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gunda-feira, 13 de setembro de 2010

A prova da existência de Deus em


Santo Tomás (IV)

Sidney Silveira

A tentativa de prova pela tendência natural do homem à felicidade

Gallus M. Manser, um dos grandes tomistas do século XX, traz uma bela
refutação, em seu livro A Essência do Tomismo, dos argumentos em favor
da prova da existência de Deus a partir do anelo de felicidade que há no
coração do homem. Enumeremos duas dessas teses em forma de
silogismo, para torná-las bem claras:

1- Todo anelo natural supõe a existência real da coisa anelada. Ora, o


homem tem o anelo natural de unir-se a Deus, onde está a sua felicidade
e o seu fim próprio. Logo, Deus existe.

2- Deus é o objeto formal especificante tanto da inteligência quanto da


vontade. Pois muito bem: toda potência supõe a realidade do objeto formal
que a especifica. Logo, Deus existe.

O primeiro desses argumentos supõe o axioma “na natureza nada se faz


em vão” (natura non agit frustra, ou então natura nihil facit frustra).
Ocorre que esta máxima se aplica às coisas naturais, e Deus está
absolutamente acima de todas as naturezas. Pergunta-se, então, o grande
metafísico: pode porventura afirmar-se que tudo na natureza — no
mundo, enfim — é proporcional ao fim último? A resposta é “não”, embora
com ela não se invalide o axioma natura nihil facit frustra, pois este tem
valor universal relativo às coisas naturais, até mesmo quando
individualmente a finalidade se frustra, como é o caso das disteleologias
que observamos nas monstruosidades em alguns indivíduos: um homem
nasce sem a perna; outro sem o braço; um bebê é anencefálico, etc. Não
obstante, tais realidades materializadas em indivíduos não frustram o fim
da espécie humana.

Manser mostra o seu engenho filosófico ao referir-se a essas


monstruosidades que frustram a natureza em alguns indivíduos, e, com
isto, parecem invalidar o princípio acima aludido. Aponta ele
simplesmente o seguinte: na natureza também existe o casual, o acidental
que só pode ser suficientemente explicado à luz de um princípio superior.
No caso de que se trata, o tomista dominicano nos remete ao fato de que
tais disteleologias, tais finalidades malogradas, se explicam por inserir-se
no contexto da Providência divina — que permite o mal nos indivíduos em
ordem ao bem maior das espécies (não entro, por ora, no tema do mal no
homem). E, com grande argúcia, ele nos lembra ainda que sempre, ao
aplicar este princípio, Santo Tomás supõe como já demonstrada a
existência de Deus. Daí ser absolutamente improcedente falar em “prova”
da existência de Deus a partir deste princípio. Pode até ser um argumento
razoável, mas jamais probante.

Já com relação ao segundo silogismo acima citado, Manser (a meu ver


muito acertadamente, e contra uma série de respeitados tomistas:
Garrigou-Lagrange, Gredt, Lehmen-Beck, etc) nega a premissa maior. Ou
seja: não é válido dizer que Deus é o objeto formal especificante tanto da
inteligência como da vontade. Vejamos o argumento.

É verdade que toda potência está ordenada, por necessidade natural, ao


seu objeto formal especificante. E justamente aqui entra o argumento de
outros tomistas em favor da prova da existência de Deus a partir das
premissas deste silogismo: sendo Deus o objeto formal especificante da
inteligência e da vontade, se Ele não existisse, não existiria a vontade nem
a inteligência. Mas é evidente que a vontade e a inteligência existem; logo,
Deus existe.

A isto responde Manser: o que o homem quer por necessidade natural não
é Deus, mas a felicidade em geral, in comuni (e nisto reproduz o que diz
o Aquinate em De Veritate, XI, q. 2). A Deus o homem elege livremente, e
não por necessidade natural. Em suma, pode-se dizer que o homem
apetece a Deus indiretamente, a partir do bem em sentido geral. Portanto,
Deus não pode ser o objeto formal especificante nem da vontade, e nem
inteligência — já que a vontade é apetite intelectivo do bem. Ademais, não
sendo Deus o primeiro que se conhece aqui na terra pelo homem,
tampouco será Ele o primeiro que se deseja naturalmente.

Em resumo, se a felicidade em geral, ou seja, o boni in comuni, é o objeto


especificante da vontade humana como potência, torna-se inadimissível
admitir um segundo objeto formal especificante para a mesma vontade.
Diz Manser:
“Se considerarmos a vontade humana unicamente em sua atividade
terrena (in ordine actus eliciti), nem a vontade tende naturalmente a Deus
em primeiro lugar, nem muito menos é Deus o objeto formal da vontade
na ordem natural”.

Postado por Adm. às 06:45

quinta-feira, 3 de fevereiro de 2011

A tratégia em Friburgo: Sermão de D. Tomás de Aquino, prior do Mosteiro


da Santa Cruz

Carlos Nougué

Concordo integralmente com as palavras do Sermão abaixo.

PAX

III DOMINGO DEPOIS DA EPIFANIA – 2011

APÓS AS GRANDES CHUVAS QUE SE ABATERAM SOBRE NOVA


FRIBURGO

Nesta tragédia que se abateu sobre nossa cidade, nós devemos procurar
a causa do mal, de tal maneira que possamos evitar uma nova
calamidade. Mas, objetarão alguns: como evitar no futuro o que é obra do
acaso? Como evitar aquilo que não é senão o efeito das forças naturais?
Quem é dono do acaso? Quem é dono dos ventos, das chuvas e de todas
as coisas?

A pergunta por si só nos dá a resposta.

O dono de todas as coisas é Deus. O autor das leis da natureza é Deus. O


acaso pode ser acaso para nós, mas não para Deus, pois tudo está em
suas mãos. “Todas as coisas, Senhor, dependem de vossa vontade e nada
há que vos possa resistir” canta a Santa Igreja no Intróito da missa do
XXIº Domingo depois de Pentecostes. Tudo está nas mãos de Deus e nem
uma folha, nem uma gota, nem um fio de cabelo cai sem sua permissão,
pois Deus governa todos os seres, dos maiores aos menores e nada,
absolutamente nada, escapa ao seu governo.

Mas alguns poderão ainda dizer: “Não foi Deus; foi o demônio!”

Assim como no caso de Jó, foi o demônio que causou todas as desgraças
que caíram sobre Jó, e, em particular, que fez desabar a casa onde
estavam os seus filhos e nenhum deles escapou. Esta objeção não é
comum hoje em dia, mas merece uma resposta. Jó, ao ter notícia deste
acontecimento, ficou muito aflito, rasgou suas vestes, como era costume
no Oriente, raspou a cabeça, prostrou-se por terra, adorou o Senhor e
disse:

“O Senhor o deu, o Senhor o tirou.”


Jó não diz: “O Senhor me deu e o demônio me tirou.” Mesmo se o demônio
é que fez desabar a casa, Jó sabe que nada, absolutamente nada, acontece
sem a permissão de Deus.

Por isto, ele acrescenta: “Como foi do agrado do Senhor, assim sucedeu;
bendito seja o nome do Senhor.” Mas tendo visto que todos os
acontecimentos estão sob o governo de Deus, que permite uns e realiza
outros, procuremos a causa destes mesmos acontecimentos. Qual é a
razão dos flagelos, das tragédias, dos sofrimentos, quer venham das forças
naturais, quer do demônio, quer dos homens diretamente? No caso de Jó,
a razão da permissão divina era a de aumentar a santidade de Jó. No caso
de Nosso Senhor Jesus Cristo, que morreu por nós, a causa da permissão
divina era a nossa Redenção. No caso de Nova Friburgo, qual é ela?
Interroguemos a Revelação, que se exprime pela Tradição e pelas
Sagradas Escrituras.

A Tradição encontra sua principal expressão na Santa Liturgia. É a ela,


primeiramente, que vamos recorrer.

A Tradição se encontra também nos escritos e vida dos Santos,


especialmente dos Santos Doutores. Vamos, pois, dividir nosso sermão
em três pontos:

1º O que diz a Santa Liturgia.

2º O que dizem as Escrituras.

3º O que vemos na vida dos Santos.


1º ponto.

O que diz a Santa Liturgia. Numa das orações do missal que devem ser
ditas por ocasião de um terremoto nós lemos: “por vossa misericórdia
firmai a terra que vemos tremer sob o peso de nossas iniqüidades, a fim
de que os mortais saibam que tais flagelos são castigo de vossa mão e a
sua cessação o efeito de vossa misericórdia.”

Logo, todos os mortais, todos nós, somos avisados por este texto de que
tais flagelos são um castigo das mãos de Deus. Na oração para pedir o
bom tempo, a Santa Igreja reza dizendo: “...Concedei-nos bom tempo, a
fim de que, punidos justamente pelos nossos pecados, possamos sentir,
por vossa misericórdia, os efeitos de vossa clemência.”

“Punidos justamente pelos nossos pecados.”

Eis aí o que a Tradição nos ensina pela Santa Liturgia, que é, ela mesma,
uma regra segura de nossa Fé, pois a regra da oração é a regra do que
devemos crer. Passemos ao segundo ponto de nosso sermão ou segunda
fonte de nossa investigação que são as Sagradas Escrituras.

2º ponto.

Que dizem os autores sagrados? Que nos revela Deus nos livros
inspirados? “A terra será maldita por tua causa” diz Deus a Adão. E por
quê? Por causa do pecado de desobediência de Adão. A terra abriu a sua
boca e recebeu da tua mão o sangue de teu irmão. Quando a cultivares,
ela não te dará os seus frutos.” disse Deus a Caim. E por quê? Porque
Caim matou o seu próprio irmão, Abel. “Exterminarei da face da terra o
homem que criei.” disse Deus antes do dilúvio. “Tudo o que há sobre a
terra será consumido.” E por qual razão? Por causa do pecado dos
homens. Sempre a mesma causa.

O pecado merece uma pena e onde há pena é porque houve um pecado,


mesmo se a pena é sofrida por outro, como o foi na nossa Redenção, na
qual Nosso Senhor tomou sobre si a pena de nossos pecados. Mas
continuemos:

“Maldito seja Canaã; ele será escravo dos escravos de seus irmãos.” diz
Noé. E por quê? Porque Cam pecou contra o mandamento de honrar pai
e mãe. “Faze sair desta cidade todos que te pertencem, dizem os anjos a
Lot, porque nós vamos destruir este lugar”, a saber, Sodoma e Gomorra.
E por qual razão?

São os anjos mesmo que nos explicam:

“Visto que, dizem eles, o clamor de seus crimes aumentou diante do


Senhor, O qual nos enviou para os exterminar.” E foi o que aconteceu.
Sodoma e Gomorra foram consumidas pelo fogo e só escaparam Lot com
suas duas filhas. Qual era o pecado de Sodoma e Gomorra? O
homossexualismo.
Dez pragas caíram sobre a terra do Egito devastando tudo e desolando
todo o país, no tempo de Moisés. Qual foi a causa? A obstinação do Faraó.
Trinta mil homens pereceram em combate contra um inimigo muito
inferior, no tempo de Josué. Qual foi a causa? Foi o pecado de um só
homem. Um pecado de desobediência e de avareza. O pecado de Acham,
que tomou para si o que Deus dissera para ser destruído, escondendo
ouro e prata tomada ao inimigo contra a ordem dada por Josué daparte
de Deus.

Assim vemos que tanto os flagelos naturais como o dilúvio, as pragas do


Egito, a destruição de Sodoma e Gomorra têm por causa os pecados dos
homens. O mesmo se vê no caso de Nínive, cuja destruição foi predita pelo
profeta Jonas e que devido à conversão e penitência de seus habitantes
foi finalmente poupada.

Mas alguns dirão: Isto era no Antigo Testamento. No Novo Testamento, na


Nova Lei, na lei da caridade isto não acontece mais. Grave engano. A
caridade consiste em amar o bem e não em tolerar o mal, acabando por
aprová-lo. Pensar que Deus substituiu a pena pelo perdão sem exigir a
conversão é um grande engano. É uma verdadeira heresia.

Deus abrandou o peso de sua mão, mas com uma condição: a conversão.
A Nova Lei não se caracteriza pela facilidade, mas pela caridade, o que é
bem diferente. Por acaso foi fácil a vida dos cristãos nos primeiros
séculos? Nos tempos de perseguição dos imperadores romanos?

Fácil sim, mas pela caridade, pois “quem ama não pena e se pena, ama a
sua pena.” Fácil, mas não como o mundo entende a facilidade. Fácil por
causa do ardor da caridade, que é bem diferente da facilidade que o
mundo deseja. A Nova Lei se caracteriza pelo amor, mas o amor da cruz.
A grande diferença entre a Lei Antiga e a Nova Lei está na maior
abundância da graça divina e, portanto, numa maior santidade dos
verdadeiros católicos. Pensar que a Nova Lei se caracteriza pela falta de
punição dos pecados cometidos pelos homens é um grave equívoco.

Mas para dar um exemplo concreto tirado dos tempos da Nova Lei eis o
que lemos na vida de Santo Afonso de Ligório, Doutor da Igreja, no século
XVIII. Assim passamos ao terceiro ponto.

3º ponto.

Conta-se que no ano de 1779 a cidade de Nocera padecia as


conseqüências de uma prolongada seca que, se se prolongasse, destruiria
todas as colheitas e deixaria a população da cidade e dos arredores sem
alimentos. Santo Afonso, diante daquela calamidade, deplorava os
pecados do povo que, diz o seu biógrafo, são a causa destes flagelos. Por
esta razão, no domingo 15 de maio daquele ano de 1779 Santo Afonso
empreendeu uma procissão de penitência para abrandar a cólera divina.

Revestiu-se de seus hábitos roxos, cobriu-se de cinzas e com a corda no


pescoço, dirigiu-se com seus religiosos para a matriz a fim de lá levantar
uma grande cruz. Toda a cidade assistiu a essa comovente cerimônia. O
Santo ancião quis aproveitar da ocasião para exortar os pecadores ao
arrependimento. Por mais de uma hora o santo invectivou contra o pecado
mortal, que não só ofende a Deus, mas também atrai sobre uma
população inteira os mais terríveis castigos.
Eis aí, mais uma vez, afirmado que as calamidades têm por causa os
pecados dos homens. E se alguém disser que Santo Afonso é um caso
isolado, então se lembre que Nosso Senhor chorou sobre Jerusalém e
predisse a sua ruína, que se deu no ano 70 da nossa era, na era da Nova
Lei.

Não ficou pedra sobre pedra na cidade de Jerusalém e algumas mães


comeram seus próprios filhos durante o cerco da cidade, tal a desolação
e desespero da população. Só mesmo os cegos e obcecados podem negar
que Deus pune já na terra os pecados dos homens. Para uns já é o início
das penas do inferno, mas, habitualmente, são avisos de Deus para que
os homens se convertam.

Por esta razão, eu convido para, durante três dias, fazermos uma
procissão de penitência. Ela sairá hoje do mosteiro às 15h rumo à capela
São Miguel e voltará até o mosteiro.

Iremos cantando a ladainha de todos os Santos e rezando o terço. Amanhã


e terça-feira ela sairá do mosteiro após a missa das 6h30 e fará o mesmo
percurso. É pela oração e a penitência que nós podemos obter o perdão
de nossos pecados e obter para Nova Friburgo a proteção divina. Quantos
pecados dos quais nós mesmos nos tornamos culpados! Quantos
pecados, além dos nossos, que mancham nossa cidade, que seria inútil
fazer a lista aqui.
Lembremos apenas que não falta em nossa cidade nem o pecado de Caim
nem o de Sodoma e Gomorra, nem o dos judeus que abandonaram Nosso
Senhor e tiveram sua capital destruída pelos romanos. Pecados contra a
Fé, pecados contra a caridade, pecados contra a castidade, pecados
contra Deus, o próximo e contra si mesmo.

Triste ladainha, à qual temos que opor nossos sacrifícios e nossas


orações. Toda oração bem feita é atendida. É ela, sobretudo, que pode nos
obter o perdão e salvação do flagelo muito maior do que aconteceu em
nossa cidade. Muito pior do que esta inundação é a morte eterna das
almas, é o mar de fogo do inferno.

Rezemos, pois, primeiramente pela nossa própria conversão, pedindo as


graças divinas, as virtudes e os dons sobrenaturais. E peçamos com
humildade, confiança e perseverança. Que estes acontecimentos
despertem em nós o zelo pela glória de Deus, pela santificação pessoal e
pela conversão de nosso próximo.

Quantas almas, nessa confusão gerada por essa calamidade,


permanecem sem saber a razão deste acontecimento. Quem entende que
tais flagelos, como diz a Santa Igreja nas suas orações, são castigos das
mãos de Deus?

Mas, como diz uma das orações do Missal Romano. “Convertei, Senhor,
os flagelos de vossa ira em remédios de salvação.” Todos aqueles que
foram ajudar os acidentados sentiram a verdade dessas palavras. Os
flagelos, Deus os converte em remédios. “Deus só permite o mal porque
Ele é bastante poderoso e misericordioso para do mal tirar um bem
maior.”

Que a vossa caridade continue a socorrer os acidentados materialmente


e espiritualmente. Para isto, convidamos a todos que puderem, a
participar desta procissão de penitência e oração, pois é de Deus, antes
de tudo, que devemos esperar a cessação de nossos males, sobretudo a
cessação do mal supremo que é o pecado.

Nem o exército, nem a prefeitura, nem o auxílio, aliás tão precioso, dos
tratoristas e dos voluntários pode fazer cessarem os flagelos. Só Deus
pode fazê-lo. Só Deus governa os elementos, as forças da natureza.
Devemos, pois, recorrer a Ele em primeiro lugar para que Ele converta os
flagelos de sua ira em remédios de salvação, através da conversão desta
cidade ao verdadeiro e único Senhor Jesus Cristo e à sua Mãe Santíssima,
isto é, devemos pedir a conversão da população de Nova Friburgo à Santa
Igreja Católica em sua verdadeira Tradição recebida dos Apóstolos e
defendida por Dom Lefebvre, Dom Antônio de Castro Mayer e conservada
pelos Bispos da Fraternidade São Pio X e por todos aqueles que têm o
verdadeiro zelo pela glória de Deus e pela salvação das almas.

Que Nossa Senhora escute nossas orações e nos obtenha o que esperamos
de sua bondade e de sua misericórdia.

Assim seja.

Postado por Adm. às 12:35


sexta-feira, 19 de março de 2010

A vontade humana e a “præmotio” divina: o verdadeiro sentido da


liberdade

Sidney Silveira

Já ouvi de estudiosos da obra de Santo Tomás que a vontade humana é


livre em absoluto, ou seja: ninguém, nem mesmo Deus, poderia penetrar
o íntimo da vontade e mudá-la, moldá-la, fazê-la passar internamente da
não-volição à volição de um bem. Com o objetivo de preservar a liberdade
— que o liberalismo, deturpando, converteu no grande bezerro de ouro a
ser idolatrado por todos —, em geral esses professores apóiam a sua
opinião em passagens da obra do Aquinate nas quais se afirma o seguinte:
nenhum anjo, nenhum demônio, nenhuma criatura pode mudar
internamente a vontade do homem. E, mais ainda, no famoso trecho em
que o grande teólogo frisa, categoricamente, o seguinte: Deus não pode
coagir a vontade humana (De Veritate, XXII, 8, resp.). Aqui, não posso
senão concluir que o intuito de transformar a liberdade em valor absoluto
fez esses estudiosos não enxergarem o óbvio: que, na resposta ao
supracitado artigo, assim como em outros lugares de sua obra, Santo
Tomás afirma que Deus pode mudar a vontade humana necessariamente
(Deus potest mudare voluntatem de necessitate).

Estamos aqui no olho do furacão de uma polêmica que durou séculos


entre tomistas e adversários do tomismo: defendeu ou não Santo Tomás
a premoção divina (a præmotio) da vontade humana? E mais: ela é ou não
contrária ao conceito de liberdade? Vejamos o problema mais de perto,
não sem antes deixar de consignar que o contrário da liberdade não é a
necessidade, mas a coação. Por exemplo: queremos necessariamente o
nosso próprio bem*, sem ser coagidos a isto. Ademais, o que sucede
espontaneamente provém do apetite interno (caso do ato propriamente
voluntário: a escolha), enquanto o que vai contra o apetite interno, isto
sim, é coação (caso de alguém obrigado a fazer algo que não quer).

Partamos da seguinte constatação: quanto mais poderosa é uma causa,


mais perfeito é o seu influxo sobre os efeitos. Ora, Deus é a onipotente
prima causa omnium, o que inclui a vontade livre do homem, também
criada por Ele. Logo, o influxo da ação divina alcança todos os âmbitos do
ser, inclusive a vontade criada. Além disso, em si mesma a atividade
criadora de Deus não se distingue de sua atividade mantenedora, razão
pela qual, como mostramos em outro artigo, a natureza (ou seja: o
conjunto de todos os entes naturais do universo) depende
ontologicamente de uma causa sobrenatural para manter-se, para ser o
que é, pois nenhum ente tem, em si mesmo, a causa da sua conservação
na ordem do ser. Pois bem: a atuação divina estende-se não apenas ao
ser das criaturas, mas também às suas operações, que na verdade
seguem o ser (opetatio sequitur esse). Sendo, pois, a vontade uma das
operações próprias do homem, conseqüentemente estará também ela sob
o poder e o governo da ação divina.

Uma das objeções contrárias à præmotio, e que hoje renasce com força
entre teólogos modernistas, diz o seguinte: Deus não tem nenhum poder
direto sobre os atos livres do homem, pois age apenas indiretamente
mediante forças outorgadas à vontade para que se fixe no bem. Tal idéia
não considera o que acima foi dito e acaba por transformar a vontade
humana em algo absolutamente inexpugnável — e, por conseguinte,
também a liberdade, que tem na volição o seu estatuto ontológico. A
præmotio, neste caso, seria uma violência que iria contra a liberdade.
Neste ponto, falta fundamentalmente a percepção de que, movendo a
vontade humana ao bem, Deus não apenas não a coage, mas, ao
contrário, a faz alcançar a perfeição, pois, conforme se lê na Suma
Teológica (I, 105, a. 4), querer não é outra coisa senão a inclinação natural
da vontade ao seu objeto, que é o bem em sentido absoluto (simpliciter).

O ato divino de mover a vontade humana, quando ocorre, é infalível, pois


Deus não pode não ter êxito em tudo o que faz. Ademais, fala
insistentemente Santo Tomás, em diferentes obras, de uma dupla atuação
sobre a vontade: a primeira provém de fora (ab exteriori), dos objetos. Mas
esta não é propriamente a præmotio, pois aqui se trata de um influxo ao
modo de causa final, ou seja: apresenta-se um bem externo qualquer que
leva a vontade a mover-se ao seu ato específico. A outra atuação é ab
interiori, ou seja, vem de dentro, da própria potência da faculdade volitiva.
Deste segundo tipo o Aquinate fala nas passagens em que aborda a
atuação divina (como, por ex., em De Potentia Dei, III, 7), quando mostra
que Deus, enquanto causa eficiente do ser e das atividades das criaturas,
pode ser causa eficiente da vontade humana. Aqui sim, estamos no
horizonte da præmotio.

Em resumo, a vontade do homem pode ser internamente movida ou por


suas próprias potências (ex parte ipsius potentiæ) ou, então, por Deus,
como causa eficiente infalível (cfme. De Malo, III, 3). Neste contexto, vale
lembrar, como faz G. Manser em A Essência do Tomismo, que Santo
Tomás considera absolutamente errôneo crer que a eficiência da ação
divina suprima a atividade própria das criaturas. Igualmente errôneo para
o Aquinate é pressupor que alguma atividade criada possa efetivar-se sem
nenhum auxílio divino, porque, radicalmente, o operar dos entes tem
como sustentáculo a virtude do primeiro agente, que é Deus (secundum
agens agit virtute primi agentis. cfme. Suma, I, q. 105, a. 5 - “Deus opera
em tudo?”).

Quando se dá, a operação divina sobre a vontade humana é direta e


imediata, e não suprime a liberdade — mas a aperfeiçoa e a faz alcançar
o optimum. A moção da vontade acontece, repitamos, tanto pelas próprias
potências da vontade quanto por Deus (motus voluntatis directe procedit
a voluntate et a Deo, quia est voluntatis causa. “De Veritate”, XX, 9). Mas
como poderiam duas causas distintas (Deus e a vontade) causar
diretamente a volição? O próprio Angélico colocou-se este problema e a
resposta que deu foi a seguinte: a dupla moção da vontade é possível dada
a prioridade causal da atuação divina com relação a todas as causas
naturais. Ou seja, Deus e a vontade humana se ordenam entre si
conforme prius et posterius, e, portanto, pode Ele agir simultaneamente
com a vontade de um homem no ato de querer, em razão da prioridade
ontológica de Sua ação. Este é, exatamente, o sentido da præmotio.

O influxo divino sobre a vontade é direito inalienável de Deus, e


certamente não se dá contra naturam, como os críticos da premoção
imaginaram, mas sim pro naturam, na medida em que se trata de um
auxílio especial para que a natureza (no caso, da vontade humana)
alcance o seu objeto. Neste contexto, vale lembrar que, além de todos os
argumentos filosóficos com os quais Santo Tomás esgrime em favor da
verdade, ele também se vale da Sagrada Escritura para defender a sua
tese, como é o caso da Suma Contra os Gentios (III, 88-89), quando ao
abordar o tema ele nos remete ao texto revelado: “O coração do rei está
nas mãos do Senhor (Prov., XXI, 1); “Deus opera em vós tanto o querer
como a sua execução, segundo o Seu beneplácito” (Filip. II, 13).
Para finalizar este breve texto, registremos que, para Santo Tomás, Deus
— causa primeira e universal do ser — move todas as criaturas de acordo
com a natureza que lhes é própria, sem comprometer a sua atividade
específica**. Daí que possa Ele também mover necessariamente a vontade
de acordo com a própria natureza desta, mas sem coagi-la. A título de
exemplo, digamos que a ação de Deus sobre a nossa vontade acontece de
forma similar à de um carpinteiro e seu instrumento em relação à
madeira: o instrumento cortante é o que talha a madeira, de fato, mas o
faz de acordo com a intenção e a força impressa pelo carpinteiro ao ato.
Neste sentido, a causa superior (a ação do carpinteiro) é o influxo maior
sem o qual a madeira não seria cortada pelo instrumento. O mesmo
ocorre, segundo Santo Tomás, com a virtude da ação divina aplicada à
vontade humana.

Tendo esta doutrina em vista, vale ainda lembrar que a liberdade é


especificada não pela escolha livre e voluntária (mera causa
instrumental), mas pelo objeto formal de sua atuação — que é o bem.
Portanto, o verdadeiro sentido da liberdade está, formalmente, na escolha
efetiva do bem, e não na potência para escolher entre o bem e o mal, a
que Santo Agostinho chamava libero arbitro.

Peçamos, pois, a Deus — Sumo Bem — o excelso dom de querê-Lo.

Em tempo: Tudo isso nos leva à seguinte e angustiosa questão: por que
Deus permite o mal? Ou melhor: por que permite Ele que alguns homens
não escolham o bem, já que teria poder para, necessariamente, movê-los
a tanto? Este é outro assunto, decorrente do problema ora abordado. A
ele nos referiremos noutra oportunidade.

* Está implícito nesta premissa que a vontade, ao querer, é movida pela


forma de um bem, seja este real ou ilusório. Mesmo um suicida, ao matar-
se, deseja pôr fim aos seus tormentos, e neste caso o motor da vontade é
a morte apetecida como um bem circunstancial maior do que a vida — do
que a dor de viver. O mesmo se pode dizer de um assaltante que rouba
um banco, de um estuprador que abusa de alguém, etc. Mesmo agindo
mal, esses hipotéticos personagens são movidos por algo que se lhes
apresenta como um bem, no ato: o dinheiro para o assaltante, o gozo para
o estuprador e a morte para o suicida.

** A exceção são os milagres, de que não trataremos no presente texto.


Apenas apontamos que, no caso do milagre, sobrenaturalmente um ente
é levado por Deus a atualizar potências que, em princípio, estão muito
além das inscritas em sua forma.

Postado por Adm. às 11:55

domingo, 10 de agosto de 2008

Metafísica do pecado e teoria liberal

Sidney Silveira

Em todo ente composto de potência e ato, de matéria e forma, há uma


distância entre o seu agir e a atualidade que busca, como por exemplo (no
caso do homem) entre o querer uma coisa e o possuí-la, entre o estudar
uma matéria difícil e o entendê-la. Os entes, sem nenhuma exceção, se
movem para os fins, e todo movimento é o trânsito de uma potência a um
ato. Com Deus não ocorre isto: Ele possui o fim possuindo-Se, porque é
Ato Puro, sem mescla de potência. Em termos metafísicos, a Sua
impecabilidade explica-se pela instantaneidade do seu agir que coincide
com a Sua eterna atualidade, daí que Ele não pode desviar-se do fim que,
afinal, Ele é (e lembramos que o pecado é sempre um desvio do fim).
Quanto a nós, é possível que pequemos porque não possuímos o nosso
fim imediatamente, mas o buscamos, no tempo, a partir dos atos próprios
da nossa forma entis (atos da inteligência e da vontade), que são
complexos porque dependem, por sua vez, da operação ótima de várias
potências sensitivas — neste composto psicossomático que nos constitui.

Por aí já se vislumbra que o problema do pecado tem resolução metafísica.


Vamos a um esboço dela em Santo Tomás:

1- Deus é impecável porque o seu a agir e o seu Ser identificam-se


absolutamente. E, sendo o pecado também definido como deficiência de
ser na ação, em Deus não pode haver pecado, pois Ele é sumamente Ser
e é Ato Puro. No Comentário às Sentenças de Pedro Lombardo, Santo
Tomás nos diz que o fato de que Deus não pode pecar não derroga em
nada a Sua liberdade, porque “o pecado nem é a liberdade nem faz parte
da liberdade”. É justamente a perfeição da liberdade de Deus que O priva
de toda possível defectibilidade. Ademais, sendo Ele a Bondade
subsistente, o Seu querer coincide com essa Sua suma bondade. Por fim,
não tendo Deus nenhuma deficiência ou carência quanto ao ser, é
evidente que não pode pecar nem na inteligência, nem na vontade.

2- O Anjo — embora tenha uma inteligência intuitiva que não lhe permite
errar com relação aos objetos inteligidos — não tem a intuição simultânea
de toda a realidade, nem do que Deus é em si mesmo. Diz Santo Tomás
que “a causa primeira excede a medida da substância dos Anjos e dos
demônios. Daí que, mesmo ao conhecer [intuitivamente] a essência de
Deus, [a inteligência angélica] não apreende a ordem total da Providência
divina” [De Malo, q. 16, a. 2. ad 10]. Por isto, frisa o português Celestino
Pires, no seu excelente Inteligência e Pecado em Tomás de Aquino, que a
ignorância dos Anjos, de que fala Santo Tomás, não é privação de
conhecimento devida à natureza angélica. Não é obnubilação da
inteligência. É simplesmente que o seu conhecimento não é total, ou seja:
não exaure a inteligibilidade da causa que Deus é. Sendo assim, podemos
dizer que há uma ignorância metafísica nos Anjos, razão pela qual o
demônio pôde considerar possível assemelhar-se a Deus e, com isto, pecar
(pois é claro que a inteligência angélica não quereria algo que a ela se
apresentasse como impossível). Foi possível o demônio querer a
autonomia em relação a Deus porque não conhece toda a ordem da
Providência. E assim, considerando o seu próprio bem, desconsiderou a
sua ordem necessária em relação ao Bem que Deus é.

3- O ser humano (no estado de inocência original) — Recém-saídos das


mãos do Criador, dotados de dons preternaturais e com a
superabundância da Graça, dada a sua amizade com Deus, Adão e Eva
tinham uma inteligência não passível de erro. O pecado, portanto, não
residiu na inteligência, mas na vontade, que os fez amar
desordenadamente a própria excelência, e só depois, então, errar na
inteligência e crer na possibilidade — proposta pela serpente — de ser
semelhantes a Deus. Não foi o erro ou defeito na inteligência o que os fez
pecar, mas o pecado na vontade é que os fez errar na escolha feita. Erro
de eleição: elegeram o próprio bem sem ordená-lo ao Bem que Deus é. E
essa eleição foi causada pelo pecado na vontade, que quis autonomia,
independência em relação a Deus.

4- O homem caído — Após o pecado, todas as potências inferiores não


mais puderam estar perfeitamente ordenadas às superiores, como no
estado original. E se o homem depois de Adão nasce em pecado, isto
significa que teve um déficit de liberdade, na medida em que tem enorme
dificuldade de praticar o bem e de conhecer a verdade. A sua inteligência
é passível de erro, ao contrário da dos Anjos e de Adão.
A propósito, lembra-nos o mesmo Celestino Pires que Santo Tomás estuda
as causas do pecado atual no homem caído formulando um problema
geral: deve-se supor uma deficiência na vontade anterior à sua ação moral
má? Diz Celestino — e nisto é perfeitamente concorde com o Angélico —
que a vontade age sob a moção da inteligência quando esta lhe propõe o
bem querido. Mas a inteligência pode propor um bem falso ou aparente.
Assim, o pecado no homem caído proviria de duas possibilidades: ou
porque a vontade cedeu à apreensão sensível (o que não poderia acontecer
com Adão e muito menos com os Anjos), ou porque seguiu a razão que
não lhe apresentou o bem com propriedade, ou seja: não o ordenou ao
bem superior. Esse seu ato da vontade também constitui, portanto, uma
falta de ordem ao fim. E essa desordem, segundo Tomás de Aquino, é
voluntária porque a vontade, mesmo no homem caído, pode não ceder ao
atrativo. “O deleite dos sentidos move a vontade do adúltero e a atrai ao
deleite que exclui a ordem da razão e a lei divina. O que é mal moral. (...)
[Mas] por mais que o bem sensível solicite a vontade, está no poder desta
ceder ou não ceder ao atrativo” (De Malo, I, 3).

Pois bem, se na atual condição nascemos em pecado (se se é católico, é


necessário crer nisto por fé!!!!), e se neste estado de natureza caída temos
grande dificuldade de alcançar a verdade e de querer os bens ordenando-
os a Deus, o que dizer de uma teoria (como a liberal) que põe a liberdade
no ato de escolha e entroniza a consciência individual “autônoma”, se
acabamos de ver que o pecado (em todos os níveis e estados!) é,
literalmente, um ato de escolha movido pela vontade que quer o bem de
forma autônoma em relação à ordem que Deus criou?

Por favor, pensem e respondam a si mesmos.

Postado por Adm. às 07:10


quarta-feira, 17 de fevereiro de 2010

Avatar dos infernos

Sidney Silveira

A simples visão de três minutos de um “trailler” do filme Avatar bastou-


me para verificar que se tratava de algo intrinsecamente anticristão,
repleto de mensagens subliminares, além do péssimo gosto da “criação”
daqueles ETs azuis de fisionomia humana deformada — com orelhas
alongadas, narizes achatados, caninos vampirescamente pronunciados,
corpos íncubos e súcubos, esguios e seminus, e rabos compridos como os
de um diabo de Gustave Doré. A leitura posterior de algumas sinopses me
horripilou, pois fui verificando o quanto a película foi meticulosamente
pensada, até os mais ínfimos detalhes, para incutir símbolos anticristãos
na cabeça das pobres almas que entram no cinema em busca de
“entretenimento”, e saem intoxicadas, na imensa maioria das vezes sem o
saber. Não à toa, reportagens do mundo inteiro vêm relatando que
inúmeras pessoas mostram intenções suicidas após assistir Avatar.
Encantadas com a maravilhosa lua do planeta Polifemo chamada Pandora
(nomes sugestivos, como a propósito o do próprio filme), não suportam
voltar a este mundo de meu Deus; prefeririam dar cabo da própria vida a
encarar o real World.

O filme de James Cameron não é como os que Luis Buñuel compusera


nos anos 60, claramente anticatólicos (obras como A Via Láctea, Simão
do Deserto, etc.), embora com uma riqueza de detalhes que hoje
escapariam até ao católico medianamente culto, em geral desconhecedor
do Magistério e da história da Igreja anteriores ao Vaticano II. Cameron é
mais sutil do que Buñuel, talvez em razão do ocultismo de caráter gnóstico
que se esconde nos detalhes de sua obra.

Para quem não sabe, Polifemo foi o Ciclope (gigante de um olho só, filho
do deus Poseidon, ou Posídon) enganado pela astúcia humana de Odisseu
e de seus companheiros, no famoso poema de Homero. Encarna a
semidivindade traída pela maldade do homem. Pandora, por sua vez, de
acordo com a mitologia grega, foi a primeira mulher, criada como punição
aos homens em razão da ousadia de Prometeu em roubar o fogo divino. O
irmão de Prometeu, chamado Epitemeu, extasiado com a sua beleza,
presenteou-lhe com uma ânfora ou caixa que continha todos os males do
mundo, e que lhe havia sido dada pelos deuses. Segundo algumas
traduções, no fundo da caixa estaria a esperança (elpís). Seja como for, o
fato é que Pandora não leva em conta as admoestações de Zeus e abre a
caixa, liberando toda a sorte de males sobre os homens.

Como se vê, os nomes escolhidos para o planeta e a lua em que a história


se passa já nos indicam que se trata de um universo em que o homem é
absolutamente mal visto, dotado de uma natureza corrompida, ardilosa,
malévola. E não, obviamente, como a obra-prima da criação, feito à
imagem e semelhança de Deus, embora decaído pelo pecado. Mas
deixemos por ora este detalhe inicial e vamos ao argumento do filme.

No ano de 2154, um ex-militar chamado Jake Sully, paraplégico, é


enviado a Pandora, onde a humanidade pretende explorar o rico minério
unobtanium, que provavelmente solucionará a crise energética na Terra.
Dada a alta toxidade da atmosfera de Pandora, os humanos que vão para
lá precisam ter a sua consciência ligada ao Programa Avatar, que lhes
permite “encarnar” num corpo biológico controlado à distância (com DNA
híbrido), imune ao ar letal de Pandora. Ocorre que os nativos da lua,
chamados Na’vis, são o obstáculo para a extração do precioso minério do
lugar, razão pela qual, em tese, seriam eles os inimigos a vencer. Mas Jake
Sully, já em seu novo corpo, é salvo por uma nativa Na’vi chamada Neytiri,
o que acaba levando-o a adotar a forma de vida dos Na’vis e lutar contra
os “invasores do céu”.

Até aqui, tudo parece mais uma bobagem hollywoodiana de gosto


duvidoso (embora retratada com grande requinte técnico e efeitos
especiais impressionantes), mas, como veremos, as coisas não são tão
simples quanto parecem.

Baseando-nos num instigante texto publicado no site Stat Veritas,


lembramos que é próprio das heresias gnósticas sobrevalorizar a razão,
no afã de conhecer os arcanos divinos sem nenhum auxílio da Graça, mas
pelo próprio poder especulativo da inteligência humana. Em geral, esse
tipo de heresia ofende a Deus Pai, ao propor uma ordem totalmente
distinta da que foi por Ele prevista — e provista — desde a eternidade. No
caso do filme Avatar, o “homem novo” inventado por Cameron recebe até
um novo corpo, já não propriamente humano, muito melhor do que o
atual. O referido texto do Stat Veritas nos aponta, com grande argúcia,
para os seguintes aspectos das heresias do gnóstico Joaquim de Fiore,
condenadas solenemente no IV Concílio de Latrão, que estão presentes no
filme:

1- O Terceiro Império seria a última fase da história universal, superadora


das anteriores, na qual enfim chegaríamos à perfeição;
2- Essa nova etapa seria capitaneada por um caudilho, que apareceria
como o seu afortunado fundador;

3- Esse caudilho, por sua vez, teria um precursor, da mesma forma como
Cristo teve a João Batista como anunciador;

4- Enfim, o símbolo máximo dessa Nova Era seria a realização de uma


sociedade de indivíduos espiritualmente autônomos (alguma semelhança
com as idéias liberais?), que não precisariam da intermediação de
instituições humanas — no caso, a Igreja e seus sacramentos — para
relacionar-se com Deus.

Em Avatar, vejamos cada uma dessas etapas gnósticas, assim


codificadas:

1- Uma nova fase da história humana sepultará a atual e se dará em outro


planeta.

2- O caudilho que fundará essa nova era é Jake Sully (ele próprio fala em
“renascimento”, no filme). Sully torna-se líder logo após Pandora quase
ser destruída pela maldade dos homens, que por sua vez já tinham
arrasado a Terra. Ele não nasce Salvador por delegação divina, mas se faz
salvador.

3- O precursor do caudilho é a cientista Grace Augustine. Anotem bem o


nome: Grace Augustine! Ora, para quem não sabe, Santo Agostinho é
cognominado “Doutor da Graça”. Só que, no caso cristão, a Graça é o
auxílio divino sem o qual o homem não pode manter-se no bem, enquanto
a Grace Augustine da película é justamente o contrário disto: encarna a
intelectual, a cientista que detém o conhecimento a partir do qual o
“salvador” Jake Sully poderá começar uma nova era. Como se vê, os pólos
se inverteram: a Graça que Santo Agostinho tão bem retratou vem de cima
para baixo, de Deus para o homem, e é gratis dada; a Grace Augustine,
por sua vez, representa o poder do próprio homem para “salvar-se”, para
chegar por suas próprias forças ao conhecimento que o libertará das
amarras do mal. Nada mais gnóstico!

4- O quarto dos símbolos joaquinistas, o da espiritualidade autônoma, se


verifica pelo fato de os Na’Vis não necessitarem de nenhuma instituição
“eclesiástica”. Quando Jake está ao lado de Neyriti, diz a todos: “Unimo-
nos ante a deusa “Eywa”, e, depois, toda a comunidade dá-se as mãos em
frente à “árvore dos espíritos” para rezar, ou coisa que o valha. Como diz
o já citado texto do Stat Veritas, se cumpre assim a fantasiosa idéia de
uma comunidade que vive em harmonia, sem Estado, sem Igreja e sem
polícia, na qual todos adoram a natureza e, por isso, vivem em paz. Uma
pax mundi absolutamente naturalista.

A negação da obra de Deus faz com que Cameron invente um novo mundo,
com um novo homem, novas plantas, novos animais e um novo idioma —
um mundo (no filme) muitíssimo mais satisfatório do que este criado por
Deus. E esta negação da maravilha da Criação não deixa nada de pé;
alcança todos os âmbitos da realidade e pinta-os em cores brilhantemente
surreais. Não me admira saber que muitas pessoas, provavelmente
desprovidas de espiritualidade, pensem em se matar após ver o filme.
Aquilo para elas deve parecer coisa melhor.

É evidente também que os Na’vis, ao fazer as suas pregações e orações


sob uma árvore mágica, unindo-se assim à “divina” natureza, vivem na
prática uma espécie de panteísmo — algo totalmente anticristão. Trata-se
de uma “energia” que os une à “deusa” e elimina, pois, qualquer tipo de
mistério (já que os arcanos divinos haviam sido codificados pela ciência
humana). Não há, aqui, nenhum espaço para o mistério da fé que salva,
e muito menos para um caminho rumo à transcendência. Estamos, pois,
imersos no imanentismo panteísta tantas vezes condenado pela Igreja.

Os signos do ecologismo neopagão, do feminismo antiespiritualista e do


indigenismo do tipo ‘Nova Era’ pupulam em Avatar. Assim como o fato de
que, nele, “a natureza vence a Graça”, diferentemente do que propõe o
dogma cristão. Ora, a Doutora Graça (Grace Augustine) é alguém que,
embora detenha uma série de conhecimentos, não consegue conduzir o
homem a Deus. É uma simples ponte para Jake chegar ao outro mundo
— mundo físico, é claro —, e não em busca de Deus, mas sim do saber
científico “salvífico”. O homem, aqui, se converte num Super-Homem que
não precisa da Graça. E por que se diz que a natureza vence a Graça?
Vejamos o que afirma o excelente articulista Flavio Mateos:

“Porque la Gracia, herida de muerte por los hombres, es levada al reino


de la natureza deificada, para ver si la ‘diosa’ le puede salvar la vida. Y
por supuesto la Gracia se muere. Allí no tiene nada que hacer. Eso sí,
antes de morir hace su profesión de fe diciendo, con cara iluminada: ‘Me
uní a ella. Es real’; es decir, vio la diosa [natura] cara a cara”.

Uma espécie de messianismo carnal, sensual, é outra das características


de Avatar. Mas não entrarei em detalhes sobre isto para não me estender
por demais, pois nesta matéria é inconveniente fornecer pormenores, para
não excitar a imaginação de ninguém. É pelas imagens que labora o
inimigo do gênero humano e não serei eu a dar-lhe uma mãozinha para
fazer alguma alma cair. Já me bastam os meus próprios pecados e a
consciência de com eles ter ofendido tanto a Deus.
É burlesco que em Avatar a criatura superadora do homem (ética, física e
“espiritualmente”) se assemelhe a personagens que a iconografia
consagrou como demônios íncubos ou súcubos, com dente de vampiro,
orelhas que mais parecem chifres, corpos perfeitos e atléticos (ou alguém
viu por aí um Na’vi obeso ou com defeitos físicos?) e rabos compridos.
Perdida a Graça, da qual os sacramentos ministrados pela Igreja são
veículo, não resta ao homem senão desumanizar-se, e nisto foi muito
preciso Cameron: escolheu uma imagem adequada, deformada, com a
luciferina diferença de que a pintou como algo superior a nós. E vale
também dizer que a morte da "Graça" nos remete à idéia de um mundo
que se fechou por completo ao influxo da ação divina, mundo no qual as
criaturas racionais, para ser plenas, simplesmente não precisam de Deus.

Indico efusivamente a leitura do instigante artigo do Stat Veritas — um


site que presta um inestimável serviço a todos os católicos que ainda se
preocupam com a situação aterradora da Igreja, que além do
“aggiornamento” doutrinal pós-Vaticano II permite a seus órgãos oficiosos
protagonizar novidades cada vez mais surpreendentes. A mais recente é
esta, veiculada em todo o mundo durante o carnaval:

O L’Osservatore Romano acaba de eleger os 10 melhores álbuns de


música pop de todos os tempos, entre os quais está Thriller de Michael
Jackson, The dark side of the moon, do Pink Floyd, e Supernatural, do
guitarrista Carlos Santana. São, de acordo com o jornal do Vaticano,
discos dignos de ser levados para uma ilha deserta!
Certamente não para a Ilha dos Bem-Aventurados da República de Platão.
Quem sabe sejam dignos de ser levados à Pandora do filme Avatar... Ou
ao Tártaro.

Postado por Adm. às 05:57

sábado, 7 de julho de 2012

Maquiavel em clave teológica – (I)

“Quatro são as manifestações que delatam o soberbo: crer que os bens


que possui procedem dele mesmo; pensar que os dons gratuitamente
recebidos de Deus foram merecidos por ele; jactar-se de possuir o que não
tem; e — ansioso por brilhar sozinho — desprezar as demais pessoas”.

São Gregório Magno, Moralia, XXXIII

Sidney Silveira
1. Prolegômenos: a soberba e o pecado contra o Espírito Santo

A dinâmica do pecado contra o Espírito Santo, de acordo com Tomás de


Aquino, é a seguinte: o homem “liberta-se” da esperança e do temor a
Deus e se sente livre de quaisquer constrangimentos para fazer o mal. O
latim escolástico — às vezes intraduzível em sua concisão conceptual —
usa para designar este dramático estado a expressão removens prohibens.
Em síntese: o homem remove os obstáculos espirituais que, até então, o
impediam de chegar ao ponto em que a vontade adquire certa
conaturalidade com o mal. Deste momento em diante, a alma perde a
apetência pelo bem, que se lhe afigura odioso e inútil, e recusa não apenas
os remédios naturais para emendar-se, mas também a graça
sobrenatural, que poderia sanar a perversão da vontade. Aqui, a revolta
contra a ordem estabelecida por Deus chega ao paroxismo. Estas são as
premissas teológicas.

De um ponto de vista psicológico, assim como a virtude pressupõe a


aquisição de hábitos bons, os quais predispõem a alma a operar
excelentemente, o que implica trânsito da potência ao ato e, portanto, um
tempo para realizar-se, assim também a malícia humana não é algo que
irrompe de forma abrupta.[1] Ela pressupõe um processo gradativo em
que os vícios vão fechando as portas da alma, corrompendo os
movimentos naturais das potências superiores — inteligência e vontade.
Portanto, antes de tornar-se malicioso, o homem geralmente passa pelo
letargo do espírito que os medievais chamavam de acídia, pecado capital
traduzido numa espécie de ódio à própria excelência. E a acídia, por
contraditório que possa parecer, tem íntima relação com a soberba.

Expliquemo-nos.

Comumente se define a soberba como o amor exagerado da própria


excelência, o que, em linhas gerais, é acertado. Mas, quando investigamos
a fundo, vemos que a excelência amada pelo homem soberbo é falsa, pois
provém não apenas de sua incapacidade de aquilatar a miséria da própria
condição (de ente finito, contingente, etc.), mas também de deliberar a
respeito da hierarquia dos bens que há na realidade.[2] Como pecado
supracapital, a soberba alimenta todos os demais — inclusive a acídia,
em relação à qual possui anterioridade ontológica.[3] Assim, uma pessoa
só é capaz de odiar a própria excelência, decaindo numa funesta tristeza
e na recusa dos bens espirituais que a integram, após amá-la
tortuosamente com a cupidez da soberba, apegando-se de maneira
desordenada a aspectos secundários ou acidentais.[4] Nos
temperamentos coléricos ou sangüíneos, a acídia é passageira e, ao ser
retroalimentada pela vanglória, refina a maldade; nos fleumáticos,
costuma resultar em pusilanimidade, inação, torpor mental.[5]

Em poucas palavras, a negligência em lograr o próprio bem espiritual,


característica da acídia, provém da cegueira típica do homem soberbo,
que quer dominar e ser louvado por todos sem ter o trabalho de ele mesmo
fazer-se virtuoso. A propósito, o soberbo almeja poder e reconhecimento
muito além dos seus reais méritos, daí ter ojeriza aos bens espirituais que
é chamado a realizar, dada a sua natureza de criatura dotada de
inteligência e vontade — e, portanto, capaz de verdade e amor. Pode-se
dizer que a sua alma se tornou disléxica, pois na leitura da realidade
passou a dar saltos, perdeu a noção das gradações existentes na ordem
do ser e, de erro em erro, se fez refém de uma agônica situação: só
consegue contemplar os bens inferiores com desprezo, e os superiores
com inveja e ódio. Uma pessoa em tal estado delibera mal e acaba por
escolher a si mesma como bem “supremo. O seu non serviam é nada
menos que uma louca insurreição contra o real.[6]

Vale dizer que a malícia comporta graus simetricamente proporcionais ao


crescimento da desesperança, até culminar no desespero que é pecado
contra o Espírito Santo — a descrença na misericórdia divina. Neste
contexto, convém observar que o máximo desespero coincide com a mais
acabada malícia. É o caso de Lúcifer: a maldade em que jaz é
concomitante com a certeza que possui de sua condenação, visto ter
escolhido com anuência perfeita da vontade não servir a Deus. Em
resumo, o seu “não” a Deus foi um ato irrevogável porque levado a cabo
com plena ciência, sem o influxo de paixões ou ignorância, não havendo
mais esperança alguma para ele nem para os demônios que o seguiram;
só desespero. Analogamente ao suicida que, ao apertar o gatilho contra a
cabeça, não tem como voltar atrás, Lúcifer escolheu opor-se a Deus
sabendo que esta era uma opção definitiva.[7]
O abismo de agonia em que essas criaturas caíram é impossível de
descrever com humanas palavras. A sua dor não tem nome, e é eterna.
Contudo, podemos compará-la — numa escala infinitesimalmente menor
— à do homem malicioso que possui enorme dificuldade de se arrepender,
porque faz o mal de caso pensado e, de uma maneira ou de outra, sofre
na alma as conseqüências de sua devoção ao vício. Nas palavras do
Aquinate, o malicioso obra o mal ex electione, ex industria e ex certa
scientia, ou seja: elege-o livremente; põe todo o engenho em sua
consecução; e busca conhecer bem os meios para realizá-lo da melhor
maneira. O seu sofrimento psicológico se cristaliza num labirinto sem
saída, pois neste estado até o prazer tem como ingredientes a inveja e o
ódio.

Segundo Santo Tomás, é possível reconhecer o soberbo até por alguns


sinais físicos. Por exemplo, costuma ele ter o olhar altivo (extollentia
occulorum), o que é signo de sua habitual falta de reverência. Mas não
nos enganemos: estamos diante de um artista da dissimulação, alguém
que procura esconder os seus reais motivos e intenções, pois a sua glória
maior é induzir as demais pessoas a reconhecê-lo como superior, ou seja,
sem se sentirem obrigadas a isto. Elas são enredadas pelos estratagemas
do soberbo e acabam usando de sua própria inteligência e liberdade para
assumir como “verdade” a visão distorcida que o soberbo tem de si mesmo
e do mundo.

Em resumo, o soberbo — que habitualmente peca contra o Espírito Santo


— alimenta a cegueira espiritual alheia para ser venerado — isto por meio
de um sutil sistema de manipulações. E pior: ele não se importa com o
fato de que tal veneração seja o maior dos equívocos daqueles que o
seguem; ao contrário, o seu prazer satânico é ver no culto que lhe prestam
o efetivo resultado das maquinações e ardis concebidos por sua mutilada
inteligência.

Adiante veremos que, quando projetados na política, os pecados graves


contra a verdade têm efeitos análogos aos que acometem a alma do
homem soberbo. E mais: chegados ao ponto em que se transformam no
modus político dominante, só um milagre pode mudar o quadro.

É o caso do maquiavelismo, que hoje dá o tom da política tanto nas


democracias liberais como nos regimes herdeiros do comunismo.

2. O pecado contra a verdade no plano político

Quando a malícia encarna em intelectuais que se propõem intervir na


realidade social, geralmente materializa-se numa rede de idéias e
conceitos perversos. Este é o caso arquetípico de Nicolau Maquiavel,
artífice de uma concepção política com alcance verdadeiramente
diabólico, como foi apontado por estudiosos de sua obra ao longo dos
séculos.

Duas centúrias antes de Maquiavel, Dante buscara separar as ordens


natural e sobrenatural com o intuito de destruir a influência política da
Igreja e instaurar um império secular universal (o seu ódio a Bonifácio
VIII, de acordo com a biógrafa Barbara Reynolds, atingiu tal intensidade
e obstinação, que hoje seria diagnosticado como monomania)[8]. Mas o
autor d'O Príncipe deu um passo além, mostrando-se ótimo discípulo do
pater mendacii: transformou as relações entre a ordem material
(configurada no Príncipe) e a espiritual (configurada na Igreja e em seus
fiéis) em algo canhestro, na medida em que sua teoria concebe a religião
com a única utilidade de controle ou coerção social e entroniza a mentira
como método político e projeto de manutenção no poder, a qualquer custo.

Há, sem dúvida, um caráter de ineditismo na visão maquiavélica das


relações entre os poderes temporal e espiritual, malgrado os atritos que
desde sempre houve entre a Igreja e o Estado — que o digam o próprio
Bonifácio VIII, assim como Gregório VII, Inocêncio III e muitos outros
Papas. Sucede que, pela primeira vez na História, era claramente
formulada no escopo de um projeto político a instrumentalização do poder
espiritual pelo material. Aqui, não se trata apenas de separar as esferas
política e eclesiástica, como fizeram Dante e Thomas More, nem de
subordinar a Igreja ao Estado, como propusera Marsílio de Pádua, mas
de usar o poder espiritual e colocá-lo a serviço do déspota da vez. Tal
projeto partia da pressuposição maquiavélica de que a Igreja romana foi
politicamente eficaz para promover a virtu política, mas acabou por
tornar-se algo funesto para os reinos.

Em Maquiavel, evidentemente, não há lugar para bom governo, nem


mesmo se apelarmos às mais fantasiosas analogias; há lugar, sim, para
despotismo, tirania, luta encarniçada pelo poder. Neste sentido, podemos
considerá-lo um longínquo ancestral da política liberal erguida sobre o
esfacelamento da noção de Summum Bonum e da idéia de bem comum,
mas também como precursor de alguns dos maiores tiranos e assassinos
do século XX. A propósito, vale neste ponto mencionar a tese de Olavo de
Carvalho, no livro Maquiavel ou a confusão demoníaca, de que a
personificação histórica relativamente bem-sucedida do projeto de
Maquiavel foi Josef Stalin. Mas não apenas o assassino comunista reunira
em si fortes traços do projeto maquiavélico; lembra-nos Olavo que Benito
Mussolini bebeu diretamente dessa fonte, sendo o projeto de “milícias
nacionais” do Duce, por exemplo, francamente maquiavélico.[9]

Como a presente crítica se dá sob um prisma teológico, não nos interessa


elucidar as absurdidades e aporias da doutrina de Maquiavel em seu
conjunto, algumas delas só resolvíveis se nos colocarmos totalmente fora
dos seus postulados — até porque, na obra do autor dos Discorsi, entre a
intenção e a realização há becos teoréticos sem saída. Nosso intuito é
apenas apontar para o fato de que, em seus principais vetores, Maquiavel
representa o ponto decisivo da descida do humanismo político rumo à
total inversão dos fins da política enquanto ciência do governo ordenada
ao bem comum.

Ou melhor: depois dele, o bem comum se tornará uma pura e simples


impossibilidade.

Precondições históricas para as doutrinas maquiavélicas

Convém antes de tudo fazer um sumário de como a política era vista nas
épocas anteriores a Maquiavel, para evidenciar o caráter paulatino dessa
inversão dos fins da política — a qual culminará, séculos depois de
Maquiavel, no liberalismo político e em seu malquisto filho primogênito: o
comunismo. Estes últimos se valeram da ambiência perfeita para grassar
sem maiores empecilhos, visto que o seu surgimento histórico ocorreu
numa época em que já se haviam sedimentado tanto a separação entre os
poderes espiritual e temporal como o preconceito antieclesiástico —
fortemente disseminado pela obra do autor florentino.
Identifiquemos primeiramente algumas das principais características da
política durante a Idade Média, algumas delas tiradas de empréstimo da
obra de Ricardo García-Villoslada[10]:

Ø Unidade cristã dos povos sob a autoridade espiritual da Igreja. Em


resumo, as nações européias formavam uma comunidade internacional
sob a cabeça espiritual e moral do Romano Pontífice. Ao longo de séculos,
a Igreja educou as nações sob a luz da fé — com o seu Magistério, com o
elevado preço do sangue dos mártires e com o trabalho pertinaz dos
santos. Isto implica dizer: ela conseguiu civilizá-las.

Frisa com acerto García-Villoslada que, durante a Idade Média, a


solidariedade moral das nações e o serviço que o poder temporal prestava
ao espiritual eram reflexos da Civitas Dei concebida por Santo Agostinho.
A sociedade medieval não tinha, pois, outro vértice senão Cristo-Rei, e
neste contexto é importante frisar que a autoridade de imperadores e
príncipes seculares era legitimada a partir de sua fonte espiritual, a Igreja.
É claro que houve conflitos de interesses, mas estes eram dirimidos, em
última instância, pela autoridade eclesiástica. Quantas vezes reis foram
excomungados e os seus súbitos desobrigados pelo Papa de qualquer
obediência a eles!
Ø Domínio harmônico do Papado (poder espiritual) e das monarquias
(poder temporal) sobre os povos irmanados pela doutrina cristã. Não há,
aqui, como não pensar que este foi um momento histórico em que chegou
a haver verdadeira fraternidade, e não aquele arremedo inventado na
maçônica Revolução Francesa: Papa e imperador eram as duas cabeças
que repartiam o governo do mundo. Nas palavras de Villoslada, se tal
complementaridade de poderes nem sempre foi perfeita, era sem dúvida
alguma uma aspiração que dominava as consciências. A força do bem
comum político das nações estava, pois, em apoiar-se numa doutrina
suprapolítica de ordem superior — proveniente da Revelação custodiada
pela Igreja.

A situação vigente nessa época caracterizava-se pela busca política de fins


transpolíticos, na feliz expressão de Jorge Martínez Barrera em seu livro
A Política em Aristóteles e Santo Tomás (que tivemos a honra de editar no
Brasil). O bem político tinha um instrumental caráter de meio para
consecução de fins que o transcendiam.

Ø Decorre do acima assinalado a predominância da Igreja nas instâncias


política, cultural e econômica. De novo, Villoslada: “Clérigos são todos os
diretores do pensamento europeu. A Igreja é educadora dos indivíduos e
das sociedades. (...) Ao fim e ao cabo, a Igreja havia sido a civilizadora dos
povos bárbaros; a que salvou a cultura científica do Império Romano; a
que vivificou a cultura antiga para que esta não anquilosar, como
aconteceu em Bizâncio”. Em resumo, a tão propalada força “política” da
Igreja estribava em sua reconhecida supremacia espiritual sobre os povos,
indiferenciadamente. Ainda que reis e imperadores se insubordinassem
contra os Papas em várias ocasiões, em geral acabavam por lhes obedecer.
Apenas a título de exemplo, houve casos de reis que largaram suas
rainhas para viver com amantes, mas, após a intervenção da Igreja,
pediram perdão publicamente e reataram o matrimônio, entre outras
coisas pelo medo de perder suas coroas e cetros. Sabiam eles que a
população reconhecia a autoridade espiritual como de ordem superior.

Aqui também houve conflitos, mas sem jamais perder-se o vínculo estreito
entre as ordens temporal e espiritual — o qual só irá se romper após o
período medieval, com o crescimento do absolutismo monárquico e a
perda da influência transnacional da Igreja.

(continua)

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1- “Tanto no bem como no mal, geralmente se vai do imperfeito ao perfeito,
pois o homem progride no bem e no mal”. Tomás de Aquino, Suma
Teológica, II-II, q. 14, art. 4. Neste ponto da Suma, o Aquinate tem diante
de si uma premissa de Aristóteles arrolada no Livro V da Ética a
Nicômaco, segundo a qual o homem não se torna injusto repentinamente.
Diga-se, porém, que Santo Tomás admite a possibilidade de que alguém
possa começar pecando contra o Espírito Santo, por ter um veemente
incentivo ao mal (vehemens motivum ad malum) ou padecer de um
debilitado afeto pelo bem (debilem affectum hominis ad bonum). Mas
adverte o Santo Doutor que, no homem, quase nunca sucede pecar contra
o Espírito Santo desde o princípio (I-II, q. 14, art. 4, ad.1). Seja como for,
Tomás salienta em diferentes pontos de sua obra que o pecado de malícia
pressupõe outros pecados.

2- Tal patologia tornou-se coletiva, em escala internacional. A falta de


percepção da hierarquia de bens que há na realidade vem sendo difundida
de maneira cirúrgica pelos construtores da nova ordem mundial, e hoje
está consignada nas legislações de quase todos os países da aldeia global,
sobretudo no Ocidente — gerando contradições insanáveis. No Brasil, por
exemplo, um mesmo corpus legislativo pune como crime inafiançável a
destruição de ovos de tartaruga e aprova o aborto de fetos humanos. A
“consciência ecológica”, epítome caricata da nova moralidade propagada
politicamente pela ONU, inverte os pólos dos valores e instaura um caos
de que será cada vez mais difícil para as sociedades sair.

3- Embora certas condições físicas possam induzir uma pessoa a cometer


pecados espirituais, só podemos dizer que o fazem predispositivamente,
pois a causalidade do físico sobre o psíquico é per accidens. É preciso,
então, buscar a causa de um vício espiritual em outra deformidade
também espiritual, e é neste sentido que se diz que a soberba é princípio
de todos os pecados. Mas advirtamos: ela não o é de qualquer pecado,
pois, como diz Santo Tomás, pode haver pecados leves anteriores à
soberba. Mas, com relação aos vícios capitais (e a acídia é um deles), a
preeminência da soberba é total. “Antes da soberba, é possível que se
cometam pecados mais leves, por ignorância ou fraqueza. Mas, no que
tange aos pecados graves, a soberba é o primeiro, como também é a causa
de outros (...)”. Santo Tomás de Aquino, Suma Teológica, II-II, q. 162, ad
4).

4- Em verdade, o soberbo pouco consegue olhar para si, pois julga


insuportável a possibilidade de considerar que não é o maior e o melhor
de todos. Fazendo uso de uma metáfora, podemos dizer que ele se
contempla num espelho convexo onde os seus próprios bens são vistos de
maneira caricata. Por isso, afirma Santo Tomás que a soberba se opõe, ao
mesmo tempo, à magnanimidade e à humildade: à humildade por defeito,
porque despreza submeter-se a qualquer pessoa ou situação; à
magnanimidade por excesso, porque aspira a grandes coisas de forma
totalmente desordenada (cfme. Suma Teológica, II-II, q. 162, ad.3).

5- Santo Tomás enumera entre as filhas da acídia a malícia, o rancor, o


desespero, o torpor, a pusilanimidade e a divagação da mente (Suma
Teológica, II-II, q. 35, art.4).

6- Ocorre que o real, como certa vez escrevera Julián Marías, não é apenas
existência; é também resistência, ou seja: a realidade é o que literalmente
resiste aos erros e devaneios humanos.
7- No capítulo sobre a pecabilidade dos Anjos, Celestino Pires aponta, no
livro Inteligência e Pecado em Santo Tomás, para o fato de que Lúcifer
pecou com plena ciência, havendo nele apenas a seguinte ignorância, de
cunho metafísico: a inteligência angélica, embora intuitiva, é incapaz de
atualizar todos os inteligíveis num só ato (o que significa dizer que o Anjo
não pode compreender toda a complexidade do real num instante, pois
sua intelecção é sucessiva: tem um antes e um depois). Não lhe é dado,
portanto, conhecer todos os aspectos da Divina Providência, razão pela
qual ele foi capaz de deliberar mal, julgando possível dominar as demais
criaturas sem submeter-se a Deus, o que em verdade só é possível
enquanto Deus o permite, mas não o é simpliciter (eis, aqui, o seu maldito
erro). Diz Celestino: “De fato o Anjo — no domínio do conhecimento
natural — não pode emitir um juízo falso; mas, diferentemente de Deus,
que é perfeição infinita, pode não apreender suficientemente a ordem do
governo divino”. Celestino Pires, Inteligência e Pecado em Santo Tomás.
Angelicum, Rio de Janeiro: 2012, p. 46. Em síntese, Lúcifer deliberou mal,
mas em virtude da elevação de sua inteligência ele e os que o seguiram
sabiam-se apartados de Deus para sempre, ou seja: agiram com plena
noção das dramáticas consequências que adviriam de sua escolha.

8- “Quelli ch’usurpa in terra il loco mio

Il loco mio, il loco mio, che vaca

Nella presenza del Figliuol di Dio

Fat’ha del cimitero mio cloaca


Del sangue e dellapuzza; onde ‘l perverso

Che cadde di qua su, làgiù si placa”

“Este que usurpa em terra o lugar meu

Lugar meu, lugar meu, que vaga

Ante a presença do Filho de Deus,

Fez do meu cemitério sua cloaca

De sangue e de fedor; onde o perverso

Desejo de quem cai ali se aplaca”.

Leiamos agora o comentário de Barbara Reynolds. “Aqui [nesta passagem


do Céu], São Pedro dá abertura a todo o desprezo de Dante por Bonifácio
VIII, que ganhou o trono papal por astúcia; que na visão de Deus
permaneceu desocupado; que por sua avareza e ambição mundana fez do
lugar do enterro de São Pedro um esgoto de sangue e sujeira e uma fonte
de satisfação para Lúcifer; que caiu do Céu para o Inferno [tudo isso na
tortuosa perspectiva política dantesca, digamos nós!!!]. As rimas feias,
com suas vogais abertas vaca, cloaca, placa, o agudo e triplo grito
frenético, il loco mio, il loco mio, il loco mio, a crua imagem do esgoto, da
sujeira, do fedor, não pertencem ao discípulo de Cristo, mas à fala do
Inferno”. Cfme. Barbara Reynolds, Dante – o poeta, o pensador político e
o homem. Editora Record, 2011, p.522. Pois bem, na continuação dos
textos da série sobre Bonifácio VIII, veremos que Dante, em seu obstinado
ódio a Bonifácio VIII, coloca neste Papa a culpa da transferência do
Papado para Avignon, idéia “comprada” até mesmo por católicos
desinformados. Mostraremos a absurdidade desta calúnia.

9- O livro de Olavo de Carvalho tem vários méritos: destrói a idéia de que


a análise política feita por Maquiavel seja realista; mostra como a sua
interpretação do passado foi pré-moldada pelo projeto de futuro que
acalentava; ressalta que a distorcida visão global da História em
Maquiavel é a aplicação retroativa de sua própria “teoria”; aponta para o
utopismo pseudo-profético do seu falso realismo; e mostra o caráter
satânico de sua inversão caricata do cristianismo — isto na hipótese de
que Maquiavel tenha realmente compreendido algo da essência do
cristianismo. Seja como for, não importa: o mundo de mentiras e
falsificações que ele instrumentaliza para os governantes ou aspirantes
ao poder revela, em si, a maldade transformada em teoria política, e isto
a partir de uma amputada concepção de cristianismo. Escreve Olavo: “Em
suma, [para Maquiavel] a religião cristã primitiva tinha o dom de
manipular as almas para induzi-las à obediência. O mal do cristianismo
decadente não está na perda das virtudes evangélicas, mas na perda da
capacidade de ludibriar as multidões. Por mais que a blasfêmia se oculte
sob montanhas de disfarces, ela não pode ter escapado ao próprio
Maquiavel, que lhe acrescenta o detalhe requintado de atribuir ao próprio
Cristo o mérito da arte do engodo, miseravelmente perdido por seus
sucessores. É a esse Cristo transfigurado em político maquiavélico que
Maquiavel, fingindo louvar o Cristo dos Evangelhos, presta sua devoção”.
Olavo de Carvalho, Maquiavel ou a confusão demoníaca. Vide Editorial,
2011, p. 86.

10- Historia de la Iglesia Católica, Tomos II e III.

EM TEMPO: Senti-me muito à vontade para citar elogiosamente — no


corpus do texto e sobretudo na nota acima — o livro do Prof. Olavo de
Carvalho Maquiavel ou a Confusão Demoníaca. Ou melhor: eu só me
sentiria confortável em mencioná-lo se fosse para abordar os seus
aspectos positivos, dado o arranca-rabo que tivemos há cerca de um ano.
Ademais, a morte súbita andou rondando a minha porta nos últimos
meses, devido a problemas de saúde, e nestas horas acabamos por olhar
tudo em perspectiva, o bem e o mal que fizemos. E então procuramos nos
reconciliar com Deus e os homens: com Deus de forma absoluta, olhando
para a nossa própria miséria e apelando à Sua misericórdia; com os
homens na medida do possível, e tal medida se reflete entre outras coisas
no apaziguamento do coração, com a graça de Deus, e numa visão de
nossas próprias ações sob um prisma renovado.

Tenho, sim, divergências de natureza teológica e política com o Prof.


Olavo, mas elas não anulam o fato de que o seu pequeno livro — comprado
por mim há uma semana e lido numa noite — é o que de mais interessante
se escreveu sobre Maquiavel nos últimos tempos, pois, ao esboçar o
horizonte de consciência do autor florentino, Olavo a fortiori acaba por
expor as chagas de uma alma pervertida e atormentada, para a qual o
cristianismo só poderia mesmo ser visto de forma torta, incompleta,
deficiente.

Assim, ao escrever sobre Maquiavel (embora com distinto objetivo, qual


seja: à luz da fé e fazendo uso de critérios teológicos, inseri-lo num
descendente ponto de inflexão da história política através dos séculos,
como se verá ao final desta série de textos), não me pareceu honesto deixar
de mencionar o livro de Olavo de Carvalho, que possui reais achados e
mostra, com clareza, alguns "Maquiavéis" distintos, subjacentes à
doutrina dos infernos configurada tanto nos Discorsi como n'O Príncipe.

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