Você está na página 1de 136

0 - João Cândido André da Silva Neto, Natacha Cíntia Regina Aleixo e Leonice Seolin Dias (Orgs)


Dinâmicas Socioambientais na Amazônia Brasileira - 1

Organizadores
João Cândido André da Silva Neto
Natacha Cíntia Regina Aleixo
Leonice Seolin Dias

Dinâmicas Socioambientais na
Amazônia Brasileira

1a Edição

TUPÃ-SP
ANAP
2017
2 - João Cândido André da Silva Neto, Natacha Cíntia Regina Aleixo e Leonice Seolin Dias (Orgs)

Editora

ANAP - Associação Amigos da Natureza da Alta Paulista


Pessoa de Direito Privado Sem Fins Lucrativos
Fundada em 14 de setembro de 2003
Rua Bolívia, nº 88, Jardim América,
Cidade de Tupã, Estado de São Paulo.
CEP 17.605-310

Contato: (14) 3441-4945


www.editoraanap.org.br
www.amigosdanatureza.org.br
editora@amigosdanatureza.org.br

Revisora ortográfica: Érika Yurie Fujiwara

Capa: Área portuária da cidade de Tefé, capturada no por do sol nas margens do rio Tefé. Silva Neto, 2013.
Dinâmicas Socioambientais na Amazônia Brasileira - 3

Organizadores

João Cândido André da Silva Neto


Possui graduação em Geografia (bacharelado) pela UFMS/CPAQ (2005), Mestrado em Geografia pela
Universidade Federal de Mato Grosso do Sul CPAQ (2008) e Doutorado em Geografia pela
Universidade Estadual Paulista (UNESP), Campus de Presidente Prudente (2013). Atualmente é
Professor Adjunto da Universidade Federal do Amazonas. Atuou como Professor Adjunto do curso de
Geografia da Universidade do Estado do Amazonas - Centro de Estudos Superiores de Tefé de 2013 a
2016. Tem experiência na área de Geografia Física, com ênfase em Geomorfologia, Cartografia,
Sistemas de Informações Geográficas, Sensoriamento Remoto e Geoprocessamento.

Natacha Cíntia Regina Aleixo


Possui graduação em Licenciatura e Bacharelado em Geografia pela Universidade Estadual Paulista-
Ourinhos (2008) e doutorado em Geografia pela Universidade Estadual Paulista campus Presidente
Prudente (2012) com período sanduíche na Universidade de Coimbra/Portugal. Atua como
pesquisadora do Grupo de Pesquisa Gaia-interações superfície, água e atmosfera e do Grupo de
Pesquisa Geotecnologias e Análise da Paisagem. Atualmente é professora Adjunta do curso de
Geografia da Universidade do Estado do Amazonas (UEA). Tem experiência na área de Geografia,
atuando principalmente nos seguintes temas: climatologia geográfica, bioclimatologia humana,
geografia da saúde e saúde ambiental.

Leonice Seolin Dias


Possui graduação em Ciências pela Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras de Tupã-SP; graduação
em Teologia pela Faculdade Teológica Batista de Araraquara-SP; Habilitação em Biologia pelas
Faculdades Adamantinenses Integradas de Adamantina-S; Especialização em Ciências Biológicas e
Mestrados em Ciências Biológicas e em Ciência Animal pela Universidade do Oeste Paulista de
Presidente Prudente-SP; Doutorado em Geografia pela Faculdade de Ciencias e
Tecnologia/Universidade Estadual Paulista – Campus de Presidente Prudente-SP (2016).
4 - João Cândido André da Silva Neto, Natacha Cíntia Regina Aleixo e Leonice Seolin Dias (Orgs)

Conselho Editorial Interdisciplinar

Profª Drª Alba Regina Azevedo Arana – UNOESTE


Profª Drª Angélica Góis Morales – UNESP – Campus de Tupã
Prof. Dr. Antônio Cezar Leal – FCT/UNESP – Campus de Presidente Prudente
Prof. Dr. Antonio Fábio Sabbá Guimarães Vieira – UFAM
Prof. Dr. Antonio Fluminhan Jr. – UNOESTE
Prof. Dr. Arnaldo Yoso Sakamoto – UFMS
Prof. Dr. Daniel Dantas Moreira Gomes – UPE – Campus de Garanhuns
Profª Drª Daniela de Souza Onça – UDESC
Prof. Dr. Edson Luís Piroli – UNESP – Campus de Ourinhos
Prof. Dr. Eraldo Medeiros Costa Neto – UEFS
Prof. Dr. Erich Kellner – UFSCAR
Profª Drª Flávia Akemi Ikuta – UFMS
Prof. Dr. Frederico dos Santos Gradella - UFMS - Campus de Três Lagoas
Profª Drª Isabel Cristina Moroz Caccia Gouveia– FCT/UNESP – Campus de Presidente Prudente
Prof. Dr. Isaque dos Santos Sousa – UEA/Manaus
Prof. Dr. Joao Osvaldo Rodrigues Nunes– FCT/UNESP – Campus de Presidente Prudente
Prof. Dr. Jorge Amancio Pickenhayn – Universidade de San Juan – Argentina
Prof. Dr. José Carlos Ugeda Júnior – UFMS
Prof. Dr. José Manuel Mateo Rodriguez – Universidade de Havana – Cuba
Prof. Dr. José Mariano Caccia Gouveia – FCT/UNESP – Campus de Presidente Prudente
Prof. Dr. Junior Ruiz Garcia – UFPR
Profª Drª Jureth Couto Lemos – UFU
Profª Drª Kênia Rezende – UFU
Prof. Dr. Luciano da Fonseca Lins – UPE – Campus de Garanhuns
Profª Drª Maira Celeiro Caple – Universidade de Havana – Cuba
Profª Drª Marcia Eliane Silva Carvalho – UFS
Prof. Dr. Marcos Reigota – Universidade de Sorocaba
Profª Drª Maria Betânia Moreira Amador – UPE – Campus de Garanhuns
Profª Drª Maria Helena Pereira Mirante – UNOESTE
Profª Drª Martha Priscila Bezerra Pereira – UFCG
Prof. Dr. Oscar Buitrago Bermúdez- Universidad del Valle, Cali – Colombia
Prof. Dr. Paulo Cesar Rocha – FCT/UNESP – Campus de Presidente Prudente
Prof. Dr. Pedro Fernando Cataneo – UNESP – Campus de Tupã
Prof. Dr. Rafael Montanhini Soares de Oliveira – UTFPR
Profª Drª Regina Célia de Castro Pereira – UEMA
Prof. Dr. Reginaldo José de Souza - UFFS - Campus de Erechim
Profª Drª Renata Ribeiro de Araújo – FCT/UNESP – Campus de Presidente Prudente
Prof. Dr. Ricardo Augusto Felício – USP
Profª Drª Roberta Medeiros de Souza – UFRPE – Campus Garanhuns
Prof. Dr. Roberto Rodrigues de Souza – UFS
Prof. Dr. Rodrigo José Pisani – Unifal
Prof. Dr. Rodrigo Simão Camacho – UFGD
Prof. Dr. Ronaldo Rodrigues Araújo – UFMA
Profª Drª Rosa Maria Barilli Nogueira – UNOESTE
Profª Drª Simone Valaski – Universidade Federal do Paraná
Profª Drª Silvia Cantoia – UFMT – Campus Cuiabá
Profª Drª Sônia Maria Marchiorato Carneiro – UFPR
Dinâmicas Socioambientais na Amazônia Brasileira - 5

N469d Dinâmicas Socioambientais na Amazona Brasileira / João Cândido


André da Silva Neto, Natacha Cíntia Regina Aleixo e Leonice Seolin Dias –
Tupã: ANAP, 2017.

134 p ; il. Color. 21,0 cm

ISBN 978-85-68242-38-4

1. Amazônia. 2. Socioambiental. 3. Geografia. 4. Climatologia.


5. Geomorfologia.
I. Título.

CDD: 900
CDU: 911/49

Índice para catálogo sistemático


Brasil: Geografia
6 - João Cândido André da Silva Neto, Natacha Cíntia Regina Aleixo e Leonice Seolin Dias (Orgs)

Sumário

Prefácio 08

Apresentação 12

Dedicatória 14

Capítulo 1 16
ANÁLISE TEMPORO-ESPACIAL DO USO DA TERRA E COBERTURA VEGETAL NO BAIXO
RIO TEFÉ – AMAZONAS
João Cândido André da Silva Neto
Natacha Cíntia Regina Aleixo

Capítulo 2 30
O CAMPO TÉRMICO E HIGROMÉTRICO NA ÁREA URBANA DE TEFÉ-AMAZONAS: UMA
ANÁLISE PRELIMINAR
Elklândia Gomes da Silveira
Natacha Cíntia Regina Aleixo
João Cândido André da Silva Neto

Capítulo 3 45
CARACTERIZAÇÃO DA TEMPERATURA, pH E CONDUTIVIDADE ELÉTRICA DAS ÁGUAS
SUPERFICIAIS NA COMUNIDADE FLUTUANTE DO CATALÃO, IRANDUBA – AMAZONAS
Marcos Fabricio Leal
Flávio Wachholz

Capítulo 4 59
MORFODINÂMICA NO RIO SOLIMÕES E SUAS IMPLICAÇÕES PARA TABATINGA-AM
Francisco Gleison de Souza

Capítulo 5 72
VULNERABILIDADE DO RELEVO À PERDA DE SOLOS NA BACIA HIDROGRÁFICA DO RIO
CAIAMBÉ, MÉDIO SOLIMÕES-AM
João Cândido André da Silva Neto
Geisa Ribeiro Gonçalves
Natacha Cíntia Regina Aleixo

Capítulo 6
AS VILAS DO ALTO SOLIMÕES: PRODUÇÃO E ABASTECIMENTO DE GÊNEROS 88
ALIMENTÍCIOS NO AMAZONAS, BRASIL
Tatiana Schor
Dinâmicas Socioambientais na Amazônia Brasileira - 7

Capítulo 7
AGROECOLOGIA E SOBERANIA ALIMENTAR: NOTAS INTRODUTÓRIAS SOBRE A 104
AGRICULTURA CAMPONESA NO ALTO SOLIMÕES, AMAZONAS, BRASIL
José Aparecido Lima Dourado

Capítulo 8 116
TÃO LONGE, TÃO PERTO! DIFERENÇAS E SEMELHANÇAS ENTRE DOIS MUNICÍPIOS
AMAZÔNICOS LIMÍTROFES: ALTAMIRA E SÃO FÉLIX DO XINGU, PARÁ
Ricardo de Sampaio Dagnino
8 - João Cândido André da Silva Neto, Natacha Cíntia Regina Aleixo e Leonice Seolin Dias (Orgs)

Prefácio

UM LIVRO PARA ALÉM DA GEOGRAFIA

José Aldemir de Oliveira1

Sou surpreendido com a solicitação do Prof. João Cândido André da Silva Neto, meu
mais novo colega do Departamento de Geografia da UFAM, para escrever um breve texto
sobre o livro “Dinâmicas Socioambientais na Amazônia Brasileira”, organizado juntamente
com Natacha Cíntia Regina Aleixo e Leonice Seolin Dias.
Levado pelo sentimento de valorização do conhecimento científico que se produz
sobre e na Amazônia, aceitei de pronto o convite, sem me dar conta da extrema
complexidade e profundidade do livro no qual se misturam temas relacionados à natureza e
aos aspectos sociais, numa perfeita imbricação daquilo que se poderia denominar de
dimensões sócio-espaciais, termo no sentido dado por Marcelo Lopes de Souza.
Eu, que no máximo entendo daquilo que na caixinha da ciência moderna foi
denominada por Jean Brunhes como Geografia Humana, mais especificamente no caso das
cidades na Amazônia, desde muito entendo que não se compreenderá a Amazônia
especialmente do ponto de vista geográfico, sem a articulação da natureza e da sociedade, e
é disso que este livro trata.
Organizado em oito capítulos, resultados de pesquisas realizadas por professores de
instituições públicas, a maioria localizada na Amazônia, o livro compreende textos ricos em
detalhes, objetivos e executados com equilíbrio e técnicas, não apenas as mais atuais, como
o uso do geoprocessamento e de imagem de satélite, mas ancorado nos mais caros métodos
da Geografia Clássica e com rigorosa pesquisa de campo, algo que, em certo momento, a
Geografia Brasileira perdeu e que, felizmente, os novos geógrafos buscam resgatar.
Boa parte dos textos tem como área de estudo o que se denomina de Amazônia
Ocidental, mais especificamente, o Estado do Amazonas, e tratam de temas como a

1
Professor Titular de Geografia da Universidade Federal do Amazonas. Bolsista Produtividade em Pesquisa do
CNPq. Reitor da Universidade de Estado do Amazonas entre 2010 a 2013.
Dinâmicas Socioambientais na Amazônia Brasileira - 9

cobertura vegetal, o campo térmico e higrométrico, caracterização da temperatura, pH e


conectividade elétricas de águas superficiais, da morfodinâmica do rio Solimões,
vulnerabilidade do relevo em bacia hidrográfica, temas relacionados ao domínio da
natureza. Todavia, a característica importante que permeia todos estes textos, é que os
mesmos não tratam da natureza pela natureza, mas como esta interfere na dinâmica
social, ou seja, como estes fatores são importantes para a compreensão dos processos
antrópicos numa região que é importante pela sua biodiversidade. Entretanto, como
asseverou o geógrafo Milton Santos, é importante compreender o que lhes acresce a
sociedade, para entender como as dimensões espaciais são produzidas e reproduzidas
pela sociedade em cada tempo e lugar.
Os três textos finais tratam de temas ligados à Geografia Humana, a qual vai da
dinâmica urbana de como surgem e se estruturam as vilas na imensidão da floresta e dos
rios, das práticas agrícolas como estratégias de soberania alimentar pelo uso milenar de
técnicas agrícolas, ao mesmo tempo em que é vulnerável pelo uso crescente de agrotóxicos
e sementes híbridas, o que torna relevante a discussão do tema. O último texto trata dos
processos de produção do território numa complexa relação natureza-sociedade, como
surgem os municípios e como eles são, ao mesmo tempo, iguais e diferentes, e como se
diferem de territorialidades congêneres de outras regiões do Brasil.
Para além da produção de conhecimento, os textos focalizam a preocupação com a
formação de futuros pesquisadores. Quatro textos têm a participação de estudantes de
graduação, possibilitando a formação de futuros geógrafos na e para Amazônia e para o
mundo. O trabalho do geógrafo sempre foi complexo, por lidar concomitantemente com as
dimensões da natureza e da sociedade, contudo, na Amazônia, essa complexidade torna-se
superlativa pelas escalas das pesquisas, pelas grandes distâncias e pela necessidade de, sem
perder a dimensão da universalidade da ciência, ser capaz de adaptar práticas e
procedimentos que sejam compatíveis com a realidade do lugar. Isso exige dos geógrafos
profunda reflexão, em especial quando os procedimentos estão articulados à capacitação de
futuros profissionais, tornando-os portadores de uma formação generalista, humanista,
crítica e reflexiva. Isso significa formar profissionais que se orientem em princípios éticos no
processo de acompanhamento das transformações da natureza e da sociedade.
10 - João Cândido André da Silva Neto, Natacha Cíntia Regina Aleixo e Leonice Seolin Dias (Orgs)

Outro desafio que o livro coloca é a necessidade de produção e de difusão de


conhecimento geográfico sobre a Amazônia sem perder a dimensão da produção da ciência
como universal. Existe uma Geografia na Amazônia calcada nas técnicas e nos métodos da
ciência que são universais. Os temas que o livro aborda são específicos sobre lugares da
Amazônia, mas não são e não podem ser únicos, ou seja, eles estão articulados às dimensões
mais gerais da dinâmica da natureza e da sociedade. Isso aponta para outra questão: quando
tratamos do trabalho do geógrafo na Amazônia, seja ele qual for, é necessário capacitá-lo
bem do ponto de vista das técnicas, do uso das tecnologias disponíveis, todavia, só isso não
basta, é preciso prover o geógrafo de uma formação integral e não da mera soma de
conteúdos dispersos em várias disciplinas e especialidades.
Este aspecto é relevante, pois, no caso da produção da Geografia, o pensamento
incide sobre determinada área e não pode ser abstrato, pois tem características práticas,
sociais e históricas e, embora se constitua a partir de um lugar específico, corresponde
ao todo indissociável traduzido em ideia que existe na natureza, como nos ensina Henri
Lefebvre. O lugar é específico, a Amazônia, porém, não significa singularidade, mas
totalidade, o que, ao mesmo tempo, aponta para lugares diversos e heterogêneos e, por
isso, também universais.
No livro “Seis propostas para o próximo milênio”, estruturado a partir de seis
conferências que Ítalo Calvino iria proferir na Universidade de Harvard, em Cambridge, no
Estado de Massachussets, nas Charles Eliot Norton Poetry Lectures, entre 1985 e 1986, o
autor enumera, nos títulos das conferências, os valores imprescindíveis ao texto, seja
acadêmico ou literário: leveza, rapidez, exatidão, visibilidade, multiplicidade e consistência.
O livro “Dinâmicas Socioambientais na Amazônia Brasileira”, nos oito capítulos em que se
estrutura, reflete sobre os conceitos, métodos e fontes de estudo sobre a Amazônia e a sua
Geografia. Apresenta estrutura inteligível, linguagem clara e precisa, revelando-se de grande
utilidade para o geógrafo e os que pretendem sê-lo, mas, sobretudo, é um livro para a
sociedade e para as várias áreas de conhecimentos interessadas em desvendar os mistérios
e complexidades da Amazônia, para que se torne cada vez mais conhecida e que se superem
os estereótipos de relacioná-la apenas à natureza ou como vazio demográfico. A Amazônia
nunca foi vazia, ou seja, sempre esteve prenhe de gente e cultura. Mais do que pela a
biodiversidade, ela é importante pela sociodiversidade.
Dinâmicas Socioambientais na Amazônia Brasileira - 11

Por fim, mas não menos importante, como já me referi em outras oportunidades, é
destacar que uma pesquisa existe quando é realizada, apresentada, julgada e aprovada pelos
pares. Todavia, ela ganha concretude e passa a ser útil quando divulgada à sociedade. Diz-se
amiúde que as pesquisas são finalizadas e depositadas em estantes empoeiradas nas
instituições de ensino e pesquisa. Esta realidade está mudando entre nós graças à
concepção dos novos pesquisadores que buscam meios de publicar suas pesquisas. Até
pouco tempo, o papel de financiamento das publicações era desempenhado pelas agências
de fomento à pesquisa, que criaram meios de se autodivulgarem. Infelizmente, isso não
existe mais, e até mesmo o financiamento das pesquisas está rareando.
O que os autores do livro “Dinâmicas Socioambientais na Amazônia Brasileira” nos
seus vários capítulos fazem é recolher e sistematizar dados e informações da vegetação, do
clima, do relevo, dos rios, da estrutura dos municípios e ainda das falas de gente que faz
agricultura, pesca e extração nos beiradões, no meio da floresta e nas vilas. Os textos são
relatos de pesquisas de quem conhece por estudar e viver na Amazônia, sua gente e suas
coisas. Como as águas turvas do rio Solimões, local da maioria das pesquisas, que nos
dificulta a visão ampla. A Amazônia é um labirinto, nem sempre possível de ser desvendada,
dificultando a compreensão dos caminhos, mas a natureza e a vida ultrapassam o
entendimento e a interpretação do possível. O que este livro faz é avivar rastros para
construir novas trilhas, novos caminhos de preservação da natureza e da vida na Amazônia.
12 - João Cândido André da Silva Neto, Natacha Cíntia Regina Aleixo e Leonice Seolin Dias (Orgs)

Apresentação

Grande parte da Amazônia Brasileira, principalmente seu interior, ainda é


desconhecida pelos brasileiros, cujas visões equivocadas tendem a dois aspectos principais:
uma enorme região coberta por rios e floresta de ampla diversidade faunística e florística,
e/ou uma enorme região de vazio demográfico que vem sendo desmatada e queimada.
Os problemas relacionados à questão ambiental da Amazônia brasileira de maneira
indevida estão associados apenas à região do arco do desmatamento, que compreende os
estados de Rondônia, Mato Grosso e Pará.
Nesse sentido, foi criado em 2013, o Grupo de Pesquisa Geotecnologias e Análise da
Paisagem, na Universidade do Estado do Amazonas, cujo objetivo era agregar um grupo de
profissionais da ciência Geográfica que trabalhavam com as diferentes perspectivas Geográficas
tendo como ferramenta as Geotecnologias, e, inicialmente, partir da experiência de
pesquisadores, professores e orientandos no interior e capital do estado do Amazonas.
No decorrer desse processo, surgiu a possibilidade de organizarmos uma coletânea de
textos, no formato de e-book, cujo objetivo era divulgar o que estava sendo produzido pelo
Grupo de Pesquisa Geotecnologias e Análise da Paisagem, cujos integrantes estavam
distribuídos desde o Alto Solimões, no município de Tabatinga, até o Médio Solimões, em Tefé,
além da calha do rio Amazonas em Manaus e Parintins. Essa distribuição geográfica dos
integrantes do grupo possibilitava uma análise integrada de diferentes dinâmicas
socioambientais do espaço geográfico em municípios importantes do estado do Amazonas.
Quando começou a organizar os trabalhos, houve a necessidade de ampliar a
discussão no contexto geográfico, no sentido de minimizar a visão fragmentada da
Geografia, assim, se estendo o convite para compor a coletânea a outros professores e
pesquisadores que trabalham com a Amazônia Brasileira na perspectiva das questões
contempladas na discussão socioambiental.
Assim sendo, a organização da coletânea incluiu textos que abarcavam leituras
geográficas, cada qual, abrangendo um capítulo. No primeiro, “Análise temporo-espacial do
uso da terra e cobertura vegetal no Baixo Rio Tefé – Amazonas”, sendo discutidas as
transformações da paisagem, analisando o uso da terra numa perspectiva temporal, e
buscando compreender suas inter-relações e influências na organização social.
Dinâmicas Socioambientais na Amazônia Brasileira - 13

O capítulo seguinte “O campo térmico e higrométrico na área urbana de Tefé-


Amazonas: uma análise preliminar” teve como foco o diagnóstico do clima urbano na
perspectiva da climatologia geográfica, em que se objetivou a análise das variações térmicas
e higrométricas em diferentes áreas da cidade de Tefé, as quais apresentam características
distintas em relação ao uso do solo.
O texto “Caracterização da temperatura, Ph e condutividade elétrica das águas
superficiais na Comunidade Flutuante do Catalão, Iranduba – Amazonas”, enfatizou a
discussão da problemática questão dos recursos hídricos na atualidade, corroborando para o
diagnóstico e análise de diferentes parâmetros da qualidade das águas de superfície na
comunidade Flutuante do Catalão em Iranduba-AM.
O capítulo “Morfodinâmica no rio Solimões e suas implicações para Tabatinga-AM”
discutiu a caracterização da morfodinâmica do Rio Solimões, no trecho em que está
assentada a sede do município de Tabatinga, na região da tríplice fronteira: Brasil, Colômbia
e Peru, destacando as implicações para a população que habita as áreas atingidas.
A vulnerabilidade do relevo e sua importância no desencadeamento nos processos
erosivos foram abordadas no capítulo “Vulnerabilidade do relevo à perda de solos na bacia
hidrográfica do rio Caiambé, Médio Solimões-AM”, em foi discutido como a ação social do
homem sobre o meio físico-natural intensificou processos naturais como a erosão.
Foram contempladas ainda questões da produção e abastecimento de gêneros
alimentícios no capítulo intitulado: “As Vilas do Alto Solimões: produção e abastecimento de
gêneros alimentícios no Amazonas, Brasil”, cujo objetivo foi compreender a estrutura da
rede urbana e o papel que as Vilas têm no abastecimento da região.
O Capítulo “Agroecologia e soberania alimentar: notas introdutórias sobre a
agricultura camponesa no Alto Solimões, Amazonas, Brasil” tratou das possibilidades da
agroecologia como um artifício para soberania alimentar, numa discussão sob o prisma da
agricultura camponesa na região do Alto Solimões.
O livro foi finalizado com o capítulo “Tão longe, tão perto! diferenças e semelhanças
entre dois municípios amazônicos limítrofes: Altamira e São Félix do Xingu, Pará”, em que
foram analisados, comparativamente na perspectiva socioambiental, os anos 2000-2010 de
dois municípios paraenses que apresentam características marcadas pelas semelhanças e
contrastes socioeconômicos.
14 - João Cândido André da Silva Neto, Natacha Cíntia Regina Aleixo e Leonice Seolin Dias (Orgs)

Nesse contexto, o presente livro buscou revelar os olhares das dinâmicas


socioambientais na Amazônia brasileira, do ponto de vista de quem vivencia essa realidade,
discutindo como as estruturas, relações e diferentes processos da perspectiva da sociedade-
natureza se efetivam e quais os impactos de um sobre o outro.

Os organizadores
Tupã-SP, 2017.
Dinâmicas Socioambientais na Amazônia Brasileira - 15

Dedicatória

Esse livro é dedicado à memória do Professor Doutor José Aparecido Lima Dourado,
pelo exemplo de ser humano e profissional que sempre foi, por acreditar que a educação
poderia mudar a sociedade e o lugar em que vivemos, tornando-o melhor, por não aceitar
que a distância dos grandes centros, infraestrutura precária e nenhuma outra dificuldade o
fizessem desistir de realizar um trabalho notável no interior do Estado do Amazonas, e por
possibilitar novas perspectivas de vida aos seus alunos. Esse é nosso singelo agradecimento.

Os organizadores.
16 - João Cândido André da Silva Neto, Natacha Cíntia Regina Aleixo e Leonice Seolin Dias (Orgs)

Capítulo 1

ANÁLISE TEMPORO-ESPACIAL DO USO DA TERRA E COBERTURA VEGETAL NO BAIXO RIO


TEFÉ – AMAZONAS

João Cândido André da Silva Neto2


Natacha Cíntia Regina Aleixo3

INTRODUÇÃO

As formas de atuação das sociedades na natureza manifestam-se nos diversos tipos


de uso do solo, influenciando significativamente a qualidade de ambientes naturais e a
dinâmica de seu funcionamento.
Para García et al. (1988a, apud LEFF, 2002), os processos de destruição ecológicos
mais devastadores, bem como a degradação socioambiental, são tidos como resultados das
práticas inadequadas do uso do solo, no qual revertem-se os custos sobre os sistemas
naturais e sociais.
Segundo Silva Neto (2012), o ciclo de apropriação da natureza tem efeitos diretos
na economia, consequências estas do processo de superexploração da natureza, que exigirá,
na melhor das hipóteses, custos elevados por anos até que as áreas degradadas sejam
recuperadas. Evidentemente, determina-se repouso dessas áreas no período de
recuperação, o que ocasionará o problema de abandono das áreas, neste caso, a natureza
por si só não conseguiria recuperar o que foi degradado pelo homem, pois sua capacidade
de resiliência estaria comprometida.
Segundo Leff (2002), todo modo de produção e toda formação econômica e social
estabelecem conexões com a natureza por meio dos objetos e meios “naturais” de trabalho
dos processos produtivos que deles se desenvolvem.

2
Professor Adjunto do Departamento de Geografia da Universidade Federal do Amazonas. E-mail:
joaokandido@yahoo.com.br
3
Professor Adjunto do Curso de Geografia, Grupo de Pesquisa Geotecnologias e Análise da Paisagem. E-mail:
natachaaleixo@yahoo.com.br
Dinâmicas Socioambientais na Amazônia Brasileira - 17

Gonçalves (2005) considerou que, na Amazônia, as tentativas de derrubar as


áreas de florestas, para que fossem substituídas por áreas agrícolas, teriam um impacto
negativo e catastrófico do ponto de vista da biodiversidade regional.
As alterações causadas pela atuação antrópica na paisagem, devem ser vistas como
principal transformadora das condições ambientais, podendo modificar o modo como atuam
as dinâmicas naturais ou intensificar os processos nocivos à mesma, podendo levar a uma
situação de impacto ambiental.
Nesse sentido, a compreensão e entendimento dos fenômenos e processos
estabelecidos na interface sociedade-natureza podem subsidiar medidas e diretrizes, que
visam tornar essa relação menos conflituosa e degradante.
O desmatamento da Amazônia brasileira tem chamado atenção nas últimas décadas,
principalmente o da região denominada arco do desmatamento, no qual, segundo Mello-
Thery (2011), observa-se uma forte pressão nas “bordas” da Amazônia Legal, devido à frente
de avanço das monoculturas de grãos, pecuária extensiva e exploração ilegal de madeira.
Enfatiza-se, no presente trabalho, que há um processo gradativo de desmatamento
em proporções menores no interior da Amazônia brasileira, observado em pontos
específicos, adentrando os limites das “bordas” da floresta, na qual se verifica o aumento
das áreas de desmatamento nas últimas três décadas.
As ações de desmatamento e erosão dos solos originam o esgotamento gradativo
dos recursos bióticos, a destruição das estruturas dos solos e a desestabilização dos
mecanismos ecossistêmicos, que dão suporte à produção e regeneração sustentável dos
recursos naturais (LEFF, 2002).
Dessa maneira, o objetivo deste trabalho é analisar as transformações da paisagem
na região do Médio Solimões, localizada na Amazônia brasileira, e compreender suas inter-
relações e influências na organização social.
Assim, por meio de análise espacial dos dados geográficos verificou-se as
transformações no uso da terra e cobertura vegetal, em 28 anos na região do Médio
Solimões, no qual se enfatizou a abordagem na área denominada Baixo Rio Tefé.
18 - João Cândido André da Silva Neto, Natacha Cíntia Regina Aleixo e Leonice Seolin Dias (Orgs)

CARACTERIZAÇÃO DA ÁREA DE ESTUDO

De acordo com Ross (2006), a área estudada apresenta duas unidades


geomorfológicas - litologias: Planície do rio Amazonas caracterizada por aluviões, areias e
argilas (CPRM, 2006) sob Gleissolos e Neossolos Flúvicos (Projeto RADAMBRASIL, 1978) e
Depressão da Amazônia Central, litologias caracterizadas por arenitos finos da Formação Içá
sob Argissolos vermelho-amarelados e Plintossolos.
Segundo Aleixo e Silva Neto (2014), a área analisada apresentou totais anuais de
chuvas elevados e bem distribuídos ao longo dos meses do ano, com média anual total de
chuva de 2.363 mm.
Nesse sentido, enfatizou-se a abordagem na área denominada Baixo Rio Tefé,
caracterizada pelo alargamento do canal principal do rio, denominado Lago Tefé, e seus
afluentes, os quais se localizam próximos à foz do rio Solimões, cuja área é destacada por
abarcar os sítios urbanos das cidades de Tefé e Alvarães (SILVA NETO; ALEIXO, 2014) (Mapa 1).

Mapa 1 - Localização da área de estudo.

Elaboração: Autores, 2016.


Dinâmicas Socioambientais na Amazônia Brasileira - 19

Mapeamento do uso da terra e cobertura vegetal

As técnicas de sensoriamento remoto e geoprocessamento são definidas como


ferramentas que auxiliam nos estudos ambientais, devido a sua praticidade e
operacionalidade, e possibilitam o processamento de uma gama representativa de dados,
permitindo uma rápida atualização das bases de dados, análise espacial de dados
geográficos e monitoramento dos impactos no ambiente.
No desenvolvimento da presente proposta, foi utilizado o Sistema de Informações
Geográficas (SIG), direcionado a garantir a aquisição, o processamento, as inter-relações e a
visualização de informações, quesitos necessários para a elaboração do mapa de uso da
terra e cobertura vegetal.
Foram utilizadas bandas 3 (R), 4 (G) e 5 (B) das imagens de satélite Landsat 5, de
18/10/1986 e Landsat 8, de 22/06/2014, da área abordada, as quais foram tratadas no
software de geoprocessamento SPRING.
A elaboração dos mapas de uso da terra e cobertura vegetal iniciou-se com a
conversão das imagens de formato “TIFF” em “GRIB”, seguida da inserção das imagens de
satélite no Banco de Dados corrente, por meio de registro de imagens, criando, no banco de
dados, um Plano de Informação com modelo de “Imagem”.
Ressalta-se que o software SPRING utiliza internamente o formato “GRIB” para o
armazenamento de imagens, deste modo, como as imagens dos satélites Landsat são
disponibilizadas no formato “TIFF”, torna-se necessária sua conversão para o formato “GRIB”.
O procedimento seguinte é o registro da imagem, que pode ser definido como uma
operação necessária para se integrar uma imagem à base de dados existente num SIG.
O registro também é importante para se combinar imagens de sensores diferentes
sobre uma mesma área ou para se realizar estudos multitemporais, ou seja, quando se usam
imagens tomadas em épocas distintas (SAMPAIO LOPES, 2012).
Finalizou-se o mapeamento do uso da terra e cobertura vegetal com o processo de
classificação das imagens de satélite, definido como processo de extração de informação em
imagens para reconhecer padrões e objetos homogêneos.
Anterior à classificação da imagem é necessário adotar o procedimento de
segmentação, dividindo a imagem em regiões que devem corresponder às áreas de interesse
da aplicação. As regiões são entendidas como um conjunto de "pixels" contíguos, que
apresentam uniformidade (SAMPAIO LOPES, 2012).
20 - João Cândido André da Silva Neto, Natacha Cíntia Regina Aleixo e Leonice Seolin Dias (Orgs)

O método de segmentação utilizado foi “crescimento por região”, que é definido como:

“(...) uma técnica de agrupamento de dados, na qual somente as regiões


adjacentes, espacialmente, podem ser agrupadas. Inicialmente, este processo de
segmentação rotula cada "pixel" como uma região distinta. Calcula-se um critério
de similaridade para cada par de regiões adjacentes espacialmente. O critério de
similaridade baseia-se em um teste de hipótese estatístico que testa a média
entre as regiões. A seguir, divide-se a imagem em um conjunto de sub-imagens e
então se realiza a união entre elas, segundo um limiar de agregação definido”
(SAMPAIO LOPES, 2012 p.04).

Após a segmentação, gerou-se uma imagem, separada em regiões, com base na


análise dos níveis de cinza. O próximo passo foi a realização do processo de treinamento,
que corresponde à aquisição de amostras na imagem dividida por regiões, onde é
atribuída uma determinada classe para a amostra coletada (Organograma 1).

Organograma 1 - Etapas para classificação de imagens no Spring.

Fonte: Silva Neto, 2013.

A classificação da imagem foi gerada utilizando o classificador com supervisão


Bhattacharya. Neste classificador, mede-se a distância média entre as distribuições de
probabilidades de classes espectrais.
Dinâmicas Socioambientais na Amazônia Brasileira - 21

O classificador Bhattacharya não é automático e requer interação do usuário por


meio do treinamento. Suas amostras serão as regiões formadas na segmentação de imagens
(SAMPAIO LOPES, 2012).
Após o processo de classificação, ocorre o procedimento “pós-classificação”, que se
caracteriza pela extração de “pixels” isolados. A etapa de classificação, finalizada com o
“mapeamento”, permite transformar a imagem classificada (categoria “Imagem”) em Mapa
temático raster (categoria “Temática”) (Organograma 2).
A Figura 3 corresponde ao organograma dos procedimentos para mapeamento
das classes de uso da terra, áreas de floresta e desmatamento, no qual “A” corresponde à
composição das bandas do satélite Landsat 5, “B” é a imagem segmentada, “C”
corresponde à imagem classificada em cinco classes temáticas e D corresponde à
quantificação das classes temáticas.

Organograma 2 - Procedimentos para mapeamento do uso da terra e cobertura vegetal.

Elaboração: Autores, 2016.


22 - João Cândido André da Silva Neto, Natacha Cíntia Regina Aleixo e Leonice Seolin Dias (Orgs)

Posteriormente à confecção dos mapas de classificação do uso do solo, foram


realizados trabalhos de campo nas proximidades do município de Tefé-AM, no intuito de
caracterizar também, por meio do registro fotográfico, as transformações da paisagem.

Análise espacial e temporal

Quanto à análise temporal, a implementação ocorreu a partir do módulo de análise


espacial do SIG utilizado.
Nessa perspectiva, salienta-se ainda que, o termo “espacial” em SIG, adota uma
conotação de estrutura topológica, relacionada à localidade e dimensionamento dos
elementos, fenômenos e atributos estudados.
Assim, a estruturação topológica constitui-se como relações espaciais entre
elementos gráficos vetoriais, em termos de conectividade (se os elementos estão ligados ou
não), contiguidade (identificação do contato de elementos) e proximidade (distância entre
dois elementos) (CÂMARA; MONTEIRO, 2001).
Desse modo, a análise espacial tem por objetivo primordial responder questões
levantadas a partir de uma problemática, cujos resultados alcançados por meio da análise
espacial como mapas, gráficos, tabelas e textos, permitirão observar, na medida do possível,
uma análise de determinada realidade (Quadro 1).

Quadro 1 - Exemplos de Análise Espacial. Quadro 1: Exemplos de Análise Espacial.

Adaptado de Câmara, 1996.

Lang e Blaschke (2009) fizeram as seguintes considerações sobre a análise espacial:


Dinâmicas Socioambientais na Amazônia Brasileira - 23

Métodos de análise espacial servem para a pesquisa de relações espaciais entre


entidades dentro de uma ou mais camadas de dados. (...) A análise espacial
apoiada em SIG objetiva fundamentalmente gerar novas informações, o que se
dá por meio da manipulação e integração com camadas de dados já existentes.
Essa nova geração de informações serve para apoiar decisões referentes a áreas.
(LANG; BLASCHKE, 2009, p. 63).

Lang e Blaschke (2009), consideraram que a análise espacial é a relação de camadas


(layers), que pode diferenciar-se em análise horizontal ou vertical.
Na análise espacial “horizontal” verifica-se os diferentes padrões e formas das áreas
analisadas, observam-se também as relações de distâncias entre uma área e outra. Esse tipo
de análise permite constatar os atributos separadamente de áreas circunvizinhas distintas.
Para Lang e Blaschke (2009), a análise espacial “vertical” é definida como uma
antítese à análise “horizontal”, porque designa todos os métodos de análise, nos quais várias
camadas/layers de dados são analisadas de forma integrada, ou seja, são sobrepostas,
combinadas e entrecortadas.
O Organograma 3 mostra um exemplo de uma área na qual são analisadas variáveis
diferentes, e por meio da análise espacial “vertical” as variáveis são correlacionadas,
resultando em uma nova informação contendo os atributos dos layers base.
Observa-se que são correlacionados quatro Planos de Informações com diferentes
atributos (conteúdo). Os atributos aqui caracterizam-se pelas cores e pelas hachuras, assim,
a inter-relação dessas variáveis resultaram em um Plano de Informação síntese (A-B-C-D)
contendo os atributos de todas as variáveis correlacionadas.

Organograma 3 - Exemplo de análise espacial “vertical”.

Fonte: Silva Neto, 2013.


24 - João Cândido André da Silva Neto, Natacha Cíntia Regina Aleixo e Leonice Seolin Dias (Orgs)

Esse tipo de abordagem normalmente é utilizado na análise integrada da paisagem,


que é caracterizada pela correlação dos elementos da paisagem, inclusive considerando o
fator antrópico que se caracteriza pelos tipos de usos da terra, resultando na definição das
unidades da paisagem.
As correlações dos Planos de Informações correspondem a um dos principais
artifícios da análise espacial de dados geográficos, podendo ser executadas de duas
maneiras distintas: Sobreposição Lógica e Aritmética/Matemática (SILVA NETO, 2012).
A Sobreposição Lógica caracteriza-se por utilizar operadores lógicos, ou seja, por
utilizar a Lógica Booleana. Esse tipo de sobreposição trabalha com arquivos normalmente
matriciais, a partir da sobreposição de diferentes camadas de dados (FITZ, 2008).
Para a elaboração do Plano de Informação síntese de uso da terra e cobertura vegetal
numa perspectiva temporal dos anos 1986 e 2014, utilizou-se o módulo de análise espacial do
software Spring, no qual foram executadas sobreposições lógicas de operações descritas por
sentenças construídas segundo regras gramaticais envolvendo operadores de lógica booleana.
A Sobreposição Lógica caracteriza-se por utilizar operadores lógicos, como “e”,
operador que significa intersecção, expresso nos programas em LEGAL por “&&”; “ou” operador
que significa união ou similaridade, expresso nos programas em LEGAL por “| |”; o operador
“xor”, que significa exclusão e denota desunião ou diferença, representada em programação por
“|” e “não”, operador que significa negação, representado em LEGAL por “!=” (Organograma 4).
Dinâmicas Socioambientais na Amazônia Brasileira - 25

Organograma 4 - Operadores Booleanos utilizados na análise espacial para determinação de análise temporal
de uso da terra e cobertura vegetal.

Elaboração: Autores, 2016.

Nesse tipo de sobreposição trabalhou-se com arquivos matriciais, a partir da


sobreposição de diferentes camadas de dados, estabelecendo-se as classes temáticas das
áreas que foram preservadas, desmatadas e reflorestadas ao longo dos anos analisados.

RESULTADOS

A análise temporo-espacial do uso da terra e da cobertura vegetal permitiu a


observação das transformações provocadas pela atuação do homem em uma determinada
porção da região do Médio Solimões na Amazônia brasileira, onde as dinâmicas sócio-
espaciais caracterizam-se de maneira singular no tocante das logísticas de transporte e
deslocamento de pessoas e mercadorias, visto que a principal via de transporte na região é a
hidroviária, como também nos processos de usos da terra, nos quais se observam
transformações significativas na paisagem da região do Médio Solimões nas últimas três
décadas, sobretudo pelo aumento das áreas de desmatamento.
26 - João Cândido André da Silva Neto, Natacha Cíntia Regina Aleixo e Leonice Seolin Dias (Orgs)

Nessa perspectiva, optou-se por analisar, na região do Médio Solimões-AM, a área


denominada Baixo Rio Tefé, localizada no baixo curso da bacia hidrográfica do Rio Tefé, próximo
à foz com Rio Solimões, onde apresenta um alargamento no canal principal de drenagem,
assemelhando-se com um lago, de onde se origina a denominação popular “Lago Tefé”.
A análise do presente artigo engloba parte dos municípios de Alvarães e Tefé, nessa
última, enfatizou-se a análise nas adjacências de sua área urbana. Tefé caracteriza-se ainda
como um dos municípios mais populosos na Região do Médio Solimões.
A partir da década de 1980, observou-se um crescimento de aproximadamente 19%
da população total do município de Tefé. De acordo com o Instituto Brasileiro de Geografia e
Estatística (IBGE), em 1980, a população de Tefé era de 53.570 habitantes e no ano de 2007,
de 62.920 habitantes (SILVA NETO; ALEIXO, 2014).
O crescimento demográfico, o aumento do número de estabelecimentos comerciais e
da oferta de mercadorias no município, bem como o crescimento da produção agropecuária na
região do Médio Solimões-AM, pode ser associado ao aumento das áreas de desmatamento.
Segundo Silva Neto e Aleixo (2014), as alterações na dinâmica da paisagem do Baixo
Rio Tefé seguem a lógica da apropriação da natureza, vista como recurso a ser explorado,
visando o lucro dos agentes sociais que detêm maior capital econômico-financeiro e os
interesses dos agentes imobiliários.
Quanto ao processo de uso da terra, observou-se o aumento da área de
desmatamento no Médio Solimões-AM no período analisado, de 9% em 1986 para 19% em
2014, consequentemente, observou-se a diminuição das áreas classificadas como Floresta,
de 72% em 1986 para 61% em 2014 (Gráfico 1).
Dinâmicas Socioambientais na Amazônia Brasileira - 27

Gráfico 1: Uso da terra e cobertura vegetal no Baixo Rio Tefé em 1986 e 2014.

Organização: Autores, 2016.

Notou-se também o aumento das áreas de solo exposto, de 2% em 1986 para 5%


em 2014.
Do mesmo modo, foi possível observar que, a partir da década de 1980, a maior
parte da área de floresta desmatada associou-se ao crescimento econômico-demográfico do
município nas últimas décadas.
A tendência da expansão da malha urbana para as áreas rurais ocorre frequentemente
de modo inadequado, produzindo espaços de segregação sem um devido plano de zoneamento
para expansão urbana em áreas adequadas, conforme as diretrizes de planejamento.
Segundo Silva Neto e Aleixo (2014), o aumento das áreas desmatadas é observado
principalmente nas adjacências das duas principais estradas que ligam a cidade de Tefé ao
assentamento rural denominado Agrovila e aos sítios ao longo da estrada da EMADE -
Empresa Amazonense de Dendê.
Para a implementação da análise espacial de dados geográficos, foram
correlacionados os planos de informações de uso da terra e cobertura vegetal de 1986 e
2014, e por meio da elaboração de um programa no módulo de análise espacial do Spring,
utilizando lógica booleana, gerou um novo plano de informação da análise temporal do uso
da terra dos anos de 1986 e 2014 (Figura 6).
28 - João Cândido André da Silva Neto, Natacha Cíntia Regina Aleixo e Leonice Seolin Dias (Orgs)

Figura 6: Mapa de análise temporo-espacial de uso da terra e cobertura vegetal do Baixo Rio Tefé em 1986 e 2014.

Elaboração: Autores, 2016.

Desse modo, os resultados alcançados possibilitaram a análise temporal do processo


de uso da terra no Baixo Rio Tefé, verificando-se que, no período analisado, 24% da área
analisada foi desmatada, 72% se mantiveram preservadas e 4% reflorestadas (Gráfico 2).

Gráfico 2: Análise temporal de uso da terra e cobertura vegetal no Baixo Rio Tefé, de 1986 e 2014.

Área Preservada Área Reflorestada Área Desmatada

24%
72%

4%

Elaboração: Autores, 2016.


Dinâmicas Socioambientais na Amazônia Brasileira - 29

Ressalta-se que, de acordo com os resultados alcançados, o processo de uso da


terra no Baixo Rio Tefé pode ser diretamente associado ao crescimento demográfico na
cidade de Tefé nas últimas décadas, consequentemente, o desenvolvimento de pequenas
culturas de mandioca, além da extração madeireira.

CONCLUSÕES

Quanto à utilização de geotecnologias na análise da paisagem do Baixo Rio Tefé,


destaca-se que a implementação do módulo de análise espacial do software Spring 5.2
possibilitou a análise das transformações na paisagem ao longo últimos 28 anos, observando-
se as alterações nas formas de apropriação da natureza por meio do uso da terra.
Essas tecnologias permitem um monitoramento e processamento de dados que
aceitam que diretrizes sejam seguidas conforme as configurações observadas na paisagem,
como as áreas de queimadas, desmatamento e intensificação de processos erosivos.
Na região do Médio Solimões, na Amazônia brasileira, a apropriação da natureza
tem acontecido como artifício para a produção e acumulação de capital, por meio da
expansão das fronteiras agrícolas e da expansão territorial das malhas urbanas, segundo
interesses dos agentes econômicos.
Esse processo pode ser explicado pela lógica de apropriação da natureza, que
ocorre na região do Médio Solimões, sendo definida como um imperativo da racionalidade
econômica, cujo objetivo primordial é tornar qualquer área explorável para fins produtivos,
independente das características ambientais destas paisagens.
Os processos que transformam e alteram as paisagens do Médio Solimões
demonstraram a insuficiência das políticas de planejamento e gestão territorial, que são
visualizadas no aumento de áreas desmatadas e no aumento e intensificação dos processos
erosivos, os quais são oriundos de usos inadequados do solo que potencializam os problemas de
ordem socioambiental na região do Médio Solimões (SILVA NETO; ALEIXO, 2014).
Nessa perspectiva, torna-se necessário que o poder público concretize a
organização do território, auxiliado por estudos prévios das condições físico-naturais das
paisagens, por meio de diagnoses, zoneamentos regionais e locais, e ordenamento do
território, articulando a análise sócio-espacial das diferentes dinâmicas da natureza e
sociedade conjunta com a participação da população tradicional.
30 - João Cândido André da Silva Neto, Natacha Cíntia Regina Aleixo e Leonice Seolin Dias (Orgs)

REFERÊNCIAS

ALEIXO, N. C. R., SILVA NETO, J. C. A. Variabilidade Climática do município de Tefé – Amazonas – Brasil. In: VIII SLAGF –
Simpósio LatinoAmericano de Geografía Física – y IV SIAGF – Simposio IberoAmericano de Geografía Física, Santiago -
Chile. 2014.

CÂMARA et al. Anatomia de Sistemas de Informação Geográfica. São José dos Campos: Divisão de
Processamento de Imagens: Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais. 1996.

CÂMARA, G. e MONTEIRO, A. M. V. Cap. 2. Conceitos básicos em ciência da geoinformação. In: CÂMARA, G.;
DAVIS, C. e MONTEIRO, A. M. V. Introdução à Ciência da Geoinformação. São José dos Campos. INPE-10506-
RPQ/249, 2001.

FITZ, P. R. Geoprocessamento sem complicação. São Paulo: Oficina de Textos, 2008.

GONÇALVES, Carlos Walter Porto. Amazônia, Amazônias. São Paulo: Contexto, 2005.

INSTITUTO NACIONAL DE PESQUISAS ESPACIAIS (INPE): Catálogo de Imagens LANDSAT. Publicado em:
<http://www.dgi.inpe.br/>. Acesso em: 12 dez. 2013.

LANG, Stefan; BLASCHKE, Thomas. Análise da paisagem com SIG, tradução Hermann Kux. São Paulo: Oficina de
texto. 2009.

LEFF, Enrique. Epistemologia Ambiental; 3 ed. São Paulo: Editora Cortez, 2002.

LOURENÇO R.S., MONTALVÃO R.M.G. DE, PINHEIRO S. DA S., FERNANDES P.E.C.A., PEREIRA E.R., FERNANDES
C.A.C., TEIXEIRA W. Geologia. In: BRASIL. Departamento Nacional da Produção Mineral. Projeto RADAMBRASIL.
Folha SA. 20-Manaus. Rio de Janeiro, p. 17-164. 1978.

MELLO-THERY, N. A.. Território e Gestão Ambiental na Amazônia: terras públicas e os dilemas do Estado. São
Paulo: Annablume, 2011.

REIS, N. J.; ALMEIDA, M. E.; RIKER, S. L.; FERREIRA. A. L. (Orgs.) Geologia e Recursos Minerais do Estado do
Amazonas. 1 ed. Manaus: CPRM – Serviço Geológico do Brasil, 2006, 125 p.

ROSS, J. L. S. Ecogeografia do Brasil: Subsídios para planejamento ambiental. São Paulo: Oficina de Textos. 2006.

SAMPAIO LOPES, Eymar Silva. SPRING Básico: TUTORIAL 10 Aulas - SPRING 5.2 (Versão Windows). Revisão:
Hilcéa Santos Ferreira. INSTITUTO NACIONAL DE PESQUISAS ESPACIAIS – INPE, p. 169. 2012.

SILVA NETO, J. C. A. Indicação para o uso da terra na Bacia Hidrográfica do Rio Salobra Serra da Bodoquena,
Mato Grosso do Sul. RA'EGA: o Espaço Geográfico em Análise, Curitiba, v. 25, p. 279-304, 2012.

SILVA NETO, J. C. A. Zoneamento ambiental como subsídio para o ordenamento do território da bacia
hidrográfica do rio Salobra, Serra da Bodoquena – MS. 2013. 291f. Tese (Doutorado em Geografia) –
Universidade Estadual Paulista, Presidente Prudente.

SILVA NETO J. C. A. da; ALEIXO, N. C. R. Apropriação da natureza e processos erosivos na Região do Médio
Solimões – AM. Revista GeoUECE - Programa de Pós-Graduação em Geografia da UECE Fortaleza/CE, v. 3, nº
4, p. 151-176, 2014. Disponível em: http://seer.uece.br/geouece. Acesso em: 10 jul. 2014.

SPRING – Sistema de Processamento de Informações Georreferenciadas. Versão 5.2 para Windows, 32 Bits.
Divisão de Processamento de Imagens do Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais INPE/DPI (Copyright © 1991-
2010). Disponível em: <http://www.dpi.inpe.br/spring/portugues/download.php>. Acesso em: 10 mar. 2014.
Dinâmicas Socioambientais na Amazônia Brasileira - 31

Capítulo 2

O CAMPO TÉRMICO E HIGROMÉTRICO NA ÁREA URBANA DE TEFÉ-AMAZONAS: UMA


ANÁLISE PRELIMINAR

Elklândia Gomes Silveira4


Natacha Cíntia Regina Aleixo5
João Cândido André da Silva Neto6

INTRODUÇÃO

O Brasil vivenciou um rápido processo de urbanização, derivado da expansão da


industrialização e expropriação no campo, que ocorreu de meados da década de 60. Desta
maneira, as populações começaram a migrar para as áreas urbanas em busca de novas
perspectivas de vida, o que acarretou um processo de expansão territorial urbana
desordenada na maioria das cidades, tendo como consequência diversos problemas de
ordem ambiental, social e econômica.
Dentre os problemas observados nas cidades brasileiras desde o processo da
acelerada expansão territorial urbana, pode-se listar a retirada de vegetação arbórea, a
excessiva pavimentação e impermeabilização do solo, o aumento da poluição do ar, a
poluição do solo, rios, lagos, entre tantos outros.
No contexto da problemática urbana está inserido o clima das cidades, que foi
alterado a partir do balanço de energia superfície-atmosfera distinto das áreas rurais.
As alterações das características naturais provocadas pela urbanização e acentuadas
pelo planejamento inadequado, provocaram diversas modificações no ambiente urbano,
sendo o clima um componente desse ambiente, sujeito às influências dessas modificações.
Portanto, “o clima próprio gerado pela cidade provoca efeitos que são sentidos pela
população através do desconforto térmico e da qualidade do ar [...]” (AMORIM, 2000, p. 25).
Assim, entende-se que o citadino sofre os efeitos do clima urbano, em especial, a população
de baixa renda, que não tem condições de obter climatizadores de ambiente, tendo sua
qualidade de vida comprometida.

4
Graduada em Geografia na Universidade do Estado do Amazonas (CEST/UEA). E-mail: nsacj@hotmail.com
5
Professora Adjunto do curso de Geografia da Universidade do Estado do Amazonas (CEST/UEA).E-mail:
natachaaleixo@yahoo.com.br
6
Professor Adjunto do Departamento de Geografia da Universidade Federal do Amazonas. E-mail:
joaokandido@yahoo.com.br
32 - João Cândido André da Silva Neto, Natacha Cíntia Regina Aleixo e Leonice Seolin Dias (Orgs)

Com a constante degradação do ambiente urbano e seus respectivos efeitos sobre a


qualidade de vida citadina, o poder público tem se preocupado mais com o planejamento e
com a gestão ambiental urbana.
A apreciação deste contexto expõe uma área de grande interesse para os geógrafos
nos estudos relacionados ao ambiente urbano, pois, além das diversas abordagens
geográficas, a análise climatológica também possibilita o estudo de várias problemáticas
socioambientais urbanas (MENDONÇA, 2002).
Neste trabalho, pretendeu-se compreender as variações térmicas e higrométricas,
em diferentes áreas da cidade de Tefé, as quais apresentam características distintas em
relação ao uso do solo.

CARACTERIZAÇÃO DA ÁREA DE ESTUDO

O município de Tefé está localizado na região do Médio Solimões, no estado do


Amazonas, entre as coordenadas de 03º 15’ 39” a 05º 34’ 22” de latitude Sul e 64º 04’ 12” a
68º 58’ 32” de longitude, limitando-se com os municípios de Maraã, Coari, Alvarães,
Carauari, Tapauá (Mapa 1).
A distância de Tefé em relação à capital Manaus por via aérea é de 520 km e 633 km
por via fluvial. A cidade possui uma população estimada em 61.453 habitantes, distribuídos
em uma área de 23.704 Km² (IBGE, 2010).

Mapa 1. Localização do município de Tefé-AM.

Fonte: Silva Neto, 2014.


Dinâmicas Socioambientais na Amazônia Brasileira - 33

De acordo com Rodrigues (2011), Tefé, desde o período da colonização, sempre


teve fundamental importância na região onde está inserida, servindo de entreposto
comercial para os expedicionários que por ali passavam.
Devido a sua localização estratégica, a maioria das expedições realizadas sempre
passava pela cidade para abastecimento de mantimentos. Esse serviço disponibilizado no
município fortaleceu cada vez mais sua função na rede urbana do médio Solimões. Assim,
atualmente, a cidade é classificada como de porte médio, com responsabilidade territorial,
uma vez que o fluxo de pessoas e mercadorias é bastante intenso. (RODRIGUES, 2011).
A distribuição das chuvas no município de Tefé ocorre em dois períodos bem
marcados: de dezembro a maio, apresentam-se totais elevados de chuvas; em junho,
inicia a diminuição do total mensal de chuva; e de julho a novembro, as chuvas
apresentam os menores totais mensais. Por isso, popularmente são denominados na
Amazônia brasileira o período de cheia e vazante, que contribuem para que o efeito da
sazonalidade climática seja intrínseco ao modo de vida amazonense, em especial no
cotidiano da população tefeense, a qual utiliza os rios como principais vias de transporte
(ALEIXO; SILVA NETO, 2014).
Segundo Aleixo e Silva Neto (2014), os valores anuais de temperatura média
máxima e mínima mensais dos últimos vinte anos (1993-2012) apresentaram tendência de
aumento desde o ano 2000. No período de 1993-2002, a temperatura média máxima anual
foi de 32,6 °C e aumentou para 33 °C no período de 2003-2012. A temperatura mínima
média também apresentou tendência de aumento, no período de 1993-2003, foi de 22,3 °C
e aumentou para 23,1 °C no período de 2003-2012. O aumento de temperatura na cidade
pode estar relacionado “às mudanças do uso e ocupação do solo ao redor da estação
meteorológica que possui no entorno maior impermeabilização do solo com as construções
de vilas de moradias militares, fato que altera o balanço de energia da superfície-atmosfera”
(ALEIXO e SILVA NETO, 2014, p.8).
Dessa maneira, é importante compreender o campo térmico e higrométrico no
espaço urbano de Tefé, para identificar como o uso e ocupação do solo altera o balanço de
energia e condiciona a ocorrência do clima urbano na cidade.
34 - João Cândido André da Silva Neto, Natacha Cíntia Regina Aleixo e Leonice Seolin Dias (Orgs)

PROCEDIMENTOS METODOLÓGICOS

Para o desenvolvimento do trabalho partiu-se da abordagem teórica e


metodológica do Sistema Clima Urbano (S.C.U.), de Monteiro (1976).
Monteiro (2003) considera o clima urbano como o clima que abrange um
determinado espaço terrestre e sua urbanização, sendo que o espaço urbanizado constitui o
núcleo do sistema. Considerando o S.C.U. como um sistema aberto, é necessário considerar,
além dos fatores geradores de energia externos, os fatores internos, isto é, o homem e a
dinâmica criada pelo mesmo no espaço citadino.
No presente trabalho, antes da coleta de dados termo-higrométricos, fez-se
necessária uma caracterização do uso e da ocupação do solo urbano. Assim, a partir da análise
de imagens de satélite obtidas por meio do aplicativo Google Earth®, Plano Diretor do
Município e registros fotográficos, verificamos o padrão de construção das casas,
pavimentação das ruas, coberturas vegetais, densidade das construções, existência de praças
públicas, entre outros aspectos que influenciam a alteração no balanço de energia na cidade.
A coleta desses dados termo-higrométricos foi realizada em dois pontos específicos
de Tefé (Figura 1): o primeiro na área central e o outro na área do entorno da estação
meteorológica do INMET, conforme Figura 2. As medidas foram feitas em dois horários diários
(8h e 14h), devido à disponibilidade desses horários na estação meteorológica do INMET. A
coleta foi realizada em diferentes recortes temporais no ano de 2014: no mês de abril, entre
os dias 07 e 11, no mês de junho, dos dias 23 a 27 e no mês de agosto, do dia 11 ao dia 15.
Os meses foram selecionados conforme as condições climáticas habituais, buscando
a avaliação de ambas as estações (cheia e vazante).
Para a coleta dos dados de temperatura no centro da cidade foi utilizado o termo-
higrômetro digital da marca HIKARI, que foi inserido em um miniabrigo, para evitar a
incidência de radiação solar direta sobre o aparelho.
Na estação meteorológica do INMET foram utilizados os dados de temperatura
mensurados nos termômetros de bulbo seco e úmido da estação.
Dinâmicas Socioambientais na Amazônia Brasileira - 35

Figura 2. Localização dos pontos de coleta dos dados climáticos

Fonte: SILVEIRA, 2014.

Os dados coletados foram tratados no Excel, gerando planilhas com valores de


temperatura em graus Celsius e umidade relativa do ar em porcentagem. As planilhas foram
utilizadas com o objetivo de gerar gráficos.
A análise e interpretação dos sistemas atmosféricos atuantes no período da
pesquisa de campo se deram através de imagens do satélite Goes, disponíveis no site do
INMET e Centro de Previsão do Tempo e Estudos Climáticos (CPTEC).
Após a sistematização dos dados, foi possível elaborar uma análise acerca das
características térmicas e higrométricas da atmosfera urbana em Tefé/AM.

ANÁLISE TERMO-HIGROMÉTRICA NA CIDADE DE TEFÉ

Foram escolhidos dois pontos na área intraurbana da cidade de Tefé, com


características distintas em relação ao uso do solo, vegetação, entre outros aspectos que
influenciam no aumento ou diminuição da temperatura.
O centro da cidade, especificamente a Praça Santa Teresa e entorno (ponto 1),
representa a área com maior densidade construtiva, fluxo de veículos e pouca vegetação, e a
estação do INMET (ponto 2), localizada na estrada do aeroporto, representa a menos densamente
construída, ou seja, com maior quantidade de vegetação, como mostram as figuras 3 e 4.
36 - João Cândido André da Silva Neto, Natacha Cíntia Regina Aleixo e Leonice Seolin Dias (Orgs)

Figura 3. Área Central de Tefé.

Fonte: Silveira, 2014.

Figura 4. Entorno do ponto 2 (Estação meteorológica do INMET).

Fonte: Silveira, 2014.


Dinâmicas Socioambientais na Amazônia Brasileira - 37

Observa-se que as duas áreas apresentam características diferentes em alguns


aspectos, como a vegetação arbórea, que na área central quase não existe e que, na área
próxima à estação do INMET, aparece em maior quantidade.
A área central da cidade, onde foi feita a mensuração térmica e higrométrica, exibe
um padrão de construção bastante denso, com materiais que facilitam o acúmulo de energia
na superfície, ou seja, asfalto, concreto, alvenaria, circulação de veículos e as atividades
humanas em geral.
A substituição da vegetação por áreas construídas é, atualmente, um dos responsáveis
pelo aumento da temperatura nas cidades, uma vez que, a “expansão das áreas urbanas
provoca modificações significativas na paisagem natural” (SANT’ANNA NETO, 2011, p. 9).

A elevação da temperatura nas áreas urbanas ocorre em função de vários


fatores. A verticalização das construções, por exemplo, cria um verdadeiro
“labirinto de refletores”, em que a energia proveniente do sol é refletida pelos
edifícios, aquecendo o ar. A diminuição da evaporação, por outro lado, ocorre
pela redução de áreas verdes e canalização dos córregos, além da captura das
águas pluviais, acarretando na atmosfera uma pequena capacidade de
resfriamento do ar. A energia antrópica, ou seja, aquela produzida pelo homem
também provoca aumento do calor, pois ela ultrapassa o balanço médio de
radiação. Assim, o calor produzido pelo transito, pelas indústrias e pelas
habitações eleva consideravelmente a temperatura do ar na cidade e reduz a
umidade, formando o que se convencionou denominar “ilhas de calor”
(SANT´ANNA NETO, 2011, p.10).

Segundo García (1995), a intensidade das ilhas de calor é classificada em: débil,
quando as diferenças oscilam entre 0 °C e 2 °C; moderada, entre 2 °C e 4 °C; forte, entre 4 °C
e 6 °C; muito forte, quando as diferenças são superiores a 6 °C.
Dentre os meses nos quais foram feitas as coletas de dados em Tefé, seguindo os
parâmetros da região e levando em conta o período seco e chuvoso (abril, junho, agosto e
setembro), na maioria dos dias analisados, houve atuação dos seguintes sistemas
atmosféricos: massa Equatorial continental (MEC) e Zona de Convergência do Atlântico Sul
(ZCIT). Houve também pouca precipitação em dias com chuvas convectivas 1,5 mm e poucos
dias apresentaram elevada precipitação com valor de até 28,6 mm.
38 - João Cândido André da Silva Neto, Natacha Cíntia Regina Aleixo e Leonice Seolin Dias (Orgs)

Episódio de 07 a 11 de abril de 2014

No período de 07 a 11 de abril de 2014, as temperaturas registradas apresentaram


uma tendência de aquecimento maior na área do centro em contraposição à estação INMET.
De acordo com o Gráfico 1, no horário das 8 horas do dia 7/04, a diferença de
temperatura nos dois pontos foi de 1,45 °C, entretanto, nos dias seguintes, a amplitude da
temperatura aumentou entre os pontos com valor máximo no dia 9/04, observando-se uma
diferença de 3,6 °C a mais no Centro de Tefé em relação à área da estrada do aeroporto.
Isso demonstra que a densidade de construções e maior impermeabilização do solo
faz com que a absorção de radiação solar seja mais elevada e, consequentemente, aumente
a temperatura neste ponto da cidade.
A umidade relativa às 8h, de acordo com o Gráfico 2, mostra que, a estação do
INMET possui, predominantemente, valores mais elevados de umidade do ar, em
decorrência da arborização mais elevada no local, o que possibilita a ocorrência do
processo de evapotranspiração mais acentuado. Por outro lado, na área Central, a
umidade é mais reduzida pelo uso do solo densamente impermeabilizado e com escassez
de vegetação arbórea nas ruas.

Gráfico 1. Temperatura média às 8h – 07 a 11 de abril de 2014.

30
centro Estação INMET
29
temperatura media as 8h (°C)

28

27

26

25

24

23

22
07/abr 08/abr 09/abr 10/abr 11/abr

Fonte: INMET e Silveira, 2014.


Dinâmicas Socioambientais na Amazônia Brasileira - 39

Gráfico 2. Umidade relativa às 8h – 07 a 11 de abril de 2014.

100
umidade relativa (%) 90
80
70
60
50
40
30
20
10
Estação INMET Centro
0
07/abr 08/abr 09/abr 10/abr 11/abr

Fonte: INMET e Silveira, 2014.

De acordo com o Gráfico 3, que representa a variação de temperatura às 14h,


percebe-se que a amplitude não variou muito, apesar de, todos os dias, a temperatura na
área Central se apresentar maior que na área da estrada do aeroporto. Apenas no dia 09/04,
observou-se uma diferença de 2,25 °C a mais na área Central.

Gráfico 3. Temperatura média às 14h – 07 a 11 de abril de 2014.

40

35
temperatura media as 14h (°C)

30

25

20

15

10

5
centro Estação INMET
0
07/abr 08/abr 09/abr 10/abr 11/abr

Fonte: INMET e Silveira, 2014.


40 - João Cândido André da Silva Neto, Natacha Cíntia Regina Aleixo e Leonice Seolin Dias (Orgs)

A umidade relativa no horário das 14h00min apresentou valores mais elevados na


Estação do INMET em relação ao Centro. Apenas no dia 10/04, devido à precipitação que
ocorreu na cidade, ambos os valores foram homogeneizados pela situação atmosférica
predominante no local (Gráfico 4).

Grafico 4. Umidade relativa às 14h – 07 a 11 de abril de 2014.

Estação INMET Centro

100
90
Umidade Relativa (%)

80
70
60
50
40
30
20
10
0
07/abr 08/abr 09/abr 10/abr 11/abr

Fonte: INMET e Silveira, 2014.

Episódio de 11 a 15/08/2014

Neste episódio, a maior diferença registrada nos dois pontos ocorreu no dia
12/08, com uma amplitude térmica de 3,25 °C. No dia 25/08, na parte da manhã, as
temperaturas foram bem homogêneas devido à chuva que ocorreu na cidade (28,6 mm). A
mesma contribuiu para amenizar a temperatura e elevar a taxa de umidade no Centro,
conforme o Gráfico 5.
A umidade relativa continuou seguindo o mesmo padrão dos outros episódios, com
os maiores valores sendo registrados na área da estrada do aeroporto e com uma
homogeneização nos dois pontos nos dias com chuvas (Gráfico 6).
Dinâmicas Socioambientais na Amazônia Brasileira - 41

Gráfico 5. Temperatura média às 8h – 11 a 15 de agosto de 2014.

35

temperatura media 8h (°C) 30

25

20

15

10

5
centro estação INMET
0
11/ago 12/ago 13/ago 14/ago 15/ago

Fonte: INMET e Silveira, 2014.

Gráfico 6. Umidade relativa às 8h – 11 a 15 de agosoto de 2014.

100
90
80
umidade relativa (%)

70
60
50
40
30
20
10
estação INMET centro
0
11/ago 12/ago 13/ago 14/ago 15/ago

Fonte: INMET e Silveira, 2014.

No horário das 14h, não houve uma variação acentuada comparando os dois
pontos, houve uma amplitude de 0 a 2,5 °C. durante os todos os dias (Gráfico 7).
Em relação à umidade, neste mesmo horário, houve uma variação no dia 12/08,
pois o Centro apresentou um valor maior que a estrada do aeroporto, 64% e 60%,
respectivamente, conforme se observa no Gráfico 8.
42 - João Cândido André da Silva Neto, Natacha Cíntia Regina Aleixo e Leonice Seolin Dias (Orgs)

Gráfico 7. Temperatura média às 14h – 11 a 15 de agosto de 2014.

40
temperatura media 14h (°C) 35

30

25

20

15

10

5
centro estação INMET
0
11/ago 12/ago 13/ago 14/ago 15/ago

Fonte; INMET e Silveira, 2014.

Gráfico 8. Umidade relativa às 14h – 11 a 15 de agosto de 2014.

100
90
estação INMET centro
80
umidade relativa (%)

70
60
50
40
30
20
10
0
11/ago 12/ago 13/ago 14/ago 15/ago

Fonte: INMET e SILVEIRA, 2014.

Assim, verificou-se, nas áreas de Tefé, com características de uso e ocupação dos solos
diferentes, que além dos fatores naturais como sistemas atmosféricos atuantes e a precipitação,
as modificações ocorridas na paisagem urbana da cidade, em decorrência da produção do
espaço, influenciam diretamente no aumento da temperatura, causando assim, a ocorrência do
fenômeno de ilhas de calor com intensidade moderada, o que acarreta desconforto térmico na
população, principalmente a parte que habita ou trabalha na área central da cidade.
Dinâmicas Socioambientais na Amazônia Brasileira - 43

A diferença de temperatura nas duas áreas relaciona-se à densidade de construções


na área central da cidade, falta de áreas verdes e arborização urbana nas ruas, além da
concentração de atividades como circulação de veículos, comércio e impermeabilização do
solo por material asfáltico na área central.
O contrário foi observado na estrada do aeroporto, onde se localiza a estação do
INMET, cujo entorno apresenta um padrão construtivo menos denso e com presença
significativa de vegetação, propiciando, às pessoas que habitam ou trabalham nas
proximidades, um ambiente térmico melhor.
O aumento da temperatura pode potencializar o uso de climatizadores artificiais e
deflagrar em muitas pessoas sintomas como fadiga, estresse, irritação, insônia, entre outros,
podendo inclusive, influenciar a ocorrência de problemas de saúde como doenças
cardiovasculares (ALEIXO, 2012).
Dessa maneira, o clima urbano deve ser pensado como um produto social que
precisa de maior atenção do poder público, para que políticas visando a qualidade
ambiental, como a ampliação da arborização urbana, das praças, além de outras medidas de
planejamento urbano, sejam efetivas e melhorem o conforto e o bem-estar da população no
espaço urbano de Tefé.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Os dados analisados neste trabalho demonstraram que as alterações na paisagem


urbana da cidade de Tefé vêm causando alterações nas temperaturas em algumas áreas da
cidade. Percebe-se que nas áreas, onde há uma menor densidade de construções e áreas
verdes, as temperaturas são mais amenas, enquanto nas áreas com uma densidade
construtiva significativa e com ausência e áreas verdes, as temperaturas são mais elevadas,
com variações entre 2 °C a 4 °C entre as áreas analisadas.
As variações nas temperaturas tiveram maior amplitude no horário das 14h na
maioria dos dias dos meses analisados. Ressalta-se que foi utilizada a média das
temperaturas de cada dia nos dois horários, pois os dados foram coletados por meio de dois
aparelhos diferentes, no caso, a estação convencional do INMET, que mensura a
temperatura em três horários (8h, 14h e 20h), e o termo-higrômetro digital, segunda forma
de coleta dos dados.
44 - João Cândido André da Silva Neto, Natacha Cíntia Regina Aleixo e Leonice Seolin Dias (Orgs)

Por meio desta pesquisa, pôde-se verificar a presença de ilhas de calor de


intensidade moderada na área intraurbana de Tefé. Nessa perspectiva, vale destacar que a
cidade merece atenção especial em relação ao planejamento ambiental urbano, para que os
efeitos do clima urbano sejam amenizados, uma vez que, os elementos que o compõem
comprometem a qualidade ambiental.
Além disso, os resultados preliminares encontrados, nesta pesquisa pioneira, na
área urbana de Tefé, podem subsidiar mais estudos de clima urbano em outros contextos
espaciais da cidade, englobando áreas que não foram analisadas nessa abordagem de
pesquisa e temas como conforto térmico, clima urbano e saúde, bem como impactos de
eventos extremos, entre outros.
Neste contexto, as pesquisas de clima urbano podem auxiliar no diagnóstico das
áreas que mais necessitam de intervenção, para melhoria da qualidade ambiental e conforto
térmico dos habitantes, subsidiando políticas públicas para produção do espaço, de maneira
mais adequada e igualitária.

AGRADECIMENTO

Ao Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq) pelo apoio


financeiro ao Projeto: “Variabilidade climática e dinâmica socioambiental no Médio
Solimões-Am” – CNPq Universal 485971/2013-5.

REFERÊNCIAS

ALEIXO, N.C.R.; SILVA NETO, J.C.A. Variabilidade climática do município de Tefé/Amazonas/Brasil. Anais... VIII
Simpósio Latino-Americano de Geografia Física Aplicada, Santiago, Chile, p.1635-1643, 2014.

ALEIXO, N.C.R. Pelas lentes da Climatologia e da Saúde Publica: doenças hídricas e respiratórias em Ribeirão
Preto/ SP. Tese de Doutorado em Geografia - UNESP. Presidente Prudente, 2012. 350p.

AMORIM, M. C. C. T. O clima urbano de Presidente Prudente-SP. 2000. 378f. Tese (Doutorado em Geografia) –
Faculdade de Filosofia Letras e Ciência Humanas – USP. São Paulo.

CENTRO DE PREVISAO DO TEMPO E ESTUDOS CLIMATICOS – CPTEC. Banco de dados de imagens GOES.
Disponível em:<www.cptec.inpe.br.

GARCÍA, F. F. Manual de climatologia aplicada: clima, medio ambiente y planificación. Madrid: Editorial
síntesis, S.A., 1995.

IBGE - INSTITUTO BRASILEIRO DE GEOGRAFIA E ESTATISTICA, Censo Demográfico 2010. Disponível


em:<http://www.ibge.gov.br>. Acesso em: 15 de julho de 2014.
Dinâmicas Socioambientais na Amazônia Brasileira - 45

INSTITUTO NACIONAL DE METEREOLOGIA – INMET. Disponível em:<www.inmet.gov.br.

MENDONÇA, F. Geografia Socio-ambiental. In: Mendonça, F.; Kozel, S.. (Org.). Elementos de epistemologia da
geografia contemporanea. Curitiba: Editora da UFPR, 2002, v. 1, p. 121-144.

MONTEIRO C. A. de F. Teoria e Clima Urbano. São Paulo, IGEOG/USP, 1976.

MONTEIRO, C. A. de F. e MENDONÇA, F de A. (org). Clima Urbano: São Paulo: Contexto, 2003.

NASCIMENTO, T. S. Caracterização das condições atmosféricas no período de (1991-2007) em cidades que


compõem a calha do rio Solimões-Amazonas / Manaus - AM: UFAM, 2009.

RODRIGUES, E. A. Rede Urbana do Amazonas: Tefé como cidade média de responsabilidade territorial na
calha do Médio Solimões. Dissertação (Mestrado em Geografia) - Universidade Federal do Amazonas - UFAM.
Manaus - AM, 2011.

SANT´ANNA NETO, J.L. O clima urbano como construção social: da vulnerabilidade polissêmica das cidades
enfermas ao sofisma utópico das cidades saudáveis. Revista Brasileira de Climatologia, ano 7, v. 8, p. 45-60,
2011.

SILVEIRA, E. G. Clima Urbano: Análise do campo térmico e hidrométrico na cidade de Tefé AM. 2014. Trabalho
de Conclusão de Curso (Graduação em Geografia) Universidade do Estado do Amazonas.Tefé.
46 - João Cândido André da Silva Neto, Natacha Cíntia Regina Aleixo e Leonice Seolin Dias (Orgs)

Capítulo 3

CARACTERIZAÇÃO DA TEMPERATURA, pH E CONDUTIVIDADE ELÉTRICA DAS ÁGUAS


SUPERFICIAIS NA COMUNIDADE FLUTUANTE DO CATALÃO, IRANDUBA – AMAZONAS

Marcos Fabricio Leal Ramos7


Flávio Wachholz8

INTRODUÇÃO

A água é indispensável para vida, ou seja, todos os seres vivos precisam desse
elemento para viver e a possuem na sua estrutura física (BRUNI, 1994). A água possui
significativa importância também pelos seus usos antrópicos: navegação, irrigação, pesca,
consumo doméstico e industrial. Rebouças (2004) enfatiza que, desde o início da formação da
sociedade, a água ocupa um papel fundamental no desenvolvimento de grandes civilizações.
No entanto, os esforços e desafios da população são para armazenar e diminuir o
consumo de água, visto que a mesma vem se tornando um bem escasso e sua qualidade se
deteriora cada vez mais rápido (FREITAS et al., 2001). Cada uso da água apresenta seu
próprio requisito de qualidade; como o abastecimento urbano que exige alto padrão de
qualidade e a navegação não apresenta restrições (BORSOI; TORRES, 1997).
As preocupações com a qualidade deste recurso têm induzido uma série de medidas,
tanto governamentais, quanto sociais, com o objetivo de viabilizar a continuidade das diversas
atividades públicas e privadas, as quais têm como foco as águas doces, principalmente as que
atuam diretamente sobre a qualidade de vida da população (MACHADO, 2003).
A disponibilidade hídrica no Brasil é distribuída de maneira desigual pelo território
(TUNDISI, 2008). Segundo Machado (2003), cerca de 70% da água está localizada na região
Norte, a qual abriga aproximadamente 7% da população brasileira. Nessa região, encontra-
se a Bacia Amazônica, sendo o maior sistema fluvial do mundo, com 6.400.000 km² de
extensão, abrangendo nove países da América do Sul, e o Rio Amazonas, que chega a 6.762
km de comprimento (YAHN FILHO, 2005).

7
Licenciado em Geografia, Escola Normal Superior, Universidade do Estado do Amazonas.
8
Professor adjunto do curso de Geografia, Escola Normal Superior, Universidade do Estado do Amazonas.
Dinâmicas Socioambientais na Amazônia Brasileira - 47

Nesse sentido, a região Norte, normalmente é vinculada à disponibilidade de


recursos hídricos, devido ao enorme volume de águas doces concentradas (Rebouças, 2003).
Entretanto, para que essa água, natural no meio ambiente, se torne potável, é necessário
utilizar métodos de tratamento, como decantação, filtração e desinfecção. Logo, a
abundância deste recurso não é sinônimo de água potável em fartura.
A disponibilidade hídrica de água potável na Amazônia está diminuindo, e as
principais razões para a diminuição deste potencial devem-se ao crescente aumento da
deterioração dos recursos hídricos (NETA PINTO et al., 2009). Esse elevado crescimento na
degradação dos recursos hídricos é causado por várias fontes, dentre as quais se destacam
os efluentes domésticos e industriais (MELO et al., 2005). Outro fator está relacionado à
ineficiência dos sistemas de tratamento e distribuição de água nesta região. Em média, entre
40% a 60% da água tratada é perdida no percurso entre a captação e os domicílios, em
função de tubulações antigas, vazamentos, desvios clandestinos e tecnologias obsoletas
utilizadas nesta distribuição (MACHADO, 2003).
A degradação da qualidade da água refere-se a uma série de parâmetros físicos,
químicos e biológicos que exercem influência de maneira direta na qualidade deste recurso,
e está ligada a fatores naturais e antrópicos (RODRIGUES; PISSARRA, 2007).
O principal propósito para a exigência de qualidade da água potável é a proteção à
saúde pública, visto que o abastecimento deste recurso deve conter certos padrões de
qualidade, pois os principais agentes biológicos contaminantes descobertos nas águas são as
bactérias patogênicas, os vírus e os parasitas (D’AGUILA et al., 2000). Nesse sentido, o
principal desafio consiste em viabilizar a implantação de sistemas de tratamento de
efluentes urbanos e industriais, para e assegurar o pleno abastecimento de água potável à
população (MOREIRA, 1996).
A comunidade flutuante do Lago do Catalão, este localizado na planície de inundação
de confluência dos Rios Negro e Solimões (BRITO, 2006), que se enquadra no quesito de zona
rural, não possui rede de abastecimento de água, utilizando assim, as águas destes rios para
satisfazer suas necessidades domésticas e de higiene pessoal. É notável perceber nesta região
a contradição da escassez de água potável, visto que a mesma possui uma grande
48 - João Cândido André da Silva Neto, Natacha Cíntia Regina Aleixo e Leonice Seolin Dias (Orgs)

disponibilidade deste bem natural, contudo, sem tratamento adequado para sanar as
necessidades domésticas e de higiene pessoal dos moradores desta comunidade.
Deste modo, avaliou-se a qualidade da água da Comunidade do Catalão por meio das
variáveis: pH (potencial hidrogeniônico), índice que representa a acidez ou basicidade das
águas; condutividade elétrica, parâmetro que analisa a capacidade de condução de corrente
elétrica de sais dissolvidos e ionizados presentes na água; e temperatura, variável física que
contribui no sabor e odor das águas, bem como influencia fatores biológicos e químicos.
Buscou-se também relacionar a variável pH de acordo com os usos realizados pelos moradores
e legislação vigente (nº 357/05), do Conselho Nacional do Meio Ambiente (BRASIL, 2005).

Lago do Catalão

O Lago do Catalão localiza-se na planície de inundação do Rio Negro em


confluência com o Rio Solimões, fazendo parte do município de Iranduba, Amazonas. Este
lago apresenta a distância aproximada de 3.000 m do porto da Ceasa, na cidade de
Manaus, (LEITE et al., 2006), conforme Mapa 1.
A comunidade flutuante Lago do Catalão, situa-se nos furos 1 (Esquerda) e 2 (Direita)
ligando diretamente ao Rio Negro (Foto 1). A comunidade abriga aproximadamente 106
famílias distribuídas em moradias flutuantes nas duas entradas da comunidade.
A área está geologicamente inserida nos domínios da província de depósitos
Cenozoicos, constituída por sedimentos quaternários representados por aluviões de
origem recentes (holocênicas). Possui terras baixas, com uma série de lagos
interconectados que, conforme a variação do nível das águas, pode inundar ou até
mesmo secar completamente (BRITO, 2006).
Dinâmicas Socioambientais na Amazônia Brasileira - 49

Mapa 1. Localização da área de estudo.

Organização: Wachholz, 2014.

Foto 1. Entrada Esquerda (furo 2) e Direita (furo 1) da comunidade lago do Catalão.

Fonte: Wachholz, 2014.


50 - João Cândido André da Silva Neto, Natacha Cíntia Regina Aleixo e Leonice Seolin Dias (Orgs)

Devido às características citadas do lago, ocorre a entrada de solutos dos Rios


Solimões e Negro, condicionado pelo pulso de inundação. Assim, é de se esperar que o
balanço hidrológico dessas águas seja fortemente influenciado por essas duas magnitudes
hídricas e seus influxos, sendo descrito como uma mistura variável dessas duas fontes
hídricas distintas quimicamente (ALMEIDA, 2008).
A entrada de água no Lago do Catalão é determinada pelo pulso de inundação dos
rios, sendo a maior contribuição a do Rio Negro, em quase todos os períodos hidrológicos.
Por outro lado, o Rio Solimões, no período de cheia, é capaz de subir o suficiente para
transpor a região de várzea que fica a leste e ao sul do lago, e influenciar as características
do lago (ALMEIDA; MELO, 2009).
Segundo Bleich et al. (2014), no lago são encontrados ambientes de água branca,
água branca decantada e água mista. E devido a esta diversidade hídrica na região, ocorrem
alterações na coloração da água, ocasionados pela diferença de correnteza, pela decantação
e misturas de águas dos rios Solimões (águas brancas) e Negro (águas pretas).
Leite et al. (2006) enfatizam que o Lago do Catalão, como a maioria dos lagos de
várzea amazônicos, aumenta ou diminui sua magnitude de acordo com o nível dos rios
adjacentes e normalmente se liga ao Rio Solimões através de estreito canal, após dado início
ao período de enchente. Por outro lado, raramente fica desconectado do Rio Negro.

METODOLOGIA

A comunidade flutuante do Catalão depende da sazonalidade dos rios Negro e


Solimões, sendo essa característica considerada para a realização do trabalho de campo,
quanto à questão logística e para realização das análises.
Em relação à logística de campo foi necessária a utilização de uma voadeira de
pequeno porte (motor de popa 15HP) para a locomoção entre Manaus e a área de estudo,
com tempo de deslocamento de 15 a 20 minutos.
A presidente da comunidade foi entrevistada (12 de janeiro de 2014) a fim obter
informações como famílias residentes, usos da água superficial e acesso à água potável. No
reconhecimento da área de estudo (23 de fevereiro de 2014) foi verificada a distribuição
espacial das moradias e o despejo de efluente para definir a quantidade e localização dos
pontos amostrais (Mapa 2).
Dinâmicas Socioambientais na Amazônia Brasileira - 51

Mapa 2. Pontos amostrais na comunidade flutuante lago do Catalão e disposição das moradias flutuantes no
período de enchente.

Elaboração: Autores, 2014.

As medidas de temperatura (termômetro), pH (pHmetro) e condutividade elétrica


(condutivímetro) das águas superficiais ocorreram em períodos hidrológicos distintos. Sendo
nos dias 12 de abril e 27 de dezembro de 2014, consistindo, portanto nas cotas próximas a
máxima (27,31 metros) e a mínima (21,54 metros), respectivamente (Porto de Manaus,
2015). A amostragem foi realizada em 14 pontos amostrais sendo que, 1 a 6 correspondem
ao furo 1 (Distância 395 metros) e 7 a 14 correspondem ao furo 2 (Distância 995 metros).
Para a coleta do segundo campo foi acrescentado o ponto 15, que corresponde à entrada da
comunidade pelo Rio Negro.
52 - João Cândido André da Silva Neto, Natacha Cíntia Regina Aleixo e Leonice Seolin Dias (Orgs)

Os períodos hidrológicos foram identificados por Bittencourt e Amadio (2007), a


partir dos valores obtidos no Porto de Manaus, da seguinte forma: Enchente corresponde ao
nível do rio ascendente, com cotas entre 20 e 26 metros; Cheia, com cota igual ou superior a
26 metros; Vazante, quando o nível do rio encontra-se descendente, entre as cotas de 26 e 20
metros; Seca (menor nível fluviométrico), quando a cota é igual ou inferior a 20 metros. Diante
desse enquadramento, os períodos de coleta ocorreram na cheia e na enchente.

RESULTADOS

As áreas emersas do Lago do Catalão apresentam vegetação arbustiva a densa,


como representado na Foto 2. O regime hidrológico dos rios implica na inundação dessas
áreas no período da cheia e também deixam áreas expostas no período de menor nível
fluviométrico. No período da enchente, a vegetação apresentou-se com as mesmas
características nas margens, entretanto, devido ao menor nível do rio e maior exposição
das margens, foram constatadas erosões em decorrência da ocupação antrópica. Os
moradores utilizaram as margens para a criação de animais domésticos (gatos, cachorros,
porcos e galinhas) e depósito de lixo (Pontos 8 e 9). Ainda foi verificada a presença de dois
pesque-pague, localizados no braço 2, nos pontos 13 e 14 (Foto 3) e desmatamento para a
construção dos campos de futebol da comunidade (Pontos 4 e 6), presença da serraria e
troncos na água, estes utilizados na sustentação das moradias flutuantes (Ponto 4).

Foto 2 - Presença da vegetação arbórea densa próxima às margens.

Fonte: Wachholz, 2014.


Dinâmicas Socioambientais na Amazônia Brasileira - 53

Foto 3 - Presença de pesque-pague próximo às margens.

Fonte: Wachholz, 2014.

Vale ressaltar que, visualmente, o fluxo do lago se apresentou lêntico durante os


trabalhos de campo realizados. Diante disso, no período da cheia ocorre um possível
aumento da concentração de nutrientes na água, favorecendo a presença de macrófitas
aquáticas em 11 pontos amostrais (1, 2, 3, 4, 5, 6, 8, 9, 10, 12 e 13). Próximo ao Ponto 5,
correspondente à Foto 4, ficou destacado a presença acentuada de macrófitas aquáticas e
também foi observada a presença de esgoto e lixo doméstico. Já na enchente, a vegetação
aquática foi notada em apenas três pontos amostrais (2, 12 e 13).

Foto 4 - Macrófitas aquáticas próximas às moradias flutuantes.

Fonte: Wachholz, 2014.


54 - João Cândido André da Silva Neto, Natacha Cíntia Regina Aleixo e Leonice Seolin Dias (Orgs)

As variáveis temperatura, pH e condutividade elétrica apresentaram diferenças


acentuadas nos períodos hidrológicos (Tabela 1). As maiores médias e desvio-padrão das
variáveis foram encontrados no período de enchente. No entanto, no período de cheia, os
valores temperatura e pH foram mais próximos dos resultados encontrados por Brito (2006)
nos quatro períodos hidrológicos. A condutividade elétrica nos períodos de amostragem
variou significativamente, isto se deve possivelmente ao pulso intenso de inundação e
vazante encontrado na região.

Tabela 1: Média e desvio padrão das variáveis nesse estudo e na referência

Cheia Enchente Brito (2006)*


Variáveis
(12/04/2014) (27/12/2014)

Temperatura (°C) 31,5±0,6 34,0±0,65 30,9±1,1

pH 6,4±0,14 7,6±0,15 6,8±0,4

Condutividade elétrica (µS/cm) 12,1±4,3 30,7±23,7 61,5±30,4


* Valores obtidos nos quatro períodos hidrológicos em 2004-2005.

Elaboração: Autores, 2014.

No primeiro trabalho de amostragem, dia 12 de abril de 2014, a temperatura do ar


variou entre 26,4 e 33,2 °C (dado diário da estação 82331 do INMET, de Manaus-AM) e a
coleta foi realizada entre 9h33min e 11h23min. Na segunda amostragem, dia 27 de
dezembro de 2014, a temperatura do ar variou entre 33,0 e 36,6 °C (dados medidos in loco)
e a coleta foi realizada entre 10h46min e 12h40min. Cabe ressaltar que a umidade do ar
nesta segunda amostragem apresentou-se entre 55,0 e 66,7% e a velocidade média do
vento foi de 2,9 km/h.
A temperatura da água no período de cheia apresentou-se entre 30,8 e 33,0 °C
(Gráfico 1), sendo as maiores as temperaturas obtidas nos pontos 7, 9, 10, 12 e 13 (>31,5
ºC), localizados próximos às margens do segundo furo, o qual possui maior número de
moradias flutuantes. O ponto amostral 13, localizado próximo a um dos pesque-pague da
comunidade, foi o que apresentou a maior temperatura da água, a saber, 33,0 °C. Segundo
Oliveira e Goulart (2008), a temperatura em ambientes lênticos influencia diretamente a
disponibilidade de oxigênio na água, logo, a vida de espécies aquáticas.
Dinâmicas Socioambientais na Amazônia Brasileira - 55

Gráfico 1: Temperatura da água nos pontos amostrais.

enchente cheia
35

34

33
°C
32

31

30
1 2 3 4 5 6 7 8 9 10 11 12 13 14 15
Pontos amostrais

Fonte: Ramos, 2015.

No período de enchente, a temperatura da água variou entre 32,7 e 34,6 °C


(Figura 7), sendo os maiores valores nos pontos 9, 10, 12, 13 e 14 (≥34 ºC), localizados
próximos às margens do Furo 2. As maiores temperaturas foram obtidas nos pontos 12, 13
e 14 (34,6 °C, 34,1 °C e 34,1 °C, respectivamente), área próxima aos dois pesque-pague
existentes na comunidade. Esse resultado pode estar relacionado à presença desses
pesque-pague (Foto 3) e à maior aglomeração de flutuantes encontrados no local (19
moradias flutuantes, Foto 4).
O pH no período de cheia variou entre 6,2 e 6,7 (Gráfico 2), onde os pontos 9, 10, 11,
12, 13, e 14 (≥6,4) registraram os valores mais elevados. Cabe ressaltar que o ponto amostral
12 registrou maior valor 6,7, possivelmente, devido à extensa faixa de macrófitas aquáticas.
Entretanto, Almeida (2008) destaca que é notável perceber que a comunidade
apresenta águas pretas em ambos os furos, por serem afluídos pelo Rio Negro, com pH entre
4,8 a 5,1, mas pode receber influência do Rio Solimões, este, de águas brancas com pH
próximo ao neutro 6,7 a 6,9. Tendo em vista que a coleta foi realizada no período da cheia,
o lago se liga também com o Rio Solimões e passa a ser afluído por ambos os rios.
Na enchente, o pH variou entre 7,3 a 7,8, sendo que os pontos amostrais 5, 7, 8, 9, 10,
12, 13, 14 e 15 foram os que registraram maiores valores (≥7,6), possivelmente, devido a
presença de lixo doméstico nas margens e do despejo de efluentes no lago e menor nível do rio,
bem como maior aglomeração das moradias. Esses resultados mostraram-se contrários ao
esperado de águas pretas e brancas, tendo em vista que foram superiores segundo a literatura.
56 - João Cândido André da Silva Neto, Natacha Cíntia Regina Aleixo e Leonice Seolin Dias (Orgs)

Gráfico 2. Variação de pH os pontos amostrais.

enchente cheia
8,0

7,5

pH 7,0

6,5

6,0
1 2 3 4 5 6 7 8 9 10 11 12 13 14 15
Pontos amostrais

Fonte: Ramos, 2014.

No entanto, de acordo com os usos da comunidade (higiene pessoal, saneamento


doméstico, recreação e pesca), as águas enquadram-se satisfatoriamente nas classes 1 e 2,
com pH variando de 6 a 9, da resolução CONAMA 357/05 (BRASIL, 2005). Azevedo (2006)
enfatiza que valores dentro do padrão CONAMA facilitam o processo de tratamento, mas
dependem das demais variáveis, as quais podem requerer a utilização de equipamentos
mecânicos e a aplicação de produtos químicos para se chegar aos padrões de potabilidade
exigidos pela legislação.
A condutividade elétrica na cheia variou entre 10 a 20 µS/cm, como demonstrado
no Gráfico 3. Segundo Almeida (2008), o Rio Negro, o maior representante de águas pretas
na Amazônia, tem suas águas originadas nos campos pré-cambrianos, na região norte da
bacia amazônica, e possui baixa quantidade de nutrientes e íons, apresentando
condutividade elétrica entre 9 e 10 µS/cm. Já o Rio Solimões, de águas brancas, devido à alta
quantidade de sólidos suspensos, fato esse que define sua coloração barrenta, é rico em
nutrientes e íons, possuindo condutividade elétrica entre 64 e 75 µS/cm.
Nesse sentido, os resultados da cheia demonstram características próximas a águas
pretas, o que se deve ao maior número de amostras (11 pontos) que estavam dentro do padrão
para águas pretas. Entretanto, valores superiores a 10µS/cm, como nos pontos 9, 10 e 12 (20
µS/cm), devem-se, provavelmente, ao despejo mais intenso de efluentes no local, tendo em
vista que esses pontos estão localizados no Furo 2, área com maior número de moradias.
Dinâmicas Socioambientais na Amazônia Brasileira - 57

Gráfico 3. Variação de condutividade elétrica.

.
enchente cheia

80
70
60
50
µS/cm 40
30
20
10
0
1 2 3 4 5 6 7 8 9 10 11 12 13 14 15
Pontos amostrais

Fonte: Ramos, 2014.

Na enchente, a condutividade elétrica variou entre 0 e 70 µS/cm, onde os pontos


amostrais 1, 2, 3, 4, 5 e 6 apresentaram maiores valores (≥60 µS/cm). Isso se deve,
provavelmente, ao alto índice de decomposição de matéria orgânica no Furo 1, à entrada de
esgoto e à presença de duas serrarias localizadas na comunidade (Ponto 4) nesse período,
devido à descida no nível d’água propiciar a utilização das margens.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Os resultados obtidos neste estudo demonstraram que o avanço das ações


antrópicas tem causado influência direta no equilíbrio ecológico dos ambientes aquáticos,
assim como foi verificado por Almeida (2008). As variáveis temperatura, pH e condutividade
elétrica registraram maiores valores em áreas de maior número de moradias, Furo 2 e no
período da enchente (dezembro).
Os valores das variáveis encontrados na enchente foram mais elevados,
possivelmente, pelo menor nível das águas na comunidade e despejo intenso de efluentes
domésticos no lago. Assim, os valores mais baixos do período da cheia podem estar
relacionados a maior influência do Rio Negro sobre o lago.
58 - João Cândido André da Silva Neto, Natacha Cíntia Regina Aleixo e Leonice Seolin Dias (Orgs)

O pH das águas da comunidade está adequado aos usos realizados e à legislação


CONAMA 357/05. No entanto, necessita-se realizar maior número de análises e variáveis
para verificar a qualidade das águas desta comunidade, visto que as utilizam nas
necessidades domésticas.

AGRADECIMENTOS
À Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado do Amazonas (FAPEAM) pela concessão da
Bolsa de Iniciação Científica ao primeiro autor.

REFERÊNCIAS
ALMEIDA, F. F de. Fitoplâncton de um lago de inundação amazônico (lago catalão, Amazonas-Brasil):
estrutura da comunidade, flutuações espaciais e temporais. 2008. 79 f. Dissertação (Mestrado em Biologia
Tropical e Recursos Naturais) – Universidade Federal do Amazonas, Instituto Nacional de Pesquisas da
Amazônia, Manaus, 2008.

ALMEIDA, F. F. de; MELO, S. Considerações limnológicas sobre um lago da planície de inundação amazônica
(lago Catalão–Estado do Amazonas, Brasil). Acta Scientiarum. BiologicalSciences, v. 31, n. 4, p. 387-395, 2009.

AZEVEDO, R. P. de. Uso de água subterrânea em sistema de abastecimento público de comunidades na várzea
da Amazônia central. Acta Amazônica, v. 36, n. 3, p. 313-320, 2006.

BITTENCOURT, M. M.; AMADIO, S. A. Proposta para identificação rápida dos períodos hidrológicos em áreas de
várzea do rio Solimões-Amazonas nas proximidades de Manaus. Acta Amazônica, v. 37, n. 2, p. 303-308, 2007.

BLEICH, M. E.; PIEDADE , M. T. F.; KNOPKI, P. B.; CASTRO, N. G. D. de; JATI, S. R.; SOUSA, R. N. de. Influência das
condições do habitat sobre a estrutura de herbáceas aquáticas na região do Lago Catalão, Manaus, AM. Acta
Amazônica, v. 44, n. 4, p.481-490, 2014.

BORSOI, Z. M. F.; TORRES, S. D. A. A política de recursos hídricos no Brasil. Revista do BNDES, v. 4, n. 8, p. 143-166, 1997.

BRASIL Conselho Nacional do Meio Ambiente - CONAMA Resolução 357/2005, Enquadramento do Corpos
Hídricos Superficiais no Brasil. Governo Federal, Brasília. Publicada no DOU n 53, de 18 de março de 2005,
Seção 1, p. 58-63.

BRITO, J. G de. Influência do pulso de inundação sobre variáveis limnológicas de um lago de várzea da
Amazônia Central, lago Catalão. 2006. 191 f. Dissertação (Mestrado em Biologia Tropical e Recursos Naturais)-
Universidade Federal do Amazonas, Instituto Nacional de Pesquisas da Amazônia, Manaus, 2006.

BRUNI, J. C. A água e a vida. Tempo Social, Revista de Sociologia da USP, São Paulo, v. 5, n. 1-2, p. 53-65, 1994.

D’AGUILA, P. S; ROQUE, O. C. da C.; MIRANDA C. A. S.; FERREIRA, A. P. Avaliação da qualidade de água para
abastecimento público do Município de Nova Iguaçu. Caderno de Saúde Pública, v. 16, n. 3, p. 791-798, 2000.

FREITAS, M. B.; BRILHANTE, O. M.; ALMEIDA, L. M. Importância da análise de água para a saúde pública em
duas regiões do Estado do Rio de Janeiro: enfoque para coliformes fecais, nitrato e alumínio. Caderno de Saúde
Pública, v. 17, n. 3, p. 651-660, 2001.

INMET. Dados históricos. Disponível em: <http://www.inmet.gov.br/portal/index.php?r=bdmep/bdmep>


Acesso em: 15 de mar. 2015.
Dinâmicas Socioambientais na Amazônia Brasileira - 59

LEITE, R. G.; SILVA, J. V. V. da; FREITAS, C. E. Abundância e distribuição das larvas de peixes no Lago Catalão e
no encontro dos rios Solimões e Negro, Amazonas, Brasil. Acta Amazônica, v. 36, n. 4, p. 557-562, 2006.

MACHADO, C. J. S. Recursos hídricos e cidadania no Brasil: limites, alternativas e desafios. Ambiente e


Sociedade, v. 6, n. 2, p. 121-136, 2003.

MELO, E. G. F.; SILVA, M. S. R.; MIRANDA, S. A. F. Influência antrópica sobre águas de igarapés na cidade de
Manaus-Amazonas. Caminhos de Geografia, v. 5, n. 16, p. 40-47, 2005.

MOREIRA, T. Saneamento básico: desafios e oportunidades. Revista do BNDES, Rio de Janeiro, v. 3, n. 6, 1996.

NETA PINTO, A. G.; HORBE, A. M. C.; SILVA, M. do S. R. da; MIRANDA, S. A. F.; PASCOALOTO, D.; SANTOS, H. M.
da C. Efeitos da ação antrópica sobre a hidrogeoquímica do rio Negro na orla de Manaus/AM. Acta amazônica,
v. 39, n. 3, p. 627-638, 2009.

OLIVEIRA, E. F. de; GOULART, E. Distribuição espacial de peixes em ambientes lênticos: interação de


fatores. Acta Scientiarum. BiologicalSciences, v. 22, p. 445-453, 2008.

PORTO DE MANAUS. Nível hoje. Disponível em: http://www.portodemanaus.com.br/?pagina=nivel-do-rio-


negro-hoje>. Acesso em: 12 jan. 2015.

REBOUÇAS, A. da C. Água no Brasil: abundância, desperdício e escassez. Bahia análise & dados, v. 13, p. 341-345, 2003.

REBOUÇAS, A. da C. Uso inteligente da água. São Paulo: Escrituras Editora, 2004. 207 p.

RODRIGUES, F. M.; PISSARRA, T. C. T. Monitoramento hidrológico de uma bacia hidrográfica com diferentes
usos do solo na região de Taquaritinga, Estado de São Paulo. In: Simpósio Brasileiro de Recursos Hídricos, 17.,
2007,São Paulo. Anais...São Paulo: ABRH, 2007, p. 01-11.

TUNDISI, J. G. Recursos hídricos no futuro: problemas e soluções. Estudos avançados, v. 22, n. 63, p. 7-16, 2008.

YAHN FILHO, A. G. O conceito de bacia de drenagem internacional no contexto do tratado de cooperação


amazônica e a questão hídrica na região. Ambiente & Sociedade, v. 8, n. 1, 2005.
60 - João Cândido André da Silva Neto, Natacha Cíntia Regina Aleixo e Leonice Seolin Dias (Orgs)

Capítulo 4

MORFODINÂMICA NO RIO SOLIMÕES E SUAS IMPLICAÇÕES PARA TABATINGA -AM

Francisco Gleison de Souza Rodrigues9

INTRODUÇÃO

Assentado sobre uma complexa estrutura geológica de origem sedimentar capeada


pela formação que leva seu nome, o Rio Solimões apresenta vários processos que
caracterizam sua dinâmica fluvial, tais como: erosão vertical, erosão lateral, transporte de
sedimentos e deposição de carga do leito. Ao longo do seu canal, podem ser encontradas
diversas estruturas morfológicas ilhas, praias, terraços, barras arenosas longitudinais,
paranás e paleocanais, os quais se encontram sob a influência do regime hídrico que, no
município de Tabatinga, no estado do Amazonas, é caracterizado por um período de cheia,
de janeiro a junho, seguido por uma vazante recorrente de julho a dezembro.
O Rio Solimões apresenta cotas que podem variar entre 100 e 1350 centímetros, de
acordo com a Companhia de Pesquisa de Recursos Minerais – CPRM (2015). Em associação
ao exposto, também há variações significativas nos volumes de água e sedimentos que
fluem constantemente no canal fluvial e influenciam diretamente na constituição das
paisagens que margeiam o rio. Ressalta-se ainda, que as estruturas morfológicas
relacionadas ao canal fluvial estão sob a ação de fatores diversos: hidrodinâmica, tectônica,
litologia, clima e ações antrópicas.
O presente texto tenta caracterizar a morfodinâmica do Rio Solimões, no trecho em
que está assentada a sede do município de Tabatinga, na região da tríplice fronteira: Brasil,
Colômbia e Peru, destacando as implicações para a população que habita as áreas atingidas.
As pessoas que moram nestas áreas estão sujeitas a situações de riscos que, por vezes,
foram desencadeadas a partir de ações praticadas pelos próprios residentes, neste sentido,
Teixeira (2010, p. 89) comenta que “Com a alteração do meio físico sem o pleno
conhecimento de suas características geológicas, geotécnicas, adequabilidades e limitações

9
Mestre em Geografia, professor assistente do Curso de Geografia da Universidade do Estado do Amazonas.
Dinâmicas Socioambientais na Amazônia Brasileira - 61

naturais, ocorre o surgimento de áreas com riscos geológicos”. A compreensão das


implicações para os moradores de Tabatinga que se encontram sob os efeitos da dinâmica
fluvial relaciona-se ao processo histórico de ocupação da região amazônica.

No estado do Amazonas, as áreas suscetíveis a tal tipo de riscos estão associadas,


principalmente, à ocupação das margens da rede de drenagem, sujeitas a
inundações e ao solapamento dos taludes dos canais fluviais, uma vez que
praticamente todos os municípios amazonenses possuem suas sedes localizadas
nas margens dos grandes rios (Amazonas, Negro, Solimões, Madeira, Purus, Juruá,
Japurá e Javari). (TEIXEIRA, 2010, p. 89).

A metodologia da pesquisa foi constituída de ações que visaram compreender a


temática proposta de forma mais profunda, apreender os processos envolvidos e identificar
as implicações para a sede de Tabatinga. Sendo assim, fez-se uma revisão bibliográfica de
autores que tratam de temas que se relacionam com investigação realizada, a saber,
geomorfologia fluvial e terras caídas, bem como a pesquisa de dados sobre o clima regional,
além de procurar estabelecer correlações entre a pluviosidade e a ocorrência dos processos
erosivos seguidos de movimentos de massas. Para tanto, utilizou-se três imagens do Google
Earth relativas aos anos de 2002, 2012 e 2013, visando uma análise comparativa, assim
como a identificação de elementos constituintes da morfodinâmica.
Foram realizadas pesquisas de campo associadas a diferentes períodos climáticos da
região (chuvoso e com redução no volume de precipitações), e relativas também ao período de
cheia e vazante do Rio Solimões para coleta de dados e realização de contato visual com o
objeto de estudo, nos quais ocorreram: observação e análise in loco das estruturas morfológicas
presentes no Rio Solimões e registros fotográficos. Ademais, analisou-se os dados obtidos em
campo para a identificação dos processos envolvidos e dos elementos constituintes das
estruturas morfológicas e as prováveis implicações para o município de Tabatinga.

Elementos da dinâmica fluvial do Rio Solimões

Pensar um rio como um sistema favorece o entendimento das relações entre seus
elementos constituintes, estabelecidas através de fatores desencadeadores de processos
que culminam na formação, destruição e/ou remodelação de estruturas presentes no canal
fluvial. A esse respeito, Carneiro (2009, p. 18) esclarece que “O sistema fluvial abarca e/ou
resulta de uma interação de fatores que condicionam o desenvolvimento dos processos e
62 - João Cândido André da Silva Neto, Natacha Cíntia Regina Aleixo e Leonice Seolin Dias (Orgs)

das formas dentro dos canais”. Tal afirmação é pertinente quando se observa o Rio Solimões
em Tabatinga. Erosão, transporte e deposição de sedimentos somam uma gama de
processos que determinam as características da dinâmica fluvial e morfologia constituintes
do próprio rio. É claro que fatores relacionados à estrutura geológica e ao clima pretérito e
atual são fundamentais no desencadeamento de tais processos.
A erosão fluvial apresenta-se como fundamental à leitura dos processos atuantes
nas estruturas das margens e leitos dos rios, já que se apresenta como promotora de
intensas e constantes modificações ao longo do perfil longitudinal. Ela é, ainda, responsável
pelo desgaste lateral basal dos taludes desestabilizando-os e acarretando movimentos de
massa (TEIXEIRA, 2010).
O transporte no leito de um rio pode ser realizado de três formas, de acordo com o
tipo de material: sedimentos produzidos por intemperismo químico compõem a carga
dissolvida presente no transporte em solução; quando o material mobilizado apresenta
dimensões maiores, no caso da argila, ocorre o transporte em suspensão; e quando as
partículas apresentam granulometria estabelecida entre a areia, passando por seixos e até
matacões o transporte, é denominado de rastejamento, rolamento e/ou saltação
(WICANDER; MONROE, 2009). Observa-se que

Os rios podem depositar sua carga em qualquer ponto ao longo de seu curso, mas a
maior parte do material é depositada nas seções onde o gradiente do canal é
pequeno ou onde há mudanças bruscas no gradiente e na profundidade do canal,
bem como na velocidade do escoamento. (NOVO, 2008, p. 230)

Anualmente, o volume de água e sedimentos oriundos das vertentes andinas que


fluem no Solimões sofrem alterações por conta das mudanças periódicas no seu regime.
Durante a vazante, que ocorre no segundo semestre, uma quantidade maior de sedimentos
é aportada no leito e nas margens por conta da redução do seu gradiente, desenvolvendo
um padrão ramificado em algumas áreas, caracterizado pela ocorrência de meandros, ilhas e
diversos talvegues (NOVO, 2008). Tal situação, associada ao condicionamento imposto pela
estrutura geológica da bacia sedimentar, faz com que o canal apresente seções mais largas e
rasas ou promova o estreitamento e o aprofundamento do mesmo ao longo do seu perfil
longitudinal. Nesse sentido, constata-se que os processos erosivos nas margens e no leito
estão intimamente ligados à dinâmica hidráulica do rio.
Dinâmicas Socioambientais na Amazônia Brasileira - 63

É interessante notar que, quando um rio, como o Solimões, reduz seu gradiente por
conta da vazante anual ou do alargamento do canal, a carga depositada na forma de bancos
de sedimentos no leito pode originar ilhas, elevando o número de canais, e assim, impor um
novo gradiente, pois o fluxo passa a se deslocar por canais mais estreitos.

Sinuosidade do Rio Solimões em Tabatinga

O Solimões apresenta estruturas morfológicas que se encontram em constantes


modificações como decorrência de sua intensa dinâmica no trecho denominado de Tríplice
Fronteira, no qual está localizada a cidade de Tabatinga. Uma análise completa deveria levar
em consideração uma série de questões relacionadas a dados que, infelizmente, no contexto
atual, não estão acessíveis para quem reside na área, pois problemas de acesso à informação
por conta da capacidade limitada de transferência de dados na internet compõem a
realidade da pesquisa em Tabatinga.
Sendo assim, pretende-se apresentar a dinâmica fluvial do Solimões, na perspectiva
de uma escala temporal de 11 anos, através de imagens do Google Earth para os anos de
2002, 2012 e 2013 e demonstrar que os processos atuantes promovem implicações na sede
do município de Tabatinga, com reflexos para a população residente na área e para o poder
público municipal e estadual.
Deve-se atentar ao fato de que, ao se observar os aspectos da dinâmica do Rio
Solimões em Tabatinga, é imprescindível a identificação de algumas estruturas morfológicas
no leito. Portanto, analisando a Imagem de Satélite 1, ressalta-se que:
 a ilha ao centro chama-se Santa Rosa e pertence ao Peru;
 a oeste e sudoeste de Santa Rosa está a margem direita do Solimões também
pertencente ao Peru;
 ao norte da ilha de Santa Rosa há um paraná do Solimões, que liga o canal
principal ao canal secundário nos períodos de cheia do rio;
 ao sul da ilha de Santa Rosa encontra-se o estreito de Tabatinga.
64 - João Cândido André da Silva Neto, Natacha Cíntia Regina Aleixo e Leonice Seolin Dias (Orgs)

Imagem de Satélite 1 – Canal principal e canal secundário do Rio Solimões em 2002.

Fonte: Google Earth, 2014.

Observa-se que, no ano de 2002 (Imagem de Satélite 2), a área no sudoeste da ilha de
Santa Rosa, no Peru, localizada à frente de Tabatinga, no Brasil, ainda não sofria processo
erosivo. Destaca-se, porém que o fluxo do Paraná do Solimões, localizado ao norte da ilha, nos
períodos de cheia, pressiona o canal secundário contra a margem esquerda do rio, na qual se
verifica uma leve sinuosidade, onde se encontram as cidades de Letícia (CO) e Tabatinga, BR.

Imagem de Satélite 2 – Canal principal e canal secundário do Rio Solimões em 2012.

Fonte: Google Earth, 2014.


Dinâmicas Socioambientais na Amazônia Brasileira - 65

No entanto, para o ano de 2012 (Imagem de Satélite 3), instalou-se processo de


sinuosidade do canal principal, relativo ao padrão de meandramento (GUERRA; GUERRA,
2010) do Solimões, em direção à ilha de Santa Rosa, com reflexos para a sede do município
de Tabatinga. Vale enfatizar que, na margem a sudoeste da ilha, ocorreu processo avançado
de erosão, já na margem oposta, observou-se a formação de um banco arenoso, estrutura
relacionada à realização de deposição sedimentar.

Imagem de Satélite 3 – Canal principal e canal secundário do Rio Solimões em 2013.

Fonte: Google Earth, 2014.

No ano seguinte, em 2013 (Imagem de Salélite), a barra arenosa encontrava-se


submersa no rio e o processo erosivo em Santa Rosa foi acentuado. Essa situação
caracteriza a configuração de sinuosidade no leito do rio que se prolonga à Tabatinga, com
sede assentada sobre terraços fluviais.
O canal secundário e o canal principal se encontram ao sul da ilha de Santa Rosa,
justamente no estreito de Tabatinga, no qual o fluxo do canal principal exerce pressão sobre
o fluxo do canal secundário. A água e os sedimentos do canal secundário são pressionados
contra a margem esquerda na qual está assentada a sede de Tabatinga sobre estruturas na
forma de terraços.
66 - João Cândido André da Silva Neto, Natacha Cíntia Regina Aleixo e Leonice Seolin Dias (Orgs)

O material sedimentar, que compõe os terraços, pertence à formação Solimões e se


apresenta em fase de consolidação, tornando-se suscetível à pressão e ao atrito exercidos
pela força da água e da carga transportada. Deve-se atentar ao fato de que o considerável
estreitamento do canal do Solimões eleva a pressão sobre o fluxo, e, consequentemente, a
velocidade do mesmo, pressionando-o e intensificando o atrito da água e dos sedimentos
carreados contra as margens. Esse molhe hidráulico, gerado no encontro dos fluxos dos dois
canais, desestabiliza os terraços e, durante o período da vazante, há o alívio da pressão
exercida anteriormente, o que desencadeia movimentos de massas.

Implicações para Tabatinga

Os terraços são estruturas componentes da morfologia fluvial sujeitos a ação de


variados processos erosivos, ocasionados por diversos fatores. Esses, por sua vez, promovem
constantes e intensos deslocamentos de sedimentos ao longo das margens do Rio Solimões,
conhecidos regionalmente por Terras Caídas. Na verdade, as Terras Caídas são um conjunto
de diferentes movimentos de massa, representados por abatimentos de solos (Foto 1),
deslizamentos (Foto 2), escorregamentos, desmoronamentos e quedas de blocos (IGREJA;
CARVALHO; FRANZINELLI, 2010). Cada tipo de movimento será gerado em função dos
processos erosivos atuantes na área, são eles que também determinam a existência de
periodicidade ou não, como também a intensidade de cada ocorrência.

Foto 1 – Abatimentos de solos em 2014. Foto 2 - Deslizamentos nos terraços em 2014.

Fonte: Autor, 2014. Fonte: Autor, 2014 .

O terraço no bairro da Comara, em Tabatinga, já passou por mudanças no tocante à


retirada da cobertura vegetal nativa, ocupação residencial e recreativa, construção de
valas para escoamento de efluentes domésticos, abrigando mais recentemente a usina de
asfalto alocada na cidade. As movimentações de massas, denominadas de Terras Caídas, já
Dinâmicas Socioambientais na Amazônia Brasileira - 67

ocasionaram a destruição de diversas casas e, conforme os processos erosivos avançam, a


população abandona as moradias (Fotos 3 e 4) e segue construindo novas residências na
direção oposta ao rio. O acesso dos pescadores que moram no bairro à área é realizado
por meio de canoas, o que o torna perigoso e até mesmo inviável, pois há o risco
constante da ocorrência de algum movimento com proporções desastrosas, já que as
margens se tornam instáveis, além das constantes alterações das trilhas de acesso à
comunidade nas vertentes por conta dos deslocamentos de material sedimentar.

Foto 3 – Casa abandonada, 2014. Foto 4 – Casa destruída na Comara, 2014.

Fonte: autor, 2014. Fonte: autor, 2014.

Outra questão a ser considerada é a perda de uma área que apresenta duas
vocações para a população local: atração turística e recreação, uma vez que residentes da
Comara e turistas, principalmente colombianos, que chegam à Tabatinga, visitam o terraço
em função da paisagem cênica, por meio da qual se tem uma visão privilegiada do Rio
Solimões com a floresta amazônica peruana ao fundo. Contudo, com a ocorrência da erosão
associada aos movimentos de massa, a área de acesso está perdendo espaço para o próprio
rio. A população da cidade de Tabatinga, que outrora se divertia na área, afastou-se, pois, os
clubes locais fecharam por conta da ocorrência dos movimentos de massas e a defesa civil
isolou o local para evitar acidentes.
Com a continuidade do processo erosivo na ilha peruana de Santa Rosa é possível
que o molhe hidráulico se desloque alguns metros para montante, passando a atuar sobre o
fluxo do canal secundário. Isso desencadearia novos processos erosivos na área localizada
próxima à atual fábrica de asfalto (Foto 5), e da pista do aeroporto internacional de
Tabatinga, como pode-se observar na Mapa 1. Nessa figura, que não está na escala original,
também se encontra em destaque a área que sofre a ação da erosão lateral do Solimões,
associada a outros processos erosivos e desencadeadores dos movimentos de massas.
68 - João Cândido André da Silva Neto, Natacha Cíntia Regina Aleixo e Leonice Seolin Dias (Orgs)

Foto 5 – Área com processo erosivo e fábrica de asfalto ao fundo à direita

Fonte: Lopes, 2014.

Mapa 1 – Área no bairro da Comara que apresenta processos erosivos e de movimentos de massa.

Fonte: Lopes, 2014.


Dinâmicas Socioambientais na Amazônia Brasileira - 69

No que concerne aos reflexos da morfodinâmica do Solimões para a sede de


Tabatinga, verificou-se que, no ano de 2014, surgiram novos pontos com abatimentos de
solos no perímetro urbano. Na área em questão fica a montante dos terraços da Comara e
sobre ela está assentada a estação da Companhia de Saneamento do Amazonas - COSAMA, a
qual realiza captação, tratamento, armazenamento e distribuição de água para a sede (Foto
6). Sendo assim, há uma estrutura fixa que exerce forte pressão vertical na margem que se
associa à pressão horizontal promovida pelo rio nos períodos de cheia, acentuando a
desestabilização do pacote sedimentar e promovendo o surgimento das fendas (Foto 7).
Apesar de incipiente, é possível identificar a ocorrência dos abatimentos de solos. Tal
situação poderá gerar riscos aos navegantes e prejuízos ao setor público e à população, caso
ocorra um evento de movimentação de massa que desloque a estrutura de tanques em
direção ao rio, pois o abastecimento com água tratada poderia ser comprometido.

Foto 6 – Tanque da COSAMA, 2014. Foto 7 – Abatimentos na COSAMA, 2014.

Fonte: Autor, 2014. Fonte: autor, 2014.

Em Tabatinga, há ocorrência de igarapés confluindo com o Solimões, formando áreas


de intensa dinâmica morfológica alimentada pela periodicidade das cheias e vazantes, nas quais,
durante a vazante do grande rio, as águas dos igarapés chegam à confluência, mas durante os
períodos de cheias, as águas do Solimões adentram nos igarapés. Sendo assim, é perceptível
que as áreas de confluência são sensíveis às ações antrópicas em função da instabilidade
decorrente da variação do fluxo de energia associado à movimentação das águas.
Dois igarapés merecem atenção: Igarapé Santo Antônio e Igarapé Dom Pedro, pois
os dois apresentam confluências em áreas muito próximas, uma distância de 50 metros os
separa, e ambos se localizam nas imediações do Porto das Catraias, local de intenso
movimento de pessoas, mercadorias, veículos terrestres embarcações, além da presença de
alguns flutuantes e diversos comércios e hotéis.
70 - João Cândido André da Silva Neto, Natacha Cíntia Regina Aleixo e Leonice Seolin Dias (Orgs)

O Igarapé Santo Antônio é um elemento físico da paisagem, sendo utilizado como


limite fronteiriço entre as cidades de Tabatinga e Letícia. Na confluência do igarapé com o
Solimões (Foto 8) há a formação de um dique marginal no qual está assentada parte do
bairro Guadalupe, em casas de palafita (Foto 9) que sofrem anualmente com o período de
cheia. A população residente, periodicamente, eleva o piso das casas conforme o volume das
águas sobe, e retorna à posição original quando se inicia a vazante do Solimões. Não há
saneamento básico no bairro e os residentes descartam os resíduos no leito do igarapé, que
se acumulam no local de encontro entre suas águas e as do Solimões, a jusante do bairro.

Foto 8 - Confluência do igarapé/rio, 2014. Foto 9 - Vila Guadalupe em 2014.

Fonte: Autor, 2014. Fonte: Autor, 2014.

Já a confluência do Igarapé Dom Pedro com o Solimões está encoberta por uma
estrutura rígida, construída (Foto 10) pela prefeitura, para facilitar o acesso das pessoas aos
barcos que atracam na área denominada de Porto das Catraias. Ressalta-se que no local há
uma ponte (Foto 11) que desmorona anualmente conforme se eleva o fluxo de energia da
corrente local no período de cheia, como demonstra a Foto 12. Nessa área, em particular, é
possível identificar: pontos de mototáxi, comércio de produtos diversos, hotéis e bares.
Percebe-se, na Figura 12, a existência de uma ponte improvisada de madeira que interliga as
margens do igarapé, facilitando o deslocamento de pessoas e mercadorias.
O constante redirecionamento do fluxo de água e energia promovido pela ação
oscilante entre o Rio Solimões e o Igarapé Dom Pedro promove a desestabilização da
construção realizada pelo poder municipal, fazendo a mesma ruir. Incrivelmente, a gestão
municipal anterior canalizou justamente a confluência do igarapé com o Rio Solimões, e tal
fato intensificara os processos erosivos presentes na área.
Dinâmicas Socioambientais na Amazônia Brasileira - 71

Foto 10 – Porto das Catraias.

Fonte: Autor, 2014.

Foto 11 - Confluência na vazante, 2014. Foto 12 – Confluência na cheia, 2014.

Fonte: Autor, 2014. Fonte: Autor, 2015.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

A área apresentada encontra-se sob a ação de processos atuantes na


morfodinâmica fluvial do Rio Solimões. Tais processos são influentes na atuação dos
trabalhos de transporte e deposição sedimentar do rio. As margens na ilha de Santa Rosa e
na cidade de Tabatinga sofrem a atuação de sistemas erosivos, enquanto que a margem
oposta apresenta deposição de sedimentos, fatos que demonstram a ocorrência e o avanço
de processo relacionado à sinuosidade do canal.
72 - João Cândido André da Silva Neto, Natacha Cíntia Regina Aleixo e Leonice Seolin Dias (Orgs)

Os terraços fluviais em Tabatinga encontram-se sujeitos aos processos erosivos, e


consequentemente, à mobilização do material constituinte. As confluências de dois igarapés
com o Solimões promovem uma série de situações que exigem atenção do governo
municipal e da população que reside ou trabalha nessas áreas.
Sendo assim, a ocorrência de abatimentos de solos, desmoronamentos,
escorregamentos, deslizamentos, quedas de blocos, enchentes e deterioração de estruturas
públicas gera muitos transtornos para a população de Tabatinga e para o governo municipal.

REFERÊNCIAS

Boletim: Monitoramento Hidrológico. Manaus: CPRM, 16/01/2015, Nº. 02.

CARNEIRO, D. S. Morfodinâmica fluvial do rio Solimões, trecho Tabatinga a Benjamin Constant – AM e suas
implicações para o ordenamento territorial. 2009. 151 f. Dissertação (Mestrado em Geografia). Universidade
Federal Fluminense, 2009.

CHRISTOFOLETTI, A. Geomorfologia. São Paulo: Edgard Blücher, 1980.

GUERRA, A. T.; GUERRA, A. J. T.. Novo dicionário geológico-geomorfológico. 8 ed. Rio de Janeiro: Bertrand
Brasil, 2010.

GOOGLE EARTH. Disponível em: <http://mapas.google.com>. Acesso em: 15 agost. 2014.

IGREJA, H. L. S.; CARVALHO, J. A. L.; FRANZINELLI, E. Aspectos das Terras Caídas na Região Amazônica. In:
RABELLO, A. Contribuições Teórico-metodológicas da Geografia Física. Manaus: Editora da Universidade
Federal do Amazonas, 2010.

LOPES, I. R. Comara: Erosão e Deslocamento de Massa em Terraço Fluviais do Rio Solimões. Relatório Final de
Iniciação Científica. Tabatinga: PAIC-FAPEAM, 2014.

NOVO, E. M. L. M. Ambientes Fluviais. In: FLORENZANO, T. G. (org.). Geomorfologia: conceitos e técnicas


atuais. São Paulo: Oficina de Textos, 2008, p. 219-246.

TEIXEIRA, S. G. Risco Geológico. In: MAIA, M. A. M.; MARMOS, J. L. (orgs.). Geodiversidade do estado do
Amazonas. Manaus: CPRM, 2010, p. 87-100.

WICANDER, R.; MONROE, J. S. Fundamentos de Geologia. Colaboração: E. Kirsten. Tradução: Harue Ohara
Avritcher. Revisão: Maurício Antônio Carneiro. São Paulo: Cengage Learning, 2009.
Dinâmicas Socioambientais na Amazônia Brasileira - 73

Capítulo 5

VULNERABILIDADE DO RELEVO À PERDA DE SOLOS NA BACIA HIDROGRÁFICA DO RIO


CAIAMBÉ, MÉDIO SOLIMÕES – AM

João Cândido André da Silva Neto10


Geisa Ribeiro Gonçalves11
Natacha Cíntia Regina Aleixo12

INTRODUÇÃO

Segundo Casseti (1995), a apropriação da natureza é um processo que se inicia pela


transformação dos atributos naturais da paisagem com emprego da técnica objetivando a
produção, de acordo com as imposições socioeconômicas das sociedades.
A ação social do homem sobre o meio físico-natural vem intensificando processos
naturais, assim, as práticas comuns utilizadas no processo de apropriação da natureza para
desenvolvimento de atividades como agricultura e pecuária, alteram as dinâmicas físico-
naturais da paisagem.
Cavalcanti (2014) considerou que a análise integrada paisagem pode ser entendida
como um complexo de elementos que direta ou indiretamente se relacionam de modo
estável, ao longo do tempo, marcado por diferenciações territoriais e pelas características
naturais de cada unidade da paisagem.
Nesse sentido, destaca-se a vertente como um elemento importante nos estudos da
paisagem, pois se caracteriza como a mais básica de todas as formas de relevo, razão pela
qual assume importância fundamental para os geógrafos (CASSETI, 1995).
Para Bloom (1970, p. 69), uma paisagem é normalmente composta de pequenos
elementos de encosta, cada um deles reagindo de modo particular ao efeito local do
intemperismo, escorregamento e erosão.

10
Professor Adjunto do Departamento de Geografia da Universidade Federal do Amazonas. E-mail:
joaokandido@yahoo.com.br
11
Graduada em Geografia na Universidade do Estado do Amazonas (CEST/UEA). E-mail:
geisa_1216@hotmail.com
12
Professora Adjunto do curso de Geografia da Universidade do Estado do Amazonas (CEST/UEA). E-mail:
natachalaeixo@yahoo.com.br
74 - João Cândido André da Silva Neto, Natacha Cíntia Regina Aleixo e Leonice Seolin Dias (Orgs)

Para Guerra (1994), o processo de degradação ambiental resulta da ação do homem


sobre o meio, sem respeitar os limites impostos pela natureza, cujas formas de degradação
que mais se destacam do ponto de vista dos impactos negativos são as dos solos, na qual a
erosão é o tipo mais frequente.
Nesse sentido, a vulnerabilidade é uma forma eficiente de verificar a fragilidade de
determinado ambiente, a partir das transformações ocorridas nas paisagens como enfatiza
Silva Neto (2013a).

A vulnerabilidade da paisagem à perda de solos que é entendida como as rupturas


desencadeadas pela atuação da sociedade na natureza, caracterizando-se assim,
uma nova forma de organização dos fenômenos e dinâmicas nas formas espaciais
que se materializam na paisagem (SILVA NETO, 2013a, p. 5).

Abordou-se, como objeto de estudo, a unidade territorial bacia hidrográfica que,


segundo Botelho (2005, p. 270), é definida como “unidade natural de análise da superfície
terrestre, onde é possível reconhecer e estudar as inter-relações existentes entre os
divisores elementos da paisagem e os processos que atuam na sua esculturação”.
Desse modo, o objetivo do trabalho é estabelecer parâmetros de vulnerabilidade do
relevo à perda de solos na bacia hidrográfica do Rio Caiambé, avaliando-se as características
morfológicas das Curvaturas Vertical e Horizontal das Vertentes, das Formas do Terreno e
Declividade, a partir do processamento de dados SRTM/ TOPODATA (Shuttle Radar
Topografhic Mission) em Sistema de Informação Geográfica, definindo-se uma escala de
vulnerabilidade à perda de solos para as variáveis de relevo.
Albuquerque e Vieira (2014) afirmam:

A Amazônia brasileira nas últimas décadas vem sendo atingida por uma série de
impactos ambientais principalmente no que se refere a desmatamentos e queimadas,
como resultado da expansão das fronteiras agrícolas relacionadas à exploração
madeireira e atividade agropecuária. (ALBUQUERQUE; VIEIRA, 2014, p. 223).

A presente pesquisa justifica-se, pois, a influência do relevo no processo de erosão é


consequência da sua morfologia, tanto dos aspectos descritivos do terreno como sua forma
e feição, e dos aspectos quantitativos do relevo como altitude, amplitude altimétrica,
declividade, (BECKER; EGLER, 1996).
Dinâmicas Socioambientais na Amazônia Brasileira - 75

CARACTERIZAÇÃO DA ÁREA DE ESTUDO

A bacia hidrográfica do Rio Caiambé está inserida nos limites territoriais no município
de Tefé, que por sua vez, localiza-se na região do Médio Solimões, no estado do Amazonas,
cuja localização está compreendida entre as Latitudes 03° 30’ 00” S e 04’16’17” S e as
Longitudes 64°14’00” W e 65° 00’ 00” W. O distrito de Caiambé é uma das mais antigas vilas
fundadas no município de Tefé, a bacia possui a extensão de aproximadamente 2,500 Km²,
apresentando-se como clima equatorial quente e úmido (Mapa 1).

Mapa 1- Localização da Bacia Hidrográfica Rio Caiambé - AM.

Organização: Autores, 2016.

Na bacia hidrográfica do Rio Caiambé, predomina um relevo plano que apresenta


55% da área estudada, sendo caracterizada por solos Argissolos Amarelo-avermelhado,
predominante na região.
76 - João Cândido André da Silva Neto, Natacha Cíntia Regina Aleixo e Leonice Seolin Dias (Orgs)

Essa área estudada apresenta duas unidades geomorfológicas segundo Ross (2006),
a planície do Rio Amazonas, caracterizados por apresentar relevo plano, litologias
caracterizadas por aluviões e areias argilas e solos, gleissolos, e neossolos flúvicos; e a
Depressão da Amazônia Ocidental, caracterizada por colinas amplas de topos planos,
planícies fluviais, litologias caracterizadas por arenitos finos, e argissolos vermelho-
amarelados, neossolos flúvicos, plintossolos e gleissolos (SILVA NETO; ALEIXO, 2014, p. 155).
Os aspectos físico-naturais dessa área vêm sendo transformados por pequenos
agricultores e fazendeiros, que utilizam de técnicas tradicionais, como queimadas e
exploração madeireira, visando o desenvolvimento de culturas como mandioca e pecuária.
Esse processo de apropriação da natureza muitas vezes ocorre de modo
espontâneo e sem a utilização de técnicas conservacionistas adequadas.
Para Ross (2006), a região do Médio Solimões pode ser “caracterizada como sistemas
ambientais naturais pouco transformados, nos quais ocupam as terras predominantemente com
baixas altitudes, oscilam entre 40 metros e no máximo 140 m aproximadamente”.
Pessoa (2005) considerou que o distrito do Caiambé é o mais desenvolvido no
município de Tefé, apresenta infraestrutura básica como energia elétrica 24 horas, rede de
água, posto de saúde, lojas, duas escolas, ruas pavimentadas, etc.
O Caiambé está distante 50 km via fluvial de Tefé, no sentido Tefé-Manaus.
Atualmente, Caiambé (Foto 1) tem como principal atividade econômica a pesca (Foto 2),
coleta de castanha, criação de bovinos e a produção de farinha.

Foto 1 - Atividade de pesca realizada na Foto 2 - Distrito de Caiambé.


Bacia Hidrográfica do Rio Caiambé-AM.

Fonte: Levantamento Próprio, 2015.


Dinâmicas Socioambientais na Amazônia Brasileira - 77

PROCEDIMENTOS METODOLÓGICOS

O presente artigo se pautou em referências teórico-metodológicas de trabalhos que


abordam temáticas relacionadas à vulnerabilidade do relevo e perda de solos, como os
trabalhos de Silva Neto (2013), o qual trata Avaliação da Vulnerabilidade à perda de solos em
bacias Hidrográficas, enfatizando-se as formas do terreno; Fitz (2009) abordou as bases de
dados georreferenciados e a utilização na Geografia dos SIG’s; Florenzano (2007) enfatiza as
Geotecnologias aplicadas na Geografia; Guerra (2014), que trata da Degradação dos Solos;
Albuquerque e Vieira (2014) que abordam a Erosão dos Solos na Amazônia; Ross (2006) que
enfatiza as bases teóricas e metodológicas da Geografia Física; Botelho (2005), o qual visa o
Planejamento Ambiental em Microbacia Hidrográfica; Bloom (1970) aborda as formas das
vertentes, Valeriano (2008) que aborda os dados morfométricos do relevo e Casseti (1995)
que trata da apropriação do relevo.
O passo seguinte ao levantamento bibliográfico constituiu-se da elaboração dos mapas
temáticos a partir do processamento de dados geomorfométricos do projeto SRTM/ TOPODATA.
Para elaboração do mapa de declividade, foram processados os dados SRTM - de
altitude, em que foi gerado um modelo numérico de declividade e posteriormente esses
dados foram fatiados gerando um mapa de declividade temático, de acordo com a
classificação da Embrapa (2006) (Organograma 1).

Organograma 1 - Procedimentos do Mapa de Declividade Temático

Fonte: Autores, 2016.


78 - João Cândido André da Silva Neto, Natacha Cíntia Regina Aleixo e Leonice Seolin Dias (Orgs)

O processamento dos dados SRTM-TOPODATA, foram implementados no aplicativo


Spring 5.2, no módulo de análise espacial do software. O Spring caracteriza-se por ser um
programa de Sistema de Informação Geográfica, que possibilita o armazenamento,
processamento e análise geoespacial dos dados, caracteriza-se ainda como um software
gratuito elaborado pelo INPE (Instituto Nacional de Pesquisa Espacial).
O fatiamento do MNT (Modelo Numérico do Terreno), consistiu, na definição de
classes de declividade, os valores atribuídos foram de 0 a 3%; - 3 a 8%; - 8 a 20%; e maior
que 45%, isso para se analisar a inclinação das vertentes, convertendo-se em mapa de
declividade temático.
Utilizou-se o Plano de Informação (PI) forma do terreno (FT), que representa as
curvaturas horizontal e vertical do terreno (Figura 5) associadas, resultando em um plano de
informações contendo nove classes.
Adotou-se, neste estudo, uma ordenação numérica de 1 a 9 para as classes de
forma do terreno (Convergente - côncava, retilínea, convexa/ Planar - côncava, retilínea,
convexa/ Divergente - côncavo, retilínea, convexa).
Para a realização do fatiamento do Modelo Numérico do Terreno e na associação de
fatias em classes temáticas, os valores atribuídos para forma do terreno foram de 0 a 3 para
Convergente - côncavo, retilínea, convexa; Planar - côncavo, retilínea, convexa 3 a 6;
Divergente - côncavo, retilínea, convexa 6 a 9, resultando na junção de todas as nove classes.
Para a ponderação do Plano de Informação (PI), foram atribuídos valores de 0.0 a
1.0, no qual os valores próximos de 1.0 corresponderiam às formas Convergentes - côncava,
retilínea e convexa, e os valores próximos de 0.0 às formas Divergentes - côncavo, Retilínea
e convexa. Para as classes Planares - côncava, Retilínea e Convexa, foram atribuídos valores
intermediários de 0.45 a 0.77.
A correlação das variáveis/ Planos de Informações, hipsometria, declividade e
formas do terreno foram implementadas por meio do método de tomada de decisão AHP
(Processo Analítico Hierárquico) (Organograma 3).
Dinâmicas Socioambientais na Amazônia Brasileira - 79

Organograma 3 - Elaboração do mapa de vulnerabilidade do relevo da bacia hidrográfica do Rio Caimbé.

Organização: Autores, 2016.

Os pesos foram atribuídos conforme a proposta de Silva Neto (2013a), na qual a


declividade é definida como “Algo Melhor” ou peso 3, em relação às formas do terreno, e
“Moderadamente Melhor” ou peso 4, em relação à hipsometria. Quanto à relação das
formas do terreno e hipsometria, foi atribuído o peso 2, ou seja, “Pouco Melhor”, para as
formas do terreno.

ANÁLISE E DISCUSSÕES DOS RESULTADOS

As análises dos dados topográficos do terreno fornecem variáveis importantes na


análise da vulnerabilidade à perda de solos em bacias hidrográficas.
Segundo Cavalcanti (2014), as variáveis do relevo como inclinação das vertentes são
importantes na interferência de processos relacionados com a circulação de água,
sedimentos, nutrientes e outras substâncias, assim, a declividade do terreno está
diretamente ligada aos processos denudacionais ou acumulativos.
80 - João Cândido André da Silva Neto, Natacha Cíntia Regina Aleixo e Leonice Seolin Dias (Orgs)

Assim, os dados de declividade, são definidos como o ângulo de inclinação da


superfície local em relação ao plano horizontal, que pode ser expressa em graus ou em
porcentagem (VALERIANO, 2008, p. 86).
No presente trabalho, as classes de declividade obedeceram a definição
estabelecida pela Embrapa (2006, p. 298):

E para as classes 0 a 3% predominou o relevo Plano – que é a superfície de


topografia esbatida ou horizontal, onde os desnivelamentos são muito pequenos,
com declividades variáveis. Suave ondulado – superfície de topografia pouco
movimentada, constituída por conjunto de colinas ou outeiros (elevações de
altitudes relativas até 50m e de 50 a 100m), apresentando declives suaves,
predominantemente variáveis de 3 a 8%. Ondulado – superfície de topografia
pouco movimentada, constituída por conjunto de colinas ou outeiros,
apresentando declives moderados, predominantemente variáveis de 8 a 20%.
Como demonstram os dados abaixo (EMBRAPA, 1999, p. 298).

Observou-se que 55% da área da bacia predominam o relevo plano (classe de 0 a


3%), e 37% suave ondulado (classe 3 a 8%), e 8% ondulado (classe de 8 a 20%), e que as
classes de 20 a 45% e maiores que 45% não representaram 1% da área da bacia (Gráfico 1).

Gráfico 1 - Declividade da bacia hidrográfica do Rio Caiambé.

Organização: Autores, 2016.

Os terrenos planos e suaves ondulados apresentam pouca capacidade de transporte


devido à baixa velocidade dos fluxos d’água, apresentando assim, maior capacidade de
infiltração, mas quando se tem uma área com terrenos mais inclinados, o escoamento das
águas atinge maior velocidade, transportando sedimentos maiores, principalmente quando
estas áreas estão expostas, ficando vulneráveis às erosões.
Dinâmicas Socioambientais na Amazônia Brasileira - 81

Considerou-se que a geometria das vertentes atua direta e indiretamente no


escoamento superficial e no desenvolvimento dos processos erosivos, apresentando uma
relação importante das implicações do balanço de materiais e natureza dos processos
morfogenéticos e pedogenéticos (INSTITUTO BRASILEIRO DE GEOGRAFIA E ESTATÍSTICA, 2009).
Cavalcanti (2014) considerou que a forma do relevo é importante para a migração
de água, sedimentos e nutrientes ao longo do segmento da vertente, cujas curvaturas
apresentam características horizontais: convergente, divergente e planar, e verticais com
segmentos de vertentes: côncavo, convexo e retilíneo.
Para Valeriano (2008), a curvatura vertical é uma variável de alto poder de identificação
de unidades homogêneas do relevo, por referir-se à forma convexo/côncavo do terreno.
Bloom (1970) reconheceu que os perfis de encostas geralmente possuem um
segmento superior convexo para o céu e um inferior côncavo, e que alguns perfis de encosta
possuem um segmento reto entre as curvas superior e inferior.
Desta forma, todos os detritos que são transportados declives abaixo passam pelo
segmento reto, onde tende a ser coletada nas concavidades, na qual, sua ação é movida
sobre a superfície (BLOOM, 1970).
Assim, as áreas de curvaturas verticais representadas como côncava, por serem
mais úmidas e férteis, são mais antropizadas, por referir-se a um local onde todos os
nutrientes são concentrados, são áreas utilizadas principalmente por agricultores e
fazendeiros. Enquanto que nas áreas de curvatura vertical convexa, por terem solos menos
profundos, o transporte de água ocorre e sobrepuja o rastejamento.
A percepção da curvatura vertical do terreno no campo, quando não ocorre
visualmente (em perfil), se dá pela variação da declividade enquanto se percorre a vertente
em sua orientação (direção do desnível) (VALERIANO 2008, p. 89 apud SILVA NETO, 2013).
A curvatura vertical relaciona-se com os processos de transporte e acumulação de
água, minerais e matéria orgânica no solo. Assim, as formas das vertentes poderão ser
indicativas das dinâmicas erosivas da área abordada (VALERIANO, 2008, p.89).
Nesse contexto, verificou-se que a curvatura vertical apresenta as formas côncavas
(13% da área) dos quais, 10% são convexas, sendo a curvatura retilínea 77%. Nessa área se
estabelece uma menor concentração de água, pois predomina um relevo plano, essas
curvaturas retilíneas formam-se quando se têm um processo de erosão excepcionalmente
rápido, formando-se áreas planas onde as águas escoarão com mais velocidade.
82 - João Cândido André da Silva Neto, Natacha Cíntia Regina Aleixo e Leonice Seolin Dias (Orgs)

Quanto à curvatura horizontal, refere-se ao caráter divergente/ convergente do


direcionamento dos fluxos de matéria sobre o terreno (VALERIANO, 2008, p. 90).
Ela também está relacionada à intensidade dos processos de migração e acúmulo
de água, minerais e matéria orgânica no solo através da superfície, causados pela gravidade
(VALERIANO, 2008, p.90).
A curvatura horizontal pode ser reconhecida através de seus fluxos, é expressa
em diferença de ângulo dividida por distância horizontal, normalmente graus por metro
ou em m¹ (VALERIANO 2008, p. 90).
As classes de curvaturas horizontais (convergente, planar ou divergente),
juntamente com as curvaturas verticais (côncavo, retilíneo ou convexo), podem ser
combinadas para fornecer indicação da forma do terreno.
A curvatura horizontal apresenta os fluxos de canais de drenagem para onde ele vai
convergir, sendo que, onde eles se convergem a velocidade da água é maior e seu escoamento
superficial tem maior capacidade de transporte, podendo desencadear processos erosivos.
Quanto à curvatura horizontal, Bigarella (2003) considerou que as vertentes
indicam as áreas de escoamento superficial divergente e convergente, de modo que as
vertentes de fluxos concentrados (convergente) tendem ao transporte de partículas maiores
que aquelas movidas pelo escoamento laminar difuso (divergente).
Observou-se a curvatura horizontal convergente em 44% da área de estudo, a
curvaturas horizontais divergentes verificadas em 43% e as planares em 13% da área. Desta
maneira, as curvaturas divergente e convergente predominam na bacia hidrográfica do Rio
Caiambé, enfatizando-se assim a curvatura convergente que se caracteriza pela maior
concentração de fluxo de água e transporte de sedimentos.
Bloom (1970, p. 68) definiu as encostas com relação à curvatura horizontal em
“coletoras de água” (vertentes convergentes) e “distribuidoras de água” (vertentes divergentes).
Nesse sentido, as vertentes convergentes associadas em coletoras de água têm
capacidade de maior concentração no escoamento superficial, o que potencializa o aumento
do fluxo de materiais, pois todo o material que é concentrado nessa vertente e transportado
com mais velocidade vem acarretando perda de solos, principalmente nas áreas suscetíveis a
erosão e posteriormente perdas de nutrientes.
Dinâmicas Socioambientais na Amazônia Brasileira - 83

Bloom (1970, p. 68) definiu que as águas nas vertentes convergentes e divergente são
provenientes de grande área de encosta acima, e que tende a ser coletada nestas concavidades.
As classes de formas do terreno caracterizam-se como associações entre as
classes de curvaturas horizontais e verticais, em que são definidas como mais vulneráveis à
perdas de solos as classes cuja geometria das vertentes estão condicionadas à maior
concentração e acúmulo de escoamento superficial associados às inclinação das vertentes
(SILVA NETO, 2013, p. 22) (Mapa 2).

Mapa 2 - Mapa das formas do terreno da bacia hidrográfica do Rio Caiambé.

Organização: Autores, 2015.

Assim, as formas do terreno apresentaram uma distribuição na bacia hidrográfica do


Rio Caiambé de 9% de sua área como Côncavo-convergente, 34% como Retilíneo-convergente e
1% como convexo-convergente caracterizada como vulnerabilidade forte (Gráfico 2).
84 - João Cândido André da Silva Neto, Natacha Cíntia Regina Aleixo e Leonice Seolin Dias (Orgs)

Gráfico 2 - Formas do terreno da bacia hidrográfica do Rio Caiambé.

Organização: Autores, 2015.

As formas convergentes côncava, convexa e retilínea, correspondem às classes de


maior vulnerabilidade à perda de solos na bacia hidrográfica do Rio Caiambé, pois
apresentam uma maior concentração de água e, consequentemente, uma maior remoção da
camada superficial do solo, quando associado ao escoamento superficial.
As formas do terreno que apresentam forte vulnerabilidade à perda de solos,
quando associadas à retirada da cobertura vegetal, influenciam na remoção dos sedimentos
superficiais, visto que há uma maior concentração e velocidade do escoamento superficial e,
posteriormente, quando o solo fica exposto aos efeitos pluviais, influenciando diretamente
no desencadeamento dos processos erosivos.
Quanto às formas do terreno atribuídas com vulnerabilidade baixa estão as classes
côncavo-divergente, ocupando 2% da área de estudo, retilíneo-divergente com 33% e
convexo-divergente com 8%, nessas classes, a tendência dos fluxos de água é dispersar-se
com velocidade menor.
As formas do terreno que combinam com a curvatura horizontal planar com as
curvaturas verticais côncava, retilínea e convexa atuam como intermediária,
caracterizando-se com vulnerabilidade moderada, onde predomina 13% da área da bacia
hidrográfica do Rio Caiambé.
Dinâmicas Socioambientais na Amazônia Brasileira - 85

As classes de vulnerabilidade do relevo à perda de solos correspondem à síntese e


inter-relação de variáveis que contemplam componentes altimétricos (hipsometria), de
direcionamento de fluxo de escoamento superficial (curvatura horizontal), forma de
segmento de vertente (curvatura vertical) e inclinação das vertentes (declividade) (Mapa 3).
Assim, quanto à vulnerabilidade do relevo à perda de solos da bacia hidrográfica do
Rio Caiambé, verificou-se a predominância da classe de vulnerabilidade moderada, em 61%
da área da bacia, que “essa categoria morfodinâmica intermediária é caracterizada pelo
equilíbrio entre pedogênese e morfogênese” (TRICART, 1977).
A classe de vulnerabilidade moderada apresenta predominantemente a correlação
das variáveis de formas do terreno intermediária, no tocante à perda de solos, como
curvatura vertical retilínea associada às curvaturas horizontais planares e convergentes, e
relevo plano a suave ondulado, com declividades entre 0 a 3% e 3 a 8%, nas maiores
altitudes encontradas na bacia.
A classe de vulnerabilidade moderada pode ser definida, segundo Tricart (1977), como
meios intergrades, determinado pela interferência permanente de morfogênese e pedogênese.

Mapa 3 - Mapa de vulnerabilidade do relevo da bacia hidrográfica do Rio Caiambé.

Organização: Autores, 2016.


86 - João Cândido André da Silva Neto, Natacha Cíntia Regina Aleixo e Leonice Seolin Dias (Orgs)

As classes de vulnerabilidade do relevo Muito Fraca e Fraca foram verificadas em


respectivamente 5 e 31% da área estudada, “essas classes caracterizam-se por apresentar a
configuração do relevo que oferece condições para formação do solo, ou seja, que prevalece
o processo morfodinâmico de pedogênese” (SILVA NETO, 2013b).
As classes de vulnerabilidade Muito Fraca e Fraca correspondem as áreas que
apresentam formas do terreno com curvatura vertical côncava ou retilínea associadas às
curvaturas horizontais divergentes e planares em relevo plano (Gráfico 3).

Gráfico 3 - Vulnerabilidade do relevo da bacia hidrográfica do Rio Caiambé.

Organização: Autores, 2015.

A classe de vulnerabilidade Muito Forte não representou 1% da área da bacia, já a


classe Forte foi verificada em 3% da área estudada, nessa classe, as vertentes caracterizam-
se por apresentar condições favoráveis à perda de solos, quando associadas a outras
variáveis que influenciam esse processo, como intensidade pluviométrica, tipos de solos,
cobertura vegetal e uso da terra, bem como unidades litológicas.
A classe de vulnerabilidade Forte é a correlação de formas do terreno
predominantemente com curvatura vertical côncava associada à curvatura horizontal
convergente e relevo ondula, com declividades entre oito e 20%, essa classe é verificada
principalmente nas margens dos canais de drenagens.
Dinâmicas Socioambientais na Amazônia Brasileira - 87

Apesar da classe Forte, de vulnerabilidade à perda de solos, apresentar apenas


3% da área total da bacia hidrográfica do Rio Caiambé, se essas áreas forem utilizadas
para o desenvolvimento de atividades como agricultura e pecuária, necessitaram de
medidas conservacionistas, pois, nessas vertentes se têm um relevo movimentado
associado à convergência dos fluxos de escoamento superficial, que poderá resultar em
perda de solos, uma vez que todos esses sedimentos serão transportados em direção ao
fundo do vale e canais de drenagens, podendo ocasionar impactos ambientais negativos
como assoreamento dos canais de drenagem, intensificação de processos erosivos e
perda de terras produtivas.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

As variáveis analisadas por meio SIG tornam-se importantes para determinação dos
níveis de vulnerabilidade à perda de solos da área estudada, e a associação das classes de
vulnerabilidade Forte com processo de uso da terra podem intensificar os processos erosivos
e desestabilizar esses ambientes.
O presente estudo indicou que os processos erosivos estão diretamente ligados às
formas do relevo, tanto na análise do formato do perfil de suas vertentes: côncavo, retilíneo,
e convexo, quanto na análise do direcionamento do fluxo de escoamento de água
convergente, planar e divergente.
As formas convergentes: côncavo, convexo e retilíneo são as classes que, associadas
à vertentes mais acentuadas, caracterizam-se pela grande concentração e velocidade dos
fluxos de água e podem ser associadas à perda de solos, principalmente nas áreas com solos
rasos suscetíveis à erosão, na qual, a presença da cobertura vegetal é escassa ou inexistente,
mostrando grandes influências nessas áreas, as quais podem se ser definidas como
vulnerabilidade forte, visto que na região do Médio Solimões, onde se localiza a bacia
hidrográfica do Rio Caimbé, a da atividade que predomina é a agricultura, a qual pode ter
uma relação direta com a perda de nutrientes do solo e com os processos erosivos quando
essa atividade é desenvolvida sem a utilização de medidas conservacionistas.

AGRADECIMENTO

À Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado do Amazonas (FAPEAM) pela concessão da


Bolsa de Iniciação Científica para segunda autora.
88 - João Cândido André da Silva Neto, Natacha Cíntia Regina Aleixo e Leonice Seolin Dias (Orgs)

REFERÊNCIAS

ALBUQUERQUE, A. R. C.; VIEIRA, A. F. G. Erosão dos solos na Amazônia / organização Antônio José Teixeira
Guerra, Maria do Carmo Oliveira Jorge. 1 ed. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2014.320 p.; il; 23 cm.

BLOOM, A. L. Superfície da Terra. São Paulo: Edgard Blücher, 1970.

BECKER, B. K; EGLER, C. A. G. Detalhamento da Metodologia para Execução do Zoneamento Ecológico-


Econômico pelos Estados da Amazônia Legal. Brasília. SAE-Secretaria de Assuntos Estratégicos/ MMA-
Ministério do Meio Ambiente. 1996.

BOTELHO, R. G. M. Planejamento Ambiental em Microbacia Hidrográfica. In: Guerra, A. J. Teixeira; SILVA, A. S.;
BOTELHO, R. G. M. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2005.

CAVALCANTI, L. C. S. Cartografia de paisagens: fundamentos. São Paulo: Editora: Oficina de Textos, 2014.

CASSETI, V. Ambiente e apropriação do relevo. 2º Ed. São Paulo: Contexto, 1995.

CHRISTOFOLETTI, A. Geomorfologia. 2. Ed. São Paulo: Edgard Blucher, 1980.

DREW, D. Processos interativos homem-meio ambiente. 3ª Ed. Rio de janeiro: Bertrand Brasil, 1994.

EMBRAPA - Serviço Nacional de Levantamento de Solos. Sistema Brasileiro de Classificação de Solos. Brasilia:
EMBRAPA. Produção da Informação. Rio de Janeiro: EMBRAPA Solos, 2006.

FITZ, P. R. Geoprocessamento sem complicações-São Paulo: Oficina de Textos, 2008.

FLORENZANO, T. G. Geotecnologias na geografia aplicada: Difusão e Acesso. São Paulo, Oficina de textos, 2007.

GUERRA, A. J. T. Processos erosivos nas encostas. In: GUERRA, A. J. T.; CUNHA, S. B. (Org.). Geomorfologia: uma
atualização de bases e conceitos. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 1994. p. 149-209.

INSTITUTO NACIONAL DE PESQUISAS ESPACIAIS. (2008). Topodata: banco de dados Geomorfométricos do


Brasil. Variáveis geomorfométricas locais. São José dos Campos, INPE. Acessado em 20 de julho de 2015 em
<http://www.dsr.inpe.br/topodata/>.

INSTITUTO BRASILEIRO DE GEOGRAFIA ESTATÍSTICA. Manual Técnico de Geomorfologia. Rio de Janeiro: IBGE.
Manuais Técnicos em Geociências, 2ª Edição, número 5, 2009.

PESSOA, P. L. Estudos Sociais no Município de Tefé, 1 ed. Manuas: Editora Nova Tempo Ltda, 2005.

ROSS, Jurandy. Ecogeografia do Brasil: subsídios para planejamento ambiental/ São Paulo: Oficina de Textos, 2006.

SILVA NETO J. C. A.; ALEIXO, N. C. R. Apropriação da natureza e processos erosivos na Região do Médio
Solimões – AM. Revista Geo UECE - Programa de Pós-Graduação em Geografia da UECE Fortaleza/CE, v. 3, n. 4,
p. 151-176, 2014. Disponível em: http://seer.uece.br/geouece>. Acesso em: 23 jun. 2015.

SILVA NETO, J. C. A. Zoneamento ambiental como subsídio para Ordenamento do território da bacia
hidrográfica do rio Salobra, Serra da Bodoquena MS. Tese (Doutorado em Geografia) – Faculdade de ciências e
tecnologias. Universidade Estadual Paulista. Presidente Prudente, 2013a.

SILVA NETO, J. C. A. Avaliação da vulnerabilidade à perda de solos na bacia do rio Salobra, MS, com base nas
formas do terreno. IN: Geografia (Londrina), v. 22, n. 1, p. 05-25, 2013b.

TRICART, Jean. Ecodinâmica. Rio de Janeiro: IBGE, 1977.

VALERIANO, M. M. Topodata: Guia para Utilização de Dados Geomorfológicos Locais. Instituto Nacional de
Pesquisas Espaciais (INPE) (2008).
Dinâmicas Socioambientais na Amazônia Brasileira - 89

Capítulo 6

AS VILAS DO ALTO SOLIMÕES: PRODUÇÃO E ABASTECIMENTO DE GÊNEROS ALIMENTÍCIOS


NO AMAZONAS, BRASIL13

Tatiana Schor 14

INTRODUÇÃO

Os municípios que compõe a microrregião do Alto Solimões apresentam os mais


baixos índices de desenvolvimento social, não só do Amazonas, como também do Brasil. A
agricultura familiar praticada no Amazonas e, por conseguinte, nesta microrregião, está
pautada fortemente na produção de farinha, frutas (com destaque para a banana, abacaxi e
melancia) e algumas raízes tuberosas, como a macaxeira, o cará e a mandioca. O
extrativismo e a pesca também compõem a cesta de oferta de produtos oriundos da
agricultura local e comercializados nas cidades. Neste contexto, de vulnerabilidade social e
agricultura familiar, compreender a estrutura da rede urbana e o papel que as Vilas têm no
abastecimento da região é de suma importância para se promover políticas públicas mais
adequadas à realidade local.
Com este objetivo em mente, estruturou-se um conjunto de pesquisas coordenadas
pelo Núcleo de Estudos e Pesquisas das Cidades na Amazônia Brasileira – NEPECAB, visando
compreender de que forma as Vilas, definidas pelo IBGE como tais, são abastecidas e, ao
mesmo tempo, abastecem os municípios da microrregião do Alto Solimões.

Em trabalho de campo nas vilas de Belém do Solimões (Tabatinga), Campo Alegre


(São Paulo de Olivença) e Betânia (Santo Antônio do Içá), no estado do Amazonas,
foram realizadas entrevistas com lideranças, agentes de saúde, gestores das
escolas, representantes de associações, líderes religiosos, agricultores e jovens.
Foram visitados os principais mercadinhos e locais de venda de caça e peixe,
visando compreender a forma de abastecimento, os mercados produtores e
consumidores, além disso, foram coletados os preços das mercadorias. Também
foram realizadas pesquisas nos barcos comerciais que abastecem esta região, com
acompanhamento na subida do rio (direção Manaus-Tabatinga) e na descida
(Tabatinga-Manaus) em três ocasiões: no período da cheia (abril de 2015), da seca
(agosto e outubro de 2015) e na enchente (novembro a dezembro de 2015 ).

13 Este texto foi inicialmente produzido para o Workshop “Pesquisa e Agricultura Familiar: fortalecendo a
interação da pesquisa para inovação e sustentabilidade na Amazônia” organizado pelo Grupo de Pesquisa:
Agricultura Familiar, Inovação, Sustentabilidade e Ruralidade (Gepafisr), EMBRAPA Amazônia Ocidental,
realizado entre os dias 20 a 22 de outubro de 2015 sob o título “Produção e abastecimento de gêneros
alimentícios no Alto-Alto Solimões, Amazonas: uma questão para a agricultura familiar”, agradecemos as
contribuições
14
dos organizadores.
Professora Associada do departamento de Geografia Universidade Federal do Amazonas. NEPACAB – Núcleo
de Estudo e Pesquisa das cidades da Amazônia. Catedra Ruth Cardoso/Columbia University - FULBRIGHT/
CAPES e Pesquisadora Produtividade CNPq.
90 - João Cândido André da Silva Neto, Natacha Cíntia Regina Aleixo e Leonice Seolin Dias (Orgs)

Neste capítulo, apresentamos os resultados destes campos e a análise do


abastecimento de gêneros alimentícios na microrregião do Alto Solimões. Um ponto
importante foi reconhecer que, o Alto Solimões deve ser dividido em duas regiões menores
quando se analisa o abastecimento de gêneros alimentícios: o Alto-Alto Solimões e o Alto-
Baixo Solimões. Esta divisão está pautada na rede de transportes, que por sua vez influencia
as estruturas de mercado. Consideramos também a importância de produtos oriundos de
outras regiões do país e dos países vizinhos, em especial, o Peru. Esta importância não se
restringe apenas aos produtos, mas também à atuação de comerciantes peruanos ao longo
da calha. Neste contexto, ressalta-se a necessidade de se compreender o mercado de
alimentos para entender as transformações no território nacional.

O Alto Solimões, Amazonas

De acordo com o IBGE, a microrregião do Alto Solimões, situada na mesorregião do


Sudoeste Amazonense, é definida tanto por parâmetros fisiográficos, referente à década de 60, até
em termos de meso e microrregião, a partir da década de 1990. Diferentemente de outras
microrregiões, a do Alto Solimões tem se mantido estável nas últimas sete décadas (IBGE, 2010).

Ao analisarmos a Sinopse do Censo Demográfico de 1970 (IBGE, 1971), pôde-se


perceber um forte discurso acerca de um despovoamento da microrregião do Alto Solimões,

Micro-Região do Alto Solimões (4), Micro-Região do Juruá (5), Micro-Região do


Purus (6), Micro-Região do Madeira (7), Micro-Região do Rio Negro (8) e Micro-
Região do Solimões-Japurá (9) – São regiões que tem no extrativismo vegetal a
base da sua economia. Essas áreas vêm-se despovoando, em virtude do declínio
desse tipo de economia, baseado no sistema de "aviamento" (IBGE, 1971, p.18).

O próprio documento se contradiz, pois, percebe-se um incremento populacional


na microrregião em questão, com relação aos dados dos censos demográficos de 1960 e
de 1970. Em todos os municípios, com exceção de Fonte Boa, houve acréscimo
populacional. Este padrão manteve-se nos censos de 2010 e para a estimativa de
população de 2014 (Tabela 1).
Dinâmicas Socioambientais na Amazônia Brasileira - 91

Município Pop. 1960 Pop. 1970 Pop. 2010 Pop. Estimada 2014

Amaturá 5.298 5.606 10.644 9.467


Atalaia do Norte 5.100 6.066 15.153 17.658
Benjamin Constant 11.209 15.230 33.411 38.533

Fonte Boa 14.743 11.760 22.817 21.295


Jutaí 1.496 3.942 17.992 16.977
Santo Antonio do Içá 8.412 9.547 24.481 24.005
São Paulo de Olivença 16.135 18.940 31.422 35.757
Tabatinga ------ ----- 52.272 59.684

Tonantins 3.599 4.582 17.079 18.322

Fonte: IBGE, 1971 e 2014. Dados para Tabatinga nas décadas de 60 e 70 indisponíveis.

Além do incremento populacional, temos claramente uma mudança na relação


entre a população rural e urbana. No censo de 1970, tínhamos uma população
majoritariamente rural, já no censo de 2010, o inverso é observado. Temos o que Becker
(2005, p.3) chamou de “floresta urbanizada” (Tabela 2).

Tabela 2: Distribuição da População Rural e Urbana nos Municípios do Alto Solimões-AM.

Município % Pop. Residente % Pop. Residente % Pop. Residente %Pop.


rural, 1970 (Total) urbana, 1970 rural, 2010 (Total) Residente
(Total) urbana, 2010
(Total)
Amaturá 86,5 (4.850) 13,5 (756) 42,3 (4.507) 46,6 (4.960)
Atalaia do Norte 87,5 (5.307) 12,5 (759) 54,5 (8.260) 45,5 (6.893)
Benjamin Constant 70,3 (10.704) 29,7 (4.526) 39,7 (13.273) 60,3 (20.138)
Fonte Boa 82,8 (9.736) 15,6 (1.833) 33,8 (7.702) 66,2 (15.115)
Jutaí 89 (3.511) 10,9 (431) 41,4 (7.440) 58,6 (10.552)
Santo Antônio do Içá 78,9 (7.535) 21,1 (2.012) 47,1 (11.534) 52,9 (12.947)
São Paulo de 81,2 (15.378) 18,8 (3.562) 54,6 (17.159) 45,4 (14.263)
Olivença
Tabatinga ----- ---- 30,5 (15.917) 69,5 (36.355)
Tonantins 3.869 713 8.180 8.899

Fonte: IBGE, 1971 e 2014. Dados para Tabatinga nas décadas de 60 e 70 indisponíveis.
92 - João Cândido André da Silva Neto, Natacha Cíntia Regina Aleixo e Leonice Seolin Dias (Orgs)

A dinâmica populacional desta microrregião mostra um claro movimento que põe


em questão a sua própria definição. Neste texto, argumentaremos, por meio da análise do
sistema de transporte e de abastecimento de gêneros alimentícios, que a microrregião do
Alto Solimões só é passível de compreensão se a dividirmos em duas: o Alto-Alto Solimões e
o Alto-Baixo Solimões. Esta divisão se dá pela forma de organização social e de acesso, sendo
o Alto-Alto Solimões a região entre a fronteira Tabatinga-Benjamin Constant e o Rio Içá, mais
especificamente Santo Antonio do Içá, enquanto que o Alto-Baixo Solimões compreende a
região entre o Rio Içá e a foz do Rio Japurá, no município de Fonte Boa.
Escolhemos, para a análise desta proposta de regionalização, a microrregião do
Alto-Alto Solimões e a variável de produção e comercialização de gêneros alimentícios, pois
entendemos que estas são determinantes para os fluxos entre as cidades e vilas que
compõem a rede urbana que, por sua vez, define a microrregião em questão.

Agricultura familiar no Amazonas

O acesso aos alimentos no âmbito da agricultura familiar no Brasil tem se modificado


drasticamente na última década. Com a intensa monetização das relações sociais e, por
conseguinte, a entrada de commodities alimentícias no mercado local, os hábitos de compra
foram modificados. Estudos recentes (NARDOTO et al. 2011; SCHOR et al. 2015) mostram uma
forte tendência a mudanças nos hábitos alimentares na Amazônia, com a transição de uma
dieta tradicional, baseada na produção local, na caça e pesca, e no extrativismo, para uma
dieta do supermercado ou no caso das pequenas cidades e comunidades ribeirinhas, da dieta
do “mercadinho”. Esta última é fortemente pautada em produtos industrializados oriundos
das agroindústrias do Sul e Sudeste do país, tais como frango industrializado, calabresa,
salsicha, carne enlatada e ovos. Além das diversas massas, em especial, as instantâneas,
acrescentam-se também as bolachas, salgadinho de milho e os refrigerantes.
Na região em questão, a dieta do mercadinho mescla-se com a produção local,
principalmente de farinha, melancia, abacaxi e frutas regionais, além das fontes de proteína
oriundas da caça de mamíferos silvestres, tais como a paca, a anta, o veado e o caititu, bem
como da pesca. A agricultura familiar é ainda importante em termos de complementação da
dieta local, o que atribui especificidades regionais interessantes. Podemos dizer que é uma
das diversas formas de culturas híbridas, como definida por Nestor Canclini (1989).
Dinâmicas Socioambientais na Amazônia Brasileira - 93

Uma das consequências positivas da agricultura familiar, que até agora predomina
no Amazonas e é voltada principalmente para a reprodução biológica e social dos indivíduos,
é que ela ocorre em ambientes pouco modificados, que ainda não sofreram os impactos do
avanço da agropecuária extensiva e da agricultura mecanizada, esta última, dependente de
insumos agrícolas e voltada exclusivamente para o mercado. A produção local é mais
diversificada que a monocultura em larga escala e permite uma oferta constante e variada
para autoconsumo, além de proporcionar maior estabilidade ao sistema produtivo, uma vez
que, as necessidades básicas da alimentação familiar independem da comercialização do
“excedente”. As crises do mercado podem afetar o núcleo produtivo, mas não inviabilizam
sua sobrevivência (NODA, 2011, p. 248).
Um dos principais cultivos da agricultura familiar é a mandioca. A alimentação
na Amazônia, tal qual em outras regiões do país, tem a farinha como principal elemento,
sendo esta, a fonte local mais confiável de energia e quando misturada com outros
produtos, principalmente o peixe seco (farinha de piracuí), é uma importante fonte de
cálcio (CASTRO, 2006).
Nas últimas cheias históricas registradas no estado do Amazonas em 2009, 2011 e
2012, as plantações de mandioca de várzea foram extensivamente prejudicadas, diminuindo
drasticamente a oferta de farinha nos mercados do Amazonas. A diminuição da oferta e,
consequente aumento do preço, abalou o sistema alimentar de grande parte da população.
Este evento evidenciou a necessidade de se avaliar os possíveis impactos das variações
extremas dos regimes hidrológicos na produção de alimentos que compõe a dieta amazônica
e as flutuações em seu preço.
Nas cidades que compõem a microrregião do Alto Solimões (Tabatinga, Benjamin
Constant, Atalaia do Norte, São Paulo de Olivença, Amaturá, Santo Antônio do Icá,
Tonantins, Jutaí e Fonte Boa), o acesso se dá primordialmente por via fluvial e, em alguns
casos, por via aérea, por este motivo, são consideradas de difícil acesso e classificadas como
cidades isoladas (SILVA, 2011). No entanto, as “dificuldades de acesso” não impedem a
circulação de mercadorias, dentre as quais, encontram-se os gêneros alimentícios.
O mercado, como uma forma de organização social, envolve tanto a compreensão
cognitiva, quanto as relações sociais concretas (FLIGSTEIN, 2001, p. 32). As maneiras pelas
quais os diferentes mercados estão organizados representam de forma significativa a
sociedade. De fato, o mercado, como estrutura social, pode ser representado pelos seus
94 - João Cândido André da Silva Neto, Natacha Cíntia Regina Aleixo e Leonice Seolin Dias (Orgs)

espaços de fixos (as infraestruturas propriamente ditas) e os seus espaços de fluxos (as
diferentes redes de mercadorias e de informação sobre elas). O conhecimento e acesso a
esses espaços determinam as diferentes formas de inserção social. O mercado é
considerado, cada vez mais, uma instituição importante em termos de aquisição de
alimentos, porém, as formas tradicionais de acesso a gêneros alimentícios (produção de
subsistência, caça, pesca, extrativismo e trocas não monetárias) ainda são uma importante
fonte de alimentos no Amazonas. Esta é uma realidade da Amazônia, onde toda forma de
extrativismo, pesca e caça ainda é possível, e na qual, a produção para subsistência e as
relações não monetárias de troca são elementos da cultura local (WINKLERPRINS; SOUZA,
2005; PADOCH et al., 2008; NODA, 2011; VAN VLIET et al., 2015).
A produção e o extrativismo local ainda representam uma parte importante dos
alimentos frescos que são consumidos na região amazônica, no entanto, a concentração das
pessoas nos centros urbanos, como na Tríplice Fronteira (Brasil-Peru-Colômbia), com quase
200 mil pessoas, faz com que surjam novas opções alimentares com diferentes cores e
sabores - mesmo que artificiais -, os quais são oferecidos nas prateleiras dos supermercados.
A facilidade de consumir também passa a ser determinante na hora da escolha do que
comer, já não se faz necessário plantar, nem caçar e nem mesmo entender a origem do
alimento que será consumido, basta ter dinheiro, que, em muitos casos, é suprido pelas
aposentadorias, Bolsa Família e, no estado do Amazonas, pelo Bolsa Floresta.
Na Amazônia, em especial na Amazônia Ocidental, devido à localização geográfica e
acessibilidade, esta realidade se reproduz de forma específica. Se por um lado a sociedade e
a natureza ainda interagem, refletindo uma dinâmica local própria, por outro lado, o acesso
a bens industrializados, principalmente alimentícios, encurta a distância e as diferenças
regionais, homogeneizando os hábitos alimentares e configurando regiões.

O abastecimento nas vilas no Alto-Alto Solimões, Amazonas

Os municípios que compõem a microrregião do Alto Solimões apresentam os mais


baixos índices de desenvolvimento social, não só do Amazonas, mas também do Brasil. A
agricultura familiar praticada no Amazonas e, por conseguinte, nesta microrregião, está
pautada fortemente na produção de farinha, frutas (com destaque para a banana, abacaxi e
melancia), e algumas raízes tuberosas, como a macaxeira e a mandioca. O extrativismo e a
pesca também compõem a cesta de oferta de produtos oriundos da agricultura local, e que
Dinâmicas Socioambientais na Amazônia Brasileira - 95

são comercializados nas cidades. Neste contexto, de vulnerabilidade social e agricultura


familiar, compreender a estrutura da rede urbana e o papel que as Vilas têm no
abastecimento da região é de suma importância para se promover políticas públicas mais
adequadas à realidade local.
Os produtores de Atalaia do Norte, Benjamin Constant, São Paulo de Olivença e
Tabatinga, cidades localizadas na região do Alto Solimões no estado do Amazonas, se
caracterizam por praticarem a agricultura familiar, a pesca-caça e a criação de animais de
pequeno porte. Essa produção sustenta o consumo familiar, mas também apresenta uma
importante participação no abastecimento regional (SALES et al., 2008; SCHOR et al., 2015).
É interessante considerar o fluxo de mercadorias e pessoas na região fronteiriça.
Devido à deficiência na fiscalização e à flexibilização gerada por acordos entre os países sul-
americanos, o comércio de mercadorias via Peru/Brasil, e vice-versa, acontece
normalmente, seja por meio dos meios legais ou por meio do contrabando. O resultado é
que, muitas vezes, não sabemos qual a real procedência dos produtos que, na maioria das
vezes, não possuem identificação do fabricante ou do produtor, como é o caso dos produtos
hortifrutigranjeiros que se misturam aos produtos brasileiros na feira e nos
estabelecimentos comerciais.
Deve-se considerar a análise do abastecimento na Amazônia como uma questão que
compreende a demanda e a oferta de alimentos nas cidades e quais fatores as configuram.
Referente às demandas, temos um processo de urbanização em curso, com um forte
componente financeiro explicitado nas diversas políticas de desenvolvimento social, que
transforma rapidamente os hábitos alimentares das populações, principalmente a brasileira.
No tocante à oferta, tem-se o fato de que a produção rural no Amazonas não
atende a demanda das cidades, mesmo que classificadas como pequenas. Não se tem no
Amazonas uma agroindústria que produza os itens que compõem a cesta básica brasileira ou
regionalizada, o que torna o Amazonas fortemente dependente da produção externa, tanto
nacional quanto internacional, em especial, a peruana. Esta dependência e o fato de que o
acesso à maioria das cidades no estado se dá principalmente por via fluvial, implica em uma
complexa rede de abastecimento. Esta rede é fortemente definida pela sazonalidade das
cheias e vazantes dos rios que, por sua vez, configuram-se em diferentes distâncias para o
mesmo lugar. Neste mundo definido pelas águas, a localização das cidades e das vilas implica
em uma complexa rede urbana que define a microrregião.
96 - João Cândido André da Silva Neto, Natacha Cíntia Regina Aleixo e Leonice Seolin Dias (Orgs)

Analisaremos as Vilas, localizadas no que vamos chamar de Alto-Alto Solimões, pois


são aquelas que fazem parte da rede urbana polarizada pelas cidades sedes dos municípios
de Tabatinga e São Paulo de Olivença. Existe, entre as duas cidades, um sistema de
transporte diário, efetuado por pequenas lanchas rápidas que fortalecem a ligação entre as
mesmas, e as Vilas com paradas estratégicas em Belém do Solimões e em Santa Rita Weill.
Santa Rita Weill é um enclave comercial dentro da Terra Indígenas Ticuna Éware 1 e 2, e dá
acesso por via rodoviária (no período da seca) a Campo Alegre-Vila Independência.
As Vilas selecionadas para a análise são as que têm uma população, estimada pelo
IBGE (2010), com mais de mil habitantes.

Quadro 1 : Vilas com mais de 1.000 habitantes na microrregião do Alto-Alto Solimões - AM.

VILA MUNICÍPIO HABITANTES

Feijoal Benjamin Constant 1069

Campo Alegre São Paulo de Olivença 1686

Betânia Santo Antonio do Iça 1060

Belém Tabatinga 1840

Fonte: IBGE, 2010.

Uma das principais dificuldades encontradas para se analisar o abastecimento foi o


transporte entre as sedes-municipais e as Vilas. Com custos elevados e distância amazônica,
tivemos que adaptar o planejamento às possibilidades financeiras e de tempo. Todas as Vilas
são maiores do que o esperado, tanto em termos populacionais, quanto em extensão. A
estimativa obtida em campo para a Vila de Belém do Solimões, em termos populacionais,
por meio de entrevista com agentes de saúde e lideranças religiosas, além da contagem de
domicílios, variou entre cinco (5) e seis (6) mil pessoas.
Todas as Vilas têm sérios problemas de abastecimento de água, em algumas o
abastecimento é inexistente, gerando graves problemas de saúde. No período da seca
(agosto), havia grave falta d'água para consumo humano, principalmente na Vila de Campo
Alegre, onde choveu menos e a água coletada já havia se esgotado.
Dinâmicas Socioambientais na Amazônia Brasileira - 97

Todas as Vilas são dependentes de termoelétricas para o abastecimento de energia


o que as tornam extremamente vulneráveis, com racionamento diário de energia e, em
alguns casos, a sua ausência completa. No período da seca, a distância para o abastecimento
de diesel para as termoelétricas torna-se um problema.
As Vilas de Feijoal, Belém do Solimões, Campo Alegre e Betânia estão localizadas
em Terra Indígena Ticuna Éware I e II, nas quais, predomina a língua Ticuna. Nestes locais,
apresentamos o projeto de pesquisa aos caciques, lideranças, antigos professores e gestores
das escolas e à equipe de saúde da SESAI. Em todas as Vilas o projeto foi aprovado, e, em
contrapartida, estamos elaborando um material com os resultados do projeto, além de
instalar réguas de medição de cota e um curso de inclusão digital por geoprocessamento
com software-livre (QGIS).
Nas Vilas indígenas existem sérios problemas sanitários, com a quase inexistência
de banheiros, e a proliferação de doenças de veiculação hídrica, além de malária, conforme
relatado pelos médicos e enfermeiros da Secretaria Especial da Saúde Indígena (SESAI) local.
Além disso, de acordo com relato desta mesma equipe, existe um sério problema com
alcoolismo e altas taxas de suicídio nas Vilas indígenas.
Cada uma das vilas tem uma unidade de paisagem diferenciada, o que tornou
necessária a análise de vulnerabilidade hídrica do local.

Quadro 2: Síntese das Vilas do Alto-Alto Solimões-AM.

VILAS VISITADAS UNIDADE DE ESTIMATIVA RELIGIÃO


PAISAGEM POPULACIONAL (POR
AGENTES LOCAIS)
FEIJOAL “Ponta de Terra Perto de 6.000 (Gestora da Forte presença
15
da
Firme” escola e funcionário da Santa Cruz e igrejas
FUNAI) neopentescostais
BELÉM DO Terra Firme-plana Entre 6.000 – 9.000 Capuchinos
SOLIMÕES (SESAI e padres) franciscanos desde
1871 e igrejas
neopentescostais
CAMPO ALEGRE Várzea 5.000 (gestora da escola e Batista
SESAI)

BETÂNIA Terra Firme-colinas 5.000 (cacique) Batista

Fonte: SCHOR, Caderno de Campo Cidades & Vilas, abr. 2015.

15 Vertente brasileira AEMINPU – Associação Evangélica da Missão Israelita do Novo Pacto Universal, os
israelitas peruanos que são forte na agricultura do Alto Solimões.
98 - João Cândido André da Silva Neto, Natacha Cíntia Regina Aleixo e Leonice Seolin Dias (Orgs)

As Vilas são dependentes de gêneros alimentícios externamente oriundos.


Encontramos somente banana pacovã e farinha, produzidos localmente. A principal fonte de
proteína advém da caça e da pesca. Esses produtos são trazidos pelos barcos comerciais,
como o N/M Voyager V. Estes barcos levam mercadorias de Manaus e trazem de volta
produtos locais, que variam dependendo da época do ano. Na comunidade de Santa Rita
Weill, que dá acesso a diversas comunidades e à Vila de Campo Alegre, na Terra Indígena
Éware I, o comércio peruano é significativo, com suas próprias redes de abastecimento. No
período da enchente, na visita à Vila de Campo Alegre (várzea), os moradores estavam
colhendo mandioca e fazendo farinha para tentar não perder a plantação.
Somente na Vila de Belém do Solimões, encontramos uma Associação de Mães,
organizadas pela Igreja Católica, que conseguia vender seus produtos para o Programa de
Regionalização da Merenda Escolar do Estado (PREME). Pudemos observar a venda de cana-
de-açúcar, além da banana. Em Belém do Solimões, observamos várias crianças comendo
bacuri, o que reforça a tese de que o acesso às frutas públicas, ou seja, às árvores ou
palmeiras frutíferas que não tem dono e ficam em áreas de uso comum, ainda é uma fonte
importante de micronutrientes, principalmente para as crianças.
As Vilas têm enorme carência de informações, os dados demográficos são confusos,
mesmo os do IBGE, também inexistem dados de produção ou mapas de arruamento.
Inexistem estudos de articulação que estas Vilas têm com as comunidades do entorno e
nenhuma discussão sobre a origem desta concentração demográfica. O que se percebe é um
forte vetor de urbanização em curso.
As Vilas que se urbanizam ao longo da calha do Rio Amazonas/Solimões são
abastecidas por alimentos pelos fluxos desta rede, ou seja, navegações que saem
semanalmente do porto de Manaus, carregados de mercadorias para serem vendidas nas
cidades e nas vilas ao longo da calha. O local de comercialização são as tabernas e os
mercadinhos distribuídos na vila. Pode-se considerar estes mercadinhos como nódulos fixos
desta rede. Eles foram identificados como os principais fixos que atuam no setor varejista da
comercialização de produtos alimentícios. Não existem distribuidores fixos nas vilas. O
agente organizador da distribuição são os barcos regionais, mais conhecidos como recreios.
Estes recreios são como distribuidoras fluviais ambulantes que saem semanalmente do porto
de Manaus, com toneladas de alimentos em seus porões, abastecendo os comércios
varejistas da microrregião. O principal deles é o Voyager V. que navega de Manaus para
Atalaia do Norte, abastecendo diretamente, nove cidades e duas vilas do Alto Solimões.
Dinâmicas Socioambientais na Amazônia Brasileira - 99

Estes barcos vendem um mix de mercadorias, variando de computadores,


eletrodomésticos, bicicletas, motos a água mineral. Poderíamos classificá-los como grandes
supermercados fluviais.
Estudos recentes (RIBEIRO, 2012; MACHADO, 2013; SOUZA, 2014) mostram a
importância da agricultura peruana para o abastecimento das cidades de fronteira
brasileiras e os produtos oriundos da agroindústria brasileira, em especial o frango, ovos,
salsicha e calabresa oriundos do sul do país. A entrada de novos produtos, principalmente os
derivados da agroindústria brasileira nestes mercados, está relacionada à introdução de
novas tecnologias de transporte e comunicação que encurtam o tempo e as distâncias a
cada novidade, seja um barco com motor mais potente (as “lancha a jato”), quer seja a
ampliação do serviço de telefonia celular. Essa aliança entre o mercado, tecnologia e a
necessidade de lucro, faz com que a chegada de produtos industrializados, entre em
competição com a produção local de alimentos in natura, já que inexiste um sistema
agroindustrial na região, modificando gradativamente os hábitos alimentares e culturais.
Mas a inserção desses produtos industrializados trazidos de fora da região (inclusive de fora
do estado do Amazonas, no Brasil, e do Departamento de Loreto, no Peru, que não são
autossuficientes em termos de produção de alimentos), além de ser negativo para a
economia local, é ruim para a qualidade da alimentação dessa população, acarretando um
aumento na quantidade de gorduras, açúcares e sal, provenientes dos produtos
industrializados. A Amazônia, apesar da fartura de peixes e frutas tropicais, segue o padrão
mundial e nacional de aumento significativo da obesidade e das doenças relacionadas à
alimentação inadequada, como a diabetes e a hipertensão (IBGE, 2011), consideradas
doenças tipicamente urbanas.
O mercado é, cada vez mais, uma instituição importante em termos de aquisição de
alimentos, porém, as formas tradicionais de acesso a gêneros alimentícios (produção de
subsistência, caça, pesca, extrativismo e trocas não monetárias) ainda são uma importante
fonte de acesso a alimentos no Brasil e no Peru. Esta é uma realidade da Amazônia, onde
toda forma de extrativismo e caça é ainda possível, e na qual a produção para subsistência e
as relações não monetárias de troca são elementos da cultura local (WINKLERPRINS; SOUZA,
2005; PADOCH et al., 2008; NODA, 2011).
100 - João Cândido André da Silva Neto, Natacha Cíntia Regina Aleixo e Leonice Seolin Dias (Orgs)

A produção e o extrativismo local ainda representam uma parte importante dos


alimentos frescos que são consumidos na região amazônica, no entanto, a concentração nos
centros urbanos, como na Tríplice Fronteira (Brasil-Peru-Colômbia), com quase 200 mil
pessoas, faz com que surjam novas opções alimentares com diferentes cores e sabores –
mesmo que artificiais – os quais são oferecidos nas prateleiras dos supermercados. A
facilidade de consumir também passa a ser determinante na hora da escolha do que comer.
Já não se faz necessário plantar, nem caçar e nem mesmo entender a origem do alimento
que será consumido, basta ter dinheiro, que, em muitos casos, é suprido pelas
aposentadorias, Bolsa Família e, no estado do Amazonas, pelo Bolsa Floresta.
Na Amazônia, em especial na Amazônia Ocidental, devido à localização geográfica e
acessibilidade, esta realidade se reproduz de forma específica. Se por um lado a sociedade e
a natureza ainda interagem, refletindo uma dinâmica local própria, por outro lado, o acesso
a bens industrializados, principalmente alimentícios, encurta a distância e as diferenças
regionais, homogeneizando os hábitos alimentares (NARDOTO et al., 2011). A transformação
dos hábitos alimentares, do extrativismo e pequena produção para a “dieta do
supermercado” é um forte indicador de modernização e urbanização do território.
As transformações e permanências nos padrões alimentares são indicativos de
mudanças sociais complexas. O estudo dessas mudanças permite entender processos
diversificados, tais como a urbanização e seus reflexos na organização social e no indivíduo,
em especial, no tocante à saúde. A geografia da alimentação permite congregar em uma
análise multiescalar processos de transformação e também de permanência, pois a forma, o
ritmo e com o que as populações se alimentam, indicam, entre outros aspectos, fatores
culturais, impacto da agroindústria e desenvolvimento das redes comerciais e de
abastecimento (COSTA; SCHOR, 2013). A geografia da alimentação permite integrar análises
de saúde, cultura, economia e urbano em um só tema, por isso, mostra-se de suma
importância para se compreender os processos sociais em rápida transformação.
A análise das cidades e das vilas na Amazônia é essencial para a compreensão da
dinâmica espacial, pois a região congrega tempos e espaços diferenciados e desiguais, sendo
que alguns desses espaços se inserem plenamente na modernidade globalizada, enquanto
outros, se perpetuam na dinâmica local. Os tempos e os ritmos (LEFEBVRE, 1991)
diferenciados e desiguais dos processos sociais se sobrepõem na amplidão da floresta. A
proximidade dos dois principais centros urbanos da Amazônia (Manaus e Belém) não
Dinâmicas Socioambientais na Amazônia Brasileira - 101

implica, necessariamente, na sua inserção no ritmo da globalização, nem a sua distância ao


ritmo local. As distâncias física e social estão desconectadas. As conexões se dão muito mais
pelo acesso à informação e aos mercados, do que pela distância física. Produtos do
extrativismo como a pesca, a castanha e o açaí podem transitar por redes internacionais
independentes dos centros urbanos (MORAES; SCHOR 2010). Já produtos ligados ao
abastecimento local, tal como o frango industrializado, relacionam-se às redes de
comercialização que tem seu início no sul do país.

CONSIDERAÇÕES

A análise do abastecimento na microrregião do Alto Solimões é um exemplo de


como os tempos e os ritmos na Amazônia brasileira cerzem um tecido urbano desigual e
diferenciado. A análise do sistema de abastecimento, dos hábitos alimentares e da produção
local, conjugado com uma prospecção da rede urbana, por meio da articulação do
abastecimento local, permite outros olhares e novos entendimentos sobre a dinâmica da
microrregião do Alto Solimões na tríplice fronteira Brasil-Peru-Colômbia e, por
consequência, da Pan-Amazônia.
Analisar a geografia da fronteira por meio da geografia da alimentação e do
abastecimento, permite compreender a complexa dinâmica urbana e as relações cidade-
campo, uma realidade pautada pela vulnerabilidade hidrológica, cheias e secas extremas,
que impacta a região do Alto Solimões, tanto em termos de acesso, quanto de produção. A
rede urbana estabelecida a partir da análise destas variáveis indica o forte aspecto
transnacional, no qual se estabelece uma rede urbana Pan-Amazônica, com alimentos
oriundos dos três países. O Brasil participa com os produtos oriundos da agroindústria da
região Sul (frango e calabresa) e de outras regiões, em especial o Centro-Oeste (óleo de soja,
açúcar e café); o Peru com produção rural local (produtos frescos) e de outras regiões
peruanas, como na costa e o altiplano (cebola roxa, milho, batata); e alguns produtos
específicos, como o chocolate e o café, da Colômbia.
Pelos fluxos de alimentos, pode-se estabelecer uma rede urbana intensa que vai das
cidades de San Pablo de Loreto, no Peru, até as cidades fronteiriças de Tabatinga, Benjamin
Constant e Atalaia do Norte. O Comércio peruano, não só de alimentos, é importante em
toda a região do Alto Solimões, podendo ser encontrado da fronteira até os municípios de
São Paulo de Olivença, Santo Antonio do Içá, Tonantins e Jutaí. Nestes municípios mais
distantes encontram-se menos produtos frescos oriundos da agricultura peruana e mais
produtos chineses que entram pelos portos peruanos.
102 - João Cândido André da Silva Neto, Natacha Cíntia Regina Aleixo e Leonice Seolin Dias (Orgs)

Existe um produto alimentício que é simbólico, pois sua presença é constante e


forte, a cebola roxa. A cebola roxa é um ingrediente importante na culinária peruana e é,
praticamente, o único tipo de cebola encontrada na microrregião do Alto Solimões. Todas
são oriundas da costa peruana e comercializadas por peruanos que estabelecem densas
redes de transporte e comércio.
Buscou-se neste estudo, trazer elementos inovadores para a compreensão da
dinâmica econômica e urbana na tríplice fronteira Brasil-Peru-Colômbia, analisando a rede
urbana por meio dos fluxos de alimentos e de produção local, e a importância destes no
abastecimento das cidades na região.
Bertha Becker, em seu texto “Pensando o futuro da Amazônia: o papel das cidades
em produzir para conservar” (2008), chama a atenção para o papel que as cidades podem e
devem ter no desenvolvimento econômico e social da Amazônia. Um desenvolvimento com
conservação, pois esta seria a nossa “vantagem comparativa” como região.
Para a autora, as cidades na Amazônia têm um papel central no desenvolvimento
regional, como centros de organização das relações sociais e da produção, “produzir para
conservar torna-se a meta de um novo padrão de desenvolvimento. E as cidades são
condições-chave para viabilizá-las” (2008, p. 278). Construir um desenvolvimento regional
no qual as cidades têm um papel importante, associadas a cadeias produtivas completas, é
necessário para que se constituam processos capazes de contribuir para superar impasses
estruturais na região e favorecer o seu desenvolvimento.
Becker (2008) compreende que as cidades foram sempre a base logística da vida
sociopolítica e da organização da produção regional, sustentando os surtos econômicos
oriundos de forças externas, assim como as drogas do sertão ou ciclo da borracha. Caberia
a elas, hoje, antecipar o novo padrão de desenvolvimento regional baseado na
combinação do uso não predatório do patrimônio natural e seu equipamento em serviços
e infovias (redes de informação) dos mais tecnologicamente avançados para a conexão
intrarregional e sua articulação em rede, pois são nas cidades que convergem as redes de
relações sociais, econômicas e políticas. Assim sendo, são as redes de cidades cruciais para
a expansão econômica por meio da substituição de importações e, no caso analisado,
importações de gêneros alimentícios.
Dinâmicas Socioambientais na Amazônia Brasileira - 103

Nesta linha argumentativa, Becker sugere que o planejamento territorial tenha


como base as cidades. Para isso, é necessário reconhecer que a estrutura produtiva em rede
é mais adequada à região. Mas não bastam ter fluxos, é necessário ter cadeias produtivas
completas que possam competir globalmente e atender as populações, revertendo o sentido
dos fluxos baseados na exportação de produtos da biodiversidade e importação de todo o
resto. Sem dúvida, é necessário equipar cidades com serviços básicos e avançados, como é o
caso de acesso à rede mundial de computadores (BECKER, 2008).
Concordamos com Becker (2008), pois a microrregião e a rede de cidades
regionais, locais e transfronteiriças do Alto Solimões aqui analisadas mostraram a
necessidade de se efetuar um planejamento territorial que tenha como nódulo de
desenvolvimento as cidades, pois são nelas que os processos de produção rural da
agricultura familiar encontram o seu mercado, e são nelas que a segurança alimentar é
posta em cheque ao depender de fluxos externos.
A investigação dos processos contemporâneos de urbanização na fronteira da
Amazônia Ocidental, proposta por este estudo, dialoga com o entendimento de Bertha
Becker (2008) sobre o papel da Amazônia e visa, por meio da compreensão do espaço
urbano na floresta, entender o processo mais amplo de formação territorial do Brasil. Para
tal, propõe inovações nas variáveis e metodologias de estudo do urbano, as quais podem
abrir para a geografia brasileira um amplo campo de debate e atuação.

AGRADECIMENTOS

Os resultados que embasam este artigo provêm das seguintes pesquisas:


PRONEX/FAPEAM – NEPECAB - “Cidades Amazônicas: dinâmicas espaciais, rede urbana local
e regional”, e “Segurança alimentar, a vulnerabilidade hidrológica e comércio: um estudo-
diagnóstico do papel das Vilas na microrregião do Alto Solimões, Amazonas.” CNPq
UNIVERSAL_441618/2014-6; “De olho nos eventos climáticos extremos: vulnerabilidade
hidrológica e segurança alimentar na Trplice Fronteira Brasil-Colômbia-Peru, Amazonas.”
CNPq 405823/2013-4; “Segurança alimentar e rede urbana na Amazônia: um estudo-
diagnóstico das Vilas na microrregião do Alto Solimões, Amazonas.”UNIVERSAL AMAZONAS
FAPEAM n. 062.00790/2015. A pesquisa foi produzida no âmbito do Núcleo de Estudos e
Pesquisas das Cidades na Amazônia Brasileira (NEPECAB). Agradecemos as fontes
financiadoras sem as quais o trabalho de campo na região seria impossível.
104 - João Cândido André da Silva Neto, Natacha Cíntia Regina Aleixo e Leonice Seolin Dias (Orgs)

REFERÊNCIAS

CANCLINI, N. G. Culturas híbridas: Estrategias para entrar y salir de la modernidad. México: Grijalbo, 1989.

CASTRO, J. Geografia da fome. 6. ed. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2006.

NARDOTO, G. G; MURRIETA, R. S.; PRATES, L. E.; ADAMS, C.; GARAVELLO, M. E.; SCHOR, T.; MORAES, A. O;
RINALDI, F. D.; GRAGNANI, J. G.; MOURA, E. A. F.; DUARTE-NETO, P. J.; MARTINELLI, L.A. Frozen, chicken for
wild fish: nutritional transition in the Brazilian Amazon Region determined by carbon and nitrogen stable
isotope ratios in fingernails. American Journal of Human Biology, 31 mar. 2011.

NODA, H. ; NODA, S. N.; MARTINS, A. L. U. Segurança Alimentar: importância das formas não monetárias de
acesso ao alimento nas comunidades tradicionais do Alto Rio Solimões-AM. In: FRAXE, T. J. P.; WITKOSKI, A. C.;
PEREIRA, H. S.. (Org.). Amazônia: cultura material e imaterial. São Paulo: ANNABLUME, 2011, v. 1, p. 247-267.

PADOCH, C., BRONDIZIO, E. S. COSTA, M. PINEDO-VASQUEZ, R. R. S. SIQUEIRA. A. Urban forest and rural cities: multi-
sited households, consumption patterns, and forest resources in: Amazonia: Ecology & Society, v. 13, n. 2, 2008.

SALES, J. P., NODA, S., MENDONÇA, M. A.; BRANCO, F. M. C. A pecuária no sistema de produção familiar na
microrregião do alto Solimões, Amazonas. Revista Brasileira de Agroecologia, v. 3, n. 1, 2008.

SCHOR, T.; TAVARES-PINTO, M. A.; AVELINO, F. C. C.; RIBEIRO, M. L. Do peixe com farinha à macarronada com
frango: uma analise das transformações na rede urbana no Alto Solimões pela perspectiva dos padrões
alimentares. Confins [Online], 24, jul. 2015. Disponível em: < HYPERLINK
"http://confins.revues.org/10254"http://confins.revues.org/10254>. Acesso em: 10 nov. 2015.

SILVA, R. R. Aglomerações populacionais na Região Norte do Brasil de 1980 a 2000: uma abordagem por meio
da Nova Geografia Econômica. 2011. 147 f. Tese (Doutorado em Economia Aplicada). USP - Escola Superior de
Agricultura “Luiz de Queiroz”, Piracicaba, 2011.

VAN VLIET, N.; QUICENO, M. P.; CRUZ, D.; JONHSON Neves de Aquino, L.; YAG'E, B.; SCHOR, T.; HERNANDEZ, S.;
NASI, R. Bushmeat networks link the forest to urban areas in the trifrontier region between Brazil, Colombia,
and Peru. Ecology and Society: a journal of integrative science for resilience and sustainability, v. 20, p. 21,
2015.

WINKLERPRINS, A. M. G. A; SOUZA, P. S. Surviving the city: urban home gardens and the Economy of Affection
in the Brazilian Amazon. Journal of Latin American Geographers, 4 (1), 2005.
Dinâmicas Socioambientais na Amazônia Brasileira - 105

Capítulo 7

AGROECOLOGIA E SOBERANIA ALIMENTAR: NOTAS INTRODUTÓRIAS SOBRE A


AGRICULTURA CAMPONESA NO ALTO SOLIMÕES, AMAZONAS, BRASIL16

José Aparecido Lima Dourado17

INTRODUÇÃO

As últimas quatro décadas foram marcadas por profundas transformações territoriais


na Amazônia brasileira, com a expansão da ocupação das áreas de florestas e seu consequente
desmatamento, a expansão urbana e a execução de grandes obras em função do momento de
euforia e expansão do grande capital, e da implantação de diversos projetos
desenvolvimentistas nessa fração do território nacional. Esses processos são repletos de
contradições porque representam a introdução de novos elementos no contexto regional, em
função da modernização do território na perspectiva de criar as condições necessárias ao
estabelecimento de redes para viabilizar o aumento do fluxo de capitais e serviços. A
incorporação dos sujeitos e lugares, até pouco tempo considerados “isolados” pela natureza ao
mundo economicamente globalizado, traz uma série de alterações na dinâmica socioespacial,
cujos rebatimentos interferem nas atividades desenvolvidas no campo e na cidade.
Cabe ressaltar que a integração da região amazônica à economia nacional (e,
consequentemente, global) faz parte da estratégia do Estado brasileiro em assumir a
hegemonia na América Latina, além de facilitar o acesso por parte do grande capital aos
recursos naturais existentes em abundância e “subutilizados”, sob a perspectiva
mercadológica que prima pela transformação da natureza em mercadoria. Embora essas
alterações espaciais venham ocorrendo de modo acelerado, muitas populações ainda
mantêm tradições, inclusive aquelas relacionadas ao trabalho na/com a terra. Porém,
advertimos que a manutenção das práticas e saberes tradicionais não significa que os modos
de vida se encontram “fossilizados”, pois esses sujeitos vão redesenhando seus modos de
vida, expressando, desta maneira, a dialética entre o contemporâneo e o tradicional.

16
Esse texto é produto dos projetos de pesquisa e extensão desenvolvidos na microrregião do Alto Solimões e
das orientações de monografias junto ao Curso de Geografia.
17
In memoriam. Coordenador do Núcleo de Pesquisa em Estudos Agrários, Território e Trabalho – NUPEATT.
Professor do Curso de Geografia da Universidade do Estado do Amazonas – Centro de Estudos Superiores de
Tabatinga de 2012 a 2015.
106 - João Cândido André da Silva Neto, Natacha Cíntia Regina Aleixo e Leonice Seolin Dias (Orgs)

Essa inserção da Amazônia no circuito da economia globalizada não sucumbiu os


saberes e fazeres dos camponeses, sendo que muitas comunidades mantêm modos de vida
pautados em relações não capitalistas de produção (MARTINS, 2010), como a prática do
ajuri18 e as trocas de alimentos e sementes.
Associadas às relações não capitalistas de produção é comum, entre os
camponeses, as práticas agroecológicas, ou seja, formas de uso e exploração dos recursos
naturais pautadas nos ciclos curtos e voltadas para a produção de alimentos consumidos
pela própria família, conservação do solo sem adição de fertilizantes ou agrotóxicos, uso de
técnicas para conservação de sementes e mudas de plantas, principalmente, a mandioca.
Diante do exposto, faz-se necessário repensar a realidade amazônica no sentido
de trazer à tona o debate sobre a Agroecologia (ALTIERI, 2004) e a soberania alimentar no
contexto da questão agrária, como forma de contribuir com o debate sobre a importância
do campesinato para a produção de alimentos, pois essa ação agrega outras dimensões
como as sociabilidades camponesas, a organização social e a manutenção e reprodução de
saberes e fazeres daqueles que vivem no campo. Pensar o campesinato para além do ato
de produzir, tem-se tornado um desafio, porque rompe com a ideia que concebe o
alimento exclusivamente como mercadoria, buscando resgatar as trocas e doações de
alimentos e enfatizar a sua importância para a coesão e manutenção das famílias em
muitas comunidades do Alto Solimões.

Agroecologia desde uma perspectiva amazônica: refletindo sobre a agricultura camponesa


no Alto Solimões (AM)

Ao teorizar sobre agroecologia, tendo como pano de fundo a agricultura camponesa


praticada na região Oeste do estado do Amazonas, algumas inquietações e dúvidas tornam-
se prementes e fazem surgir tensões no plano das ideias: de fato, as comunidades rurais
(indígenas e não indígenas) estariam fortalecidas a ponto de resistirem ou obstaculizarem a
entrada do pacote tecnológico da “Revolução Verde” em seus territórios? Como promover

18
Trata-se de uma estratégia camponesa de organização entre os moradores das comunidades para a realizar
atividades diversas, tais como preparo da área a ser cultivada, limpeza e colheita das lavouras, construção ou
reforma de casas, abertura de estradas vicinais, organização de festividades, entre tantas outras. Essa
estratégia é fundamental para manter a coesão entre os membros as comunidades, fortalecendo os laços de
afetividade e de reciprocidade.
Dinâmicas Socioambientais na Amazônia Brasileira - 107

as melhorias necessárias para ampliar a produção de alimentos sem recorrer a esse pacote
tecnológico? A atuação deficitária por parte das Agências de Assistência Técnica e Extensão
Rural (ATER) contribui para a manutenção das práticas agroecológicas nas comunidades
rurais do Alto Solimões ou acaba se tornando um empecilho para a reprodução dessas?
De antemão, afirmamos que não dispomos das respostas concretas para tais
questionamentos. No entanto, não consideramos essa incerteza como algo negativo, porque a
partir dela, é possível refletir sobre os desdobramentos das políticas públicas, visto que essas
são, em sua maioria, elaboradas com fortes apelos ao modelo de desenvolvimento agrário-
agrícola, pautado nos preceitos da modernização agrícola. Tal projeto coloca o Brasil como o
maior consumidor de agrotóxicos do mundo, sendo que em 2010, foram utilizados 1 bilhão de
litros dessas substâncias, movimentando mais de U$7 bilhões de dólares, segundo dados da
Agência Nacional de Vigilância Sanitária (ANVISA). Os debates acerca da liberação de uso de
novos produtos (sementes geneticamente modificadas e agrotóxicos) são acirrados, deixando à
mostra a fúria dos políticos da bancada ruralista e das grandes empresas do setor que buscam
fazer pressão junto aos órgãos de fiscalização, como é o caso da ANVISA.
Em 2013, veio à tona o caso da Dow AgroSciences, que fabrica o herbicida 2,4-D,
sendo essa uma das empresas que busca a liberação dos transgênicos associados a ele. Um
dos problemas levantados pelos órgãos de vigilância (ANVISA e CTNBio) é que a utilização de
sementes resistentes a determinados tipos de herbicidas acaba levando ao aumento do uso
desses agrotóxicos de forma significativa. O Brasil, além de ser o maior consumidor de
agrotóxicos do mundo, é também um dos maiores produtores de soja e milho transgênicos.
A expansão dos transgênicos teve como desdobramento o crescimento do mercado de
agrotóxicos no país, porque grande parte das sementes geneticamente modificadas possui
resistência a venenos agrícolas. Isso permite maior controle de pragas, todavia, impõe riscos
aos consumidores, segundo informa a ANVISA.
Altieri (2012) defende a necessidade de manter o isolamento geográfico de
determinadas áreas de agroecossistemas tradicionais e de germoplasma diversificado, pois
essas poderão exercer importante papel para a recuperação dos efeitos danosos causados
pela agricultura modernizada. Os camponeses do Alto Solimões embora não estejam, em
sua essência, isolados geograficamente, não estabelecem trocas de modo intenso com
outras regiões do estado ou mesmo do país. Todavia, em algumas situações, a atuação dos
órgãos de apoio à agricultura camponesa, como as Secretarias de Produção (estaduais e
108 - João Cândido André da Silva Neto, Natacha Cíntia Regina Aleixo e Leonice Seolin Dias (Orgs)

municipais) deve ser analisada com cautela, pois a introdução de sementes híbridas nas
comunidades rurais tem sido feita por meio desses órgãos. Tal fato suscita outro
questionamento: as comunidades camponesas do Alto Solimões mantêm as tradições
culturais em relação ao trabalho na/com a terra porque estão relativamente “isoladas” das
demais regiões do Brasil nas quais a modernização da agricultura se concretizou? Não
desconsideramos o fator geográfico, por entender que a superação da distância requer a
mobilização de todo um aparato envolvendo infraestrutura, meios de comunicação,
transporte e recursos humanos. Todavia, acreditamos que não há, ainda, um interesse
efetivo por parte do grande capital em incorporar essas áreas à produção de commodities,
haja vista que as demais regiões do país continuam sendo atrativas para seus investimentos.
Uma observação desprovida de certos pré-conceitos em relação à agricultura
praticada no Alto Solimões (AM) permite descobrir importantes elementos para analisar e
caracterizar a produção camponesa (indígena e não indígena), os desafios enfrentados pelos
camponeses amazônidos, bem como as estratégias utilizadas por esses sujeitos para
permanecer na terra de trabalho (MARTINS, 2010) e dela tirarem o sustento da família.
Embora resguardadas as devidas particularidades, que não são poucas, podemos afirmar
que os problemas verificados no campo, nessa fração do território brasileiro, não destoam
da realidade vivenciada nas demais regiões do país. Ou seja, falta de apoio por parte das
políticas públicas, inoperância dos órgãos responsáveis por dar suporte técnico e
organizacional às famílias assentadas (o INCRA é um desses exemplos), ausência de
infraestrutura para escoamento da produção e falta de organização entre os agricultores são
apenas alguns exemplos da longa lista de obstáculos experienciados cotidianamente por
aqueles que vivem no/do campo.
Caracterizada pela policultura praticada em pequenas áreas, a agricultura nos
municípios da microrregião do Alto Solimões revela toda a complexidade e dinâmica do
campesinato amazônico e sua relação com o rio, em função das lavouras cultivadas nas
áreas de vazantes, aproveitando, assim, as faixas de terras mais férteis para o cultivo de
espécies de ciclo curto. Essas experiências têm demonstrado viabilidade econômica e
ambiental, contribuindo para a reprodução do modo de vida camponês, além de colocar em
xeque a ideia equivocada de que a agricultura na Amazônia não possui importância para a
economia regional. A agricultura camponesa do Alto Solimões representa, entre outras
coisas, a possibilidade de produção de alimentos, geração de emprego, bem como a
manutenção dos saberes-fazeres de sujeitos heterogêneos (indígenas, não-indígenas,
caboclos, pescadores, etc.).
Dinâmicas Socioambientais na Amazônia Brasileira - 109

Para Altieri (2012, p. 182),

É justamente a capacidade de gerar e manter a diversidade de recursos genéticos


que concede aos pequenos agricultores um caráter único que não pode ser
replicado pelos outros agricultores que se fiam na uniformidade genética, mesmo
que dispunham das terras mais favoráveis.

Considerando esse importante papel desempenhado pela agricultura camponesa,


há que se pensar nos desdobramentos das políticas públicas e projetos desenvolvimentistas
implementados pelo Estado, cujo escopo é subordinar a produção camponesa aos ditames
do capital. Não raro são as investidas do capital e do Estado, no sentido de levar os
camponeses a produzirem matéria-prima para serem incorporadas às novas cadeias
produtivas, com destaque para os agrocombustíveis, carvão, celulose e setores da produção
de carnes (aves e suínos). As políticas públicas ainda não conseguiram assimilar as demandas
e necessidades da agricultura camponesa. Ao analisar os desdobramentos das ações do
Estado, no tocante ao apoio à produção camponesa, vê-se que os parâmetros tidos como
referência para a resolução dos problemas desse segmento são os mesmos utilizados para o
agronegócio. Nesse universo, desconsidera-se a importância que as tecnologias
participativas desempenham junto às comunidades camponesas para as quais essas seriam
mais adequadas, porque levam em consideração a participação e o envolvimento dos
sujeitos nos processos de resolução dos problemas que são inerentes ao seu cotidiano.
Impostas em sua maioria, as políticas públicas acabam transformando-se em obstáculos para
os camponeses, que não conseguem atender às exigências feitas para acessar tais
benefícios, dificultando sobremodo a sua permanência no campo.
Entender as tramas socioculturais que envolvem o trabalho desses homens e
mulheres com/na terra exige levar em consideração sua historicidade, mitos e lendas,
visto que todos esses elementos influenciam diretamente no modus vivendi do
agricultor camponês (vazanteiro ou de terra firme), bem como suas territorialidades. A
realidade conhecida por meio do contato com as comunidades rurais dos municípios de
Tabatinga, Benjamin Constant, Amaturá, Tonantins, São Paulo de Olivença e Atalaia do
Norte nos possibilitou conhecer as formas de cultivo (Foto 1), bem como perceber o
papel exercido pela agricultura para a manutenção da soberania alimentar da
população regional (do campo e das cidades).
110 - João Cândido André da Silva Neto, Natacha Cíntia Regina Aleixo e Leonice Seolin Dias (Orgs)

Foto 1 – Colheita da mandioca em área de terra firme.

Fonte: Trabalho de Campo, 2015.

Tratam-se de cultivos com baixo uso de insumos externos, mantendo ciclos


fechados de matérias e resíduos, devido ao fato da ausência do uso de agrotóxicos e
fertilizantes químicos, além da inexistência de financiamento por parte dos órgãos do
Governo (em suas diferentes escalas), o que decorre do fato de os agricultores não terem o
título de posse das terras, haja vista que, em sua predominância, eles são posseiros,
ocupantes de terras públicas. Essa agricultura praticada pelos camponeses do Alto Solimões
está fortemente relacionada à concepção de soberania alimentar, uma vez que eles não
possuem dependência dos agroquímicos e estão centrados na produção de alimentos com
grande importância nutricional e econômica para a região.
As principais culturas desenvolvidas no Alto Mandioca são: banana, abóbora, feijão
e milho, além de outras culturas com menor expressividade, como é o caso do tomate, da
cana-de-açúcar, da batata-doce, do pimentão, do pepino e das hortaliças. A partir dos dados
do IBGE (2013), constatamos que a mandioca é a cultura mais praticada nos municípios
analisados, sendo a mesma processada de forma artesanal nas casas de farinha (de uso
coletivo ou particular). Da mandioca são comercializados vários produtos, sendo os
principais, a farinha e o polvilho, alimentos muito apreciados pela população local.
Geralmente, o processo de produção da farinha e da tapioca envolve os membros da família
e, em algumas situações, faz-se mutirão entre os membros mais próximos da comunidade.
Dinâmicas Socioambientais na Amazônia Brasileira - 111

Essa é uma prática ainda muito presente entre os camponeses do Alto Solimões, fato que
revela a permanência de relações não capitalistas de produção no seio da sociedade
capitalista. A produção de frutas, como cupuaçu, abacaxi, melancia e açaí são expressivas
nos municípios pesquisados, contribuindo para a dieta alimentar da família, além de serem
comercializadas nas cidades, tanto a fruta quanto a extração da polpa, que é comercializada
in natura nas feiras.
Já nas lavouras permanentes, o destaque fica por conta da produção de banana,
largamente consumida pela população local, havendo diversas variedades na região, sendo
algumas delas oriundas do Peru, devido à proximidade da fronteira entre esse país e o Brasil.
Outras frutas, como o açaí, cupuaçu, pupunha, buriti, mapati, abil, cubil, camucamu, são
encontradas nas comunidades, sendo essas incorporadas à dieta alimentar local.
Os policultivos prevalecem com a associação das lavouras de mandioca, abacaxi,
milho, banana, feijão e de árvores frutíferas (cupuaçu, açaí, pupunha, entre tantas outras),
havendo alto nível de biodiversidade, conforme destaca Dourado (2013). Esses produtos
abastecem as feiras livres das cidades da região do Alto Solimões, oferecendo alimentos
frescos e com preços acessíveis para a população local. Essas, entre tantas outras práticas
dos camponeses, são exemplos de uma produção baseada nos princípios da Agroecologia. É
importante ressaltar que a diversificação agrícola e a alternância no uso do solo pelos
agricultores camponeses promovem a regeneração da fertilidade do solo e a manutenção da
produtividade, além de proteger as culturas. Baseadas no conhecimento tradicional, essas
práticas têm permitido manter a diversidade de espécies mediante o armazenamento e a
troca de sementes entre os próprios camponeses e indígenas. Os laços culturais das famílias
camponesas amazônicas com a terra, a água e a floresta são, sob nossa perspectiva de
análise, um instrumento fundamental na luta contra o envenenamento da terra, da água,
dos alimentos e dos trabalhadores, tanto no tocante ao plano simbólico quanto no concreto.
As práticas agrícolas desenvolvidas pelos camponeses nesses municípios, em sua
maioria, estão livres do uso de agrotóxicos, fato merecedor de atenção por parte dos órgãos
do Estado e da própria sociedade civil, pois significa que os alimentos produzidos nessa
região e comercializados nas feiras livres das cidades estão isentos de contaminação pelo
uso de agrotóxicos. Todavia, durante os trabalhos de campo foi possível observar a
introdução do uso de agrotóxicos em duas comunidades, a saber, no município de Benjamin
Constant e em Tabatinga. Observamos que o uso de agrotóxicos pelos camponeses, embora
112 - João Cândido André da Silva Neto, Natacha Cíntia Regina Aleixo e Leonice Seolin Dias (Orgs)

seja um fenômeno pouco expressivo, vem ocorrendo em duas situações específicas: nas
lavouras de maracujá e nas áreas a serem cultivadas, para eliminar as gramíneas pelo uso de
herbicidas (desfolhantes). Mesmo não sendo uma prática corriqueira, esse fenômeno é
merecedor de atenção por parte das agências de assistência técnica (ATER), bem como pelos
demais órgãos do Estado que tratam da agricultura, já que tal atitude representa uma
mudança de comportamento por parte do camponês, o qual utiliza os herbicidas como
alternativa para a falta de mão de obra.
Nesse sentido, há que se compreender a importância e o significado da agricultura e
dos camponeses para a sociedade atual, pois esses sujeitos estão inseridos num conflituoso
campo de embate e debate político-ideológico. Pensar sobre suas estratégias de reprodução
e em seu modo de vida, nos coloca o desafio e a necessidade de abordar disputas que vão
desde o plano político até a luta pela terra e pelo território, este último, enquanto elemento
importante para a sua própria existência, seja ele camponês, indígena, quilombola ou
ribeirinho. As estratégias utilizadas pelos camponeses do Alto Solimões para reexistirem e se
reproduzirem, enquanto sujeitos sociais, trazem à tona a constante busca desses sujeitos
pela valorização de sua identidade territorial, muitas vezes, expressa por suas práticas
socioculturais. Não basta apenas a terra, é preciso que os camponeses tenham as condições
adequadas para poderem produzir, escoar e comercializar o excedente fruto do trabalho
familiar, pois esta é condição sine qua non para a sua permanência em um universo repleto
de contradições, o qual persiste em negar a existência do agricultor como camponês.
A modernização do campo, em sua essência perversa e concentracionista, procura
considerar o camponês como um sujeito residual, em vias de extinção, tendo-o como
arcaico/atrasado para dar vazão ao discurso do desenvolvimento para o campo trazido por
eles. Todavia, as pesquisas realizadas nas comunidades rurais no Alto Solimões têm
demonstrado que o campesinato se reproduz com vivacidade no seio do capitalismo,
mediante a luta cotidiana pela manutenção da família, do trabalho, da diversidade cultural e
dos agroecossistemas. A Agroecologia se insere nessa discussão como um elemento de
enfrentamento ao discurso hegemônico, cujas análises vêm acenando para a uniformidade
do campo a partir da sua modernização, baseada na mecanização, na monocultura e no uso
intensivo de agrotóxicos. Ante o exposto, o enfrentamento e a disputa por território ficam
evidentes, pois a valorização e incentivo à Agroecologia, em sua essência, contestam o
agronegócio, as multinacionais do setor de sementes e agrotóxicos, bem como a
desvalorização da agricultura pautada em conhecimentos oriundos de práticas seculares.
Dinâmicas Socioambientais na Amazônia Brasileira - 113

Embora a agricultura camponesa no Alto Solimões seja vista com certa descrença
por parte dos órgãos de governo, bem como por uma parcela da sociedade, cuja concepção
de agricultura é baseada no modelo do agronegócio, as experiências produtivas verificadas
nas comunidades rurais, onde foram realizados os trabalhos de campo, possibilitam-nos
fazer alguns apontamentos, no sentido de suscitar o debate sobre qual modelo de
agricultura prevalecerá nas próximas décadas na região e quais as alternativas endógenas a
serem fortalecidas para garantir o desenvolvimento territorial para a sustentabilidade do
campo. Nessa arena de conflitos, muitos desafios estão postos para os agricultores
camponeses do Alto Solimões em função de uma série de fatores: em primeiro lugar, porque
a concepção de desenvolvimento pautado na lógica da produtividade do agronegócio chega
com força, mesmo onde esse não está presente; em segundo lugar, as políticas e ações
implementadas pelo Estado trazem em seu cerne o ideário da base tecnológica, pautada na
“Revolução Verde”; por último, mas não encerrando a lista de complicadores, temos ainda o
marketing midiático, que vai construindo de forma paulatina e ascendente a negação à
agricultura tradicional e familiar.
Esse emaranhado de elementos políticos e ideológicos traz impactos nefastos para
a agricultura camponesa, porque o modus operandi das forças controladoras é, em sua
essência, conflituoso, com a perspectiva de aceleração da produção com vistas a atender o
paradigma do desenvolvimento econômico. Ao enveredar pela temática da Agroecologia, é
necessário atentar ao fato de que, enquanto no contexto brasileiro há autores que discutem
o assunto a partir da transição agroecológica, a realidade empírica sob a qual debruçamos é
rica em experiências produtivas pautadas nos princípios agroecológicos, e na qual, o saber
popular e tradicional deve ser respeitado e considerado como um instrumento
potencializador do desenvolvimento local, a partir de um paradigma que leve em
consideração as dimensões sociopolíticas e culturais dos sujeitos a serem beneficiados,
como forma de trilhar caminhos potenciais para a emancipação. Tal perspectiva é
desafiadora, uma vez que demanda a necessidade de valorar as iniciativas locais de
organização da produção e do trabalho, para garantir que o modelo agrícola de base
agroecológica, centrado no controle social e participação popular, continue hegemônico no
Alto Solimões, podendo constituir um exemplo exitoso para o desenvolvimento agrícola a
ser adotado em outras regiões do Brasil, onde a agricultura baseada no modelo industrial
atingiu seu ápice de saturação. Outros modelos de desenvolvimento para o campo são
114 - João Cândido André da Silva Neto, Natacha Cíntia Regina Aleixo e Leonice Seolin Dias (Orgs)

possíveis e viáveis e devem ser considerados pelo Estado ao formular as políticas públicas,
de modo a atentar para as demandas e interesses daqueles que vivem no campo e que
vivenciam diretamente os efeitos de tais ações. É necessário avançar na construção de
alternativas que promovam a diminuição das desigualdades sociais e de acesso aos recursos
financeiros para haver uma alteração no cenário atual do campo brasileiro, em que o
agronegócio concentra os recursos públicos de incentivo ao passo que a agricultura
camponesa conta com parcos financiamentos, sendo muitos deles inacessíveis por conta dos
trâmites burocráticos exigidos.

Tecendo (in)conclusões...

De fato, desde a Revolução Verde, a agricultura camponesa sofre os efeitos de um


projeto articulado entre o Estado e o capital para alargar as fronteiras agrícolas e invisibilizar
os camponeses, considerando-os como um resíduo a ser incorporado pela agricultura
modernizada sob a forma de mão de obra nas lavouras produtoras de commodities, ou
ainda, expulsando-os para as periferias urbanas, mediante perversos processos
desterritorializantes. As experiências oriundas das atividades de pesquisas e extensão nos
impede de tirar conclusões peremptórias sobre a situação dos camponeses no Alto
Solimões, pois embora não disponham de assistência técnica ou organização que os
permitam acessar as políticas públicas de apoio à agricultura camponesa, os camponeses
continuam a produzir muito daquilo que consomem diariamente. Essa realidade mostra
quão atual se faz o debate sobre a importância da produção camponesa para a soberania
alimentar regional, bem como para a manutenção de toda uma gama de material genético,
visto que muitas comunidades possuem a tradição de guardar sementes e mudas para o
período seguinte de cultivo.
Ainda que a agricultura camponesa jamais tenha perdido a sua expressão e
vitalidade, entendida aqui como a capacidade de produzir alimentos e transformar essa
particularidade em um elemento de disputa por território, reconhecemos a necessidade das
comunidades de se organizarem, de modo a se fortalecer social, política e economicamente,
permitindo a continuidade na terra de trabalho. Num país em que o lobby do agronegócio
açambarca volumes astronômicos de financiamentos públicos e invade, inclusive, os
horários da mídia televisiva, para demonstrar as suas benesses, cabe repensar como a
Dinâmicas Socioambientais na Amazônia Brasileira - 115

agricultura camponesa tem sido apresentada nos discursos midiáticos, bem como no cerne
das políticas públicas de desenvolvimento territorial, pois há um claro alinhamento entre os
setores do governo, a agricultura empresarial e os conglomerados agroquímicos, destaque
para a Monsanto, a Syngenta, a Bunge & Born, Bayer, entre outras que buscam manter o
controle sobre a produção de alimentos (sementes, principalmente).
Pensar a agricultura camponesa no Alto Solimões exige reconhecer sua
vulnerabilidade, pelo fato de, mesmo que timidamente, o uso de agrotóxicos em algumas
lavouras se faz presente, com destaque para o maracujá e a melancia, fato indicador da
introdução do pacote tecnológico da modernização agrícola nessa região. Por essa razão, a
discussão sobre Agroecologia e soberania alimentar ganha relevância em função dos efeitos
negativos que esse fenômeno pode acarretar para as comunidades. Quanto aos processos
de reprodução do campesinato no Alto Solimões, pensarmos os contextos do redesenho dos
territórios, estejam eles em disputa ou não, demonstra que muitas práticas agroecológicas
envolvendo o conjunto dos saber-fazer continuam a ser reproduzidos pelos camponeses,
mesmo a despeito da face moderna da agricultura nesse limiar de século XXI. A reprodução
camponesa coloca por terra as teses que defendem a homogeneização do campo via
modernização conservadora, trazendo à tona os constructos políticos e ideológicos inerentes
ao pacote tecnológico da Revolução Verde.
Apesar de todas as dificuldades vivenciadas cotidianamente, as famílias
camponesas continuam o labour na terra, de onde advém parte significativa da renda e dos
alimentos consumidos localmente, desafiando assim, os prognósticos daqueles que
defendem a extinção do campesinato. A Agroecologia surge nesse emaranhado de discursos
e ações desagregadoras, como um elemento diferenciador, porque representa o dualismo
manutenção-resistência, sendo essa última, aqui entendida como o ato de reexistir,
reinventar, reelaborar as práticas e os saberes a partir das experiências cotidianas. Importa
destacar que não se trata de uma visão a-histórica dos sujeitos, mesmo porque é idílica a
concepção de que os camponeses vivem à margem das transformações socioespaciais
decorrentes da economia globalizada.
A partir dessa análise, deve-se reconhecer que o campesinato tem um papel
fundamental no contexto da produção de alimentos, tendo muito a colaborar, inclusive com
a manutenção e preservação da agrobiodiversidade regional. Agroecologia e soberania
alimentar surgem como dois temas importantes e que devem ser colocados na pauta de
116 - João Cândido André da Silva Neto, Natacha Cíntia Regina Aleixo e Leonice Seolin Dias (Orgs)

discussão das políticas públicas voltadas para a agricultura camponesa, no intuito de


fortalecer política, social e economicamente os camponeses, permitindo-lhes enfrentar as
situações de vulnerabilidade a que estão sujeitos. Esses têm sido temas espinhosos porque
requerem considerar as particularidades dos sujeitos em seus diferentes contextos
socioespaciais, sendo tais elementos desprezados pelos formuladores das políticas públicas.

REFERÊNCIAS

ALTIERI, M. Agroecologia: bases científicas pata uma agricultura sustentável. São Paulo: Expressão Popular,
2012.

ALTIERI, M. Agroecologia: a dinâmica produtiva da agricultura sustentável. Porto Alegre: Editora da UFRGS, 2004.

BRASIL. Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE). Disponível em: <www.ibge.gov.br>. Acesso em:
12 mai. 2014.

DOURADO, J. A. L. Papel da Agroecologia frente a crise alimentar mundial: olhares sobre as práticas
agroecológicas na mesorregião do Alto Solimões (AM), Brasil. In: ACTA Geográfica, Boa Vista, Ed. Esp.
Geografia Agrária, 2013. p. 265-276.

MARTINS, J. S. O cativeiro da terra. São Paulo: Editora Contexto, 2010.

.
Dinâmicas Socioambientais na Amazônia Brasileira - 117

Capítulo 8

TÃO LONGE, TÃO PERTO! DIFERENÇAS E SEMELHANÇAS ENTRE DOIS MUNICÍPIOS


AMAZÔNICOS LIMÍTROFES: ALTAMIRA E SÃO FÉLIX DO XINGU, PARÁ

Ricardo de Sampaio Dagnino19

INTRODUÇÃO

O estudo das populações e as formas de ocupação do espaço amazônico, além de não


ser tarefa fácil, em decorrência de uma série de limitações técnicas e teóricas, é uma tarefa que
muitas vezes avança em direção a um debate muito relevante para a sociedade brasileira, qual
seja, o estado atual e a dinâmica de uma das mais estratégicas regiões da América do Sul.
Este trabalho realiza uma reflexão baseada nos dados primários dos Censos
demográficos de 2000 e 2010, e em referências secundárias apresentando as diferenças e
semelhanças entre dois municípios paraenses, Altamira e São Félix do Xingu, que até 1961
formavam uma única área, o município de Altamira.
Para tanto, é utilizada uma abordagem que vai além da escala municipal e está atenta
para as dinâmicas nos espaços intramunicipais: sedes municipais, vilas, povoados rurais e Áreas
Protegidas (AP), tais como Unidades de Conservação (UC) e Terras Indígenas (TI).
Dentro do imaginário brasileiro sobre a Amazônia destacam-se dois pontos de vista
complementares: de um lado, estão as noções de uma paisagem uniforme e monótona, que
não tem aderência com a compartimentação e a diversidade fisiográfica e ecológica
identificada por Ab’Sáber (1996a, p. 131) e a ideia de homogeneidade que não reconhece as
diferenças internas (BECKER, 2001). De outro lado, está a ideia de um “vazio demográfico”
que esteve presente desde os primeiros projetos de ocupação da região e cuja propaganda
mais emblemática era de “terra sem gente, para gente sem terra”. A noção de paisagem
homogênea, no fundo, colabora com a proposta de substituir o “inferno verde” para dar

19
Geógrafo, Mestre em Geografia e Doutor em Demografia. Pesquisador do Laboratório Urbanização e Mudanças
no Uso e Cobertura da Terra (l-UM) da Universidade Estadual de Campinas. Pesquisador de Pós-Doutorado na
Faculdade de Ciências Aplicadas da Universidade Estadual de Campinas e bolsista do projeto Observatório das
Migrações em São Paulo da Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo.
E-mail: ricardosdag@gmail.com.
118 - João Cândido André da Silva Neto, Natacha Cíntia Regina Aleixo e Leonice Seolin Dias (Orgs)

lugar ao progresso e ao desenvolvimento. A justificativa de que se tratava de um espaço


florestal sem população foi um dos argumentos utilizados para que assim fosse mais fácil
cometer atrocidades com as populações pré-existentes na região, como os indígenas e seus
descendentes. Os espaços relativamente pouco ocupados e esparsamente povoados
existiam de fato e permanecem até os dias atuais. Mas espaço desabitado não representa
necessariamente que não seja utilizado para extração de recursos e preservação de modos
de vida. Pelo contrário, o que se sabe, atualmente, é que existe na Amazônia uma grande
diversidade de grupos sociais, em grande medida ainda desconhecida ou pouco valorizada
(PAGLIARO et al., 2005).
Sobre essas áreas aparentemente monótonas e vazias foi pensada uma geopolítica de
expansão e consolidação das fronteiras do Brasil. Em termos populacionais, os sem-terra do
Sul e os retirantes da seca do Nordeste iriam para as áreas rurais da Amazônia, ao invés de
inflar o meio urbano com seu êxodo rural. A partir dos anos de 1960, a dinâmica migratória da
região foi marcada pela força centrífuga de grandes fluxos de migrantes inter-regionais em
direção à região Norte (MARTINE; CAMARGO, 1984). Dos anos 60 para os dias atuais,
ocorreram intensas mudanças na mobilidade espacial da população no Brasil, que passou a
experimentar a migração de retorno (CUNHA, 2006; CUNHA; BAENINGER, 2005). Na Região
Norte, além da migração de retorno, ocorreu a transição de uma área de atração para virar
uma área consolidada no período 1986-1991, e mais recentemente, uma área de expulsão,
devido à perda de dinamismo econômico no período pós 1990 (BAENINGER, 2002).
O paradoxo da expansão da fronteira na Amazônia foi o crescimento da
urbanização. Grande parte do fluxo de migrantes terminou em ocupações e atividades
econômicas não agrícolas, muitas vezes localizados em áreas urbanas (MARTINE; TURCHI,
1988, p. 188; OLIVEIRA, 1996, p. 187). A importância das áreas urbanas para entender a
Amazônia foi tão grande, que muitos autores passaram a denunciar a antiga propaganda de
uma floresta intocada e vazia contrapondo a esta, a visão de uma “floresta urbanizada”,
termo cunhado por Bertha Becker nos anos de 1980 (BECKER, 2005, p. 73), de uma
“urbanização extensiva”, descrita por Monte-Mór (1994) a partir das “conexões entre a
urbanização que se estende para além das cidades em redes que penetram virtualmente
todos os espaços regionais integrando-os em malhas mundiais” e culminando com uma
“urbe amazônida” (BECKER, 2013).
Dinâmicas Socioambientais na Amazônia Brasileira - 119

Para contextualizar a urbanização atual da Amazônia, os dados do Censo 2010


(IBGE, 2011a), processados por Dagnino (2014), mostram que na maior parte dos 771
municípios que fazem parte da Amazônia Legal, predomina a população urbana. Lembrando
que os dados oficiais seguem a classificação do IBGE para área rural e urbana, e este órgão
obedece a divisão político-administrativa estabelecida pelas prefeituras e pelas leis
municipais vigentes até uma certa data definida para cada Censo. No caso do Censo 2010,
foi 31 de julho de 2010 (IBGE, 2011b, p.18). Contudo, o IBGE possui a liberdade de realizar
uma classificação das áreas urbanas ou rurais utilizando alguma das oito subcategorias
existentes (IBGE, 2003, p. 7-8, p. 25-26).
Apesar da grande urbanização, o peso da população residindo em áreas rurais é
significativo: são 27,5% da população dos municípios da Amazônia Legal residindo no meio
rural, enquanto que no Brasil, este percentual é de 15,6%. Especificamente em São Félix do
Xingu (SFX), 50,6% residem no meio rural e em Altamira (ATM) esse percentual é de 15,1%.
Em 280 dos 771 municípios, que correspondem a 36,3% do total de municípios, o grau de
urbanização (que equivale ao percentual de população urbana em relação à população total)
é inferior a 50%, ou seja, predomina a população rural sobre a urbana. A concentração da
população em pequenas áreas fica evidente ao constatar que, em 2000, 93% da população
da Amazônia Legal vivia em 18% da área (HOGAN et al., 2008, p. 109-110).

ALTAMIRA E SÃO FÉLIX DO XINGU: PROCESSOS DE OCUPAÇÃO E ECONÔMICOS

No sul do estado do Pará, onde o crescente processo de urbanização convive com


altas taxas de queimadas e desflorestamento dentro da área conhecida como Arco do
Desmatamento da Amazônia (BECKER, 2007), localizam-se os municípios de Altamira e São
Félix do Xingu (Mapa 1). Municípios estes, inseridos em um contexto regional de expansão das
fronteiras e que aparecem muitas vezes associados à grilagem; especulação de terras, que são
utilizadas por proprietários não para a produção, mas como reserva de valor (SAWYER, 1984,
p. 23-24); criação de gado em Áreas Protegidas; ocupação privada de terras públicas e
precárias condições de trabalho em fazendas, inclusive escravidão (SCHMINK; WOOD, 2012;
THÉRY et al., 2012) e a precariedade das condições de vida em áreas isoladas (BRUM, 2004).
120 - João Cândido André da Silva Neto, Natacha Cíntia Regina Aleixo e Leonice Seolin Dias (Orgs)

A gênese de São Félix do Xingu (SFX) está diretamente ligada à Altamira (ATM) de
onde o território foi desmembrado em 1961. Já ATM foi originado bem antes, depois da
divisão do município de Souzel, em 1911. Atualmente, ATM é o maior município do Brasil em
termos de área territorial e SFX é o sexto. Nos territórios dos dois municípios, predominam
as áreas rurais e de floresta de baixa densidade demográfica, e as populações estão bastante
concentradas em áreas urbanas de cidades e vilas ou aglomerados rurais, como povoados e
aldeias. Entretanto, se ATM possui apenas duas áreas urbanas – a sede municipal localizada
ao norte do município, às margens do Rio Xingu e da BR-230 (Transamazônica) e a sede
distrital de Castelo dos Sonhos, localizada no sul do município e distante, por via aérea, cerca
de 650 km da cidade de Altamira –, SFX possui cinco áreas urbanas, além da sede municipal,
são quatro vilas (sedes distritais): Ladeira Vermelha, Nereu, Taboca e Lindoeste, criadas
entre os anos de 2000 e 2010.
Apesar de um passado comum, ATM e SFX enquadram-se em processos de
crescimento e concentração urbana distintos. Por um lado, SFX viveu um processo de
“urbanização espontânea” (BECKER, 1985, p. 363), isto é, quando ocorre ação indireta do
Estado com estradas e incentivos fiscais, vilas e povoados dispersos dominados por centros
regionais e ausência de cidades médias. Esta não é uma característica somente de SFX e
ocorre em grande parte da região sudeste do Pará, onde SFX está localizada (AMARAL et al.,
2001, p. 23-24). Além disso, esta “urbanização espontânea” parece caracterizar as áreas
urbanas da Vila Taboca, que se destaca pela grande quantidade de habitantes e a
importância histórica para a mineração, e a Vila Lindoeste, pela sua relação com a
agricultura familiar. Por outro lado, em ATM, pelo menos na sua fase mais recente de
ocupação, e, sobretudo, com relação a sua sede localizada às margens da BR-230
(Transamazônica), ocorreu uma “urbanização dirigida” (BECKER, 1985, p. 364), ou seja,
quando existe um processo executado pelo Estado ou companhias colonizadoras
particulares, fundamentada no urbanismo rural do INCRA.
Dinâmicas Socioambientais na Amazônia Brasileira - 121

Mapa 1 – Localização dos Municípios de Altamira e São Félix do Xingu.

Fonte: Censo 2010 (IBGE, 2011a). Elaboração: Autor, 2015.


122 - João Cândido André da Silva Neto, Natacha Cíntia Regina Aleixo e Leonice Seolin Dias (Orgs)

O mesmo padrão “dirigido” colaborou na consolidação da Vila Castelo dos Sonhos


(CDS), um centro urbano do município de Altamira que desponta como um importante
entreposto localizado no meio do trajeto entre Cuiabá e Santarém. Caracterizada por uma
urbanização que cresce alimentada pela expectativa de asfaltamento da rodovia federal BR-
163, que atravessa a vila, e pela expulsão da população do campo, motivada pela
concentração fundiária, violência no campo, especulação e grilagem (RIBEIRO e CASTRO,
2008, p. 193). Devido a sua importância regional e autonomia perante a sede municipal,
Castelo dos Sonhos poderia ser caracterizada, utilizando a tipologia espacial proposta por
Cardoso e Lima (2006, p. 74), como “Sede de município ou agrovila à margem de rodovia”,
apesar de ser uma sede distrital e não uma sede municipal.
A importância das estradas na configuração do território é marcante em toda a
Amazônia oriental e em Altamira e São Félix do Xingu isso não é diferente. Para
perceber o motivo disso, observe o exemplo da BR-163. Essa estrada corta
verticalmente o Brasil e serviu de rota para os imigrantes vindos do interior da Região
Sul, seguindo a sucessão de ciclos econômicos em direção à Região Norte. Assim, em
décadas passadas, essa estrada serviu de acesso à região do Rio Tapajós para
trabalhadores que seguiram o ciclo do garimpo depois do fechamento da Serra Pelada
e o ciclo da madeira a partir do norte do Mato Grosso (BARBIERI, 2000; SAUER, 2005, p.
114; GUEDES, 2005, p. 11; SANTOS JÚNIOR et al., 2008, p. 43). Nos últimos anos, ela
tem servido como um dos principais eixos para a logística de exportação da soja
brasileira, ligando as lavouras do interior do Mato Grosso até o porto de Santarém, no
Rio Amazonas. Por fim, destaca-se o papel da BR-163 como um dos vetores do avanço
do desmatamento em direção à SFX sobre as florestas e a região da Terra do Meio.
Embora essas ligações não sejam identificadas por sobrevoos ou imagens de satélite, os
relatos apontam que existem ligações da BR-163 com SFX, seja partindo da Vila de
Castelo dos Sonhos, atravessando o Rio Iriri e mais de 400 km pela floresta em direção
à cidade de SFX (CASTRO et al., 2002, p. 8, p. 28, p. 67), ou no caminho contrário,
saindo de SFX em direção à ATM, motivada pelo avanço da frente madeireira vinda de
Redenção e da rodovia estadual PA-150 (SANTOS JÚNIOR et al., 2008, p. 53).
Dinâmicas Socioambientais na Amazônia Brasileira - 123

A história econômica da Amazônia se entrelaça com as histórias de Altamira e São


Félix do Xingu desde os ciclos extrativistas da borracha e recursos minerais até o momento
atual de expansão da indústria extrativa mineral altamente tecnificada. Assim, o Pará é o
estado brasileiro que atualmente representa a mais impressionante expansão mineral-
metalúrgica e elétrica (SEVÁ FILHO, 2008, p. 4). Porém, é importante referenciar
espacialmente que grande parte dessa expansão se dá em territórios intraestaduais bem
definidos e conectados. Exemplo disso são os processos de extração, beneficiamento e
transporte dos minérios realizados na mesorregião Sudeste Paraense – que abrange São Félix
do Xingu – onde 63,44% do território está coberto por poligonais requeridas para mineração,
muitos deles localizados dentro de Áreas Protegidas (CORRÊA, 2011, p. 10). Esses processos
estão ligados à construção da Usina Hidrelétrica de Belo Monte, tornando o Rio Xingu, na
região de ATM, uma grande jazida de megawatts para alimentar, entre outras atividades, a
indústria extrativa na região de SFX. Por outro lado, Altamira, diferentemente de São Félix do
Xingu, ocupa no estado uma posição econômica estratégica em relação aos espaços sub-
regionais e tem como principal função a formação do mercado e o desenvolvimento da
produção e a circulação ampliada (SANTOS JÚNIOR et al., 2008, p. 26-27).
Os processos econômicos possuem reflexos nas formas e ritmos da distribuição
espacial da população, os quais podem ser mensurados na escala local. Em SFX, a atividade
mineradora destaca-se na formação da cidade e das demais localidades sendo que os
primeiros assentamentos surgem como complementos à atividade mineradora (CASTRO et
al., 2002, p. 118). Durante o período que vai do auge do garimpo, entre 1978 e 1979, até a
conclusão da estrada PA-279, em 1983, as áreas rurais de extração mineral atraíram tantos
trabalhadores que a população da cidade diminuiu revertendo a tendência de crescente
urbanização, tendência esta que foi retomada a partir de 1983, depois da estrada concluída,
com o aumento da população na cidade e na beira da estrada (SCHMINK; WOOD, 2012, p.
377). Associado ao processo de enfraquecimento das áreas de garimpo, no princípio dos
anos 1980, teve início o declínio dos povoados ribeirinhos em SFX em função do aumento da
população nos assentamentos na sede do município, segundo Monte-Mór (1984) apud
Schmink e Wood (2012, p. 360).
124 - João Cândido André da Silva Neto, Natacha Cíntia Regina Aleixo e Leonice Seolin Dias (Orgs)

Atualmente, a concentração das populações em vilas não está mais tão associada à
mineração e pode ser o reflexo da vocação pecuária de SFX, que a colocou como um dos
principais municípios criadores de gado do Brasil (SAIFI; DAGNINO, 2010).
Em ATM, os efeitos da construção da Usina Hidrelétrica de Belo Monte se tornam
espacialmente evidentes através de alterações como: (1) o aumento populacional que
ocorreu depois de 2010, com o anúncio da construção da Usina (SAIFI; DAGNINO, 2011;
DAGNINO; SAIFI, 2011); (2) o intenso crescimento da população indígena na cidade entre 2000 e
2010 (SIMONI, 2013, p. 71) sendo muitos desses indígenas, em especial a população Xipaya,
encontram-se em situação de risco em decorrência do alagamento de áreas habitadas
durante a formação do reservatório da Usina (SIMONI; DAGNINO, 2016). Destaca-se que
existem outras alterações que merecem mais estudos e que podem ser melhor entendidas à luz
do trabalho de Oswaldo Sevá Filho (2005).

ATM E SFX: UM RETRATO EM 2010

Os dados do Censo 2010 (IBGE, 2011a) indicam que o município de Altamira (ATM)
ocupa uma área territorial de 160 mil km² onde vivem 99 mil habitantes, e São Félix do Xingu
(SFX) ocupa 84 mil km², onde residem 91 mil pessoas. Em termos relativos, a soma das áreas
de ATM e SFX representa 19,6% do Pará e 2,9 % do território nacional, porém, em termos de
população residente, essa relação passa a ser de 2,5 % da população paraense e 0,1% da
nacional. Em relação aos 5565 municípios brasileiros, ATM é o 1º município brasileiro em
termos de área territorial e o 286º no ranking de município com mais população, o que o
coloca na posição 5528 em densidade demográfica, ou seja, um dos municípios com menor
densidade do Brasil. São Félix do Xingu é o 6º maior município, está em 309º lugar no
ranking de população, 5471º no ranking de densidade e em 4º lugar entre os municípios com
maior taxa de crescimento anual de população (entre 2000 e 2010, cresceu 10,2 % ao ano
(a.a.). Assim, pode-se afirmar que eles estão entre os municípios menos densos do país, o
que é diferente de dizer que exista um vazio demográfico.
As populações de ATM e SFX se distribuem pelos setores censitários classificados
como rurais e urbanos pelo IBGE (2011a) de maneira bastante distinta (Tabela 1). Em ATM, o
grau de urbanização já era maior que 80% em 2000, superior ao estado do Pará e bastante
próximo ao brasileiro. Em SFX, mesmo que a população urbana tenha crescido 13,67% a.a.
Dinâmicas Socioambientais na Amazônia Brasileira - 125

no período e o grau de urbanização tenha crescido nas últimas décadas, passando de 36%
para 49%, a população rural ainda é predominante e cresceu 7,6 % a.a. no período recente.
Avançando na análise da escala intramunicipal (Tabela 2), os dados do Censo 2010
(IBGE, 2011a) permitem concluir que se trata de uma distribuição da população bastante
polarizada nas áreas urbanas: 67,9% da população reside nessas áreas, sendo 58,48% nas
cidades e 9,38% nas vilas. As áreas rurais dos dois municípios abrigam 32,15% da população,
sendo 5,2% em Terras Indígenas, 4,6% em Unidades de Conservação e 22,4% em localidades
como povoados, núcleos e demais áreas rurais. Nota-se grande diferença entre as
densidades demográficas nas áreas urbanas e nas rurais, nas primeiras, ela fica em torno de
1000 habitantes por quilômetro quadrado20, enquanto que nas áreas rurais, a densidade não
ultrapassa 1,2 hab./km².

Tabela 1 – Brasil, estado do Pará, Altamira e São Félix do Xingu: População total, urbana e rural, e grau de
urbanização, em 2000 e 2010, e taxas de crescimento (% ao ano) da população total, urbana e r ural e
urbana, entre 2000-2010.

Ano e taxa de Unidade Territorial


População e Grau crescimento
de Urbanização geométrico anual Altamira São Félix do Xingu Pará Brasil
do período
2000 77 439 34 621 6 192 307 169 799 170
População Total 2010 99 075 91 340 7 581 051 190 755 799
2000-2010 2,49% a.a. 10,19% a.a. 2,04% a.a. 1,17% a.a.
2000 62 285 12 530 4 120 693 137 953 959
População Urbana 2010 84 092 45 113 5 191 559 160 925 804
2000-2010 3,05% a.a. 13,67% a.a. 2,34% a.a. 1,55% a.a.
2000 15 154 22 091 2 071 614 31 845 211
População Rural 2010 14 983 46 227 2 389 492 29 829 995
2000-2010 -0,11% a.a. 7,66% a.a. 1,44% a.a. -0,65% a.a.
Grau de 2000 80,4% 36,2% 66,5% 81,2%
urbanização 2010 84,9% 49,4% 68,5% 84,4%

Fonte: IBGE - Censos Demográficos 2000 (IBGE, 2003) e 2010 (IBGE, 2011a). Organização: Autor, 2015.

Nota: Taxa de crescimento foi calculada pelo autor e refere-se ao crescimento geométrico anual do período
entre 2000 e 2010. Grau de urbanização foi calculado pelo autor como o percentual de população residente em
áreas urbanas em relação ao total.

20
Importante notar que esta densidade demográfica nas áreas urbanas é calculada em Sistema de Informação
Geográfica com base nos dados dos setores do Censo 2010 (IBGE, 2011a) da seguinte forma, tendo como
exemplo uma cidade (sede municipal): População residente nos setores censitários da área urbana do distrito
sede dividido pela soma da área (km²) dos setores censitários urbanos da sede.
126 - João Cândido André da Silva Neto, Natacha Cíntia Regina Aleixo e Leonice Seolin Dias (Orgs)

Tabela 2 – Unidades territoriais intramunicipais de Altamira e São Félix do Xingu, 2010: área (km²), população
residente, em valores absolutos e percentuais, e densidade demográfica.

Área (km²) População residente em 2010 Densidade


Unidades territoriais intramunicipais (1)
Área Part. % População Part. % demográfica
120
(2)
Terras Indígenas 608 50,36 9 776 5,13 0,08
(2)
Unidades de Conservação 81 739 34,13 8 698 4,57 0,11
(3)
Cidades 103 0,04 111 353 58,48 1 078,6
(4)
Vilas 20 0,01 17 852 9,38 900,1
Demais áreas rurais 37044 15,47 42 736 22,44 1,2
239
Municípios de ATM e SFX (Total) 514 100 190 415 100 0,8

Fonte: IBGE – Censo 2010 (IBGE, 2011a) – Dados do Universo agregados por setores censitários.
Organização: Autor, 2015.

1. Calculada em Sistema de Informação Geográfica a partir dos dados populacionais e áreas (km²) dos setores
censitários.
2. Levou-se em conta somente a área e a população dentro dos municípios de Altamira e São Félix do Xingu.
3. Cidades são áreas urbanas definidas como sedes municipais.
4. Vilas são áreas urbanas definidas como sedes distritais.

ÁREAS PROTEGIDAS: TERRAS INDÍGENAS E UNIDADES DE CONSERVAÇÃO

No Brasil, as Unidades de Conservação (UC) e Terras Indígenas (TI) são Áreas


Protegidas (AP), podendo ser entendidas como pertencentes a uma “malha programada”
(BECKER, 1999, p. 30), no sentido que são territórios criados e diretamente geridos por
instituições federais/estaduais e superpostos à divisão político-administrativa municipal.
Além disso, a criação de Áreas Protegidas reforça a posição de destaque internacional do
Brasil em termos de riqueza em biodiversidade e sociodiversidade (AZEVEDO, 2013) e na
capacidade de associação entre elas, no que se conhece por sociobiodiversidade, como
sendo uma alternativa que unifica conservação ambiental, desenvolvimento econômico e
equidade socioeconômica.
Nos municípios de Altamira e São Félix do Xingu, esta malha da sociobiodiversidade
é formada por 23 AP – 14 TI e nove UC – e ocupa cerca de 200 mil quilômetros ou 85% do
território, com 18 mil residentes ou cerca de 10% da população total dos dois municípios, o
que representa uma baixa densidade demográfica, de 0,08 hab./km² (Mapa 2, Tabela 2).
Nesta região, as Áreas Protegidas foram criadas depois de intensa negociação entre
atores governamentais e não governamentais e procuram atender a diversos objetivos, sendo
que dentre eles estão: barrar os avanços do desmatamento e formar um dos maiores mosaicos
Dinâmicas Socioambientais na Amazônia Brasileira - 127

de AP do mundo (DAGNINO et al., 2010). O Mosaico da Terra do Meio (TDM) é formado por
nove APs – sete UCs (ESEC Terra do Meio, PARNA Serra do Pardo, RESEX Riozinho do Anfrísio,
RESEX Rio Xingu, RESEX Rio Iriri, APA Triunfo do Xingu, Floresta Estadual Iriri) e duas TIs (TI
Kuruaya e TI Xipaya). Possui 77,4 mil quilômetros quadrados, onde residiam 8,6 mil pessoas em
2010 (DAGNINO, 2014), e é delimitado pelo Rio Xingu, a leste, o estado do Mato Grosso, ao sul,
e as rodovias BR-163, a oeste e Transamazônica ou BR-230, ao norte. Em relação à redução do
desmatamento, as APs justificam-se, pois, os vetores do desmatamento nesta região vinham de
duas direções: de um lado avançavam a pecuária, a mineração e outros interesses, partindo do
município de São Félix do Xingu; de outro, o avanço da agricultura e da agroindústria desde o
estado do Mato Grosso e o sul do município de Altamira, avançando em direção à BR-163
(ESCADA et al., 2005). Embora estas AP tenham como alvo a redução do desmatamento,
objetivo que pode não estar se cumprindo21, elas também servem como garantia de acesso à
terra para uma população tradicional que historicamente sofre com casos de grilagem de terras
e expulsão. Cabe destacar que nas APs da Terra do Meio, parte das ameaças é originada por
habitantes de fora delas, às vezes, vivendo em longínquos centros urbanos do Tocantins e Goiás,
e não pelos residentes, como por exemplo, proprietários de terra, políticos de diversas esferas e
gestores públicos de órgãos estatais (DAGNINO, 2014).
A maior parte das APs de Altamira e São Félix do Xingu foi criada nos anos recentes,
sendo que apenas sete das 23 foram criadas antes do ano 2000, e com áreas em mais de um
município – em relação ao foco desse trabalho, apenas 12 estão totalmente contidas nos limites
de ATM e SFX. Segundo dados calculados por Dagnino (2014), das três APs que não possuíam
população em 2010 – PARNA Serra do Pardo, TI Arara, TI Badjonkore –, somente a primeira,
localizada em parte dentro de ATM e parte em SFX, pertence ao grupo das UCs de Proteção
Integral, que não prevê população residente, apesar de, nesse Parque, ter sido registrada uma
população de cerca de 300 pessoas em 2007. A ausência de população residente em território
de ATM e SFX dentro das outras duas Terras Indígenas pode indicar que: (a) existe população
residente nas TIs, mas estão nos territórios dos municípios vizinhos (TI Arara está dentro de
Altamira, Brasil Novo, Medicilândia, Uruará e TI Badjonkore está dentro de SFX e Cumaru do
Norte); (b) os dados de população não parecem ter boa qualidade, sendo que esta ausência de
população pode ser atribuída à má qualidade na coleta de dados.

21
Em relação ao papel das AP na redução do desmatamento na região, parece não haver um consenso no meio
acadêmico. De um lado, o trabalho de Soares-Filho et al. (2010) aponta duas UCs da TDM, a Estação Ecológica
da Terra do Meio (ESEC-TDM) e o Parque Nacional da Serra do Pardo (PARNA-SP), como exemplos notáveis de
redução do risco de desmatamento. De outro, Carrielo (2007, p. 2395) aponta que na Terra do Meio, o
desmatamento não recrudesceu após a criação das UC, mas ficaram de acordo com os índices encontrados na
literatura para a região, do Pará e da Amazônia Legal.
128 - João Cândido André da Silva Neto, Natacha Cíntia Regina Aleixo e Leonice Seolin Dias (Orgs)

Mapa 2 – Municípios de ATM e SFX: Áreas protegidas e População urbana nos setores censitários, 2010.

Fonte: Censo 2010 (IBGE, 2011a). Organização: Autor, 2015.

De alguma forma, essa malha, programada para conservar a biodiversidade e garantir a


sociodiversidade, se assemelha à especulação realizada pelos empreendimentos privados, só
que, neste caso, trata-se de uma especulação realizada pelo Estado, como mencionada por
Sawyer (1984). Nesse sentido, a natureza intocada existente nos parques e reservas podem
servir, realmente, como especulação, no sentido que uma reserva poderá ser usada no futuro
para outros propósitos que não a conservação, como por exemplo, a exploração de fármacos.
Dinâmicas Socioambientais na Amazônia Brasileira - 129

Muitas estradas da Amazônia também foram pensadas sob a lógica especulativa. O


Governo Federal projetava algumas estradas não com o intuito de construí-las, como seria
de se esperar, mas objetivando a federalização de áreas estaduais e criação de reserva de
terras. Foi assim durante quase duas décadas, período entre a aprovação do decreto-lei
1.164 (BRASIL, 1971) que permitia a federalização das áreas de entorno de estradas e o
decreto 2.375 (BRASIL, 1987) que o revogou. Mesmo que as estradas federais não saíssem
do papel, as terras situadas na faixa de 100 quilômetros de largura em cada lado do eixo de
rodovias na Amazônia Legal eram destinadas para a União (SCHMINK; WOOD, 2012, p. 220).
Dessa forma, o Governo Federal incorporou áreas estaduais utilizando esta artimanha
jurídica que resultou na maior usurpação da autoridade estadual em toda história moderna
do país (SCHMINK; WOOD, 2012, p. 433).
Dentre os exemplos da aplicação dessa lei (BRASIL, 1971) nos municípios estudados
estão duas rodovias federais projetadas, sendo que uma delas se liga a uma rodovia estadual
planejada, todas elas passando por onde atualmente existem Áreas Protegidas (Figura 2):
(1) a BR-158, que ligaria o município matogrossense de Barra do Garças a Altamira,
com extensão aproximada de 1.600 km (BRASIL, 1976), passando por onde hoje se localiza a
sede municipal de Ourilândia do Norte e a Vila Lindoeste, de São Félix do Xingu, e áreas à
leste da Vila Ladeira Vermelha, pertencente ao mesmo município. A faixa de 100 km desta
rodovia engloba áreas atualmente pertencentes às TIs Kayapó, Apyterewa, Trincheira
Bacajá, Araweté Igarapé Ipixuna, Koatinemo, Kararaô e Arara.
(2) a BR-235, que atravessaria o sul do território de ATM e SFX, ligando duas
rodovias existentes – a BR-163 em Novo Progresso com a PA-235, na Vila Casa de Tábua,
Município de Santa Maria Barreiras – com uma outra rodovia planejada, mas desta vez a
estadual PA-167, que ligaria a BR-235 com a BR-230, na sede municipal de Altamira. A faixa
de 100 km lateral da BR-235 engloba atualmente as TIs Badjonkore, Kayapó, Menkragnoti,
Panará e REBIO Nascentes da Serra do Cachimbo. A PA-167, embora não se saiba se existia
uma lei determinando a reserva das terras nas margens das rodovias estaduais planejadas,
acabou dando lugar ao que hoje é conhecido como o mosaico de Áreas Protegidas da Terra
do Meio, além das TIs Kararaô e Menkragnoti.
Por fim, as rodovias planejadas nos anos da ditadura militar na Amazônia, antes das
legislações ambientais mais rigorosas que passaram a exigir licenças prévias, de instalação e
de operação, acabaram por garantir a federalização das terras e a transformação delas em
reservas e facilitou a criação do que hoje se considera por Áreas Protegidas.
130 - João Cândido André da Silva Neto, Natacha Cíntia Regina Aleixo e Leonice Seolin Dias (Orgs)

CONSIDERAÇÕES FINAIS

O processo que envolve o avanço do homem, da sociedade e do Estado sobre os


espaços amazônicos está associado ao uso e à regulação desses espaços. Desta associação
resulta que os processos de ocupação humana e complexificação das redes do território na
Amazônia ocorram de forma distinta do que ocorre em outras regiões brasileiras.
Embora os processos de ocupação, ocorridos ao longo do tempo, tenham sido de
certa forma semelhantes – em função das próprias características históricas brasileiras –,
eles resultaram em situações diferentes, que se materializam em realidades distintas entre
si. Sobretudo quando se destaca a importância da visibilidade das populações que habitam
os espaços intramunicipais e, sobretudo, os espaços protegidos que são marcantes na
Amazônia Legal. Um olhar atento para esses espaços permite notar o crescimento da
população indígena que ocorreu nas áreas urbanas de Altamira e o papel de atração, mesmo
que temporária, que as cidades exercem sobre as populações rurais indígenas e tradicionais.
Nesse sentido, um olhar atento para a urbanização da Amazônia deve estar no
centro da agenda para o futuro da Amazônia (BECKER, 2013). Esta deve ser pensada sobre as
bases da conservação e o respeito à sociobiodiversidade e não mais como fonte de recursos
minerais, vegetais e energéticos. Assim, uma das propostas é colocar a malha programada
(BECKER, 1999) a serviço da sociobiodiversidade, visando a construção de uma inter-relação
entre a diversidade biológica e a diversidade de sistemas socioculturais (MDA et al., 2009,
p.9). Nesse viés, outras regiões da Amazônia poderiam se espelhar no que ocorre nesses dois
municípios, lembrando que eles abrigam 23 Áreas Protegidas, as quais, por sua vez, ocupam
200 mil quilômetros ou 85% da área total. Nestas Áreas Protegidas, deve-se destacar que
sua pouca ocupação em relação ao peso da população municipal não as desqualificam no
processo de conservação da natureza e dos modos de vida tradicionais. Pelo contrário, as
populações indígenas e tradicionais que ocupam estas áreas estão cada vez mais preparadas
para proteger suas terras e lutar contra as ameaças externas.
Por fim, um ponto importante dessa agenda para a Amazônia é ter consciência que
se trata de uma região onde o desenvolvimento deve ser cuidadosamente planejado e
monitorado: “Considerações ambientais devem ser os balizadores das ações. Com o tempo,
será reconhecido que o Brasil teve sorte de começar o desmatamento em tempos de
consciência ambiental” (HOGAN et al., 2010, p. 73).
Dinâmicas Socioambientais na Amazônia Brasileira - 131

REFERÊNCIAS

AB'SÁBER, A. N. Amazônia: proteção ecológica e desenvolvimento com o máximo de floresta-em-pé. (p. 131-
190). In: AB'SÁBER, A. N. Amazônia: do discurso à práxis. São Paulo: Universidade de São Paulo, 1996a. 319p.

AB'SÁBER, A. N. Documentos de crítica e contestação. (p. 223-235). In: AB'SÁBER, A. N. Amazônia: do discurso
à práxis. São Paulo: Editora da Universidade de São Paulo, 1996b. 319p.

AMARAL, S.; CÂMARA, G.; MONTEIRO, A. Análise Espacial do Processo de Urbanização da Amazônia - Relatório
Técnico. São José dos Campos, Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais, 2001.

AUBERTIN, C.; LÉNA, P. Apresentação. In: AUBERTIN, C. (Org.) Fronteiras. Brasília, UNB/ORSTROM, 1988.

AZEVEDO, M. Na minha gestão foram sete lideranças Guarani assassinadas. Carta Capital, Blog do Felipe
Milanez, 01 de outubro de 2013. Entrevista concedida a Felipe Milanez.

BAENINGER, R. Expansão, Redefinição ou Consolidação dos Espaços da Migração em São Paulo? Análises a partir
dos primeiros resultados do Censo 2000. In: XIII Encontro Nacional de Estudos Populacionais, Ouro Preto, 2002.

BARBIERI, A. Uso antrópico da terra e malária no norte de Mato Grosso, 1992 a 1995. Dissertação (Mestrado em
Demografia). Faculdade de Ciências Econômicas, Universidade Federal de Minas Gerais. Belo Horizonte, 2000.

BECKER, B. Amazônia – Geopolítica na virada do III Milênio. Rio de Janeiro, Ed. Garamond, 2007.

BECKER, B. Fronteira e urbanização repensadas. Revista Brasileira de Geografia, v. 47, n.3/4, 1985, p. 357-371.

BECKER, B. Os eixos de integração e desenvolvimento e a Amazônia. Revista TERRITÓRIO, v. IV, n. 6, 1999.

BECKER, B. Síntese do processo de ocupação da Amazônia: lições do passado e desafios do presente. (p. 5-28). In:
Ministério do Meio Ambiente. Causas e dinâmica do desmatamento na Amazônia. Brasília: MMA, 2001. 436p.

BECKER, B. Geopolítica da Amazônia. Estudos avançados, v. 19, n. 53, p. 71-86, 2005.

BECKER, B. A urbe amazônida: a floresta e a cidade. Rio de Janeiro, Garamond, 2013.

BRASIL. Decreto-Lei nº 1.106, de 16 de junho de 1970. Cria o Programa de Integração Nacional, altera a
legislação do impôsto de renda das pessoas jurídicas na parte referente a incentivos fiscais e dá outras
providências. Brasília, 1970.

BRASIL. Decreto-Lei nº 1.164, de 1º de Abril de 1971. Declara indispensáveis à segurança e ao desenvolvimento


nacionais terras devolutas situadas na faixa de cem quilômetros de largura em cada lado do eixo de rodovias na
Amazônia Legal, e dá outras providências. Brasília, 1971. (Revogado pelo Decreto-Lei nº 2.375, de 24.11.1987).

BRASIL. Decreto-Lei nº 1.473, de 13 de Julho de 1976. Altera o Decreto-lei nº 1.164, de 1 de abril de 1971.
Brasília, 1976.

BRASIL. Decreto-Lei nº 2375, de 24 de Novembro de 1987. Revoga o Decreto-lei nº 1.164, de 1º de abril de


1971, dispõe sobre terras públicas, e dá outras providências. Brasília, 1987.

BRUM, E. O povo do meio. Época, edição 333, 4 de outubro de 2004.

CARDOSO, A.; LIMA, J. Tipologias e padrões de ocupação urbana na Amazônia Oriental: para que e para quem?
In: CARDOSO, A. (org.) Urbano e o Rural na Amazônia. Diferentes Olhares em Perspectivas. Belém: Edufpa,
2006, pp. 55-93.
132 - João Cândido André da Silva Neto, Natacha Cíntia Regina Aleixo e Leonice Seolin Dias (Orgs)

CARRIELO, F. Terra do meio: análises de desflorestamento antes e após a decretação das Unidades de
Conservação e de Terras Indígenas – Resultados Preliminares. In: Anais XIII Simpósio Brasileiro de
Sensoriamento Remoto. Florianópolis, 2007. (p. 2389-2396).

CASTRO, E.; MONTEIRO, R.; CASTRO, C. Atores e Relações Sociais em novas fronteiras na Amazônia: Novo
Progresso, Castelo de Sonhos e São Félix do Xingu. Relatório técnico: Estudo sobre dinâmicas sociais na
fronteira, desmatamento e expansão da pecuária na Amazônia. Belém: Banco Mundial, julho de 2002, 152 p.

CORRÊA, V. Fronteira da exploração mineral na Amazônia: o setor mineral e a dinâmica demográfica da


mesorregião sudeste paraense. Dissertação (Mestrado em Demografia). Universidade Estadual de Campinas,
Instituto de Filosofia e Ciências Humanas. Campinas, 2011.

CUNHA, J. A migração no Brasil no começo do século 21: continuidades e novidades trazidas pela PNAD 2004.
Parcerias estratégicas, n. 22, p. 381 – 428, 2006.

CUNHA, J.; BAENINGER, R. Cenários da migração no Brasil nos anos 90. Cadernos do CRH, v. 18, n. 43, p. 87-101, 2005.

DAGNINO, R. Dinâmica demográfica e indicadores socioeconômicos em escala intramunicipal: Municípios de


Altamira e São Félix do Xingu, Estado do Pará, entre 2000 e 2010. Tese (Doutorado em Demografia) –
Universidade Estadual de Campinas, Instituto de Filosofia e Ciências Humanas. Campinas: UNICAMP, 2014.

DAGNINO, R.; SAIFI, S. E. Conflitos pela terra na Amazônia: o caso da região sudeste do Pará. ComCiência, v.
133, p. 72, 2011.

DAGNINO, R.; SAIFI, S. E.; LOMBARDI, T.; CARMO, R.; DANTONA, A. A ação dos atores envolvidos no processo
de criação de Unidades de Conservação na região da Terra do Meio (Estado do Pará). In: Anais do V Encontro
Nacional da Associação Nacional de Pós-graduação e Pesquisa em Ambiente e Sociedade, Florianópolis, 2010.

ESCADA, M.; VIEIRA, I.; AMARAL, S.; ARAÚJO, R.; AGUIAR, A. P. D.; VEIGA, I.; OLIVEIRA, M.; PEREIRA, J. L. G.;
FEARNSIDE, P. M.; VENTURIERI, A.; CARRIELO, F.; MONTEIRO, A.; CAMARA, G.. Padrões e Processos de
Ocupação nas Novas Fronteiras da Amazônia: Apropriação Fundiária e Uso da Terra no Xingu/Iriri. Estudos
Avançados, v. 19, n. 54, p. 9-23, 2005.

GUEDES, C. Relatório de apresentação das características socioeconômicas do território da BR163 PA. Itaituba,
Ministério do Desenvolvimento Agrário (MDA), dezembro de 2005.

HOGAN, D.; D’ANTONA, Á.; CARMO, R. Dinâmica Demográfica Recente da Amazônia. In. BATISTELA, M.; MORAN,
E.; ALVES, D. (Orgs.) Amazônia: Natureza e Sociedade em Transformação. São Paulo: Ed. USP, 2008. (p. 71-116).

HOGAN, D.; MARANDOLA JR., E.; OJIMA, R. População e Ambiente: desafios à sustentabilidade. São Paulo,
Edgard Blucher, 2010.
IBGE. Censo Demográfico 2000 - Agregado por Setores Censitários dos Resultados do Universo. 2 ed.
Documentação do Arquivo. Rio de Janeiro, 2003.

IBGE. Base de informações do Censo Demográfico 2010: Resultados do Universo por setor censitário. IBGE, Rio
de Janeiro, 2011a.

IBGE. Documentação do Arquivo: Base de informações do Censo Demográfico 2010: Resultados do Universo
por setor censitário. IBGE, Rio de Janeiro, 2011b.

MARTINE, G. Estado, economia e mobilidade geográfica: retrospectiva e perspectivas para o fim do século.
Revista Brasileira de Estudos de População, v. 11, n. 1, 1994, pp. 41-60.

MARTINE, G; CAMARGO, L. Crescimento e distribuição da população brasileira: tendências recentes. Revista


Brasileira de Estudos de População, v. 1, n. 1/2, p. 99-143, 1984.
Dinâmicas Socioambientais na Amazônia Brasileira - 133

MARTINE, G.; TURCHI, L. A urbanização da Amazônia: realidade e significado. In: VI Encontro Nacional de
Estudos Populacionais, v. 2, p. 161-189. ABEP, 1988.

MARTINS, J. Fronteira: a degradação do outro nos confins do humano. São Paulo: Contexto, 2009.

MDA - Ministério do Desenvolvimento Agrário; MMA - Ministério do Meio Ambiente; MDS - Ministério do
Desenvolvimento Social e Combate a Fome. Plano nacional de promoção das cadeias de produtos da
sociobiodiversidade. Brasília, julho de 2009.

MONTE-MÓR, R. São Félix do Xingu: o avanço da fronteira amazônica e um novo espaço em formação. Belo
Horizonte, Cedeplar, 1984. Apud SCHMINK, M.; WOOD, C. Conflitos sociais e a formação da Amazônia. Belém,
Ed. UFPA, 2012. [Primeira edição em inglês: 1992]

MONTE-MÓR, R. Urbanização extensiva e novas lógicas de povoamento: um olhar ambiental. In: SANTOS, M.;
SOUZA, M.; SILVEIRA, M. (Org.) Território: globalização e fragmentação (pp. 169-181). São Paulo:
Hucitec/Anpur, 1994.

OLIVEIRA, L. Perfil das condições de vida na Amazônia. Cadernos de Estudos Sociais. v. 12, n. 2, 1996. p. 181-201.

PAGLIARO, H.; AZEVEDO, M.; SANTOS, R. Demografia dos povos indígenas no Brasil. Rio de Janeiro: Fiocruz, 2005.

RIBEIRO, A.; CASTRO, E. Lei sobre gestão de florestas públicas e impactos na BR-163. In: CASTRO, Edna (Org.).
Sociedade, território e conflitos: BR-163 em questão. Belém, NAEA, 2008. (p. 189-222).

SAIFI, S. E.; DAGNINO, R. Questões atuais de população e ambiente na Amazônia brasileira: o contexto da Terra
do Meio (Estado do Pará). In: IV Congresso da Associação Latino Americana de População, La Habana, 2010.

SAIFI, S. E.; DAGNINO, R. Grandes projetos de desenvolvimento e implicações sobre as populações locais: o
caso da usina de Belo Monte e a população de Altamira, Pará. In: 2ª Conferência do Desenvolvimento. Brasília,
IPEA, 2011.

SANTOS JÚNIOR, R.; CASTRO, E.; ROCHA, G.; SÁ, M.; MATHIS, A.; MONTEIRO, M.; PUTY, C.; MONTEIRO, R.; CANTO,
O.; BENATTI, J. Estado e sociedade na BR 163: desmatamento, conflitos e processos de ordenamento territorial.
In: CASTRO, Edna (Org.). Sociedade, território e conflitos: BR-163 em questão. Belém, NAEA, 2008. (p. 13-83).

SAUER, S. Violação dos direitos humanos na Amazônia: conflito e violência na fronteira paraense. Goiânia:
CPT; Rio de Janeiro: Justiça Global; Curitiba: Terra de Direitos, 2005. 170p.

SAWYER, D. Fluxo e refluxo da fronteira agrícola no Brasil: ensaio de interpretação estrutural e espacial. Revista
Brasileira de Estudos da População, v. 1, n.1/2, p. 3-34, 1984.

SCHMINK, M.; WOOD, C. Conflitos sociais e a formação da Amazônia. Belém: UFPA, 2012. [Primeira edição em
inglês: 1992].

SEVÁ FILHO, A. O. Problemas intrínsecos e graves da expansão mineral, metalúrgica, petrolífera e hidrelétrica nas
Amazônias. In: I Seminário Nacional sobre Desenvolvimento e Conflitos Ambientais. Belo Horizonte, UFMG, 2008.

SEVÁ FILHO, A. O. (Org.). Tenotã-Mõ: Alertas sobre as conseqüências dos projetos hidrelétricos no rio Xingu.
São Paulo: International Rivers Network, 2005.

SIMONI, A.; DAGNINO, R. Dinâmica demográfica da população indígena em áreas urbanas: o caso da cidade de
Altamira, Pará. Revista Brasileira de Estudos de População, v. 33, 2016. Disponível em:
<http://dx.doi.org/10.20947/S0102-30982016a0020>. Acesso em: 10 out. 2016.

SIMONI, A. T. Demografia e identidade do povo Xipaya no Médio Rio Xingu, PA. Dissertação (Mestrado em
Demografia). Universidade Estadual de Campinas, Instituto de Filosofia e Ciências Humanas. Campinas, 2013.
134 - João Cândido André da Silva Neto, Natacha Cíntia Regina Aleixo e Leonice Seolin Dias (Orgs)

SOARES-FILHO, B.; MOUTINHO, P.; NEPSTAD, D.; ANDERSON, A.; RODRIGUES, H.; GARCIA, R.; DIETZSCH, L.;
MERRY, F.; BOWMAN, M.; HISSA, L.; SILVESTRINI, R.; MARETTI, C. Role of Brazilian Amazon protected areas in
climate change mitigation. PNAS, 107, 24, p. 10821-10826, 2010.

THÉRY, H.; MELLO, N.; HATO, J.; GIRARDI, E. Atlas do trabalho escravo no Brasil. São Paulo: Amigos da Terra -
Amazônia Brasileira, 2012.

WOOD, C.; CARVALHO, J. A. Demografia da desigualdade no Brasil. Rio de Janeiro: IPEA, 1994. (1 ed. em
inglês: 1988).
Dinâmicas Socioambientais na Amazônia Brasileira - 135

Você também pode gostar