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A Expansão Árabe Na África e Os Impérios Negros de Gana, Mali e Songai (Sécs. VII-XVI) - Idade Média - Prof. Dr. Ricardo Da Costa PDF
A Expansão Árabe Na África e Os Impérios Negros de Gana, Mali e Songai (Sécs. VII-XVI) - Idade Média - Prof. Dr. Ricardo Da Costa PDF
As tropas árabes que realizaram essa expansão tanto para o leste quanto para o
oeste eram disciplinadas e coesas. Definitivamente não eram bárbaras. Conta a
tradição que Abu Bakr (623-624), o primeiro califa, sogro de Maomé, teria dito
às suas tropas:
Sede justos, sede valentes; morrei antes de render-vos; sede piedosos; não mateis nem
velhos, nem mulheres, nem crianças; não destruais árvores frutíferas, cereais ou gado.
Mantende vossa palavra, mesmo aos vossos inimigos; não molesteis as pessoas religiosas
que vivem retiradas do mundo, mas compeli o resto do mundo a se tornar muçulmano
ou nos pagar tributo. Se eles recusarem estes termos, matai-os. (citado em DURANT,
s/d: 171).
...gentes que vivem em tendas e que viajam no lombo do camelo, e se instalam nas
alturas das montanhas (...) No deserto, a maioria da população mantém suas
genealogias, porque, de todos os laços que servem para vincular um povo, o de sangue é
o mais próximo e de maior força (...)
1) De Awdaghost e Tekrur (na Mauritânia atual) para Tindouf, até Marrakech, Fez e
Túnis;
2) De Tombuctu (no Mali) também para Fez e Túnis, mas passando por Taouden;
3) De Gao (também no Mali) para Trípoli, passando por Ghadames;
4) De Agadez, mais ao centro, no Níger, também para Trípoli, passando por Ghadames
ou por Murzuk.
In: KI-ZERBO, Joseph. História da África Negra I. Lisboa: Publicações Europa-América, s/d, p. 137.
Assim, tomando como base esse depoimento muçulmano (e de outros, como
veremos), sabemos que, já a partir do século IX, uma confederação de tribos
berberes sob o comando de Tilutan (836-837) – os lemtunas, os mesufas e os
djoddalas – conseguiram impor sua autoridade sobre vários grupos negros e
negro-berberes instalados ao redor de um povoamento chamado Awdaghost,
que ficava bem no centro da região do Baixo Senegal. Todas essas culturas
próximas a Awdaghost tinham uma defesa natural que as protegiam de
ataques, as escarpas do Tagant, que formam um grande semicírculo natural
protetor naquela região.
Outro escritor islâmico, Al-Idrisi (Abu al-Idrisi, muçulmano de Ceuta, no
Marrocos, educado em Córdoba, na Espanha) (RONAN, 2001: 113) nos informa
que o nome desse reino era País de Qamnuriya(Mauritânia) ou Terra do
Maqzara dos Negros (Ard Maqzarati es Soudan). Bem no centro da rota do sal,
de Buré ao sul até Teghazza, esse reino teria tanto no sul quanto no norte um
povoamento concentrado em um cinturão de cidades: ao sul, Awlil, Sila, Tekrur,
Daw e Barissa; ao norte Qamnuriya e Nighira. No entanto, na época da chegada
dos berberes islâmicos, as rotas com o sul (Senegal) teriam desaparecido,
restando o contato e comércio com o norte islâmico.
*
Um pouco à esquerda do reino de Maqzara, havia outro importante reino
negro, na trilha da famosa “rota saariana do ouro” (que passava por Walata e
Sidjilmasa até Fez): era o reino do Tekrur. No século IX, esse reino era
governado por uma dinastia peule vinda de Hodh: eram os Dia Ogo.
Imagem 25. Tipo de construção na área rural da Mauritânia
Manuscrito árabe n. 5847, fol. 105, Maqâma 34, Biblioteca nacional da França, Divisão oriental do
Departamento de Manuscritos.
O Reino de Gana é chamado assim por causa do título de seus soberanos. Era
também chamado de Ugadu (país dos rebanhos). Nessa época, o clima era
bastante úmido, o que favorecia a criação de gado e a agricultura. Por volta do
século IX, viviam na região do Hodh e do Auker pastores de origem berbere e
cultivadores negros sedentários que, com o passar do tempo, se mesclaram. Em
876, outro cronista muçulmano, Iacub, escreveu: “O rei de Gana é um grande
rei. No seu território encontram-se minas de ouro e ele tem sob sua dominação
um grande número de reinos” (citado por KI-ZERBO, s/d: 135).
O reino de Gana está povoado pelos povos de Soninke, que chamam sua terra de
Wagadugu ou Wagadu. O nome Gana é o título do rei que governa aquele império. O
Estado de Soninke é forte, e seu rei controla 200.000 soldados, 40.000 dos quais
arqueiros que protegem as rotas de comércio de Gana.
A cidade habitada pelo rei está a seis milhas da outra cidade (muçulmana) e é chamada
de Al-Ghana. A área entre as duas cidades é coberta com casas feitas de pedra e de
madeira. O rei tem um palácio e choças de formato cônico, cercadas por paredes. Na
cidade do rei, não muito longe da corte de justiça real, há uma mesquita. Os
muçulmanos que vêem em missões ao rei podem rezar ali. Há ainda uma grande
avenida, que cruza a cidade de leste a oeste.
O rei adorna a si mesmo como se fosse uma mulher, usando colares ao redor do pescoço
e braceletes em seus antebraços. Quando se senta diante do povo, fica sobre uma
elevação decorada com ouro e se veste com um turbante de pano fino. A corte de
apelação fica em um pavilhão abobadado, com dez cavalos estacionados e cobertos com
um tecido bordado com ouro. Atrás do rei ficam dez pajens segurando escudos e
espadas, ambas decoradas com ouro.
À sua direita ficam os filhos dos vassalos do país do rei, vestindo esplêndidas roupas e
com os cabelos trançados com ouro. O governador da cidade senta-se na terra diante do
rei e os ministros ficam do mesmo modo, sentados ao redor. Na porta do pavilhão estão
cães de excelente pedigree e que dificilmente saem do lugar de onde o rei está, pois
estão ali para protegê-lo. Os cães usam ao redor de seus pescoços colares de ouro e de
prata cheios de sinos com o mesmo metal.
A audiência é anunciada pela batida em um longo cilindro oco que se chama daba.
Quando os povos que professam a mesma religião se aproximam do rei, caem de joelhos
e polvilham suas cabeças com pó, uma forma de mostrar respeito por ele. Quanto aos
muçulmanos, eles cumprimentam-no somente batendo suas mãos. (Al-Bakri’s online
guide to Ghana Empire).
Imagem 32. Vila de Songo, no Mali, com uma pequena mesquita ao centro
Os tipos de “casas cônicas” descritas por Al-Bakri em sua obra ainda podem ser vistas no Mali,
como mostra a fotografia acima da Vila de Songo, no Mali.
Os impostos são cobrados também pelo cobre e qualquer outra mercadoria que entra e
sai do Império. O melhor ouro do país vem de Ghiaru, uma cidade distante da capital 18
dias de viagem. Todas as peças de ouro que são nativas e encontradas nas minas do
Império pertencem ao soberano, embora ele deixe o povo ter um pouco de ouro em pó,
isso certamente com o conhecimento de todos. Sem essa precaução, o ouro não só se
tornaria abundante como praticamente perderia seu valor.
Quando o rei morre, constroem uma enorme abóbada de madeira no lugar do enterro.
Então trazem-no em uma cama levemente coberta e colocam-no dentro da abóbada. A
seu lado colocam seus ornamentos, suas armas, e os recipientes que ele usava para
comer e beber. A serpente é a guardiã do Estado e vive em uma caverna que lhe é
devotada. Quando o rei morre, seus possíveis sucessores se reúnem em uma assembléia,
e a serpente é trazida para picar um deles com seu focinho. Essa pessoa é então
chamada para ser o novo rei.
Um muçulmano não deve fazer massagem em um judeu nem em um cristão, nem tirar
suas sujeiras ou limpar suas latrinas, pois o judeu e o cristão são mais indicados para
essas atividades, que são tarefas para gentes vis (…)
Deve proibir-se às mulheres muçulmanas que entrem nas abomináveis igrejas, pois os
clérigos são libertinos, fornicadores e sodomitas.
(Tratado de Ibn Abdun. In: SÁNCHEZ-ALBORNOZ, tomo II: 219)
Curiosamente, os almorávidas praticavam a cinofagia – morte de cães – uma
prática e hábito culinário pré-islâmico presente em um hadith do profeta: “Os
anjos não entram em uma casa onde há um cão”:
A Hadith consiste na tradição oral das tribos que habitavam a Arábia mais os
ensinamentos de Maomé que não foram para o Livro, mas que foram se formando
através dos anos. Esta tradição é que conta a história do Profeta, dos santos e dos outros
profetas menores, entre estes Jesus.
Os mulçumanos acreditam também nos gênios, fadas, nos espíritos bons e maus, em
práticas mágicas e outras coisas que, proibidas aos fiéis, podem ser usadas pelos
descrentes (KHALIDI, 2001: 16-17).
Iluminura das “Estações de Hariri” (1237), manuscrito da Biblioteca Nacional de Paris. Esta cena
representa uma pequena paragem antes do ataque decisivo, quando tocam as trombetas e rufam
os tambores. Ela pode estar se referindo a uma das primeiras batalhas do Islão na Península
Ibérica. No entanto, os trajes dos guerreiros e os jaezes das montadas apontam para uma origem
oriental e para a época em que a iluminura foi elaborada. In: MATTOSO, José (dir.). História de
Portugal. Antes de Portugal. Lisboa: Editorial Estampa, s/d, p. 399.
Este novo estilo de guerra, mais agressivo, era marcado basicamente pela
fundamentação religiosa (MATTOSO, 1985: 194). Isto os distinguia dos outros
islamitas andaluzes da Península, desprezados pelos berberes almorávidas.
Assim, aconteceu a partir do século XI uma “internacionalização” do conflito na
Península Ibérica.
De um lado, cristãos peninsulares ligados ideologicamente ao restante da
Europa, especialmente ao reino franco; de outro, muçulmanos ibéricos dos
reinos de taifas auxiliados pelo conjunto de aliados da África do Norte, por sua
vez intransigentes na ortodoxia. Nesse contexto deram-se as vitórias
portuguesas do primeiro rei de Portugal, Afonso Henriques, na batalha de
Ourique (1146), e na tomada da cidade de Lisboa (1147), com o auxílio de
cruzados vindos do norte europeu.
Kanté foi um pequeno interregno entre dois impérios, Gana e Mali. Quanto ao
segundo, não se conhecem as origens do reino de Mali (ou Mandinga).
Diferentes etnias viviam naquela região. Seus chefes se diziam “caçadores-
mágicos”, todos com ritos iniciatórios mais ou menos comuns. Esses clãs
estavam unidos pelo chamado “parentesco de brincadeira”, isto é, um curioso
direito e dever de fazer troça uns aos outros. O chefe gozava do monopólio das
pepitas de ouro. A estrutura social baseava-se em uma grande família que
dispunha de um campo comunitário (foroba) próximo à aldeia. Logo um dos
herdeiros sosso tomou o título de mansa (ou maghan), isto é, imperador.
Paralelo a esse processo de integração por parte dos sosso acontecia a
conversão ao Islamismo. Baramendana foi o primeiro rei a se converter, graças
ao pai de Abu Bakr, em 1050. A tradição conta que Baramendana estava
desesperado por causa de uma longa seca. Então se dirigiu a um devoto
lemtuna que o levou a um monte para passar uma noite rezando. Pela manhã
choveu, e o rei mandou destruir os ídolos animistas e se converteu ao
Islamismo.
Imagem 39. O Império de Mali com seus reinos “vassalos” (século XIV)
In: KI-ZERBO, Joseph. História da África Negra I. Lisboa: Publicações Europa-América, s/d, p. 165.
O Tarikh es Soudan! (1655), de autoria do mouro Es Saadi, nos informa que ele
atravessou o deserto passando por Walata e pelo Tuat com 60.000 mil
servidores (escravos), evidentemente um exagero – as cifras hoje estão por volta
de 500. (HEERS, 1983: 79). Chegou ao Cairo com cerca de duas toneladas de
ouro (!), em pó e em pepitas. O cronista Al-Omari (†1349) nos conta:
Quando da minha primeira viagem ao Cairo, ouvi falar da vinda do sultão Mussa (...) E
encontrei os habitantes do Cairo todos excitados a contarem as largas despesas que
haviam visto fazer às suas gentes.
Este homem espalhou pelo Cairo ondas de generosidade. Não deixou ninguém, oficial
da coroa ou titular de qualquer função sultânica, sem receber dele uma quantia em
ouro. Que nobre aspecto tinha este sultão! Que dignidade e que lealdade! (citado por
KI-ZERBO, s/d: 171).
Mansa Mussa foi tão generoso que, ao sair do Cairo, foi obrigado a pedir um
empréstimo a um riquíssimo mercador de Alexandria, para que pudesse
manter sua largueza até chegar a Meca...
Sua peregrinação fez o Império de Mali ser conhecido por todo o mundo, e os
mapas europeus passaram a citá-lo. Por exemplo, tanto o de Angelo Dulcert
Portolano (1339), quanto o Atlas catalão de Abraão Cresques (1375), elaborado
para o rei da França Carlos V (1338-1380), o Sábio, trazem nitidamente o nome
da capital (Ciutat de Melli), além do rei de Mali, Mansa Mussa, sentado em seu
trono e segurando uma pepita de ouro.
Imagem 41. Mapa do Norte da África (manuscrito catalão de 1375)
Este mapa catalão do século XIV do Norte da África tem quatro reis, três africanos: o rei Mansa
Musa de Mali (sentado, com uma gema de ouro na mão direita), o rei de Organa, o rei da Núbia e
o rei da Babilônia.
Os dois números em vermelho marcam dois textos. São eles: 1. “Toda esta parte
tem gentes que ocultam a boca; só se vêem seus olhos. Vivem em tendas e têm
caravanas de camelos. Também possuem animais de cujas peles fazem
excelentes escudos”. 2. “Este senhor negro é aquele muito melhor senhor dos
negros de Guiné. Este rei é o mais rico e o mais nobre senhor de toda esta
parte, com abundância de ouro na sua terra” (tradução literal). Observe que
embaixo do globo de ouro que o imperador Mansa Musa segura na mão direita
está a representação da cidade de Tumbuctu. In: DAVIDSON, Basil. “Os
Impérios Africanos”, História em Revista (1300-1400). A Era da Calamidade. Rio
de Janeiro: Abril Livros / Time-Life, 1992, p. 149.
De regresso para Mali, o imperador trouxe consigo um poeta-arquiteto, Abu
Issak, mais conhecido como Es Saheli. Com ele, construiu a grande mesquita de
Djinger-ber, em Tumbuctu.
Os sucessores de Mansa Mussa tiveram dificuldades de manter um território
tão vasto. Depois de Maghan (1332-1336), até Mussa II (1374-1387), o reino de
Mali viu Tumbuctu ser saqueada, além de sucessivos assassinatos palacianos
que enfraqueceram o império. Lentamente a hegemonia passava para o reino
de Gao, que anexava uma a uma as províncias do leste, além de tomar a cidade
de Djena, metrópole comercial.
No final do século XV o Tekrur passou para os domínios do estado volofo.
Houve um curto período confuso entre a hegemonia do Mali e do Gao. Várias
etnias foram arrastadas para o movimento dos peules do Bundu, conduzido por
Tenguella I (chamado de “o Libertador”). O imperador do Mali tentou até uma
aliança com D. João II de Portugal, mas nenhuma das missões portuguesas
parece ter chegado a seu destino.
Imagem 43. Mesquita de Djinger-ber, em Tumbuctu (século XIV)
Ela preserva o mesmo estilo africano, tanto no tipo de material da construção quanto no estilo,
reto, simples e vertical. Observe os paus enfiados nas paredes (como nas outras mesquitas
exibidas nas demais imagens): são andaimes usados ao longo dos séculos para restaurar os
edifícios de adobe e estuque, após o castigo sofrido pela construção nas concentradas e breves
chuvas anuais.
Da porta do castelo saem trezentos escravos, uns com arcos na mão, outros com
pequenas lanças e escudos. Uns estão sentados, outros de pé. À chegada do rei, três
escravos precipitam-se para chamar o seu lugar-tenente. Chegam os comandantes,
assim como o pregador, os sábios juristas, que se sentam à esquerda e à direita, diante
dos homens de armas. À porta, de pé, o intérprete dougha em grande aparato.
Está soberbamente vestido, em seda fina. O seu turbante está ornado de franjas, que
estas gentes sabem fazer admiravelmente. Tem um sabre a tiracolo, cuja bainha é de
ouro. Nos pés botas e esporas (...) Tem na mão duas lanças curtas. Uma é de prata, a
outra é de ouro. As pontas são de ferro. Os militares, o governador, os pajens ou
eunucos e os mesufitas (mercadores berberes e sarakholés) estão sentados no exterior
do lugar das audiências, numa longa rua, vasta e com árvores.
Cada comandante tem diante de si os seus homens, com as suas lanças, os seus arcos, os
seus tambores, as suas trompas, enfim, com os seus instrumentos de música feitos com
caniços e cabaças, em que se bate com baquetas e que dão um som agradável (as
trompas eram feitas de marfim das presas de elefantes). Cada um dos comandantes tem
sua aljava às costas. Tem o seu arco à mão e anda a cavalo (...) No interior da sala de
audiências e nas janelas vê-se um homem de pé. Quem desejar falar ao rei dirige-se
primeiro ao dougha. Este fala ao dito personagem que está de pé e este último ao
soberano.
Instala-se então um grande estrado com três degraus debaixo de uma árvore. É o pempi.
(segundo Al-Omari, o pempi era uma grande cadeira de ébano, parecida com um trono,
com as medidas adequadas a uma personagem alta e gorda. De cada lado, uma defesa
de elefante a cobri-lo, uma em frente da outra). É coberto de seda e guarnecido de
almofadas. Por cima instala-se o guarda-sol, que parece uma cúpula de seda, no alto da
qual se vê uma ave do tamanho de um gavião.
O rei sai por uma porta aberta num ângulo do castelo. Tem o seu arco à mão e a aljava
às costas. Traz na cabeça um solidéu de ouro, fixado por uma pequena faixa também de
ouro, cujas extremidades são pontiagudas como facas e com mais de um palmo de
comprimento. Na maioria das vezes, traz uma túnica vermelha e felpuda, feita com
tecidos de fabricação européia chamados mothanfas. Diante dele saem os cantores,
tendo na mão um kanabir de ouro e de prata (O kanabir era uma calhandra, isto é, uma
espécie de cotovia, sabiá-do-campo).
Não é necessário andar de caravana. A segurança é completa e geral em todo o país (...)
O sultão não perdoa a ninguém que se torne culpado de injustiça (...) O viajante, tal
como o homem sedentário, não tem a temer os malfeitores, nem os ladrões, nem os que
vivem de pilhagem.
Os pretos não confiscam os bens dos homens brancos que venham a morrer nas suas
terras, ainda mesmo que se trate de tesouros imensos. Depositam-nos, pelo contrário,
em mãos de um homem de confiança dentre os brancos, até que se apresentem aqueles
a quem revertam por direito e tomem conta deles.
(citado por KI-ZERBO, op. cit.: 180).
Ali também conquistou Djenne (1473), após noventa e nove tentativas (!) dos
malinqués de se apoderar de volta da cidade, além do centro de Macina, um
pouco mais ao norte. Abriu ainda um canal d’água a oeste do lago Faguibine
(ver imagem 42) e ordenou a redação das atas oficiais do reino. Com sua morte,
em 1492, seu filho Sonni Bakary assumiu a coroa, mas reinou somente um ano.
Em seguida, houve uma tomada do poder: o filho de Sonni renegou a fé
islâmica e um lugar-tenente chamado Mohammed Torodo, assumiu o trono,
com o nome de Askia Mohammed, com a ajuda dos ulemás, corpo de
estudiosos. (HOURANI, op. cit.: 77)
Como Mussa, Askia também realizou uma luxuosa peregrinação a Meca em
1496, com quinhentos cavaleiros e mil homens a pé. Esse mini-exército de
escravos e homens livres levava consigo 300.000 peças de ouro, um terço
distribuído em esmolas durante a viagem. No Hedjaz, Askia conseguiu do califa
o título de “califa do Sudão”: Khalifatu biladi al-Tekrur.
Do califa Mohammed até Askia Ishak I (1539-1549), o império adquiriu cada vez
mais territórios, graças às guerras – e apesar das intrigas e assassinatos políticos
palacianos. Por exemplo, no tempo de Askia Mohammed Bunkan (1531-1537), o
imperador de Songai tinha uma grande corte com um harém, seus cortesãos
recebiam roupas de fazenda e braceletes (mantendo a tradição medieval do
soberano vestir, literalmente, seus convivas) e uma orquestra, com novos
instrumentos (trombetas e tambores) acompanhava o príncipe em suas
viagens. A guarda pessoal do soberano era composta de 1.700 homens. O
império então se estendia por mais de dois mil quilômetros, de Teghazza ao
país dos mossi (norte a sul), de Agades a Tekrur (leste a oeste).
Imagem 47. Mapa do Império de Songai (Gao) e de seus vassalos (século XVI)
É necessário que eu te traga um tributo para que, com ele, te lembres de mim. Será de
duas barras de sabão no princípio de cada ano.
Tendo surgido uma contenda entre as gentes de Gao e as de Cano quanto a saber qual
das duas cidades era a mais populosa, frementes de impaciência, jovens de Tombuctu e
alguns habitantes de Gao intervieram e, pegando em papel, em tinta e em penas
entraram na cidade de Gao e puseram-se a contar os grupos de casas, começando pela
primeira habitação a oeste da cidade, e a inscrevê-las uma após a outra, “casa de fulano”,
“casa de sicrano”, até chegarem às últimas construções da cidade, do lado leste. A
operação levou três dias e contaram-se 7.626 casas, sem incluir as cubatas construídas
de palha. (citado por KI-ZERBO, op. cit.: 189)
Todas essas cidades eram grandes centros de estudos, especialmente dos textos
religiosos e de Direito (notadamente a jurisprudência). Em sua obra Descrição
da África (1526), o granadino Al Hasan, chamado de Leão, o Africano (al-Hasan
ibn Muhammad al Wazzân az-Zayâtî, 1483-1554), nos dá preciosas e claras
informações sobre a cidade de Tumbuctu (os comentários em parênteses são
meus):
O reino recebeu recentemente esse nome, depois que uma cidade foi construída por um
rei chamado Mansa Suleyman, no ano 610 da Hégira (1232), próxima doze milhas de
uma filial do rio Níger (Mansa Suleiman reinou nos anos 1336-1359. Na verdade, a cidade
de Tumbuctu foi provavelmente fundada no século XI pelos tuaregues, e antes foi
capital do reino de Mali em 1324).
Além do templo, há um grande palácio também construído pelo mesmo arquiteto, onde
o rei vive. As lojas dos artesãos, dos comerciantes, e, especialmente, as dos tecelões de
pano de algodão, são muito numerosas. As telas são importadas da Europa para
Tombuctu, carregadas por comerciantes da Barbária. (Por caravanas de camelos que
passavam pelo deserto do Saara vindas da África do Norte)
As mulheres da cidade mantêm o costume de vendar seus rostos, com exceção dos
escravos, que vendem todos os gêneros alimentícios. Os habitantes são tão ricos,
especialmente os estrangeiros que se estabeleceram no país, que o rei atual deu duas de
suas filhas a dois irmãos, ambos homens de negócios, pois era ciente de suas riquezas.
(O autor se refere a Omar ben Mohammed Naddi, que não era de fato o rei, mas um
representante do rei de Songai)
Há muitos poços que contêm água doce em Tumbuctu. Além disso, quando o rio Níger
está cheio, canais levam a água para a cidade. Grãos e animais são abundantes, de modo
que o consumo de leite e de manteiga é considerável. Contudo, o fornecimento de sal é
fraco, porque ele é levado daqui para Tegaza, que fica cerca de 500 milhas de Tumbuctu.
Eu mesmo estava na cidade no momento em que uma carga de sal foi vendida por oito
ducados. O rei tem um rico tesouro rico de moedas e pepitas de ouro. Uma dessas
pepitas pesa 970 libras. (Como vimos, os escritores muçulmanos mencionam
freqüentemente as fabulosas pepitas de ouro africanas, mas atualmente há a tendência
de se considerar os tamanhos descritos por eles um exagero)
A corte real é magnífica e muito bem organizada. Quando o rei vai de uma cidade a
outra com as gentes de sua corte, monta um camelo e os cavalos são conduzidos
manualmente por servos (escravos). Se a luta é necessária, os servos montam os
camelos e todos os soldados montam nas costas dos cavalos. Quando alguém desejar
falar com o rei, deve ajoelhar-se diante dele e curvar-se ao chão; mas isto é exigido
somente daqueles que nunca falaram nem com o rei, nem com seus embaixadores.
Este rei faz a guerra somente contra os inimigos vizinhos e contra aqueles que não
aceitam lhe pagar tributo. Quando obtêm uma vitória, ele vende todos os inimigos,
inclusive as crianças, no mercado em Tumbuctu.
Os pobres cavalos nascem pequenos neste país. Os comerciantes usam-nos para suas
viagens e os cortesãos para mover-se na cidade. Os bons cavalos vêem da Barbária.
Chegam em uma caravana e, dez ou doze dias mais tarde, são conduzidos ao soberano,
que, caso goste, os examina e paga apropriadamente por eles.
O rei é um inimigo declarado dos judeus. Ele não permitirá que nenhum deles viva na
cidade. Caso ouça que um comerciante da Barbária anda ou faz negócio com eles, o rei
confisca seus bens. Há numerosos juízes em Tumbuctu, professores e sacerdotes, todos
bem nomeados pelo rei, que honra muito as letras. Muitos livros escritos à mão e
importados da Barbária são vendidos. Há mais lucro nesse comércio do que em toda a
mercadoria restante.
Ao invés de dinheiro, são usadas pepitas puras de ouro como moeda de troca. Para
compras pequenas, escudos de cauris trazidos da Pérsia; quatrocentos cauris igualam
um ducado. Seis ducados e dois terços correspondem a uma onça romana de ouro.
(Como vimos, os cauris eram conchas de moluscos utilizadas como moeda, desde o
Sudão até a China; um ducado de ouro sudanês deveria pesar cerca de 15 gramas)
Desse celeiro de estudiosos de Songai, o mais ilustre sem dúvida foi Ahmed
Baba (c. 1556-1620). Nascido em Arauane (dez dias de marcha de Tumbuctu a
Tuat), Baba teria escrito setecentas obras (!), dentre elas um dicionário dos
sábios do rito malekita e um tratado sobre as populações do Sudão ocidental.
Seus estudos abrangiam praticamente todo o campo dos estudos islâmicos da
época: Língua Árabe, Retórica, Exegese corânica e Jurisprudência. Sua
biblioteca tinha cerca de 1.600 obras.
Imagem 54. Representação de Ahmed Baba
Mahmud Kati escreveu com entusiasmo sobre esse ambiente cultural
efervescente no Império de Songai, e com ele termino minha narrativa da
expansão muçulmana na África e o surgimento dos impérios negros ao sul do
Saara:
Naquele tempo, Tombuctu era sem igual entre as cidades do país dos Negros pela
solidez das instituições, pelas liberdades políticas, pela pureza dos costumes, pela
segurança das pessoas e dos bens, pela clemência e compaixão para com os pobres e os
estrangeiros, pela cortesia em relação aos estudantes e aos homens de ciência e pela
assistência prestada a estes últimos. (citado por KI-ZERBO, op. cit.: 191)
Assim, até o século XVI, o Império de Songai, como o restante da África negra,
conheceu um grande desenvolvimento e expansão. No entanto, a partir de
então, os estados muçulmanos passariam a um expansionismo brutal (o
primeiro deles o reino de Marrocos, muito interessado nas minas de sal do
outro lado do deserto). Somado a isso, a Europa passou a conhecer a África e
utilizá-la para seus fins igualmente expansionistas. “É o começo de uma
aventura sombria”, afirma Ki-Zerbo. (KI-ZERBO, op. cit.: 251)
Imagem 55. Homem do povo de Dogon (Mali) de pé (séc. XVI?)
Essa escultura de madeira patinada (com verniz oxidado pelo tempo e pela luz) é uma boa
metáfora de encerramento de nossa narrativa. A partir de então – século XVI – a África se
ajoelhou e se rendeu a seus conquistadores muçulmanos e europeus, cada vez mais ávidos de
homens e riquezas, cada vez mais aproveitadores, tanto do sistema escravocrata vigente na África
(entre muçulmanos negros, berberes e entre as tribos não-muçulmanas) quanto de suas rotas de
comércio e exploração de metais e produtos.
*
Este trabalho é dedicado ao querido e saudoso Professor Mário Maestri Filho,
que nos distantes idos de 1983 ministrou a então inédita disciplina "História
da África" no curso de História da Universidade Santa Úrsula
(http://www.usu.br/), matéria que tive a honra de assistir como aluno e que me
fez despertar o interesse pelas culturas negras medievais africanas.
*
X. Fontes utilizadas
AL-BAKRI (Abu ‘Ubayd), Description de l'Afrique septentrionale (ed. e transcr.
de Slane), A. Maisonneuve, 1965.
CINTRA, Luís Filipe Lindley (ed. crítica). Crónica Geral de Espanha de 1344.
Coimbra: Imprensa Nacional-Casa da Moeda, 1990, vol. IV.
XI. Bibliogra a
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