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Teoria da ação comunicativa e


práxis pedagógica
Theory of communicative action and pedagogical praxu.

Pedro Goer.;en'

Introdução
O presente ensaio é uma tentativa Mesmo que não estejamos de accrdo
de aproximar as reflexões de Habermas com Eric Bronner, que se refere a Jürgen
sobre sociologia, política, epistemologia,
ética e filosofia do contexto educacio- Habermas como o "inquestionavelrr en-
nal. Acompanhando o próprio projeto te mais enciclopédico e produtivo r en-
que Habermas apresenta na obra 1eo- sador do pós-guerra", 1 parece con~en­
ria da ação coniunicaliva, o autor divide sual a opinião de que se trata de um dos
sua exposição em três momentos: no
primeiro, analisa o conceito de razão mais importantes intelectuais da segun-
comunicativa; no segundo, reconstrói a da metade do século XX. Por outra par-
teoria da modernidade de Habermas à te, é consensual também que Habennas
base dos conceitos ~i;;;tema e mundo da é um autor muito polêmico, cujas ((Ses
vida; no terceiro momento, procura ex-
trair algumas inferências dessas refle- são aplaudidas por uns e rejeitadas por
xões para a área da educação e da prá- outros. Suas posições vêm enreda.las
tica pedagógica. A conclusão indica numa linguagem rebuscada e compltxa,
que a filosofia de Habermas, parti- que, acrescida do fácil uso de conlwci-
cularmente a sua teoria conzunicativa,
nos sugere gestos de resistência contra mentos enciclopédicos com relaçã:i a
os poderes constituídos sobre as bases temas e autores, assusta leitores e in1 ér-
de uma racionalidade monológica, ins- pretes. Quem se dispõe a ler Habernas
trun1ental, e que novos gestos poderão
ser produzidos no horizonte do para-
digma da intersubjetividade.
Doutor em Filosofia pela Ludwig Maximilians Un \'er-
sitãt Alünchen - UNI München - Alemanha com pós-
Palavras-chave: práxis pedagógica, ação doutorados pefa Univcrsiti:it Bochum e pelo Institulu
comunicativa, Habermas. Max-Planck da Alemanha. Professor Titular de Filoso-
fia da Educaç~o da Universidade Estadual de Cair1pi-
nus - Unicamp. E-mail: goergenr]~unicamp.br

REP - Revista Espaço Pedagógico, v. 10, n. 1, Passo Fundo, p. 50-79 - jan./jun./2003


Teoria da ação con1unicatiYa e práxis ...

logo percebe que, para entendê-lo, é pre- polêmico das posições de Habermas que
ciso familiarizar-se com vários outros recebem críticas de quase todos os lados.
autores cujos pontos de vista aparPcem Os marxistas ortodoxos o condenam há
crítica c criativamente incorporados, muito tempo. Habermas, que inicial-
quais fios teóricos que vão sendo teci- mente se dispôs a desenvolver uma re-
dos pacientemente até formar um teci- construção do materialismo histórico,
do novo, original. cai sob suspeita após suas incursões
As divergências em torno do pensa- mais recentes nos domínios da filosofia
mento de Habermas fundam-se, em da linguagem, uma vez que esse cami-
grande medida, no próprio caráter dos nho pode representar o esvaziamento do
temas por ele abordados. Sirvo-me das propósito anterior. Mesmo assim, "per-
palavras de Bronner para resumir alguns manece um homem de esquerda", que
desses aspectos polêmicos: merece o repúdio dos conservadores que
Há a recusa de sua teoria democrática en1 o "castigaram sem piedade". 3 Ademais,
confrontar o impacto diferenciado do proces- são bem conhecidos seus envolvimentos
so de acumulação e sua incapacidade de pe- nos debates com os positivistas, com os
netrar os isolados suhsiste1nas institucionais
de uma sociedade ca<la vez mais complexa.
representantes da teoria dos sistemas, com
Há os argumentos suspeitos quanto ao cará- os historiadores (Historikerstreit), com
ter "pós-metafísico" da nova filo::i:ofia lin- os representantes da primeira teoria crí-
güística; sua incapacidade de sair de uma es- tica e com os chamados pós-modernos. 4
trutura antropológica e de fornecer quais-
quer princípios para uma "especificidade his-
Além de suas abordagens sistemáti-
tórica" (l(orsch) e suas tentativas de substi- cas sobre questões teóricas no campo da
tuir uma evolução abstrata da evolução mo- sociologia e da filosofia que marcam sua
ral por uma filosofia da história e un1a teoria história intelectual desde o seu famoso
da sociedade. Há a paralisia da ética do dis-
curso quando se defronta com questões con10 debate com os estudantes nos anos ses-
a mobilização das massas, o papel da violên- senta, Habermas nunca deixou de envol-
cia, o desequilíbrio estrutural do poder e a ver-se nas discussões dos grandes temas
influência don1inante exercida por interesses políticos, econômicos e culturais de sua
inflexíveis. Há a relutância e1n encarar o fato
de que sua efetividade depende de uma ante- época. Sua voz é presença certa e respei-
rior percepção institucional de seus pressu- tada nos grandes diários e semanários
postos liberais. 2 não só da Alemanha e da Europa, mas
A lista dessas divergências poderia do mundo inteiro.
ser facilmente ampliada e encontraria Essai'> rápidas lembranças não têm
variações quase ilimitadas a depender da aqui outro sentido senão o de assinalar
perspectiva de cada leitor. o caráter de quase-atrevimento da ten-
Aqui nos interessa apenas mencionar tativa de estabelecer a relação entre a
as dificuldades para explicitar o caráter teoria da ação comunicativa, que repre-

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senta o cerne da obra de Habermas e para na, democrática e justa e de um sei hu-
a qual confluem os impulsos de seus mano mais livre, autônomo e feliz. O
trabalhos anteriores e de onde emanam que poderia ser mais importante paa a
projetos de composições mais recentes, educação?
e a prática educativa. Essa tentativa só Não creio, repito, que da teori l de
pode ser limitada, seletiva e provisória. Habcrmas se possam extrair receita; di-
Meus comentários não vão além de um retamente aplicáveis ao contexto educa-
ensaio sobre a relevância do pensamen- cional, mas creio, sim, que dela emer-
to de Habermas para a educação, cuja gem impulsos teóricos e desafios críti-
fecundidade ainda depende do debate cos que a teoria educacional pode colo-
que venha a provocar. Julgo também, car com proveito na sua agenda de de-
consoante ao próprio espírito e procedi- bates. De modo especial, penso que
mento metodológico de Habermas, que Habermas nos ajuda a detectar certas
tal aproveitamento não se dará por sim- patologias ocorridas ao longo do proces-
ples aderência aos seus pontos de vista so de modernização que afetam também
e por tentativas (desde já inócuas) de a educação e escola modernas.
transferência desses ao campo educati- Acompanhando o próprio projeto de
vo, mas pelo debate de suas idéias, cuja Habermas, apresentado na Teoria da cção
riqueza, de certo modo, independe da comunicativa, 5 divido minha exposição
concordância ou não com seus pontos de em três momentos, dedicados, respecti-
vista. Entendo que de um autor só pode- vamente, ao conceito de razão comuni-
mos aprender algo se levarmos a sério cativa, à tese do desacoplamento/coloni-
sua intenção e analisarmos as instrutivas zação entre sistema e mundo da vida c a
contradições em que se vê envolto no algumas inferências desses aspectos da
desenvolvimento de seu projeto. teoria de Habermas para a prática peda-
Habermas, excetuadas algumas in- gógica.
cursões circunstanciais, não se dedica Embora transpareça ao longo de todo
expressis verbis aos temas da educação, o o texto, quero adiantar, desde logo, que
que, porém, não significa que seu pen- não descarto a esperança no ..proj ~to
samento deva ser descartado como irre- iluminista, apesar das justifieadas críti-
levante para a área. Toda a sua obra está cas6 que exigem correções de rota. ')e-
dedicada aos grandes temas sociológi- guindo Habermas, acredito que o prc,je-
cos, políticos, epistemológicos e éticos to iluminista incorreu em muitas apo-
que envolvem o ser humano na busca de rias e está inacabado, mas que nem por
luzes que permitam reconhecer as difi- isso deve ser abandonado. Acredito, pois,
culdades e vislumbrar caminhos para a na capacidade transformadora e de auto-
construção de uma sociedade mais dig- superação da sociedade.

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Teoria da ação con1u11icatiYa e práxis ..

O conceito de razão âmbitos sejam eles teóricos, moral-prá-


ticos ou, mesmo, estéticos da racionali-
comunicativa <1ade. Todos eles passam a reger-se pelo
É característico da filosofia contem- mesmo princípio e tornam-se espaços
porânea nos seus mais diferentes domí- autônomos, dominados por especialis-
nios preocupar-se com as condições for- tas.
mais da racionalidade do conhecimen- Para Weber, a passagem do mundo
to, do entendimento ~ingüístico e da medieval para o moderno encontra-se no
ação, das experiências cotidianas ou dos processo de racionalização, que se dá
discursos sistematicamente organiza- pela ampliação do saber empírico, da ca-
dos. Nesse contexto, assume particular pacidade de predição, bem como do do-
importância a teoria da argumentação mínio instrumental e organizativo sobre
uma vez que a ela cabe a tarefa de re- os processos empíricos. 8 "Com a ciência
construir os pressupostos e condições e a técnica, com a arte autônoma e os
estruturais (pragmático-formais) do valores relativos à apresentação expres-
comportamento explicitamente racio- siva que o sujeito faz de si mesmo, com
nal,7 ou seja, no centro da filosofia pós- as idéias universalistas que subjazem ao
metafísica moderna encontra-se o tema direito e à moral, se produz uma diferen-
da racionalidade na forma de uma teo- ciação de três esferas de valor, cada uma
ria da racionalidade. das quais obedece à sua própria lógica." 9
Aparentemente, assim, parece que o É, respectivamente, a lógica da verdade
pensamento filosófico ahre mão de uma e do êxito, para a esfera cognitiva; a ló-
relação de totalidade e perde sua auto- gica da justiça e da retidão normativa,
suficiência. Na verdade, o que se perde para a esfera prático-moral, e a lógica da
são as tentativas de fundamentação úl- beleza, da autenticidade e da veracida-
tima. Com isso, modifica-se profunda- de, para a esfera expressiva.
mente a relação entre filosofia e ciên- Assim, constituem-se três complexos
cias. As teorias das modernas ciências de racionalidade: a) a atitude objetivan-
experimentais sustentam uma pretensão te frente à natureza externa e frente à
normativa e universalista que não se an- sociedade forma um complexo de racio-
cora mais em princípios de caráter nalidade cognitivo-instrumental que
ontológico ou metafísico. A sua valida- envolve a ciência, a técnica e as tecno-
de só pode fundamentar-se na reconstru- logias sociais; b) a atitude de conformi-
ção sistemática de caráter teórico-racio- dade normativa frente à sociedade e fren-
nal, com apoio em análises empíricas da te à natureza que circunscreve a racio-
própria história da ciência, no contexto nalidade prático-moral, envolvendo o
do desenvolvimento social. Isso que vale direito e a moral; e) a atitude expressi-
para as ciências vale também para outros va frente à natureza interna e a nature-
za externa circunscreve a racionalidade dades modernas com a diferenciaçãc· das
estéticaw Segundo Habermas, podem esferas culturais de valor".13
ocorrer desequilíbrios entre esses com- Weber expõe a tese da perda de sen-
plexos de racionalização quando se es- tido, que se constata na medida em que
tabelece um modelo seletivo de raciona- a razão se dissocia numa pluralidade de
lização, ou seja, quando um (pelo me- esferas de valor, destruindo sua própria
nos um) dos três componentes constitu- unidade. 14 Segundo ele, essa perda de
tivos da tradição cultural não é objeto sentido é o grande desafio diante do qual
de uma elaboração sistemática ou quan- se vê o indivíduo para reconstruir a
do uma (pelo menos uma) das esferas unidade no âmbito de sua biografia, de
culturais de valor fica apenas institucio- sua personalidade, a unidade que já não
nalizada de forma insuficiente, vale di- é possível reconstruir no âmbito da so-
zer, sem que tal institucionalização tenha ciedade. Tarefa difícil, esperança de de-
efeitos estruturais para a sociedade global, sesperançado, na medida em que a Jró-
ou quando uma (pelo menos uma) das pria autonomia interior está ameaçada
esferas da vida se impõe de tal maneira porque "na sociedade moderna já nã:i se
sobre as outras, que submete as outras encontra nenhuma ordem legítima ca-
ordens da vida a uma forma de raciona- paz de garantir a reprodução cultural
lidade que lhes é estranha." das correspondentes orientações
Embora sempre tenha existido o pro- valora tivas e das correspondentes dü po-
blema de assegurar, dentro da diversida- sições para a ação" .15
de de situações sociais de ação e das es- Habermas, ao contrário, defenc e a
feras da vida, a unidade do mundo da vida, posição de que, entre as diferentes esfe-
essas diferenças sempre puderam ser ras, que, para Weber, já não convergi.:tm,
absorvidas pela figura mítica ou pela é possível um entendimento acordado.
imagem religioso-metafísica do mundo, A partir da crítica da imagem de Weber
que cumpriam uma função fundadora do dilaceramento das sociedades moder-
de unidade. As imagens religiosas e nas nos três complexos de racionalida-
metafísicas do mundo, ética ou cogniti- de, que, com o desaparecimento das ima-
vamente racionalizadas, mantinham, or- gens tradicionais do mundo, já não en-
denados através dos seus arquétipos contram uma institucionalização equi-
(Deus, natureza, razão), "os três aspectos librada na ordem da vida e já não dei er-
sob os quais o mundo tornar-se-ia, depois, minam por igual a prática da vida cnti-
acessível à elaboração racional como diana, Habermas desenvolve o seu c.m-
mundo objetivo, ou mundo social, ou ceito de ação comunicativa, que "centra
mundo subjetivo". 12 Segundo Habermas, seu interesse no entendimento lingUs-
é "justamente esta capacidade integradora tico como um mecanismo de coorde rn-
que está colocada em questão nas sacie- ção das ações [... ]". 16

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T'eoria da ação con1unicatiYa e práxis ...

Habermas desenvolve um conceito de aqui evidente. Convencido de que um concei-


racionalidade que se projeta em duas to de racionalidade não pode ficar circunscri-
to à estreiteza dos supostos subjetivistas e in-
direções: a) de uma racionalidade cog- dividualistas, pretende fundamentar um con-
nitivo-instrumental, que "tem a cono- ceito de razào que integre os aspectos cogniti-
tação de uma auto-afirmação com êxito vos, com os prático morais e expressivos, de
no mundo objetivo possibilitada pela forn1a que, atendendo às diferentes pretensões
de validade às quais correspondem estes as-
capacidade de manipular informada- pectos- produtos de diversas esferas de valor
mente e de adaptar-se inteligentemente diferenciadas-, podem introduzir-se critérios
às condições de um contexto contingen- ajustados a elas, mostrados.em forma de argu-
te";17 b) de uma racionalidade comuni- mentação, que permitem avaliar as ações hu-
1nanas como racionais ou irracionais. Esta é a
cativa, que '~possui conotações que, em pretensão básica de Habcrmas ao longo de sua
última instància, remontam à experiên- obra: mostrar a possibilidade de uma razão
cia central da capacidade de concordar comunicativa que permita construir socieda-
des mais justas e humanas. 19
sem coações e gerar consensos com base
numa fala argumentativa em que os di- A racionalidade comunicativa defen-
versos participantes superam a subjeti- de o ponto de vista de que existem pro-
vidade inicial de seus respectivos pon- posições que têm boas razões mesmo
tos de vista e, graças a um conjunto de sem estarem vinculadas a pretensões de
convicções racionalmente motivado, se verdade ou eficiência. No contexto da
asseguram, por sua vez, de un1a unida- comunicação, não são racionais apenas
de do mundo objetivo e da intersubjeti- aquelas proposições que fazem afirma-
vidade do contexto em que desenvolvem ções e são capazes de defendê-las frente
suas vidas" .18 às críticas, aduzindo evidências lógicas
Ambos os tipos de racionalidade, em- ou empíricas, mas também aquelas com-
bora ostentem igualmente um saber petentes em justificar sua ação median-
proposicional, distinguem-se pela utili- te a interpretação de uma situação à luz
zação desse saber: a razão cognitivo-ins- de expectativas legítimas de comporta-
trumental objetiva a manipulação ins- mento.'" Da mesma forma que os atos de
trumental e a razão comunicativa o en- fala constatativos, também aqueles regu-
tendimento comunicativo. São, pois, lados por normas ou auto-apresentações
dois modelos de racionalidade aos quais expressivas têm um caráter de manifes-
subjazem procedimentos e objetivos tações providas de sentido, ou seja, po-
diferentes. Paz Gimeno resume bem a dem ser inteligíveis, com legítima pre-
idéia de Habermas: tensão de validade, e suscetíveis de crí-
O interesse de Habermas, ao tomar como tica, embora não apontem para um es-
ponto de partida a tese weberiana acerca da tado "objetivo" de coisas, mas tão-so-
diferenciação de diversas esferas de valor mente para a validade de normas ou vi-
com uma lógica interna própria, torna-se
vências subjetivas que fazem parte do

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mundo social ou subjetivo. Essas ações problemáticas, esse é o contexto da ciên-
têm sua racionalidade ancorada no con- cia; outro é o discurso prálico, 1ue
texto de um mundo de vida, que descan- tcmatiza a validade das normas. Os dois
sa sobre o reconhecimento de um mun- processos são distintos um do outro, nas
do intersubjetivo de pretensões de vali- é certo que, no campo do agir prático,
dade, suscetíveis de crítica. também pode ser alcançado um con:;en-

O reconhecimento intersubjetivo re- so fundamentado. Habermas assume,
mete à prática da argumentação como portanto, uma posição cognitivista no
instância de apelação. Assim, Habermas campo da ética, ou seja, defende a idéia
desenvolve um conceito de racionalida- de que as questões práticas (éticas), em
de comunicativa que faz referência a uma princípio, podem também ser decididas
conexão sistemática de pretensões uni- argumentativamente. Para além de"ses
versais de validade que devem ser adequa- dois espaços, Habermas agrega que ~ão
damente desenvolvidas por meio de uma existe um meio reflexivo apenas parn os
teoria da comunicação. Nesse modelo de âmbitos cognitivo-instrnmental e práti-
racionalidade, a validade constitui-se por co-moral, mas também para a mani :es-
meio de processo argumentativo, enten- tação de valores estéticos (aprendidm na
dendo-se por argumentação "o tipo de cultura), para as manifestações psíc ui-
fala através da qual os participantes cas, enquanto processo de auto-refle:{ão
tematizam as pretensões de validade que sobre a subjetividade (crítica terapêuti-
se tornaram duvidosas e tratam de aceitá- ca), bem como para as manifestaç )es
las ou rejeitá-las por meio de argumen- simbólicas (regras lingüísticas).
tos" .21 Comportar-se racionalmente sig- Por meio desse conceito ampliado de
nifica, então, estar disposto a expor-se à razão, llabermas procura dar conta de
crítica e a participar de processos de ar- sua tese de que há formas de argum,n-
gumentação. Tal processo argumentati- tação legítima que ultrapassam os limi-
vo de fundamentação está intimamente tes da lógica formal dedutiva ou
ligado ao de aprendizagem, pois implica indutiva. O conceito de legitimid8 de
a crítica de argumentos e posições que, distingue-se do de verdade (pe.culiar às
quando justificada, deve levar à correção ciências), mas preserva' seu sentido e rí-
das pretensões de validade anteriormen- tico, transcendendo as restrições espa-
te defendidas-" ciotemporais, sociais e subjetivas. Abre,
Habermas distingue vários ambientes portanto, a perspectiva de uma teo :ia
em que esse processo de argumentação/ mais ampla de razoabilidade, que vai
fundamentação pode acontecer. O pri- além da lógica formal e indutiva. E:;sa
meiro deles é o do discurso teórico, o pro- perspectiva ampliada de razão tem imr,li-
cesso de argumentação que tematiza as cações diretas em diversos campos da fi-
pretensões de verdade que se tornaram losofia, da epistemologia, da ética e da
Teoria da ação co1nunicatiYa e práxis ...

filosofia da linguagem e, como espero sível a crítica. Para que isso se tornasse
mostrar adiante, também da educação. possível, foi necessário proceder a uma
A teoria da ação comunicativa não é distinção entre um mundo objetivo,
senão o detalhamento teórico de algo externo, do estado de coisas existentes,
que tem profundas implicaçôes episte- e um mundo subjetivo, interno, das nor-
mológicas, morais e estéticas: a busca mas vigentes. Somente sobre o fundo do
cooperativa da verdade. 2' Essa busca mundo objetivo as proposições que pre-
consiste no processo discursivo entre tendem ser verdadeiras podem ser
proponentes e oponentes que tematizam criticadas e consideradas falsas ou verda-
uma pretensão de validade que se tornou deiras, e somente sobre o fundo de uma
problemática, exoneram-se da pressão da realidade normativa que se tornou obje-
ação e da experiência, adotando uma tiva, as intenções, desejos, ou atos podem
atitude hipotética, e examinam com ra- ser considerados legítimos ou não.
zões se procede ou não reconhecer a Habermas substitui a terminologia
pretensão defendida pelo proponente. ordinária que fala de dois conceitos si-
Os argumentos são os meios pelos quais métricos de mundo interno e externo
se pode obter um entendimento inter- por "mundo subjetivo" e "mundo obje-
subjetivo acerca da pretensão de valida- tivo" e social. O mundo subjetivo é o
de, meio, portanto, pelo qual uma opi- muncío das vivências às quais somente
nião pude transformar-se em saber. cada um indivíduo tem acesso privile-
Isso significa que as pretensões de giado; o mundo objetivo é o da totalida-
validade são, em princípio, suscetíveis de dos fatos e o mundo social, o da tota-
de crítica porque se apóiam em concei- lidade das relações interpessoais que são
tos formais de mundo e pressupõem um reconhecidas pelos integrantes como le-
mundo comum para todos ·os observado- gítimas. A essas três dimensões da reali-
res possíveis, ou seja, um mundo inter- dade - a objetiva, a subjetiva e a social -
subjetivamente compartido por todos os correspondem três atitudes distintas. A
membros de um grupo. Desse modo, as atitude expressiva revela algo de sua sub-
pretensões de validade exigem uma pos- jetividade do indivíduo; a atitude obje-
tura racional que renuncia ao pré-jul- tivante é a atitude que o sujeito assume
gamento com relação aos conteúdos das ao observar e manipular as coisas e acon-
afirmações. Aquilo que no mundo tecimentos; a atitude social ou de con-
mítico_, por causa da desdiferenciaçao formidade/não-conformidade é aquela
conceituai entre mundo objetivo e mun- assumida pelo indivíduo frente às expec-
do social, entre realidade e linguagem, tativas de seu entorno como participan-
ainda não era possível, agora é viável: os te da interação.
conteúdos da imagem lingüística dife- O que Habermas está querendo dizer
renciam-se da realidade, tornando pos- é que à compreensão moderna de mun-

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do certamente subjazem estruturas uni- ran1 de um contexto con1um de sua:; vi-
versais de racionalidade, mas que as so- das, o mundo da ''ida, que intersubje1 iva-
ciedades ocidentais fomentaram uma mente compartem. No caso desse mJde-
compreensão distorcida dessa racionali- lo, as condições de validade remetem a
dade, centrando-a apenas na sua forma um saber de fundo, compartido intecmb-
cognitivo-instrumental e em seus pro- jetivamente pela comunidade de comu-
cedimentos. Segundo ele, quanto mais nicação e, por isso, Habermas o intrc duz
os procedimentos científicos levarem a cooo conceito complementar ª'' de
uma visão reificada da ordem do mun- ação comunicativa.
do, ou seja, quanto mais mítica for essa
visão, menor será o espaço de interpre- Sistema e mundo da vida:
tação e de crítica dessa realidade. "Na
medida em que o mundo da vida de um
desacoplamento e colonizaç:io
grupo social for interpretado a partir de Dos vários fios teóricos que Habermas
uma imagem mítica do mundo, os indi- puxa para com por o tecido de sua teoria,
víduos a ele pertencentes, se vêem libe- certamente o pensamento de Weber é um
rados do peso da interpretação, mas, em dos mais importantes. Para esse soei ólo-
contrapartida, se vêem também privados go alemão, como vimos, a modernidade
da oportunidade de chegar por si mesmos caracteriza-se por uma "difercnciaçàJ de
a um acordo suscetível de crítica."" E esferas de valor e de estruturas de CJns-
aqui, se me é permitido um rápido olhar ciência que tornam possível uma trins-
para Adorno, vem à memória a argumen- formação crítica do saber tradicional,
tação desenvolvida na Dialética do escla- guiada por pretensões de validade e ipe-
recimento de que o domínio completo da cíficas para cada esfera". 27 Esse processo
razão pelos imperativos da ciência e representa a condição necessária para a
tecnologia representa um retorno ao institucionalização de sistemas de saber
mundo mítico do qual o homem sempre e de processos de aprendizagem diferen-
procurou se livrar. 2' ciados conforme cada uma dessas esfrras.
Assim, Habermas busca distanciar-se Embora admitindo que a anáJis,, de
do conceito de ação desenvolvido por Weber "continua sendo o enfoque mais
Weber, que, segundo ele, era concebido promissor para explicar as pato lo 5ias
monologicamente. "Weber não parte da sociais que se apresentam como seqüe-
relação social. Só considera como aspec- la da modernização capitalist~." , 28
to suscetível de racionalização a relação Habermas reconhece em sua teoria uma
meio-fim de uma ação teleológica con- série de problemas. O principal deles é
cebida monologicamente." 26 Pela práti- que Weber teria investigado a raciona-
ca comunicativa, os sujeitos se assegu- lização do sistema de ação apena:. do

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Teoria da aç<lo con1unicativa e práxis ..

ângulo da racionalidade cognitivo-ins- que representa algo comum para os en-


trumental. Habermas pretende fazer, volvidos. Essa interpretação está dada
frente a essa deficiência, primeiro, com pelo mundo da vida que os participantes
a introdução de um "conceito mais com- da interação têm como que às suas cos-
plexo de racionalidade que permita as- tas do qual o tema concreto é apenas um
sinalar o espaço que para a moderniza- recorte. Conforme Gimeno, "o conceito
ção da sociedade abre a racionalização de mundo da vida [... ) atua como pano de
das imagens do mundo sobre as quais se fundo das ações comunicativas, vale dizer,
apoia o ocidente" ,29 pois, somente as- como esquema intersubjetivo de signifi-
sim, teremos condições de superar o cados dentro do qual se movem em co-
estreitamento cognitivo-instrumental mum os participantes na interação". 30
da racionalidade, incluindo os aspectos Essa base comum sobre a qual já há
prático-morais e estético-expressivos. um acordo prévio é o mundo da vida, o
Isso vimos no item anterior. Em segun- qual desempenha um papel constitutivo
do lugar, o que quero comentar agora, dos processos de entendimento já que
Habermas sugere uma outra leitura da nos fornece a pré-compreensão das coi-
racionalização ocorrida ao longo do pro- sas que vamos desenvolvendo enquan-
cesso de modernização, desvendando- to crescemos num determinado contex-
lhe uma nova face. to cultural. É um saber implícito,
O conceito de ação comunicativa não holisticamente estruturado e que não
pode ser entendido sem o complemen- está à nossa disposição para ser temati-
to necessário a que Habcrmas denomi- zado, a não ser quando se torna proble-
na de mundo da vida. Esse conceito, à pri- mático, ou seja, quando é insuficiente
meira vista um tanto difícil de ser defi- para continuarmos a nos entender. 31 Em
nido, é na realidade bastante simples. outros termos, o mundo da vida é o con-
Imaginemos um processo de interação texto das convicções às quais recorremos
lingüística em que os participantes pro- para nos entendermos e chegarmos a
curam entender-se sobre algo, sobre al- um acordo. Nas palavras de Habermas,
gum tema, por exemplo. Para que um também podemos entendê-lo como "o
entendimento possa ser alcançado e acervo lingüisticamente organizado dos
para que os participantes possam orien- supostos de fundo que se reproduz na
tar suas ações com base nesse entendi- forma de tradição cultural". 32
mento, e necessário que eles possam Sob esse pano de fundo, os participantes
referir-se a um chão comum de concei- de um processo comunicativo conectam
tos, representações, valores etc. a respei- entre si suas interpretações referidas ao
to do qual estão de acordo. O assunto, mundo objetivo, social e subjetivo. O
objeto da interação lingüística, deve es- conceito de mundo da vida permite que
tar inserido num âmbito de relevância o falante que atua comunicativamente

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se entenda tanto como iniciador da ação Diferentemente de Weber, Habermas
pela qual é responsável quanto como entende, portanto, que a relação pando-
produto das tradições culturais nas xal não se dá entre diversos tipo> de
quais ele vive, dos grupos sociais a que orientação da ação, ou seja, entre a 1ção
pertence, dos processos de socialização cognitiva, a prático-moral e a prár ico-
aos quais está sujeito. Visto desde a pers- expressiva, mas entre diferentes tipc s de
pectiva da ação orientada ao entendi- integração social: sistema e mundo da 1'ida.
mento, serve tanto para manter e repro- Habermas elabora um conceito de socie-
duzir a tradição cultural quanto para dade articulado em dois níveis: a pers-
renovar criticamente esse saber cultu- pectiva do sistema, composto pelos sub-
ral. A função geral que desempenha "ser- sistemas da economia e do Estado e a
ve para a manutenção da ordem existen- perspectiva do mundo da vida, que i n te-
te e, ao mesmo tempo, para introduzir gra a esfera da vida privada e a esfera da
através dela (ação voltada ao entendi- opinião pública. No âmbito do sist.,ma,
mento) os elementos críticos e de trans- as relações de intercàmbio são regul idas
formação necessários para emancipar a por meios de controle que são o dir hei-
sociedade e seus membros das redes de ro e o poder, ao passo que no àmbio do
domínio". 33 Numa palavra, o mundo da mundo da vida as relações são estrutura-
vida ~ o saber de fundo comunicativa- das comunicativamente.
mente estruturado, a partir do qual orde- O sistema representa um espaç'i de
namos nossos processos de entendimen- ações formalmente organizadas onle o
to e justificamos nossas ações. ator se engaja no papel de trabalhador
O ponto a que Habermas pretende ou cliente. À medida que os atore:o as-
chegar resume-se na tese de que Ha ra- sumem esses papéis, eles se desli :;am
cionalidade cognitivo-instrumental ul- dos contextos do mundo da vida e adap-
trapassa os àmbitos da economia e do tam seu comportamento aos ditame~ das
Estado, invadindo os àmbitos da vida ações formalmente organizadas. e )mO
comunicativamente estruturada e assu- trabalhador, a pessoa submete-se a um
mindo neles a primazia às custas da ra- processo de monetarização e, c1)mo
cionalidade prático-moral e prático-es- cliente dos serviços do Estado, a um
tética, o que provoca perturbações na processo de burocratização.
reprodução simbólica do mundo da Sempre que o mundo da vida tem ne-
vida". 34 O mundo da vida, progressiva- cessidade de adaptar-se ao mundo
mente racionalizado, fica desacoplado sistêmico, é necessário que seja instau-
dos "âmbitos da ação formalmente or- rado um processo de abstração (tran:;for-
ganizados e cada vez mais complexos mação do trabalho concreto em trab llho
que são a economia e a administração abstrato), pois "os meios dinheiro e po-
estatal e cai sob sua dependência"." der só podem regular as relações de in-

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Teoria da ação comunicariYa e práxis ..

tercâmbio entre sistema e mundo da vida do mundo da vida - tomam conta da mes-
na medida em que os produtos do mun- ma pessoa em momentos distintos, esta
do da vida se ajustem aos meios de con- corre o risco da fragmentação, perden-
trole através de um processo de abstra- do a capacidade de dar à sua vida o im-
ção real que os reduz a meros inputs do prescindível grau de orientação unitá-
respectivo sisten1a". 36 ria. Habermas é muito incisivo ao afir-
Trata-se da monetarização e da buro- mar que, "na medida em que o sistema
cratização do trabalho e dos serviços econômico submete aos seus imperati-
estatais. Historicamente, essa transfor- vos a forma de vida doméstica e o modo
mação só pode ser realizada às custas das de vida de consumidores e empregados,
formas de vida tradicionais. Nessa abs- o consumismo e o individualismo pos-
tração consiste a colonização do mundo sessivos e as motivações relacionadas ao
da vida, que subjaz aos fenômenos de rendimento e à competitividade adqui-
coisificação que se registram no contex- rem força configuradora" .38
to do capitalismo tardio. Somente na Com isso, a infra-esturtura comuni-
medida em que cativa está ameaçada por duas tendên-
os componentes do modo de vida privada e a cias que se reforçam mutuamente: a
forma de vida político-cultural são arranca- coisificação, induzida sistemicamente,
dos de seu espaço vital e de seu contexto his- e o empobrecimento cultural. A primeira
tórico e biográfico mediante a redefinição
monetária de metas, relações e .serviços, e das
representa uma racionalizaçao unilate-
estruturas simbólicas do mundo da vida me- ral da comunicação cotidiana que deri-
diante a burocratização das decisões, dos de- va da autonomização de subsistemas
veres e direitos, de responsabilidades e de- regidos por meios de controle (dinhei-
pendências, começa a fazer-se sentir que os
meios dinheiro e poder só .se ajustam a deter-
ro e poder) que não apenas se reificam
minadas funções. [... ] Estes meios fracassam num espaço vazio de conteúdo, mas tam-
nos âmbitos da reprodução cultural, da inte- bém invadem com seus imperativos o
gração social e da socialização; nestas fun- mundo da vida. E a segunda indica o
ções não podem substituir o mecanismo de
entendimento como mecanismo coordena-
momento da extinção das tradições vi-
dor das ações. 37 vas que decorre da diferenciação entre
Esse aspecto é o objeto da crítica de ciência, arte e moral, que, além de se-
Habermas quando afirma que a mone- rem trabalhadas agora por especialistas,
tarização e a burocratização ultrapassam ainda rompem com as tradições que
os limites da normalidade ao instrumen- perdem a sua credibilidade.'"
talizar e, assim, enrijecem os aportes do A modernização capitalista efetua a
mundo da vida. À medida que ambas as dissolução das formas de vida tradicio-
nais, sem preservar sua substância co-
dimensões - a da monetarização/buro-
cratização do sistema e o entendimento municativa. "Destrói essas formas de

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vida, mas não as transforma de modo objetalizada e livre dos ligamentos nor-
que se mantenha, em um nível superior mativos.
de diferenciação, aquela conexão entre Para Habermas, o centro dessa d esu-
os momentos cognitivo-instrumentais, manização consiste na cisão entre os
prático-1norais e estético-expressivos, âmbitos da ação formalmente orgaHiza-
que haviam caracterizado a prática quo- dos e o mundo da vida, decorrente da in-
tidiana dos mundos de vida ainda não terferência dos meios de controle (di-
racionalizados.""' Essas novas formas nheiro e poder). Tomando como o.cm-
de organização sistêmicas se desenvol- plo alguém que trabalha numa empre-
vem com grande rapidez em virtude de sa, constata-se que, enquanto emprega-
sua melhor performance, uma vez que do, segue exigências de pertinência 1ren-
"a forma de produção capitalista e a dimento, obediência) completam ~nte
dominação legal burocrática podem separadas do seu contexto particul~ r do
cumprir melhor as tarefas de reprodu- mundo da vida. Há um distanciam ~nto
ção material do mundo da vida". 41 entre sistema e pessoa que provoca Jma
Ao diferenciar-se os subsistemas de profunda desconexão entre as referên-
economia e Estado, regidos pelos meios cias de sentido próprias à ação ajustada
dinheiro e poder, de um sistema insti- ao sistema e às estruturas de senti lo e
tucional que estava inserido no horizon- motivação da pessoa. "Para a empresa,
te do mundo da vida, "surgem âmbitos de a vida privada de todos os seus membros
ação formalmente organizados, cuja transformou-se em mero contexto."-1-1
integração já não transcorre através do Além dessa indiferença entre a erga-
mecanismo de entendimento, que se nização e a personalidade, algo SE me-
dissociam do mundo da vida e que se co- lhante ocorre na relação entre a oré ani-
agulam numa socialidade vazia de zação e cultura e a sociedade. As fo1mas
substância normativa":tl As organiza- modernas de organização exigem i 1de-
ções ligadas à economia e à administra- pendência com relação às imagen; do
ção pública buscam autonomia através mundo que serviram outrora como base
de um distanciamento das estruturas de legitimação, bem como distancia-
simbólicas do mundo da vida e, com isso, mento com relação às tradições cdtu-
tornam-se peculiarmente indiferentes rais de modo geral. Com a prátic 1 de
frente à cultura, à sociedade e à perso- neutralidade ideológica, as organizações
nalidade. Nas palavras de Luhmann, 43 evitam a influência das tradições qu,~, de
lembradas por Habermas, trata-se de outra forma, restringiriam o seu es)aço
uma desumanização da sociedade. A soberano de ação. Assim, tanto a pessoa
sociedade como um todo parece contra- quanto as tradições culturais ficam des-
ir-se a uma realidade organiza tiva pojadas de seu caráter vinculante e

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·reoria da ação con1unicatiYa e práxis ..

transformadas em matéria-prima para a O que ocorre é que a ação comunica-


planificação ideológica. tiva perde sua base de validade no espa-
A importante ressalva que Habermas ço interno das organizações. Os mem-
introduz, a qual, posteriormente, irá ga- bros das organizações sistémicas atuam
rantir a perspectiva otimista de sua teo- comunicativamente apenas de forma
ria, é que, para ele, "o social não fica de limitada, pois eles sempre têm, tanto em
modo algum absorvido totalmente pelos casos de exceção quanto nos de rotina,
sistemas de ação organizados, senão que, a salvaguarda de poder recorrer a "regu-
muito mais, fica dividido em âmbitos de lamentos" (regras do sisrnma) sem terem
ação constituídos em termos de mundo a necessidade de alcançar consensos por
da vida e em âmbitos de ação, neutrali- meio de processos comunicativos. As
zados frente aos mundos de vida. Os pri- relações internas das organizações cons-
meiros estão estruturados comunicati- tituídas pelo pertencimento não substi-
vamente, os segundos organizados for- tuem totalmente a ação comunicativa,
malmente". 45 mas a destituem de sua base de valida-
Apesar desse distanciamento, Habermas de, porque a qualquer momento podem
ressalva que os dois âmbirns não devem ser recorrer legitimamente a regulamentos
vistos de forma totalmente isoladas nem que lhes permitem impor a vontade,
como plenamente ocupados um pelo independentemente de qualquer obten-
outro. A estrutura não se realiza de for- ção de consenso.
ma automática e sem distorções como Nos espaços formais da empresa, re-
uma ação organizada, calculada e impes- gidos pelos princípios da racionalidade
soal, independente da situação e sem instrumental, o sistema pode, mas não
contradições. Ironicamente parece ser está obrigado a orientar suas ações atra-
assim que, para que os espaços sistémi- vés de consensos alcançados por meios
cos da razão cognitiva, prática e estética, com uni cativos de entendimento. Mes-
que, conforme Weber ensinou, inde- mo assim que a externalização do mun-
1

pendentizaram-se na passagem para a do da vida não pode ser total é algo que
modernidade, possam alcançar o seu ob- se evidencia no fato de que toda a orga-
jetivo de racionalização, vêem-se na con- nização formal necessita de organização
tingência de preservar, contraditoria- informal. A organização informal com-
mente, o espaço do mundo da vida, regido preende todas aquelas relações internas,
pelo entendimento. "Se todos os proces- legitimamente reguladas, que, em que
sos genuínos de entendimento ficassem pese à juridificação de seu contexto,
desterrados do interior da organização, podem continuar sendo moralizadas.
não poderiam ser mantidas as relações Com a organização informal, o mundo da
sociais formalmente reguladas nem atin- vida dos membros de uma organização,
gir os objetivos da organização." 46 que nunca é eliminado de todo, invade a

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própria realidade organizativa."47 De cer- processo de modernização. Não acredi-
to modo, perfaz um movimento dialético ta que a perda da liberdade e do ser tido
contrário ao da colonização do mundo da sejam fenômenos que estariam se 'um-
vida pelo sistema. prindo e se impondo como expressões
Habermas reconhece que, dentro dos inerentes à própria natureza do raciona-
âmbitos de ação formalmente organiza- lismo ocidental. Os problemas diag nos-
dos, o entendimento perdeu espaço ticados, cada um a seu modo, por JV,arx,
como mecanismo de coordenação, mas, Durkheim, Weber ou Luhmann são,
ao mesmo tempo, não acredita que esse para Habermas, patologias reversÍ\ eis.
seja um processo irreversível. Para ele, O que conduz ao empobrecimento cultural
"a circunstância de que os meios de con- da prática comunicativa quotidiana ni10 é a
trole como dinheiro e poder necessitam diferenciação e o desenvolvimento de dlstin-
tas esferas culturais de valor conforme seu
de um suporte institucional no mundo da próprio sentido específico, mas a ruptu1 a eli-
·vida parece falar a favor, pelo menos em tista da cultura dos especialistas com relação
princípio, de um primado dos âmbitos aos contextos da ação comunicativa. ()que
da ação integrados socialmente frente conduz a uma racionalização unilatera ou a
uma coisificação da prática comunicativa
aos contextos sistêmicos reificados".•' cotidiana não é a diferenciação dos sub :Üste-
Segundo seu juízo, a debilidade metodo- mas regidos por meios e de suas formas de
lógica do funcionalismo sistêmico, organização com relação ao mundo da vidd,
quando se apresenta com pretensões senão que o desbordamento das form :is de
racionalidade econômica e administrativa
absolutistas, radica no fato de que elege para os âmbitos de ação que, por serenL âm-
suas categorias teóricas como se o pro- bitos de ação especializados na tradição cul-
cesso, cujos inícios Weber descreveu, tural, na integração social e na educação e ne-
estivesse já encerrado; como se a buro- cessitarem incondicionalmente do ent ~ndi­
mento como n1ecanismo de coordenação das
cratização total houvesse desumanizado ações, resistem a ficar assentados soCre os
já por completo a sociedade e a tivesse meios dinheiro e poder.-+9
convertido em um sistema desprovido de O que se pode dizer é que a moneta-
toda a ancoragem num mundo da vida rização e a burocratização que envolyem
comunicativamente estruturado e este, as organizações tendem a assumir e spa-
por sua vez, tivesse ficado degradado ao ços cada vez maiores, em detriment< dos
status de um subsistema entre outros. componentes do mundo da vida que são
Portanto, apesar da situação preo- deslocados para a periferia. Habermas,
cupante, Habermas não se rende aos no entanto, alimenta a esperança de que
argumentos do esgotamento da moder- essa tendência venha a ser revertida. A
nidade nem aceita um certo conformis- razão comunicativa, diz, pode operar
mo que lhe parece exalar das teses de como força redentora na medida em que,
Weber com relação à perda da liberda- representando uma situação de discur-
de e à perda do sentido, ocorridos no so ideal, contrafatual, contrapõe-se i. do-

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Teoria da ação con1unicatiYa e práxis ..

minação instrumental e objetalizante."' la. E ainda, porque estou convencido de


É no horizonte dessa esperança que pro- que as patologias, detectadas por Habermas,
curo estabelecer nexos entre a teoria da do encolhimento da razão comunicativa
ação comunicativa e a práxis educativa. frente aos avanços da razão instrumen-
tal podem ter na educação tanto o am-
Educação: inferências à luz da biente de disseminação quanto de con-
trole. Minha intenção é detectar algumas
teoria da ação comunicativa práticas pelas quais se infiltra a razão
Da teoria da ação comunicativa des- instrumental do sistema no contexto edu-
taquei dois aspectos que me parecem cativo, levando a que nele prevaleçam
centrais não só para este texto, mas para interesses sistémico-instrumentais so-
a obra de Habermas como um todo: o bre os processos comunicativos. Acredi-
conceito de "razão comunicativa" e o de to que um dos mais importantes desafios
"sistema e mundo da vida". 51 Quero ago- da educação contemporânea seja o de
ra tomar esses dois conceitos como o fio deter e reverter a crescente influência
condutor das considerações que farei a desses interesses sistémicos sobre o
seguir sobre alguns impulsos reflexivos ambiente educacional; que deve ser pre-
que, a meu ver, podemos canalizar das servado como um contexto comunicati-
análises de Habermas para a prática edu- vo por excelência.
cativa. Insisto, como já fiz na introdu- A razão comunicativa, voltada ao
ção, que não se trata de transferir me- entendimento e fortalecida via educa-
canicamente partes do pensamento de ção, pode ser o caminho para reverter o
Habermas, elaborado no registro filosó- cenário de competitividade, de egoísmo
fico de busca pragmático-formal dos e não-solidariedade que caracteriza o
fundamentos da razão comunicativa, mundo de hoje. Seu caráter dialético e
para o campo da prática educativa. Esse contraditório, em que se confrontam
seria, a meu ver, um procedimento, dois modelos de racionalidade, é, ao
além de metodologicamente ilícito, mesmo tempo, espaço de infiltração da
também inócuo. racionalidade sistémica e de reabilitação
Mesmo assim, e embora não se possa da racionalidade comunicativa. Essa
estabelecer uma relação instrumental contradição precisa ser acirrada para
entre a reflexão filosófica e sua aplica- que a utopia sobreviva e a esperança não
ção prática, acredito no ensinamento de morra. Se a educação nao é a nau que
um incómodo pensador do século XIX, leva a humanidade desses mares revol-
que um dia disse que a filosofia não tos e ameaçadores para um porto mais
existe apenas para explicar a realidade, seguro, pode, no entanto, ajudar a en-
mas, também, para ajudar a transformá- contrar as madeiras para a construção

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dessa nau. A humanidade encontra-se nomia do indivíduo. Durkheim já ·iizia
numa rota que desafia o político e tam- que "a autonon1ia que cresce com l in-
bém a educação enquanto gesto político. dividuação progressiva caracteriza uma
nova forma de solidariedade que não
Educação entre razão comunicativa e vem garantida por um consenso va .ora-
razão instrumental tivo assegurado de antemão, mas que
tem que ser alcançado cooperativamen-
A primeira consideração que gostaria te mediante os esforços individuais. A
de fazer é de ordem mais geral, buscan- integração social por meio da fé é subs-
do estabelecer uma relação entre a pro- tituída por uma integração social n.isci-
posta teórica de Habermas e a prática da da cooperação" .52
educativa a partir do conceito de razão Acontece, conforme explica WE ber,
comunicativa. Embora possa haver mui- que esse processo de racionalização foi
tas discordâncias com relação à separa- sendo armado nos moldes de uma razão
ção, para alguns, um tanto esquemática, dividida entre os âmbitos do cogni1 ivo,
entre razão instrumental e razão comuni- do ético ou do estético. Dentre e ;ses
cativa, parece, no entanto, ser um esque- subsistemas, a dimensão do cognitivo,
ma útil a partir do qual podemos captar focada nas questões do conhecimento,
as características essenciais de duas for- domínio e transformação da natureza,
mas distintas, embora imbricadas e no tornou-se hegemônica sob os conceitos
cotidiano muitas vezes desdiferenciadas, de ciência e tecnologia. Seu prodig aso
da relação dos seres humanos com a na- sucesso possibilitou a institucionaliza-
tureza, com a cultura, e dos seres hu- cão
, e universalizacão
, dos seus proc·edi-
manos entre si no contexto da educação. mentas, baseados no conhecimento se-
(~orno vimo~, a n1odernidade caracte- guro e útil. E, por conta disso, subne-
riza-se pela dissolução dos paradigmas teu todas as dimensões do humano aos
culturais fixos, do mito e da religião, seus critérios, com implicações profun-
que asseguravam a integração social. das não só para a orientação da a;ão
Agora essa integração passa a depender humana, mas também para a organ' za-
de processos de racionalização. Aquilo ção e estruturação das relações do ho-
que o indivíduo encontrava pronto, or- mem con1 a natureza, com a cultu1a e
ganizado e socialmente aceito torna-se com os outros homens. Esses noros
fluido, exigindo um novo princípio de princípios passam a comandar todo o
integração: a razão. É nesse sentido que processo de socialização e de educação,
Kant não só defendia a autonomia da tanto formal quanto informal, com base
razão com relação à religião, mas seu nos princípios da razão instrumental ou
efetivo uso como princípio fundante, estratégica.
seja da organização social, seja da auto-

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Teoria da ação con1unicaliva e práxis ..

À medida que a educação é chamada na-se o princípio ordenador que perpas-


a voltar toda a sua atenção às exigências sa não só as disciplinas isoladas e a es-
decorrentes da conjuntura econômica, trutura curricular, mas também 'Jda a
como, por exemplo, à educação profis- relação com o conhecimento, as rela-
sionalizante, abandona progressivamen- ções entre profe~sor e aluno, as relações
te a tarefa de pensar a sociedade e o ser dos ai unos entre si, as relações da com u-
humano como um todo, na perspectiva ni d a de com a escola, os processos
educativa de sua humanização. Defron- avaliativos individuais e institucionais,
ta-se com tarefas empíricas cujas respos- e assim por diante.
tas se legitimam segundo critérios de Diante dessa realidade, o que nos
utilidade e performatividade sistêmicos. sugere o conceito de razão comunicati-
O conflito surge quando os valores pro- va de Habermas é o repensar de todo o
cedentes da esfera produtiva se impõem processo educacional a partir desse ou-
sobre as demais esferas, ou seja, quan- tro modelo de razão que se assenta so-
do a capacitação profissional dos indi- bre a intersubjetividade voltada ao en-
víduos marginaliza por inteiro outras tendimento na busca de novos acordos,
responsabilidades, como a integraçáo que sirvam de baBe para uma ação
social ou o desenvolvimento de capaci- reorientada que permita, inclusive, a
dades individuais não relacionadas ao recuperação das "dimensões perdidas"
rendimento. do educativo.Na verdade, não se trata de
De fato, um exame, ainda que super- negar a importância do cognitivo/ins-
ficial, da educação formal nos revela trumental, mas de correlacioná-lo às
que a racionalidade ali dominante é a dimensões normativa e expressiva, re-
instrumental/estratégica, voltada ao cuperando uma visão integral do ser hu-
êxito. Tudo ali converge para adaptar o mano.53 Seria reverter a imagem de homo
indivíduo às expectativas do sistema e, economicus que passou a preencher por
particularmente, ao mercado que é o completo o sentido do educativo. A prá-
novo e todo-poderoso deus, diante do tica comunicativa pode estabelecer pon-
qual todos devem se curvar e render ser- tos de encontro que permitem aos alu-
viço. Perde-se a visão holística do ho- nos movimentar-se de um complexo de
mem, segundo a qual as dimensões racionalidade a outro sem conflitos. Na
cognitiva, ética e estética formam um verdade, o que fica sugerido é uma re-
todo integrado de cujos critérios depen- flexa.o abrangente sobre o sentido ou
de a validação do agir. Ao contrário dis- sentidos da vida humana e o estabeleci-
so, é fácil perceber que a educação pri- mento da relação teórico-prática desses
vilegia o lado cognitivo e instrumental sentidos com o processo educativo.
cm detrimento das demais dimensões Hoje confundem-se verdade e valida-
humanas. O cognitivo/instrumental tor- de normativa com eficácia empírico/
sistémica. Em termos habermasianos, nalidade. A base da validade da tradição,
poderíamos dizer que se confundem os que é a autoridade com seu inerente in-
âmbitos das atitudes voltadas ao enten- grediente de exercício do poder, deve des-
dimento com aquelas voltadas ao êxito. locar-se para a ação comunicativa.
Tal como a sociedade de modo geral, Podemos, portanto, concordar que a
também o subsistema educacional en- linguagem como mecanismo fundante
contra-se perpassado e dominado pelo de princípios capazes de garantir a in-
modelo de ação orientada ao êxito, e não tegração social e de orientar a açãc das
pelo modelo voltado ao entendimento. pessoas passa a ser constitutiva da nova
É o que Habermas sugere que seja re- ordem moderna. Resta saber qual é, pre-
pensa do. cisamente, a função que a lingua;em
está exercendo. A linguagem só aparen-
A educação e a linguagem oculta temente é um instrumento neutro e ino-
fensivo; digamos, não é apenas um meio,
Quando, no advento da modernidade, ao contrário, por meio da língua 6em
"a reprodução cultural, a integração não só são mediados conhecimentos teó-
social e a socialização abandonam seus ricos nas diferentes áreas de conheci-
fundamentos sacros e se assentam de aí mento, mas também, mesmo que subli-
em diante sobre a comunicação lingüís- minarmente, visões de mundo e de úda,
tica e sobre a orientação voltada ao en- concepções éticas e políticas, conceitos
tendimento" e à medida que "a ação de raça e de gênero, de natureza e sc,cie-
comunicativa assume funções sociais dade, de sexo e religião, enfim, priorida-
que são centrais, começam a pesar sobre des, valores e sentidos de toda a sorte.
o meio linguagem as tarefas de um en- Além disso, e esse é o ponto que r1ais
tc11dimento substancial" _5 -1 Da açao ri- interessa no presente contexto, o dis,;ur-
tual que venera a autoridade exterior so pedagógico pode promover o
parte-se para o exercício democrático da eficientismo, a competitividade ou, en-
linguagem voltada ao entendimento. As tão, o entendimento, o respeito e r<'co-
convicções devem cada vez menos sua nh ecim en to e a solidariedade. Em
autoridade à força fascinadora e à aura suma, por meio da linguagem, são orde-
do sagrado e, cada vez mais, a um con- nados contextos, sacramentados desti-
senso não simplesmente reproduzido, nos e estigmatizadas pessoas. A máxma
mas alcançado, vale dizer, buscado e moral de Kant, de que nunca se deve
conseguido comunicativamente. Esse usar o outro como meio, mas sempre
processo só pode ocorrer à medida que como um fim, pode ser tanto reforç1da
a ação comunicativa adquire peso pró- quanto anulada pelos mecanismos rna-
prio para as funções de entendimento, de ves, sutis e velados da linguagem.
integração social e de formação da perso-

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Teoria da ação con1unicativa e práxis ..

Outro ponto fundamental da teoria validade para cujo desempenho hão de


de Habermas, também de máxima rele- contribuir se não entendermos o senti-
vância para o educativo, é a concepção do da empresa a cujo serviço está, em
das relações sociais não como um con- cada caso, a argumentação". 56 Então, os
junto de ações singulares de sujeitos argumentos educativos só podem ser
isolados, mas como processos orientados plenamente entendidos se os situarmos
ao entendimento que cumprem a fun- cm seus contextos práticos e tivermos
ção de integração social dos indivíduos. em conta as funções que cumprem e os
Por meio de sua teoria da ação com uni- propósitos a que servem no empreendi-
ca tiva, ele inverte os sinais da orienta- mento concreto que é o da educação.
ção da ação da subjetividade para a in- Ora, se analisarmos as formas de uso
tersubjetividade. Empenha-se, portanto, da linguagem no contexto educativo,
na superação de um conceito monádico poderemos constatar que os atos de fala,
através de um conceito intersubjetivo pelo menos em grande medida, não es-
de ação. tão vinculados a um processo de enten-
Ora, a educação é eminentemente dimento, mas são usados estrategicamen-
uma açáo social, que, portanto, não pode te para o êxito na consecução de deter-
ser concebida como uma ação estratégi- minados fins. Ela serve de mecanismo de
ca individual, mas sempre como uma transmissão de valores orientados ao êxi-
ação intersubjetiva vol~ada ao entendi- to, que assim se generalizam por toda a
mento. Esse procedimento depende do instituição escolar. Isso abre espaço para
uso comunicativo da linguagem. Na que se apliquem à instituição escolar os
educação, por conseguinte, assume mesmos critérios de eficácia no atendi-
crucial importância a linguagem en- mento às expectativas econômicas e exi-
quanto mecanismo de entendimento e gências profissionais como qualquer
não de influência sobre o outro. "[... ] A outra empresa 5 ' A linguagem, portanto,
linguagem assume as funções de enten- deixa de cumprir seu papel original de
dimento, de coordenação da ação e da meio de entendimento e é transformada
socialização dos indivíduos, converten- em meio de influência pelo qual convic-
do-se, com isso, no meio através do qual ções ou comportamentos já estavam es-
se efetuam a reprodução cultural, a in- tabelecidos de antemão (sistema), sendo
tegração social e a socialização. " 55 introjetados nos educandos.
O sentido da linguagt:::m depende Esse perigo que assim se torna apa-
sempre da empresa a cujo serviço ela se rente vem de mais longe, de fora da pró-
encontra. Habermas lembra palavras de pria escola. À medida que todos os es-
Toulmin, segundo as quais "não pode- paços da vida, inclusive o da própria fa-
mos avaliar a força dos argumentos nem mília, estão sendo ocupados pela racio-
entender a categoria das pretensões de nalidade instrumental, esse manejo da
linguagem vai se tornando "natural" e papel que ela predominantemente exer-
passa a ser assumido e reproduzido em ce no contexto educativo. Averiguar ,,e já
todos os ambientes da vida, inclusive no não se tornaram inerentes à sua própria
da escola, de maneira acrítica e natural. estrutura a viabilização de interesses sis-
Constata-se, então, que o discurso do têmicos e o enquadramento dos edw:an-
falante docente ou discente provém de dos, ou em que medida e por meio de que
um campo que já não é o do mundo da recursos a linguagem pode ainda pro mo-
vida, para onde ainda confluem os âm- ver a autonomia, a percepção crítica e o
bitos do cognitivo, do moral e do expres- desenvolvimento humano dos educan-
sivo, mas, predominantemente, do mun- dos. Nesse contexto, parece-me urgt'nte
do cognitivo/instrumental, ligado a for- uma aproximação entre a filosofia da' du-
mas de comunicação orientadas a fins, cação ou teoria educacional e a análise
ou seja, onde prevalece a razão instru- do discurso. A análise do discurso pode
mental e estratégica. Através do meca- ajudar a levar avante um processo de
nismo imperceptível da linguagem, re- desmascaramento da linguagem ped>gó-
produzem-se no educando as formas de gica e desvendar o paradoxo de sua roti-
pensar e de agir próprias à racionalida- na lingüística, que consiste na ocultação
de instrumental já partilhada pelos do não-dito: o discurso do poder econô-
adultos responsáveis pela sua educação. mico e burocrático.
O docente, portanto, para que não se
transforme inadvertidamente num Educação entre o poder
agente da racionalidade instrumental, econômico e a burocracia
precisa conscientizar-se dos sentidos
inerentes à linguagem que utiliza nas Assumem ares proféticos as palavras
suas relações pedagógicas. de Weber, que se referem a uma servi-
Hoje são realizadas muitas pesqui- dão do futuro na qual os homens se
sas que visam detectar nas relações intra- vêem, impotentementes, obrigados a
escolares, no currículo, nos livros didá- adaptar-se quando uma administração e
ticos e, mesmo, na legislação até que organização burocráticas tecnicame·11e
ponto esses meios são portadores de ideo- boas, isto é, racionais, forem os úni ::os
logias e preconceitos. As questões de gê- e últimos valores a decidir sobre a for-
nero e de raça são temas que, dentre ou- ma de dirigir seus próprios assuntoL. 58
tros, mereceram e vêm merecendo mui- Generalizando um pouco, podería-
ta atenção. As análises habermasianas e mos dizer que, nessa perspectiva, a eciu-
a centralidade que nelas ocupa a lingua- cação corre o risco de, sob a premên~ia
gem sugerem um aprofundamento desse da modernização, incorporar acriti,:a-
olhar crítico sobre o próprio meio lingua- mente um processo de racionalizac ão
gem, com a intenção de detectar qual é o que divide perigosamente diferen :es

REP - Revista Espaço Pedagógico, v. 10, n. l, !.>.asso Fundo, p. 50-79 - jan./jun./2003


Teoria da ação con1unicati\'a e práxis ..

âmbitos de racionalidade e se estriba mente sobre os riscos da juridificação do


nos meios sistêmicos e alingüísticos do espaço educativo pela burocracia do
dinheiro e do poder. Ofuscada por esses Estado. "A formalização das relações
mecanismos que, sorrateira e silencio- dentro da família e da escola significa
samente, infiltram-se e tomam conta de para os afetados uma objetalização
tudo, a educação perde a capacidade de (Versachlichung) e desnzundanização da
reconhecer as contradições e patologias convivência familiar e escolar, que pas-
inerentes a esse processo. Uma vez com- sa a ser regulada formalmente. Como
prometidos com a racionalização, os sujeitos jurídicos (os participantes) ado-
indivíduos passam a avaliar tudo, inclu- tam uns frente aos outros uma atitude
sive aquelas dimensões do mundo da vida objetivante, orientada ao êxito."" Para
que nada têm a ver com o econômico ou Habermas,
com o administrativo, pelo esquema a juridificação dos âmbitos de ação comuni-
custo/benefício. Essa forma de ver e cativamente estruturados não deve ir além da
avaliar as coisas torna-se um hábito, implantação dos princípios do Estado de Di-
reito, da institucionalização jurídica da es-
uma normalidade, que necessita de um trutura externa, seja da família ou da escola.
choque conscientizador. O uso do direito como meio deve ser substi-
Retomando os conceitos dinheiro e tuído por procedimentos de regulação de
poder, que Habermas toma emprestado conflitos que se ajustem às estruturas da ação
orientada ao entendimento - por processos
de Weber, podemos levantar a tese de de formação discursiva da vontade individual
que, nas organizações privadas de ensi- e coletiva e por procedimentos de negociação
no, a estruturação sistémica impõe-se e decisão orientados ao consenso. 60
prioritariamente por mecanismos econô- Habermas está bem consciente das
micos, ao passo que, nas escolas públicas, resistências que a sua proposta de
isso acontece prioritariamente por meio desjusticialização e desburocratização
do poder da burocracia imposta pelo Es- pode enfrentar porque
tado, aliado ao sistema. À medida que a a exigência de uma pedagogização mais pro-
escola se transfor1na numa organização funda do ensino e de uma democratização de
cujas relações são intermediadas, predo- suas estruturas de decisão não é compatível
minantemente, pelos meios dinheiro e sem mais com a neutralização do papel de ci-
dadão e muito menos com o imperativo do
poder, ou seja, quando as questões do sistema econômico de desligar a escola do
sentido, dos valores, das normas e do direito fundamental à educação e à cultura e
entendimento são secundarizadas, o alu- conectâ-la de tOrma direta e exclusiva ao sis-
no deixa de ser um participante na rela- tema ocupacional. A disputa atual em torno
das orientações básicas da política escolar
ção comunicativa/educativa para tornar- pode entender-se desde o ponto de vista da
se consumidor e cliente. teoria da sociedade corno uma luta a favor ou
Enfocando particularmente a ques- contra a colonização do mundo da vida. 61
tão do poder, Habermas alerta expressa-

REP - Revista Espaço Pedagógico, v. 10, n. 1, Passo Fundo, p. 50-79 - jan./jun./2003


Segundo Habermas, a proteção jurí- "os âmbitos sociais que dependerr de
dica dos alunos e dos pais frente às me- modo funcionalmente necessáric de
didas pedagógicas e frente aos atos da uma integração social através de valeres,
escola e do próprio ministério que pos- normas e processos de entendimento,
sam ser considerados restritivos aos di- fiquem a mercê dos imperativos sistémi-
reitos fundamentais muitas vezes paga cos dos subsistemas da economia t da
o preço, e diga-se elevado demais, de administração". 65
"uma profunda justicialização e buro- Lembre-se de Weber, que relaci~ma
cratização dos processos de ensino e o processo de monetarização e/ou buro-
aprendizagem". 62 A impregnação jurídi- cratização do social à perda da liberda-
ca do trabalho pedagógico conduz à de. Ora, a liberdade é um suposto bási-
despersonalização, à inibição da inova- co do processo educativo; a autonomia
ção e da criatividade, à supressão da é condição e meta do processo educati-
responsabilidade e ao imobilismo. Se, de vo e não pode ser alcançada se ao J>ró-
um lado, é preciso reconhecer que a in- prio processo educativo forem inerentes
trodução dos princípios do Estado de di- mecanismos que, pela monetarizaç2 o e
reito no contexto pedagógico é necessá- burocratização, objetalizam e coisifi-
ria até porque elimina os resíduos do cam o ser humano. Essa constata ;ão
Estado absolutista, de outro, há que limi- tem, ainda, mnà importante implica;ão
tar os exageros burocratizantes do Esta- política uma vez que, à medida que
do. A escola controlada pela justiça e pela a burocratização se apodera dos processo:; es-
administração "converte-se subrepticia- pontâneos de formação de opinião e devo 1ta-
mente num 'instituto' do Estado benfei- de coletivas e os esvazia de conleúdo [...], 1m-
plia o espaço para a mobilização planificad ida
tor que distribui a educação escolar como lealdade generalizada da população e [... J laci-
um serviço social a mais". 63 lita a desconexão das decisões políticas com
O espaço pedagógico "não deveria fi- respeito aos aportes de legitimação procec.en-
car ocupado pelo direito como meio, tes dos contextos concretos do mundo da vida,
fOrmadores de idenlidade. 66
mas por procedimentos consensuais de
regulação de conflitos, por 'procedimen- Trocando questões práticas por qu es-
tos de decisão [... ] em que se considerem tões técnicas, nivela-se o terreno para a
os implicados no processo pedagógico recepção de argumentos sistêmicos que
livres e capazes de defender seus interes- passam ao largo do político enquanto
ses e regular seus próprios assuntos". 64 processo de integração social base2 do
Essa crítica de Habermas à justicializa- não só em princípios cognitivo-instcu-
ção do ambiente pedagógico deve ser mentais, mas também éticos e estéticos,
entendida na perspectiva de sua teoria, legitimados por acordos alcançados :o-
ou seja, como tentativa de impedir que m unicativamente.

REP - Revista Espaço Pedagógico, v. 10, n. l, Passo Fundo, p. 50-79 - jan./jun)2003


Teoria da ação con1unicatiYa e práxis ..

A educação e as dimensões perdidas enchido racionalmente, mediante a te-


da ética e da estética matizacão das pretensões de validade
pelas q~ais os agentes buscam acordos
Parece que Habermas prevê e admite
vinculantes como princípios orientado-
como uma espécie de seqüela da neces-
res da ação. Esses acordos ou valores, se
sidade de fundamentação argumentada
assim quisermos, não chegam mais atra-
dos princípios orientadores da ação
vés da tradicão, mas precisam ser argu-
moral a partir da modernidade algo
mentativamente alcançados. Serão, por-
como uma "fluidificação comunicativa
tanto, sempre precários, secularizados,
das instituições solidamente baseadas na
humanos, portanto históricos.
tradicão e respaldadas por uma autori-
É um fato natural que as normas
dade ,sacra''. À medida que, em lugar de
inercialmente vigentes sejam questiona-
tal autoridade, "se escolhe explicita-
das, sobretudo pelas gerações jovens. Isso,
mente a ação comunicativa como pon-
porém, não significa que estejamos ingres-
to de referência para a projeção utópica
sando numa era do vazio (LIPOVETSKI),
de uma 'sociedade racional', normas e
mas tiío-somente que precisam ser encon-
valores se desestabilizam". 67 É por essa
trados novos princípios, valores e normas
razão que se fala tanto da relativização
que sirvam de orientação vinculante da
e perda de valores. Diante disso, encon-
acão humana. Só que tais fundamentos já
tra-se muito disseminada uma certa la-
não vêm de fora; precisam ser fundados
múria nostálgica pelos bons tempos em
em acordos encontrados através de proce-
que, supostamente, havia valores claros
dimentos lingüísticos orientados ao en-
e definidos que eram respeitados por
tendimento.
todos e que, portanto, também eram
Há aí um detalhe importante muitas
vinculantes e podiam ser impostos às
yczes esquecido pelo discurso do fim
novas gerações. Pais e professores são
dos valores. Tal discurso, tendo as an-
campeões desse discurso.
tenas orienta das para o passado, não se
Certamente, os tempos de fixidez dos
apercebe de que aqueles valores tradicio-
valores e normas morais pertencem ao
nais cuja dissolução lamenta não apenas
passado e não voltarão mais. Isso é tão
deixaram atrás de si um vazio, senão que
seguro quanto é seguro que a Idade
foram substituídos por outros, que são
Média foi superada pela Modernidade.
precisamente aqueles relacionados à
Eles foram levados pelos ventos da Mo-
razão instrumental, que se orienta ao
dernidade, que desestabilizou os funda-
êxito. Do ponto de vista ético, vemo-nos,
mentos metafísicos e sacros enquanto
portanto, colocados diante de uma du-
parâmetros do comportamento humano.
pla tarefa: a de tematizar os novos valo-
Esses fundamentos abandonados deixa-
res que substituíram os antigos, mas que
ram um vazio que agora precisa ser pre-
chegaram carregados de interesses sistê-

REP _ Revista Espaço Pedagógico, v. 10, n. !, Passo Fundo, p. 50-79 - jan./junJ2003


micos, e a de substituí-los por novos, que mensões do ético e do estético CJmo
emergem da comunidade através de pro- inerentes ao humano e, portanto, con10
cessos de entendimento. Habermas inerentes ao processo educativo.
mostra que a validade de normas pode e
deve ser restaurada, porém com base em Educação para a democracia e
procedimentos discursivos voltados ex- responsabilidade social
clusivamente ao entendimento. Em
outros termos, o que Habermas propõe Ao abandonar os fundamentos s< cros
é um novo fundamento para a validade de legitimação, os Estados mo de ·nos
de normas e princípios de comporta- passam a assentar-se sobre a base de uma
mento. legitimação geral formada com uni :ati-
A educação trata de educar o ser hu- va e discursivamente ilustrada no seio
mano, o qual não se restringe ao cogni- de uma opinião pública. Vale dizer que
tivo-instrumental. Muitas argumenta- o Estado fica intestinamente ligado a
ções no campo educativo não versam uma exigência epocal: a dcmocn.cia.
sobre enunciados aos quais se apliquem Impõem-se ao Estado e a toda organiza-
critérios de verdade, mas que dizem res- ção institucional da sociedade mod:rna
peito ao bom e ao belo. Em termos ha- os princípios democráticos de form lção
bermasianos, na educação não se trata coletiva da vontade. No entanto, a d( mo-
apenas do que é verdadeiro ou falso, mas cracia não existe como um esqu :ma
do que é válido ou inválido, do que é pronto pelo qual basta optar para que
belo e bom. Nesse caso, passe a ser o padrão ordenador das :cela-
o conceito de verdade proposicional é, de
ções econômicas, políticas, jurídicas e
fato, demasiado estreito para cobrir tudo sociais de uma dada sociedade.
aquilo para o que os participantes de uma ar- Tal como o próprio projeto da moder-
gumentação podem pretender validade em nidade, que, segundo Wellmer, "não é
sentido lógico. Daí decorre que a teoria da
argumentação tenha que dispor de um con-
um projeto que possa algum dia coasu-
ceito mais amplo de validade que não seres- mar-se ou acabar-se", 69 uma vez que isso
trinja ao de verdade. Mas isso não implica em representaria a sua própria destruição,
absoluto que em absoluto a necessidade de também a democracia é muito mais um
renunciar a conceitos de validade análogos ao
de verdade 1 de expurgar do conceito de vali-
desiderato, uma tarefa, um ideal Jelo
dade todos os seus momentos contrafáticos e qual se luta e trabalha e que podE ser
de equiparar validade e "aceitação", validade realizado, em maior ou menor grau, a
e "vigência social". 6s partir do envolvimento e comprometi-
Trata-se apenas de ampliar o espaço mento de todos os setores da sociedade.
de validade, ultrapassando os limites A democracia como tarefa implica um
que lhe foram impostos pela razão teó- processo de aprendizagem de um novo
rico-científica, restabelecendo as di- tipo de virtudes, como a disposiçã<1 de

REP - Revista Espaço Pedagógico, v. 10, n. 1, Passo Fundo, p. 50-79 - jan./jun./2003


Teoria da ação con1unica1iva e práxis ...

participar de processos argumentativos A educação de hoje, ao assumir


de formação de consensos, o uso dos indiscutidamente os ideais do salvacio-
acordos como critério de ação, o re,pei- nismo secularizado moderno, reduzido
to pela alteridadc e a responsabilidade às dimensões dinheiro e poder, remano-
social. Sem essas disposições que devem brados a serviço da sobrevivência sisté-
ser incorporadas pelos agentes sociais, mica e da boa vida de apenas parte da po-
a democracia é um sonho impossível, pulação, corre o risco de colocar-se a
um castelo sobre areia. serviço de interesses ideológicos seme-
Percebe-se, diante de tudo que foi lhantes àqueles que a educação prestou
exposto, que a razão instrumental orien- ao mito e à religião. Ciência e técnica,
tada a fins não é o princípio adequado na medida em que objetalizam as rela-
de ordenamento das relações sociais ções humanas e, ademais, geram privi-
para se chegar à democracia. Ao contrá- légios e mecanismos de dominação, po-
rio, a democracia, que não é outra coisa dem ter esse mesmo papel ideológico.
senão a participação livre e competente Com a modernização, a educação,
de todos os integrantes da organização ironicamente, renova traços medievais
social, bem como o respeito e a solida- em sua estrutura na medida em que os
riedade de uns pelos outros, supõe a ra- educandos são levados a acreditar no
zão comunicativa como priricipio princípio da autonomia num contexto
ordenador das relações entre indivíduos, em que, na verdade, apenas os conteú-
grupos e instituições. dos da fé mudaram. Agora são os dogmas
Nesse sentido, está com razão Habermas da ciência moderna, bem como os pro-
ao afirmar que, entre capitalismo e demo- cedimentos econômicos e administrati-
cracia, estabelece-se, com efeito, uma vos que se impõem como paradigmas de
indissolúvel relação de tensão, uma vez que ação e que, por força de suas lógicas in-
no capitalismo e na democracia compe- ternas, não se submetem a processos de
tem pela primazia dois princípios opos- entendimento próprios ao mundo da vida.
tos de integração social. Se, além disso, O conteúdo, portanto, é atual, mas o
reconhecermos com Weber que no ca- processo continua sendo medieval por-
pitalismo moderno a razão instrumen- quanto as atitudes de crença e de fé su-
tal voltada ao êxito através dos meios peram as de participação e de entendi-
"dinheiro" e "poder" tornou-se não ape- mento. A integração social continua
nas o princípio ordenador de todas as acontecendo por meio da imposição vin-
relações humanas, mas afetou também da de fora e não com base em acordo
as estruturas psíquicas do ser humano, comunicativo e de cooperação. De cer-
podemos concluir que a democracia é, to modo, não houve uma ruptura radi-
acima de tudo, uma tarefa educativa. cal com a herança religiosa do passado,

REP - Revist11 Espaço Pedagógico, v. IO, n. 1, Passo Fundo, p. 50-79 - jan./jun./2003


mas a criação de algo como uma "religião Habermas interpreta o projeto mcder-
civil" (Bellah), uma secularização dos no como mediado por um conceio de
conteúdos ou uma m undanização das racionalidade que se projeta em dua; di-
orientações religiosas que guardam simi- reções: a racionalidade cognitivo-in:otru-
laridade com as garantias sistêmicas mental e a racionalidade comunica tiva.
fornecidas pela religião no passado. Uma é sistêmica e orientada a fins a se-
Provocativamente, poderíamos dizer rem alcançados por meios adequado; e a
que a democracia ainda não chegou à outra é intersubjetiva, voltada apem s ao
escola. Não se ordenam as ações segun- entendimento. Para Habermas, há espa-
do princípios religiosos ou metafísicos, ços vitais onde o mecanismo de intt gra-
mas pelos mandamentos da ciência e da ção deveria ser o entendimento e ouros
tecnologia. onde devem prevalecer as formas de racio-
nalidade cognitiva. A tese de Habermas é
Conclusão que uma, a cognitiva, própria do sistema,
está invadindo e colonizando o espaço da
Certamente, são muitos os aspectos outra, que é o do mundo da vida. A nzão
da teoria de Habermas que podem enri- instrumental, interessada na busc 1 de
quecer o pensamento pedagógico, seja meios para alcançar determinados êins,
dos que se dedicam à teoria, seja dos que OCUJ!a'os espaços da ação comunicativa,
estão envolvidos na prática. No presen- voltada ao entendimento.
te trabalho destaquei dois pontos que Reconhecendo os méritos da ir ter-
me parecem particularmente relevantes pretação weberiana da modernidade que
para a educação: razão comunicativa e o se concentra sobre a racionaliza;ão,
sistema/mundo da vida_ I-Iaberrnas amplia essa leitura com Jase
Na modernidade, os dogmas religio- na distinção entre dois sistemas dt in-
sos perdem sustentação e a filosofia abre tegração social: o de sistema e o de rzun-
mão das tentativas de fundamentação do da vida. O sistema representa uma for-
última. O centro da filosofia passa a ser ma de integração social garantida por
ocupado pelo tema da racionalidade regulamentações técnicas que s.e si! mm
porque ela passa a ser o fundamento do além das consciências dos membros da
correto pensar e agir. As teorias das sociedade, servindo-se dos meio' di-
ciências experimentais modernas sus- nheiro e poder. No mundo da vida, H in-
tentam suas pretensões de validade não tegração resulta de processos comunica-
mais com base em princípios de caráter tivos voltados ao entendimento. Cem a
ontológico ou transcendental-filosófico, modernidade, os tradicionais vínculos
mas na reconstrução sistemática de ca- de integração social, que eram o m: to e
ráter científico-teórico. a religião, foram substituídos pela n.cio-
nalização, que se desacoplou do me ndo

REP - Revista Espaço Pedagógico, v. 10, n. l, Passo Fundo, p. 50-79 - janJjun./2003


Teoria da ação con1unicati\'a e práxis ..

da vida e, progressivamente, passou a Abstract


invadir o seu espaço.
A partir desta síntese, procurei mos- This essay is a triai to approximate
trar como a leitura de Habermas pode the reflections of Habermas about
ajudar a diagnosticar e a expor ao deba- sociology, politics, epistemology, ethics
te alguns aspectos patológicos da práti- and philosophy of the cducational
ca pedagógica. Penso ter deixado claro, contexl. Accompanying the very project
ainda que sem dizê-lo diretamente, que which Habermas presents in his work
aqueles sistemas de integração social Theory of communicative action, the
definidos por Habermas como caracte- author divides his expos.ition into three
rística da modernidade também se fa- moments: in the first one he analyzes
zem presentes no contexto educativo, the concept of communicative reasou;
podendo e devendo ser, por isso, objeto in the second one he reconstructs the
de conscientizaçã~ crítica. themy of Habermas's modernity on the
Em termos habermasianos, resta- basis of the concepts of a system and
nos, então, perguntar quais são os me- world of life; in the third moment, he
seeks to extract some inferences of those
canismos predominantes na escola: a
razão instrumental ou a razão comuni- reflcctions for the area of education and
cativa; os processos democráticos de of pedagogical practice. The conclusion
entendimento ou a imposição (dura ou shows that Habermas's philosophy,
suave) de interesses sistêmicos; o uso da particularly communicative iheory,
linguagem como diálogo aberto ou o suggests us resistance gestures against the
exercício do poder pelo discurso; o trei- established powers on the basis of a
namento profissional ou a formacão monologic, instrumental rationality and
integral da pessoa. Enfim, impõe-se ~er­ that new gestures can be produced on the
guntar qual o leios imanente ao modelo horizon of the inter-subjectivily paradigm.
de racionalidade que orienta a teoria e
a prática pedagógica. A filosofia de Key-words: Pedagogical praxis,
Habermas, particularmente a sua teoria communicative action, Habermas.
da ação comunicativa, sugere-nos gestos
de resistência contra os poderes consti- Notas
tuídos sobre as bases de uma razão
BRONNER, S. E . .1"1 ll!oria crítica e seus reóricn_o: C:.flmni-
monologicamenre distorcida, estrategi.s- nas - São Paulo: Papirus, 1997. p. 343.
ta e instrumentalizante, que ameaça BRONNER, 1997, p. 344.
BRONNER, 1997, p. 345.
integrar e absorver o ser humano, e ges-
Em texto publicado em 1984, Habermas procura respon-
tos positivos que trabalham o possível der <1os seus criticos. Tradução espanhola: Teoria de la
acción comunicaliva: complementos y cstudios pre\•ios.
no horizonte do paradigma da intersub- J\1adrid: Ediciones Catcdra, 1997.
jetividade e da solidariedade.

REP - Revista Espaço Pedagógico, v. 10, n. 1, Passo Fundo, p. 50-79 _ jan./jun./2003


Basicamente usarei como texto de referencia a Teoria da riu dos siste1nas da qual Luhmann é um dos prin( ipais
ação co1111111icativa e npenus esporadicamente outros tru- representa n tcs.
balhos de Ilnbermas ou de outros auwre~. -1-1 TAC II, p. 437.
Penso particularmente cm autores como Nietzsche, 1
·' T:\C II, p. 438.
Heidegger, Bataillc, Dcrrida, Foucault. 1
(' TAC II, p. 440. Essa perspectin1 otimistu contrurôe-se
Haberrnas, J. 7i:oria de la acciô11 co1111111icali'ca. 1'h1drid: ao, na ,·is<lo de Habermas, exagerado pessimisllln de
Taurus, 1999. p. 16. A seguir, usarei a abre\·iaç.:lo TAC Horkhein1er e Adorno. Tambén1 A.'\'.el Honneth, tepre-
para teoriu da açüo comunica tini e os números romanos senrante da chamada 3·' geração da Escola de F ·ank-
I ou II para indicar o Yolumc. l\s traduções são de mi- furt, insiste na superação do que chama de "déficit so-
nha responsabilidade. ciokigíco" da teoria crítica, ou seja, Habcrmas e H,1nnc-
Cf. TAC I, p. 216. th acreditun1 na possibilidade de o indiYíduo e a ::ocie-
TAC L p. 222. dade superaren1 as patologias modernas. Ver HoIJneth,
1\. Luta por reconhecimento - a gram<itica more 1 dos
iu T.'\C I, p. 311. conflitos sociais. São Paulo: Editora 34, 2003.
T.1'1.C l, p. 313. i; TAC II, p. 441.
i:~ TAC l, p. 320. .i., TAC II, p. 442.
1, TAC I, p. 319. .i·• TACII, p. 469.
11
Cf. TAC I, p. 321. 'º Cf. Bronner, 1997, p. 355.
1
• TAC I, p. 321. "
1
Se me refiro aqui a sisten1a e n1undo da vida coio.o se
10
TAC J, p. 353. fossem um único conceito, é porque, no contexto, il ·1por-
TAC: l, p. 27. ta a relação de tensão que se estabelece entre amJ-os.
1
1' TAC I, p. 27. ' ln: TAC II, p. 122.
1
'' GL\1ENO, P. Teoria crítica da educaçào iVladrid: Uned, Diante dos riscos da nova barlnírie (ADORNO) e du
1995. p. 256. profunda dcsorienraçao do ser hun1ano em vista d;:i cri-
se ética e do va:zio de valores (LIPOVETSKY), fola-se
2u Cf. TAC l, p. 33. hoje muito da necessidade da recuperação da dimen-
21 são ética do processo educativo. Ainda menos ap:1ren-
TAC 1, p. 36.
" Cf. TAC I, p. 37. tc, porén1, a meu ver, não tnenos importante é a re ~upe­
23
n1çilo da dimcnsilo estética corno fundnrnento da c·rien-
"IAC I, p. 46. tução da açlio humana. Não por acaso o ideal gre~ o era
i- 1
TAC 1, p. 105. o homem bom e belo. Todo o resto, inclusive a ·azão
!o i\DORNO/HORKHEilvlER. Dialética do esclarecimento. teorética, estava a serviço desse ideal. Na mndcrn dade
Rio de Janeiro: Zahar, 1985. p. 19 et seq. invertem-se as prioridades, e retorna o domínio e com
8
ele, o pa\'or do qual o homem sempre quis livrar-se
' TAC 1, p. 361. (ADORNO).
27
TAC I, p. 425. '' TAC II, p. 154.
'" TAL II, p. 429. TAC 11, p. 409.
n TAC II, p. 429. TAC l, p. 55.
,,, GllvlENO, 1995, p. 245. Paz Gimeno comenta que "a invasão dos critério~ eco-
'1 Cf. Gimeno, 1995, p. 274. nômicos sobre os âmbitos morais da vida escolar cc nduz
32 Habcrmas, J. 1i!oria de la acciôn comunicatfr..:a: comple- a que em épocas de crise econôn1ica, seja por dese ;tabi-
mentos y esludios previas . .!Vladrid, 1997. p. 495. lizaçlio econômica ou bem por readaptaçüo iis novu:: pos-
sibilidades tecnológicas dos meios de produção, st, pro-
:;_, GI1''1ENO, 1995, p. 275. duza uma resposta sociul de contestação que cor1siste
"
1
TAC II, p. 432. cm atribuir a responsabilidade da situação de crise ao
TAC TI, p. 432. sistema escolar, acusando-o de não ter sabido ad~ ptar-
se iis mudanças ocurridm; no mundo <la produção, cola-
"~ TAC II, p. 456-457. borando com o desajuste entre a qualificaçiio dos t gres-
'
7
TAC II, p. 457. sos do sistema escolar e as den1andas do mercado de
-'~ TAC II, p. 461. trabalho" (GllvlENO, 1995, p. 338).
5' Cf. TAC II, p. 428.
w Cf. TAC II, p. 464.
'~ TAC II, p. 522 .
.in TAC II, p. 467.
~1 TAC II, p. 455. óil TAC II, p. 524.
61
1
' TAC II, p. 436. TAC II, p. 525.
62
"'-' Apesar dessa convergência entre o pen:mmentu de Ha- TAC II, p. 525.
6
bermas e o de Luhmann, Habermas distancia-se da teo- i TAC 11, p. 527.
Teoria da <içào comunicatiYa e práxis ..

N Tl\C II, p. 527.


,,, TAC TI, p. 527.
TAC II, p. -J.61.
Tl\C II, p 131.
"' "L\C l, p. :'14.
01
' \V'ELL!vlER, A. Finafcs d1' parrida: la modernidad irrc-
conciliable. Aladrid: Fróncsis, 1997. p. 75.

REP - Revista Espaço Pedagógico, v. 10, n. l, Passo Fundo, p. 50-79 - jan./jun./2003

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