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Pedro Goer.;en'
Introdução
O presente ensaio é uma tentativa Mesmo que não estejamos de accrdo
de aproximar as reflexões de Habermas com Eric Bronner, que se refere a Jürgen
sobre sociologia, política, epistemologia,
ética e filosofia do contexto educacio- Habermas como o "inquestionavelrr en-
nal. Acompanhando o próprio projeto te mais enciclopédico e produtivo r en-
que Habermas apresenta na obra 1eo- sador do pós-guerra", 1 parece con~en
ria da ação coniunicaliva, o autor divide sual a opinião de que se trata de um dos
sua exposição em três momentos: no
primeiro, analisa o conceito de razão mais importantes intelectuais da segun-
comunicativa; no segundo, reconstrói a da metade do século XX. Por outra par-
teoria da modernidade de Habermas à te, é consensual também que Habennas
base dos conceitos ~i;;;tema e mundo da é um autor muito polêmico, cujas ((Ses
vida; no terceiro momento, procura ex-
trair algumas inferências dessas refle- são aplaudidas por uns e rejeitadas por
xões para a área da educação e da prá- outros. Suas posições vêm enreda.las
tica pedagógica. A conclusão indica numa linguagem rebuscada e compltxa,
que a filosofia de Habermas, parti- que, acrescida do fácil uso de conlwci-
cularmente a sua teoria conzunicativa,
nos sugere gestos de resistência contra mentos enciclopédicos com relaçã:i a
os poderes constituídos sobre as bases temas e autores, assusta leitores e in1 ér-
de uma racionalidade monológica, ins- pretes. Quem se dispõe a ler Habernas
trun1ental, e que novos gestos poderão
ser produzidos no horizonte do para-
digma da intersubjetividade.
Doutor em Filosofia pela Ludwig Maximilians Un \'er-
sitãt Alünchen - UNI München - Alemanha com pós-
Palavras-chave: práxis pedagógica, ação doutorados pefa Univcrsiti:it Bochum e pelo Institulu
comunicativa, Habermas. Max-Planck da Alemanha. Professor Titular de Filoso-
fia da Educaç~o da Universidade Estadual de Cair1pi-
nus - Unicamp. E-mail: goergenr]~unicamp.br
logo percebe que, para entendê-lo, é pre- polêmico das posições de Habermas que
ciso familiarizar-se com vários outros recebem críticas de quase todos os lados.
autores cujos pontos de vista aparPcem Os marxistas ortodoxos o condenam há
crítica c criativamente incorporados, muito tempo. Habermas, que inicial-
quais fios teóricos que vão sendo teci- mente se dispôs a desenvolver uma re-
dos pacientemente até formar um teci- construção do materialismo histórico,
do novo, original. cai sob suspeita após suas incursões
As divergências em torno do pensa- mais recentes nos domínios da filosofia
mento de Habermas fundam-se, em da linguagem, uma vez que esse cami-
grande medida, no próprio caráter dos nho pode representar o esvaziamento do
temas por ele abordados. Sirvo-me das propósito anterior. Mesmo assim, "per-
palavras de Bronner para resumir alguns manece um homem de esquerda", que
desses aspectos polêmicos: merece o repúdio dos conservadores que
Há a recusa de sua teoria democrática en1 o "castigaram sem piedade". 3 Ademais,
confrontar o impacto diferenciado do proces- são bem conhecidos seus envolvimentos
so de acumulação e sua incapacidade de pe- nos debates com os positivistas, com os
netrar os isolados suhsiste1nas institucionais
de uma sociedade ca<la vez mais complexa.
representantes da teoria dos sistemas, com
Há os argumentos suspeitos quanto ao cará- os historiadores (Historikerstreit), com
ter "pós-metafísico" da nova filo::i:ofia lin- os representantes da primeira teoria crí-
güística; sua incapacidade de sair de uma es- tica e com os chamados pós-modernos. 4
trutura antropológica e de fornecer quais-
quer princípios para uma "especificidade his-
Além de suas abordagens sistemáti-
tórica" (l(orsch) e suas tentativas de substi- cas sobre questões teóricas no campo da
tuir uma evolução abstrata da evolução mo- sociologia e da filosofia que marcam sua
ral por uma filosofia da história e un1a teoria história intelectual desde o seu famoso
da sociedade. Há a paralisia da ética do dis-
curso quando se defronta com questões con10 debate com os estudantes nos anos ses-
a mobilização das massas, o papel da violên- senta, Habermas nunca deixou de envol-
cia, o desequilíbrio estrutural do poder e a ver-se nas discussões dos grandes temas
influência don1inante exercida por interesses políticos, econômicos e culturais de sua
inflexíveis. Há a relutância e1n encarar o fato
de que sua efetividade depende de uma ante- época. Sua voz é presença certa e respei-
rior percepção institucional de seus pressu- tada nos grandes diários e semanários
postos liberais. 2 não só da Alemanha e da Europa, mas
A lista dessas divergências poderia do mundo inteiro.
ser facilmente ampliada e encontraria Essai'> rápidas lembranças não têm
variações quase ilimitadas a depender da aqui outro sentido senão o de assinalar
perspectiva de cada leitor. o caráter de quase-atrevimento da ten-
Aqui nos interessa apenas mencionar tativa de estabelecer a relação entre a
as dificuldades para explicitar o caráter teoria da ação comunicativa, que repre-
filosofia da linguagem e, como espero sível a crítica. Para que isso se tornasse
mostrar adiante, também da educação. possível, foi necessário proceder a uma
A teoria da ação comunicativa não é distinção entre um mundo objetivo,
senão o detalhamento teórico de algo externo, do estado de coisas existentes,
que tem profundas implicaçôes episte- e um mundo subjetivo, interno, das nor-
mológicas, morais e estéticas: a busca mas vigentes. Somente sobre o fundo do
cooperativa da verdade. 2' Essa busca mundo objetivo as proposições que pre-
consiste no processo discursivo entre tendem ser verdadeiras podem ser
proponentes e oponentes que tematizam criticadas e consideradas falsas ou verda-
uma pretensão de validade que se tornou deiras, e somente sobre o fundo de uma
problemática, exoneram-se da pressão da realidade normativa que se tornou obje-
ação e da experiência, adotando uma tiva, as intenções, desejos, ou atos podem
atitude hipotética, e examinam com ra- ser considerados legítimos ou não.
zões se procede ou não reconhecer a Habermas substitui a terminologia
pretensão defendida pelo proponente. ordinária que fala de dois conceitos si-
Os argumentos são os meios pelos quais métricos de mundo interno e externo
se pode obter um entendimento inter- por "mundo subjetivo" e "mundo obje-
subjetivo acerca da pretensão de valida- tivo" e social. O mundo subjetivo é o
de, meio, portanto, pelo qual uma opi- muncío das vivências às quais somente
nião pude transformar-se em saber. cada um indivíduo tem acesso privile-
Isso significa que as pretensões de giado; o mundo objetivo é o da totalida-
validade são, em princípio, suscetíveis de dos fatos e o mundo social, o da tota-
de crítica porque se apóiam em concei- lidade das relações interpessoais que são
tos formais de mundo e pressupõem um reconhecidas pelos integrantes como le-
mundo comum para todos ·os observado- gítimas. A essas três dimensões da reali-
res possíveis, ou seja, um mundo inter- dade - a objetiva, a subjetiva e a social -
subjetivamente compartido por todos os correspondem três atitudes distintas. A
membros de um grupo. Desse modo, as atitude expressiva revela algo de sua sub-
pretensões de validade exigem uma pos- jetividade do indivíduo; a atitude obje-
tura racional que renuncia ao pré-jul- tivante é a atitude que o sujeito assume
gamento com relação aos conteúdos das ao observar e manipular as coisas e acon-
afirmações. Aquilo que no mundo tecimentos; a atitude social ou de con-
mítico_, por causa da desdiferenciaçao formidade/não-conformidade é aquela
conceituai entre mundo objetivo e mun- assumida pelo indivíduo frente às expec-
do social, entre realidade e linguagem, tativas de seu entorno como participan-
ainda não era possível, agora é viável: os te da interação.
conteúdos da imagem lingüística dife- O que Habermas está querendo dizer
renciam-se da realidade, tornando pos- é que à compreensão moderna de mun-
tercâmbio entre sistema e mundo da vida do mundo da vida - tomam conta da mes-
na medida em que os produtos do mun- ma pessoa em momentos distintos, esta
do da vida se ajustem aos meios de con- corre o risco da fragmentação, perden-
trole através de um processo de abstra- do a capacidade de dar à sua vida o im-
ção real que os reduz a meros inputs do prescindível grau de orientação unitá-
respectivo sisten1a". 36 ria. Habermas é muito incisivo ao afir-
Trata-se da monetarização e da buro- mar que, "na medida em que o sistema
cratização do trabalho e dos serviços econômico submete aos seus imperati-
estatais. Historicamente, essa transfor- vos a forma de vida doméstica e o modo
mação só pode ser realizada às custas das de vida de consumidores e empregados,
formas de vida tradicionais. Nessa abs- o consumismo e o individualismo pos-
tração consiste a colonização do mundo sessivos e as motivações relacionadas ao
da vida, que subjaz aos fenômenos de rendimento e à competitividade adqui-
coisificação que se registram no contex- rem força configuradora" .38
to do capitalismo tardio. Somente na Com isso, a infra-esturtura comuni-
medida em que cativa está ameaçada por duas tendên-
os componentes do modo de vida privada e a cias que se reforçam mutuamente: a
forma de vida político-cultural são arranca- coisificação, induzida sistemicamente,
dos de seu espaço vital e de seu contexto his- e o empobrecimento cultural. A primeira
tórico e biográfico mediante a redefinição
monetária de metas, relações e .serviços, e das
representa uma racionalizaçao unilate-
estruturas simbólicas do mundo da vida me- ral da comunicação cotidiana que deri-
diante a burocratização das decisões, dos de- va da autonomização de subsistemas
veres e direitos, de responsabilidades e de- regidos por meios de controle (dinhei-
pendências, começa a fazer-se sentir que os
meios dinheiro e poder só .se ajustam a deter-
ro e poder) que não apenas se reificam
minadas funções. [... ] Estes meios fracassam num espaço vazio de conteúdo, mas tam-
nos âmbitos da reprodução cultural, da inte- bém invadem com seus imperativos o
gração social e da socialização; nestas fun- mundo da vida. E a segunda indica o
ções não podem substituir o mecanismo de
entendimento como mecanismo coordena-
momento da extinção das tradições vi-
dor das ações. 37 vas que decorre da diferenciação entre
Esse aspecto é o objeto da crítica de ciência, arte e moral, que, além de se-
Habermas quando afirma que a mone- rem trabalhadas agora por especialistas,
tarização e a burocratização ultrapassam ainda rompem com as tradições que
os limites da normalidade ao instrumen- perdem a sua credibilidade.'"
talizar e, assim, enrijecem os aportes do A modernização capitalista efetua a
mundo da vida. À medida que ambas as dissolução das formas de vida tradicio-
nais, sem preservar sua substância co-
dimensões - a da monetarização/buro-
cratização do sistema e o entendimento municativa. "Destrói essas formas de
pendentizaram-se na passagem para a do da vida não pode ser total é algo que
modernidade, possam alcançar o seu ob- se evidencia no fato de que toda a orga-
jetivo de racionalização, vêem-se na con- nização formal necessita de organização
tingência de preservar, contraditoria- informal. A organização informal com-
mente, o espaço do mundo da vida, regido preende todas aquelas relações internas,
pelo entendimento. "Se todos os proces- legitimamente reguladas, que, em que
sos genuínos de entendimento ficassem pese à juridificação de seu contexto,
desterrados do interior da organização, podem continuar sendo moralizadas.
não poderiam ser mantidas as relações Com a organização informal, o mundo da
sociais formalmente reguladas nem atin- vida dos membros de uma organização,
gir os objetivos da organização." 46 que nunca é eliminado de todo, invade a