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JOSÉ MURILO DE CARVALHO

Os três povos

da República

primeira quinzena republicana, que vai

A
de 1889 até a Revolta da Vacina em

1904, foi turbulenta. Houve assassina-


tos políticos, golpes de estado, revol-

tas populares, greves, rebeliões milita-


res, guerras civis. Ausente da procla-

mação do novo regime, o povo esteve


presente nesses anos iniciais. Mas as

oligarquias conseguiram inventar e

consolidar um sistema de poder capaz


de gerenciar seus conflitos internos

que deixava o povo de fora. Inaugu-


rou-se um período de paz oligárquica,

baseado em uma combinação de co-


JOSÉ MURILO DE optação e repressão, interrompido
CARVALHO
é professor titular da apenas em 1922, quando se deu a pri-
Universidade Federal do
Rio de Janeiro e autor de, meira revolta tenentista. O propósito
entre outros, A Formação
das Almas – o Imaginário deste texto é examinar a posição do
da República no Brasil
(Companhia das Letras).

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Era uma combinação de proprietários

rurais, predominantes no partido pau-


lista, e representantes de setores mé-

dios urbanos, mais presentes no grupo


do Rio de Janeiro. Povo mesmo, no

sentido de trabalhadores rurais e urba-

nos, operários, artesãos, pequenos pro-


prietários, funcionários públicos de ní-

vel inferior, empregados, não havia. A


proclamação do novo regime foi feita

pelos militares. A única manifestação


popular no dia 15 de novembro de-

veu-se ao renegado José do Patrocínio,


que proclamou a República na Câmara

Municipal.

No entanto, os conflitos entre os

novos donos do poder, que se segui-


ram à proclamação, permitiram alguma

participação popular durante os primei-


ros quinze anos do novo regime. Hou-
povo, em suas várias faces, durante
ve choques entre civis e militares, entre
esse apogeu do sistema oligárquico,
militares da Marinha e do Exército, entre
quando a órbita da República mais se
republicanos presidencialistas e parla-
distanciou da democracia.
mentaristas, entre brasileiros e portu-

gueses, entre monarquistas e republi-

O POVO NO INÍCIO DA REPÚBLICA canos, entre jacobinos e liberais. Daí a

seqüência de golpes, revoltas militares,


O movimento republicano posteri- guerras civis, greves e assassinatos po-
or a 1870 foi integrado sobretudo por líticos que agitaram os anos seguintes à
fazendeiros, profissionais liberais, jor- proclamação. Em meio a essa turbulên-
nalistas, professores, estudantes de cia, às vezes graças a ela, setores popu-
cursos superiores e oficiais do Exército. lares invadiram a arena política, agindo

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com variados graus de autonomia. A capi- tação política, as eleições. A terceira era a
tal federal foi um pólo de agitação, sobre- do povo da rua, do povo ativo, que agia por
tudo durante o período jacobino que durou conta própria, direta ou indiretamente mo-
até 1897. Envolveram-se nas turbulências tivado pela política.
operários, artesãos, soldados, marinheiros, Começo pelo povo das estatísticas. A
pequenos proprietários e contingentes do tarefa é facilitada pela existência de dados
imenso setor informal característico da ci- razoavelmente confiáveis provindos do
dade. Na Revolta Federalista, no Rio Gran- melhor censo feito até então, o de 1920. Há
de do Sul, muitos combatentes vinham da muito o país estava sem recenseamento e o
peãozada das estâncias, assim como na mais confiável era ainda o de 1872, velho
Revolta da Armada esteve presente o pro- de cinco décadas. Foi com base nesse cen-
letariado naval. Canudos, naturalmente, foi so de 1872 que o biólogo Louis Couty ten-
movimento puramente popular (1). tou pela primeira vez, em 1881, quantificar
A agitação, que se espalhava pelos es- o povo político do Brasil. Seus cálculos
tados graças às incertezas do processo elei- podem ser resumidos como indicado na
toral, não convinha aos governantes civis. Tabela I.
Era particularmente danosa para a negocia-
ção de empréstimos e pagamento da dívida
externa, de vez que destruía a confiança
Tabela 1
dos banqueiros internacionais. Daí o esfor-
ço de construir um sistema de poder que O POVO DO BRASIL SEGUNDO COUTY, 1881
pudesse reconstituir a estabilidade con-
ferida pelo Poder Moderador durante o Im- População total .............................11.000.000
pério. A solução foi dada por Campos Sales Índios e escravos ............................ 2.500.000
por meio do sistema que batizou de política
dos estados, já suficientemente estudado Agregados, caipiras,
(2). Sua receita foi resumida na conhecida capangas, capoeiras,
frase: “É de lá [dos estados] que se governa
beberrões .......................................... 6. 000.000
a República, por cima das multidões que Comerciantes, funcionários,
tumultuam, agitadas, nas ruas da capital da criados, artesãos ............................. 2.000.000
União” (Sales, 1908, p. 252). A consolida-
ção do regime passava, assim, pelo alija- Proprietários de escravos ............. 500.000
mento da participação popular. Organizar (Fonte: Couty, 1988, p. 102)
um governo republicano viável significava
afastar-se da democracia. Que lugar coube
ao povo nessa fase oligárquica? Ele foi, de Segundo o cientista francês, os núme-
fato, alijado da vida política nacional? ros indicavam a ausência de massas orga-
nizadas, agrícolas ou industriais, e de elei-
tores capazes de impor ao governo direção
definida. A conclusão que tirou foi: “o
O POVO DAS ESTATÍSTICAS Brasil não tem povo”, querendo dizer com
isso que o país não tinha povo político, como
Pode-se dizer que havia três povos, ou as nações “civilizadas” (Couty, 1988, p.
1 Sobre o envolvimento popular três caras do povo, na Primeira República. 102) (3). A conclusão seguinte era que di-
na capital federal, ver: José
Murilo de Carvalho, 1987. A primeira cara, a mais visível, era a do ante de tal ausência de povo político a pre-
Sobre o movimento jacobino, povo das estatísticas. Por isso entendo o sença do Poder Moderador se tornava útil
ver: Queiroz, 1986; e Penna,
1988. povo revelado pelos números censitários, e necessária para administrar os estados-
2 Ver Lessa, 1988. o povo civil, a população em todas as di- maiores políticos em que se dividiam as
3 Em clamoroso erro, a traduto- mensões de sua existência. A segunda cara classes dirigentes.
ra do texto traduz “le Brésil n‘a era a do povo que aparecia nos momentos Em 1916, o deputado Gilberto Amado
pas de peuple” por “o Brasil
não é povoado”. legalmente determinados para a manifes- repetiu a análise de Couty, sem, no entanto,

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dar o devido crédito ao francês ou a Silvio Os cálculos de Gilberto Amado podem
Romero, que já a retomara em 1906 (4). e devem ser aprofundados e corrigidos. A
Sem dispor de dados atualizados, afirmou educação era fator importante, uma vez que
que nada teria mudado na situação social era impedimento legal ao voto, mas outras
do país desde os tempos do Império. Os 15 características também pesavam na carac-
milhões de habitantes do interior, afirmou, terização da política oligárquica. Além dis-
eram gente pouco produtiva, entregue à so, não se pode admitir que um coronel
própria miséria, sem saúde, sem hábitos de deixasse de votar por ser analfabeto (mui-
trabalho, dominada por superstições, inútil tos de fato o eram). A população do país
como força econômica. E concluiu, exata- segundo o censo de 1920 está na Tabela III.
mente como Couty em 1884: “Povo, pro-
priamente, não o temos” (apud Senna, 1969,
pp. 123-5). Em 1925, Gilberto Amado re- Tabela 1II
tomou o exercício, já então com a ajuda dos
resultados do censo de 1920. Resumo seus POPULAÇÃO DO BRASIL, POR ESTADOS, 1920
novos cálculos na Tabela II.
Estados População Estados População
(1.000) (1.000)
Tabela 1I
Alagoas 978 Paraíba 965
POVO DO BRASIL SEGUNDO GILBERTO
Amazonas 363 Paraná 686
AMADO, 1920
Bahia 3.334 Pernambuco 2.154
População total ..................... 30.635.605 Ceará 1.319 Piauí 609
Pessoas alfabetizadas ................... 7.493.357 D. Federal 1.157 Rio de Janeiro 1.559

Homens alfabetizados ................. 4.470.068 Espírito Santo 457 Rio G. Norte 537
Goiás 511 Rio G. Sul 2.182
Adultos brasileiros
alfabetizados...................................... 1.000.000 Maranhão 874 Santa Catarina 668
Mato Grosso 246 São Paulo 4.592
Minas Gerais 5.888 Sergipe 477

Como a Constituição republicana eli-


Pará 983 Terr. do Acre 92
minara a exigência de renda para o exercí-
cio do voto mas mantivera a da alfabetiza- Brasil 30.635
ção, introduzida em 1881, Gilberto Amado
(Fonte: Recenseamento de 1920, v. IV, 1a parte, pp. IX-X)
deu ênfase aos dados sobre educação, des-
prezando as outras características da popu-
lação. Do milhão de adultos brasileiros al- Demograficamente, o Brasil na época
fabetizados, isto é, daqueles que, segundo era muito distinto do atual. Tinha popula-
a Constituição, estariam aptos a votar, de- ção menor do que a do estado de São Paulo
duziu ainda os semi-analfabetos, chegan- hoje. O estado mais populoso, Minas Ge-
do à conclusão de que o número de pessoas rais, era menor do que o atual município do
capazes de “formar qualquer idéia, por ele- Rio de Janeiro. Algo que não mudou muito
mentar que seja, das coisas”, não deveria em relação aos dias de hoje é a desigualda- 4 Ao receber Euclides da Cunha
na Academia Brasileira de
passar de 500 mil (Amado, 1969, p. 48). de demográfica. Os cinco maiores estados, Letras em 1906, Silvio Romero
Sua conclusão final também não se afasta- Minas, São Paulo, Bahia, Rio Grande do retomou o texto de Couty so-
bre a ausência de povo dizen-
va muito da de Couty: diante de tal ausên- Sul e Pernambuco, respondiam por 59% do do que ele deveria estar em
cia de capacidade cívica, ganhava impor- total da população. Minas e São Paulo so- todas as mãos e em todas as
escolas. Ver Romero, 1907,
tância o governo dos mais capazes. zinhos representavam 34%. A dominação pp. 18-20.

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da política nacional pelos grandes estados, época, o Chile tinha 43% da população no
sobretudo por Minas e São Paulo, tinha setor primário, o Uruguai 42%, a Argenti-
assim sólida base demográfica, uma vez na 24%. Ampliando a comparação, os Es-
que era a demografia que determinava o tados Unidos tinham 31% e a Bélgica 16%
tamanho das bancadas na Câmara dos De- (5). A predominância agrária era generali-
putados. zada, só escapando o Distrito Federal, como
Dado relevante para a análise política é se pode ver na Tabela V.
o que indica a ocupação da população. As Até mesmo o estado mais desenvolvi-
informações, ainda de acordo com censo do, São Paulo, era ainda predominantemen-
de 1920, estão na Tabela IV. te agrícola, sem falar no fato de que sua
riqueza, e em boa parte a do país, provinha
da economia cafeeira. Entre os grandes
Tabela IV estados, Minas Gerais salientava-se como
o mais rural. Havia outra característica mais
importante, do ponto de vista político, do
POPULAÇÃO SEGUNDO A OCUPAÇÃO, 1920
que a ruralidade. Era a grande desigualda-
de na distribuição da propriedade da terra.
Ocupação População (%)
Dos 6,4 milhões de pessoas ocupadas na
agricultura, apenas 577 mil, ou seja, 9%,
Agricultura, pecuária, extração 70,2
eram proprietárias. O número não excede
Indústria 12,9 de muito o que foi calculado por Couty para
Transporte 2,8 os proprietários de escravos em 1881. Ti-
rados uns 70 mil administradores e arren-
Comércio 5,4 datários, os 91% restantes eram trabalha-
Administração pública, civil e militar 2,1 dores rurais. Separando-se administrado-
res, capatazes e artesãos, isto é, carpintei-
Administração particular 1,1
ros, pedreiros, ferreiros, que tinham salá-
Profissões liberais 1,8 rios um pouco melhores, o resto os traba-
Pessoas que vivem de rendas 0,4
Serviço doméstico 4,0
Tabela V
Total 100
OCUPAÇÃO NA AGRICULTURA E INDÚSTRIA, ESTADOS
N= SELECIONADOS, 1920

Ocupação maldefinida 9.191.044 Estados Ocupação Ocupação


Profissão não declarada 416.568 ligada ligada
ao solo ( %) à indústria (%)
e sem profissão 21.027.993
Total 30.635.605 Distrito Federal 6 32
(Fonte: Recenseamento de 1920, vol. IV, 5a parte, pp. XX e 7) São Paulo 62 16
Minas Gerais 78 9
Pernambuco 74 11
Dos 30,6 milhões de habitantes, 9,1
milhões tinham ocupação conhecida e de- Bahia 72 10
finida. Desses, 6,4 milhões ocupavam-se Rio G. Sul 65 13
da agricultura, pecuária ou extração de mi-
nerais, ou seja, 70,2% da população em- Brasil 69 13
pregada. Era um país de grande predomi-
5 Os dados para outros países
(Fonte: Recenseamento de 1920, v. IV, parte V, p. XX.
nância rural, mesmo em comparação com O total nesta tabela é de 69% por não estar incluída a
são fornecidos pelo próprio
censo (vol. IV, parte 5a, p. XXX). os vizinhos sul-americanos. Na mesma extração de minerais)

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lhadores agrícolas propriamente ditos vi- pequenas propriedades, ocupavam 9% da
via em condições que não se afastavam área total. As propriedades médias (de 100
muito das do tempo da escravidão. Se as a menos de 1.000 ha) tinham posição equi-
diárias a seco (sem alimentação) de um librada. Respondiam por 24% dos estabe-
ferreiro valiam a partir de 5$000 em Minas lecimentos e 28% da área. Já as grandes, os
Gerais em 1924, as de um trabalhador agrí- latifúndios, representavam apenas 4% dos
cola tinham um piso de 2$500, as de um estabelecimentos, mas respondiam por 63%
retireiro (tirador de leite) de 1$500. Em da área. Como havia mais estabelecimen-
Pernambuco e Bahia, os salários eram ain- tos do que proprietários, de vez que alguns
da mais baixos. A diária do trabalhador fazendeiros possuíam mais de uma fazen-
agrícola era de 1$500 no primeiro caso e de da, o número de grandes proprietários era
1$000 no segundo. Salários um pouco mais ainda menor do que os 26.315 da tabela.
altos podiam ser encontrados apenas em Somando médios e grandes proprietários,
São Paulo e no Rio Grande do Sul. Aos os que realmente detinham o poder econô-
baixos salários deve-se acrescentar a pre- mico, social e político nos municípios, te-
cariedade das relações de trabalho. Con- mos cerca de 180 mil pessoas. Eram os
tratos de trabalho só existiam para traba- coronéis da República, os que mandavam
lhadores imigrantes protegidos por seus diretamente nos municípios e, indiretamen-
cônsules. Os acordos eram orais e o paga- te, nos estados e na União (7).
mento se fazia das maneiras mais diversas A população urbana, definida como a
– em salário, em mercadoria, numa com- das cidades com 20 mil habitantes ou mais
binação dos dois (o que era mais comum), (74 ao todo), representava apenas 16,6%
por empreitada, por tarefas, por meação, do total. Nos estados hoje identificados
por terça. O pagamento em mercadoria era como Nordeste, ela não passava de 10%.
particularmente perverso. O trabalhador Os operários industriais não chegavam a
comprava no barracão do proprietário a 300 mil, quase um terço dos quais no setor
preços altos e tinha o valor descontado no têxtil, concentrados na capital federal e em
salário. Na pecuária nordestina, quase não São Paulo. O grupo em melhor condição de
circulava dinheiro: o vaqueiro recebia seu constituir a base para uma opinião pública
pagamento em crias do gado (6). independente era o dos profissionais libe-
Levando a análise um passo adiante, rais, categoria na qual o censo incluía pro-
verifica-se que entre os poucos proprietá- fessores, juristas, engenheiros, religiosos,
rios havia ainda grande desigualdade no médicos e parteiras. Ele não passava de 168
tamanho dos estabelecimentos, como mos- mil pessoas. 6 Ver Ministério da Agricultura,
Industria e Commercio, 1927;
tra a Tabela VI. A dependência da maioria em relação 1924
Os números indicam que os 72% de aos senhores de terra era agravada pela 7 Sobre o sistema coronelista, ver
estabelecimentos que possuíam menos de baixíssima escolaridade, como mostra a o clássico estudo de Victor
Nunes Leal (1948), Ver tam-
100 hectares, que podemos classificar de Tabela VII. bém: Pang, 1979.

Tabela VI
DISTRIBUIÇÃO DA PROPRIEDADE RURAL, 1920

Estabelecimentos No % Área (hectares) %


Até menos de 100 ha 463.879 72 Até menos de 100 ha 9
100 a menos de 1.000 ha 157.959 24 100 a menos de 1.000 ha 28
1.000 ha a mais 26.315 4 1.000 ha a mais 63

(Fonte: IBGE, 1990, p. 318)

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Tabela VII estados do Sul. O estado de São Paulo,
sozinho, abrigava 53% deles. A população
ALFABETIZAÇÃO, ESTADOS SELECIONADOS,
da capital desse estado era composta de 35%
1920 (%)
de imigrantes. Nos outros estados, a heran-
ça da escravidão pesava com mais força. O
Estados %
analfabetismo era um dos aspectos mais
Alagoas 14,8 terríveis dessa herança.
Bahia 18,4 Nem mesmo as capitais dos estados
apresentavam panorama encorajador, em-
Distrito Federal 61,3
bora, naturalmente, tivessem menos anal-
Minas Gerais 20,7 fabetos. A melhor situação era a do Distrito
Pernambuco 17,8 Federal, com 61,3% de alfabetizados, a pior
era a de Teresina com apenas 16,5%. Na
Piauí 12,0 média, os alfabetizados representavam cer-
Rio de Janeiro 24,7 ca da metade da população das capitais.
A situação calamitosa da educação po-
Rio G. Sul 38,8
pular no Brasil fica mais evidente quando
São Paulo 29,8 comparada com a de outros países. Os da-
Santa Catarina 29,5 dos são fornecidos pelo próprio censo de
1920. Na população de 7 anos ou mais, o
Brasil 24,5 Brasil tinha 31% de alfabetizados, a Ar-
(Fonte: Recenseamento de 1920, v. IV, parte 4, pp. X-XI) gentina tinha 62%, exatamente o dobro. O
fosso cresce ainda mais se compararmos o
país com a França ou os Estados Unidos.
Na primeira, a alfabetização da população
Fora o Distrito Federal, só o Rio Gran- de 10 anos ou mais era de 89%, nos Estados
de do Sul superava os 30% de alfabetiza- Unidos, de 94%. Até mesmo Portugal, cujo
dos. Os índices mais altos desse estado, estilo de colonização foi responsável pela
assim como os de São Paulo e de Santa tradição brasileira de descaso pela educa-
Catarina, devem-se sem dúvida à presença ção popular, tinha na época o dobro de al-
de imigrantes europeus e seus descenden- fabetizados na população total (53%), quan-
tes. A taxa de alfabetização dos estrangei- do comparado com a ex-colônia.
ros era mais que o dobro da dos brasileiros Considerando que a Constituição ex-
(52% e 23%, respectivamente). Havia no cluía analfabetos, estrangeiros e menores
país 1,6 milhão de estrangeiros, concentra- de 21 anos do direito do voto (não mencio-
dos no Distrito Federal, em São Paulo e nos nava as mulheres, tradicionalmente exclu-

Tabela VIII

POPULAÇÃO APTA A VOTAR, 1920

População No
Total 30.635.605
Menos analfabetos, sobram 7.493.357
Menos as mulheres, sobram 4.470.068
Menos os estrangeiros, sobram 3.891.640

Menos os menores de 15 anos, sobram 3.218.243

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ídas), conclui-se que a própria carta repu- Amado. Mas, antes de tirar as conclusões
blicana reduzia a cerca de 10% a população dos dois autores sobre a impossibilidade de
capaz de participar do governo do país, fazer funcionar um sistema representativo
como se pode ver na Tabela VIII. com esse material humano, cabe examinar
A população apta a votar era menor do melhor o comportamento político desse
que a da Tabela VIII, uma vez que o limite povo aparentemente tão pouco preparado
de idade era de 21 anos e não de 15. O censo para compor uma nação de cidadãos. A
não fornece dados de alfabetização para a participação política por excelência num
população de 21 anos e mais. Mas é possí- sistema representativo moderno se dá via
vel fazer uma aproximação. Havia 6 mi- envolvimento eleitoral. Cabe, então, exa-
lhões de homens com 21 anos ou mais. A minar o povo das eleições.
taxa de alfabetização para os homens de 15
anos ou mais era de 40%. Aplicando essa
taxa para os 6 milhões, tem-se 2,4 milhões
como um número aproximado dos brasi- O POVO DAS ELEIÇÕES
leiros adultos alfabetizados autorizados a
votar. O número é bem maior do que o en- Começo documentando o impacto da
contrado por Gilberto Amado. Mas, depen- demografia na representação dos estados
dendo de como se interpreta seu conceito na Câmara Federal (Tabela IX).
de semi-analfabetismo, pode ser que o nú- Embora sub-representados, os cinco
mero final a que chegou não fosse muito maiores estados em população, Minas, São
fora de propósito. Paulo, Bahia, Rio Grande do Sul e Per-
O quadro social do país que acaba de nambuco, respondiam por 54% dos depu-
ser mostrado não destoa, assim, muito da- tados. Minas e São Paulo sozinhos, com
quele entrevisto por Couty e Gilberto 34% da população, detinham 28% da re-

Tabela IX

NÚMERO DE DEPUTADOS POR ESTADO

Estados Número Estados Número


de deputados de deputados

Alagoas 6 Paraíba 5
Amazonas 4 Paraná 4
Bahia 22 Pernambuco 17
Ceará 10 Piauí 4
D. Federal 10 Rio de Janeiro 4
Espírito Santo 4 Rio G. Norte 16
Goiás 4 Rio G. Sul 17
Maranhão 7 Santa Catarina 4
Mato Grosso 4 São Paulo 22
Minas Gerais 37 Sergipe 4
Pará 7 Terr. do Acre —

Brasil 212
(Fonte: Ministério da Agricultura, Industria e Commercio, 1914, pp. 3-241)

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presentação na Câmara. As grandes banca- estatísticas demográficas está quase total-
das, disciplinadas pelos partidos republi- mente ausente das estatísticas eleitorais. Nem
canos estaduais, eram a base da política dos mesmo os 7,8% de adultos alfabetizados aos
estados, uma vez que garantiam maioria de quais a Constituição dava o direito do voto
votos na Câmara aos presidentes da Repú- dele se utilizavam. No período coberto por
blica. Como dizia Gilberto Amado em 1931: esta análise, a participação eleitoral girou
“No regime em que vivemos, o Brasil não entre 1,4% e 3,4% da população. Pior ainda,
é um país, não é uma nação; o Brasil é ape- a maior participação se deu na primeira elei-
nas São Paulo, Minas; Rio Grande; seria ção, a de Rodrigues Alves. Em números
Bahia e Pernambuco se nesses estados hou- absolutos, cerca de 550 mil pessoas votaram
vesse maior riqueza e intensidade” (Ama- em cada eleição, número muito próximo dos
do, 1969, p. 175) (8). Não por acaso, só 500 mil de Couty e de Gilberto Amado.
havia eleição competitiva quando um ou Somente na última eleição da Primeira Re-
mais dos cinco grandes, podendo-se incluir pública é que houve um aumento considerá-
na lista também o estado do Rio de Janeiro, vel do comparecimento às urnas, não che-
entrava em dissidência. gando, no entanto, a 6% da população. Os
Passo ao exame da participação elei- números são escandalosos se lembrarmos
toral. A principal eleição nacional no sis- que antes da introdução da eleição direta,
tema presidencial é a do próprio presi- em 1881, a participação eleitoral se elevava
dente da República. Os resultados estão a 13% da população livre.
na Tabela X. A ausência quase total de participação
Duas coisas ficam muito claras. A pri- verificava-se na própria capital da Repú-
meira confirma a tese de que o povo das blica onde o índice de escolaridade era mais

Tabela X

ELEIÇÕES PRESIDENCIAIS, 1894-1930

Candidato No de % de votantes % dos votos


vencedor votantes sobre a do vencedor
(mil) população sobre total de
votantes

Prudente de Morais (1894) 345 2,2 84,3


Campos Sales (1898) 462 2,7 90,9
Rodrigues Alves (1902) 645 3,4 91,7
Afonso Pena (1906) 294 1,4 97,9
Hermes da Fonseca (1910) 698 3,0 57,9
Venceslau Brás (1914) 580 2,4 91,6
Rodrigues Alves (1918) 390 1,5 99,1
Epitácio Pessoa (1919) 403 1,5 71,0
Artur Bernardes (1922) 833 2,9 56,0
8 Sobre a política dos grandes
estados, ver os capítulos escri- Washington Luís (1926) 702 2,3 98,0
tos por Joseph Love (Rio Gran-
de do Sul), John Wirth (Minas Júlio Prestes (1930) 1.890 5,6 57,7
Gerais) e Robert Levine
(Pernambuco) em Boris Fausto,
1975, 1977, vol. 1. Ver ain- (Fonte: adaptado de Ramos, 1961, p. 32. Os dados de votantes para 1910 foram corrigidos de acordo com: Ministério
da: Schwartzman, 1975. da Agricultura, Industria e Commercio, 1914, pp. 244-5)

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alto. Com cerca de 20% da população apta ção, o comparecimento eleitoral foi tam-
a votar, votou apenas 1,3% dela na eleição bém muito pequeno. No Brasil como um
presidencial de 1894, 0,9% na de 1910, e todo, o índice de abstenção dos eleitores
2,2% na de 1922. A participação eleitoral foi de 40%. Em cinco estados, a abstenção
só começou a subir na década de 1920 (9). superou os 50%. Índice tão alto de não
Era generalizado o receio de sair às ruas em comparecimento, fora do período aqui es-
dias de eleição devido à violência dos ca- tudado, só se verificou na eleição presiden-
pangas a serviço dos candidatos. Na capi- cial de 1955 (40%). Nas eleições presiden-
tal, como no país, aplicava-se o que Lima ciais da atual República, a abstenção tem
Barreto disse dos políticos da República girado em torno de 15%.
dos Bruzundangas: “tinham conseguido Além da abstenção, havia ainda a pre-
quase totalmente eliminar do aparelho elei- sença dos votos nulos, que atingiam 10%
toral este elemento perturbador – o voto” dos votos dados. Levando-se em conta
(Barreto, 1956, p. 113) (10). apenas os votos válidos, a participação elei-
Pode-se argumentar que as estatísticas toral no país cai para 2,7% da população,
eleitorais não são confiáveis por causa da nenhum estado superando os 4,3% do Rio
corrupção generalizada que caracterizava Grande do Sul. A taxa de 10% era o dobro
as eleições. De fato, havia fraude no alista- das que se verificaram no período de 1945
mento de eleitores, fraude na votação, frau- a 1964, maior também do que a de 1989,
de na apuração dos votos, fraude no reco- mas a metade da de 1994 (19%) (11). É
nhecimento dos eleitos. Todas as fases do difícil interpretar o sentido, na época, dos
processo eleitoral eram controladas por votos não aproveitados. O aproveitamento
pessoas ligadas às chefias locais que se ou não do voto dependia mais do apurador
conectavam, por sua vez, às chefias esta- do que do votante. Alta porcentagem de
duais e essas à nacional. Havia eleições votos válidos podia indicar apenas maior
feitas exclusivamente pelos chefes que se controle oligárquico do processo eleitoral.
utilizavam de outras pessoas apenas para Inversamente, baixa porcentagem podia
variar a caligrafia. Eram as eleições ditas a indicar maior competição. Quanto maior o
bico de pena. Mas a fraude apenas afetava controle da máquina, menor o número de
a representação, reduzindo sua autentici- votos nulos. Os casos do Rio Grande do Sul
dade. Ela não reduzia o número de votan- e de São Paulo são exemplares. O índice de
tes, podia mesmo aumentá-lo. Fica, assim, validade é de quase 100%, altamente im-
a conclusão, contrária ao ditado bíblico, de provável. Só pode ser creditado ao forte
que poucos eram os chamados a votar e controle exercido pelo PRR e PRP. Já a
menos ainda os que votavam. E o voto dos Bahia, marcada por intensas lutas internas,
últimos era manipulado pelos chefes locais, teve um dos mais altos índices de nulidade.
estaduais e nacionais. Já dizia Francisco Belisário de Souza, refe-
A baixa participação eleitoral fica me- rindo-se às eleições imperiais, que as elei-
lhor demonstrada na Tabela XI. ções que apareciam nas atas como as mais
Lembre-se, para começar, que a eleição regulares eram, na verdade, aquelas feitas
presidencial de 1910 foi uma das poucas a bico de pena, à revelia do votante (Souza,
competitivas do período. Nela, Rui Barbo- 1979, p. 33).
sa disputou a presidência com o marechal O caso do Distrito Federal é o mais es-
Hermes da Fonseca. Os dois grandes esta- candaloso. Em 1910, os eleitores represen-
9 Ver Carvalho, 1987, pp. 85-
dos, Minas Gerais e São Paulo, tinham-se tavam apenas 2,7% da população. Vota- 6; e Conniff, 1981, p. 73.
desentendido. O candidato da oposição, Rui ram 34% dos eleitores. Dos votos dados, 10 O romance é de 1917.
Barbosa, apoiado por São Paulo, levou a apenas 52% foram validados. Ao final, os 11 A Estatística Eleitoral fala em
cabo a primeira campanha eleitoral dirigida votos válidos correspondiam a 0,5% da po- votos apurados (válidos) sem
mencionar voto nulo e branco.
à população. Apesar disso, como demons- pulação. Como a capital era o município Para as eleições posteriores a
tra a Tabela XI, além de ser muito baixo o com a maior taxa de alfabetização (61%), 1945, ver: Santos, 1990, pp.
144-48; e Nicolau, 1998, pp.
número de eleitores em relação à popula- é preciso concluir que não era apenas o grau 23-8.

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Tabela XI

ELEITORES E VOTANTES NA ELEIÇÃO PRESIDENCIAL DE 1910, POR ESTADOS

Estados Eleitores Votantes Votos Votos


como % como % apurados apurados
da população dos eleitores* como % como % da
dos votantes população

Alagoas 2,7 60,5 89,0 1,5


Amazonas 3,5 44,7 97,8 1,6
Bahia 4,0 91,5 66,7 2,4
Ceará 4,3 67,5 95,3 2,8
D. Federal 2,7 34,4 52,1 0,5
Espírito Santo 5,7 59,1 80,4 2,8
Goiás 5,1 51,6 95,9 2,5
Maranhão 4,8 42,6 85,7 1,7
Mato Grosso 4,8 43,9 99,7 2,1
Minas Gerais 5,7 54,9 96,9 3,1
Pará 10,2 66,9 77,4 5,3
Paraíba 3,8 54,1 61,1 1,3
Paraná 6,9 48,1 99,4 3,4
Pernambuco 4,3 53,0 93,2 2,1
Piauí 5,0 70,7 79,3 2,8
Rio G. Norte 3,4 66,4 81,0 1,9
Rio G. Sul 7,4 57,3 99,9 4,3
Rio de Janeiro 6,3 68,5 77,4 3,4
Sta. Catarina 5,9 56,2 98,4 3,2
São Paulo 4,5 67,7 99,9 3,1
Sergipe 3,0 51,2 94,7 1,4

Brasil 5,0 60,3 89,9 2,7


(Fonte: Ministério da Agricultura, Industria e Commercio, 1914, p. 244-5. * Dados recalculados)

de instrução que afetava a participação elei- oligarquias. Era devida ao puro medo. As
toral. Nos estados, as oligarquias afasta- eleições eram batalhas comandadas por
vam os votantes das urnas, pois não lhes capangas armados de facas e navalhas.
interessava promover a disputa eleitoral. Quem tinha juízo ficava em casa.
Eleições eram caras, exigiam arregimenta- Como era de esperar, nas eleições legis-
ção de eleitores e compra de votos. Maior lativas a abstenção era ainda maior. Em
competição significava mais eleitores e, 1912, quando se renovou a Câmara e um
portanto, mais gastos. Na capital da Repú- terço do Senado, o comparecimento foi de
blica, a abstenção não era produzida por 52%, índice muito mais alto do que os que

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se verificaram depois de 1945. Os votos uma terceira cara do povo, que nem era a
nulos para senadores foram quase 20%. massa dos cidadãos, nem os rebanhos elei-
Hoje, nulos e brancos para eleições legis- torais. Havia um povo que se manifestava,
lativas podem chegar a 41%, como se deu em geral à margem dos mecanismos for-
na eleição de 1994. Novamente, o Rio Gran- mais de participação, quando não contra o
de do Sul aparece como modelo de contro- próprio sistema político. Esse povo tanto
le político, exibindo 100% de votos váli- existia nas cidades como no campo. Cha-
dos (Ministério de Agricultura, Industria e mo-o de povo da rua para indicar que ele
Commercio, 1914, pp. 244-5). saía do âmbito doméstico para o domínio
Voltando à Tabela X, observa-se outra público sem, no entanto, enquadrar-se nas
informação que tem a ver com a competi- regras dos palácios. Sua ação nem sempre
ção política. Vê-se que no período de 1904 tinha conseqüência imediata para o sistema
a 1922 apenas duas eleições presidenciais político, mas no mínimo denunciava suas
podem ser classificadas de competitivas, a fissuras e limitações.
de 1910, ganha por Hermes da Fonseca O fenômeno vinha dos tempos do Im-
contra Rui Barbosa, e a de 1922, ganha por pério. No agitadíssimo período regencial,
Artur Bernardes contra Nilo Peçanha. Fo- conflitos entre grupos da elite abriram ca-
ram as únicas em que o vencedor teve menos minho para várias revoltas populares que
de 70% dos votos. Na de 1919, Rui Barbo- sacudiram o país de norte a sul. No início
sa apenas incomodou Epitácio Pessoa. A do Segundo Reinado, esses grupos chega-
última eleição da Primeira República foi a ram a um acordo político em torno do Po-
mais disputada, mas não se pode dizer que der Moderador. Eles entenderam que esse
a competição cresceu depois de 1922, por- Poder tinha condições de arbitrar seus con-
que a de 1926 foi quase unânime. A baixa flitos, garantindo que nenhuma facção fos-
competição mostra a eficácia dos estados- se excluída da posse do governo. Como
maiores políticos em neutralizar as oposi- conseqüência, terminou a agitação regen-
ções. O fantasma da dissidência oligárquica cial. Mas as manifestações populares não
estava sempre presente e era necessário um desapareceram: elas mudaram de nature-
esforço constante de negociação, ameaças za. Sem os conflitos entre elites que lhes
e, muitas vezes, de pura repressão, para abrissem brechas políticas por onde se es-
preservar o arranjo criado por Campos Sa- gueirar, elas assumiram um caráter defen-
les. Como mecanismo de arbitramento en- sivo em relação a iniciativas do Estado.
tre elites, a política dos estados era menos Populações rurais e urbanas revoltaram-se
eficiente do que o Poder Moderador. De contra políticas do Estado central que,
qualquer modo, a conclusão que se pode embora legais, entravam em conflito com
tirar dos dados apresentados era que o elei- seus valores, tradições e costumes. Elas se
torado, o povo das eleições, o povo político revoltaram contra o recenseamento, o re-
oficial, por si só, era incapaz de constituir gistro civil, a introdução do sistema métri-
qualquer ameaça ao sistema. co, o recrutamento militar, o aumento de
tarifas de transporte coletivo, a seculariza-
ção dos cemitérios. Eram medidas de racio-
nalização e secularização do Estado que
O POVO DA RUA freqüentemente conflitavam com estilos
tradicionais de vida. Chamei os agentes
Tanto o texto de Couty como o de Gil- dessas revoltas de cidadãos em negativo
berto Amado concluíam que não havia povo para indicar sua postura reativa diante da
político, que o povo civil não agia politica- política (Carvalho, 1996).
mente. Vimos que, de fato, o povo eleitoral Algo semelhante se passou na Repúbli-
era muito reduzido e, além disso, tinha seus ca após a consolidação oligárquica. A po-
votos torcidos pela manipulação dos re- lítica dos estados cumpria o mesmo papel
sultados. Mas havia um terceiro povo, ou do Poder Moderador no que se referia ao

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arbitramento dos conflitos entre grupos da interior do estado de São Paulo, salientan-
elite. Até a consolidação, verificou-se algo do-se as dos operários têxteis (14). Calcu-
semelhante ao que se passara no período lou-se em 236 as greves havidas no estado
regencial, talvez com maior gravidade, uma de São Paulo e na capital federal entre 1917
vez que a guerra civil atingiu a capital do e 1920, envolvendo em torno de 300 mil
país. O período turbulento acabou na Re- operários. Em 1917, houve greves gerais
volta da Vacina, que combinava o estilo nas cidades de São Paulo e do Rio de Janei-
negativo do Segundo Reinado com nova ro. Na greve geral do Rio de Janeiro envol-
modalidade de conflito, típica dos primei- veram-se cerca de 100 mil operários (15).
ros anos do novo regime. A revolta de 1904 Apesar das divisões ideológicas, o mo-
foi um protesto da população pobre do Rio vimento operário tentou organizar-se. En-
de Janeiro contra a ingerência do Estado, tre 1915 e 1929 foram criadas cerca de 70
considerada ilegítima, em suas vidas. Mas associações operárias no estado de São
teve como aliados intelectuais positivistas Paulo. Elas vieram somar-se a outras 66
e alunos de escolas militares, os últimos fundadas desde o início do século (Simão,
ainda imbuídos de positivismos e 1966, p. 202). Em 1906, foi realizado o
florianismos, e inconformados com a con- primeiro Congresso Operário Brasileiro,
solidação do ajuste oligárquico (12). envolvendo associações de vários estados.
A partir de 1904, até 1922, as multidões O segundo Congresso aconteceu em 1913,
agitadas da capital, que tanto incomoda- o terceiro em 1920. Em 1908, foi criada a
vam Campos Sales, apareceram na Revol- Confederação Operária Brasileira (COB),
ta da Chibata de 1910 e nas grandes greves sob liderança anarco-sindicalista. Apoia-
de 1917-19, que também atingiram o esta- das por imprensa agressiva, as associações
do e a cidade de São Paulo. A revolta de operárias lutavam por maiores salários,
1910 foi protagonizada pelo que se poderia melhores condições de trabalho, contra me-
chamar de proletariado naval, ainda sub- didas repressoras como a Lei Adolfo Gor-
metido a práticas disciplinares da época da do de 1907, que previa a expulsão de “agi-
escravidão. Os marinheiros deixaram os tadores” estrangeiros, e por causas mais
governantes estupefatos com sua capaci- amplas como o pacifismo.
dade de manobrar as modernas belonaves O efeito direto das lutas operárias no
recém-compradas e levaram o pânico à sistema político foi limitado. Em parte, isso
capital da República. Pego de surpresa, o se deveu ao fato de que o anarco-sindi-
governo anistiou de início os revoltosos, calismo era infenso ao envolvimento polí-
mas logo a seguir os perseguiu, prendeu e tico; concentrava-se na ação econômica
deportou (13). contra os patrões. Conseqüentemente, era
As greves operárias constituíram ingre- contra a organização de partidos políticos
diente novo, gerado no bojo da abolição da e a participação eleitoral. As tentativas de
escravidão e do aumento da imigração es- formação de partidos operários, até 1922,
trangeira. A população operária era peque- em geral promovidas por setores de orien-
na mas salientou-se pela agressividade, tação socialista, não tiveram êxito. No Rio
sobretudo na cidade de São Paulo e na ca- de Janeiro, algumas organizações se apro-
pital federal. Pequeno e dividido em várias ximaram da política, mas o fizeram dentro
12 Sobre essa revolta, ver: tendências, que iam do governismo ao do que se chamou de sindicalismo amare-
Sevcenko, 1984; e Carvalho,
1987, cap. IV. reformismo e ao anarco-sindicalismo, o lo, isto é, num espírito clientelista e não
13 Sobre a revolta dos marinhei- movimento operário teve que enfrentar ain- militante. O marechal Hermes da Fonseca,
ros, ver: Morel, 1979. Para da a falta de tradição de organização e a quando presidente da República, tentou
uma visão diferente, ver:
Martins, 1988. ação repressora dos governos e dos patrões cooptar o movimento patrocinando, em
14 Cálculos de Azis Simão (1966, para defender os interesses da classe. Seu 1912, a organização de um Congresso
pp. 149-58).
ponto alto verificou-se nas greves de 1917- Operário, ao qual aderiram algumas asso-
15 Ver: Fausto, 1977, pp. 134- 19 em São Paulo e no Rio de Janeiro. Em ciações de trabalhadores, mas que foi rejei-
91. Ver ainda: Foot & Leonardi,
1982, cap. 17. 1917 houve 45 greves na capital e 29 no tado pela maioria.

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Outra razão para o escasso impacto foram os movimentos do Contestado e do
político do movimento operário provinha Juazeiro. O primeiro se deu no sul do país,
do próprio sistema oligárquico. Como se em terras contestadas pelos estados do
viu, eram nulas as possibilidades de influ- Paraná e Santa Catarina; o segundo nos
enciar a política via participação eleitoral. sertões do Cariri, estado do Ceará.
Nessas circunstâncias, os setores militan- O movimento do Contestado sobrevi-
tes do movimento operário podiam mesmo veu por mais tempo que o de Canudos, com
ser atraídos por tentações golpistas. Foi o o qual apresentava semelhanças, graças a
que de fato se deu no Rio de Janeiro em sua mobilidade e ao fato de se ter localiza-
1918, quando organizações anarco-sindi- do em região de florestas, favorável à defe-
calistas planejaram um assalto ao Palácio sa contra expedições militares. Fora inicia-
do Catete, a ser realizado no âmbito de uma do pelas pregações do monge João Maria,
greve geral e para o qual se contava com o ainda no Império. Proclamada a Repúbli-
apoio de praças do Exército. O plano fugia ca, o sucessor de João Maria reagiu nega-
da tradição anarco-sindicalista. Sem dúvi- tivamente à nova ordem, que chamava de
da, inspirou-se, sobretudo no que se refere “lei da perversão”, expressão que lembra-
ao tipo de aliança pretendido, na revolução va a “lei do cão”, que era como o Conse-
bolchevista do ano anterior. A conspiração lheiro se referia ao novo regime. O movi-
foi denunciada e abortada. Após 1922, o mento reativou-se em 1911, sob a lideran-
movimento operário entrou em descenso. ça de um soldado desertor do Exército, que
Seu maior impacto foi indireto e retardado. se fez chamar de José Maria, pretendendo-
Após 1930, a política social e trabalhista se irmão de João Maria. Fazendo uso de
entrou na agenda dos governos para não seus conhecimentos militares, José Maria
mais sair. deu organização ao movimento e tornou
Além da ação espetacular das greves e mais explícita a posição monarquista. Lan-
revoltas, havia também atividade, embora çou um manifesto monarquista e nomeou
menos organizada, em torno de problemas imperador a um fazendeiro analfabeto. Foi
cotidianos. No dia-a-dia, a população da combatido com violência, inclusive com
capital da República, e certamente também uso de canhões. Protegidos pela floresta,
de outras cidades, interagia com autorida- os crentes resistiram até 1915, quando fo-
des, sobretudo policiais, para protestar e ram dispersados por tropas federais. Cal-
para reivindicar. Encontrava mesmo canais culou-se o número de crentes entre 5 e 12
de se fazer ouvir, que não passavam nem mil (17).
pela representação, nem pela rebeldia. Sur- O movimento baseava-se em valores
preendentemente, muitas das queixas da igualitários e num estilo comunitário de
população do Rio na época não diferem vida. Não havia dinheiro, nem comércio,
muito das de hoje. Giravam em torno de tudo era repartido entre os “irmãos”. Práti-
segurança, da qualidade dos serviços pú- cas religiosas ocupavam quase todo o tem-
blicos urbanos, das condições de vida (16). po dos fiéis. O livro sagrado era Carlos
O povo da rua nas cidades era de mili- Magno e os 12 Pares de França. Havia
tares, operários, trabalhadores. No campo, uma guarda de honra, chamada precisamen-
era de beatos e bandidos. Mais controlada te Os 12 Pares de França, composta de 24
nas regiões da grande agricultura, a popu- pessoas, e não de 12, pois escapava aos
lação rural conseguia às vezes se fazer ouvir crentes o sentido da expressão Par de Fran-
16 Ver: Silva, 1988, p. 146. O
onde predominava a pecuária ou a pequena ça. Movimento profundamente religioso e autor examina queixas publi-
cadas em seção que a popula-
produção de subsistência. Na tradição do utópico, negava radicalmente os piores tra- ção levava ao Jornal do Brasil.
Segundo Reinado e início da República, os ços do mundo rural da Primeira República, As relações da população com
a polícia foram estudadas por
sertanejos eram freqüentemente movidos a desigualdade e a dependência da popula- Marcos Luiz Bretas (1977).
por mistura de motivação religiosa e polí- ção não proprietária em relação aos donos 17 Ver: M. I. P. de Queiroz, O
tica. Os dois exemplos mais importantes de terra. Os crentes acreditavam que o Messianismo no Brasil e no
Mundo, pp. 268-82; e Duglas
desse tipo de manifestação, no período, monge retornaria para estabelecer o reino Teixeira Monteiro, 1974.

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da felicidade, acabando também com a sua própria comunidade. Seus métodos
República, símbolo do mal. eram distintos dos do Padim. Sua comuni-
Formado por população também serta- dade se aproximava mais do radicalismo
neja, mas de características distintas, foi o do Contestado, sem dinheiro, sem proprie-
movimento criado pelo padre Cícero dade particular. Acusada de práticas co-
Romão Batista em Juazeiro, Ceará. Inicia- munistas, a comunidade foi bombardeada
do também no Império, atingiu o auge du- e destruída no início da década de 30. Mais
rante a Primeira República, tendo o Padim de 400 seguidores de Senhorinho, um se-
Ciço vivido até 1934. O pequeno arraial de guidor de Severino, foram massacrados por
Juazeiro, que tinha umas seis casas quando forças militares.
Padre Cícero começou a pregar, atingira 40 Nem só de religião se alimentou a re-
mil por ocasião de sua morte. Padre Cícero beldia sertaneja. Os cangaceiros, bandidos
procurou também formar uma comunida- sociais, eram produto do mesmo mundo dos
de dominada pela religião. Juazeiro tornou- coronéis de que surgiram Canudos e
se a Nova Jerusalém, a que não faltavam Juazeiro. Reagiam à situação de desigual-
um Horto das Oliveiras e um Santo Sepul- dade e arbítrio que predominava no sertão,
cro. Mas paravam aí as semelhanças com mas utilizavam as mesmas táticas e méto-
Canudos e Contestado. O Padre não desa- dos mundanos dos coronéis, sobretudo a
fiava abertamente a religião nem se opu- violência. Também negociavam com os
nha à República. Seu movimento não era grandes proprietários e até mesmo com o
messiânico, nem utópico, não representa- governo, como quando aceitaram comba-
va alternativa radical às realidades do mun- ter a Coluna Prestes. Eram, no entanto, uma
do rural da época. O Padre meteu-se em forma de organização popular, dotada de
política, nos conflitos entre coronéis, foi força própria. Como tal, escapavam ao con-
prefeito, vice-governador do estado. A seu trole dos proprietários e incomodavam as
modo, foi ele próprio um coronel pater- autoridades. Não por acaso, seu maior ini-
nalista. Tratava os fiéis como crianças, migo eram as polícias estaduais, formadas
aconselhava, castigava. Nada mais reve- embora por pessoas da mesma extração
lador da postura paternalista do que o uso social (19)
da palmatória para castigar homens bar- Beatos e bandidos representavam formas
bados que se comportavam mal (18). de organização e protesto da população ru-
Juazeiro não foi uma república radical- ral que se davam à margem do sistema po-
mente distinta da república oficial, como o lítico. Apresentavam modelos alternativos
foram Canudos e Contestado. Mas, a seu ao da república oficial, com maior ou menor
modo, atendeu a um exigência feita pelos grau de radicalismo. À exceção de Juazeiro,
críticos republicanos da República, como foram todos destruídos a ferro e fogo e não
Oliveira Viana e Gilberto Amado: aproxi- deixaram traços a não ser na memória popu-
mar o real do legal. Em seu conhecimento lar. Canudos teve pelo menos a sorte de
profundo da alma sertaneja, em sua habili- encontrar em Euclides da Cunha um inte-
dade em utilizar valores tradicionais para lectual da elite que o imortalizou.
introduzir elementos de modernidade, Pa-
dre Cícero criou uma república paternalista
mais próxima da população do que a dos
bacharéis e dos coronéis. Ele próprio esta- CANHÕES E VACINAS
va próximo do povo, era respeitado e ama-
do, o que não se podia dizer de nenhum O povo civil era mantido sob controle
presidente da República. pela própria estrutura social do país. O povo
18 Ver: M. I. P. Queiroz, O Houve outros movimentos messiânicos das eleições era enquadrado nos mecanis-
Messianismo, pp. 253-68; e
Della Cava, 1970.
de menor expressão. Em Caldeirão, no mos legais de cooptação e de manipulação,
mesmo Ceará, os seguidores de Cícero, o povo da rua era quase sempre tratado a
19 Sobre as bases sociais do
cangaço, ver: Facó, 1965. beatos José Lourenço e Severino, criaram bala.

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A violência foi particularmente intensa tando o sertanejo, continuava descrente de
no combate aos movimentos messiânicos sua aptidão para o progresso, prevendo mes-
rurais. De Canudos ao beato Lourenço, os mo sua extinção (Cunha, 1980, p. XXIX).
crentes foram combatidos por tropas do Outra parte dessa elite era menos pessimis-
Exército e da polícia, com uso de artilharia ta. Julgava que ação civilizatória do Estado
pesada. No caso do Conselheiro, havia a poderia ainda recuperar a população brasi-
desculpa da suposta ameaça ao novo regi- leira para a civilização. Missionários do
me. A desculpa não existia nos outros ca- progresso, saídos das escolas técnicas (me-
sos, embora os rebeldes do Contestado se dicina, engenharia, militares), combateram
dissessem monarquistas. No Caldeirão, o o atraso nas cidades e no interior. Nas cida-
pretexto já era o comunismo. Padre Cícero des, os representantes típicos de tais mis-
livrou seu movimento da repressão inse- sões foram o médico Osvaldo Cruz e o en-
rindo-o no conflito entre grupos de elite, genheiro Pereira Passos, que empreende-
sempre resolvido com menor grau de vio- ram o saneamento e a reforma urbana do
lência. O cangaço também teve alguma Rio de Janeiro. O primeiro, em seu esforço
sobrevida enquanto fez parte o jogo de vacinar compulsoriamente a população
coronelista. Lampião correspondia-se e contra a varíola, acabou provocando a re-
negociava com coronéis baianos. Foi a volta de 1904 (20).
Revolução de 1930, em seu esforço de com- No interior, os mais conspícuos missio-
bater o coronelismo, que ditou seu fim vio- nários da civilização foram os médicos
lento nas mãos da polícia baiana. sanitaristas Artur Neiva e Belisário Pena e
A violência também predominou no o general Cândido Rondon. Neiva e Beli-
combate ao povo da rua urbano, tanto o dos sário percorreram em 1912 boa parte do
movimentos tradicionais, como a Revolta Norte e Nordeste, verificando que o país
da Vacina, como o de movimentos moder- era um vasto hospital. Belisário criou a
nos, como as greves operárias, como o da seguir uma campanha nacional em favor
revolta dos marinheiros. A famosa expres- do sanitarismo, identificando nas precárias
são da época de que questão social era ques- condições de saúde da população o proble-
tão de polícia tinha um sentido preciso: era ma central do país. Encontrou em Monteiro
o delegado de polícia que tratava do assunto Lobato um divulgador entusiasta de suas
de greves. Era com ele que grevistas tinham idéias. Antigo descrente da capacidade do
que negociar ou lutar. Mas a violência era matuto, do jeca, que considerava um para-
menor do que no campo. O cenário urbano, sita, um piolho da terra, inadaptável à civi-
a maior visibilidade, inclusive internacional lização, o escritor paulista, influenciado
por causa dos imigrantes, garantiam ao pelos sanitaristas, passou a dizer que o jeca
movimento operário maior proteção. Nas não era assim, estava assim. A ciência e a
cidades não se verificaram os massacres dos medicina o salvariam (21).
sertões. Em todos esses movimentos, no O general Rondon, positivista ortodo-
entanto, emergia um traço comum: a inca- xo, foi o primeiro diretor do Serviço de
pacidade do regime de incorporar o povo da Proteção aos Índios, criado em 1910. Per-
rua, o povo politicamente ativo. correu o oeste abrindo estradas, estenden-
Não foi apenas com violência que o do linhas telegráficas, distribuindo ferra-
governo tratou com os três povos da Repú- mentas aos índios. Na mesma região, uma
blica. A elite ilustrada que se formara no tentativa insana de domar a natureza pela
último quartel do século XIX era obcecada técnica resultou em desastre total. A cons-
pela idéia de ciência, progresso, civiliza- trução da estrada de ferro Madeira Mamoré,
20 Ver: Costa, 1985; e
ção, modernidade. Parte dela acreditava que ligando Brasil e Bolívia, obra de empresá- Benchimol, 1982.
o povo brasileiro, por sua composição raci- rios norte-americanos, empregou 30 mil 21 Ver: Pena, 1918; e Lobato,
1959a, 1959b.
al e características culturais, era incapaz de operários, seis mil dos quais morreram na
seguir outros povos no caminho da moder- que foi depois chamada de Ferrovia do 22 Sobre Rondon , ver: Viveiros,
1958. Sobre a Ferrovia do Dia-
nidade. Euclides da Cunha, mesmo exal- Diabo (22). bo, ver: Hardman, 1988.

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Os métodos usados pelos missionários que sonhamos, também de tudo o que pen-
da civilização, e mesmo sua visão do povo, samos” (Cardoso, 1990, pp. 303, 304). Par-
eram muito superiores aos dos que descri- tilhavam do desencanto e das críticas al-
am da população e dos que só podiam con- guns dos mais respeitados intelectuais da
ceber a força como instrumento de comba- época incluídos na coletânea, Gilberto
te ao que consideravam rebeldia e atraso. Amado, Pontes de Miranda, Tristão de
No entanto, os reformistas ilustrados tam- Athaíde, Oliveira Viana. Tema recorrente
bém não primavam pelas convicções de- era o da ausência de povo político no Bra-
mocráticas. O povo permanecia massa iner- sil. Não havia povo, não havia classes or-
te, doente, analfabeta, que só poderia ser ganizadas, não havia opinião pública, não
tratado de maneira paternalista, quando não havia partidos, não havia governo repre-
autoritária e tecnocrática. Lobato, após sua sentativo, não havia república, não havia
conversão, pregou a entrega de todo o po- democracia. Tratava-se de um diagnóstico
der aos higienistas. Os missionários do pro- que lembrava claramente a influência de
gresso, ironicamente, se viam como salva- Alberto Torres, autor da admiração de to-
dores do povo, do mesmo modo que os dos os participantes da coletânea. Torres
messias do sertão. Apenas não tinham o escrevera em 1914: “Este Estado não é uma
apoio popular e a capacidade de mobi- nacionalidade; este país não é uma socie-
lização dos últimos. dade; esta gente não é um povo. Nossos
homens não são cidadãos” (Torres, 1933,
p. 297). Oliveira Vianna elaborava a análi-
se comparando o Brasil com a Inglaterra.
SAÍDA POR CIMA Lá a ação do governo era dirigida de fora
para dentro, vinha da pressão de classes,
Em 1922, revolta de jovens oficiais da grupos, clubes. Aqui, ao contrário, o go-
Escola Militar do Realengo e do Forte de verno do povo era apenas governo de clãs
Copacabana, provocada por nova questão e côteries politicantes que controlavam os
militar ligada à campanha presidencial, candidatos eleitos. Não havia organização
inaugurou o início da crise da república social, opinião pública capaz de se impor
oligárquica. O elemento perturbador foi a ao governo. Nosso problema, diagnostica-
força armada, que se mantivera silenciosa va, não estava em atacar os governos por
desde o governo do marechal Hermes da não serem patrióticos. Nenhum governo é
Fonseca. O próprio marechal se viu à fren- espontaneamente patriótico, “[…] o nosso
te da revolta. Outra revolta se seguiu em grande problema político está em obrigar
1924, ainda isolada do elemento civil. Mas, os governos a serem patrióticos” (Vianna,
em 1930, a aliança da dissidência oli- 1990, pp. 135-8).
gárquica com os militares pôs fim ao regi- Não se pode dizer que as críticas desses
me (23). autores estivessem equivocadas. Todos
Dois anos depois da primeira revolta, comparavam um regime republicano idea-
para celebrar o 35o aniversário do regime, lizado com a dura realidade e tiravam a
Vicente Licínio Cardoso organizou uma conclusão inescapável da distância entre o
coletânea de ensaios escritos por autores Brasil real e o Brasil legal. No entanto, havia
nascidos com a República (Cardoso, 1990). em todos eles uma incapacidade de ver o
O tom da maioria dos ensaios era de crítica povo sob luz favorável, de perceber o lado
e desilusão. O próprio organizador, repu- positivo das ações do que chamei de povo
blicano convicto, afirmava na conclusão da rua. Esse povo ativo ou era considerado
do livro: “A grande e triste surpresa da nossa fanático, ou obscurantista, ou desordeiro.
geração foi sentir que o Brasil retrogradou”. O povo civil era simplesmente ignorante,
E ainda: “Foi profunda a nossa desilusão, analfabeto, doente, um Jeca Tatu. O povo
por certo. […] Vemos a cada momento, em das eleições era massa passiva de manobra.
23 Sobre o papel dos militares, ver:
Carvalho, s.d. torno a nós, a negação – não só de tudo o Como conseqüência, não viam saída para a

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República que passasse pela interferência lhorada do golpe de 1889. Em vez de uma
popular, que passasse pela democracia. parada militar pelas ruas da capital, houve
Pontes de Miranda (1990) clamava por uma um movimento nacional surgido no bojo
Segunda República via reforma constitu- da reação a mais uma eleição fraudada.
cional. Gilberto Amado pedia a formação Havia militares de novo e havia oligarquias
de “elites ilustradas de diretores mentais” dissidentes, mas havia também simpatia
(Amado, 1990, p. 66). Oliveira Vianna que- generalizada entre intelectuais, entre seto-
ria nova mentalidade dos legisladores. Por res médios urbanos e mesmo entre operá-
trás de todas as saídas propostas, estava a rios. Sobretudo, o movimento de 1930 dis-
indicação de Alberto Torres no sentido de tinguiu-se do de 1889 pelos resultados. Ele
que o Estado deveria retomar a tarefa de redefiniu de imediato a agenda política na-
organizar a nação. cional, recolocou o Estado na liderança da
A Primeira República não conseguiu nação, trouxe a questão social e sindical
unificar seus três povos. Não pôde, ou não para o centro do palco, gerou movimentos
buscou, transformar em cidadão o jeca de de mobilização popular, provocou uma ex-
Lobato, o sertanejo de Euclides, o beato do plosão de criatividade entre os pensadores
Contestado, o bandido social do cangaço, o da sociedade e da política. De onde teriam
operário anarquista das grandes cidades. saído essas forças renovadoras? Seriam
Liberal pela Constituição, oligárquica pela simples flores de pântano?
prática, não foi fruto de opinião democrá- Pode-se perguntar se o fracasso do regi-
tica nem dispôs de instrumentos para pro- me não foi decretado pelos critérios que ele
mover essa opinião. próprio estabeleceu ao se definir como re- Rebeldes
Mas seria esse um epitáfio justo para o pública liberal, e que por mecanismos não
regime que foi atropelado pela revolta de vistos e não previstos continuaram se mo-
da Revolução
1930? Afinal, 1930 foi versão muito me- vendo para a frente as forças da sociedade. de 30

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De alguma maneira, o reprimido movi- em suas características raciais foi subver-
mento operário da Velha República incidiu tida pela valorização da mestiçagem pro-
sobre a decisão de criar um Ministério do movida pelo próprio governo; a crítica ao
Trabalho e sobre a legislação social, tra- exagero federalista, já feita pelos intelec-
balhista e sindical; o excessivo domínio tuais dos anos 20, ajudou a restaurar a
oligárquico gestou dentro de si mesmo uma capacidade do governo central em definir
intelectualidade crítica e renovadora que políticas nacionais.
24 A idéia de revolução passiva, contribuiu, por caminhos muitas vezes di- É como se, entre nós, ocultados pela
de origem gramsciana, foi apli-
cada ao Brasil por Luiz
vergentes, para repensar e reorientar o país; distância entre o legal e o real, funcionas-
Werneck Vianna em A Revolu- o rebelde, indócil e marginalizado povo sem mecanismos insuspeitados de repre-
ção Passiva . Iberismo e
Americanismo no Brasil. Essa das ruas das maiores cidades se viu, pela sentação dos povos, em construção silen-
obra me serviu de inspiração primeira vez, interpelado pelos gover- ciosa e aparentemente passiva de uma ou-
para a redação dos três últi-
mos parágrafos. nantes; a descrença no povo civil baseada tra república (24).

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