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Puritanismo e Pentecostalismo

Num dia em que os filhos de Deus vieram apresentar-se perante o SENHOR, veio
também Satanás entre eles apresentar-se perante o SENHOR. Então, o SENHOR
disse a Satanás:
Donde vens?
(Jó 2:1-2a)

Uma das características mais marcantes do neopentecostalismo é sua ênfase na figura do Diabo e
seus demônios. Em tudo o neopentecostal enxerga a ação de Satanás: doenças, problemas de
relacionamento familiar, dificuldades financeiras são vistos como resultantes da ação de demônios.
Expulsá-los das vidas por eles dominadas é a grande tarefa que o neopentecostal se impõe.

Juntamente com esta ênfase, destaca-se o papel fundamental desempenhado pelo Homem na
cosmologia neopentecostal. Para o neopentecostalismo, Deus e o Diabo somente agem no mundo
através dos seres humanos que a eles se submetem. A teologia da guerra espiritual é uma teologia
humanista: ela define o mundo humano como seu campo de batalha.

Qual a origem teológica destas ênfases neopentecostais no Diabo e no Homem? De onde vêm tais
crenças?

O Dr. R. T. Kendall, em seu estimulante ensaio "A Modificação Puritana da Teologia de Calvino" 1,
oferece elementos fundamentais para o entendimento de algumas das bases teológicas de
fenômenos religiosos contemporâneos, tais como o pentecostalismo e o neopentecostalismo. Não é
esta a proposta do autor, mas, simplesmente, estudar a modificação que o puritanismo inglês causou
à teologia do Reformador de Genebra. Entretanto pode-se ver neste estudo de base elementos de
ligação com os referidos movimentos, o que procurar-se-á demonstrar neste artigo.

O puritanismo é um movimento religioso inglês, criado por um grupo de cristãos, ex-refugiados


repatriados à Inglaterra, e que não se conformaram com a reforma elizabethana da Igreja, como
registra Kendall:

... para desânimo de muitos, Elizabeth não reformou a Igreja; ela apenas "varreu o
lixo para trás da porta". Aqueles que se opuseram a uma Igreja "somente meio
reformada" foram chamados de "puritanos".2

O teólogo e pastor Theodoro Beza, sucessor de Calvino no comando da Igreja Reformada de


Genebra, foi o autor que mais influência exerceu sobre o puritanismo inglês nascente. As suas
preocupações em aprofundar a teologia de Calvino, dando sistematização à Doutrina dos Eternos
Decretos de Deus, não somente trouxe influências sobre a Igreja Reformada da Holanda e o partido
de Franciscus Gomarus no Sínodo de Dort, mas tirou o movimento puritano inglês de sua discussão
meramente eclesiológica (forma de governo, liturgia, usos e costumes do ritual, etc.) para a
discussão soteriológica. Assim, em teólogos puritanos como Willian Perkins3, notar-se-á a forte
marca da pessoa e da teologia de Beza.

Perkins foi um teólogo preocupado com a questão da fé e sua relação com a salvação. Segundo do
Dr. Kendall existiam, para Perkins, dois tipos de fé: a salvadora (que os eleitos e aprovados
possuem) e a temporária (que os não eleitos e não aprovados possuem) 4. Nota-se nesta
classificação, estranha as Calvino, que a questão central que se esconde por trás da mesma é a busca
de saber-se quem é eleito e quem é não eleito, ou quem é aprovado e quem é não aprovado. Tal
raciocínio aponta para a questão da dupla predestinação que, no supralapsionismo puritano significa
que Deus, antes mesmo da Criação e da Queda, predestinou uns para a salvação e outros para a
perdição eterna. Certamente isto é muito diferente do sentido da Doutrina da Eleição em Calvino.
Calvino, ao referir-se à eleição fazia-o com o intuito de acalmar a mente acusada e culpada dos
crentes, demonstrando-lhes que seriam salvos, não por causa das suas obras, mas por causa do amor
de Deus revelado na graça de Jesus Cristo. Entretanto, a conseqüência pastoral e o objetivo prático
desta teologia de Perkins (em luta contra o que entendia ser uma Igreja "meio reformada"), não
visava tranqüilizar os cristãos faltosos e sinceramente arrependidos de suas culpas morais, mas
chamar-lhes a atenção para que não fossem vítimas de uma "fé temporária" e, por isso, reprováveis,
como destaca o Dr. Kendall:

Perkins começa "... declarando quão longe alguém pode ir na profissão do


Evangelho, e, mesmo assim, ser um homem ímpio e um Réprobo". Por trás de sua
referência a "quão longe" um reprovado possa ir, está sua posição de que um não
eleito pode exceder, em "certos frutos, ao eleito" e que isto acontece pelo que
denomina uma "chamada ineficaz".5

Vê-se, pois, que este é um conceito novo, desconhecido de Calvino, mas baseado, segundo Kendall,
na teologia de Theodoro Beza. Em oposição à chamada eficaz, a chamada ineficaz "é tão poderosa
que o sujeito manifesta - a si mesmo e a outros - todas as aparências do eleito" 6. Nota-se que esta é
uma espécie de teologia do terror, onde um cristão bom e sincero poderia ter medo de ser um
réprobo. Deve-se levar em conta que o referido teólogo está preocupado com a pureza da Igreja, em
meio à uma luta que, no seu modo de julgar, está contaminando a Igreja com os impuros, ímpios e
não espirituais. Porém, para usar uma metáfora conhecida, ao querer lavar a criança na bacia,
quando foi jogar a água fora, esqueceu-se de tirar a criança de dentro da água.

Como, então, alguém poderia saber-se um eleito, um alguém atingido por uma chamada eficaz?
Perkins, apelando para Beza, diria: a santificação. "Neste ponto é que podemos ver as sutilezas
entre Calvino e Beza. Calvino apontava os homens a Cristo quando eles duvidassem da eleição, ao
passo que Beza indica aos homens a sua santificação"7. Com isso tem-se um deslocamento dos
Eternos Decretos de Deus: eles deixam a eternidade e fixam-se na história, saem de Deus e fixam-se
nos seres humanos. Se Calvino direciona os olhos a Cristo, Beza dirige os olhos do ser humano a
ele mesmo.

Este é um ponto fundamental para entender-se a modificação puritana da teologia de Calvino. Se


Calvino, ao aflito e duvidoso diz: "Olha para Cristo!", o que afirma o reformador é que em Cristo,
no Seu sacrifício consumado, garantia do amor de Deus pelo ser humano, é onde repousa a
segurança do crente. Perkins e Beza, tiraram o olhar do cristão da eternidade e de Deus, para lançá-
lo sobre o indivíduo e para a intimidade. Em Calvino Cristo é o objeto da fé. No puritanismo a
segurança da eficácia do ato de Cristo não é Deus (e Seus eternos decretos), mas a santificação (que
no puritanismo significa a luta íntima contra o pecado e pela piedade). Em Calvino a testemunha da
eleição é Cristo. No puritanismo são as obras dos crentes (sua santificação), como bem diz Beza em
sua obra Sumário e Essência:

Agora, quando Satanás nos põe em dúvida sobre nossa eleição, nós não podemos
procurar a resolução dela no eterno conselho de Deus, cuja majestade não
podemos compreender, ao contrário, devemos começar pela santificação que
sentimos em nós mesmos... uma vez que nossa santificação, da qual procedem boas
obras, é um efeito seguro do efeito (maior) ou, antes, de Jesus Cristo habitando em
nós pela fé.8

Que pretendiam os puritanos? Criar um critério objetivo que conferisse a certeza da salvação ao
crente (talvez considerassem olhar para Cristo algo muito vago e subjetivo). Entretanto, como tudo
o que sabemos é errar e pecar, e considerando que apesar de com a mente sermos escravos da lei de
Deus, encontramos em nossos membros uma outra lei que, guerreando com a nossa mente, nos
vence e nos faz escravos do pecado e da morte9. A conseqüência natural e imediata da teologia
puritana é o terrorismo teológico. Ora, tanto Luthero como Calvino, com suas teologias centradas
em Deus, expulsaram o medo e o terror que as acusações (de consciência ou do diabo, o Acusador)
infundiam na mente e no coração de uma pessoa cristã sincera e honesta consigo mesma e com
Deus. Os reformadores sabiam que a garantia da vocação cristã estava em Deus. Sabiam que o
crente, ao olhar para si mesmo e encontrando, como só poderia ser, as marcas de seus erros e
pecados, poderia, ainda assim, ter plena segurança de sua salvação, visto que esta repousava em
Deus (no amor de Deus que revelou-se aos seres humanos como graça na pessoa de Jesus Cristo), e
não na capacidade do cristão em cumprir a vontade de Deus, ou seja, na sua santificação (obras de
piedade).

Certamente percebe-se que, se de um lado a Reforma sepultou o diabo e o seu pretenso poder (que
outro não é, segundo as Escrituras, senão tentar e acusar), de outro o escolasticismo protestante
acabou por ressuscitar o capeta, conferindo-lhe de volta o poder que a salvação por graça mediante
a fé quebrara-lhe. A questão central, no puritanismo, reside no fato de saber-se salvo, com uma
vocação eficaz e uma fé salvadora, justamente porque se pratica obras de santificação. Assim, se o
critério está na pessoa, parafraseando Paulo, "somos os mais infelizes de todos os seres humanos"10.

Veja-se, por exemplo, o que diz Luthero:

A força do homem nada faz


Sozinho está perdido!
Mas nosso Deus socorro traz
Em Seu Filho escolhido.

Ou, ainda

O príncipe do mal
Com seu plano infernal,
Já condenado está!
Vencido cairá
Por uma só palavra.11

Ora, se o poder do diabo para frustrar o plano de Deus e por o ser humano a perder residia
justamente no fato de ter a capacidade de tentar este ser humano para que, pecando, acumulasse
para si juízo e condenação, Deus frustrou este plano cortando-lhe o mal pela raiz: já que ao ser
humano é impossível produzir as obras exigidas pela lei moral (ou seja, ser santificado), Deus criou
o meio efetivo da salvação em Cristo, que assumiu a natureza humana e cumpriu a lei de Deus no
lugar dele. Assim, livremente, Deus concede ao ser humano aquilo que lhe era impossível
conseguir: salvação. Somente a graça de Deus em Cristo é que salva, sendo esta graça eficiente,
suficiente e eficaz. Mesmo quem olhar para si mesmo e não encontrar bem algum que justifique a
sua eleição, basta-lhe olhar para Cristo e reconhecer o imenso amor que Deus lhe tem, salvando-o,
não por outro meio, senão por causa de Seu amor revelado em graça: Jesus Cristo! Neste sentido a
segurança dada por Cristo produz tranqüilidade (paz) e gratidão (gosto de co-responder ao imenso
amor de Deus).

Entretanto, se a pessoa deve olhar para si mesma, para as suas obras de santificação, para o acordo
do que faz com a lei moral de Deus e as exigências da piedade, entrará em desespero, pois terá a
certeza da sua perdição. Com isso ressuscitam-se as dúvidas, as acusações e, com estas, a figura
derrotada e vencida pela teologia da Reforma: o diabo! Aquele que tinha somente o poder de tentar
e acusar vê, outra vez, ressuscitado o seu poder de aterrorizar as consciências. Nesta teologia
puritana as obras de santificação é que deveriam produzir a tranqüilidade (paz), mas elas, para o
cristão honesto, infundem a dúvida, o medo, dando lugar novamente ao diabo.

Vê-se que, além de trazer o diabo novamente à baila, o puritanismo restaurou o homem como
sujeito da religião. Em Calvino tudo depende do Deus soberano: ele elege, chama, vocaciona, envia,
sustenta, move, garante e fortifica. No puritanismo, com sua doutrina da santificação como critério
objetivo da salvação (ou da eleição, como queira-se) o campo de atuação deixa de ser a eternidade e
passa a ser a história; deixa de ser em Cristo e passa a ser no indivíduo, que deverá produzir obras
de piedade e agir conforme a lei moral. Na medida em que o indivíduo orar, ler as Escrituras e
praticar devoção (pessoal, familiar e coletiva), ele dará lugar ao Espírito em sua vida e, via de
conseqüência, se santificará. Porém, se ele não praticar a devoção, não se inclinará para as "coisas
do espírito" e, conseqüentemente, inclinar-se-á para realizar as obras da carne, dando lugar ao diabo
na sua vida, e revelando-se um reprovado. Em última análise Deus e o diabo só agem na vida do
indivíduo quando este lhes dá lugar. Pode-se resistir, não somente ao diabo, mas a Deus, de igual
modo. O Deus puritano não é o mesmo Deus soberano de João Calvino. Ainda que tentando
combater o arminianismo, na prática, o que produziu o puritanismo foi aquilo que buscava combater
na teoria.

Nota-se, pois, com toda a clareza que o puritanismo, com a modificação que provocou na teologia
de Calvino, ressuscitou o diabo! Ao fazer da santificação (obras da lei moral e de piedade) o meio
objetivo de ter-se segurança da eleição, acabou por trazer de volta à religião alguém que os
reformadores, apontando para a graça de Deus em Cristo, haviam descartado da mesma: o capeta!
Esta "salvação por dedução" (fazer obras de santificação, é saber-se salvo), doutrina soteriológica
puritana ligada à doutrina da santificação, é a "mãe" que, em seu ventre frágil e atribulado pelo
terror, gerou o "Bebê de Rosemary" (o neopentecostalismo), o aparecimento impiedoso de maus
espíritos, demônios, diabos, capetas, exús, pombas-giras, vampiros, duendes, fadas, anões-de-
jardins e tudo o mais que se quiser no campo religioso evangélico que são aceitos como verdadeiros
(ainda que satanizados). Além de recolocar no homem o acento da religião, deslocando-o do único
centro sobre o qual deve-se e pode-se estabelecer a única e verdadeira religião: em Cristo Jesus!

Eis aqui a genealogia do neopentecostalismo. O desvio puritano nos fez chegar a este ponto em que
fé e magia se confundem e o fantasma do grande derrotado pela cruz vem agora nos assombrar. É
seguindo por este desvio que o neopentecostalismo apoiado em sua ancestralidade puritana está
tomando nossas igrejas e instalando o terror teológico nos corações dos crentes. Diferentemente de
tudo aquilo que é nascido do Espírito, sabemos de onde vem. Resta agora saber para onde vai e
onde vamos parar.

Com a palavra, os puritanos...

Rev. Carlos Alberto


Pastor da Igreja Presbiteriana da Tijuca
Rev. Wilson Azevêdo

1 - KENDALL, R. T. - "A Modificação Puritana da Teologia de Calvino ", in. VV.AA. - Calvino e
sua Influência no Mundo Ocidental - trad. Vera Lúcia L. Kepler, CEP, São Paulo, 1990, pp. 245-
265.

2 - idem, p. 246.

3 - idem, p. 249.

4 - idem, p. 251.

5 - Ibid., idem,

6 - idem, p. 252, o grifo é nosso para destacar a idéia.

7 - Ibid., idem.
8 - idem, p. 253; a citação é de Kendall e o grifo é nosso.

9 - o texto é lindo, mas não é meu, é do Apóstolo Paulo em Romanos 7.

10 - I Coríntios 15: 19

11 - Hino Castelo Forte, cf. Hinário Novo Cântico, n.º 155

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