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Gustavo Javier Figliolo

Arte, Mito e Conhecimento

Londrina
2018
Gustavo Javier Figliolo

Arte, Mito e Conhecimento

Trabalho apresentado à disciplina


Epistemologia e História da Psicologia
I, profª. Giselli Renata Gonçalves.

Londrina
2018
A palavra ciência vem do latim scientia, que pode ser traduzido como “saber” ou
“conhecimento”, e refere a qualquer conhecimento sistemático e sua aquisição por meio
do método científico. Esse conhecimento científico, conforme Lakatos e Marconi (2003,
p. 75) “é transmitido por intermédio de treinamento apropriado, sendo um
conhecimento obtido de modo racional, conduzido por meio de procedimentos
científicos”. Estamos aqui diante de um tipo de produção de conhecimento, considerado
como o de maior confiabilidade, uma vez que suas características “residem na busca de
ordem, universalidade, constância e veracidade [..] atributos (que) conferem à ciência o
estatuto de conhecimento sério e confiável”, conforme Penna (2009, p. 46).
Essa forma de produção de conhecimento paradigmática em nossa
contemporaneidade segue esses preceitos nos vários âmbitos do inter-relacionamento
humano: nas leis, na higiene, na economia. Porém, junto com esse tipo produtor de
conhecimento coexistem outras formas de produzi-lo; referimo-nos à mitologia, à
filosofia e à arte. E essas outras formas de conhecimento antecederam a ciência
moderna tal e como a conhecemos hoje.
O conhecimento humano e suas formas de produção, conforme Cassirer (1994)
passaram por um período evolutivo que começou não com as funções cognitivas e a
racionalização, mas com a percepção, a intuição e os afetos. A partir de uma linguagem
emocional chegou-se a uma linguagem científica; a linguagem racional do pensamento
abstrato começou com a linguagem simbólica do mito e da poesia. Esse processo,
evidentemente, teve início nos primórdios da aventura humana, quando provavelmente a
única preocupação do ser humano era a de alimentação, proteção e reprodução, mas
mesmo nesse estágio primitivo, houve a necessidade da simbolização: as pinturas
rupestres de mãos gravadas em cavernas em diversas partes do planeta configuram
representações artísticas inequívocas desse fato. Essa necessidade de um representante
simbólico deu origem ao mito, que “está na base da produção do conhecimento
humano” (GONÇALVES, 2012, P. 37). O conhecimento humano, então, teve suas
origens na mitologia, para depois chegar à ciência, passando pela filosofia e pela
religião. No início havia uma verdade mítica, o mythos, que procurava organizar o
mundo conforme um pensamento coletivo inconsciente que regulava a convivência e os
relacionamentos entre as pessoas; essa narrativa do início dos tempos “funda uma
verdade absoluta” (Gonçalves, 2012, p. 38). Penna assim o define:
Os mitos forneciam aos seres humanos um corpo de conhecimentos e
métodos para lidar com a natureza e construir modelos comunitários
de vida produtivos e criativos. Os mitos são o resultado da compilação
do conhecimento acumulado sobre a constituição do mundo e dos
seres vivos, seu funcionamento e integração. A mitologia é uma
produção coletiva anônima e espontânea de conhecimento que brota
do inconsciente coletivo e constrói consciência coletiva. (PENNA,
2009, p. 31).

A mitologia, é preciso dizer, confunde-se com a religião. Os rituais, os heróis, as


crenças, as punições, todos esses elementos são comuns tanto ao mito quanto à religião.
Nesse sentido, em ocidente, os costumes religiosos e atividades religiosas carregam a
reminiscência do pensamento mítico. Por isso que podemos dizer que a produção mítica
permanece entre nós até hoje.
Porém, na Antiguidade Clássica, existiu um momento em que os mitos
começaram a declinar, para dar espaço à filosofia. Esse percurso se originou ainda no
período pré-socrático, onde as críticas aos mitos começaram a surgir. Posteriormente,
instaurou-se a verdade filosófica, trazida pelo pensamento racional, o mundo das ideias.
Isto surge a partir da aparição do sábio, como detentor do conhecimento: aquele
conhecimento mítico coletivo passa a dar lugar paulatinamente ao conhecimento
individual. Uma clara manifestação desse processo pode ser vista na afirmação de
Azevedo (1964, s/p):

Heródoto, vendo em todas as coisas humanas o efeito e a influência do


‘demonium’, revela tendências inteiramente diversas das de um
historiador moderno, que coloque os acontecimentos sob a
dependência de fatores naturais e econômicos. Coexistem em sua
personalidade, juntamente com o cronista atento e minucioso, um
teólogo e um poeta.

Evidentemente, não deve ser fácil abandonar um mito. No entanto, o paradigma


começa a se modificar; a verdade mítica deixa lugar à verdade filosófica: aos poucos sai
o mythos e entra o logos. E após a instauração da verdade filosófica, dá-se outro
movimento, forjado pela junção do pensamento filosófico e a tradição judaico-cristã,
com seus sistemas de valores e sua moral; junção da filosofia e da religião, portanto,
que dará origem, com o Renascimento, à ciência moderna.
Se a mitologia e a religião têm uma matriz comum e aquela permanece nesta, a
arte, como visão de mundo, também pode ser considerada uma extensão da mitologia.
Estamos, assim, diante de diversas formas de produção e apreensão de conhecimento
necessários para organizar um sistema de valores no qual possamos nos inscrever e que
nos indique minimamente o caminho para a elaboração de nossa existência. Uma
realidade caótica implica para o ser humano um preço muito alto a pagar. Esse “lugar no
mundo” está intimamente relacionado com o conhecimento e sua produção. Nietzsche,
numa asseveração inquietante, consegue reunir as formas de conhecimento
mencionadas:

No sonho, nas prístinas eras de uma civilização informe e rudimentar,


o homem julgou ter descoberto um segundo mundo real; aí está a
origem de toda a metafísica. Sem o sonho, não se teria encontrado
motivo para uma cisão do mundo. A separação da alma e do corpo
também está ligada à mais antiga concepção do sonho, do mesmo
modo que a suposição de um simulacro corporal para a alma,
precisamente como a origem da crença nos espíritos e, provavelmente
também da crença dos deuses. “O morto continua a viver, pois aparece
aos vivos no sonho”: é assim que se raciocinava outrora, durante
milhares de anos. (NIETZSCHE, 2007, p. 32).

Temos aí essa necessidade de inscrição no mundo, mediante sua explicação: o


que é um sonho?; um segundo mundo, que simboliza o primeiro, parece querer dizer
Nietzsche. A junção de mythos e logos que inaugura o pensamento simbólico. E essa
simbolização provavelmente atinja seu ponto mais elevado quando entramos no terreno
da manifestação artística, uma vez que a arte opera no terreno da sublimação. Como o
mito, arte pode ordenar e organizar nosso mundo tanto de maneira a construir
conhecimento como a de disseminá-lo.
Um possível caminho para verificar esse pressuposto passa, é claro, pelo contato
com a arte. O que faremos, então, é tentar mostrar, de maneira sucinta e simbólica,
como a arte pode nos mostrar pedaços de mundo acerca dos quais não tínhamos pensado
antes.
Transcrevemos, para tal, uma história criada pelo escritor Mário Benedetti, o
conto O Outro Eu; diz assim:
“Tratava-se de um rapaz comum: usava calças da moda, lia gibis, fazia barulho
enquanto comia, cutucava o nariz com o dedo, roncava durante a soneca, se chamava
Armando Corrente em tudo menos em uma coisa: tinha um Outro Eu.
O Outro Eu usava certa poesia no olhar, se apaixonava pelas atrizes, mentia
cautelosamente, se emocionava com o entardecer. O rapaz se preocupava muito com seu
Outro Eu e o fazia se sentir incomodado diante de seus amigos. Já o Outro Eu era
melancólico e, por causa disso, Armando não podia ser tão vulgar quanto desejava.
Uma tarde Armando chegou cansado do trabalho, tirou os sapatos, moveu lentamente os
dedos dos pés e ligou o rádio. Estava tocando Mozart, mas o rapaz dormiu. Quando
acordou, o Outro Eu chorava desconsoladamente. Em um primeiro momento, o rapaz
não soube o que fazer, mas depois se refez e conscientemente insultou o Outro Eu. Este
não disse nada, mas na manhã seguinte já havia se matado.
No começo, a morte do Outro Eu foi um duro golpe para o pobre Armando, mas depois
ele pensou que agora sim poderia ser inteiramente vulgar. Esse pensamento o
reconfortou.
Levava apenas cinco dias de luto quando saiu pelas ruas com o propósito de exibir sua
nova e completa vulgaridade. De longe viu que seus amigos se aproximavam. Isso o
encheu de felicidade e o fez imediatamente explodir em risadas. Entretanto, quando
passaram próximo dele, seus amigos não notaram sua presença. Para piorar, o rapaz
pôde escutar que comentavam: "Pobre Armando. E pensar que parecia tão forte e
saudável".
O rapaz não teve outro remédio que parar de rir e, ao mesmo tempo, sentiu na altura do
peito uma aflição que se parecia muito a nostalgia. Mas ele não pôde sentir uma
autêntica melancolia, porque toda a melancolia tinha sido levada pelo Outro Eu”.

O que pode nos mostrar essa história? Evidentemente que há inúmeras leituras
que podem ser feitas. A luta interna emocional pelas quais as pessoas passam; a
insegurança que toma conta de nós; a necessidade de sermos considerados pelos outros;
a inutilidade de não sermos autênticos; o embate entre o princípio da realidade e o
princípio do prazer. Armando, a personagem da história, preocupava-se mais com o que
os outros viam nele que com ser ele mesmo. E, afinal de contas, nós somos o que
cremos que somos ou o que os outros creem que somos? As possíveis respostas a essas
inquietações, que rondam nossos pensamentos constantemente, consciente ou
inconscientemente, podem aparecer de maneira cristalina ao entrarmos em contato com
a arte. A história nos diz para sermos nós mesmos ou correr o risco de não sermos nada.
Simbolicamente, a história (a arte) nos ensina algo, muito. Ensina-nos ainda que o
conhecimento acontece, assim, de maneira mágica.

REFERÊNCIAS

AZEVEDO, V. in prefácio de clássicos Jackson vol. XXIII. Heródoto – História. 1º vol.


São Paulo: w. M. Jackson, 1964.

BENEDETTI, Mario. A Morte e outras Surpresas. Rio de Janeiro: Editora Globo, 1968.

CASSIRER, Ernst. Ensaio sobre o Homem: introdução a uma filosofia da cultura


humana. São Paulo: Martins fontes, 1994.

GONÇALVES, Giselli Renata. A Mãe e o Mar: imagens do Feminino no poema Mar


Absoluto, de Cecília Meirelles. 2012. 176 f. Dissertação (Mestrado em Psicologia
Clínica)–Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, são Paulo, 2012.
LAKATOS, Eva Maria; MARCONI, Marina de Andrade. Fundamentos de metodologia
científica. São Paulo: Atlas, 2003.

NIETZSCHE, Friedrich. Humano, demasiado humano. São Paulo: Escala, 2007.

PENNA, Eloisa Marques Damasco. Processamento simbólico arquetípico: uma


proposta de método de pesquisa em psicologia analítica. 2009. 228 f. Tese (Doutorado
em Psicologia Clínica)–Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, são Paulo, 2012.

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