Você está na página 1de 3

Aimée: resumo do caso clínico

Numa noite de abril de 1932, Aimée abordou uma atriz muito apreciada pelo público
parisiense na porta de entrada dos artistas e perguntou-lhe se era ela a Sra. Z. Quando
recebeu a resposta afirmativa, tirou uma faca da bolsa e investiu contra a atriz que,
para se defender, agarrou a lâmina com a mão e seccionou dois tendões dos dedos.

Diante do delegado, Aimée alegou que há muitos anos a atriz vinha fazendo
“escândalos” contra ela, zombando e ameaçando-a. Diz ainda que a atriz está
associada a um célebre homem de letras e que ele revela a vida privada de Aimée “em
inúmeras passagens de seu livro”. Ficou então presa por dois meses e depois foi
internada na clínica do Asilo de Saint-Anne, onde Lacan a acompanhou durante um
ano e meio.

Ela tinha 38 anos e trabalhava, desde os 18, na administração de uma companhia


ferroviária. Antes do ocorrido já havia ficado internada por dez meses por problemas
mentais. É casada com um empregado da mesma companhia, que ocupa um cargo
numa região parisiense. Mas Aimée trabalha acerca de seis anos em Paris e solicita
transferência. Tem um filho que à época está com oito anos e que é criado por seu
marido. Ela os visita periodicamente.

Aos 32 anos, Aimée já havia sido internada voluntariamente numa casa de saúde onde
ficara por seis meses. No laudo de internação constava que ela acreditava que
zombavam dela, que era insultada, que lhe reprovam a conduta: queria fugir para os
Estados Unidos. Ela saiu “não curada” a pedido da família.

Um ano e meio antes, Lacan conta que ela assediava o escritório de um jornalista
comunista pedindo-lhe que publicasse artigos seus que expunham suas queixas
delirantes contra a Sra. C. uma célebre escritora. Cinco meses antes do atentado
consta que ela havia pulado no pescoço da funcionária quando ela comunica a Aimée a
recusa da editora acerca da publicação de um manuscrito seu.

Por ocasião da internação ela diz referindo-se a seus delírios: “Como eu pude acreditar
nisso?”. Apresenta integridade intelectual completa nas provas de capacidade. Não
apareceram, durante a anamnese, perturbações do curso do pensamento e a atenção
está vigilante. A lembrança dos temas delirantes provoca-lhe certa vergonha, mas os
temas de seu delírio mantêm parte do valor de evocação emocional no sentido das
crenças antigas. “Eu fiz isto porque queriam matar o meu filho”.

Aos 28 anos começam os problemas. Aimée está grávida e casada há quatro anos.
Acredita que criticam suas ações, caluniam sua conduta e que, na rua, os transeuntes
sussurram a seu respeito e lhe demonstram desprezo. Identifica nos jornais alusões

1
dirigidas a ela. Tem manifestações de um ciúme despropositado. Pergunta com
frequência “Por que fazem isso comigo? Eles querem a morte de meu filho. Se essa
criança não viver, eles serão responsáveis.”.

Seu sono é perturbado por pesadelos. Um dia, retalha a facadas os dois pneus da
bicicleta de um colega. Numa outra noite, noite levanta-se para jogar um jarro d’água
na cabeça de seu marido. De outra vez é um ferro de passar roupas.

Dá à luz uma criança do sexo feminino, natimorta. O diagnóstico é de asfixia por


circular de cordão, mas ela atribui a desgraça a seus inimigos. Uma segunda gravidez
mergulha-a em estado depressivo. Seu segundo filho nasce quando tem trinta anos e
ela se dedica à criança com um ardor apaixonado, amamenta até os 14 meses
enquanto vai se tornando mais e mais interpretante e hostil a todos.

Seu marido é informado que Aimée havia pedido demissão à empresa que os
empregava e que havia solicitado um passaporte para EUA fazendo uso de documento
falso para apresentar a autorização marital requerida. Tenta ir aos EUA em busca de
sucesso, convencida de que será romancista. Confessa que teria abandonado seu filho.
Nesse período ocorre sua primeira internação que, dura seis meses. A seguir volta a
cuidar de seu filho, mas recusa-se a retomar o seu cargo no escritório da cidade.

Estava certa de que a Sra. Z., sua vítima, havia ameaçado a vida de seu filho. Como
tinha chegado a essa crença sem jamais ter tido contato com a atriz? “Um dia, diz ela,
como eu trabalhava no escritório, enquanto procurava em mim mesma de onde
podiam vir essas ameaças contra o meu filho, escutei meus colegas falarem da Sra. Z.
Compreendi então que era ela quem nos queria mal”. Afirma também, precisando o
ano e o mês, que leu no jornal Le journal que seu filho ia ser morto “porque sua mãe
era caluniadora” e “vil” e que se “vingariam dela”. Outra vez fica sabendo que a atriz
vem representar num teatro próximo à casa dela e tortura-se com a ideia: “É para
zombar de mim”.

A doente vê em sonho seu filho “afogado, morto, preso”. Quando o filho tem ainda
seis anos, é tomada pela crença de que a ameaça de guerra paira sobre seu filho
“Farão meu filho morrer na guerra, vão fazê-lo bater-se em duelo”.

A futura vítima não é sua única perseguidora, havia ainda Sara Bernhardt, a Sra. C. a
romancista, o romancista P.B. que vinha em primeiro plano em seu delírio. Seria ele
“quem a teria coagido a deixar o seu marido”, “deixavam entender que ela o amava,
diziam que eles eram três”. “Pensei que a Sra. Z não podia estar só para me fazer tanto
mal impunemente, era preciso que ela fosse apoiada por alguém importante”.

Afirma que artistas, poetas, jornalistas “não hesitam em provocar por suas basófias o
assassinato, a guerra, a corrupção dos costumes, para conseguir um pouco de glória”.

2
Ela acreditava estar reprimindo esse estado de coisas para criar “a fraternidade entre
os povos e as raças”.

Vive assustada com o fato de os governantes desprezarem os perigos e por isso


recorre ao príncipe de Gales e a ele dirige a erotomania que se delineia às vésperas do
atentado. Anota em um caderno a efusão poética e apaixonada que dirige a ele. Seu
quarto estava recoberto de retratos do príncipe. Enviava-lhe, sem assinar, inúmeros
poemas.

Nos últimos oito meses antes do atentado, ela sente a necessidade de uma ação direta
contra seus perseguidores. Ela depositava suas últimas esperanças nos romances
enviados a livraria G.. Daí sua reação violenta quando eles são devolvidos com uma
recusa.

Envia ao príncipe seus dois romances, estenografadas e cobertos com uma encadernação de
couro de luxo. Na véspera do atentado, foram ambos devolvidos, acompanhados de uma carta
protocolar.

Escreve dois romances nos oito meses que antecederam ao atentado. Neles fica claro
o sentimento de sua missão e a ameaça eminente contra seu filho. A primeira obra é
intitulada “O detrator”, uma imagem de valor poético inegável. Trata-se de uma
sucessão de frases curtas, encadeadas num ritmo onde se podem admirar sua
desenvoltura e seu tom inspirado. Nesse trabalho há referência a experiências infantis
muito plenas e que não foram esquecidas. Em movimentos próximos à sensibilidade
infantil, fala em lançar-se a aventuras, em pactos, juramento e laços eternos. Dedica-o
ao Príncipe de Gales, Alteza imperial e real

O segundo escrito, “Com sua licença”, está longe do valor estético do primeiro embora
nada lhe deva em qualidade “pitoresca”. É uma sátira em que pretende pincelar um
quadro dos escândalos e misérias de nosso tempo. Também dedicado ao Príncipe de
Gales.

Você também pode gostar