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A TEORIA CRÍTICA:
ONTEM E HOJE
.°
5 edição
editora brasiliense
Copyright © by Barbara Freitag, 1986
Nenhuma parte desta publicação pode ser gravada,
armazenada em sistemas eletrônicos, fotocopiada,
reproduzida por meios mecânicos ou outros quaisquer
sem autorização prévia do editor.
ISBN: 85-11-14060-3
Primeira edição, 1986
5? edição, 1994
Introdução
Na primeira parte deste trabalho foi dada ênfase
à dimensão histórica da Escola de Frankfurt. Nesta
segunda parte serão focalizadas as idéias e temas cen
trais que movimentaram o debate entre os teóricos de
Frankfurt e seus críticos. Com isso, torna-se possível
transcender o nível meramente descritivo da primeira
parte, privilegiando-se a discussão de conteúdos e or
ganizando-se o material em torno de certos eixos temá
ticos, inicialmente já relacionados (a dialética da ra
zão, a dupla face da cultura e a questão do Estado).
A escolha desses entre os muitos temas e problemas
debatidos pelos críticos de Frankfurt segue alguns cri
térios que merecem uma breve explicação.
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Em primeiro lugar, é necessário delimitar este es
tudo, já que seria impossível em um pequeno volume
didático considerar todos os temas refletidos e levan
tados pelos frankfurtianos. A seleção aqui feita ba
seou-se, em segundo lugar, no critério da persistência
e reincidência dos temas durante todo o período de
produção dos teóricos críticos filiados à Escola entre
1920 e 1985. Os três temas acima mencionados —
a dialética da razão iluminista e a crítica à ciência,
a dupla face da cultura e a discussão da indústria cul
tural, e a questão do Estado e suas formas de legiti
mação na moderna sociedade de consumo — sempre
estiveram presentes nos trabalhos dos frankfurtianos
permeando, às vezes em conjunto e às vezes de forma
isolada, praticamente todos os trabalhos dos autores.
Houve, como veremos a seguir, um deslocamento do
interesse teórico — inicialmente explicitado por Hor-
kheimer — de problemas diretamente ligados à he
rança marxista (como as características da sociedade
capitalista baseada na divisão do trabalho, na produ
ção da mercadoria e da troca no mercado, a organi
zação do poder e a repressão pelo Estado ou a luta de
classes) para uma reflexão centrada em temas da cul
tura, em especial a estética (antes de mais nada a mu
sica), graças às contribuições específicas de Adorno,
depois da retomada das atividades do Instituto em
Frankfurt (depois de 1950).
A organização do material produzido pelos frank
furtianos em torno de certos eixos temáticos permite
fugir à seqüência cronológica ou à tendência indivi
dualizada e biográfica, evitando assim repetições des
necessárias. Possibilita, por isso mesmo, a exploração
mais aprofundada de certos temas.
A organização temática do material levanta, con
tudo, uma série de problemas que também deveríam
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ser conscientizados pelo leitor a fim de que não se dei
xe seduzir por simplificações apressadas e homogenei
zações indevidas.
A distinção desses eixos temáticos tem ainda uma
função didática, embora obedeça por vezes a uma ne
cessidade puramente lógica. A distinção proposta é de
exclusiva responsabilidade da autora, não sendo suge
rida por nenhum dos representantes da Escola, se bem
que se encontre implícita na obra de todos eles. Como
já foi dito, os três temas se permeiam, entrelaçam e
confundem, tanto na realidade analisada quanto na
obra dos autores. O procedimento analítico sugerido
ajuda a distinguir melhor certas dimensões do real,
representadas pela teoria, permitindo uma compreen
são mais adequada da sociedade analisada.
Cabe ainda lembrar que autores tão diferenciados
como Adorno, Horkheimer, Benjamin, Marcuse, Ha-
bermas, Schmidt, Tiedemann e outros revelam sensí
veis diferenças entre si, tanto em sua postura episte-
mológica quanto em suas estratégias políticas, enfati
zando de forma bastante'diversa os aspectos da reali
dade analisada. Essas diferenças serão ilustradas por
um lado com a discussão em torno dos conceitos de
razão, cultura, ciência, arte, Estado, etc., e, por ou
tro, com as diferentes estratégias propostas para pen
sar e modificar a realidade dada. Desta forma, pro
cura-se evitar uma falsa homogeneização. O termo Es
cola de Frankfurt ou a concepção de uma “teoria crí
tica” sugerem uma unidade temática e um consenso
epistemoíógico teórico e político que raras vezes existiu
entre os representantes da Escola. O que caracteriza a
sua atuação conjunta é a sua capacidade intelectual e
crítica, sua reflexão dialética, sua competência dialó-
gica ou aquilo que Habermas viria a chamar de “dis
curso”, ou seja, o questionamento radical dos pressu
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postos de cada posição e teorização adotada. O fato de
Adorno e Horkheimer terem escrito algumas obras em
co-autoria, como é o caso da Dialética do Esclareci
mento, levou muitos intérpretes a identificarem o pen
samento dos dois, considerando-os “almas irmãs”. As
diferenças entre um e outro teórico não podem ser
sempre devidamente consideradas no tratamento te
mático que se segue, mas não se deve perder a cons
ciência de que elas existem, o que se torna evidente
para aqueles que se aventurarem na leitura dos textos
específicos aqui relatados.
Primeiro momento
Em seu artigo “Teoria Tradicional e Teoria Crí
tica”, de 1937, reeditado posteriormente nos dois volu
mes intitulados Teoria Crítica (1968), Horkheimer
abre uma discussão que lançará o moderno pensa
mento sociológico em um profundo dilema, bem mais
marcante que a polêmica surgida no início do século
entre Max Weber e Rocher & Knies em torno dos juí
zos de valores e da-neutralidade nas ciências sociais.
Segundo Horkheimer não se trata, como no caso de
Weber, de distinguir entre juízos categóricos sobre fa-
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tos e juízos de valor (Sach- und Werturteilé), isto é, de
uma questão meramente metodológica. Trata-se para
Horkheimer de uma questão em última instância anto
lógica. A ciência e a filosofia moderna não podem con-
tentar-se hoje com uma discussão sobre juízos de fato e
de valor, elas têm que recorrer aos juízos existenciais.
Praticar teoria e filosofia é para Horkheimer algo inse
parável da idéia de nortear a reflexão com base em
juízos existenciais comprometidos com a liberdade e a
autonomia do homem. Horkheimer tematiza assim,
pela primeira vez, o profundo conflito existente entre a
dialética e o positivismo. Ao contrapor a filosofia de
Descartes (teoria tradicional) ao pensamento de Marx
(teoria crítica) descreve as características essenciais de
cada vertente do pensamento, seus objetivos e sua for
ma de atuação, denunciando o caráter sistêmico e con
servador do primeiro, e sublinhando enfaticamente a
dimensão humanística, emancipatória do segundo.
Max Horkheimer abriu com esse primeiro ensaio
um debate que até hoje não se esgotou. Em 1942 pu
blicou na Zeitschrift um pós-escrito a esse ensaio. Em
sua obra Eclipse da Razão (1947) que na versão alemã
de 1968 leva o título sugestivo de Crítica à Razão Ins
trumental Horkheimer discute, em vários ensaios, a
problemática da razão. Pouco antes de sua morte, em
1972, Horkheimer faz duas conferências sobre o tema
“Teoria crítica, ontem e hoje” (1970), no qual co-
fronta suas idéias do início de sua atuação como di
retor do Instituto com o momento em que já se encon
tra aposentado e fora de Frankfurt. Nessas conferên
cias, ele se aproxima da teologia e revaloriza a reli
gião, temática ausente em suas reflexões iniciais. Mas
é certamente na Dialética do Esclarecimento lançada
no mesmo ano de Eclipse da Razão, que as reflexões
em tomo da razão e de sua funcionalidade no mundo
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moderno atingem sua expressão mais angustiada e
contraditória.
Ao confrontar o pensamento de Descartes e Marx,
Horkheimer não está querendo invalidar um em favor
do outro; em seu pós-escrito ao ensaio Teoria Tradi
cional e Teoria Crítica esclarece que não se propõe a
rejeitar o pensamento de Descartes em favor do de
Marx e sim de englobar o primeiro no segundo. É con
frontando a estrutura lógica, o objetivo e a finalidade
de uma e outra vertente do pensamento que o relacio
namento de ambas pode ser evidenciado.
Na interpretação de Horkheimer, a teoria tradi
cional, que se estende do pensamento filosófico de
Descartes à filosofia e ciência modernas, se preocupa
em formar sentenças que definem conceitos universais.
Para tal procede dedutiva ou indutivamente e defende
o princípio da identidade, condenando a contradição.
As manifestações empíricas da natureza e da socie
dade devem e podem, segundo essa orientação teórica,
ser subsumidas nas sentenças gerais, encaixando-se no
sistema teórico montado a priori (com auxílio da dedu
ção) ou aposteriori (através da indução). Entre as sen
tenças gerais e os fatos empíricos existe uma hierar
quia de famílias e espécies de conceitos, à semelhança
da moderna biologia, estabelecendo-se em todos os
momentos uma relação de subordinação e integração.
Os fatos se tornam casos singulares, exemplos ou con
cretizações do conceito ou da lei geral. Não há dife
renças temporais entre as unidades do sistema. O fato
de o homem permanecer idêntico a si mesmo ao trans-
formar-se em outro, é um dado que essa lógica não
consegue captar (Horkheimer, 1947, pp. 172-173).
Em contrapartida, a estrutura lógica da teoria crí
tica consegue perfeitamente captar a dimensão histó
rica dos fenômenos, dos indivíduos e das sociedades.
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Também nessa lógica se trabalha inicialmente com
determinações abstratas. Ao tratar do nosso momento
histórico, i. é., da sociedade burguesa contemporânea,
parte de uma concepção da economia baseada na tro
ca. Os conceitos marxistas de “mercadoria”, “valor”,
“dinheiro”, “acumulação”, etc., podem funcionar
como conceitos gerais aos quais uma realidade con
creta pode ser assimilada. Más a teoria crítica não se
esgota em relacionar uma realidade dada aos conceitos
preestabelecidos. Ao analisar o efeito regulador dos
processos de troca sobre a organização da economia
burguesa, Marx — na leitura de Horkheimer — se dei
xaria orientar pelo futuro. A relação entre realidade e
conceitos não é, por isso mesmo, análoga à que existe
entre casos particulares e uma categoria ou espécie, e
não ocorre através de mera indução ou dedução como
é o caso da teoria tradicional. A teoria crítica procura
integrar um dado novo no corpo teórico já elaborado,
relacionando-o sempre com o conhecimento que já se
tem do homem e da natureza naquele momento histó
rico (Horkheimer, 1947, pp. 173-174). “A teoria crí
tica começa, pois, com uma idéia relativamente geral
da troca simples de mercadorias, representada por
conceitos relativamente gerais. Pressupondo todo o co
nhecimento disponível e assimilando todo o material
resultante de pesquisas próprias e alheias, procura
mostrar como a economia de troca nas condições atual
mente dadas (...) conduz necessariamente ao agrava
mento das contradições na sociedade, o que em nossa
época histórica atual leva a guerras e revoluções” (ibi-
dem, pp. 174-175).
Como se pode ver, Horkheimer se encontra, nessa
argumentação,, ainda muito próximo de Marx, como
aliás todos os trabalhos do Instituto publicados na
Zeitschrift nessa época. Essa proximidade vai sendo
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minada no decorrer dos anos subseqüentes, nos quais
Horkheimer perde toda e qualquer esperança em rela
ção à possibilidade e necessidade de uma revolução
proletária. Em seu ensaio de 1970, A Teoria Crítica,
Ontem e Hoje, Horkheimer faz uma revisão de sua po
sição original, mostrando três grandes equívocos da
teoria marxista: 1) a tese da proletarização progressiva
da classe operária não se confirmou, não ocorrendo
a revolução proletária como se esperava, em conse-
qüência de uma constante degradação das condições
de vida dessa classe. Horkheimer admite que o capita
lismo conseguiu produzir um excedente de riquezas
que desativou o conflito de classes, radicalizando a
ideologização das consciências, cooptadas pelo siste
ma. Também não se comprovou 2) a tese das crises
cíclicas do capitalismo, decorrentes das alternâncias
da produção excessiva e da falta de consumo, por um
lado, e de consumo excessivo que leva à falta de pro
dutos, por outro, devido à intervenção crescente da
atividade estatal sobre a organização da economia. E,
finalmente, 3) a esperança de Marx de que a justiça
poderia se realizar simultaneamente com a liberdade
revelou-se ilusória. Efetivamente, o capitalismo conse
guiu criar riquezas que a longo prazo até podem asse
gurar um grau de justiça maior, reduzindo as desi
gualdades materiais entre os homens, mas ao preço da
redução sistemática da liberdade. A reprodução am
pliada acarretou o aumento — para Marx ainda incon
cebível — da burocratização, da regulamentação e
ideologização da vida, tornando-a administrável em
todos os seus aspectos (Horkheimer, 1970, p. 165). A
maior justiça que conduz a uma homogeneização dos
indivíduos e das consciências é adquirida às custas da
liberdade de cada um. A regulamentação generalizada
da vida, a redução da liberdade, a deturpação das
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consciências e a atrofia da capacidade crítica são cor-
relatos inevitáveis de uma justiça social e material am
pliada. A homogeneização generalizada é o preço que
se paga para assegurar o bem-estar generalizado.
Os dois eventos históricos que levaram Horkhei
mer ao ceticismo quanto à validade das teses centrais
da obra de Marx emergem necessariametne da vivên
cia do nazismo na Alemanha e do socialismo nos paí
ses do Leste. Para Horkheimer ambos representam re
gimes totalitários que privilegiaram a razão instru
mental em detrimento da razão emancipatória, to
lhendo a liberdade individual em nome do bem geral.
Mas, apesar da renúncia a certas teses centrais do
materialismo histórico, Horkheimer sustenta a neces
sidade da sobrevivência da teoria crítica. Ela deve vi
sar, como no início, o futuro de uma humanidade
emancipada. Por isso também continuam válidas as
considerações dos anos 30 em torno da necessidade e
dos fins do trabalho da razão.
Enquanto para a teoria tradicional a necessidade
do trabalho teórico significa o respeito às regras gerais
da lógica formal, ao princípio da identidade e da não-
contradição, ao procedimento dedutivo ou indutivo, à
restrição do trabalho teórico a um campo claramente
delimitado, a noção de necessidade para a teoria crí
tica continua presa a um juízo existencial: libertar a
humanidade do jugo da repressão, da ignorância e in
consciência. Esse juízo preserva, em sua essência, o
ideal iluminista: usar a razão como instrumento de li
bertação para realizar a autonomia, a autodetermi
nação do homem.
Como se pode ver, o objeto da teoria tradicional e
o da teoria crítica não podem coincidir. Enquanto para
a primeira o objeto representa um dado externo ao su
jeito, a teoria crítica sugere uma relação orgânica entre
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sujeito e objeto: o sujeito do conhecimento é um su
jeito histórico que se encontra inserido em um processo
igualmente histórico que o condiciona e molda. En
quanto o teórico “crítico” sabe dessa sua condição, o
teórico “tradicional”, concebendo-se fora da dinâmica
histórica e social, tem uma percepção distorcida de sua
atividade científica e de sua função. Isso explica a po
sição política distinta de um e outro. Enquanto esse
último se resigna ao imobilismo e ao quietismo, justi
ficando-o com a ideologia da neutralidade valorativa,
o teórico não tradicional assume sua condição de ana
lista e crítico da situação, procurando colaborar na in
tervenção e no redirecionamento do processo histórico
em favor da emancipação dos homens em uma ordem
social justa e igualitária.
Já em seu artigo de 1937 Horkheimer lança as ba
ses de uma teoria do intelectual orgânico, visto como
alguém que colabora ou na tentativa de cimentar as
relações sociais e de dominação existentes (teóricos
tradicionais) ou na luta pela libertação dos oprimidos
e sacrificados pelo sistema social vigente (teóricos crí
ticos). Simultaneamente com Gramsci, intelectual
marxista que morre em 1937 vitimado pelo fascismo
italiano, autor de Os Intelectuais e a Organização da
Cultura, Horkheimer desenvolve, independentemente
do filósofo italiano, uma teoria crítica da superestru-
tura e dos seus funcionários, através da contraposição
das duas teorias conflitantes: a tradicional e a crítica.
Gertamente Gramsci e Horkheimer se desconheciam,
mas tinham em comum a mesma experiência política
— a perseguição fascista — e a mesma convicção teó
rica: o marxismo, que reinterpretam e enriquecem
para torná-lo capaz de abranger e compreender as no
vas tendências históricas. Por isso ambos partem para
uma reformulação da dinâmica histórica, na qual os
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intelectuais assumem um papel estratégico: a produ
ção e concretização de uma nova concepção do mundo,
de um mundo sem repressões de classe, baseado na
liberdade e na autodeterminação. O parti pris de Hor
kheimer em favor da razão emancipatória (Parteilich-
keit fuer Vemunft) até o final de sua vida se torna
evidente nas palavras pronunciadas pouco antes de sua
morte: “Nosso princípio básico sempre foi: pessimismo
teórico e otimismo prático” (Horkheimer, 1970, p. 175).
Segundo momento
O terceiro momento
Neste último momento será relatado um debate
travado entre Habermas e Luhmann, reunido no livro
Teoria da Sociedade ou Tecnologia Social (1972). A
leitura atenta desse Volume não deixa dúvidas de que
Habermas, ao defender sua teoria da sociedade, revela
uma afinidade eletiva com a teoria crítica, enquanto
Luhmann, ao defender uma versão sofisticada da teo
ria sistêmica, se aproxima do moderno pensamento
positivista.
Habermas já havia lançado nesse momento vários
trabalhos de peso no campo da teoria da ciência e do
conhecimento (A Lógica das Ciências Sociais, 1967;
Conhecimento e Interesse, 1968), tomando claramente
partido em favor de Adorno na disputa em torno do
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positivismo desencadeada com Popper (cí. artigo pu
blicado na coletânea de E. Topitsch, Logik der Sozial-
forscnung, 1965, sob o título “Teoria analítica da ciên
cia e dialética: pós-escrito à controvérsia entre Popper
e Adorno”). Nesse artigo, Habermas sintetiza as posi
ções contrárias entre os positivistas lógicos e teóricos
da ciência de um lado, e dos teóricos críticos dialéticos
do outro. Seus eixos de análise — teoria e experiência,
neutralidade e ciência, teoria e empiria, teoria e histó
ria, ciência e prática — retomam a discussão iniciada
por Horkheimer e rediscutida permanentemente por
ele e Adorno. Habermas questiona a validade da pro
posta positivista de postular a objetividade e verdade
do conhecimento apenas em função do método, ou
melhor, do procedimento lógico-formal. Esconde-se
atrás dessa tese um conceito pobre e limitado da razão:
a capacidade de manipular corretamente regras for
mais.
O conceito positivista de razão não se aplica, pois,
ao campo da moral e da prática que pressuporia uma
concepção mais abrangente de razão, que segundo Ha
bermas pode ser encontrado no conceito de razão co
municativa ou dialógica.
No debate com Luhmann, Habermas cessa a iden
tificação plena com as posições de Horkheimer e Ador
no, e inicia uma discussão original que o distanciará
cada vez mais dos seus mestres e modelos intelectuais.
Não se trata mais de opor o marxismo ao racionalismo
ou a dialética ao positivismo e sim de elaborar uma
“nova” teoria da sociedade como alternativa à teoria
sistêmica, representada por Luhmann.
Originalmente formado em direito e administra
ção, Luhmann interessou-se, depois de uma perma
nência nos Estados Unidos, pela sociologia e em espe
cial pela teoria sistêmica de Parsons, divulgando e
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aprimorando-a, depois do seu regresso à Alemanha
(Bielefeld). Luhmann procura aplicar os conceitos ci
bernéticos ao estudo da sociedade. Recorrendo ao mo
delo da biologia, distingue entre sistema e meio. Da
mesma forma que um organismo vivo se afirma e deli
mita em relação ao seu meio, a sociedade, concebida
como sistema sócio-cultural, precisa igualmente bus
car sua permanência e demarcação no meio ambiente.
Enquanto, porém, o organismo vivo tem um limite de
permanência no mundo, determinado pelo seu ciclo de
vida (nascimento e morte), os sistemas sociais não
apresentam esse tipo de delimitação, já que indepen
dem da vida orgânica de um ou outro de seus mem
bros. Essa mera constatação cria a primeira dificul
dade para Luhmann em seu projeto de apropriar-se de
um conceituai originalmente desenvolvido na biologia.
Habermas critica Luhmann, mostrando a incompati
bilidade entre as duas formas sistêmicas, e ressalta a
dificuldade de utilizar de forma produtiva o conceituai
cibernético para sistemas sócio-culturais.
Luhmann, no entanto, não pode ser considerado
um neopositivista, funcionalista ou teórico sistêmico
ingênuo. Ele está perfeitamente ciente das divergên
cias profundas existentes entre um sistema biológico
(fechado) e um sistema sócio-cultural (aberto). De
fende a tese de que à medida que abandonamos a di
mensão biológica e avançamos em direção a sistemas
sócio-culturais, as alternativas de comportamento do
sistema aumentam, impondo-lhe a necessidade de op
ções. Uma das funções sociais centrais do sistema con
siste no que Luhmann chamou de “redução de com
plexidade”. Quando se institucionaliza um tipo de
comportamento sob a forma de papéis sociais especí
ficos, outros comportamentos e outros papéis, social
mente concebíveis e possíveis, estão sendo excluídos.
A TEORIA CRÍTICA: ONTEM E HOJE S5
O sistema oferece, pois, orientações comportamentais
que facilitam a redução da complexidade, exonerando
o ator da obrigação de fazer uma escolha entre as múl
tiplas alternativas possíveis.
Habermas ressalta dois problemas vinculados a
essa interpretação da realidade: a indistinção entre
realidade e sua representação por um lado e, por ou
tro, a dificuldade de captar as funções que assegurem
a permanência do sistema quando este não apresenta
redução de complexidade ou quando se desenvolve jus
tamente em sentido contrário, aumentando a sua com
plexidade. Se a função central do sistema sócio-cultu
ral consiste em reduzir complexidade, o ator nele inse
rido deveria poder reconhecer possíveis alternativas e
portanto ter opções para escolher entre elas. O fato,
porém, de certas formas de conduta e papéis já se en
contrarem institucionalizados, sugerindo o comporta
mento A ou B, significa que a realidade sistêmica, de
fato, não permite uma entre muitas opções, mas sim
sempre já se propõe como a forma mais adequada.
Gom a noção de “redução de complexidade”, Luh
mann tentara introduzir uma dimensão nova na refle
xão. A complexidade era dada pela multiplicidade de
possíveis interpretações ou representações do mundo,
e sua “redução” ocorrería quando uma das possíveis
alternativas se concretizasse. Habermas afirma que
essa concepção é incompatível com o conceito de sis
tema. Este não permite conceber a realidade social
como uma entre muitas alternativas. Justamente a exi
gência de assegurar a permanência do sistema no
mundo, delimitando-o face ao seu meio, exclui as for
mas alternativas de interpretação e atuação, já que
elas podem ser ameaçadoras para a sobrevivência do
sistema. Dessa forma a “redução de complexidade”
não é outra coisa senão a proposta socialmente con
56 BARBARA FREITAG
trolada para comportamentos conformistas. Em lugar
da visão probabilística sugerida pela interpretação de
Luhmann, estamos diante de freqüências sociais, ex
pressão do condicionamento factual das ações, com
grau muito restrito de liberdade. A indistinção entre a
realidade e sua representação, inerente ao próprio con
ceito de sistema, tem, portanto, efeito conservador.
Esse dado não é percebido por Luhmann. Em contra
partida, distingue sociedade de sistema social, acredi
tando poder desta forma incluir em sua teoria a dinâ
mica evolutiva dos sistemas. “Sociedade” não significa
para Luhmann um sistema social específico (satisfeitos
certos requisitos adicionais como território, longevi
dade, reprodução biológica e cultural assegurada, etc.)
como foi o caso de Parsons. Sociedade significa, para
Luhmann, todo o percurso evolutivo da espécie hu
mana, incluindo ainda sua projeção para o futuro.
Essa distinção torna-se insustentável e contraditória
quando se tem em mente a indistinção entre a reali
dade sistêmica e suas formas de representação. A ex
pectativa de Luhmann de captar a dinâmica da histó
ria (distinguindo entre sistema social e sociedade),
para evitar assim a crítica de conservadorismo, não se
concretiza. Também sua tentativa de substituir o con
ceito cibernético de informação pelo de significado
(Sinn) não é bem-sucedida, já que Habermas demons
tra, em longa argumentação, a incompatibilidade en
tre o conceituai sistêmico e toda a lógica que o rege
com a categoria do significado. Isso porque o sistema
não abre nenhuma brecha para que tais significados
vinculados a normas e valores possam ser consensual
mente estabelecidos ou criticados. A teoria sistêmica
não tem condições de explicar como normas e valores
emergem e passam a regulamentar o sistema. Ao in
troduzir a categoria de significado Luhmann pressu-
A TEORIA CRÍTICA: ONTEM E HOJE 57
põe a possibilidade de uma interação dialógica em que
valores e normas possam ser constituídos, questiona
dos, reformulados e reassegurados. Para admitir que
isso aconteça, Luhmann teria de abrir mão da catego
ria de sistema. Esse conceito cibernético pressupõe,
não a negociação e constituição de significados da inte
ração dialógica, mas sim a existência de significados
previamente estabelecidos que precisam, por um lado,
ser internalizados pelos atores para que eles possam
comportar-se de acordo com as orientações sugeridas
e, por outro, institucionalizados em papéis sociais e
instituições para que tenham validade social. Por isso
mesmo, os significados são considerados na teoria sis
têmica como a prioris do sistema. Sua internalização
ocorre de forma autoritária, monológica. Torna-se
uma condição para fazer parte, estar integrado no sis
tema.
A divergência entre Luhmann e Habermas se dá,
em última instância, em torno da concepção e do sur
gimento de significados. Para Habermas esses somente
podem emergir em situações dialógicas, em que ego e
alter atribuem significados às coisas, pessoas e suas
relações, significados que são consensualmente elabo
rados e reciprocamente respeitados. As relações sociais
são por isso mesmo sempre relações às quais os atores
atribuem algum significado, e pressupõem um grau de
liberdade inadmissível para a concepção sistêmica.
Habermas está convencido de que o conceito de sis
tema e o de informação são incompatíveis com uma
análise efetiva dos fenômenos sociais.
Para assegurar a dinâmica do sistema e explicar a
evolução de sistemas, Luhmann necessita da categoria
de informação. Mas ao tentar substituí-la pela catego
ria de significado, buscando respeitar a especificidade
das relações sociais, se perde em um ecletismo concei-
58 BARBARA FREITAG
tual que o forçaria ou a abandonar o conceito de siste
ma (e portanto a teoria sistêmica) ou a aceitar o concei
to de informação (abandonando a aspiração de efetiva
mente analisar fenômenos sociais significativos).
Ao introduzir o conceito de significado em sua
perspectiva sistêmica, Luhmann procurou aumentar o
grau de liberdade do sistema, sem, no entanto, aban
donar a concepção sistêmica da realidade. Por isso
mesmo, segundo Habermas, Luhmann se perde em
contradições que bloqueiam sua teorização e detur
pam sua visão de realidade. A indistinção entre repre
sentação e realidade, a substituição do conceito de in
formação pelo de significado, a distinção entre socie
dade e sistema social e a definição prioritária da fun
ção sistêmica como “redução de complexidade” cons
tituem os temas vulneráveis da teorização de Luh
mann, apesar de serem tentativas louváveis de supe
ração dos pontos de estrangulamento da teoria sistê
mica: o seu conservadorismo implícito e a dificuldade
de conceptualizar os processos históricos; seu confor
mismo explícito, ao postular, como comportamento
social mais adequado, aquele institucionalizado pelo
sistema; seu positivismo disfarçado, ao atribuir ao que
é valor superior ao que deixou de ser, e poderia vir a ser.
Desta forma, a teoria sistêmica de Luhmann não deixa
de ser uma reformulação modernizada da “teoria tra
dicional”, criticada por Horkheimer, ou do positi
vismo popperiano, contestado por Adorno. As três ver
sões da teoria (ou ciência) é comum a concepção ins
trumental da razão, a naturalização dos fenômenos
sociais, a expulsão do conflito e da contradição do mo
delo teórico, o que equivale a negar a sua existência na
realidade.
Habermas contrapõe a Luhmann sua primeira
versão da teoria da ação comunicativa, que durante a
A TEORIA CRITICA: ONTEM E HOJE 59
disputa com esse autor ainda se denomina “teoria da
competência comunicativa”. Habermas está interes
sado desde essa época em elaborar um novo conceito
de racionalidade comunicativa, propondo um novo pa
radigma para a discussão sociológica: a combinação
do conceito de mundo vivido (Lebenswelt) com a con
cepção sistêmica, o que fornecería uma conceituação
nova de sociedade e uma teoria evolucionista da mo
dernidade (cf. Habermas, 1981, vol. I, p. 8).
Habermas inclui em sua teoria da ação comuni
cativa a elaboração de um novo conceito de razão, que
nada tem em comum com a visão instrumental que a
modernidade lhe conferiu, mas que também trans
cende a visão kantiana assimilada por Horkheimer e
Adorno, isto é, de uma razão subjetiva, autônoma,
capaz de conhecer o mundo e de dirigir o destino dos
homens e da humanidade. A concepção de uma razão
comunicativa implica uma mudança radical de para
digma, em que a razão passa a sèr implementada so
cialmente no processo de interação dialógica dos ato
res envolvidos em uma mesma situação. A razão co
municativa se constitui socialmente nas interações es
pontâneas, mas adquire maior rigor através do que
Habermas chama de discurso. Na ação comunicativa
cada interlocutor suscita uma pretensão de validade
quando se refere a fatos, normas e vivências, e existe
uma expectativa que seu interlocutor possa, se assim o
quiser, contestar essa pretensão de validade de uma
maneira fundada (begründet), isto é, com argumen
tos. Ê nisso que consiste a racionalidade para Haber
mas: não uma faculdade abstrata, inerente ao indiví
duo isolado, mas um procedimento argumentativo
pelo qual dois ou mais sujeitos se põem de acordo sobre
questões relacionadas com a verdade, a justiça e a
autenticidade. Tanto no diálogo cotidiano como no dis
60 BARBARA FREITAG
curso, todas as verdades anteriormente consideradas
válidas e inabaláveis podem ser questionadas; todas as
normas e valores vigentes têm de ser justificados; todas
as relações sociais são consideradas resultado de uma
negociação na qual se busca o consenso e se respeita a
reciprocidade, fundados no melhor argumento. A ra
zão comunicativa circunscreve um conceito para o qual
o questionamento e a crítica são elementos constituti
vos, mas não sob a forma monológica, como ainda
ocorria na Dialética do Esclarecimento ou na Dialética
Negativa, e sim de forma dialógica, em situações so
ciais em que a verdade resulta de um diálogo entre
pares, seguindo a lógica do melhor argumento.
A teoria do consenso da verdade se baseia, para
Habermas, na capacidade de distinguir entre essência
e aparência (afirmações verdadeiras); entre ser e ilu
são (afirmações verazes) e entre ser e dever (afirma
ções corretas) (Luhmann e Habermas, 1971, p. 135).
Desta forma Habermas ao mesmo tempo preserva
elementos importantes da contribuição de Horkheimer
e Adorno, mas os supera, propondo uma nova teoria
que tem em comum com a teoria crítica a dimensão
crítica da realidade e a rejeição de falsos determinis-
mos. A teoria da ação comunicativa, no entanto, não
adere ao pessimismo implacável de Adorno, revelando
uma convicção profunda da competência lingüística e
cognitiva dos atores, capazes de, no diálogo, na dis
puta, no questionamento radical, produzirem uma ra
zão comunicativa que pouco tem em comum com a .
razão kantiana: ela não é subjetiva, não é transcen-
cental, não é inata. No entanto, ela espelha a transpa
rência das relações sociais e a intersubjetividade pos
sível a cada um dos atores nelas envolvidos. A razão
comunicativa se encontra no ponto de intersecção de
três mundos: o mundo objetivo das coisas, o mundo
A TEORIA CRÍTICA: ONTEM E HOJE 61
social das normas e o mundo subjetivo dos afetos. Por
isso mesmo ela é mais abrangente e menos autoritária
que as demais formas de manifestação da razão.
Ao conceituar a sociedade, Habermas procura in
tegrar duas óticas: a sistêmica e a do mundo vivido. A
ótica sistêmica coincide com a do observador externo.
Foi a ótica adotada por Parsons e Luhmann. Trata-se
daquele aspecto da realidade social em que atua a ra
zão instrumental e técnica. A esfera sistêmica é, por
sua vez, dividida em dois subsistemas: o econômico,
regido pelo meio dinheiro, e o político, regido pelo
meio poder. A racionalidade técnica decorre da orga
nização das forças produtivas e visa gerar o máximo de
produtividade para assegurar a sobrevivência material
dos homens que vivem em sociedade. A visão sistêmica
exclui o diálogo, de resto necessário numa sociedade
cuja forma de codificação das relações sociais encon
trou no dinheiro uma linguagem universal. A validade
dessa linguagem não precisa ser questionada, já que ó
sistema funciona na base de imperativos automáticos
que jamais foram objeto de discussão dos interessados.
Essa regulamentação automática é denominada por
Habermas de “integração sistêmica”. Os complexos
de ação integrados sistemicamente impõem sua lógica
(a razão instrumental) às outras esferas da sociedade,
passando, desta forma, a “colonizá-las”. Essas outras
esferas constituem a outra dimensão da sociedade, à
qual Habermas deu a denominação husserliana de Le-
benswelt (mundovivido). Trata-se aqui da perspectiva’
subjetiva dos atores, inseridos em situações concretas
de vida. Essa visão de dentro da sociedade permite
compreendê-la a partir do cotidiano de seus atores, de
suas vivências e experiências partilhadas. A objetivi
dade das relações sociais é dada quando há “integra
ção social”, ou seja, quando um número dado de ato
62 BARBARA FREITAG
res teve vivências e experiências comuns que consti
tuem sua memória e sua história coletiva. Segundo
Habermas, a modernidade se caracteriza por ter cria
do uma disjunção, um hiato, entre o mundo vivido e
o sistema (Entkoppelung). A perspectiva sistêmica e a
perspectiva do mundo vivido não estão, por sua vez,
integradas: a integração sistêmica não coincide com a
integração social. Sistema e mundo vivido entram em
choque. O mundo vivido, regido pela razão comuni
cativa, está ameaçado em sua sobrevivência pela inter
ferência da razão instrumental. Ocorre uma anexa
ção do mundo vivido por parte do sistema, desativando
as esferas regidas pela razão comunicativa e impondo-
lhes a razão instrumental, tecnocrática. A interferên
cia do subsistema estatal na esfera do mundo vivido é a
burocratização, e a do subsistema econômico, a mone-
tarização. Essas duas usurpações são responsáveis
pelas patologias do mundo vivido.
Foi exatamente este processo que levou ao que
Weber chamou de perda de liberdade do homem, cres
centemente aprisionado numa armação de ferro (Stahl-
hartes Gehaeuse). Foi o que mutatis mutandis Lukács
denominou de alienação e Marcuse de unidimensio-
nalização.
Segundo Habermas cabe à razão comunicativa,
preservada em certos “nichos” da sociedade moderna
e institucionalizada em algumas de suas “esferas de
valor” (Weber), isto é, no mundo vivido (como já é o
caso na esfera da pintura, da música, do direito, da
ciência e da moral), resgatar o terreno perdido e reo-
rientar a razão instrumental, reconduzindo-a aos limi
tes dentro dos quais é imprescindível e pode fornecer
uma contribuição inestimável para assegurar a orga
nização e sobrevivência das modernas sociedades de
massa.
A TEORIA CRITICA: ONTEM E HOJE 63
Segundo Habermas, é na esfera social e da cul
tura (ou no que futuramente chamaria de Lebenswelt,
mundo vivido) que devem ser conjuntamente fixados
os destinos da sociedade, através do questionamento e
da revalidação dos valores e das normas vigentes no
mundo vivido. Somente quando este reconquistar o
terreno perdido pode ocorrer o que na modernidade se
tornou urgente: a “descolonização” do mundo vivido
pelo sistema, a capacidade de agir comunicativamente
para todos os atores. A razão dialógica, comunicativa,
estaria, desta forma, recolocando em seu devido lugar
a razão instrumental.
Vemos que nesse terceiro momento da discussão
sobre a dialética da razão os frankfurtianos e seus her
deiros, aqui representados por Habermas, buscam no
vamente uma reconciliação entre os dois momentos da
razão, algo que somente se tornou possível porque Ha
bermas ousou uma mudança de paradigma, rejeitando
e superando as formulações pessimistas de Adorno e
Horkheimer.
Depois de analisados os conceitos de razão comu
nicativa e de sociedade em Habermas, resta elucidar o
que este entende por teoria evolutiva da modernidade.
Segundo Habermas, a teoria da ação comunicativa,
especialmente em seu trabalho hermenêutico de recu
perar através da revisão dos clássicos da sociologia os
momentos de racionalidade comunicativa soterrados,
esquecidos ou não explorados, permite reconstruir os
processos evolutivos das sociedades do passado ao pre
sente, na medida em que fornece um conceituai que
permite dar conta da complexidade e da contradição
inerente a nossas modernas sociedades. Apesar de''to
das as perversões e dos retrocessos que a história da
modernidade reve.lou, Habermas aponta para dois mo
mentos cujos ganhos objetivos precisam ser ressalta
64 BARBARA FREIT AG
dos: por um lado, a competência técnica e instrumen
tal desenvolvida pelos sistemas de reprodução mate
rial, graças à ciência e à técnica, permitindo em prin
cípio a plena satisfação das necessidades de todos os
homens e, por outro lado, a crescente “racionaliza
ção” das esferas de valor, substituindo concepções re
ligiosas do mundo por sistemas de normas e valores
consensualmente elaborados pelos atores do sistema
em situações dialógicas livres de repressão.
Percebe-se que Habermas acompanha o raciocí
nio de Marx, ao valorizar a racionalidade e eficácia
do sistema de reprodução material das modernas so
ciedades de massa, e o de Weber, quando admite a
“racionalização” de certas esferas de valor que es
capam ao controle autoritário da religião ou do Es
tado. Hàbernas ainda admite, como Marx, que a re
produção material de bens, destinada a suprir as ne
cessidades de todos os homens, ainda não encontrou
formas racionais e justas de distribuir esses bens efeti
vamente entre todos os membros da sociedade, e con
cordaria que a “racionalização do mundo” nem sem
pre trouxe benefícios à humanidade. Mas Habermas
discorda de Marx em sua proposta de alterar revolu-
cionariamente as condições sociais como única saída
possível e não acompanha mais Weber quando esse
afirma que a “racionalização” das concepções religio
sas do mundo conduziu ao “desencantamento” e àa-
lienação. Habermas resgata, através de sua teoria da
evolução da modernidade, dois momentos positivos do
processo histórico: a competência do sistema de pro
dução para atender às necessidades de sobrevivência
da humanidade e o grau de racionalidade comunicati
va já conquistada pela Lebenswelt. Nem por isso Ha
bermas deixa de perceber as incongruências e injusti
ças que ainda ocorrem em conseqüência da organiza
A TEORIA CRÍTICA: ONTEM E HOJE 65
ção sistêmica baseada nas relações de troca e na acu
mulação, por um lado, e da falta de racionalidade co
municativa em amplas esferas do mundo vivido, por
outro. Habermas, contudo, tem uma fé inquebrantá-
vel na capacidade de aprendizado dos sistemas, sócio-
culturais modernos, que ajustam seus mecanismos de
autocontrole e de auto-orientação de acordo com os
graus de complexidade e diferenciação atingidos.
Habermas não adere à leitura do Iluminismo feita
por Horkheimer e Adorno, em que “o feitiço se volta
contra o feiticeiro”, mas percebe-se como leitor atento
de seus trabalhos. Nos debates que trava com seus o-
positores teóricos e ideológicos, não lhe interessa ani
quilar ou contestar seus argumentos, mas absorvê-los,
no interesse de uma melhor argumentação, mais ve-
raz, mais justa, mais verdadeira. A teoria da ação co
municativa demonstra uma competência dialógica e-
xemplar: ao debater-se com teóricos de todas as orien
tações, Habermas parece estar pondo em prática a sua
teoria consensual da verdade. Neste sentido toda teo-
rização de Habermas não é senão discurso, como ele
próprio o definiu.
A dupla face da cultura
e a discussão da indústria cultural
"A cultura, como algo que transcende a autopreser-
vação sistêmica da espécie, contém inevitavelmente
uma dimensão crítica face a todas as instituições e a
tudo que existe.”
(Adorno)
O primeiro momento:
o intervencionismo estatal na economia
Meyer, Mandelbaum e Pollock abrem, a partir de
1932, o debate na Zeitschrift em torno da crescente
intervenção do Estado na economia das sociedades ca
pitalista e socialista. Essa intervenção estava intima
A TEORIA CRITICA: ONTEM E HOJE 87
mente associada à questão da manipulação das crises e
do planejamento econômico.
Os membros do Instituto rejeitam as interpreta
ções da economia burguesa de sua época, que atri
buíam um caráter meramente “conjuntural” ao fenô
meno do intervencionismo estatal. Tais interpretações
procuravam salvar — pelo menos ao nível das aparên
cias — a essência da ideologia econômica liberal, se
gundo a qual o mercado, regulado pelo mecanismo da
livre concorrência, dispensava em condições normais
as intervenções do Estado. Ao mesmo tempo os teóri
cos de Frankfurt observam com certo ceticismo o de
senvolvimento da economia socialista a partir da revo
lução de 1917 na União Soviética, a qual vinha sendo
abalada por catástrofes sucessivas (más colheitas, de
semprego, fome e morte de milhares de russos, etc.).
Pollock, Meyer, Mandelbaum e outros defendiam a
tese de que nenhuma economia moderna — fosse ela
capitalista ou socialista — dispensaria a presença re
guladora do Estado. Essa tendência, segundo eles, so
mente poderia agravar-se no futuro devido ao crescente
imbricamento das economias nacionais no mercado
mundial. Por isso o Estado nacional não mais poderia
assumir, como fizera até a Primeira Guerra Mundial,
a postura de mero observador da dinâmica econômica.
Cabia agora ao Estado uma crescente participação na
gestão da economia nacional e na manutenção do equi
líbrio internacional. A livre concorrência não poderia
mais servir como princípio regulador da economia na
cional, pois ela era válida numa fase em que as crises
se limitavam à falência de um ou outro empresário,
sem risco para a sobrevivência do modo de produção
capitalista, mas não numa*fase em que se trata de as
segurar o sistema como tàl, organizado em enormes
cartéis que rapidamente transcendem os limites geo
88 BARBARA FREITAG
gráficos da nação, pondo em jogo o sistema econômico
mundial. O capitalismo moderno impunha ao Estado
a necessidade de intervir sistematicamente no processo
econômico a fim de salvaguardar a economia nacional
e com isso a sobrevivência da nação, contribuindo ain
da para a manutenção do sistema econômico mundial.
O novo estatuto do Estado como Estado empresarial
destrói a concepção do Estado liberal, mas não destrói
as relações de produção nas quais se assentam ambas
as formas estatais: a economia capitalista. Enquanto
permanece intacta a realidade de produção de bens
baseada na propriedade privada, na força de trabalho
livre e na apropriação privada da mais-valia, refor
çando a estrutura de classes existentes, torna-se neces
sário “modernizar” o aparelho estatal, tanto no que se
refere ao seu desempenho econômico (intervenção nas
leis da oferta e da procura, organização da infra-estru
tura como estradas, sistema de comunicação, etc.)
quanto ao seu desempenho político (formulação de po
líticas sociais que desativam o conflito de classes).
O Estado capitalista moderno interfere direta
mente na economia, manipula as crises, protegendo os
produtos nacionais, controlando a importação e a ex
portação, incentivando e dinamizando a economia
através de investimentos infra-estruturais, saneando
empresas, etc. Mas ele também interfere no mercado
da força de trabalho, a fim de combater o desemprego,
reforçando as políticas sociais de saúde, educação, sa-
lário-desemprego, procurando controlar a mão-de-
obra excedente (exército de reserva). O Estado capita
lista moderno, especialmente em sua versão norte-
americana, transforma-se no Welfare State, o Estado
do Bem-Estar que desativa a luta de classes, minimi
zando os conflitos entre operários e industriais em
nome do bem-estar de todos.
A TEORIA CRÍTICA: ONTEM E HOJE 89
O intervencionismo estatal atua, pois, em dois
planos, oeconômico, manipulando as crises cíclicas da
economiaTe limitando os riscos para os empresários in
dividuais ou cartéis, e o político, amortecendo o con
flito entre as classes de proprietários dos meios de pro
dução e as classes operárias, e procurando cooptar
essa última em nome do “progresso econômico” e o
“bem-estar social”.
O grande instrumento do Estado capitalista mo
derno passa a ser o planejamento econômico-social,
que permite a alocação adequada dos recursos para a
obtenção de certos fins, permitindo maior transpa
rência e conseqüentemente maior previsibilidade dos
processos econômicos. Desta forma o Estado capita
lista moderno assume feições monopolísticas, aproxi-
mando-se cada vez mais da forma estatal adotada pela
União Soviética (socialismo de Estado).
Enquanto uma organização estatal defende os in
teresses de uma minoria (o capital privado em mãos
dos donos de cartéis e multinacionais), o outro o faz
em nome das massas, mas em proveito de uma nova
classe emergente, a dos funcionários e líderes do par
tido (cf. Pollock, 1932, “A situação atual do capita
lismo e as perspectivas de uma nova ordem planifi-
cada”).
Segundo Marcuse, esse intervencionismo ainda
aumenta devido às mudanças técnicas que ocorrem na
base do sistema produtivo: 1) a mecanização e auto
mação do trabalho; 2) a tendência da equiparação
crescente entre trabalhadores de fábricas e funcioná
rios (setor terciário); 3) a mudança no caráter do tra
balho e dos instrumentos produtivos, que estariam en
fraquecendo a classe trabalhadora, tornando-a vulne
rável à cooptação e manipulação pelo Estado (Mar
cuse, 1964).
90 BARBARA FREITAG
Nessa primeira fase de análise, os frankfurtianos
atribuem — pelo menos até o momento por eles ana
lisado — maior eficácia às sociedades capitalistas no
que concerne o abastecimento de suas populações
(atendimento das primeiras necessidades) bem como
geração de riqueza. Em suas análises, os economistas
vinculados ao Instituto deixam totalmente de lado a
questão dos desníveis Norte-Sul gerados pelo capita
lismo.
O segundo momento:
razão instrumental e dominação tecnocrática
Em conferência apresentada no 15? Encontro de
Sociólogos em Heidelberg, Marcuse apresenta um tex
to — “Industrialização e capitalismo na obra de We-
ber” (1962) — no qual analisa as relações entre razão
instrumental e dominação capitalista.
Marcuse vê em Weber o pioneiro que pela pri
meira vez teria aplicado o conceito de racionalidade
instrumental (Zweck-Mittel-Rationalitaet) à análise do
moderno Estado capitalista. Dessa forma, foi dado
o passo decisivo da razão teórica para a razão prática
(Marcuse, 1964a, p. 110).
O que Weber faz é postular como racional toda a
ação que se baseia no cálculo, na adequação de meios
a fins, procurando obter com um mínimo de dispên-
dios um máximo de efeitos desejados, evitando-se ou
minimizando-se todos os efeitos colaterais indesejados.
Essa concepção de racionalidade e de ação social
estaria hoje permeando as modernas sociedades oci
dentais, assegurando uma organização racional da
vida cotidiana. A racionalidade instrumental encon
A TEORIA CRITICA: ONTEM E HOJE 91
tra-se, pois, na visão de Weber, institucionalizada na
vida cotidiana, traduzindo-se, no plano econômico, na
ação calculada dos agentes econômicos (empresários)
e na atuação competente da administração estatal (bu
rocratas).
“A razão abstrata”, argumenta Marcuse, “trans
forma-se assim concretamente em dominação calcu
lada e calculável — dominação exercida sobre os ho
mens e sobre a natureza” (Marcuse, 1964a, p. 111).
Ou, como afirma em outra passagem, Weber consegue
sem ruptura ou mediação fazer a passagem da razão
grega clássica à razão instrumental. Aprofundando-se
a leitura em Weber fica patente que essa razão instru
mental nada mais é que a própria razão capitalista,
isto é, a racionalidade do lucro e da expropriação da
mais-valia.
Marcuse ressalta a dimensão ideológica do pensa
mento weberiano: ao mesmo tempo que o autor de
Economia e Sociedade defende a neutralidade da ciên
cia e portanto a “razão neutra”, “meramente técni
ca”, ele estaria fazendo de fato a apologia da razão
capitalista.
Cabe, no entanto, a Weber o inegável mérito de
ter mostrado que a razão econômica não se confinou à
área da produção e circulação de mercadorias. Weber
mostrou que a calculabilidade e previsibilidade, as ca
racterísticas essenciais da racionalidade instrumental
na economia, permearam também a esfera política,
impondo-se aqui como a “razão do Estado” (tecnobu-
rocracia).
Enquanto para o empresário essa racionalidade é
necessária para assegurar o lucro e evitar os riscos, ela
se torna indispensável para o político que precisa ter
certeza de que suas ordens serão efetivamente cumpri
das, apoiando-se por isso mesmo no aparelho burocrá
92 BARBARA FREITAG
tico e nos mecanismos de controle (polícia e exército)
caso uma ordem seja ostensivamente desobedecida.
Outra contribuição inestimável de Weber foi dada
no diagnóstico do seu tempo. Ao analisar os processos
históricos em sua sociologia das religiões, apontou
para a dialética inerente ao processo de modernização
ou racionalização das concepções religiosas do mundo,
que se transformam em práticas econômicas cotidia
nas, alienadas dos valores religiosos que outrora inspi
ravam a conduta. A racionalidade instrumental no
plano da economia, inicialmente considerada a ex
pressão da liberdade do homem de competir no mer
cado, transforma-se em sua camisa-de-força, a arma
ção de ferro que o aprisiona (Stahlhartes Gehàuse),
revelando-se assim a irracionalidade do sistema como
um todo. Da mesma forma, a dominação racional, ba
seada na lei e no controle burocrático dos súditos,
conduz ao imobilismo e à perda de liberdade do cida
dão. Essa dupla “racionalização” do mundo somente
seria superável — na visão weberiana — com o surgi
mento de homens extraordinários, líderes (irracionais)
que, na figura do empresário que ousa correr riscos,
desafia a suposta racionalidade da economia para ma
ximizar seus lucros; ou na figura do líder carismático
que negligencia a ordem racional institucionalizada na
burocracia, impondo aos seus seguidores a sua von
tade.
Ao tentar salvar o processo de racionalização da
irracionalidade, à qual inevitavelmente parece tender,
Weber introduz outra irracionalidade para combater a
primeira. No caso da economia, a ganância e o inte
resse de lucro enfrentam a transparência e a calculabi-
lidade do sistema econômico transformado em arma
ção de ferro; no caso do político carismático, seus po
deres sobrenaturais são ativados para enfrentar a cres
A TEORIA CRÍTICA: ONTEM E HOJE 93
cente burocratização. Weber procura expulsar o diabo
com Belzebu: para ele duas forças irracionais são ca
pazes de equilibrar-se e controlar-se, permitindo um
máximo de racionalidade na irracionalidade.
Na leitura que Marcuse faz de Weber, a raciona
lidade capitalista revela assim seu verdadeiro rosto:
seria racional em sua aparência, quando aplicada à
ação de um indivíduo isolado, como o empresário ou o
político profissional, mas é irracional em seu conjunto,
exigindo forças sobrenaturais ou irracionais, para re
belar-se contra essa irracionalidade estrutural.
A crítica que Marcuse faz a Weber é a de ter ab-
solutizado o conceito de razão instrumental, identifi
cando-a com a racionalidade capitalista. Dessa forma
o conceito de razão instrumental ficou muito estreito,
escamoteando as outras dimensões (da racionalidade
material ou substancial) que podem levar a outros va
lores que o da calculabilidade e previsibilidade na ob
tenção de efeitos (lucro e dominação). Critica ainda
Weber por fundir num único conceito a razão da polis
e a racionalidade do lucro.
Em sua obra A Ideologia da Sociedade Industrial
(1964b), publicada no mesmo ano em que apresentou
o ensaio citado, Marcuse defende a tese de que a mo
derna ciência e técnica, além de serem forças produti
vas (conforme o denunciaram Marx em O Capital)
funcionam como “ideologia” para legitimar o sistema.
A ciência unidimensionalizada é utilizada para domi
nar a natureza e com isso acelerar a produção através
da dinamização das forças produtivas. Mas a mesma
ciência também é utilizada para dominar os homens,
já que eles se subordinam cada vez mais ao processo
produtivo acelerado pela ciência e tecnologia. Em
nome da produtividade outros aspectos da reflexão
científica e existencial estariam sendo recalcados ou
94 BARBARA FREITAG
permaneceríam atrofiados, como a crítica do status
quo e a emancipação dos homens do reino da necessi
dade. Originalmente concebida e acionada para eman
cipar os homens, a moderna ciência está hoje a serviço
do capital, contribuindo para a manutenção das rela
ções de classe. A ciência e a técnica na mão dos pode
rosos (que controlam o Estado) controlam a vida dos
homens, subjuga-os ao interesse do capital, escravi
zando-os às máquinas. A produção de bens segue uma
lógica técnica, e não à lógica das necessidades reais
dos homens. Produz-se com eficácia o que dá lucro e
não aquilo que os homens necessitam e gostariam de
ter ou usar. A ciência e a técnica como forças produ
tivas estão hoje a serviço do valor de troca, isto é, da
produção de mercadorias. A sua dimensão emancipa-
dora, crítica, negadora foi sufocada, abafada ou des
viada. Isso porque a moderna economia capitalista
conseguiu suprir necessidades básicas, atendendo, as
sim, a algumas das reivindicações dos homens.
Na medida em que a ciência e a técnica promo
vem o “progresso”, desejado e aplaudido por todos,
elas mesmas se tornam a base legitimadora do sistema
capitalista, desativando o conflito de classes e silen
ciando as reivindicações por um sistema político e eco
nômico menos alienado. Dessa forma, a ciência e a
técnica se transformaram em uma ideologia, a ideolo
gia tecnocrática, segundo a qual questões políticas não
podem mais ser resolvidas politicamente, à base de
negociações e lutas, e sim, tecnicamente, de acordo
com o princípio instrumental de meios ajustados a
fins. Apesar de se pretenderem neutras, a ciência e a
tecnologia, seguindo a boa tradição weberiana, se
transformam elas próprias em dominação econômica e
política no interesse da acumulação do capital. Saber,
poder e economia constituem uma única força cuja fi
A TEORIA CRÍTICA: ONTEM E HOJE . 95
losofia é a acumulação e cuja prática é a repressão de
tudo que se oponha a ela. Por isso mesmo Marcuse diz
que “talvez o próprio conceito de ciência e tecnologia
sejam ideologia” (Marcuse, 1964a, p. 127).
Essa tese, ainda formulada de forma um tanto
cautelosa, é retomada por Habermas. Em Technik und
Wissenschaft ais Ideologie (1968), sua posição já se
traduz claramente no título: o vacilante “talvez” de
Marcuse é cortado, afirmando-se agora enfaticamente
que a ciência e a técnica efetivamente se transforma
ram em ideologia (Habermas, 1968, p. 48). No ensaio
que deu o nome ao livro, Habermas explicita a posição
dè Marcuse. A simbiose entre ciência e técnica com a
dominação econômica e política no capitalismo mo
derno mostra quão profundamente ambas estão com
prometidas com o interesse das classes dominantes.
Daí resulta que não basta simplesmente mudar a teo
ria e a filosofia política para mudar o mundo. A supe
ração da moderna sociedade capitalista implica a
transformação radical da ciência e da tecnologia que
nele atuam, impondo-se a necessidade de reformular
essencialmente o seu conceito.
Em seu ensaio, Habermas faz efetivamente a sín
tese dos dois momentos até aqui expostos. Considera
que o crescente intervencionismo estatal, por um lado,
e a transformação da ciência e da técnica em forças
produtivas e ideologia, por outro, alteram as formas
de legitimação do poder. A ciência e a tecnologia, pro
motoras do progresso e do bem-estar de todos, passam
a ser a base de legitimação indispensável do moderno
Estado capitalista.
Os conflitos de classe, as lutas políticas para mo
dificar a ordem social e política são silenciados em
nome do bom funcionamento da economia que pro
move — através do Estado — o bem-estar de todos. Na
96 BARBARA FREITAG
medida em que a economia prospera e produz, asse
gura o emprego e um relativo bem-estar material, ela
não somente se autolegitima, como legitima também o
sistema político que lhe assegura estabilidade e conti
nuidade, disfarçando o mal-estar real gerado pelas
condições de unidimensionalização e confundindo as
consciências, incapazes de avaliar o processo. Na me
dida em que a ciência e a técnica — manifestações
concretas da razão instrumental — estiverem obtendo
“êxitos” na economia, elas legitimam a usurpação do
poder pelas elites. Estas são aceitas pelos dominados,
em nome da competência com que o processo econô
mico está sendo gerido, dispensando-se assim qual
quer necessidade de justificação.
Também o Estado, o grande articulador dessa
“trama”, fica livre da obrigação de justificar-se, en
quanto o crescimento econômico estiver garantido. A
dimensão política da vida individual e societária se
atrofia numa questão técnica. As decisões do grupo
político que controla o Estado são vistas como racio
nais, técnicas, não podendo ser questionadas nem exi
gindo qualquer justificação.
Essa substituição do político pelo tecnocrático
será mais tarde denunciada por Habermas como sendo
a “colonização” da Lebenswelt pelo sistema econô
mico. Com isso chegamos ao terceiro momento.
Terceiro momento:
do Estado liberal ao Estado pós-moderno
Enquanto no primeiro momento se enfatizou o
crescente intervencionismo do Estado na base econô
mica da organização da sociedade, mostrando-se aqui
A TEORIA CRITICA: ONTEM E HOJE 97
as mudanças estruturais nela ocorridas, a discussão do
segundo momento restringiu-se a desvendar e explici
tar a íntima relação existente entre a razão instrumen
tal (científica e técnica) e a racionalidade econômica
do capitalismo moderno e a dominação burocrática. A
conclusão desse momento se resumiría na fórmula de
Foucault: o saber confere poder, e o poder dá acesso
ao saber. Todo saber é, como o poder, essencialmente
repressivo.
Neste terceiro momento se buscará conceituar o
Estado moderno e sua função no capitalismo tardio, a
partir a visão de Habermas e Offe, mostrando-se como
o Estado se torna o articulador imprescindível para
regulamentar a economia moderna, usando para tal
fim de todos os recursos possíveis e emaranhando-se,
por isso mesmo, em contradições inevitáveis que se
tornam cada vez mais difíceis de serem superadas sem
alterar profundamente a estrutura global do sistema
produtivo.
Como no caso da razão comunicativa, Habermas
encontra-se também nessa discussão no limite da teo
ria crítica, contribuindo com uma reflexão original
para sua superação.
Para compreender melhor a contribuição de Ha
bermas ao pensamento crítico dos teóricos de Frank
furt vale a pena recapitular alguns dados biográfi
cos, acompanhados de algumas informações biblio
gráficas.
Como é sabido, Habermas associou-se aos teóri
cos de Frankfurt somente depois da volta desses à Ale
manha do pós-guerra. No final da década de 50 parti
cipou da formulação teórica do estudo Student und
Politik (1961) comò assistente de pesquisa. De 1964 a
1971 foi professor da Universidade de Frankfurt, en-
98 BARBARA FREITAG
frentando, ao lado de Adorno e Horkheimer, o pro
testo estudantil que culminou no maio de 68. A partir
de 1971 passou a dirigir o Instituto Max-Planck para
as Ciências Sociais em Starnberg, perto de Munique,
mantendo-se afastado durante mais de uma década da
vida acadêmica. Somente em 1983 voltou a lecionar
em Frankfurt, onde ficou associado ao Departamento
de Filosofia dessa universidade. Mesmo durante seus
anos de afastamento do Instituto Habermas permane
ceu ligado a ele, agora sob a direção de Ludwig von
Friedeburg, beneficiando-se dos debates e dos estudos
ali realizados.
Se em Studerít und Politik Habermas já dá início
aos seus estudos sobre as mudanças estruturais do Es
tado, partindo do Estado liberal, esses estudos serão
ainda mais aprofundados em sua tese de livre-docên-
cia de 1962, Strukturwandel der Oeffentlichkeit {As
Mudanças Estruturais do Espaço Público). Mostra
nesses trabalhos que o Estado liberal apresenta um
relativo isolamento em relação aos problemas e assun
tos econômicos e às instituições privadas e políticas
que estruturavam o “espaço público” {Oeffentlick-
keit), isto é, a assim chamada sociedade civil. Com o
advento do Estado capitalista esse espaço se reduz gra
dativamente, havendo uma intervenção crescente do
Estado nos assuntos econômicos e políticos.
Em Technik und Wissenschaft ais “Ideologie”
(1968) Habermas entra — como vimos — na discussão
desencadeada por Marcuse em torno da instituciona
lização da razão instrumental também na organização
do Estado burocrático. Reforçando a crítica de Mar
cuse a Weber, discute as mudanças estruturais ocorri
das na base do sistema capitalista (crescente interven
cionismo na economia e no espaço público, uso da
ciência e da técnica como força produtiva, formação
A TEORIA CRÍTICA: ONTEM E HOJE 99
de cartéis, administração das crises) e defende a tese
de que a ciência e a técnica transformaram-se, no auge
do capitalismo ocidental, em verdadeiras formas de le
gitimação do Estado e da economia (assumem pois a
forma de “ideologia”), substituindo as formas anterio
res de legitimação baseadas no mecanismo de auto-
reguíação do mercado segundo a lei da oferta e da pro
cura.
Mas será especialmente em Problemas de Legiti
mação do Capitalismo Tardio (1973) que Habermas,
apoiando-se em estudos feitos por Offe, Eder e outros,
desenvolve a sua nova teoria da crise. Busca e encontra
as formas de legitimação do Estado capitalista nas
atuais condições do capitalismo avançado (Spaetka-
pitalismus).
Habermas entende por “crises” perturbações
mais duradouras da integração sistêmica (Habermas,
1973, p. 11). Essas crises decorrem, a seu ver, de pro
blemas não resolvidos do controle sistêmico.
No tópico sobre a conceituação da razão já des
crevemos a distinção de Habermas entre integração
social e integração sistêmica. A primeira seria a forma
de integração típica da Lebenswelt, a segunda a do
sistema. Desta forma a organização da economia (re
produção material dos membros que compõem o sis
tema) e das instituições políticas (formas de domina
ção) são asseguradas pela integração sistêmica. Quan
do essa organização entra em crise, ameaçam a preser
vação ou sobrevivência do sistema social, como um
todo. A segunda forma de integração, a social, en
trando em “crise”, ameaça dissociar o quadro institu
cional e a Lebenswelt (que no livro acima mencionado
ainda tem o nome de sistema sócio-cultural) do sis
tema político e econômico (Entkoppelung).
100 BARBARA FREITAG
Em verdade Habermas distingue quatro formas
de “crise”: a crise econômica, a crise de racionalidade,
a crise de legitimação e a crise de motivação.
A crise econômica é a mais diretamente respon
sável pela incapacidade do sistema de produção de
atender a todas as necessidades de sobrevivência dos
membros da sociedade.
A crise de racionalidade e a crise de legitimação
se referem ao Estado moderno e o afetam diretamente.
A crise de racionalidade se dá quando o Estado capi
talista se vê forçado á ajustar racionalmente meios a
fins em função de valores e problemas muitas vezes
não conciliáveis, procurando otimizar os ganhos em
todos os casos. Isso ocorre freqüentemente na tenta
tiva do Estado de conciliar os interesses da política in
terna com os da política externa.
A crise de legitimação decorre do fato de o Estado
ter de justificar-se para sua clientela (eleitorado),
quando desenvolve iniciativas contraditórias (diga
mos: apóia e incentiva a automação das empresas e
proíbe greves). As crises do Estado capitalista moder
no decorrem da crescente dificuldade que o Estado en
contra para explicar e defender medidas que imple
mentou para os seus eleitores e sua clientela em geral.
O insucesso do Estado nessa tentativa reflete-se nas
crises de motivação. Elas se caracterizam pela circuns
tância de que ós indivíduos membros de uma socie
dade já não se sentem mais motivados a seguir as ins
truções e ordens advindas do sistema econômico e polí
tico. Essa crise, que anuncia problemas de integração
social, pode ter suas raízes na incapacidade de o Es
tado e o sistema econômico substituírem com propos
tas plausíveis e racionalizadas as antigas concepções
de mundo, decorrentes dos sistemas religiosos. A crise
de motivação provoca uma busca de alternativas, de
A TEORIA CRÍTICA: ONTEM E HOJE 101
organização da vida cotidiana “fora” dos sistemas até
agora institucionalizados. Este é o caso dos grupos al
ternativos (“verdes”, “coloridos”, “pacifistas”, “eco
logistas”, etc.) que cada vez mais se convencem da
impraticabilidade e da irracionalidade do sistema vi
gente cuja trajetória lhes parece conduzir inevitavel
mente à autodestruição da humanidade. Por isso não
merecem confiança e adesão, havendo um “desinvesti-
mento” emocional dos atores em relação à política e
economia, o que provoca um risco de dissociação da
Lebenswelt do mundo sistêmico (da política e da eco
nomia).
O Estado moderno vê-se, portanto, diante da di
fícil tarefa de preservar o funcionamento da economia,
de superar suas crises de racionalidade e de justificar-
se e legitimar-se diante de grupos contestadores cada
vez mais numerosos e diversificados. Ocorreu, como
Offe deixaria claro no título do seu livro, uma. mu
dança estrutural do próprio Estado, que assume hoje
características bastante distintas daquelas do início do
capitalismo concorrencial.
No período de criação do Estado liberal a base de
sustentação era dada pelo princípio da livre concorrên
cia. O mercado legitimava o sistema econômico e dis
pensava o Estado de qualquer tomada de partido (Es
tado guarda-noturno). No auge do capitalismo, o in
tervencionismo estatal aumenta gradativamente, regu
lando a economia e crescentemente as formas de orga
nização da vida cotidiana, despolitizando a esfera pú
blica e cooptando mediante subvenções financeiras as
organizações políticas da sociedade civil (partidos, sin
dicatos, associações de base, etc.). Em sua forma mais
evoluída o Estado intervencionista passa a ser o Estado
do Bem-Estar que para superar as crises econômicas
faz concessões junto ao operariado, desenvolvendo po
102 BARBARA FREITAG
líticas sociais cada vez mais abrangentes e mais sofis
ticadas para todas as classes assalariadas.
Enquanto no Brasil — no ano zero do cruzado
(1986) — o seguro-desemprego é uma novidade e uma
grande concessão política e econômica da Nova Repú
blica, o seguro-desemprego na Alemanha, a maior par
te da Europa e os Estados Unidos fazem parte de um
rol de políticas sociais praticadas pelas democracias
ocidentais desde a Primeira Guerra Mundial. Depois
da Segunda Guerra Mundial as políticas sociais dos
Estados capitalistas contemporâneos já se estendem a
amplos setores da sociedade civil, invadindo persisten
temente novas áreas da atividade social. A atuação do
Estado nas áreas de educação, saúde, habitação, trans
porte, já faz parte das políticas sociais “tradicionais”.
Depois da Segunda Grande Guerra tornou-se corri
queiro os Estados intervirem de forma sutil na organi
zação partidária sindical, nos próprios movimentos de
protesto, nas organizações estudantis, procurando
abrandar conflitos e superar as contradições. Em Mu
danças Estruturais do Estado Capitalista (1972, 1984)
Claus Offe defende a tese de que as políticas sociais do
Estado não têm outra função senão controlar o fluxo e
refluxo da força de trabalho no mercado, a fim de
atender plenamente às necessidades conjunturais e es
truturais do capital privado. Nessa ótica, todas as ini
ciativas estatais visam beneficiar a acumulação am
pliada, de interesse exclusivo do capital privado. Mas
para tal precisam recorrer a recursos cada vez mais
volumosos dos cofres públicos, o que por sua vez pres
supõe sua capacidade indiscutível de gerir os negócios
de tal forma que o progresso e crescimento econômico
tenham êxito permanente.
Apoiado em Offe e seguindo o seu raciocínio, Ha-
bermas aprofunda sua teoria da crise. O Estado capi
A TEORIA CRÍTICA: ONTEM E HOJE 103
talista enfrenta dificuldades crescentes. Enquanto Es-
tado-nação, procura maximizar ou otimizar os lucros
defendendo uma posição econômica favorável no mer
cado internacional. Digladia-se com períodos de reces
são, concorrência no mercado, oligopólios, falta de
matéria-prima, elevação dos preços do petróleo, etc.,
e procura permanentemerite atender às exigências do
sistema produtivo, seja como consumidor, seja como
produtor de mercadorias (crise de racionalidade).
Como Estado do Bem-Estar, ele alcança os limi
tes de sua capacidade assistencialista e os problemas
de legitimação quando não consegue mais atender às
crescentes reivindicações emergentes, ou quando suas
políticas sociais não convencem mais a clientela da ne
cessidade de se lançar no mercado de trabalho para ali
ser consumida como força de trabalho pelo grande
capital (crise de legitimação).
Acuado entre as duas crises, o Estado capitalista
contemporâneo está sujeito a modificações profundas,
de caráter estrutural. Na fuga para frente esse Estado
encontraria no socialismo uma forma de solucionar a
crise. Na fuga para trás, o Estado se reencontraria no
fascismo totalitário.
Enquanto Offe está inclinado a privilegiar a pri
meira alternativa, Habermas busca um terceiro cami
nho, qual seja, reinscrever o Estado na dimensão de
Lebenswelt. Isto significa inseri-lo novamente naquele
quadro institucional em que a política deixa de ser
uma simples técnica de silenciamento, uma forma de
manifestação da racionalidade instrumental, que des-
politizara os assuntos de Estado, voltando a ser a
polis, ou seja, aquele locus da vida societária em que
as grandes decisões são tomadas como um todo, à base
do discurso teórico e prático. O Estado voltaria a ser,
como na Grécia antiga, um espaço da Lebenswelt com
104 BARBARA FREITAG
a integração social assegurada e não um subsistema
cooptado ao sistema econômico, regido pelo princípio
da acumulação ampliada. No livro aqui citado, Haber-
mas não ousa uma resposta sobre qual o caminho a ser
trilhado pela sociedade capitalista. Mas parece certo
de que as crises atuais de racionalidade e legitimação
tendem a uma solução, implicando assim, a médio ou
longo prazo, uma reestruturação do Estado e da socie
dade sobre outras bases.
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