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RESENHAS 151

LANDES, Ruth. 2002. A Cidade das Mu-


lheres. Rio de Janeiro: Editora da UFRJ.
352 pp.

Regina Abreu
Professora, UNIRIO

A experiência etnográfica, incluindo as


pesquisas de campo e os tradicionais
“diários de campo” – onde os antropó-
logos registram suas primeiras sensa-
ções a partir dos encontros com os “na-
tivos” e com o mundo do diferente e do
“exótico” –, tem sido analisada como
lugar privilegiado de construção da al-
teridade. Entretanto, uma outra dimen-
são se impõe ao revisitarmos alguns dos
relatos etnográficos considerados clás-
sicos: a dimensão do “eu” ou da subje-
tividade. Chamam a atenção, especial-
mente, as conexões estreitas desses re-
latos com o gênero do “diário” – espaço
por excelência da memória social e de
construção da subjetividade enquanto
singularidade, muito próximo do gêne-
ro da “autobiografia”. Desse ponto de
vista, falar do outro é encontrar um lu-
gar para falar de si próprio e para cons-
truir a si mesmo enquanto pessoa. O li-
vro A Cidade das Mulheres, de Ruth
Landes (1908-1991), agora em sua se-
gunda edição no Brasil, incita a uma
análise por esse viés. A trajetória da an-
tropóloga americana – estimulada por
seu mestre, Franz Boas, e por sua orien-
tadora, Ruth Benedict –, da Universida-
de de Columbia para o Rio de Janeiro e
a Bahia, pouco antes da Segunda Guer-
ra Mundial, é relatada na primeira pes-
soa. Suas impressões, sensações, emo-
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ções e sentimentos são expostos em son Carneiro, Ruth Landes foi aos pou-
uma narrativa em que é privilegiada a cos penetrando o universo da cultura
idéia do encontro com o outro, do qual negra. Édison Carneiro, na época com
ela retira o material para produzir sua 26 anos, era já um intelectual respeita-
obra. O falar de si e o construir a si mes- do, autor de dois livros sobre cultura e
ma nessa narrativa tornam-se indisso- religião negra na Bahia, repórter do jor-
ciáveis da produção do texto, na contra- nal O Estado da Bahia, integrante, jun-
mão de uma tradição hegemônica nas tamente com Jorge Amado e intelec-
ciências sociais que bane a primeira tuais locais, da Academia dos Rebeldes
pessoa dos relatos científicos e, como e simpatizante do Partido Comunista. A
assinalou Walter Benjamin, substitui a aproximação entre os dois deu início a
experiência pela informação e a narra- uma longa amizade e, como a própria
tiva pela história. A Cidade das Mulhe- Ruth Landes reconheceu, abriu-lhe as
res, escrito na contramão das tendên- portas da sociedade local, viabilizando
cias científicas vigentes no final da dé- sua pesquisa de campo.
cada de 40, significou a revitalização do O Brasil vivia, entretanto, sob a di-
estilo narrativo, contribuindo também tadura de Getulio Vargas. A antropólo-
para a construção de um modo de fazer ga americana foi seguida de perto por
antropologia marcado pela valorização policiais durante todo o seu percurso.
da experiência (a pesquisa de campo), No início de 1939, foi forçada pela polí-
pela sensibilidade para com as questões cia baiana a deixar às pressas o estado,
de gênero e, sobretudo, pela afirmação tendo de esconder seu material de pes-
da singularidade do sujeito no processo quisa. Pairavam sobre ela suspeitas de
de construção do conhecimento. espionagem e de filiação ao comunis-
Ruth Landes chegou ao Brasil em mo. Chegando ao Rio de Janeiro, Ruth
1938 para realizar uma “pesquisa an- Landes recorreu a amigos brasileiros
tropológica sobre a vida dos negros” e conseguiu visto de permanência por
com o objetivo de completar seu douto- mais algum tempo. Não lhe foi possível,
rado em antropologia na Universida- porém, retornar à Bahia, pois as autori-
de de Columbia. Com uma perspectiva dades que a haviam expulsado não es-
comparativa, a antropóloga nova-ior- tavam em completo acordo com a admi-
quina pretendia investigar as diferen- nistração central. Após permanecer al-
ças entre a situação inter-racial brasi- guns dias no Rio de Janeiro, onde, em
leira e a americana: “Ouvíramos contar companhia de Édison Carneiro, visitou
que a grande população negra [no Bra- alguns terreiros de “macumba”, partiu
sil] vivia fácil e livremente em meio à para os Estados Unidos.
população geral e queríamos saber de Somente em 1947, ou seja, oito anos
que forma a situação inter-racial diferia depois, Landes publicou os resultados
da nossa, nos Estados Unidos. Tratava- de sua pesquisa no livro intitulado The
se de um projeto que excitava a ima- City of Women. Na ocasião, uma parce-
ginação de poucas pessoas” (:35). A la importante do establishment antro-
pesquisa acabou tomando rumo com- pológico sobre o Brasil, tanto do lado
pletamente diverso do originalmente brasileiro quanto do americano, procu-
pretendido. Após uma breve estada no rou desqualificar suas descobertas. Ar-
Rio de Janeiro, a antropóloga embar- thur Ramos, então professor catedráti-
cou para a Bahia, onde permaneceu por co de antropologia na Universidade do
alguns meses. Lá, com o auxílio de Édi- Brasil, e Melville Herskovits, da North-
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western University, trocaram correspon- bém vigente nos cultos afro-brasileiros.


dência compartilhando o desprezo pelo Ao desmontar este esquema simplista
trabalho da autora, que, visto como me- […] Landes expôs uma fratura de gêne-
ro relato de viagem, foi rejeitado por ro na análise dos cultos afro-brasileiros
eles como não científico. Como obser- que merece atenção até hoje” (:15).
vou a antropóloga canadense Sally Co- As pesadas críticas atrasaram a tra-
le, a comunidade antropológica ameri- dução do livro no Brasil. Apenas em
cana trabalhava na época no sentido de 1967, graças, em grande parte, ao em-
expandir sua base institucional nas uni- penho de Édison Carneiro, ele foi enfim
versidades, profissionalizar seus prati- lançado pela Civilização Brasileira, in-
cantes e cultivar sua respeitabilidade tegrando a Coleção “Retratos do Bra-
como a “ciência da cultura”, noção que, sil”. É bastante significativo que hoje,
entre os anos 30 e 60, substituía a de ra- passados 35 anos da primeira edição
ça como paradigma central da discipli- brasileira e 55 anos da americana, o li-
na. Nesse quadro, os antropólogos pro- vro esteja ganhando aqui sua segunda
curavam catalogar traços culturais e re- edição. Concordamos com a observação
presentar as culturas em “monografias de Sally Cole de que as mesmas carac-
científicas”, e o texto de Ruth Landes terísticas que fizeram sua marginalida-
aparecia como problemático: primeiro, de nos anos 40 fazem hoje sua excep-
por seu interesse teórico em questões cional atualidade. Ruth Landes anteci-
de raça, gênero e sexualidade, que fu- pou um estilo de antropologia reflexi-
giam ao debate principal; segundo, por- va, dialógica e experimental, em que a
que ela inseria sua própria experiência alteridade é pensada enquanto cons-
e falava de suas relações interpessoais. trução e a subjetividade desempenha
Landes recusou-se a produzir um retra- papel central. Em A Cidade das Mulhe-
to etnográfico do candomblé e da cultu- res, o que está em jogo é muito mais a
ra afro-brasileira como homogêneos, in- narrativa de um “lugar de encontro” do
tegrados e estáticos, conforme o padrão que um retrato que se pretenda “objeti-
da antropologia de seus pares, e des- vo” de uma “realidade social”. Landes
creveu os conflitos internos, diálogos e não quis fazer como a maior parte dos
contestações do significado do candom- intelectuais que tomavam o Brasil en-
blé em um contexto de mudança e flui- quanto objeto de estudo: conduzir en-
dez, situando historicamente a cultura trevistas formais em suas salas nas uni-
afro-brasileira. Com uma percepção fi- versidades ou basear-se em material de
na e sensível, ela foi capaz de apontar segunda mão. Sua proposta foi viver o
algumas singularidades do candomblé trabalho de campo como uma experiên-
baiano, como a tendência ao aumento cia que alterasse sua própria vida. Aos
gradual do poder feminino e do núme- poucos, vamos compartilhando com es-
ro de mães-de-santo, nos candomblés sa antropóloga incomum suas desco-
mais tradicionais, e do de “homosse- bertas. Uma verdadeira metamorfose
xuais passivos”, nos candomblés de ca- vai se processando durante uma via-
boclo. Entretanto, como assinala Marisa gem narrada em detalhes: da Universi-
Corrêa no Prefácio desta edição, a an- dade de Columbia, onde “havia o senti-
tropóloga estava remando contra a ma- mento geral de que eu estava sendo
ré. “A visão corrente era a de que a do- mandada ao extremo do tabuleiro do
minação masculina, vigente na socie- mundo, de onde somente a sorte me
dade brasileira como um todo, era tam- pouparia de cair”, até o encontro com
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Mãe Menininha no Terreiro do Gantois, ra, Landes retrucava: “os norte-ameri-


em quem ela percebe uma mulher in- canos pensam em termos de raça. Um
dependente, admirada, dona de si. O preto é inferior a um branco por causa
candomblé e, especialmente, o lugar da sua raça. […] Não se imagina que
das mães-de-santo na sociedade baiana um negro tenha cultura alguma, a não
impressionam Ruth Landes. É a partir ser a que lhe vem do branco”.
dessas mulheres que ela passa a refletir Ruth Landes termina seu livro te-
sobre a própria condição feminina, fa- cendo um elogio às mulheres baianas
zendo uma leitura sensível do poder do candomblé e prometendo a uma
que detinham. Essa impressão positiva amiga brasileira que, ao chegar aos Es-
com relação ao candomblé é alimenta- tados Unidos, escreveria sobre elas:
da por seus diálogos com Édison Car- “Penso que elas ajudam a engrandecer
neiro, que considera o candomblé “uma o Brasil. Acreditarão os americanos que
força criadora. Dá às pessoas coragem e haja um país em que as mulheres gos-
confiança e faz com que se concentrem tam dos homens, se sentem seguras e
na solução dos problemas desta vida, e à vontade com eles e não os temem?”
não na paz do outro mundo. Não sei on- (:316).
de estariam os negros sem o candom- A antropóloga cumpriu a promessa.
blé!” (:149). Ao chegar aos Estados Unidos, escre-
A experiência da antropóloga a faz veu alguns artigos sobre o lugar de des-
dialogar com suas próprias tradições e taque das mulheres no candomblé, en-
seu mundo em permanente transforma- tre eles, “Matriarcado Cultural e Ho-
ção. Fica evidente o modo como a ex- mossexualidade Masculina”; “O Culto
periência de campo parece transformar Fetichista no Brasil” e “Escravidão Ne-
seus pontos de vista: “A filosofia, o mis- gra e ‘Status’ Feminino”, todos tradu-
ticismo e a emocionalidade do candom- zidos para o português e incorporados
blé sempre me intrigaram. Aprendi a em seu livro que, nesta bela edição da
conhecê-lo do modo rotineiro, como al- UFRJ , vem acompanhado de imagens
guém que aprende uma nova língua na registradas pela própria autora em sua
escola, e me tornei um dos seus adep- passagem por uma Bahia idílica onde a
tos; as minhas reações, porém, eram tão vida parecia deliciosamente “remota e
distantes como as de uma máquina de fora do tempo”.
calcular para com os números.” Ainda
em diálogo com Édison Carneiro, ela
reflete criticamente sobre sua própria
cultura: “[…] a nossa geração america-
na foi nutrida com uma dieta de razão e
de ceticismo. As generalizações cien-
tíficas não nos dão muita sensibilida-
de para a natureza da fé ou do destino
[…]”. Ruth Landes explora também a
diferença de modo de pensar de ameri-
canos e brasileiros. Relatando uma dis-
cussão acalorada com Édison Carneiro,
que se exaltava afirmando que os nor-
te-americanos se importavam apenas
com o “vil metal”, desprezando a cultu-

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