente brincar com tantas espalhado pelo chão.
amigas. Agora podia escolher. Um dia Sozinha outra vez a filha do rei.
escolheu uma, e logo se cansou. No Chorava? Nem sei.
dia seguinte preferiu outra, e Não queria saber das bonecas,
esqueceu dela em seguida. Depois não queria saber dos brinquedos.
outra e mais outra, até achar que Saiu do palácio e foi correr no
todas eram poucas. Então pegou uma, jardim para cansar a tristeza.
jogou contra a parede e fez duas. Correu, correu, e a tristeza
Cansou de duas, pisou com o sapato e continuava com ela. Correu pelo
fez quatro. Não achou mais graça nas bosque, correu pelo prado. Parou à
quatro, quebrou com martelo e fez beira do lago.
oito. Irritou-se com as oito, partiu com No reflexo da água a amiga
uma pedra e fez doze. esperava por ela.
Mas duas eram menores do que Mas a princesa não queria mais
uma, quatro menores do que duas, uma única amiga, queria tantas,
oito menores do que quatro, doze queria todas, aquelas que tinha tido e
menores do que oito. as novas que encontraria. Soprou na
Menores, cada vez menores. água. A amiga encrespou-se mas
Tão menores que não cabiam continuou sendo uma. Atirou-lhe uma
mais em si, pedaços de amigas com as pedra. A amiga abriu-se em círculos,
quais não se podia brincar. Um olho, mas continuou sendo uma.

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Então a linda filha do rei atirou-
se na água de braços abertos,
estilhaçando o espelho em tantos
cacos, tantas amigas que foram
afundando com ela, sumindo nas
pequenas ondas com que o lago
arrumava sua superfície.

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Sete anos Era uma vez um rei que tinha
e uma filha. Não tinha duas, tinha uma,
e como só tinha essa gostava dela
mais sete mais do que qualquer outra.
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A princesa também gostava na hora sem nem dizer boa-noite.
muito do pai, mais do que qualquer Deitaram a moça numa cama
outro, até o dia em que chegou o enorme, num quarto enorme, dentro
príncipe. Aí ela gostou do príncipe de outro quarto enorme, onde se
mais do que qualquer outro. chegava por um corredor enorme.
O pai, que não tinha outra para Sete portas enormes escondiam a
gostar, achou logo que o príncipe não entrada pequena do enorme corredor.
servia. Mandou investigar e descobriu Cavaram sete fossos ao redor do
que o rapaz não tinha acabado os castelo. Plantaram sete trepadeiras
estudos, não tinha posição, e o reino nos sete cantos do castelo. E puseram
dele era pobre. Era bonzinho, sete guardas.
disseram, mas enfim, não era nenhum O príncipe, ao saber que sua
marido ideal para uma filha de quem o bela dormia por obra da magia, e que
pai gostava mais do que de qualquer pensavam assim afastá-la dele, não
outra. teve dúvidas. Mandou construir um
O rei então chamou a fada, castelo com sete fossos e sete plantas.
madrinha da princesa. Pensaram, Deitou-se numa cama enorme, num
pensaram, e chegaram à conclusão de quarto enorme, onde se chegava por
que o jeito melhor era botar a moça um corredor enorme disfarçado por
para dormir. Quem sabe, no sono sete enormes portas e começou a
sonhava com outro e se esquecia dele. dormir.
Dito e feito, deram uma bebida Sete anos se passaram e mais
mágica para a jovem, que adormeceu sete. As plantas cresceram ao redor.

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Os guardas desapareceram debaixo falcão. E de noite sonhava que a Lua ia
das plantas. As aranhas teceram alta e que as aranhas teciam.
cortinados de prata ao redor das Até o dia em que ambos
camas, nas salas enormes, nos sonharam que era chegada a hora de
enormes corredores. E os príncipes casar, e sonharam um casamento
dormiram nos seus casulos. cheio de festa e de música e de
Mas a princesa não sonhou com danças. E sonharam que tiveram
ninguém a não ser com o príncipe. De muitos filhos e que foram muito felizes
manhã sonhava que o via debaixo da para o resto da vida.
sua janela tocando alaúde. De tarde
sonhava que sentavam na varanda e
que ele brincava com o falcão e com os
cães enquanto ela bordava no
bastidor. E de noite sonhava que a Lua
ia alta e que as aranhas teciam sobre o
seu sono.
E o príncipe não sonhou com
ninguém a não ser com a princesa. De
manhã sonhava que via seus cabelos
na janela, e que tocava alaúde para
ela. De tarde sonhava que sentavam
na varanda, e que ela bordava
enquanto ele brincava com os cães e o

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As
notícias
e o mel

Um dia o rei ficou surdo. Não


como uma porta, mas como uma
janela de dois batentes. Ouvia tudo do
lado esquerdo, do direito não ouvia
nada.
A situação era incômoda. Só
atendia aos Ministros que sentavam
de um lado do trono. Aos outros, nem
respondia. E até mesmo de manhã, se
o galo cantasse do lado errado, Sua
Majestade não acordava e passava o
dia inteiro dormindo.
Foi quando mandou chamar o
gnomo da floresta, e o gnomo,
obediente, apareceu na corte. Veio

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voando com suas asinhas, tão dia mais íntimos. Já um sabia tudo do
pequeno que, embora todos outro, e era com prazer que o gnomo
estivessem avisados da sua chegada, gritava, e era com prazer que o rei
quase o confundiram com um inseto ouvia o zumbidinho das asas
qualquer. atarefadas no fabrico da cera e do mel.
Chegou e logo se entendeu com Uma certa doçura começou a
o rei, estabelecendo um trato. Ficaria espalhar-se do ouvido real para a
morando no ouvido direito e repetiria cabeça, e o rei foi ficando aos poucos
para dentro, bem alto, tudo o que mais bondoso. Um certo carinho foi se
ouvisse lá fora. Tendo asas, e espalhando da caverna real para o
desejando, poderia aproveitar seu gnomo, e ele foi ficando aos poucos
parentesco com as abelhas para mais bondoso.
fabricar, no ouvido real, alguma cera e Foi essa a causa da primeira
um pouco de mel. mentira.
O trato funcionou às mil O Primeiro Ministro deu uma má
maravilhas. Tudo o que o gnomo notícia no ouvido esquerdo, e o
ouvia, repetia em voz bem alta nas gnomo, não querendo entristecer o
cavernas da orelha, e o eco e a voz do rei, transmitiu uma boa notícia no
gnomo chegavam até o rei, que ouvido direito.
passou a entender como antigamente, Foi essa a primeira vez que o rei
de lado a lado. ouviu duas notícias ao mesmo tempo.
Correu o tempo. Rei e gnomo, Foi essa a primeira vez que o rei
assim tão vizinhos, foram ficando cada escolheu a notícia melhor.

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Houve outras depois. e a coroa para o Primeiro Ministro.
Sempre que alguma coisa ruim Depois chamou o gnomo para junto da
era dita ao rei, o gnomo a boca e murmurou-lhe baixinho a
transformava em alguma coisa boa. E ordem.
sempre que o rei ouvia duas notícias Obediente, o gnomo voou para o
escolhia a melhor delas. lado esquerdo e, aproveitando seu
Aos poucos o rei foi deixando de parentesco com as abelhas, fabricou
prestar atenção naquilo que lhe algum mel, e abundante cera, com
chegava do lado esquerdo. E até que tapou para sempre o ouvido do
mesmo de manhã, se o galo cantasse rei.
desse lado e o gnomo não repetisse o
canto do galo, Sua Majestade
esquecia-se de ouvir e continuava
dormindo tranqüilo até ser despertado
pelo chamado do amigo.
De um lado o mel escorria. Do
outro chegavam as preocupações, as
tristezas, e todos os ventos maus
pareciam soprar à esquerda da sua
cabeça.
Mas o rei tinha provado o mel e a
doçura era agora mais importante do
que qualquer notícia. Entregou o trono

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A AUTORA

Marina Colasanti nasceu em Asmara, Etiópia


(1937). Aos dois anos foi para a Itália e aos onze,
veio para o Brasil. Estudou na Escola Nacional de
Belas Artes (gravura em metal) e ingressou na
Imprensa em 1962, como redatora, ilustradora,
colunista. Traduziu dezenas de livros, entre eles, A
Romana eVidas Vazias, de Alberto Moravia, e Gag, de
Papini. Publicou suas crônicas no Jornal do Brasil e
seus contos em diversas revistas e suplementos.

Atualmente [na época da publicação do livro,no ano


de 1979] trabalha para a revista Nova, como editora e
redatora.

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