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REALISMO MÁGICO
NO SÉCULO XXI
Saramandaia gera debate sobre as representações
do real na cultura latino-americana e evoca a obra
de Dias Gomes e o contexto dos anos 1970
CONSELHO EDITORIAL Sobre o Globo Universidade
Esta publicação é uma iniciativa do Globo
Alice-Maria Reiniger – Globo Universidade, área da Globo dedicada ao
Beatriz Azeredo – UFRJ/Globo relacionamento com o meio acadêmico.
Galeno Amorim – Observatório do Livro e da Leitura Criado em 1999, o Globo Universidade tem
como missão compartilhar experiências para
Helena Nader – SBPC somar conhecimento. Para isso, estabelece
parcerias com universidades do Brasil e do
Heloisa Buarque de Hollanda – UFRJ exterior, promove debates e seminários, edita
Lucia Araújo – Fundação Roberto Marinho publicações e dá apoio a pesquisas, contribuindo
para a produção e divulgação científica, além da
Luiz Eduardo Soares – Uerj formação de futuros profissionais.
Maria Adelaide Amaral – Globo A proposta do Caderno Globo Universidade é
disseminar informação e ampliar o alcance dos
Maria Immacolata Vassallo de Lopes – USP/Obitel encontros presenciais da área, sistematizando
e difundindo o conhecimento gerado. Com
Marialva Barbosa – UFRJ/Intercom isso, os encontros ganham uma versão perene
Sérgio Besserman – PUC-Rio para atingir mais leitores e transformar-se em
um documento de consulta em bibliotecas,
Viviane Mosé – Usina Pensamento/Rádio CBN universidades e centros de pesquisa.
Realização
Comunicação − Globo
Sérgio Valente, diretor
Diretoria de Responsabilidade Social
Beatriz Azeredo, diretora; Viridiana Bertolini, gerente;
Viviane Tanner, supervisora
Equipe
Alvaro Marques, Fatima Gonçalves, Gisele Gomes,
Juan Crisafulli, Julia Fernandes e Letícia Castro
Diretoria de Produção Editorial
Andrea Doti, diretora; Ariadne Guimarães, supervisora
Editores
Graziella Beting e Paulo Jebaili
Pesquisa
Cedoc
Revisão
Viviane Rowe
Projeto gráfico e editoração
Refinaria Design
Capa e desenhos Disponível na web
6B Estúdio http://bit.ly/15OkgFh
As opiniões expressas nos artigos assinados são de inteira responsabilidade de seus autores. Todo material incluído nesta
revista tem a autorização dos autores ou de seus representantes legais. Nenhuma parte dos artigos da revista pode ser
reproduzida sem a autorização prévia do Globo Universidade, dos autores ou seus representantes legais.
sumário
Nesta edição............................................................................................................................................................................................................................. 6
Artigos.............................................................................................................................................................................................................................................. 8
Dramaturgia Beatriz Resende, da UFRJ
SUBVERSIVO MIDIÁTICO, INTELECTUAL E POPULAR................................................................................................................ 10
Entrevistas.................................................................................................................................................................................................................................. 56
RICARDO LINHARES........................................................................................................................................................................................................ 58
JOSÉ WILKER...........................................................................................................................................................................................................................64
LIMA DUARTE.........................................................................................................................................................................................................................70
FERREIRA GULLAR............................................................................................................................................................................................................ 76
EDNARDO.................................................................................................................................................................................................................................... 82
DIAS GOMES............................................................................................................................................................................................................................. 88
Debate...........................................................................................................................................................................................................................................94
Galeria........................................................................................................................................................................................................................................ 102
Exposição ................................................................................................................................................................................................................................ 110
Linguagem.............................................................................................................................................................................................................................. 114
nesta edição
Quase 40 anos depois de criados, esses tipos inesquecíveis voltaram às telas, com o remake
da novela Saramandaia, e mostraram que, mesmo em tempos de reality shows, ainda há
espaço para o realismo maravilhoso no século XXI.
Essa vertente literária, que marcou a produção latino-americana dos anos 1940 a 70, teve
na novela escrita por Dias Gomes em 1976 seu principal representante na teledramaturgia.
Na época da exibição da novela, o Brasil vivia sob a ditadura militar. Saramandaia tinha,
então, nas palavras do próprio autor, o duplo propósito de driblar a censura imposta pelo
regime e experimentar uma linguagem nova na televisão. Os símbolos e metáforas presentes
no texto ajudavam a revelar os absurdos da própria realidade do país. Na fictícia cidade de
Bole-Bole, onde se passa a trama, por trás da fantasia não faltavam coronéis autoritários,
disputas políticas e jovens sonhando com mudanças. Tudo culminando com uma grande
alegoria da liberdade, quando João Gibão revelou suas asas e sobrevoou a cidade.
Em 2013, Saramandaia voltou à televisão em versão atualizada. Livremente inspirada
na obra de Dias Gomes, a nova novela, exibida entre junho e setembro de 2013, foi escrita
por Ricardo Linhares e dirigida por Denise Saraceni. O autor trouxe o microcosmo de
Bole-Bole para a realidade atual. Contando com recursos técnicos muito mais elaborados,
Linhares criou novos enredos e personagens – como o homem que literalmente fincou raízes
em casa, uma mulher que se derrete de amor e outra que cria galinhas imaginárias.
Imprimindo uma linguagem contemporânea à trama, Linhares mostra que hoje as lutas
podem ser outras, mas o recurso ao simbolismo fantástico como representação do real é
de total atualidade. A Bole-Bole de 2013 tem políticos corruptos e afeitos a conchavos,
6
Nesta edição // CADERNO GLOBO UNIVERSIDADE
Globo/Divulgação
Saramandaia volta à
televisão com novas
metáforas e alegorias
jovens manifestantes que querem moralizar a vida pública, amores secretos e gente diferente
vitimada pela intolerância dos outros. Sem deixar de lado o humor e o insólito que marcaram
a novela desde sua origem.
Para aprofundar a discussão sobre as diferentes vertentes do realismo e do fantástico na
literatura e na televisão, as características do gênero e o legado de Dias Gomes na história
da dramaturgia brasileira, o Globo Universidade realizou, nos meses de exibição da novela,
dois seminários e uma mesa-redonda – no Rio de Janeiro, em Paraty e em São Paulo –,
reunindo professores e especialistas em dramaturgia, literatura e televisão. Esta edição do
Caderno Globo Universidade reúne as palestras e debates realizados durante esses encontros.
Também traz artigos complementares, que analisam o contexto histórico, político e cultural
dos anos 1970. Além disso, por meio de entrevistas e depoimentos, atores, músicos e
escritores, parceiros ou contemporâneos de Dias Gomes, analisam sua trajetória e sua obra.
Na seção Galeria de Personagens, são apresentados os tipos inesquecíveis criados pelo
dramaturgo, além das novidades da versão atual e a descrição dos efeitos especiais utilizados
hoje. Uma série de fotografias mostra como foi a exposição dedicada ao universo de
Saramandaia, realizada em junho no Museu de Arte do Rio (MAR), e uma homenagem
a Dias Gomes, na Casa do Autor Roteirista de Paraty, montada durante a Festa Literária
Internacional de Paraty (Flip), em julho. No final, decriptamos o saramandês, dialeto típico
da cidade, que mostrou ter sobrevivido a quase quatro décadas, sem perder o vigor.
Boa leitura
7
8
Globo/Divulgação
artigos
A imaginária Bole-Bole:
microcosmo do Brasil
9
artigo
Gianne Carvalho
DIAS GOMES, O DRAMATURGO DO POVO
Com intensa atuação política, o autor da primeira versão de
Saramandaia construiu uma obra com grande densidade,
capaz de deixar personagens gravados no imaginário popular
10
Beatriz Resende // Artigo // CADERNO GLOBO UNIVERSIDADE
DRAMATURGIA
SUBVERSIVO MIDIÁTICO,
INTELECTUAL E POPULAR
Beatriz Resende, da UFRJ
Na semana em que a nova versão de Saramandaia estreou, em junho de 2013, o Brasil vivia
um momento especial. Diversos segmentos da população saíram às ruas para se manifestar,
usando como meio de mobilização as redes sociais. Tudo isso não poderia ser mais oportuno
para a reestreia de uma obra de Dias Gomes, que foi chamado de “dramaturgo do povo”.
Saramandaia voltou a público atualizada, sintonizada com o novo século, com os novos
espectadores, com as novas técnicas. O que liga o momento atual a Saramandaia, em
especial, é a perplexidade, a dificuldade em encontrar explicações usando argumentos e
instrumentos de análise e compreensão tradicionais. Os cientistas políticos e historiadores
são os primeiros a reconhecer essa perplexidade. O espanto diante do inusitado. Assim
aconteceu com Saramandaia, quando foi lançada, em 1976. Mas vou começar por Dias Beatriz Resende é
doutora em Letras pela
Gomes e sua dramaturgia para chegar até ela.
Universidade Federal do
Alfredo Dias Gomes nasceu em 1922 em Salvador – isso é importante, pois ele Rio de Janeiro (UFRJ)
e professora titular de
sempre manteve esse sotaque, não mais baiano, mas um tom local para falar do geral,
Poética do Departamento
do internacional, do mundial – e morreu em 1999 num acidente de automóvel, em São de Ciências da Literatura
Paulo. Consagrado como dramaturgo, roteirista de telenovelas, intelectual influente, eleito da Faculdade de Letras
membro da Academia Brasileira de Letras, Dias Gomes foi figura decisiva no debate obscuro da UFRJ. É autora de:
Contemporâneos: expressões
que, muitas vezes, opunha literatura e narrativa televisiva. Em 1998, publicou sua biografia,
da literatura brasileira
a que deu o nome de Apenas um subversivo.1 no século XXI (Casa da
Palavra/FBN, 2008),
Dias Gomes começou a escrever dramaturgia em 1940. De sua obra inicial ficaram
Apontamentos de crítica
menos os textos do que os personagens, como Zeca Diabo ou Dr. Ninguém. De 1944 até cultural (Aeroplano/DNL,
o golpe militar, em 1964, Dias adaptou obras literárias e criou dramaturgia para o rádio. 2002), organizou o
volume A literatura
A relativa liberdade que a arte experimentou durante os primeiros anos do regime militar
latino-americana no século
nos faz crer que foi só em 1968, com o terrível AI-5,2 que a repressão se voltou contra a XXI (Aeroplano, 2005),
intelectualidade. Não foi bem assim. O momento imediato ao golpe também foi violento, entre outros
1
GOMES, Dias. Apenas um subversivo. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 1998.
2
Ato Institucional nº 5, decretado em 13 de dezembro de 1968, durante o governo Costa e Silva, que concedia
ao presidente da República poderes para fechar o Congresso Nacional, cassar mandatos eletivos e suspender
direitos políticos de qualquer cidadão por dez anos, entre outras medidas.
11
CADERNO GLOBO UNIVERSIDADE // Artigo // Beatriz Resende
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Beatriz Resende // Artigo // CADERNO GLOBO UNIVERSIDADE
Cedoc/Divulgação
direto. O santo inquérito, de 1966; Dr. Getúlio, sua vida e sua glória,
escrita em parceria com Ferreira Gullar e montada em 1968; O rei
de Ramos, de 1978; Campeões do mundo, de 1979, e outras.
Em 1969, Dias Gomes foi convidado pela Globo para escrever
novelas. Em em seu livro de memórias, Apenas um subversivo, o autor
comenta esse episódio: “Minha situação econômica não me permitia
sequer hesitar. Tinha várias peças proibidas, e as que ainda não estavam
sê-lo-iam certamente. Não me seria permitido prosseguir com minhas
experiências teatrais, pois minha dramaturgia vivia do questionamento
da realidade brasileira, e essa realidade era banida dos palcos,
considerada subversiva em si mesma pelo regime militar [...] Por outro
lado, seria uma incoerência. Minha geração de dramaturgos ‒ a dos
anos 1960 ‒ erguera a bandeira do teatro popular, que só teria sentido
com a conquista de uma grande plateia popular, evidentemente. Um
sonho impossível, o teatro se elitizava cada vez mais, falávamos para uma plateia a cada dia Paulo Gracindo interpreta
Odorico Paraguaçu na
mais aburguesada, que insultávamos em vez de conscientizar. Agora ofereciam-me uma plateia
novela O bem-amado
verdadeiramente popular, muito além dos nossos sonhos. Não seria inteiramente contraditório
virar-lhe as costas? Só porque era agora um autor famoso?”.3
Assim, Dias Gomes se juntou ao grupo que gerou uma expressão bem-humorada, “os
comunistas do dr. Roberto” [em referência ao jornalista Roberto Marinho (1904-2003),
presidente das Organizações Globo], que eram intelectuais militantes, atuantes em movimentos
de cultura popular, que acabaram perseguidos, censurados, demitidos, e foram decisivos nos
anos 1970 para a construção de uma dramaturgia televisiva. Entre eles estão Oduvaldo Vianna
Filho, o Vianninha, Paulo Pontes, Ferreira Gullar e o próprio Dias Gomes.
Em seguida a uma série de sucessos, Dias Gomes criou, em 1975, a telenovela Roque
Santeiro, escrita a partir da peça censurada O berço do herói. A novela também foi vetada,
àquela altura com 40 capítulos escritos. Roque Santeiro só iria ao ar, reescrita, em 1985, após
a abertura política.
13
CADERNO GLOBO UNIVERSIDADE // Artigo // Beatriz Resende
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Beatriz Resende // Artigo // CADERNO GLOBO UNIVERSIDADE
Cedoc/Divulgação
uma nova proposta de literatura.
Assim é a linguagem dos personagens
de Saramandaia, com expressões como:
“cervejamos”; “perneando” pela cidade;
“derrepentemente”; ou o verbo “desmorreu”,
para o personagem Cazuza, que, literalmente,
bota o coração pela boca. Ou seja, o grotesco
convive com o fantástico.
A novela sacode os espectadores que
veem o país na cidade. Divertem-se com
o cômico, mas, sobretudo, são seduzidos
por personagens geniais: Ary Fontoura, que
se transforma em lobisomem, Wilza Carla, a Dona Redonda, que explode... Em meio a Asa Branca, em Roque
Santeiro, é mais uma
tudo isso, uma das prostitutas, interpretada por Dina Sfat, à certa altura, diz: “Tanta coisa das cidades imaginárias
importante para discutir e ficam discutindo política”. O final, com João Gibão subindo aos de Dias Gomes
ares com suas asas, é, sobretudo, um final de esperança no futuro.
Para terminar, cito um antropólogo indiano radicado nos Estados Unidos, Arjun
Appadurai.4 Ao tratar da condição global, Appadurai apresenta a cultura, a arte e a literatura
do antigo Terceiro Mundo como inscritas no “futuro como condição global”. A partir de
estudos sobre a realidade de países periféricos e comunidades pobres da África, afirma que
são três as preocupações que formatam essa compreensão do futuro: imaginação, antecipação
e aspirações. Chamo a atenção para o quanto essas questões são decisivas na construção da
produção artística, em geral, e literária, em particular, e como se relacionam com a criação
artística entre nós. O futuro de que fala o autor não é um espaço neutro, mas, sim, construído
por afeto e sensações, e são propriedades humanas como as que enunciam ‒ imaginação,
antecipações e aspirações ‒, que o formata. O futuro moldado aqui e agora por tais expressões
de sensibilidade é o que organiza um país pelo que ele chama de “ética da possibilidade”, em
oposição à “ética da probabilidade”, constituída unicamente por números, que é “amarrada
pelas formas amorais do capital global, Estados corruptos e aventureirismos particulares de
todo tipo”. O autor diz, ainda: “Por ética da possibilidade, quero dizer de modos de pensar,
sentir e agir que aumentam os horizontes de esperança, que expandem o campo da imaginação,
que produzem uma maior equidade do que chamei a capacidade de aspirar e que alarga o
campo da cidadania informada, criativa e crítica”.
Essa formulação, que vê o futuro como fato cultural, me parece política, não se refere ao
simples gosto do novo pela novidade. Concluo, apontando as possibilidades atuais da nossa
arte e cultura como uma ética. Mais ainda, como um encontro entre ética e política a ser
buscado com a imaginação como instrumento. Afinal, como diz a letra de Pavão Mysteriozo:
“eles são muitos, mas não sabem voar”.
4
APPADURAI, Arjun. The future as cultural fact: essays on the global condition. Londres: Verso Books, 2013.
Sem tradução no Brasil.
15
artigo
Gianne Carvalho
SARAMANDAIA E A FICÇÃO LATINO-AMERICANA
Texto de Dias Gomes pode ser associado à vertente
literária do realismo maravilhoso, que é uma
forma de afirmação da identidade do continente
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Vera Lúcia Follain de Figueiredo // Artigo // CADERNO GLOBO UNIVERSIDADE
VERTENTES
REALISMO
MARAVILHOSO:
O REALISMO DE
OUTRA REALIDADE
Vera Lúcia Follain de Figueiredo, da PUC-Rio
1
Em 1949, no prólogo do livro El reino de este mundo. Edição recente em português: CARPENTIER, Alejo.
O reino deste mundo. São Paulo: Martins Fontes, 2010.
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CADERNO GLOBO UNIVERSIDADE // Artigo // Vera Lúcia Follain de Figueiredo
Diante da outra cara da modernidade – aquela que se traduzia na violência das duas
grandes guerras mundiais –, a crença numa superioridade da cultura europeia ficara abalada.
Se a Europa convulsionada, na primeira metade do século XX, não indicava caminhos a
seguir, criou-se espaço para a valorização do que na cultura latino-americana fugia àquele
modelo de racionalidade. Intelectuais e artistas latino-americanos buscaram, então, pensar a
multitemporalidade do subcontinente a partir de outro paradigma. A permanência de traços
arcaicos, em função da assimilação incompleta dos valores modernos, passa a ser considerada
como positiva, promovendo-se o resgate do imaginário coletivo contra a esterilidade da
razão burguesa. Descartada a perspectiva evolucionista, o Novo Mundo podia ser visto com
outros olhos: tratava-se de reinterpretá-lo numa perspectiva que valorizasse a nossa diferença,
mas também contribuísse para mudar o que precisava ser mudado. A América, graças à sua
pluralidade de tempos, seria ainda um território aberto à correção dos rumos da história.
A ideia predominante era a de que haveria uma vantagem na nossa resistência à
aceleração do tempo, nem que fosse a possibilidade de reencantamento do mundo pelas
narrativas que faziam emergir formas de temporalidade e de historicidade irredutíveis ao
Ocidente exaurido pelo racionalismo. Nesse contexto, Carpentier lembrava que, na história
da América, heróis e rebeldes das guerras de independência misturaram-se com aventureiros
que partiam em busca da fonte da eterna juventude ou do El Dorado, compondo-se, desse
modo, um “caudal de mitologias”. Segundo o escritor cubano, “pela virgindade da paisagem,
pela formação, pela ontologia, pela presença fáustica do índio e do negro, pela revelação que
propiciou a sua descoberta, pelas fecundas mestiçagens, a história da América Latina seria
uma crônica do real maravilhoso”.2
O NOVO MUNDO PODIA SER VISTO Daí a rejeição do modelo narrativo do romance realista europeu,
COM OUTROS OLHOS: TRATAVA-SE a recusa do princípio de causalidade linear que o preside. Sendo o
DE REINTERPRETÁ-LO NUMA novo romance uma expressão do real americano, deveria trabalhar
PERSPECTIVA QUE VALORIZASSE A
com uma causalidade difusa, romper com a continuidade causa/
efeito no espaço e no tempo. Seguindo essa linha, o realismo
DIFERENÇA LATINO-AMERICANA
maravilhoso contestava a disjunção dos elementos contrapostos,
desfazendo as oposições entre real/irreal, racional/irracional que norteiam a lógica her
dada do Ocidente. Inaugurava-se, assim, um novo conceito de realismo capaz de abarcar
a realidade díspar da América, tirando partido de seus diferentes ritmos temporais, sem
hierarquizá-los. Para configurar o que seria uma nova realidade histórica, subvertia os
padrões convencionais da racionalidade ocidental: essa nova realidade histórica requeria que
se colocasse, em pé de igualdade, tanto o acontecimento histórico quanto o mito e a lenda.
Misturavam-se o tempo sucessivo da história e o tempo circular do mito, e essa mistura
permitia a elipse de ideias como anacronismo e atraso, responsáveis pelo nosso complexo de
inferioridade. Na América Latina, existiriam uma força e uma riqueza imaginativa capazes
de servir de resistência aos golpes da história.
No Brasil, onde o realismo maravilhoso teve poucos adeptos, Dias Gomes expressou
bem essa atmosfera na telenovela Saramandaia, exibida pela Globo em 1976: o personagem
2
CARPENTIER, Alejo. A literatura do maravilhoso. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1987. p. 79.
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Vera Lúcia Follain de Figueiredo // Artigo // CADERNO GLOBO UNIVERSIDADE
Cedoc/Divulgação
dimensão histórica, escapa, pelo mito, da
perseguição que lhe movem, isto é, pondo
em uso suas asas – marca de nascença que
o diferenciava dos demais seres humanos.
Além disso, personagens morrem e
retornam, incorporando-se à circularidade
do tempo mítico. O tempo sucessivo é
abalado pela simultaneidade do passado e
do presente: de madrugada, personagens
insones veem passar pelas ruas da cidade
figuras como Tiradentes e d. Pedro I.
Como se vê, na ficção do realismo
maravilhoso, tudo é possível: os elementos
sobrenaturais não provocam maiores reações
nem nas personagens nem no leitor. Ao contrário do que ocorre na literatura fantástica, que Sônia Braga e Juca de
Oliveira interpretaram o
mantém a dicotomia entre as instâncias natural e sobrenatural bem acentuada, o leitor, no
casal Marcina e João Gibão
realismo maravilhoso, não se sente impelido a decifrar os fatos insólitos: aceita-os como em Saramandaia de 1976
elementos integrados no universo ficcional. O evento extraordinário não provoca qualquer
efeito emotivo de medo ou terror. Provoca estranhamento: “O insólito, narrado em ótica
racional, deixa de ser o ‘outro lado’, o desconhecido, para incorporar-se ao real: a maravilha
está na realidade”, como observou Irlemar Chiampi.3
Assim, em História de Garabombo, o invisível, do escritor peruano Manuel Scorza, o
personagem principal, como qualquer camponês de origem indígena, não é ouvido, suas
reivindicações nunca são contempladas: passa dias inteiros na delegacia, aguardando
atendimento, porque as autoridades entram e saem sem olhar para ele. O povo conclui,
então, que Garabombo se tornara invisível aos olhos dos poderosos e o convoca para
missões arriscadas na luta contra os latifundiários, obtendo sucesso, porque Garabombo
passava entre os guardas sem ser visto. Ao final do romance – escrito a partir das lutas dos
camponeses peruanos na década de 1960 –, no confronto entre mito e história, vence a
história, ou seja, os camponeses são subjugados, mas essa vitória é relativizada pela abertura
de uma possibilidade mítica, pela alusão a um campo de força, pleno de magia, próprio do
oprimido, onde o racionalismo do opressor não penetra.
O realismo maravilhoso, apesar da realidade opressiva que descreve, não deixa, então,
de apresentar uma visão utópica da América Latina, na medida em que afirma a nossa
diferença e tira vantagem da mistura que nos caracteriza, utilizando-a como signo para
abolir fronteiras – entre o visível e o invisível, a vigília e o sonho, a vida e a morte –,
deixando em aberto a possibilidade de uma saída pela resistência à aceitação plena dos
cânones da civilização ocidental.
3
CHIAMPI, Irlemar. O realismo maravilhoso: forma e ideologia no romance hispano-americano. São Paulo:
Perspectiva, 1980. p. 59.
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CADERNO GLOBO UNIVERSIDADE // Artigo // Vera Lúcia Follain de Figueiredo
singularidade da América.
García Márquez busca, com sua estratégia
narrativa, reencontrar a perspectiva do
cronista oral que passa ao largo da
disjunção entre realidade e ficção, mito e
história. Afirma, desse modo, uma outra
temporalidade, não tributária da concepção
de tempo retilíneo da modernidade
europeia, pois o tempo, em várias obras do
autor, descreve um movimento circular –
é destruição, mas também renascimento,
alusão a uma América que nasce da
morte de culturas autóctones e que, desde
aí, vem renascendo das cinzas de seus
projetos abortados. Essa circularidade, no
entanto, não é só o que permite renascer,
Gabriel García Márquez, mas, paradoxalmente, configura-se como labirinto, isto é, como o que nos aprisiona em
um dos grandes expoentes
idas e voltas, como uma artimanha do tempo que se nega a permitir os desdobramentos
do realismo maravilhoso
na América Latina dos grandes feitos, que acabam desfeitos, como se vê em O general em seu labirinto. No
realismo maravilhoso, a temporalidade mítica, responsável pela nossa vitalidade, ao minar a
sucessividade do eixo da história, pode constituir-se também num beco sem saída.
Na esteira dessa desconstrução do tempo retilíneo, a obra de García Márquez desencadeia
todo um processo de subversão dos padrões convencionais da racionalidade ocidental,
diluindo antinomias que lhe deram sustentação, quebrando hierarquias estabelecidas. Se
os mitos produzem história e a história produz novos mitos, não há como hierarquizar
essas narrativas. A partir daí, recusa-se também a divisão que organiza a ficção dentro da
realidade, fazendo voar essa partilha, ao romper os círculos que circunscreviam um espaço
e um tempo próprio da ficção, desregulando a relação estabelecida pela velha ordem dos
discursos. A realidade latino-americana é representada a partir das narrativas que o autor
resgata e costura, entremeando fios de relatos de procedência variada, lançando mão do
amplo repertório de histórias que a mistura de culturas diversas no solo americano oferece a
quem sabe escutar. Por isso, em mais de uma ocasião, García Márquez declarou que não há,
4
FUENTES, Carlos. Eu e os outros: ensaios escolhidos. Rio de Janeiro: Rocco, 1989. p. 231.
20
Vera Lúcia Follain de Figueiredo // Artigo // CADERNO GLOBO UNIVERSIDADE
em nenhum de seus livros, uma linha que não tenha origem num fato real, acrescentando
que “os escritores da América Latina e do Caribe têm de reconhecer, com a mão no coração,
que a realidade escreve melhor”.5
Fruto da confluência do poético e do prosaico, seus textos inscrevem-se nesse mar de práticas
narrativas que constroem o que chamamos de realidade, deslocando o lugar que a modernidade
reservara para a literatura, isto é, como uma prática definida do escrever que oferece prazer apenas
a um grupo de aficionados. A literatura do autor reintegra-se no imaginário coletivo, inserindo-
se de maneira descentralizada numa rede de textos também não hierarquizados. As próprias
obras do autor deslizam por gêneros e suportes diversos. A reescritura dos textos dissolve as
fronteiras entre os gêneros narrativos e entre os diferentes suportes: as histórias podem deslizar do
jornal, do cinema e da televisão para o livro e vice-versa. Abala-se, assim, a centralidade conferida
à literatura pela modernidade, diluindo-se os limites entre os campos da produção cultural.
No entanto, tal descentramento parte do próprio escritor e não de projetos transmidiáticos
elaborados pelo mercado de bens simbólicos, visando maximizar os lucros. A arte de contar
está acima de toda e qualquer divisão, por isso a mesma matéria ficcional dá origem a diferentes
narrativas que já são reescrituras de narrativas primeiras por meio das quais tentamos imprimir
sentido ao caos dos acontecimentos.
Quebram-se, desse modo, hierarquias instituídas pelo paradigma
estético modernista, inclusive a que se estabelece pela oposição entre A ARTE DE CONTAR ESTÁ ACIMA
alta cultura e cultura de massa. Cabe lembrar o interesse de Gabriel DE QUALQUER DIVISÃO, POR ISSO
García Márquez pela radionovela O direito de nascer, e a admiração A MESMA MATÉRIA FICCIONAL DÁ
confessada pelo seu autor, como se vê no seguinte trecho de Viver ORIGEM A DIFERENTES NARRATIVAS
para contar, que se reporta ao início da carreira de García Márquez,
quando dificuldades financeiras o atormentavam: “A única coisa que devolveu meu sossego
foram os amores contrariados de O direito de nascer, a radionovela de dom Félix B. Caignet,
cujo impacto popular reviveu minhas velhas esperanças com a literatura de lágrimas”.6
Inserido num contexto cultural em que a autonomia do campo literário encontra
inúmeros obstáculos, a começar pelo reduzido número do público leitor, o escritor
colombiano contrapôs-se ao desprezo que a intelectualidade latino-americana conferia à
radionovela, reconhecendo o potencial do novo gênero pela cumplicidade que estabelece
entre o popular e o massivo. A admiração que nutre por dom Félix B. Caignet pode ser mais
bem compreendida ainda se levarmos em conta o comentário feito por García Márquez
após a experiência de adaptar um texto para novela de rádio: “Foi uma aula magistral para
as minhas ambições insaciáveis de ser um narrador em qualquer gênero”.7
A “ambição insaciável” de ser um narrador em qualquer gênero implica desafiar as
disposições estéticas tal como definidas pelas elites culturais modernas. Afastando-se tanto da
“má consciência” dos intelectuais quanto da “boa consciência” dos comerciantes da cultura,
5
GARCÍA MÁRQUEZ, Gabriel. Crônicas 1961-1984. Obra Jornalística 5. Rio de Janeiro/São Paulo: Record,
2006. p. 203.
6
GARCÍA MÁRQUEZ, Gabriel. Viver para contar. Rio de Janeiro/São Paulo: Record, 2003. p. 408.
7
GARCÍA MÁRQUEZ, Gabriel. Viver para contar. Op. cit. p. 410.
21
CADERNO GLOBO UNIVERSIDADE // Artigo // Vera Lúcia Follain de Figueiredo
Globo/Divulgação
Seu Encolheu (Matheus
Nachtergaele) e Dona
Redonda (Vera Holtz),
de Saramandaia,
personagens de ficção
inscrita no universo do
realismo maravilhoso
para usar a oposição irônica cunhada por Jesús Martín-Barbero,8 García Márquez passa ao
largo das compartimentalizações que sustentaram os paradigmas de valor instituídos com a
chamada modernidade estética. Para além dos limites impostos pelas divisões hierárquicas,
optou por ser um narrador e, ao assumir sem culpa a boa e velha arte de contar histórias,
que a estética modernista relegara à cultura de massa, contribuiu para resgatar a literatura da
solidão a que se condenara ao fazer questão de apartar-se radicalmente do gosto do público.
No momento em que a Globo apresenta uma releitura de Saramandaia, ficção brasileira
inscrita no universo do realismo maravilhoso, talvez caiba indagar se não foi também,
movido pela ambição de ser um narrador em qualquer gênero, a exemplo de Gabriel García
Márquez, que Dias Gomes aceitou escrever telenovelas. Quando questionado, em uma
entrevista, sobre essa opção, o dramaturgo declarou: “A minha geração de dramaturgos nos
anos 1950-60 sonhou com um teatro político popular. A geração Guarnieri, Vianninha,
eu, Boal, nunca conseguimos fazer um teatro popular, isto é, de plateia popular. Enquanto
fazíamos no palco uma peça contra a burguesia, na plateia estava sentada a própria burguesia.
Era uma contradição que nós nunca conseguimos resolver”.
E sem deixar de considerar que o sonho do teatro popular não foi resolvido pela
televisão, já que são gêneros diferentes, acrescentou: “Não vamos discutir o mérito das
novelas, algumas são boas, outras são ruins, alguns filmes são bons, outros são ruins, alguns
romances são bons, outros não prestam. Então, por que é que esse fenômeno (o sucesso das
telenovelas) se dá aqui no Brasil? Porque socialmente havia um papel a ser desempenhado e
que foi desempenhado pela telenovela”.9
8
MARTÍN-BARBERO, Jesús. Ofício do cartógrafo: travessias latino-americanas da comunicação na cultura.
São Paulo: Loyola, 2004.
9
RIDENTI, Marcelo. Em busca do povo brasileiro. Rio de Janeiro/São Paulo: Record, 2000. p. 329.
22
Vera Lúcia Follain de Figueiredo // Entrevista // CADERNO GLOBO UNIVERSIDADE
REALISMOS
FANTÁSTICO, MARAVILHOSO E
MÁGICO: UMA DIFERENCIAÇÃO
Globo Universidade – Ao falar sobre essa corrente do realismo, a senhora faz distinções entre os
termos fantástico, mágico, maravilhoso. No que eles se diferem?
23
CADERNO GLOBO UNIVERSIDADE // Entrevista // Vera Lúcia Follain de Figueiredo
24
Vera Lúcia Follain de Figueiredo // Entrevista // CADERNO GLOBO UNIVERSIDADE
Globo/Divulgação
tivas do realismo maravilhoso e não
do fantástico?
VF ‒ As críticas feitas pelas vanguardas europeias ao racionalismo ocidental abriram espaço O personagem de
Marcos Palmeira, Cazuza,
para a valorização do chamado mundo primitivo como alternativa aos males da civilização. ressuscita durante seu
Nesse sentido, cabe lembrar as viagens de surrealistas ao México, na primeira metade do cortejo fúnebre
século passado: Antonin Artaud, por exemplo, considerando que a cultura racionalista da
Europa fracassara, viajou para o México, em 1936, para buscar as bases de uma cultura
mágica que ainda poderia brotar das forças do solo índio. O surrealismo, sem dúvida,
perseguia o maravilhoso, mas, como observou Carpentier, os europeus precisavam fabricá-
lo de forma premeditada, isto é, na arte tudo era calculado para produzir o insólito. Em
contrapartida, os escritores latino-americanos viam o insólito surgir da própria realidade,
permeando a nossa história, inscrevendo-se no cotidiano. A diferença entre surrealismo e
realismo maravilhoso fica evidente quando García Márquez, no artigo Fantasía y creación
artística en América Latina y el Caribe,7 declara que, na América Latina e no Caribe, os
artistas têm tido de inventar muito pouco e que seu problema, ao contrário, consistia em
fazer crível a realidade que descreviam. Acrescenta, ainda, que sempre foi assim desde nossas
origens históricas, não havendo, em nossa literatura, escritores menos críveis e ao mesmo
tempo mais apegados à realidade que nossos cronistas das Índias. Também eles teriam se
confrontado com o fato de que a realidade ia mais longe que a imaginação.
7
GARCÍA MÁRQUEZ, Gabriel. Fantasía y creación artística en América Latina y el Caribe. In: Texto
Crítico, julio-septiembre 1979, nº 14, p. 3-8. Centro de Investigaciones Lingüístico-Literarias. Universidad
Veracruzana, México. Disponível em: http://bit.ly/14HQi5g.
25
artigo
Studio S3X
O SER HUMANO E SUA RELAÇÃO COM O MUNDO
Sob o gênero fantástico, relatos perpassam as esferas do
impossível e nem por isso deixam de relatar experiências do
sujeito em seu contexto
26
Ana Lúcia Trevisan // Artigo // CADERNO GLOBO UNIVERSIDADE
LITERATURA
CAMINHOS DA
REPRESENTAÇÃO
DO REAL
Ana Lúcia Trevisan, da Universidade Presbiteriana Mackenzie − SP
1
HUSTON, Nancy. A espécie fabuladora. São Paulo: L&PM, 2010.
27
CADERNO GLOBO UNIVERSIDADE // Artigo // Ana Lúcia Trevisan
28
Ana Lúcia Trevisan // Artigo // CADERNO GLOBO UNIVERSIDADE
obras uma tradição do fantástico. Esse é um campo dos estudos literários bastante instigante,
que precisa e merece ser mais bem explorado pela crítica. Destaca-se, nesse sentido, em
2003, o escritor e crítico literário Braulio Tavares,2 que publicou uma antologia de contos
fantásticos brasileiros em que demonstra a permanência do gênero na literatura brasileira.
Em 2009, o também escritor e estudioso Roberto de Sousa Causo3 organizou uma antologia
de contos brasileiros de ficção científica. São tentativas contemporâneas de resgatar uma
possível tradição do gênero e refletir sobre novos autores que estão surgindo.
A forma de expressão do fantástico presente na obra dos
brasileiros Murilo Rubião e José J. Veiga, assim como do colombiano NO GÊNERO FANTÁSTICO,
Gabriel García Márquez, pode ser evocada quando nos detemos na ELEMENTOS CONSIDERADOS
obra Saramandaia, de Dias Gomes. Todos esses autores dialogam de INSÓLITOS SÃO INSERIDOS DE FORMA
forma bastante expressiva com uma tradição do fantástico que utiliza NATURALIZADA NA NARRATIVA
as imagens e situações insólitas para resgatar o drama humano, seja
nas suas circunstâncias políticas, seja nas dimensões históricas das diferentes épocas. Pode-
se dizer, ainda, que a obra Saramandaia mantém uma tradição que remonta à literatura
povoada de imagens de um Brasil imaginário de Guimarães Rosa ou Jorge Amado, mas que
se estreita na relação com a prosa de Murilo Rubião e José J. Veiga, uma vez que estabelece
uma mesma perspectiva de fantástico, reveladora de imagens alegóricas que compõem um
cenário político. Faz história das mentalidades por meio do absurdo cotidiano.
O texto de Saramandaia se constrói a partir de uma das formas de expressão do gênero
fantástico em que os elementos considerados insólitos estão inseridos na ordem da narrativa
de forma naturalizada. Não existe espanto ou medo declarado diante de um homem com
asas; sua mãe, no caso, simplesmente reconhece a necessidade premente de apará-las. O
fato absurdo integra as relações de causa e consequência, afinal, se as asas crescem, devem
ser aparadas. Todo o absurdo em Saramandaia está plenamente incorporado e aceito no
cotidiano; o homem que quase coloca o coração pela boca pode morrer por ter engolido
errado o seu próprio coração e, posteriormente, pode “desmorrer” por causa de um solavanco
que faz o coração voltar a bater no lugar certo – em ambas as situações insólitas, as relações
de causa e consequência continuam organizando a ação. O espantoso passa a ser justamente
a ausência de espanto e de questionamento dos eventos insólitos.
Em Saramandaia, o absurdo se incorpora à realidade e essa inserção se torna uma
referência explícita ao referente extraliterário. Os fatos insólitos são metáforas do mundo
exterior e explicitam uma camada mais profunda do real, pois remetem aos muitos absurdos,
não alheios à vida das pessoas, mas intrínsecos a seu cotidiano. Na dinâmica narrativa das
situações insólitas naturalizadas, traduz-se, talvez, de modo contundente, uma forma de
representação do Brasil naqueles anos em que surgiu a obra de Dias Gomes. Afinal, qual
seria a melhor maneira de representar o absurdo dos tempos ditatoriais? Talvez por meio de
imagens absurdas e aceitas como normais. Nos regimes em que imperam governos arbitrários
e controladores, a realidade fica subordinada a falseamentos, a mentiras e silêncios. As
2
TAVARES, Braulio. Contos fantásticos. Rio de Janeiro: Casa da Palavra, 2003.
3
CAUSO, Roberto Souza. Os melhores contos de ficção científica: fronteiras. São Paulo: Devir, 2009.
29
CADERNO GLOBO UNIVERSIDADE // Artigo // Ana Lúcia Trevisan
pessoas sabem que a realidade posta é uma impostura, mas seguem convivendo com essa
realidade, na verdade, sabidamente, não real.
Dias Gomes mergulha profundamente na realidade brasileira por meio da sua narrativa
postulada como fantástica e, nesse sentido, muitas de suas imagens dialogam com a obra
de José J. Veiga, no que se refere à alusão aos poderes arbitrários presentes na vida das
pessoas comuns e, por mais absurdos que pareçam, surgem incorporados à rotina. Também
é possível identificar nesta obra de Dias Gomes a consonância com certas imagens insólitas
construídas por Murilo Rubião. Vale lembrar a personagem do conto “Barbara”,4 que
possui uma voracidade de desejos e um marido submisso sempre pronto a atender-lhes
– fica bastante evidente a relação com Dona Redonda. O aspecto
simbólico de João Gibão, o homem alado, também encontra
André de Toledo Sader/Divulgação
4
RUBIÃO, Murilo. Obra completa. São Paulo: Companhia das Letras, 2009.
5
GARCÍA MÁRQUEZ, Gabriel. A incrível e triste história da Cândida Erêndira e sua avó desalmada.
Rio de Janeiro: Record, 1972.
6
FIGUEIREDO, Rubens. O livro dos lobos. São Paulo: Companhia das Letras, 2009.
7
HATOUM, Milton. A cidade ilhada. São Paulo: Companhia das Letras, 2008.
8
MUSSA, Alberto. O senhor do lado esquerdo. Rio de Janeiro: Record, 2011.
9
DEL FUEGO, Andréa. Os Malaquias. Rio de Janeiro: Língua Geral, 2010.
30
Ana Lúcia Trevisan // Artigo // CADERNO GLOBO UNIVERSIDADE
Globo/Divulgação
Cenário de Saramandaia,
leitura televisiva do
fantástico contemporâneo
uma família encontram significados reveladores por meio de uma forma de insólito que
oscila de modo surpreendente entre os regionalismos e um sentido metafórico imprevisível,
profundamente humano.
Escrever sobre literatura significa pensar as múltiplas perspectivas que orientam tanto os
processos de escritura quanto de leitura, pois, nas relações estabelecidas entre as obras, autores
e leitores, repousa uma possibilidade interpretativa da arte literária, em suas mais diferentes
épocas. A voz do autor nos diz muito sobre cada época, porém, as formas de recepção da
literatura, os interesses variados dos leitores, são também importantes para compreender
o panorama complexo dos contextos literários. Afinal, escrevem-se, compram-se e leem-se
obras que desafiam, aquietam, consolam ou simplesmente divertem e, nessa dinâmica, os
sentidos e valores da literatura vão sendo redefinidos. A literatura fantástica também pertence
a essa dinâmica de leitores e leitura, afinal, ler o fantástico hoje significa cotejá-lo com muitas
experiências de leitura e, no caso de Saramandaia, observa-se uma nova leitura televisiva e,
logicamente, o contemporâneo se impõe na criação do enredo e da trama. Nesse sentido, a boa
literatura sempre dá a resposta e observamos que o texto de Dias Gomes ganha força na sua
nova leitura televisiva justamente pela força da palavra dos personagens de Bole-Bole. O falar
bolebolense é desde sempre muito impactante e, nesse encantamento discursivo, acentua-se o
elo de encantamento com os acontecimentos e personagens insólitos. A construção estética do
fantástico de Dias Gomes se reforça no discurso marcado pelo humor, pelas palavras inventadas
e tão naturais, o absurdo também se insinua na fala dos personagens – é o “desmorrer”, é o
“desengordar” ou são os “ares mudancistas”, enfim, as novas combinações de palavras são a
força simbólica do texto e conduzem os leitores e telespectadores no percurso metafórico e
alegórico de Saramandaia, transformando a experiência do fantástico em puro prazer, em
deleite de encantamento reflexivo.
31
artigo
Globo/Divulgação
Mobilização em
Bole-Bole: obra manifesta
desejo de mudança da
situação vigente AS FRONTEIRAS PERMEÁVEIS DA REALIDADE
Enquanto o país reinava no futebol na década de 1970,
a teledramaturgia buscava formas de driblar a marcação
cerrada dos censores da ditadura militar
32
Júlio Pimentel Pinto // Artigo // CADERNO GLOBO UNIVERSIDADE
HISTÓRIA
A FICÇÃO E SUAS
LUZES REVELADORAS
Júlio Pimentel Pinto, da USP
O Brasil, nos anos 1970, apesar do sol, era sombrio. As sombras não encobriam, por
exemplo, os campos de futebol – tanto que 90 milhões de brasileiros iniciaram a década
embalados pela recente conquista do tricampeonato mundial.
Mas as tais sombras se impunham, com assustadora constância, a outro entretenimento
querido do país, as telenovelas, que se consolidaram justamente no início daquela década,
com Irmãos Coragem, de Janete Clair, e passaram a ocupar nossas noites tropicais, durante e
depois do jantar. Mais do que afirmação de um novo produto cultural, vivia-se a constituição
de novos hábitos, novos rituais domésticos: a família se reunia diante do aparelho de televisão
e acompanhava o autoritarismo de um coronel que governava a fictícia cidade de Coroado
com mão de ferro, rejeitando o vento da mudança que Jerônimo Coragem representava.
O impacto foi imenso: nas eleições de 1970 (a novela começara em junho daquele ano
e prosseguiria até junho do ano seguinte), quando o sufrágio ainda era no papel, choveram
votos para o protagonista da novela das oito. Inevitável: o protesto dos eleitores chamou
a atenção e o microcosmo da cidade imaginária não demorou a ser encoberto pelo vulto
da censura, empenhada em obscurecer os parcos sonhos de telespectadores e seu fascínio
político, nem sempre consciente, por heróis da teledramaturgia.
Começava aí uma longa e triste história de censura e autocensura às telenovelas.
Censura comandada pelo aparato oficial que os governos militares criaram para regrar as Júlio Pimentel Pinto é
artes e o cotidiano dos brasileiros e autocensura definida pelos próprios canais de televisão, doutor e livre-docente
em História Social pela
preocupados em não confrontar o temível regime e em não sofrer as perdas financeiras que
Universidade de São Paulo
os cortes de cenas e capítulos provocavam. (USP) e professor no
Houve o caso extremo de uma novela integralmente vetada, antes de ir ao ar e com Departamento de História
da mesma universidade.
mais de 30 capítulos já gravados – aconteceu em 1975, quatro anos depois do pioneirismo
É autor de: A leitura e seus
de Irmãos Coragem e quando as intervenções dos censores já haviam se tornado rotineiras. lugares (Estação Liberdade,
No encerramento do Jornal Nacional de 27 de agosto daquele ano, o apresentador do 2004), Uma memória do
mundo. Ficção, memória e
telenoticiário leu breve comunicado, em que informava que Roque Santeiro, que estrearia
história em Jorge Luis Borges
dali a minutos, havia sido cancelada. Em meio a menções às supostas ofensas que o roteiro (Estação Liberdade, 1998),
comportava (à moral, aos bons costumes, à Igreja...), ganhava forma o espectro da censura. entre outros
33
CADERNO GLOBO UNIVERSIDADE // Artigo // Júlio Pimentel Pinto
Placar/Cortesia
Pelé, festejado na
campanha do tricampeonato
no México, em 1970: apesar
do triunfo nos gramados,
país vivia tempos sombrios
O autor de Roque Santeiro era Alfredo de Freitas Dias Gomes, ou simplesmente Dias
Gomes, e as restrições de censores a seus textos não eram novas. Já em 1942, no contexto
do Estado Novo de Getúlio Vargas, sua peça de teatro Pé de cabra havia sido censurada.
Logo no segundo ano do regime militar, 1965, outra peça, O berço do herói, fora proibida
no dia da estreia – tal qual ocorreu, dez anos depois, com Roque Santeiro, que, em boa
medida, era uma adaptação de O berço do herói para a televisão e para os novos tempos.
Como autor de telenovelas, Dias Gomes também conhecera de perto a ação da censura:
O bem-amado (1973), por exemplo, já passara pelo crivo censor e tivera trechos e até a
música de abertura proibidos.
Cerca de oito meses depois do cancelamento de Roque Santeiro, estreou Saramandaia.
Os censores provavelmente se inquietaram com o novo enredo, que envolvia disputas
políticas, figuras autoritárias e personagens preocupados em promover mudanças na fictícia
cidade de Bole-Bole. Mas Saramandaia – exibida às 22 horas, e não no horário mais nobre
das 20 horas – lidava com mitos populares, flertava livremente com tradições folclóricas,
provocava risos e, lógico, algum estupor. Durou 160 capítulos e se encerrou junto com o
ano de 1976 – ano que se iniciara com a prisão e morte sob tortura do operário Manoel Fiel
Filho, nas dependências do DOI-Codi de São Paulo, um dos órgãos decisivos do aparato
repressivo da ditadura.
Saramandaia era uma novela política? Sem dúvida, embora a estratégia narrativa
empregada por Dias Gomes volatilizasse o teor político direto e imediato, ao mesclá-lo com
elementos fabulosos, que devem ter neutralizado parte do temor dos homens do regime: um
sujeito que soltava formigas pelo nariz; outro que escondia – motivo de pilhéria e vergonha –
um par de asas; outro, ainda, que cuspia fogo; uma mulher imensa, à beira de uma (literal)
explosão; um lobisomem.
34
Júlio Pimentel Pinto // Artigo // CADERNO GLOBO UNIVERSIDADE
Os críticos, sempre ansiosos por rotular rapidamente o que viam – rótulos, não esqueçamos,
substituem a reflexão sobre o específico pela generalização e, assim, nos dispensam de pensar –,
elegeram uma expressão para designar o que passava nas telas: “realismo mágico”. O tal
realismo mágico, de resto, andava na moda. Nove anos antes de Saramandaia, uma obra do
colombiano Gabriel García Márquez havia entrado, para não mais sair, na lista dos livros
mais vendidos de todos os tempos: Cem anos de solidão. Sucesso de crítica e de público,
o extraordinário romance de García Márquez dava ressonância ampla a um conjunto de
transformações que a narrativa hispano-americana atravessava havia cerca de três décadas.
Desde os anos 1940, a representação realista, voltada à descrição informativa e
ocasionalmente documental da experiência passada e presente, parecia esgotada no romance.
Por caminhos diversos e erráticos, autores de várias partes do continente ensaiavam novos
caminhos, buscavam interpretar (mais do que analisar) e compreender (mais do que explicar)
as mudanças e os surtos de paralisia por que cada país ou região passava, as angústias sociais,
os combates tantas vezes inglórios, tecidos à luz do sol e na obscuridade dos porões. Em
suma, a complexidade da América Latina. Complexidade composta
DESDE OS ANOS 1940, A
pelas heranças coloniais, metamórficas e resistentes, pelos difíceis
REPRESENTAÇÃO REALISTA,
e inconclusos processos de formação e consolidação nacional, pela
VOLTADA À DESCRIÇÃO INFORMATIVA
epopeia de construção das nacionalidades, pelos sonhos e pesadelos
E OCASIONALMENTE DOCUMENTAL,
na relação com Europa e Estados Unidos, pelos impressionantes
PARECIA ESGOTADA NO ROMANCE
contrastes internos, pelo dificultoso reconhecimento de si mesma.
Para alguns, o que a América Latina buscava era um espelho, ou uma identidade. Esse
espelho, porém, podia estar enterrado – como sugeriu o mexicano Carlos Fuentes, que
publicara, em 1962, o vertiginoso romance A morte de Artemio Cruz – e essa identidade
podia ser falsa ou insuficiente. Identidades, sabemos, não são naturais; são construções
históricas e, como tal, correspondem às preocupações e aos dilemas do tempo que as gerou.
Devido a isso, são limitadas, artificiais e datadas.
Entre a década de 1940 e o princípio dos anos 1970, escritores de toda a América
Latina, dentro e fora da ficção, formularam conceitos e cunharam termos capazes, no seu
entender, de expressar uma realidade singular. O mexicano Alfonso Reyes relembrou as
origens fabulosas do continente e o venezuelano Arturo Uslar Pietri metaforizou, com
fôlego heraclitiano, o continente como dotado de “cultura aluvional”. Um cubano, Alejo
Carpentier, falou em “real maravilhoso americano”: América como assombro, antítese e
tensão. E outro cubano, José Lezama Lima, usou “protoplasma incorporativo” para se referir
ao caráter (auto)fágico e insaciável da expressão americana, sempre pronta a absorver novos
elementos e – neles ou por intermédio deles – se transformar.
Mesmo sem saber que já fazia pelo menos 30 anos que a crítica ao realismo tradicional e
o anseio americanista impunham-se na narrativa hispano-americana, milhões e milhões de
leitores acompanharam com paixão a saga dos Buendía – a família condenada a cem anos
de solidão, no livro de García Márquez – e acreditaram ver ali a face de um continente.
Um continente maltratado, desordenado, incerto quanto a seu passado e futuro. Uma
realidade que continha componentes inesperados, exposta num relato que embutia um
35
CADERNO GLOBO UNIVERSIDADE // Artigo // Júlio Pimentel Pinto
olhar inquieto, capaz de apreender o que havia de insólito e de assombroso no dia a dia, nas
crenças e nos anseios de cada um. O cotidiano e o maravilhoso misturados, irreversível e
reciprocamente imbricados.
O termo “realismo mágico” não foi criado na América Latina – ele surgiu na Alemanha
dos anos 1920 –, mas foi amplamente empregado pela crítica dos anos 1960 para designar
essas novas estratégias narrativas. Da mesma forma como ocorreu com os críticos brasileiros
que não hesitaram em assim definir Saramandaia, nem sempre, porém, o uso da expressão
veio acompanhado de efetiva compreensão de seu amplo significado. Porque, mais do que
um rótulo, o termo mostrava a preocupação de reconhecer que a representação realista não
precisava recorrer a dicotomias ou a descrições de realidades passadas estáticas e previsíveis;
que o trabalho de representar não precisava explicitar seu conteúdo ou sua mensagem para
se comunicar de forma eficaz.
Foram os leitores de García Márquez, somados a muitos outros milhões de pessoas, que
assistiram ao primeiro capítulo de Saramandaia, em 3 de maio de 1976. E esses espectadores
se surpreenderam e se divertiram com os personagens improváveis, com a trama rocambolesca,
com os efeitos especiais tecnicamente difíceis de serem produzidos na época. Talvez o que mais
tenha espantado os espectadores – mesmo que não tenham se dado conta de imediato – é
que, por trás do aparato mágico e irreal, tudo parecia real. O jogo de máscaras prestava-se, na
verdade, a um desmascaramento e decorria de uma estratégia narrativa escolhida justamente
para burlar o controle da censura e as limitações à liberdade de expressão.
Buscar a referência narrativa no recente romance hispano-americano já era um gesto
político de Dias Gomes. Não apenas pelo empenho de construir um relato fortemente
metafórico, mas, sobretudo, por seu sentido mais geral: identificar o Brasil como parte de
uma América Latina então marcada por regimes ditatoriais e por um contexto alastrado
de dominação interna e submissão externa. Ou seja, Bole-Bole, mesmo imaginária, estava
inserida numa territorialidade e numa temporalidade precisas.
Também os acontecimentos prodigiosos contidos na novela não surgiam de forma aleatória
ou eram mera manifestação delirante: eles correspondiam a uma espécie de ordem mítica –
Protesto dos “mudancistas”,
na primeira versão de
articulada e dotada de lógica e dinâmica internas – e expunham a proximidade (e não o
Saramandaia, de 1976 antagonismo) entre natural e sobrenatural, mostrando que o maravilhoso pode ter lugar na
realidade e que a realidade pode ser – e é – misteriosa.
Assim, ao eleger as trilhas do realismo mágico,
Cedoc/Divulgação
36
Júlio Pimentel Pinto // Artigo // CADERNO GLOBO UNIVERSIDADE
Globo/Divulgação
a história como ela efetivamente é:
marcada pela pluralidade, recheada
de incertezas e enganos, construída e
ininterruptamente reconstruída por
discursos, que são representações
com maior ou menor compromisso
com a verdade pura – verdade, que,
já disse Pôncio Pilatos e repetiu Noel
Rosa, existe, mas é inacessível: mora
num poço.
Claro que alguns elementos
presentes na representação podiam
ser mais facilmente identificados: a
farsa do poder, por exemplo, e seus
labirintos escusos. Ou a derrisão do
homem perante o tempo. Ou o caráter
estruturador que a comunidade exerce,
definindo o maior valor do público e
do coletivo, em prejuízo da aposta nas ações individuais. Ou, ainda, a crença numa espécie Seu Cazuza, prestes a colocar
o coração pela boca, em
de redenção histórica, cujo lugar é o futuro, e que pode ser capaz de nos livrar das aflições e
Saramandaia, versão 2013
vergonhas do presente para que consigamos alcançar uma condição superior e utópica – o
voo de João Gibão, cena épica e categórica do encerramento da novela de 1976, embute
precisamente esse anseio.
Saramandaia não escapou, é claro, da censura. Sofreu cortes aqui e ali, mas não foi
cancelada, como a trama anterior de Dias Gomes, nem descaracterizada, como ocorreu
com tantos filmes, peças, canções ou novelas. Os censores, experientes na decifração de
narrativas convencionais, se atrapalharam diante da novidade e não conseguiram penetrar
com sucesso nos códigos de uma telenovela que velava o acontecimento em si, ao mesmo
tempo em que explicitava seu trabalho de representação, a instância de enunciação do
discurso estético. Saramandaia, ao deslocar seus personagens no tempo e no espaço, parecia
indeterminar a condição e a posição de seus protagonistas, parecia extraí-los da realidade,
mas o sistema artístico que os ordenava imediatamente os colocava de volta no tempo e no
espaço presentes, reinstaurando a torpe realidade de um sistema fechado.
Num dos mais belos ensaios já escritos sobre o ofício do historiador, o italiano Carlo
Ginzburg afirma que a principal condição para o exercício da crítica (que, a princípio, é o
trabalho de todos que escrevem ou leem) é a distância, é a capacidade de sentir – e provocar
– algum estranhamento.1 Ao sugerir o assombro e a fantasia como forma de interpretar o
sombrio Brasil dos anos 1970, Dias Gomes, na verdade, tentava iluminá-lo com uma luz
que é mais reveladora do que normalmente se supõe: a da ficção.
1
GINZBURG, Carlo. Olhos de madeira. Nove reflexões sobre a distância. São Paulo: Companhia das Letras, 2001.
37
artigo
Globo/Divulgação
Cena de Saramandaia
em que Dona Redonda
quebra cadeira centenária
por excesso de peso RISOS PARA ABORDAR O ABSURDO NO COTIDIANO
A novela Saramandaia faz parte de uma tradição
humorística brasileira, já presente em folhetins publicados
em jornais do século XIX e na literatura de cordel
38
Elias Thomé Saliba // Artigo // CADERNO GLOBO UNIVERSIDADE
HUMOR
OS TONS DE COMÉDIA
DE SARAMANDAIA
Elias Thomé Saliba, da USP
1
“O Brasil é um país que ridiculariza o absurdo”. Entrevista publicada no Suplemento Literário de Minas Gerais,
em 22.06.1982. In: DIAS GOMES, Luana e Mayra (Org.). Encontros Dias Gomes. Rio de Janeiro: Beco do
Azougue, 2012. p. 98.
2
Cf. SALIBA, Elias Thomé. Raízes do riso: a representação humorística na história brasileira. São Paulo:
Companhia das Letras, 2004.
39
CADERNO GLOBO UNIVERSIDADE // Artigo // Elias Thomé Saliba
40
Elias Thomé Saliba // Artigo // CADERNO GLOBO UNIVERSIDADE
das asas de João Gibão e a alegoria aos anseios de liberdade. Alusões – presentes também
nas características de personagens como Seu Cazuza, Dona Redonda, Marcina e Zico
Rosado – multiplicam-se, numa modalidade que resvala naquela comicidade que provoca
o estranhamento da realidade – uma realidade menos óbvia e, daí, talvez mais verdadeira.8
Língua saramandaiense
O estranhamento também é provocado pelo uso de neologismos anárquicos nos
diálogos. Todos os personagens de Saramandaia fazem uso de uma língua própria. É
uma fala direta, sintética, que mistura um uso licencioso das palavras com alguns
arcaísmos, acrescidos de uma espécie de glossolalia de cunho lúdico que serve, muitas
vezes, simplesmente para driblar o silêncio, designando tacitamente aquilo que todo
mundo já sabe. É quando o coronel Zico Rosado, em face da neutralidade do prefeito Lua
Viana, arremata: “O senhor pode não ter culpa dos antecedentes, mas é responsável pelos
subsequentes”. É óbvio que muito dessa fala estropiada foi criada por Dias Gomes para
driblar a censura. Ele próprio relembra o encontro que teve com um censor quando quis
saber o motivo do corte de um diálogo claramente inofensivo, no roteiro de Saramandaia,
e recebeu como resposta: “O diálogo em si não é problema. O problema é o que o senhor
estava pensando quando o escreveu!”.9
Além de responder às pressões da censura onipresente, a fala OS PERSONAGENS FALAM UMA
saramandaiense também incorporava e recriava uma difusa fala LÍNGUA PRÓPRIA, QUE INCORPORA
popular. Em vez do silêncio imposto pela censura, é melhor falar, E RECRIA UMA DIFUSA FALA POPULAR
ainda que seja por intermédio de uma algaravia pitoresca. A língua MISTURADA A ARCAÍSMOS E
saramandaiense contrasta ainda com o discurso empolado do HIBRIDISMOS SINTÁTICOS
professor Aristóbulo – que ninguém entende, provoca bocejos e
cochilos, mas acaba elogiado: “É o nosso Rui Barbosa”, comenta um dos personagens. Como
em outras criações de Dias Gomes, há também na língua saramandaiense a duplicidade típica
da oralidade popular, que usa o artifício da língua erudita para nela embutir a fala subalterna
e reprimida, por meio de arcaísmos e hibridismos sintáticos.10 Embora o uso geral do dialeto
seja anárquico, certos vocábulos ganham ênfase expressiva exatamente por esse uso inesperado.
Convenhamos que “desmorrer”, “desmudar” e “desmemoriamento” são muito mais enfáticos
e sintéticos do que “ressuscitar”, “mudar novamente” ou “perder a memória”.
Em um dos diálogos de João Gibão com o arcebispo, revela-se também o caráter de imperativo
abstrato da autoridade que enxerga a diferença como uma ameaça a seu poder. “Eu sou diferente
do senhor”, diz o arcebispo. “Eu não tenho asas e nem premonição para fazer tocar os sinos sem
tocar na corda!” Gibão é direto: “Mas eu também não sou capaz de fazer uma porção de coisas
que o senhor faz!”
8
O estranhamento, como procedimento narrativo, foi utilizado em diferentes épocas. O tema é recorrente e
pode ser encontrado em “grandes teorias humorísticas” e em ensaios marginais. Cf. SALIBA, Elias Thomé.
Introdução. In: Raízes do riso. Op. cit.
9
Cf. GOMES, Dias. Apenas um subversivo. Op. cit., p. 277.
10
Entre muitos, sobretudo GOODY, Jack. A domesticação da mente selvagem. Petrópolis: Vozes, 2012.
41
CADERNO GLOBO UNIVERSIDADE // Artigo // Elias Thomé Saliba
42
Elias Thomé Saliba // Artigo // CADERNO GLOBO UNIVERSIDADE
Globo/Divulgação
na trama, nos diálogos e na
própria linguagem da telenovela.
Embora tal procedimento –
também conhecido como
desfamiliarização – já estivesse,
de alguma forma, presente nas
criações populares brasileiras, ele
só ganhou notoriedade quando
foi teorizado pelos formalistas
russos e, depois, por Bertold
Brecht. Hoje, o chamado “efeito
de estranhamento”, tido como
vanguardista, tornou-se comum –
o que não acontecia na época
da telenovela. É por isso que,
recentemente, críticos, como
Fredric Jameson, ou até
historiadores, como Carlo Ginzburg, chegaram a propor alguns “estranhamentos do efeito A consumação do amor
de Aristóbulo e Risoleta,
do estranhamento”, mostrando que ele ia muito além da mera técnica, procedimento
em Saramandaia,
literário ou recurso dramatúrgico, tornando-se parte de uma visão de mundo que remonta ao arquétipo
incorporava fortes elementos da oralidade e das culturas populares.15 de Tristão e Isolda
43
artigo
Santo Antônio em
detalhe da iluminura
de manuscrito flamengo
do século XVI: em AS MARAVILHAS ABERTAS DA AMÉRICA LATINA
cidade pernambucana,
virou vereador
Presente não apenas nas tramas da ficção, o inusitado aparece
muitas vezes no cotidiano e pode ser observado em relatos da
história do continente anteriores à era das navegações
44
Luiz Costa Pereira Junior // Artigo // CADERNO GLOBO UNIVERSIDADE
IMAGINÁRIO
Santo Antônio foi vereador de Igarassu, cidade da região metropolitana do Recife (PE), e o foi
por quase 60 anos. O santo ganhava salário, tinha cadeira no plenário e até apoio de colegas. A
Câmara de Vereadores seguia uma resolução de 1951 que regularizara o estabelecido em Carta
Régia de 1754, do rei de Portugal, d. José I. A medida foi mantida até o Ministério Público
brecar o santo salário em 27 de abril de 2008, sob protesto dos parlamentares e discurso de
repúdio da Presidência da Casa. O sagrado dinheiro mensal, que até 2008 ainda era repassado
a uma instituição de caridade pernambucana, não foi a única honraria conferida a Santo
Antônio no Brasil. Em 1705, ele foi promovido a capitão pelo governador da Bahia.
O surrealismo da coisa pode ser mais comum na vida americana do que se supõe e
menos imotivado do que se poderia crer. A América Latina é irrigada por episódios em que a
imaginação assume a forma de real e parece ocupar um lugar especial no pensamento. Muito
do nosso universo cotidiano lembra uma imensa Saramandaia, obra máxima do realismo
mágico na TV brasileira, que Dias Gomes assinou nos anos 1970 e foi revivida em 2013.
Dias Gomes propôs um pacto de suspensão que não soou absurdo ao público televisivo
de seu tempo, seguindo os passos da literatura latino-americana dos anos 1960. E fez
conviver um homem que espirra formigas com a dona que termina explodindo de tanta
gordura, o lobisomem fidalgo e um rapaz alado com a mulher que, literalmente, pega fogo
quando excitada. Os mutantes de Saramandaia são o que são porque, sendo todos diversos Luiz Costa Pereira Junior
é jornalista, doutor em
em convivência, ainda assim muita coisa nos separa na sociedade – constitui, portanto,
Filosofia e Educação pela
perda de tempo pôr reparo na bizarria alheia. Universidade de São Paulo
(USP) e editor da revista
Não é possível olhar a vida latino-americana com olhos outros, constatou Gabriel García
Língua Portuguesa (editora
Márquez1 ao receber o Nobel de Literatura, em 1982. Márquez destinou todo seu discurso Segmento). Autor de:
de agradecimento na Academia Sueca, em Estocolmo, à exclusiva missão de explicar por que A Apuração da Notícia
(Vozes), A vida com a TV −
sua literatura se pôs a serviço do realismo mágico. Márquez recorre à memória do general
O poder da televisão no
Antonio Lopes de Santa Anna (1794-1876), três vezes ditador do México, que fez enterrar, cotidiano (Senac São Paulo,
com funeral, a perna que perdera numa batalha, não se sabe bem se em 1846 ou 48. 2002), entre outros
1
GARCÍA MÁRQUEZ, Gabriel. La realidade americana no se compreende con ojos europeus. In: El Tiempo.
Bogotá, Colômbia, 9 jan 1982. p. 6A. Republicado em Comunicação & Política. Rio de Janeiro: Paz e Terra /
Centro Brasileiro de Estudos Latino-Americanos, vol. 2 (n. 1-2): 141-144, mar/jun 1984.
45
CADERNO GLOBO UNIVERSIDADE // Artigo // Luiz Costa Pereira Junior
46
Luiz Costa Pereira Junior // Artigo // CADERNO GLOBO UNIVERSIDADE
Para o leitor de hoje, a tal pedra negra tem silhueta mais mundana, a do carvão. O
maravilhoso ocidental não exige a concordância entre o objeto e o narrado. O rinoceronte
e o unicórnio são o mesmo animal, mas a imaginação europeia garantiu independência ao
mito em relação a seu modelo. A raridade ignorada credencia a mirabilia.
Na Idade Média, o maravilhoso foi útil. Fundamentava, por exemplo, o milagre religioso.
A descrição de monstros preparou o caminho para a assimilação de feitos espantosos na
Bíblia. Seria produto não da ignorância, mas de uma racionalidade que buscou justificar o
maravilhoso da fé.
Em Cidade de Deus, Santo Agostinho aclimata prodígios pagãos ao ideário cristão:
os frutos de Sodoma se desmancham em fumaça cinza quando apertados e as éguas da
Capadócia são fecundadas pelo vento. Em Agripento, um sal se dilui no fogo e chamusca
na água. Os garamantes, que habitaram o Saara na atual Líbia, entre 500 a.C. e 500 d.C.,
têm uma fonte que esfria de dia e aquece à noite.
Para os europeus medievais, os relatos extraordinários eram menos uma preferência
instintiva pelo maravilhoso do que uma tentativa de redimir monotonias, de compensar
carências, de dar sentido à própria ignorância ou apenas confirmar a Bíblia.
Esse imaginário afetou a visão inaugural da América, antes mesmo das grandes
navegações. No século XII, o monge beneditino francês Lambert de Saint-Omer (1061-
1125) apresentou um mapa-múndi que incluia um continente austral gigante. Séculos
antes, o Comentário ao Apocalipse de João, do monge asturiano Beato de Liébana (c.730-
798), inspirou mapas de um quarto continente habitado por ciápodos (skia-podos, sombra-
pé). Uma das possíveis fontes do nosso saci-pererê, ciápodos eram seres com uma perna só,
cabeça tão ao chão que seus cabelos criariam raízes e um pé tão largo que podiam deitar de
costas e, com a extremidade à contraluz, adormecer à própria sombra.
Numa época em que se acreditava em tudo o que as Escrituras diziam, o Éden se instalou
na superfície do planeta, relatam Jorge Magasich-Airola e Jean-Marc de Beer, em América
mágica.4 “O Paraíso é um lugar situado entre as terras orientais”, localiza Santo Isidoro de
Sevilha (560-636), no livro XIV (De Terra et partibus) das Etimologias. Um
périplo do século XIV situa o Paraíso ao sul da África, dizem Magasich-Airola e O MARAVILHOSO
Beer. A ignorância brutal do planeta fertiliza a imaginação. OCIDENTAL NÃO
Não é, portanto, por efeito apenas retórico que o almirante genovês Cristóvão DEMANDA QUE HAJA
Colombo (1451-1506) afirmaria em sua carta ao papa Alexandre VI, de fevereiro CONCORDÂNCIA ENTRE
de 1502: “Acreditei e acredito no que acreditaram e acreditam tantos santos e O OBJETO E O NARRADO
sagrados teólogos: ali, naquela região, se encontra o Paraíso Terrestre”.
A Inquisição ainda se atormentaria com a questão. O português Pedro de Rates Henequim
foi preso em 1771 e condenado à morte ao se recusar a renunciar às ideias que propagara,
como relata Hernâni Donato no ensaio “No Brasil, o paraíso”.5 A pena de Henequim foi
4
MAGASICH-AIROLA, Jorge; BEER, Jean-Marc de. América mágica – quando a Europa da Renascença
pensou estar conquistando o Paraíso. São Paulo: Paz e Terra, 2000.
5
DONATO, Hernâni. No Brasil, o Paraíso. Palestra dada em 27 de março de 2007. In: Cem anos do Instituto
Histórico e Geográfico de São Paulo. São Paulo: IHGSP, 2013. p. 823-836.
47
CADERNO GLOBO UNIVERSIDADE // Artigo // Luiz Costa Pereira Junior
6
MAGASICH-AIROLA, Jorge; BEER, Jean-Marc de. América mágica. Op. cit. p. 59-60; DONATO, Hernâni.
No Brasil, o Paraíso. Op. cit. p. 827.
7
VESPUCIO, Américo. Cartas del viaje. Madrid: Alianza Editorial, 1986.
8
MAGASICH-AIROLA, Jorge; BEER, Jean-Marc de. América mágica. Op. cit. p. 73-74.
9
DONATO, Hernâni. No Brasil, o Paraíso. Op. cit. p. 829.
48
Luiz Costa Pereira Junior // Artigo // CADERNO GLOBO UNIVERSIDADE
Os casos americanos de relato fantástico parecem vir em traje factual, contam com a
confiança mágica na palavra dada, um sincero encarar como plausíveis variados tipos de
bizarria, de relatos fantásticos demais, com um “realismo surrealista”, que é uma forma de
familiaridade com o não conhecido. Não, não é possível olhar o outro sem imaginar-se
outro. Haveria na linguagem latino-americana uma preferência instintiva pela imaginação,
uma busca pelo inusitado que nos é habitual, mas essa preferência seria na verdade outra
forma de pensar realidades a que não se está habituado.
Histórias fictícias como Saramandaia ou jornalísticas como a do santo vereador traduzem
uma visão de homem que desconfia das instituições e toma a condição humana como a de
seres vulneráveis ao mundo. Num país e num continente de tantas incertezas, de tanto
obstáculo a planejamentos duradouros, de amanhãs imprevisíveis e promessas que sabemos
de antemão irrealizáveis, nosso imperativo é fazer pelota com garantias cem por cento.
A aceitação e até ampliação do “maravilhoso” de herança europeia encontraria terreno
fértil nesta parte do continente, marcado pela confluência (ora abundância) de outros
imaginários e tipos de pensamento, que só a cultura da mestiçagem e do drible permitiria.
O latino-americano é feito de hibridismos, da habilidade para habitar-se do estranho.
Um comportamento fruto de nossa mestiçagem cultural e da necessidade de evitar o ônus
das hierarquias rígidas entre desiguais levaria a uma contaminação do interno pelo externo,
a um relacionamento deflacionário com o ignorado, com o “outro”, a uma conduta que O navegador Américo
Vespúcio relata encontro
funde o conhecido ao não conhecido, a matéria ao espírito.
com índios com mais de
Autores como Dias Gomes ajudam a mostrar que a fantasia da imaginação, naturalizada 130 anos de idade
Reprodução
de pensamento encarnadas nos idiomas que aqui entraram em
contato (português, tupi, banto, espanhol, quíchua, guarani
etc.) e o jeito como invertemos a rigidez das hierarquias
sociais podem nos ter forjado uma espécie de “naturalidade”
com o pensamento mágico, a mesma que fez parlamentares e
instituições encararem um santo vereador com familiaridade.
O fato é que nossa relação com o mundo e as pessoas
é determinada mais pelas versões dadas pela linguagem
do que pelos acontecimentos reais. O real é linguagem. Se
ela rompe com as lógicas de raciocínio que herdou, como
volta e meia se vê na América Latina, é de se acreditar que
ela cria um efeito de real que, em produtos da linguagem
(narrativas, relatos orais, textos, roteiros de TV), parece
não raro mais real do que o real – Saramandaia é, por isso,
exemplo e acalanto.
Nessas horas, mesmo a mais fria das regras da razão tende
a ser mais genuína quando vira festa da imaginação.
É real, mas é outra coisa.
49
artigo
Studio S3X
A CULTURA POPULAR NAS TELAS
Depois de uma longa trajetória como autor de textos para
teatro e rádio, Dias Gomes foi para a televisão, veículo no
qual ampliou o espaço ficcional de seus personagens
Visado pela censura, Dias Gomes estreou na televisão usando
pseudônimo. Aos poucos, ajudou a transformar a linguagem da
teledramaturgia, que passou, na década de 1970, por um processo de
modernização e aprimoramento técnico e estético.
Até aquela época, as novelas eram melodramas ambientados
geralmente no exterior, com situações e personagens distantes da
realidade brasileira. O autor baiano chegou trazendo ingredientes
do universo que conhecia bem: a cultura popular, com seus folclores
e mitos, o sincretismo religioso e os conflitos do homem moderno.
Associando essa realidade com situações de alegoria e absurdo, sem
dispensar o humor e a sátira característicos de seus textos, criou novelas
que revelaram uma face do Brasil pouco mostrada na televisão.
No artigo a seguir, Mauro Alencar, especialista em teledramaturgia,
mostra como o autor conseguiu, em suas novelas, criar uma nova
mitologia para os brasileiros.
50
Mauro Alencar // Artigo // CADERNO GLOBO UNIVERSIDADE
TELEVISÃO
A MAGIA DA
AMÉRICA LATINA
Mauro Alencar, pesquisador e membro da Academia Internacional de Artes e Ciências
da Televisão de Nova York (Emmy)
51
CADERNO GLOBO UNIVERSIDADE // Artigo // Mauro Alencar
Entretanto, o termo “realismo fantástico” foi empregado pela primeira vez em 1925,
pelo crítico alemão Franz Roh.1 O conceito servia para agrupar pintores alemães pós-
expressionistas, cuja principal característica era a pintura de objetos comuns, mas a partir
de olhares múltiplos, maravilhados, como uma mágica recriação da realidade. Na literatura,
a década de 1920 foi fundamental para a consolidação do realismo fantástico como
gênero narrativo. São obras basilares desse momento Les enfants terribles, de Jean Cocteau,
L’avventura novecentista, de Massimo Bontempelli, além de A metamorfose, de Franz Kafka.
O narrador fantástico caracteriza-se pelo uso de uma retórica que prescinde das leis e da
lógica do mundo físico, mas que, sem maiores explicações, atravessa o frágil limiar do real
e do imaginário e apresenta uma ação absurda e/ou sobrenatural, cujo conflito é resolvido
por meios não convencionais. Em O médico e o monstro, Robert Louis Stevenson apontou
o duelo entre o bem e o mal ao dividir um personagem em dois perfis antagônicos: o dr.
Jekyll – virtuoso e civilizado –, e o Mr. Hyde – selvagem e demoníaco.
O realismo fantástico e o realismo mágico têm diversas características em comum,
mas a principal distinção é a maneira de se encarar os acontecimentos fora da ordem do
real. No realismo mágico, todo tipo de anormalidade é interpretado como manifestação
natural, com explicações até intuitivas (o que submete personagem e ação à ordem da
natureza, cujas leis de vigência são alheias à lógica humana). Já no realismo fantástico,
acontecem episódios grotescos, estranhos, sobrenaturais e mágicos que são identificados
Les enfants terribles: pelos personagens da narrativa como um desvio da normalidade, um momento de quebra
realismo fantástico
consolidado como
da lógica racional humana. Entretanto, nesse gênero, tais rupturas causam perplexidade e
gênero narrativo espanto, ainda que também sejam consideradas parte da realidade.
Entre os anos 1940 e 1970, o realismo fantástico confundiu-se
Reprodução
52
Mauro Alencar // Artigo // CADERNO GLOBO UNIVERSIDADE
maridos), Murilo Rubião (O pirotécnico Zacarias), José J. Veiga (O relógio Belisário), Aníbal
Machado (Acontecimentos em Vila Feliz) e José Cândido de Carvalho (O coronel e o lobisomem),
mas não foi tão predominante quanto em países vizinhos (como Argentina e Chile).
A televisão absorveu esses ecos latino-americanos. Alguns autores, como
Ivani Ribeiro, mantinham em seus textos toques de realismo fantástico, RETÓRICA DO FANTÁSTICO
mas sempre subordinados ao melodrama folhetinesco. Os estranhos (TV PRESCINDE DAS LEIS E DA
Excelsior, 1969) desenvolve uma trama de ficção científica na qual um LÓGICA DO MUNDO FÍSICO
escritor, Plínio Pompeu (Pelé), é surpreendido por habitantes de outro
planeta (Gama Y-12) que estão na Terra. No entanto, assim como já ocorrera na literatura
latino-americana, o realismo fantástico foi empregado na televisão para driblar a censura do
regime militar. Assim, mensagens de liberdade chegavam ao público sem que os censores
notassem qualquer intenção “subversiva”.
A Globo iniciou o processo de modernização e industrialização da telenovela no início
dos anos 1970. Para tanto, promoveu radicais contribuições ao gênero, como a consolidação
de temáticas nacionais, a introdução de novas tecnologias, o aperfeiçoamento da estética
(cenários, vinhetas, trilhas sonoras, figurinos e aberturas), a integração de autores da literatura
e do teatro à telenovela, entre outros. Quanto à linguagem, muitas foram as iniciativas, mas
a aposta no realismo fantástico talvez tenha sido uma das mais ousadas até então. Quem
trouxe a ideia de se trabalhar o realismo fantástico como cerne de uma telenovela foi um
certo autor baiano, muito conhecedor das crenças e mitologias do brasileiro: Dias Gomes.
Nascido em 1922, encontrou em sua juventude o talento de escrever para o teatro.
Sempre com temáticas muito próprias, seus textos revelam uma outra face do Brasil, não
raro negada: o coronelismo, a vida do cangaço, o questionamento da fé e da religião, o
oportunismo dos poderosos, dos contraventores, ante o povo humilde e de boa índole,
mas de baixa educação. Tudo isso sem esquecer o humor e a ironia característicos do
autor. E, por esses motivos, Dias Gomes foi um dos maiores alvos da censura que imperou
no regime militar.
O autor, que aos 15 anos escreveu sua primeira peça, teve uma longa sequência de
grandes obras no teatro, além de ter desempenhado várias funções em emissoras de rádio.
Em 1969, Dias Gomes estreou na televisão de um modo curioso. Para poder trabalhar,
já que estava muito visado pela ditadura, o autor iniciou sua carreira de novelista com
o pseudônimo de Stela Calderón. Sob a supervisão da cubana Glória Magadan, escreveu
para o horário das dez (que ajudou a consolidar com novelas de grande sucesso) A ponte
dos Suspiros, adaptada do romance de Michel Zevaco. De acordo com a linha de produção
novelística da época na Globo, a história estava ambientada numa Veneza de 1500, com
situações e personagens distantes da realidade brasileira.
No entanto, a grande chance na televisão – veículo em que Dias ampliou o espaço
ficcional de seus personagens – chegou ainda em 1969, com a saída de Glória Magadan. Com
Verão vermelho (1970), ambientada na Bahia, Dias conseguiu falar de seu universo: conflitos
do homem moderno, sincretismo religioso, temas polêmicos. Logo em seguida, Assim na
Terra como no Céu (1970/71) discutia o abandono do sacerdócio e a juventude dourada
53
CADERNO GLOBO UNIVERSIDADE // Artigo // Mauro Alencar
54
Mauro Alencar // Artigo // CADERNO GLOBO UNIVERSIDADE
1923) retrata a Condessa Creuza, a mais bela moça da Grécia, que fora trancada
Cedoc/Divulgação
pelo pai no quarto mais alto de um sobrado. Uma vez por ano, a moça aparece
ao público por uma hora, o que causa grande comoção nos populares. Um retrato
da desafortunada condessa chega à Turquia e acaba encantando Evangelista.
Apaixonado, ele vai para a Grécia na tentativa de resgatar Creuza de seu infortúnio
e, para isso, encomenda a um engenheiro um par de asas para conseguir alcançar o
quarto da amada. Essa história, com forte apelo popular e influência de crendices
e clássicos da literatura, como As mil e uma noites, teve boa receptividade durante
a exibição de Saramandaia, vendendo 50 mil exemplares.
Walter Avancini, diretor-geral da novela, após passagem por clássicas produções,
como Selva de pedra (1972) e O semideus (1973), prosseguia com sua busca por
novas linguagens (Gabriela e O grito, de 1975) para a compreensão da sociedade
brasileira. Não existia, na produção audiovisual brasileira, um departamento de
efeitos especiais. Portanto, tudo era um constante desafio: “soluções caboclas”, “uma busca, Walter Avancini:
diretor em busca de
um laboratório”, nos dizeres do próprio Walter Avancini por ocasião da estreia da novela.
novas linguagens para
A crítica social e política estava presente nas alegorias e situações absurdas que se sucediam a teledramaturgia
a cada capítulo. A explosão de Dona Redonda era uma perfeita metáfora à crescente tensão
acumulada nas pouco diplomáticas relações dos militares para com os opositores ao regime
ditatorial. A figura de Zico Rosado era uma alegoria sobre o poder e seus comandantes que,
ao fim, sucumbem devido às próprias limitações.
Com o fim das ditaduras militares na América ao longo dos anos 1980 e 1990, o realismo
fantástico assumiu novas proporções tanto na literatura quanto na televisão. Aguinaldo Silva e
Ricardo Linhares tornam-se os principais nomes dentro desse novo contexto e conduzem até o
século XXI toda a herança deixada por Dias Gomes (na telenovela), Alejo Carpentier, Arturo
Uslar Pietri, Juan Rulfo, Carlos Fuentes, Jorge Luis Borges, Julio Cortázar, Mario Vargas Llosa e
Gabriel García Márquez (na literatura).
Tramas como Roque Santeiro (1985/86), O sexo dos anjos (1989/90, de Ivani Ribeiro),
Vamp (1991, de Antonio Calmon), Pedra sobre pedra (1992, de Aguinaldo Silva, Ana Maria
Moretzsohn e Ricardo Linhares), Deus nos acuda (1992/93, de Sílvio de Abreu), Fera ferida
(1993/94, de Aguinaldo Silva, Ana Maria Moretzsohn e Ricardo Linhares), A indomada (1997,
de Aguinaldo Silva e Ricardo Linhares), Meu bem querer (1998/99, de Ricardo Linhares), Um
anjo caiu do céu (2001, de Antonio Calmon), Porto dos milagres (2001, de Aguinaldo Silva e
Ricardo Linhares), Sete pecados (2007/08, de Walcyr Carrasco) e Tempos modernos (2010, de
Bosco Brasil) apontam novas possibilidades e brechas para o onírico mesmo em uma realidade
tão fragmentada, robotizada e problemática quanto a que vivemos neste início de século.
Atualmente, o remake de Saramandaia escrito por Ricardo Linhares traz à tela toda a temática
do realismo fantástico, estabelecendo uma ponte entre o antigo e o novo: os mesmos personagens
e suas alegorias criados por Dias Gomes agora são atualizados e inseridos em novos contextos
por Linhares. O realismo fantástico ganhou força ao simbolizar uma possibilidade de sonho e
subjetividade dentro de um contexto cosmopolita sufocante e caótico. Tornou-se uma janela em
forma de parábola para refletir e abstrair os (des)caminhos de nossa sociedade.
55
CADERNO GLOBO UNIVERSIDADE // Artigo // Nome do Autor
56
Nome do Autor // Artigo // CADERNO GLOBO UNIVERSIDADE
Globo/Divulgação
Luciana Serra
Globo/Divulgação
detestava que os atores acrescentassem impro-
visos a seus textos e, quando isso acontecia,
ele mandava um recado desaforado dizendo:
“Dispenso colaborações”. Como é que você
agora resolve escrever uma obra livremente
inspirada em um texto dele?
59
CADERNO GLOBO UNIVERSIDADE // Entrevista // Ricardo Linhares
dentro da mesma temática do realismo mágico, usuais na sociedade. Como o João Gibão com
para proporcionar à novela e à história coisas que suas asas, ou o Aristóbulo, que só é aceito na ci-
faltavam naquela época, como o romance. Dias dade enquanto não se assume como lobisomem.
Gomes sofreu uma marcação muito grande da No momento em que, por uma peripécia da
censura, não só politicamente como em termos trama, ele acaba se revelando lobisomem dian-
de comportamento. Ele não podia, por exemplo, te da cidade inteira, no meio de uma festa, ele
mostrar relacionamentos adúlteros naquela épo- passa a ser rejeitado pelas pessoas porque foge do
ca, e hoje em dia abro a novela com o caso de comum. Eu quis aproveitar isso nesses persona-
Zico Rosado e Vitória – ele é casado e ela, viúva. gens, assim como a Marcina, que é mal olhada
Esse adultério era uma coisa impensada na época. porque pega fogo quando fica excitada. Apro-
A novela era uma me- veito isso para tratar de um tema que considero
ALÉM DA RENOVAÇÃO QUE TROUXE táfora da ditadura, sem atual, a intolerância, que existe em qualquer lu-
À TELEDRAMATURGIA, SARAMANDAIA uma história de amor gar do mundo, em qualquer sociedade, a quem
TEVE UMA IMPORTÂNCIA empolgante. Por isso foge dos padrões.
HISTÓRICA NO PERÍODO QUE O criei todo esse núcleo
BRASIL ESTAVA VIVENDO de personagens novos GU – A Dona Redonda é uma encarnação
e tirei outros que esta- desse preconceito?
vam muito datados, cujas histórias, antigas, não RL – É uma encarnação, porque ela é muito
fariam nenhum sentido hoje, como uma velha cruel com as pessoas. É incapaz de olhar para
disputa entre coronéis. A novela tem um ritmo si mesma criticamente, mas é capaz de criticar
muito ágil, que é o da vida atual, da dramaturgia todo mundo na cidade, colocar apelidos hor-
contemporânea brasileira, americana e universal. rorosos nas pessoas. Ela é uma personagem de
A única maneira de fazermos isso hoje em dia é má índole. Só que, quando o João Gibão tem a
recriando o texto, com novos personagens, novas visão de que ela vai explodir e as pessoas come-
tramas, em um novo contexto também. çam a ficar com medo de que ela entre em suas
casas, ou na igreja, ela passa a sofrer o bullying
GU – É possível dizer que um dos aspectos
que antes praticava e sente o peso da ditadura da
que você pegou da obra de Dias Gomes é o do
intolerância na própria pele. Isso tudo faz parte
amor ao diferente, entre diferentes? A intole-
da liberdade de poder pegar o texto do Dias Go-
rância ao diferente?
mes, ou de qualquer outro autor, e atualizá-lo.
RL – Se Dias Gomes usou a novela, na sua épo-
GU – Os personagens têm um jeito diferente
ca, como uma metáfora da ditadura militar, eu
de falar. De onde vem o “saramandês”?
a transformei na metáfora da ditadura da into-
lerância, na qual continuamos vivendo, e talvez RL – Os personagens têm essa maneira especial
ainda continuemos por muito tempo. Eu quis de falar, que não é corriqueira. Eu quebro com o
aproveitar os personagens que têm um traço de naturalismo urbano habitual das novelas, embora
“diferencice”, como dizemos nos textos, que fo- não use expressões nordestinas nem interioranas.
gem do padrão, para tratar justamente do pre- É, digamos assim, uma língua peculiar, uma mis-
conceito que as pessoas têm com quem foge do tura de diversas influências. Os personagens falam
comum, com quem tem comportamentos não que “vão ter um conversório” e não uma conversa,
60
Ricardo Linhares // Entrevista // CADERNO GLOBO UNIVERSIDADE
assim como eles têm uma “problemática”, em vez libertação do João Gibão, por exemplo. Mas eu
de um problema. Parte do vocabulário vem da mudei totalmente a maneira de contar a histó-
obra do Dias, remetendo a O bem-amado, outra ria. Na primeira versão, o público só descobria
parte é inventada por mim na hora de criar os que ele tinha asas quando, na última cena do
diálogos. Isso dá um sabor diferente à novela, que último capítulo, ele voa. Eu já abro a novela
tem uma ousadia formal, técnica e de conteúdo. mostrando suas asas. A Dona Redonda explo-
[Leia mais sobre o assunto na página 114.] dia bem no começo da novela do Dias, que ti-
nha 160 capítulos, e isso só acontece na reta
GU – Dias Gomes escreveu em sua autobio- final da minha. Ela, aliás, não tinha nenhuma
grafia que Saramandaia foi a novela que importância dentro da história. Entrava apenas Ricardo Linhares diante
lhe deu mais prazer em escrever, mas depois para chamar alguém de “comunista” e acabou, de estátua do “Santo Dias”,
reconheceu que tinha escrito coisas para re- padroeiro de Bole-Bole,
não tinha trama. Eu aumentei esse papel, crian- em homenagem do autor
cursos técnicos que a televisão só viria a ter do um antagonismo entre ela e o Gibão. a seu antecessor
muito tempo depois. A televisão, na época
dele, era quase teatral. Os novos recursos tec-
Gianne Carvalho
nológicos possibilitaram voos mais altos do
realismo mágico?
61
CADERNO GLOBO UNIVERSIDADE // Entrevista // Ricardo Linhares
GU – Há uma citação de Dias Gomes em que brasileira é apegado à realidade. Não é à toa
ele diz que é subversivo, independentemente que os reality shows fazem tanto sucesso. As pes-
de ser comunista. E diz que ser subversivo “vai soas querem ver na televisão algo que as ajude
além da militância política, é algo ligado ao na vida real. Não precisa nem ser realista. O
sonho. Sem os sonhadores, a humanidade não público não quer ver o fantástico, sobretudo o
anda. E hoje a juventude não sonha, porque brasileiro de televisão aberta, pois, em termos
acha que é coisa antiga”. Hoje em dia, na Co- mundiais, os seriados de sucesso americanos e
lômbia, por exemplo, a nova geração passou ingleses têm vampiros, reinos mágicos etc. Mas
a implicar muito com essa linguagem do rea- não se deve confundir realismo mágico com o
lismo mágico, por achar que ela não dá mais fantástico. Uma das características do realismo
conta de uma representação latino-americana fantástico é fazer crítica social e política. Bole-
e, ao contrário, coloca a América Latina num -Bole é um retrato, em menor escala, de uma
gueto de representação. Você acha que hoje há grande cidade ou até de um grande país, e de
menos interesse pelo realismo mágico? todos os seus conflitos e problemas sociais, po-
líticos e comportamentais.
RL – Quanto à questão política, acho que hou-
ve, de fato, um momento de alienação grande
GU – No universo do realismo fantástico,
da juventude brasileira, mas esse momento já
teoricamente pode-se criar tudo. Mas a fic-
passou. Dos anos Collor [início da década de
ção tem uma lógica, um limite, sua realidade
1990] para cá, iniciou-se uma mobilização po-
própria. Até onde a imaginação pode ir para
lítica muito forte e isso está na novela: o desejo
criar uma obra que não seja vista pelo público
de mudar e de começar um novo tempo, sem
como um “delírio absoluto”?
Personagem de Tarcísio os dinossauros da velha-guarda. Quanto ao
Meira lê García Márquez
rodeado por sua família:
sonho, a parte não realista, como disse antes, RL – De fato, pode-se fazer tudo, mas existe
núcleo todo é novo na trama sinto que hoje em dia o público da televisão uma realidade interna, é a credibilidade. Em
Saramandaia, o Cazu-
Globo/Divulgação
za levanta, ressusci-
ta, mas ninguém se
pergunta se ele teve
uma catalepsia. Ele
simplesmente ressus-
citou. O que aconte-
ceu foi que, quando
colocou o coração de
volta na boca, ele en-
trou por um lugar er-
rado. Mas, durante o
cortejo, quando o cai-
xão caiu no chão, seu
coração voltou para o
lugar certo. Então, é
62
Ricardo Linhares // Entrevista // CADERNO GLOBO UNIVERSIDADE
Globo/Divulgação
simples. Dentro da lógica da novela, isso é rea- quem contava coisas fantásticas. Esse era o Clã dos Rosado,
fundadores de Bole-Bole
lista. Para os personagens, isso é a realidade. Para segredo da dobradinha.
quem está vendo de fora, é um realismo mágico.
Mas, para quem vive ali, aquilo não é engraçado, RL – Um dos grandes desafios ao refazer Sara-
não é mágico, é simplesmente o dia a dia deles. mandaia é pegar essa linguagem do realismo
Assim como o fato de o personagem de Tarcísio mágico da novela original do Dias Gomes, que
Meira ter raízes. As pessoas perguntam: “Está era atemporal, e colocá-la dentro de um contexto
coçando muito?”, como se fosse uma verruga. contemporâneo. Ele misturava elementos de vá-
Ninguém acha que é uma coisa do outro mundo rias épocas, apareciam d. Pedro, Tiradentes e, ao
alguém ter raízes. O público em casa vai ter essa mesmo tempo, situava a novela em Pernambuco,
sensação porque está vendo uma obra que foge mas não a contextualizava exatamente em sua
aos padrões do realismo habitual. época, no contexto em que vivia. Eu situo Sara-
mandaia nos dias de hoje. Ela é completamente
GU – Isso está de acordo com o que diz Ga- contemporânea – os personagens têm tablet, celu-
briel García Márquez, que, além de romancis- lar, mas também um carro antigo, é tudo mistura-
ta, é jornalista. Ele diz, em sua autobiografia, do. Meu grande desafio é pegar esses personagens
que escrevia o realismo fantástico como quem que botam formiga pelo nariz e colocá-los dentro
dava uma notícia, e escrevia as notícias como de um contexto contemporâneo.
63
depoimento
Luciana Serra
JOSÉ WILKER
O ator que Dias Gomes levou para a televisão
Ele foi o protagonista Roque Santeiro na versão finalmente liberada da trama, de 1985.
Recentemente, voltou a interpretar um personagem criado por Dias Gomes, ao fazer o
matador Zeca Diabo da versão cinematográfica de O bem-amado (Guel Arraes, 2010).
Mas sua história com o dramaturgo é bem anterior. Tendo iniciado a carreira como locutor
de rádio no Ceará, José Wilker estreou na televisão com a novela Bandeira 2, de 1971,
convidado justamente por seu autor, Dias Gomes.
Na Globo, além de atuar, também dirigiu programas e novelas. Como ator, participou de mais
de 60 filmes – entre eles Dona Flor e seus dois maridos (1976) e Bye bye Brasil (1979) –,
além de dirigir o longa Giovanni Improtta, de 2013, e trabalhar como crítico de cinema.
64
José Wilker // Depoimento // CADERNO GLOBO UNIVERSIDADE
SORTE E PREVISÃO
Depois de assistir ao primeiro capítulo de Saramandaia, uma coisa
me veio à mente. Não sei se foi intencional, mas a novela começou
como uma homenagem ao cineasta Federico Fellini e acabou como
mais um participante das passeatas pelas ruas do Brasil nos dias de
hoje. Então pensei o seguinte: Dias Gomes e Ricardo Linhares são
pessoas que têm não só uma sorte incrível, como uma capacidade de
prever absolutamente notável.
65
CADERNO GLOBO UNIVERSIDADE // Depoimento // José Wilker
sumiu. Dias tinha apenas 20 anos e era contra determinados sistemas, mesmo
sem saber que era contra.
66
José Wilker // Depoimento // CADERNO GLOBO UNIVERSIDADE
Cedoc/Divulgação
‘reproibido’, porque já havia sido censurado
como O berço do herói, em 1965, por Carlos
Lacerda [então governador do estado da
Guanabara]. Mas Dias foi se esgueirando,
transitando onde podia, em um limbo
qualquer, e inventou Roque Santeiro para
a televisão, que foi novamente proibida.
Com raiva, ele falou: ‘Vou esculhambar’, e
escreveu Saramandaia.
CENSURA
Sobre a proibição de Roque Santeiro, em 1975, nós fizemos passeata, mil
manifestações contra a censura, e ninguém entendeu o motivo da interdição.
O que aconteceu, segundo Dias, foi o seguinte: sua peça O berço do herói
já havia sido censurada, em 1965. E Roque Santeiro foi proibida no dia da
estreia por conta de um telefonema grampeado.
Dias Gomes ligou para o historiador Nelson Werneck Sodré para avisar
que ia fazer Roque Santeiro. E falou: ‘Estou sacaneando os milicos, estou
armando uma história... Eles proibiram O berço do herói porque tinha um
personagem, o Roque, que era um cabo do exército covarde. Eu tirei então a
patente do Roque e resolvi transformá-lo em um santeiro, aquele que fabrica
santos. Ou seja, eu vou contar a mesma história e os babacas vão liberar’. Só
que os ‘babacas’ grampearam o telefone de Werneck e Dias, e proibiram. Só
que, publicamente, o Exército, durante a ditadura, não podia admitir que
tinha grampeado o telefone. Então eles inventaram toda uma lógica, toda
uma construção para explicar a proibição da novela.
67
CADERNO GLOBO UNIVERSIDADE // Depoimento // José Wilker
SOBRE TELEDRAMATURGIA
Gostaria de ler algumas palavras do próprio Dias Gomes, que me parecem ser
um resumo, para o futuro, do que ele havia feito até então. Perguntaram a ele o
que achava da dramaturgia de televisão. Ele falou o seguinte:
Acho que a dramaturgia universal está em crise. Aliás, acho que todas as artes
estão em crise. Nós vivemos um fim de século, um característico fim de século
em que realmente não há nada. Nós esperamos que vá acontecer alguma coisa
e certamente irá acontecer. Talvez no início do século XXI. Mas nós vivemos em
todas as artes uma espécie de entreato, uma espécie de tempo de espera, muito
propício ao charlatanismo, aos neo qualquer coisa, que escondem uma crise de
criatividade. Nós não temos no momento um grande movimento artístico de parte
nenhuma, como o romantismo, o modernismo. Nós não temos. Temos o chamado
neomodernismo que não é nada, é apenas um rótulo para encobrir o grande vazio
em que nós estamos. Então, não é só a nossa dramaturgia que está em crise, é a
dramaturgia universal, a americana, a francesa, europeia etc.
Com relação à televisão, ela faz parte desse contexto cultural e evidentemente
não podia escapar a essa crise. No caso específico da novela, acho que falta a
inquietação, a busca de novos formatos, de novas técnicas, como durante os
anos 1970, quando a novela firmou a sua linguagem popular e de meio de
Em seu primeiro papel na TV, Wilker
contracena com Paulo Gracindo em expressão popular, uma linguagem própria e que não era mais aquela linguagem
Bandeira 2, de Dias Gomes radiofônica do início, nem a do mau teatro, nem uma cópia do cinema. Então,
Cedoc/Divulgação
68
José Wilker // Depoimento // CADERNO GLOBO UNIVERSIDADE
nos anos 1970, houve uma busca de linguagem, e com isso houve experiências.
Cada novela era uma experiência nova, que não se sabia se ia dar certo ou não,
era cercado de grande expectativa. A Globo, por exemplo, onde se desenvolveu
mais essa busca de linguagem, tinha um horário, às 22h, que não interferia na
programação. Quer dizer, se não desse certo, não derrubava a programação toda,
onde se podia fazer uma experiência nova. Quase todas as novelas que eu escrevi
naquela época foram ao ar embaixo de enorme apreensão.
Se hoje isso o que Dias fala pode parecer melancólico, ao mesmo tempo é o
que permite a Ricardo Linhares, por exemplo, escrever hoje Saramandaia, que é
uma coisa nova.
MODERNISMO
Dias Gomes nasceu em 1922. Mesmo ano da Semana de Arte Moderna,
que de alguma maneira disparou para nós a modernidade. Dias, nascido em
1922, disparou para nós uma certa liberdade, inventividade, criatividade. Acho
que devemos, por obrigação a Dias, continuar insistindo nessa modernidade,
inventividade, criatividade e liberdade.
1
GOMES, Dias. Luana e Mayra Dias Gomes (orgs.). Encontros Dias Gomes. Rio de Janeiro: Beco
do Azougue, 2012. p. 152-153.
69
depoimento
Luciana Serra
LIMA DUARTE
De Zeca Diabo a Sinhozinho Malta, uma longa parceria
Grande amigo de Dias Gomes, Lima Duarte deu vida a vários dos personagens idealizados
pelo dramaturgo e ajudou a transformá-los em tipos inesquecíveis da televisão brasileira.
Os dois se conheceram no fim dos anos 1940, quando Lima ainda trabalhava como
sonoplasta de rádio. Em 1972, ele foi para a Globo, como diretor de novelas. No ano
seguinte, foi com um texto de Dias Gomes que estreou como ator na emissora. Desde então,
não parou. Em mais de 40 anos, fez papéis memoráveis em diversas novelas e minisséries,
foi apresentador de programas, além de manter uma importante carreira paralela em
teatro e cinema. É hoje um dos atores mais premiados do Brasil.
70
Lima Duarte // Depoimento // CADERNO GLOBO UNIVERSIDADE
ZECA DIABO
Eu tinha acabado de dirigir a novela O bofe [de Bráulio Pedroso e
Lauro César Muniz, exibida entre julho de 1972 e janeiro de 1973,
na Globo], quando Dias Gomes me chamou para trabalhar como ator
na primeira versão de O bem-amado [exibida entre 22 de janeiro e 5
de outubro de 1973, na Globo]. Dias Gomes, que era meu amigo,
chegou e me disse: ‘Lima, tem um personagem para você, são só três
capítulos. É um cangaceiro feroz, terrível, que volta para a cidade de
Sucupira para matar alguém, a pedido do prefeito, para inaugurar o
cemitério local, recém-construído por ele’. Eu perguntei: ‘Só isso?’ E
ele: ‘Só isso. São três ou quatro capítulos, e ele não mata ninguém’.
Saí dali pensando como fazer um matador que não mata... Comecei
a compor o personagem: arranjei um olhar de matador, um bigode,
fui a um churrasco no interior de São Paulo e arranquei o chapéu de
um caipira. Para finalizar, fui a uma tinturaria em frente à Estação
da Luz, em São Paulo, e pedi: ‘Você tem algum terno que largaram
e não vieram buscar?’ Comprei o terno. O figurino era tudo escuro:
roupa, chapéu. No primeiro capítulo, eu entrava pela cidade a cavalo
e, conforme ia avançando, as portas se fechavam, entreabriam-se as
janelas, as crianças corriam... Todo o clima de que o matador estava
chegando. Até que eu parei, corri os olhos por toda Sucupira, desci
do meu cavalo, entrei no bar com aquele andar de matador, olhar
71
CADERNO GLOBO UNIVERSIDADE // Depoimento // Lima Duarte
SINHOZINHO
MALTA
Como Zeca Diabo, ao Outro personagem criado por Dias Gomes que fiz e também ficou
lado de Ida Gomes, em
famoso foi o Sinhozinho Malta, da novela Roque Santeiro. O elenco
O bem-amado, de 1973
original dessa novela, em 1975, tinha eu como Sinhozinho Malta,
Francisco Cuoco como Roque Santeiro, Beth Faria fazendo Porcina,
um grupo completamente diferente da versão exibida depois, em
1985. O que aconteceu em 1975 foi que, no dia da estreia da novela,
o ministro da Justiça Armando Falcão – o famoso ‘nada consta’ –
proibiu a exibição: ‘A novela está proibida, não vai para o ar’, disse
ele ao Jornal Nacional. Proibiram a exibição em cima da hora, de
propósito, e a Globo teve de colocar um filme no horário das oito.
No dia seguinte, todo o elenco foi convocado para a sala do
diretor-geral da emissora, que disse: ‘Vocês sabem, é uma cláusula do
contrato de vocês; mediante um motivo de grande força maior, eu
posso dispensar todo mundo e os contratos são todos rompidos, de
maneira que os senhores estão todos despedidos. Foram contratados
para essa novela, como não vai ter novela, vão todos para a rua. A não
ser que vocês me façam uma novela rapidinho para botar no ar em dez,
15 dias, para cobrir o horário das 20h’, que era o mais importante da
Globo. ‘Está aqui a [autora] Janete Clair, que vai falar com vocês sobre
o que ela tem e o que podemos fazer’. A Janete disse então: ‘Eu tenho
aqui uma novela que tem dois personagens exatamente para o Cuoco,
que era o Roque Santeiro, e para o Lima, que era o Sinhozinho Malta:
um é motorista de praça, o outro é um viúvo muito triste, muito
melancólico, pai de uma porção de filhos e grande capitão da indústria.
Eu penso que o Lima deve fazer o motorista e o Cuoco, o capitão de
indústria’. E seguiu assim, distribuindo papéis para o elenco inteiro de
72
Lima Duarte // Depoimento // CADERNO GLOBO UNIVERSIDADE
Cedoc/Divulgação
Aí o Cuoco disse:
‘Um momentinho. Eu
não vou fazer pai de
ninguém’ – naquele
tempo, galã tinha dessas
coisas – ‘Não vou ser pai
de ninguém, não faço’.
A Betty Faria também
disse que ia fazer outros
trabalhos. Resultado:
ninguém topou. Aí o
diretor, Daniel Filho,
teve a ideia: ‘Vamos fazer
o seguinte: o Lima faz
o industrial, e o Chico
Cuoco faz o chofer de
No papel de Sinhozinho Malta,
táxi’. E assim fizemos a novela que se chamou Pecado capital, talvez
com a viúva Porcina (Regina Duarte)
o maior sucesso de Janete Clair [exibida entre novembro de 1975 e em Roque Santeiro, em 1985
junho de 1976]. E foi uma novela feita correndo, em 15 dias, só para
cobrir o buraco deixado por Roque Santeiro.
Dez anos depois, quando veio a abertura ‘lenta e gradual’,
iniciada no governo Ernesto Geisel [1974-1979], foi-nos permitido
fazer o Roque Santeiro, mas aí só fiquei eu do elenco original, como
Sinhozinho Malta. Entraram a Regina Duarte como viúva Porcina
e o José Wilker como Roque Santeiro. E fizemos essa versão de
Roque Santeiro [exibida de junho de 1985 a fevereiro de 1986], O ator encarna o empresário
que foi um sucesso. Salviano Lisboa, em Pecado capital
Cedoc/Divulgação
SARAMANDAIA
Quase fiz Saramandaia, em 1976. Como disse antes, Dias Gomes era
um grande amigo – desde a época em que eu fazia rádio e teatro com ele
na velha rádio Tupi, em 1947. Eu era o operador de som, e ele era o autor.
Eu fazia a sonoplastia de vários programas. Quando, já na televisão, eu
estava fazendo Pecado capital, que se tornara o must da ocasião, a grande
novela, ele chegou e disse: ‘Lima, preciso de você em Saramandaia, você
não vem comigo?’ E eu respondi: ‘Não sei, estou fazendo essa novela aí...’
E ele: ‘Não dá um jeito de você sair?’ E como eu ia sair? Disse a ele: ‘A
novela é da sua mulher, fala para ela me matar que vou para Saramandaia’.
Aí ele não teve coragem de pedir isso a ela.
73
CADERNO GLOBO UNIVERSIDADE // Depoimento // Lima Duarte
REALISMO MÁGICO
Veja Lima Duarte recitando Eu gostaria de falar um pouco sobre realismo mágico. Ou fantástico,
o texto de Julio Cortázar, ou crítico. É o seguinte:
durante a mesa na Casa do
Autor Roteirista, em Paraty: Há tempos que penso nisso, mas nunca me ocorreu falar, assim, de
http://glo.bo/17fXSVq público, porque me parece que a idiotice é um tema um pouco pesado,
especialmente se é o idiota quem expõe o tema. Na verdade, não existe
nada de mau em ser-se um idiota, só que, às vezes, eu me sinto à parte,
e uma grande vontade de atravessar essa larga e ensolarada avenida, e ir
até o outro lado, onde estão reunidos todos em um grande entendimento,
sensibilidade, delicadeza e cuidado, e estar ali com eles, sentindo que sou
um deles, e que não há nada de mau em ser um idiota.
Na verdade, não há nada de bom também. E não há nada de mau.
Por exemplo, eu às vezes vou ao teatro, a um espetáculo de mimos checos
Escritor argentino Julio
Cortázar, autor do conto
e bailarinos tailandeses, com a minha mulher e meus amigos. Ah... mal
interpretado por Lima Duarte eu me sento na poltrona, sou acometido por uma grande euforia, uma
felicidade por estar vivo, por estar ali onde pessoas
Alfaguara Argentina/Divulgação
74
Lima Duarte // Depoimento // CADERNO GLOBO UNIVERSIDADE
que vai acontecer quando você vir o John Gielgud fazendo o Mercador Para saber mais:
de Veneza, de Shakespeare?’
Eu não sei. Eu acho que a idiotice não é uma coisa que se gasta, ela se CORTÁZAR, Julio.
A volta ao dia em 80 mundos.
renova todos os dias. Ela vem sempre. De manhã eu começo a ser idiota, Rio de Janeiro: Civilização
idiota, e vou sempre... Por exemplo, outro dia estava no Bois de Boulogne Brasileira, 2008.
e vi num daqueles lagos um pato nadando, e ele tinha um olhar tão
petulante, aquela curva do pescoço era uma coisa tão elegante, tão nobre, O jogo da amarelinha. 9.ed.
Rio de Janeiro: Civilização
que eu me pus de joelhos a ver aquele pato e aquela linha maravilhosa
Brasileira, 2005.
que o peito dele tangendo a água abria, e se perdia no infinito. Era tão
lindo... Eu vi também uma folha seca dançando nos limites de um banco,
maravilhosa. Eu não sei, eu não acho que o olhar de um pato seja menor só
por eu me lembrar do Fischer-Dieskau cantando O anel do Nibelungo,
ou Kiri Te Kanawa cantando O mio babbino caro. Eu não sei.
Então, os amigos falam comigo, dizem que eu devo ser mais sóbrio e
eu sou, me comporto, fico quieto, até o próximo peixezinho fosforescente,
a próxima folha seca, assim, sempre assim, porque eu sou um idiota.
Sempre assim.
Esse texto, ‘Você tem que ser realmente idiota para’, é de um dos
maiores autores do realismo mágico latino-americano, o belga-franco-
argentino Julio Cortázar [1914-1984]. Consta do livro A volta ao dia
em oitenta mundos. Uma homenagem ao autor, no mês em que se
completam 50 anos do lançamento da primeira edição de seu grande
livro, Rayuela – O jogo da amarelinha. Essa sua obra é lapidar no
terreno do realismo mágico. É um livro que tem 155 capítulos, que
podem ser lidos na sequência ou alternadamente. O livro torna-se
assim um livro total, um livro absoluto – de qualquer maneira que se
lê, se tem uma história.
Civilização Brasileira/Divulgação
Alfaguara Argentina/Divulgação
75
entrevista
FERREIRA GULLAR FALA SOBRE AS PARCERIAS COM DIAS GOMES
Gianne Carvalho
Quando Ferreira Gullar voltou ao Brasil, após seis anos no exílio, Dias Gomes lhe ofereceu
um emprego no Grupo de Dramaturgia da Globo. Ele o ajudaria a escrever roteiros para
novelas e o que mais aparecesse. A proposta amiga resultou em duas novelas (Araponga e o
remake de Irmãos Coragem), duas minisséries (Dona Flor e seus dois maridos e As noivas
de Copacabana) e muitas histórias. Em entrevista ao Caderno Globo Universidade, o poeta,
jornalista e crítico de arte recorda o processo criativo do escritor, o “patrulhismo” dos compa-
nheiros de esquerda, que não aceitavam um gênio a serviço da TV, e a singularidade daquele
que era, ao mesmo tempo, solidário e satírico
76
Ferreira Gullar // Entrevista // CADERNO GLOBO UNIVERSIDADE
Globo Universidade – Dias Gomes se autode- chegava a hora de escrever, cada um ia para
finia como um “anarco-marxista-ecumênico e sua casa e escrevia o que tinha de escrever. De-
sensual”. E fazia questão de dizer que não es- terminadas cenas ele fazia, outras eu. Depois,
tava brincando. Quais são as lembranças que trocávamos ideias. A gente lia, discutia, mas
o senhor tem do autor? o trabalho de escrever era isolado. Não tinha
outra maneira de fazer.
Ferreira Gullar – Dias foi meu amigo durante
muitos anos. Éramos muito próximos. Ele era GU – Existem muitas semelhanças nas tra-
uma pessoa solidária. De modo que as lembran- jetórias de Dias Gomes e de Ferreira Gullar.
ças são sempre afetuosas – ou então do traba- Dois nordestinos que foram parar no Rio,
lho que realizamos juntos. O humor dele qua- você do Maranhão e ele da Bahia. Uma con-
se sempre tinha um certo veneno. Sobretudo vicção política de esquerda e o amor às letras.
quando se tratava de responder a certas críticas.
FG – Há uma diferença básica. Dias era essen-
Suas respostas guardavam um sarcasmo que o
cialmente um dramaturgo, que não é o meu
caracterizava. Ele era também uma pessoa que
caso. Eu sou preponderantemente um poeta.
não se ressentia, entendia que era assim mesmo,
E também dramaturgo. Em Dias, a dramatur-
que isso costuma acontecer na área intelectual,
gia era a aspiração fundamental. E ele dedicou
especialmente no teatro. Não se envenenava.
a vida inteira a isso. Desde garoto, começou a
Ao contrário, ele reagia gozando, porque tinha
escrever teatro. Depois, passou a escrever para
consciência da qualidade do que fazia. Ninguém
rádio e televisão. Aquilo era, de fato, a vida dele.
faz o teatro que o Dias fazia sem ter consciência
Por isso mesmo, tinha esse domínio, algo que
do que está fazendo.
surgia de seu talento natural. Algo que não se in-
GU – O senhor mencionou a consciência do venta. A pessoa nasce poeta, nasce dramaturgo,
próprio trabalho. nasce pintor. Você aprende, desenvolve a técni-
ca, aprimora o modo de fazer, mas, se não nas-
FG – Ele tinha muita consciência do que fazia.
ceu dramaturgo, não vai conseguir se inventar o
Uma visão crítica sobre sua produção. Tanto que
dramaturgo. E Dias o era, essencialmente.
depois corrigia, refazia. No meu trabalho com
Tínhamos afinidade em uma série de coisas, a
ele isso ficou evidente. Além do mais, Dias tinha
nossa maneira de encarar a dramaturgia, a nar-
um domínio grande da técnica, da dramaturgia.
rativa, o humor era semelhante. Mas é claro que
Era criativo. A maneira como fazia coisas para
existiam coisas específicas em cada um. Eu acho
televisão, especiais, seriados, séries... A maneira
que isso enriquecia nosso trabalho porque, mui-
como ele inventava as cenas e o transcurso da
tas vezes, eu dava um desenvolvimento para de-
história era impressionante pela espontaneidade
terminadas cenas que ele não daria e vice-versa.
e pela relativa facilidade com que montava tudo.
GU – Em um trecho publicado em sua auto-
GU – Quais são suas recordações do processo
biografia, Dias Gomes diz: “Eu levei para a te-
criativo de Dias Gomes?
levisão a minha temática, o meu universo tea-
FG – A gente trabalhava junto a história, a tral, o único modo que tinha de me conservar
proposta inicial. Depois, ele fazia uma espécie fiel a mim mesmo. Quase todas as novelas que
de roteiro inicial para discutirmos. Quando fiz foram, basicamente, extraídas das minhas
77
CADERNO GLOBO UNIVERSIDADE // Entrevista // Ferreira Gullar
Cedoc/Divulgação
Milton Gonçalves e Ana
Maria Nascimento Silva
em Araponga, novela de
Gullar e Dias Gomes
peças”. Como o senhor avalia essa transposi- Flor e seus dois maridos e As noivas de Copa-
ção do teatro na TV? cabana]. Como foi a construção dessas obras?
Araponga, por exemplo, foi uma trama inova-
FG – A novela é uma diluição da linguagem,
dora em muitos aspectos.
uma adaptação da dramaturgia. Um filme, uma
peça de teatro, tem uma hora e meia, duas ho- FG – Dias foi chamado pelo Boni [então dire-
ras de duração, no máximo. Não existe uma tor-geral da Globo] para fazer uma nova novela e
peça que dure 200 dias, 200 capítulos. Não me ligou: “Olha, Gullar, eu tenho uma ideia aqui.
há dramaturgia para 200 capítulos. Isso não é Vamos conversar”. A ideia era fazer uma trama
culpa de nenhum autor de novela. O gênero é baseada em tráfico de órgãos. Discordei. Fazer
isso. O que se deve observar é que Dias, embo- uma novela de 180, 200 capítulos sobre tráfico de
ra enfrentando as dificuldades inerentes ao gê- órgãos?! Depois de um tempo, ele acabou ceden-
nero, nunca deixou que suas obras chegassem a do. “Bom, vamos pensar. A gente se fala.” Dois,
esse risco de diluição da linguagem teatral. Ele três dias depois, ele voltou a me ligar. Tinha um
nunca deixou, nunca vendeu barato. As novelas novo assunto: “Um policial, agente da ditadura,
dele são das melhores escritas no Brasil. Sem
que foi torturador e está aposentado, se tortura a
nenhuma dúvida. Têm uma consistência, uma
si mesmo.” Achei ótimo, muito engraçado mes-
qualidade superior à maioria. Não estou dizen-
mo. Dias mandou, então, fazer a pesquisa sobre
do que são as únicas, mas as que ele escreveu
o período do regime militar e descobriu que os
estão entre as melhores que foram escritas para
agentes, em geral, usavam pseudônimos com no-
a televisão brasileira.
mes de aves: canário, sabiá... Ele resolveu botar o
GU – O senhor foi parceiro de Dias Gomes nome do personagem principal de Araponga, o
em duas telenovelas [Araponga e o remake de que é muito engraçado, já que esse é um pássaro
Irmãos Coragem] e duas minisséries [Dona que berra alto para burro! Imagina, o cara é um
78
Ferreira Gullar // Entrevista // CADERNO GLOBO UNIVERSIDADE
agente clandestino, que deseja se encobrir, e bota noiva. No terceiro, casa e, no quarto, mata. São
o nome de Araponga, um bicho escandaloso! no máximo três ou quatro noivas”. Ele acabou
aceitando. Fez a sinopse e mandou para o Boni.
GU – A minissérie As noivas de Copacaba-
No final, das histórias enviadas, foi justamente
na alcançou grande êxito no início dos anos
a das noivas a escolhida. Dias começou a traba-
1990. A obra chegou a ser comercializada em
lhar no esboço de uma sinopse maior, quando
mais de 20 países.
aconteceu algo inesperado. Uma noite, eu li-
FG – As noivas de Copacabana tem uma peque- guei a televisão e passou um filme americano
na história. Primeiro, ele propôs a história de de um cara que matava noivas. Aí eu liguei para
um assassino em Niterói que matou várias noi- ele e falei: “Pô, o cara aprova o negócio e bota
vas. Ele ficava noivo e depois matava as noivas. no ar no dia seguinte uma história parecida?”.
Ele leu a história no jornal e achou que pode- Disse, então, que já tinha uma solução para o
ria ser um negócio legal, uma minissérie. Mas, problema. “Vamos fazer a versão brasileira des-
quando ele ia mandar a sinopse para a Globo, sa história, casos que se passam no Rio de Ja-
mudou de ideia. Na época, ele disse que havia neiro, com as cenas todas localizadas na cidade
desistido porque o cara só havia matado uma do Rio. Daí é que surgiu o título As noivas de
noiva. Na mesma hora, falei: “E daí? Essa ideia Copacabana, porque a primeira cena é de uma
do personagem era interessante”. Aí ele falou: noiva que aparece morta numa igreja da pra-
“Não, mas também tem um problema, que é ça Serzedelo Correia, em Copacabana. Outro
para fazer 12 capítulos, matar 12 noivas...”. personagem vive vendendo coisas no Leme, no
Aí eu disse: “Dias, não estou te reconhecendo. calçadão. Fizemos uma história carioca. Isso
Não tem de ser 12 noivas! No primeiro capítu- resultou em algo muito positivo e deu ainda
lo, ele conhece a noiva. No segundo, namora a uma veracidade maior à história, que foi um
Cedoc/Divulgação
Cena de As noivas de
Copacabana, enredo
que nasceu a partir
de notícia de jornal
79
CADERNO GLOBO UNIVERSIDADE // Entrevista // Ferreira Gullar
sucesso. Quando terminou a exibição da minis- tório virar as costas a “uma plateia verdadei-
série, recebemos uma carta da direção da Globo ramente popular”, como ele descreveu a TV.
nos cumprimentando pela alta qualidade e o
FG – Quando isso aconteceu, eu estava no exí-
êxito de público e crítica. Mas isso se deve à
lio. Eu não testemunhei isso. Acho o argumento
qualidade do Dias, à dramaturgia dele, à capa-
bem retorquido. Se o sujeito tem a possibilidade
cidade de síntese, de humor, de dramaticidade
de falar para um público gigantesco, um públi-
e de fabulação que ele tinha.
co enorme, de milhões de pessoas, vai deixar de
falar quando o objetivo do teatro dele era justa-
GU – Um dos pontos curiosos na trajetória de
mente esse, de atingir o maior número possível
Dias Gomes é a reação dos intelectuais, prin-
de pessoas? Eu acho que isso ele conseguiu. Ele
cipalmente de esquerda, à decisão do autor de
não só defendeu isso quando foi criticado, como
trabalhar com a televisão. Algo que ele reba-
ele fez. Os personagens que ele criou são alta-
teu com veemência, por considerar contradi-
mente críticos à sociedade brasileira, à política
Gianne Carvalho
80
Ferreira Gullar // Entrevista // CADERNO GLOBO UNIVERSIDADE
Gianne Carvalho
ções são originais. O tempo todo você se sente
descobrindo. E isso faz toda a diferença.
81
entrevista
O COMPOSITOR EDNARDO NARRA OS VÁRIOS VOOS DE SEU PAVÃO MYSTERIOZO
Lipe Borges
As memórias de um cordel lido na infância e o desejo de falar sobre a tão sonhada liberdade
durante os tempos da ditadura militar. Foi a partir dessa combinação que a música Pavão
Mysteriozo foi criada pelo compositor e cantor Ednardo. Lançada em 1974, a canção só
alçou voo dois anos depois, ao virar tema de abertura de Saramandaia, e tornou-se um dos
maiores sucessos entre as trilhas sonoras da teledramaturgia brasileira. A seguir, o autor fala
sobre as circunstâncias em que a canção foi composta
82
Ednardo // Entrevista // CADERNO GLOBO UNIVERSIDADE
Globo Universidade – Como foi a gênese de programa e por ele passaram pessoas mara-
de Pavão Mysteriozo? A canção foi criada a vilhosas, tipo Paulo Autran, Aldemir Martins,
partir de uma história de cordel? um grande artista plástico, Luiz Gonzaga. Um
desses entrevistados era o Walter Silva, pelo tra-
Ednardo – O que me levou a fazer essa músi-
balho que fazia com os artistas. E o Júlio Lerner
ca foi a percepção daquele tempo da ditadura
disse para o Walter, “esse pessoal aqui é bacana”,
militar, em que tínhamos de falar sempre por
aquela conversa entre produtores. O Walter nos
códigos – quero dizer, por meio de metáforas –
chamou em sua casa e disse: “Vou gravar um dis-
para escapar da tesoura da censura. Inclusive a
co com vocês”. E fez o primeiro disco da gente,
própria obra de Dias Gomes teve de partir para
chamado Meu corpo minha embalagem todo gasto
essa coisa do realismo fantástico, falar por meio
na viagem [1973]. A gravadora ainda colocou
de metáforas. E assim com vários outros cole-
um subtítulo Pessoal do Ceará. Na sequência, o
gas, como Caetano Veloso, Gilberto Gil, Chi-
Walter produziu o O romance do Pavão Misterio-
co Buarque. Eu tinha gravado essa música em
so, já em outra gravadora.
1973, e foi lançada em 1974, no disco O roman-
ce do Pavão Misterioso. Nessa época, para falar GU – Há uma discussão sobre a autoria desse
sobre essa tão desejada “namorada”, que seria a cordel. Ele é atribuído por uns a João Camelo
liberdade, eu teria de inventar um mecanismo de de Melo Resende e, em outras citações, como
voo. Aí rememorei um cordel que eu tinha lido sendo de João Melchíades Ferreira da Silva.
na adolescência: Romance do Pavão Misterioso,
que é um dos mais conhecidos do gênero. Ele E – O que eu imagino é que tem um autor ori-
tem uma linguagem muito simples e ao mesmo ginal, e o outro depois fez uma edição nova e
tempo sofisticada, colocada de forma ritmada. aumentada colocando versos novos. Isso até hoje
O cordel para mim parecia um cinema, e este, de é uma indagação. Quando a gente pesquisa na
fato, o é – e aí eu pensei em fazer uma ponte en- internet, existem as duas versões. Me parece que,
tre essas duas coisas. Quando o disco foi lança- na época, o autor original, ao fazer esse cordel,
do, poucas pessoas tomaram conhecimento dele, se indispôs com alguns políticos – cidade peque-
o próprio pessoal da gravadora achava estranha na, do interior, principalmente naquele tempo
aquela coisa de misturar maracatu com cordel. [por volta dos anos 1920], sabe como é, né? – e
foi proibido de escrever cordel. Depois teve esse
GU – Como estava sua carreira nessa época? outro colega dele, que, diante da proibição, re-
E – O meu produtor era o Walter Silva, um solveu contribuir para divulgar, e deve ter escrito
grande produtor e jornalista, também conhe- mais algumas coisas.
cido como Pica-Pau. Foi ele quem lançou Elis
GU – E qual das duas você leu?
Regina, Jair Rodrigues, Milton Nascimento. Ele
nos procurou por causa de um programa de TV E – Eu li as duas. Uma que meu pai me apresen-
semanal que eu, Belchior, Rodger Rogério e Teti tou aos 12 anos de idade. E outra que comprei
fazíamos em São Paulo. Era dirigido e produzi- quando eu estava passando naquelas regiões do
do pelo jornalista Júlio Lerner. A nossa função centro de Fortaleza, em que eles botam no varal
era ilustrar musicalmente a vida dos convidados. os cordéis. Mas tem um detalhe: eu não peguei
Foram, se não me engano, quatro meses e meio nenhum verso de nenhum dos dois cordéis. Ali
83
CADERNO GLOBO UNIVERSIDADE // Entrevista // Ednardo
foi apenas o leitmotiv. O que está escrito [em GU – De que forma a música na abertura da
Pavão Mysteriozo] fui eu que me debrucei sobre novela impactou a sua carreira?
o assunto, pensando na parte mais primordial
E – Colocou num outro patamar. Ter sua mú-
dele, que é a busca da liberdade.
sica tocada todas as noites no Brasil inteiro, eu
GU – Como foi o processo de composição? não podia imaginar a repercussão que poderia
vir dessa situação. Mas, para mim, foi uma fe-
E – Saiu de uma vez. Eu fui buscando as memó- licidade muito grande ter gravado essa música e
rias que tinha das leituras, juntando com a situa- as pessoas estarem no momento certo. Até hoje
ção social e política da época, da ditadura militar, acho que essa música tem um elo com o povo
aquele cerceamento geral da liberdade das expres- brasileiro, de uma maneira geral.
sões. E aí vieram todas as ideias ao mesmo tempo
e a música saiu em menos de dez, 12 minutos. GU – O fato de ter sido interpretada por ar-
tistas de gerações diferentes, como Ney Ma-
GU – E qual o motivo da grafia Mysteriozo? togrosso, Oswaldo Montenegro e Fernanda
E – Foi como estava no primeiro folheto de cor- Takai, comprova isso, não é?
del que eu li, que era uma grafia antiga. Quando E – São mais de 30 regravações. Teve Elba Ra-
o meu pai me mostrou, estava essa grafia com Y malho, o Paul Mauriat, na França. Um amigo
e com Z. E eu, para criar um link com a obra, meu estava trabalhando no Japão e foi a um
mantive a grafia. show de um pessoal que costuma tocar músicas
brasileiras. De repente, começaram a cantar Pa-
GU – A música foi parar na trilha de Sara-
vão Mysteriozo em japonês; ele chegou a gravar
mandaia dois anos depois de ter sido lançada.
no celular, mas, assim que chegou ao Brasil, rou-
Isso é algo inusitado, não?
baram o aparelho dele. Mas, pelo menos, ficou o
E – Foi incrível. O que o Walter Silva me falou registro que pessoas a cantam em vários lugares.
foi que ele havia se encontrado casualmente com
o Dias Gomes e com o Walter Avancini, que era o GU – Pavão Mysteriozo escapou de cortes,
diretor da novela. Eles comentaram que, para esca- mas você teve problemas com a censura?
par da censura, estavam pensando em escrever uma E – Quem é que não teve? Cite um artista
história na linha do realismo fantástico, que tinha daquela época que não fosse alvo da censura. E
Gabriel García Márquez como grande expressão. E muitas vezes não se sabia por quê. Era a paranoia
o Walter Silva disse: “Olha, eu tenho uma produ- da época. O pessoal [da censura] imaginava
ção de dois anos atrás, de um compositor que nin- que qualquer música era uma espécie de hino
Assista à entrevista de guém conhece, lá do Nordeste, Ednardo”. E ele foi revolucionário. Eu tive de refazer várias músicas,
Ednardo no programa lá e deu o disco de presente para os dois. Eu sequer tive discos que ficaram oito meses, um ano, presos
Sarau, da Globo News:
http://bit.ly/18k6px4 sabia que eles tinham conversado. Eu estava fazen- na censura. E outros que, mesmo liberados,
do um show na minha cidade, lá em Fortaleza, em eram riscados. Parece que o pessoal botava um
maio de 1976. Estava tomando banho e a televisão estilete nas faixas. Eu chegava, às vezes, para dar
ficou ligada no quarto do hotel. De repente, escuto uma entrevista numa rádio e os discos estavam
a minha música como abertura da novela. Rapaz, riscados, impossível de serem tocados. Eu cheguei
foi um susto, mas um susto agradável. a fazer uma música quando a minha primeira
84
Ednardo // Entrevista // CADERNO GLOBO UNIVERSIDADE
filha nasceu. O nome da minha mulher é Rosa. E alucinantes. Essa música vai sendo repassada
da minha mãe, Maria. E eu, vendo a minha filha intergerações e com vários tipos de abordagem.
mamar no seio da minha mulher, achei aquele Teve um ano em que o pessoal que faz esse des-
insight maravilhoso. Juntei o nome das três como file em São Paulo do orgulho gay, GLBT [gays,
quem junta três gerações de mulheres. Rosa, Maria lésbicas, bissexuais e transgêneros], fez da música
e Joana. E fiz um lance sobre o ato de mamar, do o hino do evento [na Parada Gay de 2002, can-
amor. Esse disco ficou preso na censura, tive de ir tada por Laura Finocchiaro]. Teve
a Brasília me explicar. Eles acharam que era alusão a história de que foi tocada num
à maconha. Rosa, Maria e Joana. ritual dos índios no Xingu. Quem Pavão Mysteriozo
Ednardo
me contou foi a Ana Maria Bahia-
GU – Como isso interferia no processo criativo? Pavão misterioso
na, jornalista, que tinha ido com a
Pássaro formoso
E – Você tinha de inventar coisas para escapar da Tania Quaresma, que é cineasta, e Tudo é mistério
proibição, dessa coisa sem sentido de proibir as com o músico Egberto Gismonti Nesse teu voar
artes e o pensamento. fazer uma visita ao Alto Xingu, na- Ai, se eu corresse assim
Tantos céus assim
quele ritual Quarup. Aquela coisa Muita história
GU – A obra, quando ganha o mundo, pas-
maravilhosa, naquele terreiro enor- Eu tinha pra contar
sa a ter outras leituras possíveis. Você tomou Pavão misterioso
me, e depois os caciques chegaram
conhecimento de algum desdobramento de Nessa cauda
para o Egberto, que estava tocando Aberta em leque
Pavão que o surpreendeu?
flauta, e pediram para ele tocar Pa- Me guarda moleque
E – Um grupo do Chile, Inti-Aymará & Nacha, vão Mysteriozo. São histórias que a De eterno brincar
Me poupa do vexame
gravou. Vários grupos de rock fizeram leituras gente fica sabendo. De morrer tão moço
Muita coisa ainda
Lipe Borges
Quero olhar
Pavão misterioso
Pássaro formoso
Tudo é mistério
Nesse teu voar
Ai, se eu corresse assim
Tantos céus assim
Muita história
Eu tinha pra contar
Pavão misterioso
Meu pássaro formoso
No escuro dessa noite
Me ajuda a cantar
Derrama essas faíscas
Despeja esse trovão
Desmancha isso tudo
Que não é certo, não
Pavão misterioso
Pássaro formoso
Um conde raivoso
Não tarda a chegar
Não temas, minha donzela
Nossa sorte nessa guerra
Eles são muitos
Mas não podem voar
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CADERNO GLOBO UNIVERSIDADE // Trilha
Artigo Sonora
// Nome do Autor
MÚSICA
SONORIDADES SARAMANDISTAS
Globo/Divulgação
André Abujamra interpreta
o maestro Cursino: opção
por músicos de verdade
86
Nome do Autor Artigo // CADERNO GLOBO UNIVERSIDADE
Trilha//Sonora
Ele conta que a primeira versão feita já foi a aprovada. Com forte Curiosidades da trilha original
presença de instrumentos de sopro e percussão, também traz cantos
indígenas. Segundo Saraceni, um recurso para atender a um pedido »» A atriz Sônia Braga gravou a música-tema de
sua personagem Marcina, Sou o estopim, de
dos criadores da novela. “Eles não queriam nenhum sotaque que
Antônio Barros e Cecéu.
desse a impressão de ‘ah, isso aqui é nordestino, isso é carioca, isso é
»» Canção da meia-noite, composta por Zé
gaúcho...’. A intenção era de que fosse algo notadamente brasileiro, Flávio, fez sucesso com o grupo Almôndegas,
mas não de uma região específica”, explica. ao qual pertenciam os irmãos Kleiton e
Kledir. A música, que tem como refrão: “Um
Há também músicas cantadas que pontuam as cenas da trama. É vampiro, um lobisomem, um saci-pererê”, foi
o caso de A cor do desejo, na voz de Ney Matogrosso. A composição regravada anos mais tarde pela dupla.
de Júnior Almeida e Ricardo Guima aparece nas cenas românticas »» Geraldo Azevedo interpreta duas músicas na
de Zico Rosado (José Mayer) e Vitória Vilar (Lília Cabral). Mas trilha da novela. Malaksuma, composição
dele, e Juritis borboletas, em parceria com
a música instrumental também marca os encontros do casal.
Carlos Fernando.
“Nos primeiros capítulos, há uma cena longa de Lília nas ruínas,
relembrando a adolescência. Ali é tocado o Prelúdio nº 4 de Chopin, que eu adaptei com
orquestra de cordas”, conta o maestro.
Outra peculiaridade da versão atual é a presença de músicos contratados para tocar de
verdade em algumas cenas. Eles aparecem nas duas bandas da cidade, cada qual conduzida por
um maestro. Ambos dividem uma barbearia que é também lan house. Mas, negócios à parte,
têm orientações políticas opostas. André Abujamra interpreta o maestro Cursino, defensor da
manutenção do nome da cidade de Bole-Bole. Músico de formação, Abujamra foi integrante das
bandas Os Mulheres Negras e Karnak. Mas coleciona várias experiências como ator. Participou
de filmes como Sábado, de Ugo Giorgetti (1995), e Durval Discos, de Anna Muylaert (2002). Na
TV, viveu o terapeuta Tiago, em Beleza pura, de Andréa Maltarolli (2008).
Já Zéu Britto encarna o maestro Totó, que pertence à ala saramandista da cidade. Formado
em teatro, Britto tem extensa folha de participações na dramaturgia. No cinema, atuou em
Saneamento básico, de Jorge Furtado (2007), e na TV, era o poeta Argileu Palmeira, na segunda
versão de Gabriela, de Walcyr Carrasco (2012). Como músico, em 2012, lançou o CD e
DVD Saliva-me ao vivo, que tem participação de Ivete Sangalo.
Globo/Divulgação
87
entrevista
DIAS GOMES, POR ELE MESMO, EM DEPOIMENTOS, ENTREVISTAS, ARTIGOS
Cedoc/Divulgação
Autodidata, ele escreveu sua primeira peça aos 15 anos de idade. Sonhador, aos 20 planejava
viver do ofício de escrever. Contestador, filiou-se ao Partido Comunista e passou a sofrer com a
censura; entrou para a lista negra do governo nos anos 1940 e foi perseguido pela ditadura nos
anos 1960 e 70. Experimentador, viu na televisão uma maneira nova de se expressar e fazer
arte popular. Crítico, inventou uma forma de denunciar a realidade social do país por meio
do humor e de metáforas. A seguir, trechos de entrevistas e textos de Dias Gomes
88
Dias Gomes // Entrevista // CADERNO GLOBO UNIVERSIDADE
“Havia muito preconceito, eu fui talvez o primeiro intelectual “Se eu não fosse escritor,
a ir para a TV fazer novela. Os intelectuais de respeito me não sei o que seria, porque,
apoiaram. Os intelectualoides, que vivem olhando para trás, além de não descobrir em
torceram o nariz. A vantagem da TV foi ter me permitido
mim nenhuma vocação
levar meu universo para a telenovela. Quando, em 1975, fiz
para qualquer outro tipo
a adaptação de O berço do herói, que era de 1965, procurei
de atividade, escrever é o
disfarçar um pouco e transformei o militar num fazedor de
santo. A novela foi proibida e, quando Roque Santeiro foi ao
único remédio que conheço
ar, em 1985, ninguém entendeu a razão. Só no ano passado
contra a angústia. Pelo menos
eu descobri o motivo da censura. É que o SNI gravou uma o único que faz efeito em
conversa telefônica entre mim e o Nélson Werneck Sodré em meu organismo.”
1978, EM ENTREVISTA CONCEDIDA A FERREIRA GULLAR
que eu dizia que estava tapeando os censores.” E MOACYR FÉLIX, NA REVISTA ENCONTROS COM A
1989, EM ENTREVISTA AO JORNAL O GLOBO CIVILIZAÇÃO BRASILEIRA
89
CADERNO GLOBO UNIVERSIDADE // Entrevista // Dias Gomes
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Dias Gomes // Entrevista // CADERNO GLOBO UNIVERSIDADE
Cedoc/Divulgação
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CADERNO GLOBO UNIVERSIDADE // Entrevista // Dias Gomes
1984
Cedoc/Divulgação
Casa-se com Bernardete Lys
1985
Estreia a novela Roque Santeiro,
dez anos depois da interdição
pela censura. Sua peça O rei de
Ramos é adaptada para o cinema
(O rei do Rio)
1986 Escreve a peça Olho no olho
1987 Estreia a sinopse e os 20
primeiros capítulos da novela
Mandala, que também tem
problemas com a censura
1988 O pagador de promessas é
adaptada para minissérie,
Miguel Falabella e Patrícia Novaes na
escreve a peça Meu reino por um cavalo, encenada no trama policial As noivas de Copacabana
ano seguinte no Rio de Janeiro
1990 Estreia Araponga, escrita em parceria com Ferreira
Gullar e Lauro César Muniz
Edson Celulari, protagonista de Decadência,
1991 É eleito para a Academia Brasileira de Letras. Escreve minissérie de 12 capítulos, exibida em 1995
um romance, A derrocada
Cedoc/Divulgação
1992 Escreve a série As noivas de Copacabana, com Ferreira
Gullar e Marcílio Moraes
1995 Escreve Decadência e a segunda versão de
Irmãos Coragem, de Janete Clair, em parceria
com Marcílio Moraes
1996 Escreve a novela O fim do mundo
1998 Escreve a minissérie Dona Flor e seus dois maridos.
Publica sua autobiografia, Apenas um subversivo
1999 Morre, em São Paulo, em um acidente de carro
Fontes:
GOMES, Dias. Apenas um subversivo. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 1998.
GOMES, Dias. Luana e Mayra Dias Gomes (orgs.). Encontros Dias Gomes. Rio de Janeiro:
Beco do Azougue, 2012.
Site Memória Globo: memoriaglobo.globo.com.
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Dias Gomes // Entrevista // CADERNO GLOBO UNIVERSIDADE
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CADERNO GLOBO UNIVERSIDADE // Artigo // Nome do Autor
94
Nome do Autor // Artigo // CADERNO GLOBO UNIVERSIDADE
Studio S3X
Luciana Serra
Mesa-redonda realizada Três eventos captaram relatos com enfoques diversos relacionados à obra
em Paraty contou com a
presença de Lima Duarte de Dias Gomes. Professores, escritor, atores e público expuseram pontos
(esq.), José Wilker,
Ricardo Linhares e o
jornalista Edney Silvestre
de vista e interagiram a partir de experiências pessoais e profissionais.
(dir.), como mediador
A seguir, uma síntese do que foi debatido no seminário “O realismo
fantástico em Saramandaia”, realizado no Museu de Arte do Rio
(MAR), em 21 de junho de 2013; na mesa-redonda da Casa do
Autor Roteirista na Festa Literária Internacional de Paraty (Flip),
em 5 de julho; e na Escola de Comunicações e Artes da Universidade
de São Paulo (ECA-USP), em 29 de agosto
96
Debate // CADERNO GLOBO UNIVERSIDADE
Studio S3X
1
Em junho de 2013, motivados pelo reajuste no preço das passagens de ônibus, metrô e trens em diversas
cidades, milhões de pessoas foram às ruas se manifestar contra o aumento. A mobilização deflagrou uma série
de protestos pelo país com pautas e reivindicações variadas.
2
Como ficou conhecido o movimento estudantil de 1992 que foi às ruas pedir o impeachment do presidente
Fernando Collor de Mello, envolvido em denúncias de corrupção.
3
Movimento civil que reivindicava a volta das eleições diretas, ocorrido em 1983-1984, e motivou diversas
passeatas e comícios em todo o país.
97
CADERNO GLOBO UNIVERSIDADE // Debate
Gianne Carvalho
Vera Follain comenta com Ricardo Linhares:
RL: As pessoas hoje querem essa tecnologia. A atual Bole-Bole tem uma
lan house. Ao mesmo tempo em que tem um cara que bota formiga pelo
nariz, a mulher que explode ou o que coloca o coração pela boca, há um
computador conectado em rede do lado. Essa mistura do moderno e o
arcaico é o grande diferencial para Saramandaia não se transformar em
uma obra de época. Isso afastaria completamente o público. Eu faço até
uma brincadeira com o personagem de Tarcísio Meira e o de Fernanda
Montenegro, que viveram um grande amor no passado e só vão se ver pela
primeira vez depois de 30 anos por meio do tablet dos netos, que desco-
brem essa história. É uma brincadeira com os novos tempos, com a nova
tecnologia, mas mantendo o homem com raízes em casa.
Gianne Carvalho
Acho que há, sobretudo na literatura, nos últimos tempos, uma concessão
grande ao realismo, ao facilmente decodificável. A literatura brasileira cor-
re esse risco, e talvez a reação a isso seja a volta do maravilhoso cotidiano,
98
Debate // CADERNO GLOBO UNIVERSIDADE
Studio S3X
Ricardo Linhares comenta:
A gente tem de ter essa ruptura, essa experimentação. Mas, em uma televi-
são aberta, isso é uma grande ousadia. Por isso eu fiz e propus uma novela
mais curta e num horário tardio, quando acredito que a gente possa vir
com essa ruptura necessária. Ao mesmo tempo, o público gosta de filmes
como Avatar, que são uma grande fantasia – mas isso não é realismo mági-
co. Não se pode esquecer essa diferença entre a fantasia existente nos vam-
piros ou guerreiros imaginários que fazem sucesso em filmes e seriados hoje
em dia e o que se entende por realismo mágico, que envolve um contexto
político, social, de crítica, de sátira. É diferente.
Pergunta da plateia para Ricardo Linhares: Uma das coisas mais geniais em Dias Gomes é como ele
consegue fazer a gente amar os vilões. Eu queria que você falasse dos vilões de Saramandaia e o que
eles estão falando concretamente hoje.
Pergunta da plateia para Lima Duarte ou José Wilker: Assim como o realismo fantástico traz muito
do universo da literatura de cordel, gostaria de saber se, como atores, vocês se baseiam em figuras
populares para criar seus personagens, se bebem nas fontes do imaginário popular?
JW: Eu, como ator, não me fixo em nenhuma fonte específica. Para represen-
tar, para criar um personagem, você tem de se inspirar na sua vida e naquilo
99
CADERNO GLOBO UNIVERSIDADE // Debate
Luciana Serra
que sua vida lhe proporcionou de informação. Informação que você adquire
tanto em bula de remédio quanto em dicionário. Você vai lendo, vai acumu-
lando e, de repente, usa. Eu não sei até hoje qual é a fonte que eu, ator, uso
para o acúmulo de informações até chegar ao personagem. Eu acredito que
existam atores – e os respeito imensamente, admiro e invejo – que se inspiram
em pessoas, em certos tipos que conheceram e tentam imitá-los. Mas eu sou
incapaz de fazer isso, sou incapaz de imitar. Quando eu tive de interpretar o
político Tenório Cavalcanti, para o filme O homem da capa preta [de Sérgio
Rezende, 1986], fiquei assustado, pois eu conheci Tenório Cavalcanti e pedi
para sair do filme – só fiquei porque o diretor me convenceu. O mesmo para
fazer Tiradentes, em Os Inconfidentes [de Joaquim Pedro de Andrade, 1972].
Luciana Serra
Pergunta da plateia para Lima Duarte ou José Wilker: Como é construir um personagem com uma
característica fantasiosa? Como fazer para trazer a verdade desse personagem?
LD: O personagem precisa ser empático, para que seja baseado em grandes
emoções e, assim, poder explodir. Você tem de fazer seu personagem com
ardor, com sangue, com verdade e, se o homem quiser explodir, explode!
Quando faço meu personagem, quero que ele seja baseado em coisas gran-
des, que ele sonhe grande, que ele seja o maior que todo mundo já viu. Na
televisão, é assim.
Pergunta para Mauro Alencar: Dias Gomes teve outras incursões no realismo fantástico além
de Saramandaia?
100
Debate // CADERNO GLOBO UNIVERSIDADE
Studio S3X
Pergunta para Ana Lúcia Trevisan: Essa nova versão de Saramandaia faz com que o público telespec-
tador, que também é leitor, se interesse por outros autores do realismo fantástico?
ALT: Eu acho que essa linguagem do fantástico, com esses absurdos inseri-
dos, não é uma linguagem artificial a todos nós. O [escritor argentino Julio]
Cortázar tem um texto bonito em que diz que todo mundo experimenta, na
narrativa dos sonhos, o contato com o fantástico. Quando a gente sonha, a
gente voa, conversa com quem já morreu e não sente medo. Essa experiência
não é estranha à nossa vivência. Então, acho que textos como esse, que tal-
vez agora reapareçam, podem servir, sim, de estímulo. Quem sabe? A gente
sempre quer ter fé nisso, de que as pessoas se interessem e queiram saber mais
sobre essa linguagem – que aparentemente é estranha, mas, quanto mais
você vai entrando, pensando e vivenciando a narrativa, vê que aquilo é a sua
vida. Que os absurdos também a permeiam.
Studio S3X
101
102
Globo/Divulgação
galeria
Dona Redonda prestes a explodir
na versão recente de Saramandaia
103
personagens
Globo/Divulgação
JOÃO GIBÃO
Protagonista da primeira versão de
Saramandaia, João Gibão (vivido por Juca
de Oliveira em 1976 e por Sergio Guizé
em 2013) nasceu com asas. Complexado, é
obrigado a cortá-las e ocultá-las sob um gibão
de couro. Irmão do prefeito Lua Vianna,
João Gibão é vereador de Bole-Bole e tem
visões premonitórias. É autor do projeto de
lei para mudança do nome da cidade para
Saramandaia – ideia surgida durante um
sonho. É proprietário de uma loja de pássaros
e toca trombone na banda do maestro Totó.
Na versão original, a novela terminou
com a cena de João Gibão sobrevoando
Cedoc/Divulgação
a cidade – e só então foi revelado ao
público de que era feita sua corcunda. “Sua
determinação de deixar crescer as asas e
voar era uma clara alegoria a nosso anseio
de liberdade”, explicou Dias Gomes, em
referência à ditadura militar. Sinal dos
tempos, no remake, Ricardo Linhares
optou por revelar ao espectador, desde o
início, qual é o “defeito” que o personagem
carrega nas costas.
Dias Gomes conta, em sua autobiografia,
que, durante eleições para prefeito,
vice-prefeito e vereadores realizadas no fim
de 1976 no Brasil, um dos nomes mais
votados foi João Gibão.
104
Personagens // CADERNO GLOBO UNIVERSIDADE
Globo/Divulgação
ARISTÓBULO CAMARGO
Professor de latim e presidente do Centro
Cívico Bolebolense, o personagem de Ary
Fontoura em 1976 e de Gabriel Braga Nunes
em 2013 não dorme há mais de dez anos.
Sua insônia crônica o faz perambular pela
cidade durante a madrugada. Sétimo filho
de uma família de seis mulheres, Aristóbulo
transforma-se em lobo na virada das noites
de quinta para sexta-feira.
Orador oficial dos tradicionalistas,
pronuncia rebuscados discursos em prol
da manutenção do nome da cidade. É
apaixonado por Risoleta (Dina Sfat na
primeira versão, Débora Bloch na segunda),
dona do prostíbulo de Bole-Bole.
Nos anos 1970, a caracterização do
personagem que se transforma em lobisomem
era feita pelo maquiador Eric Rzepecki,
colando pelos no corpo de Ary Fontoura. A
Cedoc/Divulgação
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CADERNO GLOBO UNIVERSIDADE // Personagens
Globo/Divulgação
Cedoc/Divulgação
CAZUZA
Cazuza Moreira (Rafael de Carvalho/Marcos Palmeira) é vereador,
dono da farmácia local e está sempre envolvido em discussões
políticas. Tradicionalista ferrenho e bajulador de Zico Rosado, ele
se exalta a cada vez que se fala em rebatizar Bole-Bole.
O problema é que, nesses momentos de grande exasperação,
seu coração teima em sair pela boca. Com a ajuda dos amigos, ele
geralmente consegue segurar o queixo, cerrar os lábios e engolir
o coração novamente. Certa vez, porém, essa manobra falhou e
o órgão não voltou para o lugar correto. Cazuza foi considerado
morto, com direito a velório e cortejo pelas ruas da cidade. Mas um
tranco no caixão fez o defunto levantar-se. Ele “desmorreu”, como
dizem os locais.
Na década de 1970, para criar o efeito do coração saindo, a
cena era feita usando uma bexiga azul, colocada dentro da boca do
ator. Em seguida, era utilizada a técnica do chroma key, pela qual
a cor azul da bexiga era substituída pela imagem de um coração
batendo de verdade.
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Personagens // CADERNO GLOBO UNIVERSIDADE
Globo/Divulgação
DONA REDONDA
Dona Redonda era personagem secundária
na versão de Dias Gomes. Mas ficou tão
gravada na memória dos telespectadores
que, no remake, tornou-se uma das
principais. Vivida por Wilza Carla no
passado, a rabugenta Dona Redonda não
para de comer e engordar. Com apetite
insaciável, não se preocupa com sua saúde
ou seu aspecto físico.
Entretanto, na altura do capítulo 26 da
primeira novela, ela explode – em cena que se
tornou antológica na história da telenovela
brasileira. Na época, para conseguir gravar
a sequência, um enorme balão inflável foi
Cedoc/Divulgação
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CADERNO GLOBO UNIVERSIDADE // Personagens
Globo/Divulgação
TIBÉRIO VILAR
O personagem vivido por Tarcísio Meira não existia na
versão original da novela, é uma criação de Ricardo Linhares.
Patriarca da família, ele guarda um grande segredo: sua
paixão proibida e não consumada por Candinha, do arqui-
inimigo clã dos Rosado.
Tibério, que já foi um vigoroso fazendeiro, hoje passa o
tempo todo sentado em uma poltrona. Essa reclusão fez com
que brotassem raízes de suas pernas. Permanece pregado ao
solo, como se estivesse se transformando em uma árvore, e
galhos e folhas se desprendem de seu corpo.
Globo/Divulgação
CANDINHA
A personagem interpretada em 2013 por Fernanda
Montenegro é a matriarca dos Rosado. Na primeira versão,
foi vivida por Maria Veloso. Era a Vó Candinha, uma senhora
com quase 90 anos, surda e com sinais de decrepitude. Falava
sozinha, resmungando coisas incompreensíveis.
A Candinha do século XXI mudou. Além da história do
amor por Tibério, de que ela se privou em nome da família,
a personagem ganhou uma característica típica do realismo
maravilhoso: conversa com galinhas imaginárias, que a
acompanham por toda a parte, porém, só são visíveis para
ela e para o público.
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Personagens // CADERNO GLOBO UNIVERSIDADE
Globo/Divulgação
BELISÁRIO
De Belisário, na primeira versão da novela, conhecia-se
apenas a história trágica: era um senhor de engenho que
fora assassinado por cangaceiros remanescentes do bando de
Corisco. Na versão atual, o personagem de Luiz Henrique
Nogueira foi esquartejado em uma emboscada e os bandidos
deixaram sua cabeça na porta de casa. A viúva, Dona Pupu
(Aracy Balabanian), a recolheu e colocou em uma redoma
de vidro. E assim Belisário “vive”, interagindo com Pupu em
seus pensamentos e devaneios – às vezes, ela até o tira para
dançar. Visitas falam com ele, que, entretanto, não responde,
pois perdeu as cordas vocais quando foi “despescoçado”.
Globo/Divulgação
VITÓRIA
A personagem de Lilia Cabral é nova em Saramandaia.
Segundo Linhares, Dias Gomes não teria conseguido exibir
uma história como a dela, em tempos de censura. Seria um
atentado à moral. Filha de Tibério, Vitória Vilar também
viveu, como o pai, uma paixão por um membro da família
rival – Zico Rosado. Com a diferença que o amor dela foi – e
ainda é – consumado, não apenas furando a eterna rivalidade
entre as famílias como configurando adultério por parte do
personagem de José Mayer, casado. Como não poderia deixar
de ser, Vitória também tem um quê mágico: quando está
com Zico Rosado se derrete de amor – literalmente.
109
exposição
Gianne Carvalho
DRAMATURGIA
EM CARTAZ
O realismo fantástico de Saramandaia e a obra de Dias
Gomes foram tema de duas exposições, no Rio de Janeiro
(Museu de Arte do Rio – MAR) e em Paraty (Casa do
Autor Roteirista), que ocorreram paralelamente aos
seminários do Globo Universidade.
Veja, a seguir, imagens dessas exposições
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Exposição // CADERNO GLOBO UNIVERSIDADE
Gianne Carvalho
Gianne Carvalho
111
Gianne Carvalho Gianne Carvalho
112
CADERNO GLOBO UNIVERSIDADE // Exposição
Gianne Carvalho
// Artigo // CADERNO GLOBO UNIVERSIDADE
Nome do AutorExposição
Luciana Serra
Luciana Serra
Luciana Serra
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linguagem
SARAMANDÊS NA BOCA DO POVO
Deceptude, besteirices, apenasmente... São frequentes os neologismos nos diálogos de Saramandaia. O uso diferente
da norma culta cria expressões e dá um colorido à linguagem dos personagens na trama. Essa faceta já havia
aparecido na obra de Dias Gomes, nas falas de Odorico Paraguaçu, em O bem-amado, de 1973. Neste caso, porém,
os termos acentuavam o traço caricato do prefeito da fictícia Sucupira, em seus arroubos de soar algo erudito. Em
Saramandaia, os neologismos estão incorporados ao modo de falar dos habitantes de Bole-Bole e independem das
condições socioeconômicas e culturais dos personagens. Veja alguns exemplos do dialeto “saramandês”.
Zico Rosado
Globo/Divulgação
Providenciamentos PROVIDÊNCIAS
Bastantemente SUFICIENTEMENTE
EQUIVALE A
Apenasmente APENAS, TÃO-SOMENTE
Pratrasmente TEMPOS ATRÁS
Calunientos CALUNIADORES
Desaforenta DESAFORADA
Talqualmente DE MODO SEMELHANTE
Cazuza
Globo/Divulgação
Sonambulista SONÂMBULA
Nervosura NERVOSISMO
EQUIVALE A
Deceptude DECEPÇÃO
Besteirices BESTEIRAS, TOLICES
Divergenciamentos DIVERGÊNCIAS
Peladice NUDEZ
Cismância CISMA
Risoleta
Globo/Divulgação
Deslembrar ESQUECER
Amolativos AMOLAÇÕES, PROBLEMAS
EQUIVALE A
Desfeitiada DESTRATADA,
ALVO DE DESFEITAS
Aliasmente ALIÁS, A PROPÓSITO
Desmembratório DESMEMBRAMENTO
Safadices SAFADEZAS
Acautelatórios CUIDADOS
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