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Governo Federal

Dilma Vana Rousseff


Presidente

Ministério da Educação
Fernando Haddad
Ministro

Secretaria de Educação a Distância


Carlos Eduardo Bielschowsky
Secretário

Diretor do Departamento de Políticas em Educação a Distância


Hélio Chaves Filho

CAPES
Jorge Almeida Guimarães
Presidente

Diretor de Educação a Distância


João Carlos Teatini de Souza Clímaco

Governo do Estado
Ricardo Vieira Coutinho
Governador

UNIVERSIDADE ESTADUAL DA PARAÍBA

Marlene Alves Sousa Luna


Reitora

Aldo Bezerra Maciel


Vice-Reitor

Eli Brandão da Silva


Pró-Reitor de Ensino de Graduação

Eliane de Moura Silva


Coordenação Institucional de Programas Especiais – CIPE
Secretaria de Educação a Distância – SEAD

Assessora de EAD
Cecília Queiroz
Edson Tavares Costa

Literatura Portuguesa

Campina Grande-PB
2011
Universidade Estadual da Paraíba
Marlene Alves Sousa Luna
Reitora

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Vice-Reitor

Pró-Reitor de Ensino de Graduação


Eli Brandão da Silva

Coordenação Institucional de Programas Especiais-CIPE


Secretaria de Educação a Distância – SEAD
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Cecília Queiroz
Assessora de EAD

Coordenador de Tecnologia
Ítalo Brito Vilarim

Projeto Gráfico
Arão de Azevêdo Souza

Revisora de Linguagem em EAD


Rossana Delmar de Lima Arcoverde (UFCG)

Revisão Linguística
Maria Divanira de Lima Arcoverde (UEPB)

Diagramação
Arão de Azevêdo Souza
Gabriel Granja

FICHA CATALOGRÁFICA ELABORADA PELA BIBLIOTECA CENTRAL - UEPB

869
C837l Costa, Edson Tavares.
Licenciatura em Letras/Português: literatura portuguesa. /Edson
Tavares Costa; UEPB / Coordenadoria Institucional de Programas
Especiais, Secretaria de Educação a Distância._Campina Grande:
EDUEPB, 2011.
161 p.: il.

1. Literatura Portuguesa. 2. Movimentos Literários. I. Título. II. EDUEPB /


Coordenadoria Institucional de Programas Especiais.
21. ed.CDD
Sumário

I Unidade
Trovadorismo: cantigas e novelas de cavalaria...............................................7

II Unidade
Trovadorismo: textos poéticos e em prosa ....................................................25

III Unidade
Humanismo: crônicas.................................................................................39

IV Unidade
Classicismo: a poesia épica de Camões ......................................................51

V Unidade
Barroco: Padre Vieira..................................................................................69

VI Unidade
Arcadismo: Bocage.....................................................................................85

VII Unidade
Romantismo: Garrett e Herculano................................................................97

VIII Unidade
Realismo e Simbolismo: a Questão Coimbrã e a decadência......................113

IX Unidade
Modernismo: a “literatura” Fernando Pessoa..............................................129

X Unidade
Contemporaneidade: José Saramago e outros autores ..............................145
I UNIDADE

Trovadorismo: cantigas e
novelas de cavalaria
Literatura Portuguesa I SEAD/UEPB 7
Apresentação
O grande poeta Fernando
Pessoa escreveu que Portugal é
o rosto com que a Europa fita
“o Ocidente, futuro do passa-
do” (PESSOA, Fernando. Obra
poética. Org. Int. e Notas de
Maria Aliete Galhoz. Rio de Ja-
neiro: Nova Aguilar, 2001, p.
71). Nesta unidade, igual ao
que Pessoa falou sobre o con-
tinente europeu, posto nos co-
Foto de satélite da Península Ibérica tovelos, “de Oriente a Ociden-
te” (idem), vamos nos debruçar
sobre Portugal, fitando com olhos de quem perscruta, de
quem analisa, de quem investiga, a sua história, seu povo,
sua cultura. E faremos isso através de sua literatura, de seus
escritores, desde a origem à contemporaneidade.
É uma literatura rica, com nomes de peso no cânone
universal, como Luís de Camões, Fernando Pessoa e, mais
recentemente, José Saramago – único escritor de língua por-
tuguesa a ser agraciado com o Prêmio Nobel.
Como afirma Nicola (NICOLA, José de. Literatura Por-
tuguesa: da origem aos nossos dias. São Paulo: Scipione,
1999, p. 28), “a literatura portuguesa, que já abrange oito
Fonte da imagem: http://
séculos de produção, pode ser dividida em três longos es-
www.mapas-portugal. paços de tempo, acompanhando as grandes transformações
com/Satellite_Image_
Photo_Iberian_ vividas pela Europa: Era Medieval, Era Clássica e Era Romântica
Peninsula_2.htm. Crédito:
Jacques Descloitres,
ou Moderna. Essas três grandes eras apresentam-se subdivi-
MODIS Rapid Response didas em fases menores, chamadas de escolas literárias ou
Team, NASA/GSFC
estilos de época.”

8 SEAD/UEPB I Literatura Portuguesa


Naturalmente, não teremos como ver toda essa literatu-
ra, em 10 aulas, mas faremos uma seleção dos autores e
obras mais marcantes, apresentaremos várias outras suges-
tões, que podem (e devem) ser lidas, uma vez que a literatu-
ra portuguesa é de uma importância singular para as artes
brasileiras, não só pela condição de originária, mas pela
inegável influência exercida sobre os escritores daqui.
Ao longo desses 800 anos de literatura, e a partir da divi-
são em eras acima apresentada, observaremos que estas, de
certa forma, coincidem com os grandes períodos da História
universal. Veja: a Era Medieval vai até 1502, coincidindo
com a Idade Média (até 1453); a Era Clássica (1527-1825)
acontece ao longo da chamada Idade Moderna (1453-
1789); e a Era Romântica (a partir de 1825) em paralelo
com a Idade Contemporânea (a partir de 1789). Claro que
essas “coincidências” acontecem porque “a produção cultu-
ral de um povo está estreitamente relacionada ao momen-
to histórico por ele vivido” (NICOLA, 1999, p. 29). E, se é
verdade que a prática literária está intrinsecamente ligada a
questões ideológicas (sociais, econômicas, políticas, acadê-
micas, religiosas, científicas, entre outras tantas), o que se
produziu, em termos de literatura, em Portugal, nesse perío-
do, renderá riquíssimos momentos de discussão.
Como falamos, essas Eras Literárias estão subdividi-
das em “escolas” ou “movimentos” literários, como sejam:
na Era Medieval (séculos XIII a XV), temos o Trovadorismo
(1189-1434) e o Humanismo (1434-1527); a Era Clássi-
ca portuguesa compreende os séculos XVI a XVIII e divide-

Literatura Portuguesa I SEAD/UEPB 9


-se em Classicismo (1527-1580), Barroco (1580-1726) e
Arcadismo (1726-1825); finalmente a Era Moderna vem
do século XIX até nossos dias, e compreende o Romantis-
mo (1825-1865), o Realismo (1865-1890), o Simbolismo
(1890-1915) e o Modernismo (a partir de 1915).
Especificamente nesta unidade, trataremos das origens
da literatura lusitana, um período conhecido como Trovado-
rismo, que vai do final do século XII até os trinta primeiros
anos do século XV.
Para um melhor aproveitamento dos estudos, sugerimos
uma leitura atenciosa de cada texto, acompanhada com
as devidas anotações daquilo que julgar importante; algo
que não foi compreendido de imediato também deve ser
anotado, para que as dúvidas sejam dirimidas na primeira
oportunidade: com os colegas, com o professor, através dos
fóruns e debates virtuais, de e-mails ou pesquisas direto na
internet.
Vamos lá?!

Objetivos
É nosso desejo que, ao final desta unidade, você consiga:

• Expor uma linha temporal contemplando a sociedade portugue-


sa desde o final do século XII até o início do século XV;
• Perceber as transformações sociais ocorridas ao longo desse
período, suas causas e consequências para o desenvolvimento
nacional;
• Ter um primeiro contato com os escritores e obras mais impor-
tantes do período assinalado, localizando-os no tempo e no
espaço (tanto físico quanto social);
• Reconhecer esse período como o nascedouro da arte literária
portuguesa.

10 SEAD/UEPB I Literatura Portuguesa


Texto 1

Iniciaremos nossa conversa com uma visão geral sobre a formação


de Portugal, pois a literatura desse período está intrinsecamente ligada
aos acontecimentos históricos.

Formação de Portugal
Portugal é a parte mais ocidental da penínsu-
la mais ocidental da Europa: a Península Ibérica.
Se voltarmos dez mil anos atrás, vamos encontrar
essa região povoada por diferentes povos (celtas,
iberos, fenícios, gregos, germânicos...), num ladri-
lho diferenciado de culturas, que terminaram uni-
ficadas pela ocupação romana, a partir de 219
a.C. Uma unificação forçada, imposta pelos do-
minadores, que reduziram todas as manifestações
culturais dos peninsulares a um denominador cul-
tural comum.
Fonte: http://peninsulaiberica.blogs.sapo.pt/arquivo/ib_hond.jpg
Mas os romanos não se mantiveram perene-
mente na península. No século V, diversos grupos
guerreiros foram destruindo a hegemonia administrativa e política ro-
mana. Eram denominados genericamente de “bárbaros” aqueles que
viviam fora das fronteiras do Império e não falavam o latim. Entretanto,
embora superiores na conquista bélica, os “bárbaros” não conseguiram
destroçar a cultura estabelecida; ao contrário, sofreram um processo
de “romanização” cultural, isto é, incorporaram a cultura dos romanos.
É nesse período que se estabelecem as três classes sociais que com-
porão a sociedade ibérica: o clero, formado pelos sacerdotes da Igreja
cristã, possuidora de riquezas e poder político; a nobreza, composta
pelos proprietários de terras, que detinham um grande poder militar; e
o povo, uma classe desprivilegiada, constituída principalmente de cam-
poneses.
No século VIII, a península foi invadida pelos árabes (também de-
nominados mouros ou muçulmanos), que a dominaram quase que por
completo, ao longo de vários séculos. Não foi um domínio homogê-
neo, como o romano; ao contrário, variava de intensidade, de região
a região. No sul da península, por exemplo, a dominação foi maior;
o norte, no entanto, jamais foi subjugado, servindo, assim, de refúgio
aos ibéricos cristãos, que se preparavam para a reconquista dos terri-
-tórios tomados. Somente no século XV as lutas da Reconquista tiveram
fim, com a retomada do último reduto mouro na Espanha, Granada,

Literatura Portuguesa I SEAD/UEPB 11


em 1492, quando os reis espanhóis Fernando de Aragão e Isabel de
Castela entraram triunfantes na cidade antes sitiada pelos árabes.
Mas, antes desta cena final, é preciso que voltemos no tempo, para
localizarmos a exata origem do reino português. À medida que a Re-
conquista avançava, gradativamente, retomando as terras ibéricas, em
direção ao sul da península, foram se configurando uma divisão terri-
torial e uma estrutura de poder específicas. Os reinos do Norte (Leão,
Castela e Aragão) foram avançando em direção ao Sul, tendo o reino
de Leão um território que ia do rio Lima, ao norte, passando pelas ter-
ras banhados pelo rio Douro, e indo até a região de Coimbra, ao sul.
Esse território era conhecido como o Condado Portucalense. A origem
de Portugal está ligada a esse condado e à história de dois casamentos.
Leiamos um trecho de José de Nicola, sobre esse momento histórico
português. “No final do século XI, governava todo o norte da Península
o rei Afonso VI, cujas ações centravamse na luta pela expulsão dos
muçulmanos. Para guerrear contra os mouros, afluíram cavaleiros de
toda a Europa cristã, dentre os quais Raimundo e seu primo Henrique,
nobres do ducado de Borgonha (região francesa que sediava a famosa
abadia de Cluny). Afonso VI promoveu o casamento de Raimundo com
Urraca, sua filha e única herdeira, dando-lhe como dote o governo da
Galiza (região da atual Espanha). Pouco depois casou Henrique com
Teresa, uma filha bastarda, oferecendo-lhe como dote o Condado Por-
tucalense. D. Henrique de Borgonha continuou a luta contra os mouros
e anexou novos territórios ao seu condado, que foi ganhando, assim,
os contornos territoriais do que hoje é Portugal.
Em 1128, Afonso Henriques – filho de D. Hen-
rique de Borgonha e Teresa – proclamou a inde-
pendência do Condado Portucalense, iniciando um
longo período de lutas contra as forças do reino de
Leão. Entretanto, foi somente em 1143, na Confe-
rência de Samora, que Afonso VII, filho de D. Rai-
mundo e Urraca e “imperador de toda a Espanha”
desde 1135, concedeu a seu primo Afonso Henri-
ques o título de Rei de Portugal.
D. Afonso Henriques(*)
Quando em 1185 morreu Afonso Henriques,
Fonte: http://www.vbruno.
os muçulmanos ainda dominavam o sul de Portu-
net/escola/Monarquia_
gal. Os sucessores de Afonso Henriques persistiram
Portuguesa/reis.h9.gif

na luta contra os mouros, até a conquista do Al-


garve (extremo sul de Portugal), em 1249. Dessa forma, consolidou-se
a primeira dinastia portuguesa: a dinastia de Borgonha.” (NICOLA, José
de. Literatura Portuguesa: da origem aos nossos dias. São Paulo: Scipio-
ne, 1999, p. 16)

12 SEAD/UEPB I Literatura Portuguesa


Atividade I
Depois da leitura deste texto informativo, em que foi focalizado o período de
surgimento do reino de Portugal, naturalmente uma série de questões está
pululando em sua cabeça, não é? Então, comecemos a discutir algumas delas.

a) Como você acha que os romanos conseguiram unificar a cultura


da península ibérica de tal forma que até mesmo os invasores que
vieram depois foram “romanizados”?

b) Uma nação que nasce sob o signo da conquista e reconquista terá


em sua literatura as marcas desses conflitos. Comente.

c) Veja o que Almada Negreiros fala sobre os países que formam a


Península Ibérica: “Portugal e Espanha são dois opostos e não dois
rivais. Os opostos são complementos iguais de um todo. Este todo
está representado geograficamente pela Península Ibérica e em
espírito pela civilização ibérica.” Com base nessa afirmação do
escritor português, analise a relação dos primos Afonso Henriques e
Afonso VII, quando da criação do Reino de Portugal.

dica. utilize o bloco


de anotações para
responder as atividades!

Literatura Portuguesa I SEAD/UEPB 13


Socialização
Transforme suas respostas desta Atividade em um texto corrido, fa-
zendo as devidas adequações, e poste-o no Ambiente Virtual de Apren-
dizagem – AVA, para que, com a partilha de ideias entre os alunos,
possamos nos preparar historicamente para entender os movimentos
literários do período em estudo.

Texto 2

Agora que conhecemos a origem da nação portuguesa, iremos co-


nhecer os seus primeiros movimentos literários, que se manifestaram
através de uma poesia de forte cunho subjetivo.

A Poesia Medieval Portuguesa


Inicialmente, com a palavra, a estudiosa
Nelly Novaes Coelho. “A poesia que se vol-
ta para a emoção amorosa, para o mundo
interior do homem, surge em meados do
século XII, diferenciada em dois tipos bem
definidos: a trovadoresca e o romance cor-
tês, seguidos mais tarde pelas novelas de
cavalaria.
Foi a Provença, pequena região situada
ao sul da França, o local geográfico que
serviu de ponto de partida ou de fulcro ge-
Fonte: http://mileumaletras4.zip. rador das primeiras manifestações poéticas
net/images/trovadores2.jpg
da literatura ocidental, conhecidas hoje em dia como
Poesia Trovadoresca.
[...] É com os trovadores provençais que renasce a poesia lírica,
cuja última manifestação surgira entre os romanos. Novamente a Lite-
ratura expressa as emoções interiores do homem, e especificamente a
amorosa. Levada pelos trovadores, jograis ou menestréis, largamente
protegidos pelas cortes, a poesia trovadoresca atravessa os Alpes e os
Pireneus e vai provocar o nascimento da poesia nacional de Portugal,
Espanha e Itália. É com ela que nasce a poesia portuguesa.” [CO-
ELHO, Nelly N. Literatura e Linguagem. A obra literária e a expressão
lingüística. 5. ed. reform. Petrópolis-RJ: Vozes, 1993, p. 127-8]
A época do trovadorismo abrange as origens da Língua Portugue-
sa, isto é, o português arcaico, que compreende o período de 1189 a
1418.
Os autores dessa época, geralmente poetas, eram chamados de

14 SEAD/UEPB I Literatura Portuguesa


trovadores. A palavra trovador vem do francês TROUVER que significa
ACHAR, ENCONTRAR. Dizia-se que o poeta ACHAVA, ENCONTRAVA
a música adequada ao poema [seu ou de outro] e o cantava acompa-
nhado de instrumentos como a cítara, a viola, a lira ou a harpa.
A produção artística está impregnada, neste período, do espírito
teocêntrico. As artes decorativas predominam, sempre deformando os
elementos objetivos do mundo ou procurando simbolizar o universo es-
piritual e sobrenatural através do qual o homem interpreta sua realida-
de. O estilo gótico, com suas formas alongadas, ogivais e pontiagudas,
parece expressar forte desejo humano de ascender a uma nova e eterna
vida. A literatura, geralmente escrita em latim, não ultrapassa os limi-
tes religiosos em sua temática: a vida dos santos, a liturgia dos rituais
cristãos. Mas em torno dos castelos feudais desenvolve-se também uma
arte leiga que, mesmo às vezes chegando ao profano, redimensiona a
visão de mundo medieval e aponta novos caminhos. É a arte dos trova-
dores e suas cantigas, das novelas de cavalaria.
Nelly N. Coelho traz mais algumas informações importantes. “Can-
tada ao som de um instrumento, nas cortes ou nas praças públicas para
o povo, a poesia trovadoresca desenvolvia-se com os mesmos clichês
estilísticos: rimas assonantes, reiterações paralelísticas, exploração dos
mesmos temas estereotipados (as queixas do amado saudoso à ‘muito
fremosa senhor’ [senhora muito formosa], que se mantém distante, al-
tiva e indiferente; ou então é a amada quem suspira pelo amado que
está na guerra ou na viagem).
Essa padronização de temas é resultante do ideal do ‘amor cortês’
difundido nas cortes medievais, e entre cujas exigências destacamos:

1. A perfeição da mulher amada;


2. As duras provas a que deve o amor se submeter para vencer;
3. A devoção cavalheiresca;
4. A atitude servil frente à mulher;
5. O esforço interior do homem para dominar os instintos e tornar-
-se senhor de seus impulsos sensuais.

A existência do ‘amor cortês’, segundo estudiosos, liga-se ao pro-


cesso de valorização da mulher, encetado pela Igreja, através do culto
mariano, e que visava não só a elevação da mulher dentro da socieda-
de, como, principalmente, a espiritualização do amor, liberando-o da
sensualidade grosseira que caracterizava as relações Homem-Mulher,
à época.
O Trovadorismo, em fins do século XIV, estava praticamente desa-
parecido como instituição palaciana; a sua técnica passa por um gran-
de refinamento. Predominam agora as rimas consoantes, os esquemas
métricos regulares, amplia-se o vocabulário e os temas passam a ser
os mais variados. É quando surge a Poesia Palaciana no século XV, pré-

Literatura Portuguesa I SEAD/UEPB 15


-renascentista, já bem mais artística que a inicial, e que está recolhida
no Cancioneiro Geral, organizado por Garcia de Rezende.” (COELHO,
Nelly N. Literatura e Linguagem. A obra literária e a expressão linguística.
5. ed. reform. Petrópolis-RJ: Vozes, 1993, p. 128-9]
Em Portugal floresceram cantigas de tipos diversos quanto à temática:

Cantigas de Amor: Surgiram no sul da Fran-


ça, na região de Provença. Expressam o senti-
-mento amoroso do trovador que se coloca
a serviço da mulher amada. Aqui, o amor se
torna tema central do texto poético, deixan-
do de ser pretexto para a discussão de outros
temas. Mas é um amor não realizado, não
correspondido, que fica sempre num plano
idealizado. E de outro modo não poderia ser,
pois a mulher amada se encontra socialmente
afastada do poeta: é a senhora, esposa do
Fonte: http://www.hs-augsburg. senhor feudal. São cantigas que espelham a
de/~harsch/lusitana/Cronologia/
seculo14/Mendinho/men_jogr.jpg
vida na corte através de forte abstração e lin-
guagem refinada.

Cantigas de Amigo: Nasceram no território português e constituem


um vivo retrato da vida campestre e do cotidiano das aldeias medie-
vais na região. Embora compostas por homens, procuram expressar o
sentimento feminino através de pequenos dramas e situações da vida
amorosa das donzelas, geralmente, as saudades do namorado que
foi combater contra os mouros, a vigilância materna, as confissões às
amigas. Há nessas cantigas uma forte presença da natureza, sua lin-
guagem é simples e sua estrutura apropriada ao canto e à transmissão
oral apresenta refrão e versos encadeados e repetidos ou ligeiramente
modificados [paralelismo].

Cantigas de escárnio e de maldizer: Reúnem a produção satírica e mali-


ciosa da época. Enquanto as de escárnio são críticas e suas ironias feitas
de modo indireto, as de maldizer, utilizando linguagem mais vulgar, às
vezes obscena, referem-se direta e nominalmente a suas personagens.
Os temas centrais destas cantigas são as disputas políticas, as questões e
ironias que os trovadores se lançam mutuamente e que nos lembram os
desafios de nossa literatura de cordel, as intimidades de alcova, a covar-
dia ou a falta de jeito de alguns cavaleiros, as mulheres feias.

16 SEAD/UEPB I Literatura Portuguesa


Atividade II
Diante do que você leu no texto acima, que opinião você forma em relação à
relação que se estabelecia, literariamente, entre homens e mulheres? Haveria
correspondência dessa relação na vida cotidiana? Elabore um pequeno texto
defendendo seu ponto de vista.

dica. utilize o bloco


de anotações para
responder as atividades!

Leitura na Internet
O texto a seguir traz uma abordagem interessante sobre essa rela-
ção homem-mulher, numa perspectiva literária, mas também cotidiana.
O texto integral está no site http://www.filologia.org.br/abf/vol4/num-04.
htm

O mito do amor na literatura medieval portuguesa


Nadia Paulo Ferreira
(UERJ e Corpo Freudiano do Rio de Janeiro)

Trovadorismo
No século XII, a França não apresentava uma unidade linguística: a
língua d’oil no norte e a língua d’oc no sul. Na região occitânica, terri-
tório em que se falava o d’oc, floresce uma poesia, associada ao canto,
que tem como tema o que se convencionou chamar de amor cortês.
Do final do século XII até a segunda metade do século XIV, em Por-
tugal e na Galícia, surge uma poesia em galego-português que retoma
o tema do amor, a partir de vários gêneros.
A famosa Cantiga da Guarvaia, de autoria de Paio Soares de Ta-
veirós, é considerada por Carolina de Michaëlis o texto inaugural do
trovadorismo galego-português. [...]

Literatura Portuguesa I SEAD/UEPB 17


Os textos manuscritos que reúnem o corpus poético dos trovadores
galego-portugueses se encontram em códices apógrafos. Os principais
e mais conhecidos desses códices são os seguintes manuscritos:
a) Cancioneiro da Ajuda, copiado em Portugal em fins do século XIII
ou princípios do século XIV, encontra-se na biblioteca da Ajuda,
em Lisboa. A maioria das cantigas são de amor.
b) Cancioneiro da Vaticana, copiado na Itália em fins do século XV
ou princípios do século XVI. Encontram-se cantigas de todos os
gêneros.
c) Cancioneiro da Biblioteca Nacional, antigo Colocci-Brancuti, co-
piado na Itália em fins do século XV ou princípios do século XVI,
encontra-se, desde 1924, na Biblioteca Nacional de Lisboa. Há
composições de todos os gêneros.
d) Pergaminho Vindel: com as 7 cantigas de amigo de Martin Codax,
entre outros textos.
e) As Cantigas de Santa Maria: constituída por 4 códices do século
XIII sob o nome de Afonso X, é quase certo que todas as cantigas
não sejam da autoria do rei. Entretanto, não há dúvida de que
Afonso X coordenou pessoalmente a compilação destas cantigas.
f) Tavola Colocciana: uma lista com nomes dos poetas dos Cancio-
neiros, organizada pelo humanista Angelo Colocci.

Amor-cortês e amor-paixão
Nas Cantigas de Amor, o sujeito do discurso é um homem e o tema
é o amor impossível. Em galego-português, o sofrimento causado pela
não correspondência amorosa é chamado de coita e o objeto amado –
a Dama – é nomeado pela palavra Senhor. A maioria dos medievalistas
concorda que essas cantigas retomam o lirismo occitânico, sofrendo
influências diretas da poesia provençal.
Nas Cantigas de Amigo, em vez de um amor impossível, temos o
testemunho de mulheres apaixonadas. O poeta – trovador, jogral ou
menestrel –, se coloca do lado das mulheres, falando como se fosse
uma delas. Em galego-português, amigo é sinônimo de namorado,
amado.
No que diz respeito à origem dessas cantigas, vamos encontrar três
versões diferentes:

1 - a poesia galego-portuguesa em seu conjunto é uma con-


tinuidade do trovadorismo occitânico, tendo como principal
influência a escola provençal;
2 - as cantigas de amigo são um fenômeno autóctone da cultura
galego-portuguesa;

18 SEAD/UEPB I Literatura Portuguesa


3 - a poesia galego-portuguesa se inscreve na tradição trovadores-
ca medieval, apresentando algumas características específicas,
já que não se pode deixar de levar em consideração que a corte
de Afonso X, o Sábio (avô de D. Dinis), era um importante centro
cultural, frequentado por vários poetas occitânicos.

As Cantigas de Amor e de Amigo colocam em cena dois gêneros


líricos e duas modalidades de amor. Nas cantigas de amor, o amante
se situa como homem, colocando-se a serviço de uma Dama, que, ao
mesmo tempo em que o aceita como vassalo, recusa-se a dar-lhe o
seu amor. Nas cantigas de amigo, o amante se inscreve no lugar das
mulheres e o objeto amado é quem tem as insígnias fálicas. As cantigas
de Pero Meogo, em que a imagem dos cervos simboliza a virilidade
masculina (Cf. AZEVEDO FILHO. As cantigas de Pero Meogo. Rio de
Janeiro: Gernasa, 1974), ilustram as características básicas desse gê-
nero, onde algumas personagens domésticas participam dos conflitos
da donzela, quando ela recebe um bilhete do namorado, convidando-
-a para um encontro. Sempre que a figura materna aparece nessas
cantigas é para alertar a filha dos perigos da paixão, e, às vezes, essas
donzelas burlam a vigilância materna para atender ao chamado dos
seus amados.
Nas Cantigas de Amor, a privação do objeto amado tem como
efeito a inibição do sexual. Nas Cantigas de Amigo, a inclusão do se-
xual está diretamente ligada a uma cena reincidente, onde a donzela
apaixonada se entrega ao seu amado, engendrando uma versão que
implica a conjunção entre amor e gozo e na colocação do amor como
agente infrator de um código moral, como é o caso da poesia de Mar-
tin Codax, provavelmente, um jogral galego-português que viveu na
corte de Afonso III (1210 - 1279).
O preconceito fez com que alguns estudiosos do trovadorismo ga-
lego-português, tais como D. Carolina de Michäelis de Vasconcelos,
Aubrey Bell, Joaquim Nunes, Costa Pimpão e Rodrigues Lapa – só para
citar alguns – identificassem certa “candura” nas cantigas de amigo.
Ou seja: eles ignoraram a presença de um erotismo, onde o amor con-
tracena com o gozo sexual para engendrar a promessa de Felicidade.
Já as leituras das cantigas de amigo, feitas por Leodegário A. de Aze-
vedo Filho (As Cantigas de Pero Meogo e O Poema Musical de Codax
como Narrativa), por Celso Cunha (Amor e Ideologia na Lírica Trova-
doresca) e por Romam Jakobson (A textura Poética de Martim Codax),
entre outros, contribuíram para desmistificar o caráter angelical que até
então era atribuído a essas cantigas.

[...]

É importante frisar a dicotomia entre o lugar e o tratamento que é


dado à mulher na poesia e no social. Na Idade Média, as mulheres,
reduzidas à função fálica, só tinham lugar no social como mães. Uma

Literatura Portuguesa I SEAD/UEPB 19


das soluções encontradas pelos homens em relação às mulheres foi ta-
par as suas bocas. O depoimento do historiador Georges Duby, sobre
as dificuldades encontradas por ele em sua pesquisa sobre as mulheres
dessa época, ilustra bem esse fato:

Essa Idade Média é resolutamente masculina. Pois todos os relatos


que chegam até mim e me informam vêm dos homens, convencidos da
superioridade do seu sexo. Só as vozes deles chegam até mim. No en-
tanto, eu os ouço falar antes de tudo de seu desejo e, consequentemen-
te, das mulheres. Eles têm medo delas e, para se tranquilizarem, eles as
desprezam. (DUBY, Georges. Idade média, idade dos homens: do amor
e outros ensaios. São Paulo: Companhia das Letras, 1989, p.10)

Na segunda metade do século XII, período de florescimento do


amor cortês, no sul da França, o poder da Igreja invadia a privacidade
dos homens, criando leis que regulamentavam as relações íntimas entre
os casais. Os padres alertavam os homens para terem muito cuidado
com as mulheres. Elas poderiam ser consideradas, em relação à força
física, mais frágeis do que os homens, mas, em relação ao espírito,
deviam ser temidas porque usavam a sedução e a mentira como armas
para conduzir o homem ao pecado, à destruição e à morte.

[...]

Enfim, criaturas demoníacas, perversas e devoradoras, incapazes de


serem satisfeitas, eram as imagens que o cristianismo medieval cons-
truiu sobre as mulheres, o que sem dúvida isentava e justificava os atos
de violência contra elas. As leis dos homens tinham, nessa época, um
efeito apaziguador, na medida em que colocavam no lugar do Outro
sexo o signo da maternidade. O perigo só rondava as mulheres soli-
tárias, ou seja, aquelas que não estavam sob o domínio dos homens.
Então, a solução encontrada foi a criação de novos espaços para apri-
sioná-las: os mosteiros, as comunidades beguinas e os bordéis. Sob a
insígnia da proteção, os homens encontravam artifícios para se preve-
nirem do insondável que vela o gozo feminino. Tratava-se, então, de
uma estratégia para negar o ser sexuado dessas mulheres, cujo gozo
suplementar não passa pelo corpo, mas sim pela fala. Uma idade dos
homens é como o historiador George Duby se refere a essa época em
um dos seus livros. Mas, se nessa época o valor social da mulher era
índice da potência do homem a quem estava subjugada, desde o nas-
cimento até a morte, este valor se transformava radicalmente, quando
a mulher, sob a pena do poeta, transfigura-se na Dama, à qual ele iria
dedicar seu amor em cantos, que são verdadeiros lamentos de dor.

[...]

20 SEAD/UEPB I Literatura Portuguesa


O morrer-de-amor dos trovadores não corresponde nem ao desejo
de morte da tragédia helênica e nem ao masoquismo moral romântico.
O sofrimento é efeito de uma relação amorosa simbolizada que visa
à não satisfação. A Dama é colocada no lugar de objeto amado para
que outra coisa, que está para além das mulheres, seja desejada.
As regras corteses tornam o amor impossível para que uma prática
de escrita se transforme em metáfora do amor. O real como impossível
não é recalcado, simplesmente se desloca para que amar se torne si-
nônimo de renúncia e a insistência em continuar amando se transforme
em mestria de um cantar com a função de sublimação.
Ao contrário do romantismo, o que comparece no lugar de um ide-
al é o próprio amor e não o objeto. Na literatura romântica, o objeto
feminino é investido de uma imagem que substancializa a figura da
mulher angelical ou da mulher satânica. As cantigas de amor dessubs-
tancializam o objeto feminino, transformando-o numa função simbóli-
ca. A Dama, como portadora do agalma, é captada por um olhar, sem
que haja qualquer particularidade que a singularize, quer do ponto de
vista do amante, quer do ponto de vista de um estilo de época. A leitura
das cantigas de amor provoca, inclusive, a sensação no leitor de que
todas elas poderiam ter sido escritas para uma mesma mulher. A Dama
é dessubjetivada para ser colocada aos olhos do amador como, inteira-
-mente, arbitrária e onipotente. Justamente por isto, Ela não mede as
exigências que impõe àquele que está ao seu serviço.
[...] O trovador tem que passar [por estágios] para que a Dama
aceite ser homenageada por ele, possibilitando assim que ele receba
o grau de amador. Esses estágios são: 1- Aspirante (Fenhedor) – o que
se consome em suspiros; 2- Suplicante (Precador) – o que ousa pedir;
3- Amador (Drut).
Cumpridos esses estágios, se o amador for aceito como vassalo, a
Dama aceitará seu amor, sua devoção e sua fidelidade. No ritual pro-
vençal, quando a Dama aceitava a corte do trovador, oferecia-lhe um
anel de ouro e ordenava que se levantasse e lhe beijasse a fronte. Daí
em diante os amantes estavam unidos pelas leis da cortesia: inibição do
sexual, vassalagem e consagração do objeto amado.

[...]

O mito do amor, na literatura portuguesa, encontrará as suas ori-


gens no entrecruzamento entre as cantigas galego-portuguesas de
amor e de amigo. Nas cantigas de amigo, vamos encontrar um amor
que justifica os desvios de virtude das donzelas apaixonadas. Mentir por
amor, dissimular para a mãe e se entregar como prova de amor são os
comportamentos descritos pelas donzelas nas Cantigas de Amigo, com
bem demonstra Leodegário A. de Azevedo Filho, no seu livro As Canti-
gas de Pero Meogo. Nessas cantigas, não há lugar para o morrer-de-
-amor das Cantigas de Amor. Nestas últimas, a dor de morrer-de-amor
revela-se para o imaginário do trovador como gozo, que, ao contrário
das cantigas de amigo, não se inscreve pela via do sexual.
Nas cantigas de amigo, o trovador, ao usar a máscara de uma don-
zela apaixonada, não canta mais um amor impossível e sim as maravi-
Literatura Portuguesa I SEAD/UEPB 21
lhas do amor. São depoimentos líricos de “mulheres” que ora suspiram,
ora se entregam ao amado como prova de amor. A conversão do amor
impossível para o amor que se sustenta na Promessa de Felicidade é a
primeira grande virada da concepção mítica do amor na literatura por-
tuguesa. Lá, nas páginas das cantigas de amigo, amor e gozo sexual
se deparam com duas faces de um sonho sonhado sem os escombros
da morte.
Disponível em http://www.filologia.org.br/abf/vol4/num1-04.htm

Sugestões de filmes

a) Monty Python e o Cálice Sagrado


(1975) – No ano de 932 D.C., o rei Arthur
convence Sir Lancelot, Sir Galahad e Sir
Robin a se juntarem à confraria da Távola
Redonda. Depois de uma aparição divina,
os bravos cavaleiros partem em busca do
cálice sagrado, numa sucessão de trapa-
lhadas e absurdos. Elenco: Graham Chap-
man, John Cleese, Eric Idle, Terry Gilliam,
Terry Jones, Michael Palin, Connie Booth,
Carol Cleveland, Neil Innes, Bee Duffell, John Young, Rita Davies, Avril
Stewart, Sally Kinghorn, Mark Zycon. Direção: Terry Gilliam e Terry Jo-
nes. Duração: 90 min.

b) O nome da rosa (1988) – Em 1327,


um monge franciscano e um noviço que
o acompanha chegam a um remoto
mosteiro no norte da Itália a fim de par-
ticipar de um conclave para decidir se a
Igreja deve doar parte de suas riquezas,
mas a atenção é desviada por vários as-
sassinatos que acontecem no mosteiro.

22 SEAD/UEPB I Literatura Portuguesa


O caso se mostra bastante intrincando; além dos mais, religiosos acre-
ditam que é obra do Demônio. O monge não partilha desta opinião,
mas antes que ele conclua as investigações o Grão-Inquisidor chega no
local e está pronto para torturar qualquer suspeito de heresia que tenha
cometido assassinatos em nome do Diabo. Esta batalha, junto com
uma guerra ideológica entre franciscanos e dominicanos, é travada
enquanto o motivo dos assassinatos é lentamente solucionado. Elenco:
Sean Connery, Christian Slater, Helmut Qualtinger, Elya Baskin. Direção:
Jean-Jacques Annaud. Duração: 130 min.

Resumo

A Península Ibérica, a mais ocidental da Europa, começou a ser


formada a partir da junção da vários povos, há mais de 10 mil anos;
diferentes etnias e, consequentemente, diferentes culturas, foram uni-
ficadas no século I a. C., com a invasão romana. Em seguida, povos
bárbaros expulsaram os romanos, mas terminaram sendo “romaniza-
dos” culturalmente, como também o foram os árabes, que invadiram a
península no século VIII. O longo período de expulsão dos muçulmanos
e retomada dos territórios pelos ibéricos denominou-se “Reconquista”,
e tem a ver diretamente com a formação do reino de Portugal. É exa-
tamente nesse período (entre os séculos VIII e XV) que se desenvolve o
primeiro movimento literário português, o Trovadorismo. Falamos aqui
sobre a poesia trovadoresca, composta pelas cantigas lírico-amorosas
e satíricas, as quais serão desenvolvidas na próxima aula, juntamente
com a prosa medieval portuguesa.

Literatura Portuguesa I SEAD/UEPB 23


Autovaliação
Retomando os objetivos desta unidade, você pode, por si, aquilatar sua própria
aprendizagem, a partir da auto-observação de questões como:

• Conseguiu situar, na linha do tempo, os fatos aqui comentados?


• Percebeu as transformações sociais e econômicas do período
estudado, fazendo a devida ligação com a História?
• Compreendeu a relação da formação do reino português com
o surgimento de sua literatura?

Referências
COELHO, Nelly N.. Literatura e Linguagem. A obra literária e a
expressão lingüística. 5. ed. reform. Petrópolis-RJ: Vozes, 1993

NICOLA, José de. Literatura Portuguesa: da origem aos nossos dias.


São Paulo: Scipione, 1999

PESSOA, Fernando. Obra poética. Org. Int. e Notas de Maria Aliete


Galhoz. Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 2001

Web:
http:// www.filologia.org.br/abf/vol4/num1-04.htm

24 SEAD/UEPB I Literatura Portuguesa


II UNIDADE

Trovadorismo:
textos poéticos e em prosa

Literatura Portuguesa I SEAD/UEPB 25


Fonte: http://alfarrabio.di.uminho.pt/vercial/imagens/trovad06.jpg

Apresentação
Estudamos, na unidade passada, a origem do reino de
Portugal e sua nascente literatura, o Trovadorismo poético.
Lemos alguns textos históricos e teóricos, que nos ajudaram
a situar adequadamente a literatura que passaremos a estu-
dar com mais atenção a partir de agora. Vimos algumas re-
ferências a respeito das cantigas lírico-amorosas e satíricas,
bem como relacionadas ao tema destas, mas sem entrarmos
em contato diretamente com elas.
O que faremos nesta unidade é estabelecer esse contato
com as cantigas, classificadas pelos seus temas. “As primei-
ras cantigas ou trovas medievais portuguesas são inspiradas
nas cantigas que há muito tempo já eram feitas em Proven-
ça, no sul da França; por isso, a Literatura Medieval Por-
tuguesa também é chamada de LITERATURA PROVENÇAL.
Apesar de oito séculos terem se passado, as cantigas con-
tinuam existindo: basta ligarmos o rádio e ouviremos POE-
MAS ORAIS (cantados) ACOMPANHADOS DE MÚSICA...”
(http://rosabe.sites.uol.com.br/trovad.htm).
26
2 6 SEAD/UEPB I Literatura Portuguesa
Num segundo momento, abordaremos a prosa medie-
val portuguesa, composta pelas famosas “Novelas de Ca-
valaria”, oportunidade em que analisaremos alguns trechos
desses textos, “narrativas ficcionais de acontecimentos histó-
ricos”, gerados a partir da “prosificação de poemas épicos e
das canções de gesta (guerra) francesas e inglesas” (http://
www.gargantadaserpente.com/historia/trovadorismo/prosa.
shtml).
Será importante observar a estreita ligação estabelecida
entre os textos estudados e o estilo de vida e comportamento
social dos portugueses medievais, notadamente dos chama-
dos trovadores.
Tanto as cantigas quanto as novelas foram escritas em
galego-português, que é uma forma ainda bastante primitiva
do idioma lusitano, o que poderia gerar alguns problemas
na hora do entendimento e interpretação. Desta forma, ao
lado do texto original, colocaremos a atualização linguística
do texto.
Vamos lá?!

Objetivos
É nosso desejo que, ao final desta unidade, você consiga:
• Identificar os diversos tipos de cantigas medievais, a partir da
análise do contexto poético presente nelas;
• Reconhecer os acontecimentos sócio-culturais que influencia-
ram a composição dos textos em prosa medievais;
• Observar as características formais e temáticas de um texto me-
dieval;

Literatura Portuguesa I SEAD/UEPB 27


Texto 1

Inicialmente, vamos ler mais algu-


mas informações sobre as cantigas líri-
co-amorosas, e, em seguida, algumas
dessas cantigas.
As cantigas lírico-amorosas assim se
denominam por terem como tema predo-
Fonte: http://www.orizamartins.com/
minante o amor, seja o amor de um ho-
serenata-medieval.jpg mem por uma mulher (Cantiga de Amor),
seja o amor por um homem, composta
por um trovador, como se fosse uma mulher (Cantiga de Amigo).

Características gerais das cantigas de amor

• Os sentimentos eróticos que exprimem são os do homem, é o


namorado que desfia as coisas de amor.
• Por influência do lirismo tradicional, algumas cantigas de amor
estão dotadas de paralelismo (quando as estrofes da cantiga são
construídas de forma parecida, dizendo praticamente a mesma
coisa).
• Possuem variado e complicado formalismo estilístico.
• Estão repletas de simbologia amorosa bastante rica, por causa
da teoria do amor cortês.
• Nota-se uma certa uniformidade na expressão e nos sentimen-
tos, o que leva à monotonia temática.
Exemplos de cantigas de amor. A primeira é a Cantiga da Ribeirinha,
de Paio Soares de Taveirós; a segunda foi composta por D. Dinis, o
chamado “Rei Trovador”:

Paio Soares de Taveirós – tro-


D. Dinis – o chamado “Rei-Tro-
vador de origem galega
vador”, foi um culto monar-
(séc. XII), autor de um dos
ca português do século XIII,
mais antigos textos escritos
responsável por um grande
em língua portuguesa.
avanço social, econômico e
Fonte: http://perlbal.hi-pi.com/blog-
images/395581/gd/1204519563/
cultural de Portugal.
TROVADORISMO-cantiga-de-amor-de- Fontes: http://evunix.uevora.
Paio-Soares-de-Taveiros.jpg pt/~jbonito/images/ddinis.gif

28 SEAD/UEPB I Literatura Portuguesa


No mundo non me sei parelha, No mundo ninguém se assemelha a mim
mentre me for’ como me vai, enquanto a vida continuar como vai,
ca ja moiro por vós - e ai! porque morro por vós, e ai
mia senhor branca e vermelha, minha senhora de pele alva e faces rosa-
Queredes que vos retraia das,
quando vos eu vi em saia! quereis que vos descreva (retrate)
Mao dia me levantei, quando vos eu vi sem manto (saia: roupa
que vos enton non vi fea! íntima)
Maldito dia! me levantei
E, mia senhor, des aquel di’, ai! que não vos vi feia (ou seja, a viu mais
me foi a mi muin mal, bela)
e vós, filha de don Paai
Moniz, e ben vos semelha E, mia senhora, desde aquele dia, ai!
d’haver eu por vós guarvaia, tudo me foi muito mal
pois eu, mia senhor, d’alfaia e vós, filha de don Pai
Nunca de vós ouve nem ei Moniz, e bem vos parece
valía d’ua correa. de ter eu por vós guarvaia (guarvaia: roupa
luxuosa)
pois eu, minha senhora, como prova de
amor
de vós nunca recebi
[http://pt.wikipedia.org/wiki/Paio_Soares_de_
Taveir%C3%B3s]
algo, mesmo que sem valor.

Quer’eu em maneira de proençal Quero, à maneira provençal,


fazer agora un cantar d’amor, Fazer agora um cantar de amor
e querrei muit’i loar mia senhor E vou querer muito louvar minha senho-
a que prez nen fremusura non fal, ra
nen bondade; e mais vos direi en: A quem reputação e formosura não fal-
tanto a fez Deus comprida de bem ta,
que mais que todas las do mundo Nem bondade; e mais vos direi:
val. Tanto a fez Deus muito boa
Que vale mais que todas do mundo.
Ca mia senhor quiso Deus fazer tal,
quando a faz, que a fez sabedor Pois, minha senhora, quis Deus fazer
e todo ben e de mui gran valor, isso,
e con todo est’é mui comunal Quando a fez, que a fez sabedor
ali u deve; er deu-lhi bon sen, De todo bem e de muito grande valor,
e des i non lhi fez pouco de ben, E com tudo isso é muito comum
quando non quis que lh’outra Ali onde deve; e deu-lhe bom senso,
foss’igual. E desde aí, não lhe fez pouco boa
Quando não quis que outra fosse igual.
Ca en mia senhor nunca Deus pôs
mal, Pois em minha senhora nunca Deus colo-
mais pôs i prez e beldad’e loor cou maldade
e falar mui ben, e riir melhor Colocou mais aí mérito, beleza e louvor
que outra molher; des i é leal E falar muito bem e rir melhor
muit’, e por esto non sei oj’eu quen Que outras mulheres; desde aí é muito
possa compridamente no seu bem leal
falar, ca non á, tra-lo seu ben, al. E por isso não sei hoje eu quem
Possa em toda a extensão de sua bon-
dade
Falar, pois não há outra que tenha sua
bondade.

[http://pt.wikisource.org/wiki/Quer%27
eu_em_maneira_de_proen%C3%A7al]

Literatura Portuguesa I SEAD/UEPB 29


Atividade I
Depois da leitura destes dois textos medievais, conversemos um pouco sobre
eles:

a) Uma das características marcantes desse período literário é a


chamada “vassalagem amorosa”, ou seja, o eu-lírico se coloca como
vassalo, escravo da mulher amada, derramando sobre ela os maiores
elogios. Procure localizar essas passagens nos dois poemas, e
comente-os.

b) Pesquise sobre como era a situação da mulher na Ideia Média, em


relação ao homem, e responda: você acha que a forma como era
tratada pelo homem, na sociedade, se parece com o jeito como ele a
trata nas cantigas? O que você acha disso?

c) Esse período da História é considerado como Teocêntrico, ou seja,


Deus era tido como o centro de todas as coisas. Podemos observar,
dica. utilize o bloco principalmente no segundo texto, que a mulher, em todo seu
de anotações para
esplendor e bondade, é obra de Deus. Por que a divindade aparece
responder as atividades!
de forma tão decisiva na cantiga e que importância isso tem para os
elogios que o eu-lírico faz à mulher?

Texto 2

Vamos conhecer, agora, mais duas cantigas lírico-amorosas, estas


denominadas Cantigas de Amigo, uma vez que têm um eu-lírico feminino
(ainda que escritas por um homem), e falam sobre um homem (amigo).
São cantigas em que a mulher dialoga com a natureza, com a mãe ou
amigas sobre o amado distante. Antes, vejamos algumas características
desse tipo de cantiga:
• Ausência do amado – o eu-poético revela não saber seu para-
deiro.
• Amor natural e espontâneo - algumas revelam que já foi realizado,
e a moça espera pelo amigo para matar a saudade.
• Confissão dos sentimentos feito indiretamente ao amado – o eu-po-
ético confessa seus sentimentos a outrem. É por isso que essas
cantigas geralmente apresentam diálogos.

30 SEAD/UEPB I Literatura Portuguesa


• Mulher mais próxima da realidade, que sofre pressão social, sua
mãe exerce esse poder.
• Patriarcalismo - comportamento vigiado ou tolhido.
• Eu-poético Feminino e Autor Masculino – canção colocada na boca
de uma moça do povo que exprime seu amor pelo “amigo”
(namorado).
• Estrutura de poesia folclórica, uso de elementos reiterativos, prin-
cipalmente, paralelismo e refrão.
• Musicalidade: Paralelismo e refrão são recursos que dão mu-
sicalidade, reforçam a idéia principal do texto e facilitam sua
memorização.
• Origem Ibérica: é uma cantiga que nasceu no seio popular e, por
esse motivo, sua ambientação é periférica.

A primeira das cantigas de amigo que veremos a seguir é de auto-


ria de Martim de Guinzo1; a segunda é de autoria de João Garcia de
Guilhade2. 1
Martin de Guinzo – jogral galego do século
XIII, autor de várias cantigas de amigo. Pou-
co se sabe a seu respeito.
Non poss’ eu, madre, ir a Santa Cecília Não posso eu, mãe, ir a Santa Cecília
ca me guardades a noit’ e o dia pois me guardas noite e dia
do meu amigo. do meu amigo.

Nom poss’ eu, madre, aver gasalhado, Não posso eu, mãe, ter paz
ca me non leixades fazer mandado pois não me deixas fazer a vontade
do meu amigo. do meu amigo.
2
João Garcia de Guilhade – trovador portu-
Ca me guardades a noit’ e o dia; Porque me guardas noite e dia; guês, nascido em Barcelos, atuou no século
XIII, e é con-siderado um dos mais notáveis
morrer-vos-ei con aquesta perfia morrerei com esta teimosia
autores de cantigas satíricas.
por meu amigo. por meu amigo.

Ca me non leixades fazer mandado, Porque não me deixas fazer a vontade,


morrer-vos ei con aqueste cuidado morrerei com este cuidado
por meu amigo. por meu amigo.

Morrer-vos ei con aquesta perfia, Morrerei com esta teimosia,


e, se me leixassedes ir, guarria e, se me deixasses ir, me salvaria
con meu amigo. com meu amigo.

Morrer-vos ei con aqueste cuidado, Morrerei com este cuidado,


e, se quiserdes, irei mui de grado e, se quiseres, irei de bom grado
con meu amigo. com meu amigo.

http://www.filologia.org.br/pub_outras/sliit02/
sliit02_99-109.html

Literatura Portuguesa I SEAD/UEPB 31


Quer’eu, amigas, o mundo loar Eu quero, amigas, louvar o mundo
por quanto bem mi Nostro Senhor fez: pelo bem que Nosso Senhor fez a mim:
fez-me fremosa e de mui bom prez, fez-me formosa e de muitos bons valo-
ar faz-mi meu amigo muit’ amar: res,
aqueste mundo x’est a melhor rem também faz-me amar muito meu ami-
das que Deus fez a quem el i faz bem. go:
este mundo se é a melhor coisa
O paraiso bõo x’ é de pran, das que Deus fez a quem a ele faz bem.
ca o fez Deus, e non digu’eu de non,
mai-los amigos, que no mundo som, O paraíso se é bom por certo,
e amigas muit’ ambos lezer ham: pois Deus o fez, e não digo eu que não,
aqueste mundo x’est a melhor rem mas os amigos, que estão no mundo,
das que Deus fez a quem el i faz bem. e amigas ambos muito prazer terão:
este mundo se é a melhor coisa
Querriam’ eu o parais’ haver, das que Deus fez a quem a ele faz bem.
des que morresse, bem come quem
quer, Queria ter meu paraíso,
mais, poi-la dona seu amig’ hoer desde que morresse, bem como quem
e com el pode no mundo viver, quer,
aqueste mundo x’est a melhor rem mas, por a dona obter seu amigo
das que Deus fez a quem el i faz bem. e poder viver com ele no mundo,
este mundo se é a melhor coisa
E quem aquesto non tever por bem das que Deus fez a quem a ele faz bem.
já nunca lhi Deus dê em el REM
E quem não tiver isto como um bem
http://pt.wikisource.org/wiki/Quer%27 Já nunca Deus lhe deu coisa alguma no
eu,_amigas,_o_mundo_loar mundo

Atividade II
a) Você percebe que os dois poemas têm mulheres como destinatários?
O de Guinzo a mãe; o de Guilhade, as amigas. Por que, na sua opinião,
isso acontece?

b) Na primeira cantiga, fica clara a situação da mulher vigiada pela mãe,


principalmente em se tratando de coisas de amor. Comente isso.

c) Compare as duas mulheres que falam, no primeiro e no segundo


poema, respectivamente.

dica. utilize o bloco


de anotações para
responder as atividades!

32 SEAD/UEPB I Literatura Portuguesa


Texto 3

As Cantigas Satíricas
A par das cantigas de amigo e das cantigas de amor, as cantigas
satíricas (de escárnio e maldizer) também estão presentes na literatura
galego-portuguesa.
De acordo com a “Arte de Trovar” incluída no Cancioneiro da Bi-
blioteca Nacional, Cantigas de Maldizer são aquelas que os trovadores
fazem mais abertamente; falam mal e de forma chula; e Cantigas de
Escárnio são aquelas que os trovadores fazem querendo dizer mal de
alguém através delas e fazem isso através de palavras disfarçadas, de
duplo sentido, para que não sejam entendidas de imediato... (CBN, Arte
de Trovar, Tit. III, C.VI [linguagem atualizada]).
A alusão mais ou menos direta ao destinatário do ataque constitui,
pois, o elemento que diferencia os dois tipos de cantiga, embora os
próprios trovadores e compiladores dos cancioneiros tenham renun-
ciado a efetuar rigorosamente a distinção entre cantiga de escárnio e
cantiga de maldizer, vazando-as num grupo comum que acolhe qual-
quer composição satírica. A intenção destas cantigas é satirizar certos
aspectos da vida da corte, visando com frequência certas personagens
como jograis, soldadeiras, clérigos, fidalgos, plebeus nobilitados. Ao
mesmo tempo, as cantigas de escárnio e maldizer recriam situações
anedóticas e picarescas e apresentam uma ridicularização do amor
cortês. O repertório linguístico da sátira pessoal, social, moral, religiosa
e política, surpreende pela sua amplitude e recorrente obscenidade,
transmitindo involuntariamente informações ímpares sobre a mentali-
dade e cultura laica medievais. (http://www.infopedia.pt/$cantiga-de-
-escarnio-e-maldizer)

Vamos conhecer, então, uma cantiga satírica, de autoria de D. Afon-


so Mendes de Besteiros3... D. Afonso Mendes de Besteiros – mais um
3

dos muitos trovadores galego-portugueses


do perío-do medieval (século XIII). Não se
conhece muito sobre ele.

Fonte: http://1.bp.blogspot.com/-b5ormQ1NrzA/
TcVhCBHAuAI/AAAAAAAABS0/hDvV1Lvkdzc/
s1600/Trovadores67894.jpg

Literatura Portuguesa I SEAD/UEPB 33


Don Foão, que eu sei que ha preço de Dom Fulano, que eu sei que tem fama
livão, vedes que fez ena guerra (daques- de covarde vejam o que fez durante a
to soo certão): sol que viu os genetes, guerra (disto estou certo): logo que viu
come boi que fer tavão, sacudiu-se os mouros, como boi ferroado por mos-
e revolveu-se, alçou rab’e foi sa vía a cão, sacudiu-se e remexeu-se, le vantou
Portugal. o rabo e fugiu para Portugal.

Don Foão, que eu sei que ha preço de Dom Fulano, que eu sei que tem fama
ligeiro, vedes que fez ena guerra (da- de leviano, vejam o que fez durante a
questo son verdadeiro): guerra (disto estou certo): logo que viu
sol que viu os genetes, come bezerro os mouros, como um bezerro novo,
tenreiro, sacudiu-se e revolveu-se, al sacudiu-se e remexeu-se, levantou o
-çou rab’e foi sa vía a Portugal. rabo e fugiu para Portugal.

Don Foão, que eu sei que ha prez de Dom Fulano, que eu sei que tem fama
liveldade, vedes que fez ena guerra de medroso vejam o que fez durante a
(sabede-o por verdade): sol que viu os guerra - saibam que é verdade: logo
genetes, come can que sal de grade, que viu os mouros, como um cão que
sacudiu-se e revolveu-se, alçou rab’e foi sai da corrente, sacudiu-se e remexeu-
sa vía a Portugal. se, le vantou o rabo e fugiu para Por-
tugal.
http://pt.wikisource.org/wiki/Don_Fo%C3%A3o,
_que_eu_sei_que_ha_pre%C3%A7o_de_
liv%C3%A3o

Atividade III
a) Observe como o autor fala mal do personagem, a quem diz chamar-se Dom
Fulano – ao mesmo tempo que diz que pertence à nobreza, não fala seu nome.
Comente isso.

b) O tema da cantiga está diretamente ligado com que momento histórico


português? Que parte da cantiga lhe informa isso?

dica. utilize o bloco


de anotações para
responder as atividades!

Texto 4

Conheceremos, agora, um pouco da prosa medieval. “A maioria

34 SEAD/UEPB I Literatura Portuguesa


das novelas de cavalaria em língua portuguesa são traduções ou adap-
tações de novelas francesas ou inglesas. Dependendo de quem é o
herói principal da novela, ela faz parte de um dos seguintes ciclos: a)
Ciclo clássico: conjunto de novelas de
cavalaria que narram as façanhas de
heróis da Antiguidade; b) Ciclo caro-
língio ou francês: novelas cujo herói é
Carlos Magno; c) Ciclo arturiano ou
bretão: as novelas deste ciclo são as
mais famosas, adaptadas e traduzi-
das; o herói dessas novelas é o Rei Ar-
tur, sempre acompanhado de seus cé-
lebres cavaleiros da Távola Redonda.
Essa Matéria da Bretanha é uma
Fonte: http://4.bp.blogspot.
das fontes que dão origem às novelas com/_G76NFNcUugU/
de cavalaria portuguesas: tanto que SgUrjx351dI/AAAAAAAAN-8/
O0qEFpFQLtk/s400/
as novelas portuguesas mais impor- galahadhorse.gif
tantes pertencem ao Ciclo Arturiano
ou Bretão, como “José de Arimatéia”,
“História de Merlin” etc. As novelas mais marcantes, porém, são: a) A
Demanda do Santo Graal: narra a busca do cálice sagrado pelo rei
Artur e os cavaleiros da Távola Redonda; b) Amadis de Gaula, (...); c)
Palmeirim de Inglaterra (...).
As novelas de cavalaria portuguesas também são inspiradas nas
Canções de Gesta ou Matéria de França (cantigas que homenageavam
os heróis e seus feitos). A prosa medieval portuguesa, como se pode
concluir, é predominantemente do gênero épico.” (http://pt.wikipedia.
org/wiki/Prosa_medieval)
Leremos um trecho da novela “A Demanda do Santo Graal”, mais
especificamente o capítulo IV, Aparição do Santo Graal:

Literatura Portuguesa I SEAD/UEPB 35


Grande foi a ledice e o prazer que os Grande foi a alegria e o prazer que
cavaleiros da Távola Redonda houverem os cavaleiros da Távola Redonda ti-
aquele dia, quando se virom todos jun- veram aquele dia, quando se viram
tos. E sabede que, depois que a Tá- todos juntos. E sabes que, depois que
vola Redonda foi começada, que nunca a Távola Redonda começou, nunca to-
todos assi forom reunidos; mas, aquele dos foram reunidos assim; mas aquele
dia, sem falha, aveio que forom i todos, dia, sem falhar, aconteceu que foram
mas depois nunca i er forom. todos, mas depois nunca mais foram
Contra a noite, depois de vésperas, de novo.
quando se assentarom às mesas, ou- No início da noite, depois das seis
virom vir um torvão, tão grande e tão horas, quando se assentaram ás me-
espantoso, que lhe semelhou que todos sas, ouviram um grande trovão, tão
o paço caía. grande e espantoso que pareceu a to-
E logo depois que o torvão deu, en- dos que o palácio caía.
trou uma tão grande claridade que fez o E logo depois do trovão, entrou um
paço dois tanto mais claro ca era ante. claridade tão grande que fez o palácio
E quantos no paço estavam, logo todos duas vezes mais iluminado do que era
foram compridos da graça do Espírito antes.
Santo e começarom-se a catar uns aos E todos quantos estavam no palácio
outros, e virom-se mui mais fremosos foram cobertos pela graça do Espírito
mui grã peça que soíam a ser, e maravi- Santo e começaram a buscar únicos
lharom-se ende muito desto que aveio, aos outros, e viram-se muito mais for-
e non houve i tal que pudesse falar por mosos e de uma graça muito maior do
uma grã peça, ante estavam calados e que poderiam ser, e se maravilharam
catavam-se uns aos outros. muito disto, e não houve aí ninguém
E eles assi sendo, entrou no paço o que pudesse falar por um bom tempo,
Santo Graal, coberto de um eixamete estavam todos calados e buscavam-se
branco, mas nom houve i tal que visse únicos aos outros.
quem no tragia. E, tanto entrou i, foi o E eles estando assim, entrou no palá-
paço todo comprido de bom odor, como -cio o Santo Graal, coberto por um
se tôdalas espécies do mundo i fossem. tecido branco, mas ninguém viu quem
E ele foi por meio do paço de uma o trazia. E, logo que entrou, foi o palá-
parte e da outra e arredor das mesas. cio todo preenchido de bom perfume,
E por u passava, logo tôdalas mesas como se todas as espécies [aromáti-
eram compridas de manjar, qual em seu cas] do mundo aí estivessem.
coraçom desejava cada um. E depois E ele foi pelo meio do palácio, de
houve cada um o que houve mester a uma parte a outra e ao redor das me-
seu prazer. sas. E por onde passava, logo todas
Saiu-se o Santo Graal do paço, que as mesas eram cobertas de manjar, de
nenhum nom soube que fora dele nem acordo com o que desejava o cora-
por qual porta saíra. E os que ante nom ção de cada um. E depois teve cada
podiam falar falarom então. E derom um o que precisava para o seu prazer.
graças a Nosso Senhor, que lhes fazia Saiu o Santo Graal do palácio que
tão grande honra e que os assi conforta- ninguém soube o que fora dele nem
ra e avondara da graça do Santo Vaso. por qual porta saíra. E os que antes
Mas sobre todos aqueles que ledos não podiam falar falaram então. E de-
e-ram, mais o era o rei Artur, porque ram graças a Nosso Senhor, que lhes
maior mercê lhe mostrara Nosso Senhor fazia tão grande honra e que assim os
que a nenhum rei, que ante reinasse em confortara e enchera da graça do San-
Logres. to Vaso.
Mas, mais do que aqueles que esta-
[http://pt.scribd.com/doc/5710150/FInf-LitPort- vam felizes, estava o rei Artur, porque
Textos-Medievais-Demanda-do-Graal] Nosso Senhor lhe mostrara maior fa-
vor que a nenhum outro rei que antes
reinara em Logres.

36 SEAD/UEPB I Literatura Portuguesa


Atividade IV

Observe, no trecho acima, como a religiosidade está presente nos textos


medievais em prosa. Compare esta narrativa com Atos dos Apóstolos, cap. 2, dica. utilize o bloco
vers. 1-8. Escreva em seguida sua opinião sobre o assunto. de anotações para
responder as atividades!

Resumo

Vimos nesta unidade alguns textos medievais. Percebemos que tanto


as cantigas lírico-amorosas e satíricas, quanto as novelas de cavalaria
são a expressão de sentimentos presentes no homem da Idade Média,
em Portugal. Mas também expressam a forma de relacionamento so-
cial, a posição da mulher na sociedade, além das crenças e conquistas
guerreiras. As cantigas de amor falam de uma situação de conquista
masculina: assim como o guerreiro conquistava novas terras, o trova-
dor conquistava a dama, só que, para isso, ele se mostrava como seu
vassalo, seu escravo – o que nem sempre correspondia à realidade.
Nas cantigas de amigo (de autoria masculina), temos a voz feminina
expressando seu sentimento de saudade do amado, mas sem se dirigir
diretamente a ele, falando à natureza, à mãe ou às amigas. Nas canti-
gas satíricas, o picaresco, o humorístico, o chulo são bem marcantes. E
nas novelas de cavalaria, a forte presença da Reconquista e da religio-
sidade, marcantes nesse período histórico português.

Literatura Portuguesa I SEAD/UEPB 37


Autovaliação
Com o objetivo de se autoavaliar, no que se relaciona à presente aula, você
pode observar se:

• conseguiu analisar adequadamente os textos apresentados.

• entendeu as diferenças formais e temáticas entre uma cantiga de


amigo e uma cantiga de amor.

• percebeu como os poetas satíricos criticam através das cantigas de


dica. utilize o bloco escárnio e de maldizer.
de anotações para
responder as atividades! • compreendeu a forte presença da religiosidade e das lutas pela
Reconquista do território português, a partir da leitura da novela de
cavalaria.

Referências
Internet:

http://pt.scribd.com/doc/5710150/FInf-LitPort-Textos-Medievais-
Demanda-do-Graal

http://pt.wikipedia.org/wiki/Paio_Soares_de_Taveir%C3%B3s

http://pt.wikisource.org/wiki/Quer%27eu_em_maneira_de_
proen%C3%A7al

http://rosabe.sites.uol.com.br/trovad.htm

http://www.filologia.org.br/pub_outras/sliit02/sliit02_99-109.html

http://www.gargantadaserpente. com/historia/trovadorismo/prosa.
shtml

38 SEAD/UEPB I Literatura Portuguesa


III UNIDADE

Humanismo: crônicas

Literatura Portuguesa I SEAD/UEPB 39


Torre do Tombo, em Portugal, é um arquivo nacional
Fonte: http://1.bp.blogspot.com/-bX9XKDMrbqo/

TVk64-fGfVI/AAAAAAAABHM/Pt4OFOlHjbw/s1600/2005-02-03-419.jpg

Apresentação
Como afirma José de Nicola, “a Segunda Época Medie-
val ou Humanismo corresponde ao período que vai desde
a nomeação de Fernão Lopes para o cargo de cronista-mor
da Torre do Tombo, em 1434, até o retorno de Sá de Miranda
da Itália, no ano de 1527, quando introduziu em Portugal a
estética clássica.
O Humanismo foi um período muito rico para o desen-
volvimento da prosa, graças ao trabalho dos cronistas, no-
tadamente de Fernão Lopes, considerado o iniciador da his-
toriografia portuguesa. Outra manifestação importantíssima
que se desenvolveu no Humanismo, já no início do século
XVI, foi o teatro popular, com a produção de Gil Vicente. A
poesia, por outro lado, conheceu um período de decadên-
cia nos anos de 1400, estando toda a produção poética do
período ligada ao Cancioneiro Geral, organizado por Gar-
cia de Resende; essa poesia, por se desenvolver no ambiente
palaciano, é conhecida como poesia palaciana.

40
4 0 SEAD/UEPB I Literatura Portuguesa
Tanto as crônicas históricas como o próprio teatro vi-
centino estão intimamente relacionados com as profundas
transformações políticas, econômicas e sociais verificadas
em Portugal no final do século XIV e em todo o século XV.”
(NICOLA, José de. Literatura Portuguesa – das origens aos
nossos dias. São Paulo: Scipione, 1999, p. 51).
É isso, então, que vamos estudar nesta unidade.
Vamos lá?!

Objetivos
É nosso desejo que, ao final desta unidade, você consiga:
• compreender os aspectos que levaram a sociedade, e especial-
mente a literatura, a assumir um caráter mais antropocêntrico,
no século XV;
• identificar algumas das características estilísticas mais marcan-
tes do cronista Fernão Lopes;
• perceber as implicações sociais e políticas das crônicas de Fer-
não Lopes.

Literatura Portuguesa I SEAD/UEPB 41


Texto 1

Para iniciarmos, conheçamos um pouco do período histórico de


transição, de um Portugal caracterizado por valores essencialmente me-
dievais para uma nova realidade, marcada pelo mercantilismo e pela
ascensão de ideais burgueses. Leremos dois textos, retirados da internet.

O homem em busca da liberdade


Este momento histórico-social é tido como um período
de transição. Marca a passagem do fim da Idade Média
para a Idade Moderna.
Com o crescimento das cidades e do comércio, o re-
gime feudal enfraqueceu. Os servos podiam vender sua
colheita e conseguir dinheiro para pagar os serviços que
deviam ao senhor feudal; podiam ir para a cidade ou co-
nhecer novas terras. O desejo de liberdade se concretiza-
va. Os senhores feudais, aos poucos, foram perdendo suas
terras e seus servos. Neste momento, o rei, que era uma
autoridade simbólica, fortalece-se, à medida que se aliava
a uma classe social emergente, a burguesia, formada por
artesãos e comerciantes, detentores do dinheiro, que vi-
viam nas cidades.
No momento em que o rei consegue centralizar o poder,
tendo como alicerce a teoria do direito divino, à igreja Ro-
mana interessa defender a estrutura feudal, por possuir uma
quantidade bastante grande de terras. Com isso, a igreja dei-
xou de ser a única responsável pelo monopólio da cultura,
formando-se bibliotecas fora dos mosteiros e dos conventos.
São também frutos dessa época os humanistas, ho-
mens cultos e admiradores da cultura antiga. Eram indi-
vidualistas, davam maior importância aos direitos de cada
indivíduo do que à sociedade. Acreditavam no progresso,
rejeitando a hierarquia feudal.
Através do contexto histórico, podemos perceber que
o homem da época rompe com o sistema feudal e com
a visão teocêntrica do mundo determinada pela igreja e
vai em busca de si mesmo, de novas descobertas e novos
valores. O homem começa a se valorizar, sem, contudo,
abandonar por completo o temor a Deus e a submissão.
A literatura, como está intimamente engajada no mo-
mento histórico-social, vai gerar produções literárias que re-
fletem esse período conflitante no qual o homem do século
XV viveu.
(http://www.portalsaofrancisco.com.br/alfa/humanis-
mo/humanismo-6.php)

42 SEAD/UEPB I Literatura Portuguesa


No final do século XV, a Europa passava por grandes
mudanças, provocadas por invenções como a bússola,
pela expansão marítima que incrementou a indústria naval
e o desenvolvimento do comércio com a substituição da
economia de subsistência, levando a agricultura a se tor-
nar mais intensiva e regular. Deu-se o crescimento urbano,
especialmente das cidades portuárias, o florescimento de
pequenas indústrias e todas as demais mudanças econô-
micas provenientes do Mercantilismo, inclusive o surgimen-
to da burguesia.
Todas essas alterações foram agilizadas com o surgi-
mento dos humanistas, estudiosos da cultura clássica anti-
ga. Alguns eram ligados à Igreja; outros, artistas ou histo-
riadores, independentes ou protegidos por mecenas. Esses
estudiosos tiveram uma importância muito grande porque
divulgaram, de forma mais sistemática, os novos conceitos,
além de que identificaram e valorizaram direitos dos cida-
dãos. Acabaram por situar o homem como senhor de seu
próprio destino e elegeram-no como a razão de todo co-
nhecimento, estabelecendo para ele um papel de destaque
no processo universal e histórico.
Essas mudanças na consciência popular, aliadas ao
fortalecimento da burguesia, graças à intensificação das
atividades agrícolas, industriais e comerciais, foram, lenta
e gradativamente, minando a estrutura e o espírito medie-
vais.
Em Portugal, todas essas alterações se fizeram sentir,
evidentemente, ainda que algumas pudessem chegar ali
com menor força ou, talvez, difusas, sobretudo porque o
impacto maior vivido pelos portugueses foi proporciona-
do pela Revolução de Avis (1383-1385), na qual D. João,
mestre de Avis, foi ungido rei, após liderar o povo contra
injunções de Castela.
Alguns fatores ligados a esse quadro histórico indicam
sua influência no rumo que as manifestações artísticas to-
maram em Portugal. São eles: as mudanças processadas
no país pela Revolução de Avis; os efeitos mercantilistas; a
conquista de Ceuta (1415), fato que daria início a um sé-
culo de expansionismo lusitano; o envolvimento do homem
comum com uma vida mais prática e com menos lirismo
cortês; o interesse de novos nobres e reis por produções
literárias diferentes do lirismo. Tudo isso explica a restrição
do espaço para o exercício e a manifestação da imagi-
nação poética, a marginalização da arte lírica e o fim do
Trovadorismo. A partir daí, o ambiente se tornou mais pro-
pício à crônica e à prosa histórica, ao menos nas primeiras
décadas do período.
http://www.profabeatriz.hpg.ig.com.br/literatura/hu-
manismo.htm

Literatura Portuguesa I SEAD/UEPB 43


Atividade I

Leia outra vez estes dois trechos de textos retirados da internet, acrescente
outras leituras que você encontrar sobre o assunto, e comente as questões
levantadas a seguir:

a) A luta do homem sempre foi a luta pela sua liberdade, seja em que contexto
for. Até então, em Portugal, temos a época medieval, em que o homem era
escravo de uma hierarquia social rígida e de conceitos religiosos bastante
fortes. Comente a gradativa conquista da liberdade desse homem medieval,
que terminou por fazer brotar e se consolidar o movimento humanista.

b) Alguns termos presentes no texto acima, por si, já explicam e situam de forma
precisa o homem e a sociedade desse período. Pesquise seu significado e
procure comentar a importância desses termos na conjuntura humanista
portuguesa:

a. Regime feudal
b. Burguesia
c. Mercantilismo
d. Mecenas
e. Revolução de Avis
dica. utilize o bloco
de anotações para
responder as atividades!

Em suma...
O período que estamos estudando é de transição, entre a Idade
Média e a Idade Moderna. Mais que qualquer coisa, esse período sig-
nifica uma transformação radical no modo de o homem pensar, nos
seus valores, nas suas crenças. Há uma gradativa mudança no centro
dos interesses, que passa da religiosidade à materialidade, da alma ao
corpo, de Deus ao homem. Por isso, dizemos que o Humanismo é uma
espécie de preparação para o momento literário seguinte, que é essen-
cialmente antropocêntrico, ou seja, o homem é o centro de tudo. No
Humanismo, há uma nítida opção pelo texto em prosa, notadamente a
crônica, gênero textual que procura registrar os feitos e acontecimentos
do reino. O primeiro grande cronista foi Fernão Lopes, razão por que
costuma-se iniciar o Humanismo com sua nomeação para esse cargo.

44 SEAD/UEPB I Literatura Portuguesa


Texto 2

Vamos conhecer agora um pouco de Fernão Lopes, o primeiro


grande cronista português.

Fernão lopes
Não se sabe muita coisa da vida de
Fernão Lopes: apenas que foi funcioná-
rio do palácio real e notário (espécie
de tabelião), tendo sido nomeado cro-
nista-mor do Reino por dom Duarte em
1434; escreveu as crônicas dos reis D.
Pedro I, D. Fernando e a 1ª e 2ª partes
da de D. João.
Na internet, podemos encontrar al-
guns dados interessantes sobre Lopes:
Do ponto de vista da forma, o seu
estilo representa uma literatura de ex-
pressão oral e raiz popular. Ele próprio
diz que nas suas páginas não se encon-
tra a formosura das palavras, mas a
nudez da verdade. Era um autodidata.
Foi um dos legítimos representantes do
saber popular, mas já no seu tempo um
novo tipo de saber começava a surgir:
de cunho erudito-acadêmico, humanis-
ta, classicizante. Fonte: http://upload.wikimedia.org/wikipedia/
commons/2/2f/Fernao_Lopes.jpg
Ocupa, entre a série dos cronistas
gerais do Reino, um lugar de destaque,
quer como artista quer pela sua maneira de interpretar os
fatos sociais. Fernão Lopes poderá ter nascido entre 1378
e 1390, aproximadamente, visto que em 1418 já ocupava
funções públicas de responsabilidade (era Guardião-mor
das escrituras da Torre do Tombo). (...)
Profissionalmente, Fernão Lopes era um tabelião (...).
Foi empregado da família real e da corte, escrivão de D.
Duarte, ainda infante, do rei D. João I, e do infante D.
Fernando, em cuja casa ocupou o importante posto de «es-
crivão da puridade», que correspondia ao cargo de maior
confiança pessoal concedido pela alta nobreza. A partir de
1418 aparece a desempenhar as funções de Guarda-mor
da Torre do Tombo, encarregado de guardar e conservar os
arquivos do Estado, lugar de confiança da Corte. (...). Em
1454, foi reformado do cargo de Guarda-mor da Torre do
Tombo devido à sua idade. Ainda vivia em 1459, segundo
atesta um documento de transmissão de sua herança.
Literatura Portuguesa I SEAD/UEPB 45
Durante este longo período de atividade, Fernão Lopes
atravessou os reinados de D. João I, D. Duarte, o governo
de D. Pedro e parte do reinado de D. Afonso V. Conheceu
muitas alterações políticas e sociais. Ao rei eleito e popular,
D. João I, viu suceder um rei mais dominado pela aristo-
cracia, D. Duarte; viu crescer o poder feudal dos filhos de
D. João I, e com ele o predomínio da nobreza, que saíra
gravemente abalada da crise da independência. Assistiu à
guerra civil subsequente à morte de D. Duarte, à insurrei-
ção de Lisboa contra a rainha viúva D. Leonor, e à eleição
do infante D. Pedro por esta cidade, e em seguida pelas
cortes, para o cargo de Defensor e Regedor do Reino, em
circunstâncias muito parecidas com as que tinham levado
o mestre de Avis ao mesmo cargo e seguidamente ao trono
em 1383-1385. Assistiu depois à reação do partido da
nobreza, à queda do infante D. Pedro, à sua morte na san-
grenta batalha de Alfarrobeira, à perseguição e dispersão
dos seus partidários, ao triunfo definitivo da nobreza, no
reinado. Foi testemunha do início da expansão ultramarina
(...).
Fernão Lopes viveu uma das épocas mais perturbadas
da História de Portugal, cheia de ensinamentos para o his-
toriador. A carreira de Fernão Lopes como historiador é
provavelmente a mais longa do que há pouco se supôs,
pois é provável que já em 1419 realizasse por encargo do
então infante D. Duarte a compilação e redação de uma
crônica geral do reino de Portugal. (...). Em 1449, pouco
antes da batalha de Alfarrobeira, ainda recebe um paga-
mento de D. Afonso V pelos seus trabalhos historiográfi-
cos, mas já nessa época entrara em atividade um outro
cronista, Gomes Eanes de Zurara. A última obra em que
Fernão Lopes trabalhou, a “Crônica de D. João I”, embora
monumental, ficou incompleta e foi continuada por Zurara
(a Crônica estava dividida em 3 partes das quais Fernão
Lopes só pode escrever as duas primeiras).
http://pt.wikipedia.org/wiki/Fern%C3%A3o_Lope

Uma crônica...
Vamos conhecer um trecho de uma crônica escrita
por Fernão Lopes, enfocando um momento da vida de
D. Pedro I. Como nos diz Moisés (2002, p. 47-8), “filho
de Afonso IV, D. Pedro I reinou entre 1357 e 1367. Aos
vinte anos, casou-se com D. Constança, filha do Infan-
te João Manuel, regente de Castela. Entre as damas de

46 SEAD/UEPB I Literatura Portuguesa


companhia de D. Constança contava-se
Inês de Castro, filha do fidalgo galego
Pedro Fernandes de Castro, da qual D.
Pedro logo se apaixonou. Mas seu pai,
que então reinava, interpôs-se. Com o
falecimento de D. Constança, em 1345,
os enamorados passaram a entreter li-
vremente os seus amores. Todavia, o rei
se deixa convencer por seus conselheiros
a permitir o assassínio de Inês, que se
consumou a 7 de janeiro de 1355. Enfu-
recido de dor e de indignação, D. Pedro,
quando já erguido ao trono, conseguin-
do aprisionar os matadores de Inês, or-
denou que morressem com tal sadismo
que ele acabou merecendo os epítetos
de “O Cruel” e “O justiceiro”. Nem por
Fonte: http://1.bp.blogspot.com/_yelE-Rz9S9g/S6pWjn0-4tI/
isso amainaram as saudades de Inês: tor- AAAAAAAAAFc/M8lhVhEYSrE/s1600/PEDRO_~1.JPG
turado pela ausência, passava noites e noites de horrores
e pressentimentos, de que se julgava livrar saindo às ruas
para dançar e confraternizar com o povo. É precisamente
uma cena como essa que se vai ler a seguir:

Em três cousas, assinadamente, achamos, pela mor


parte, que el-Rei D. Pedro de Portugal gastava seu tem-
po. A saber: em fazer justiça e desembargos do Reino; em
monte e caça, de que era mui querençoso; e em danças e
festas segundo aquele tempo, em que tomava grande sa-
bor, que adur é agora para ser crido. E estas danças eram
a som de umas longas que então usavam, sem curando de
outro instrumento, posto que o aí houvesse; e se alguma
vez lho queriam tanger, logo se enfadava dele e dizia que
o dessem ao demo, e que lhe chamassem os trombeiros.
Ora deixemos os jogos e festas que el-Rei ordenava
por desenfadamento, nas quais, de dia e de noite, andava
assinadamente = notadamente;
dançando por mui grande espaço; mas vede se era bem pela mor parte = principalmente;
saboroso jogo. Vinha el Rei em batéis de Almada para Lis- monte de caça = caça graúda, grande;
boa, e saíam-no a receber os cidadãos, e todos os dos querençoso = apreciador;
mesteres, com danças e trebelhos, segundo então usavam, tomava grande sabor = gostava muito;
e eis saia dos batéis, e metia-se na dança com eles, e as- adur = apenas;
sim até o paço. longas = trombetas longas;
sem curando de = não usando;
Parai mentes se foi bom sabor: jazia el-Rei em Lisboa batéis = barcos;
uma noite na cama, e não lhe vinha sono para dormir. E fez os dos mesteres = os trabalhadores;
levantar os moços, e quantos dormiam no paço; e mandou trebelhos = jogos;
chamar João Mateus e Lourenço Palos, que trouxessem as paço = palácio;
trombas de prata. E fez acender tochas, e meteu-se pela parai mentes se foi bom sabor = considerai
se foi coisa agradável;
vila em dança com os outros.
guisa = maneira;
ledo = alegre;
tornou-se = voltou.

Literatura Portuguesa I SEAD/UEPB 47


As gentes, que dormiam, saíam às janelas, a ver que
festa era aquela, ou por que se fazia; e quando viram da-
quela guisa el-Rei, tomaram prazer de o ver assim ledo.
E andou el-Rei assim gram parte da noite, e tornou-se ao
paço em dança, e pediu vinho e fruta, e lançou-se a dor-
mir.

MOISÉS, Massaud. A literatura portuguesa através dos textos. 28. ed. São Paulo: Cultrix,
2002, p. 47-8

Atividade II
a) Costuma-se caracterizar as crônicas de Fernão Lopes como regiocêntricas
(por centralizar-se nas ações do rei), políticas (por abordar a face
política de algumas ocorrências) e psicológicas (por se preocupar com a
sondagem do interior do monarca). Neste trecho, podemos perceber bem
duas dessas características. Localize-as e as comente.

b) Como você vê a participação do povo na narrativa de Fernão Lopes?

c) Observe como o narrador é detalhista, ao contar os fatos. É como se


ele estivesse com uma câmera, filmando tudo que acontece, relatando
fielmente o que vê. Comente isso.

dica. utilize o bloco


de anotações para
responder as atividades!

48 SEAD/UEPB I Literatura Portuguesa


Sugestão de filme
Inês de Castro (1944)
A lenda conta o des-
vario de um rei que es-
quece o povo para se
afundar nos olhos belos
duma beleza galega,
mas os amores de Pedro
e Inês, tal como a histó-
ria os refere, são uma
teia de intrigas políticas
em que a Castro serviu
interesses estranhos, e os
seus matadores, os sobe-
ranos desejos da Nação Portuguesa. Leitão de Barros decide por isso,
apesar de colocar no seu filme todos os fatos históricos, dar maior relevo
à lenda dos amores proibidos de Pedro e Inês. Por isso nunca se chega
a definir bem o caráter do Senhor de Ferreira, Diogo Lopes Pacheco ou
o de Álvaro Gonçalves, que umas vezes nos aparecem friamente como
simples assassinos, e outras como homens honrados que só queriam o
bem da nação. No entanto, apesar de tudo, é um filme cheio de momen-
tos vibrantes, imponentes garantindo assim a plena aceitação do público
e crítica. Elenco: Antonio Vilar, Alicia Palacios, Maria Dolores Pradera,
João Vilarete, Erico Braga, Raul de Carvalho, Alfredo Ruas, Gregorio
Beorlegui. Direção: José Leitão de Barros. Duração: 101 min.

Resumo
Pudemos observar, nesta unidade, o quanto a capacidade artístico-
literária de um escritor do nível de Fernão Lopes é capaz de produzir
uma obra que ultrapassa os séculos, e nos chega como importante
legado na construção da historiografia portuguesa, de quem o cronista
é considerado o “pai”. Clichês à parte, vale a pena observar o estilo
de Lopes, as inovações presentes em suas crônicas, a análise psicoló-
gica que realiza, as preocupações político-sociais nas abordagens dos
acontecimentos, a presença do povo como elemento também constru-
tor dessa História, embora a regiocentricidade medieval ainda esteja
muito presente em seus textos. Não podemos esquecer que este é um
período de transição, trazendo, portanto, elementos medievais mescla-
dos a novidades que se consolidarão no período seguinte.

Literatura Portuguesa I SEAD/UEPB 49


Autovaliação
Chegamos, então, ao momento em que você mesmo pode aquilatar seus
conhecimentos sobre os assuntos abordados nesta aula. Repare se você:

• Compreendeu os aspectos que levaram a sociedade, e especialmente


a literatura, a assumir um caráter mais antropocêntrico, no século XV;

• Consegue identificar algumas das características estilísticas mais


marcantes do cronista Fernão Lopes;

• Percebeu as implicações sociais e políticas das crônicas de Fernão


Lopes.

dica. utilize o bloco


de anotações para
responder as atividades!

Referências
MOISÉS, Massaud. A literatura portuguesa através dos textos. 28. ed.
São Paulo: Cultrix, 2002

NICOLA, José de. Literatura Portuguesa – das origens aos nossos dias. São
Paulo: Scipione, 1999

Web:

http://pt.wikipedia.org/wiki/Fern%C3%A3o_Lopes

http://www.profabeatriz.hpg.ig.com.br/literatura/humanismo.htm

50 SEAD/UEPB I Literatura Portuguesa


IV UNIDADE

Classicismo:
a poesia épica de Camões
Literatura Portuguesa I SEAD/UEPB 51
Apresentação
A Europa viveu um
período característico,
que efetivou a transição
da Idade Média para
a Idade Moderna. É o
que se chamou de Re-
nascimento, em função
da redescoberta, da re-
valorização de aspectos
da antiguidade clássica,
que direcionaram as
mudanças desse perío-
do para um ideal huma-
nista e naturalista.
“O Renascimento
Sá de Miranda
cultural manifestou-se Fonte: http://sp1.fotolog.com/photo/17/47/62/
primeiro na região ita- kincaid/1197052156_f.jpg

liana da Toscana, tendo


como principais centros as cidades de Florença e Siena, de
onde se difundiu para o resto da península itálica e depois
para praticamente todos os países da Europa Ocidental,
impulsionado pelo desenvolvimento da imprensa de Johan-
nes Gutemberg. A Itália permaneceu sempre como o local
onde o movimento apresentou maior expressão (...)” (http://
pt.wikipedia.org/wiki/Renascimento), mas as ideias renas-
centistas espalharam-se rapidamente.
Um poeta português chamado Francisco Sá de Miranda es-
teve na Itália durante 8 anos, nessa época, e levou o movi-
mento para Portugal, em 1527; aqui, chamou-se Classicis-
mo, numa clara referência aos clássicos em que os autores
iam beber para suas composições.
É nesse período que surge uma das mais importantes
52
2 SEAD/UEPB I Literatura Portuguesa
figuras da literatura portuguesa: Luís Vaz de Camões, poeta
lírico, sonetista, mas principalmente épico, autor de “Os Lu-
síadas”, a epopéia portuguesa de maior destaque.
Nesta unidade, nós nos ocuparemos desse poeta, abor-
dando um pouco sua vida e a influência que seu jeito de
viver teve no que compôs; e, claro, falando sobre sua obra-
prima, que conta a História de Portugal, através do recurso
narrativo da viagem de Vasco da Gama para as Índias.
Vamos lá?!

Objetivos

Ao final da unidade, esperamos que você consiga:

• Identificar as principais características da literatura produzida


em Portugal na época do Renascimento europeu;
• Relacionar aspectos da vida de Camões à produção de sua
obra;
• Analisar trechos do poema épico camoniano “Os Lusíadas”,
bem como sonetos líricos deste poeta;

Literatura Portuguesa I SEAD/UEPB 53


Texto 1
Bem, para iniciarmos, vamos conhecer a vida de Luís de
Camões.
Na verdade, a vida de
Camões ainda representa
uma incógnita em muitos
aspectos. Nasceu pro-
vavelmente em 1524 ou
1525, em Lisboa, Alen-
quer, Coimbra ou Santa-
rém – as quatro cidades
reivindicam o nascimento
do poeta. De família fi-
dalga da Galiza (era filho
de Simão Vaz de Camões
e de Ana de Sá de Ma-
cedo), é possível que na
juventude tenha frequen-
tado a Corte e talvez a
Universidade de Coim-
bra, mas não há registro
de sua passagem nesta Fonte: http://upload.wikimedia.org/wikipedia/commons/f/f3/
Cam%C3%B5es%2C_por_Fern%C3%A3o_Gomes.jpg
instituição. Nesse tempo,
travaria contato com escri-
tores antigos e modernos, como Homero, Virgílio, Ovídio, Petrarca,
Boscán, Garcilaso e outros.
Segundo a Wikipedia, “vivia uma vida boêmia e turbulenta. (...)
Os testemunhos dos seus contemporâneos descrevem-no como um
homem de porte mediano, com um cabelo loiro arruivado, cego do
olho direito, hábil em todos os exercícios físicos e com uma disposição
temperamental, custando-lhe pouco engajar-se em brigas. Diz-se que
tinha grande valor como soldado, exibindo coragem, combatividade,
senso de honra e vontade de servir, bom companheiro nas horas de
folga, liberal, alegre e espirituoso quando os golpes da fortuna não lhe
abatiam o espírito e entristeciam. Tinha consciência do seu mérito como
homem, como soldado e como poeta” (fonte: http:// pt.wikipedia.org/
wiki/Lu%C3%ADs_de_Cam%C3%B5es).
Afirma Moisés que, ”graças aos dotes pessoais, é de crer que hou-
vesse motivado paixão em D. Maria, filha de d. Manuel e irmã de D.
João III, e em Catarina de Ataíde (que aparece em sua poesia sob o
anagrama de Natércia). Talvez por isso afasta-se do convívio palacia-
no, até que segue para Ceuta, em 1549, como soldado. Perdendo um
olho em batalha, regressa a Lisboa, e na procissão de Corpus Christi
(1552), fere Gonçalo Borges, servidor do Paço. Escapando da prisão
sob promessa de engajar-se no corpo de tropa sediado no Oriente,
viaja para a Índia em 1553.” (MOISÉS, Massaud. A literatura portuguesa
através dos textos. 28. ed. São Paulo: Cultrix, 2002, p. 81)

54 SEAD/UEPB I Literatura Portuguesa


Nicola diz que “teve início assim uma longa jornada de 17 anos,
em que o poeta viveu nas colônias portuguesas da África e da Ásia,
chegando a morar em Macau, colônia portuguesa na China. Foram
anos de dificuldades e algumas passagens pela cadeia”. (NICOLA,
José de. Literatura Portuguesa – das origens aos nossos dias. São Paulo:
Scipione, 1999, p. 77)
Moisés relata que, “em 1556, dá baixa e assume o cargo de ‘pro-
vedor dos bens de defuntos e ausentes’ em Macau, onde teria compos-
to parte dOs Lusíadas. Acusado de prevaricar, vai a Goa para defen-
der-se, mas naufraga na foz do rio Mecon, ocasião em que, segundo
a lenda, salvou ‘Os Lusíadas’ e perdeu Dinamene, sua companhei-
ra. Em Goa, é preso e solto (1563). Em 1567 está em Moçambique,
novamente encarcerado por dívidas. Liberto, vive miseravelmente, até
que Diogo do Couto consegue propiciar-lhe condições de regresso à
Pátria. Lá chega em 23 de abril de 1569; em 1572 dá a público Os
Lusíadas, pelo que passa a fazer jus a uma pensão der 15.000 réis anu-
ais” (MOISÉS, Massaud. A literatura portuguesa através dos textos. 28. ed.
São Paulo: Cultrix, 2002, p. 81). Esse auxílio foi concedido pelo rei D.
Manuel, a quem fora dedicado o poema, valor que não recebeu com
regularidade. Camões morreu pobre e abandonado, em 10 de junho
de 1580, sendo enterrado como indigente, em vala comum.
“Logo após a sua morte a sua obra lírica foi reunida na coletânea
Rimas, tendo deixado também três obras de teatro cômico. Enquanto
viveu queixou-se várias vezes de alegadas injustiças que sofrera, e da
escassa atenção que a sua obra recebia, mas pouco depois de falecer
a sua poesia começou a ser reconhecida como valiosa e de alto padrão
estético por vários nomes importantes da literatura europeia, ganhando
prestígio sempre crescente entre o público e os conhecedores e influen-
ciando gerações de poetas em vários países. Camões foi um renovador
da língua portuguesa e fixou-lhe um duradouro cânone; tornou-se um
dos mais fortes símbolos de identidade da sua pátria e é uma referên-
cia para toda a comunidade lusófona internacional. Hoje a sua fama
está solidamente estabelecida e é considerado um dos grandes vultos
literários da tradição ocidental, sendo traduzido para várias línguas e
tornando-se objeto de uma vasta quantidade de estudos críticos.” (fon-
te: http://pt.wikipedia.org/wiki/Lu%C3%ADs_de_Cam%C3%B5es)

Atividade I dica. utilize o bloco


de anotações para
a) De que forma você acha que essa vida atribulada de Luís de Camões responder as atividades!
contribuiu para a excelência de sua poesia? Ou acha que nada tem a ver?

Literatura Portuguesa I SEAD/UEPB 55


b) Pode-se verificar sua
bravura como soldado ou
sua frustração ao não ser
reconhecido, em vários
trechos de “Os Lusíadas”.
O que você acha de o
poeta transpor para sua
obra características e
pensamentos de si próprio?

dica. utilize o bloco Fontes: http://upload.wikimedia.


de anotações para org/wikipedia/commons/0/0d/
responder as atividades! Os_Lus%C3%ADadas.jpg

“Os lusíadas”
(...) Os Lusíadas, que narra a aventura marítima de Vasco da Gama,
é a grande epopéia do povo lusitano. Publicada em 1572, o poema
é considerado o maior poema épico da língua portuguesa. Evidente-
mente não por conter 8816 versos decassílabos distribuídos em 1102
estrofes de oito versos cada, mas pelo seu valor poético e histórico.
Para a melhor compreensão do poema, levantaremos a seguir al-
guns dos seus aspectos fundamentais:
• Título – Camões foi buscar a palavra lusíadas numa epístola
escrita por André de Resende, em 1531. A palavra significa ‘lu-
sitanos’ e, como afirma Hernâni Cidade, é ‘um nome que logo
nos anuncia a história heróica de todo um povo. Os Lusíadas
são os próprios lusos, em sua alma como em sua ação.’
• Herói – O herói de Os Lusíadas não é apenas Vasco da Gama,
como se poderia pensar numa leitura mais superficial, mas sim
todo o povo português (do qual Vasco da Gama é digno repre-
sentante). O próprio poeta afirma que vai cantar ‘as armas e os
barões assinalados’ que ‘navegaram por mares nunca dantes
navegados’. Ou seja, todo o povo lusitano navegador que en-
frenta a morte pelos mares desconhecidos (lembre-se de que
corriam várias lendas sobre o Mar Tenebroso). Mas consideran-
do-se o papel desempenhado por Vasco da Gama no poema,
poderíamos afirmar, sim, que ele é o herói de Os Lusíadas.

56 SEAD/UEPB I Literatura Portuguesa


Conciliando as duas ideias, podemos afirmar que o poema
apresenta um herói coletivo, que é todo o povo português, in-
dividualizado na figura de Vasco da Gama, que seria assim o
herói individual.
• Tema – O poeta deixa expresso o tema da epopéia já nas duas
primeiras estrofes: a glória do povo navegador português, isto é, os
navegadores que conquistaram as Índias e edificaram o Império
Português no Oriente (‘E entre gente remota edificaram / Novo
Reino, que tanto sublimaram’), bem como as memórias dos reis
portugueses que tentaram ampliar o império (‘E também as me-
mórias gloriosas / Daqueles reis que foram dilatando / A Fé, o
Império...’). Portanto, Camões cantará as conquistas de Portu-
gal, as glórias dos navegadores, os reis do passado; em outras
palavras, a história de Portugal.
(NICOLA, José de. Literatura Portuguesa – das origens aos nossos dias. São Paulo: Scipione, 1999,
p. 82-3)

Vamos transcrever, aqui, um episódio de “Os Lusíadas”, que trata


de algo que já foi mencionado na unidade passada, quando líamos a
crônica de Fernão Lopes: a morte de Inês de Castro, a amante do rei
D. Pedro I.
CANTO III
(...)

120 O velho pai sesudo, que respeita


O murmurar do povo, e a fantasia
Estavas, linda Inês, posta em sossego, Do filho, que casar-se não queria,
De teus anos colhendo doce fruto,
Naquele engano da alma, ledo e cego, 123
Que a fortuna não deixa durar muito,
Nos saudosos campos do Mondego, Tirar Inês ao mundo determina,
De teus fermosos olhos nunca enxuto, Por lhe tirar o filho que tem preso,
Aos montes ensinando e às ervinhas Crendo co’o sangue só da morte indina
O nome que no peito escrito tinhas. Matar do firme amor o fogo aceso.
Que furor consentiu que a espada fina,
121 Que pôde sustentar o grande peso
Do furor Mauro, fosse alevantada
Do teu Príncipe ali te respondiam Contra uma fraca dama delicada?
As lembranças que na alma lhe mora-
vam,
Que sempre ante seus olhos te traziam,
Quando dos teus fermosos se apartavam: 124
De noite em doces sonhos, que mentiam,
De dia em pensamentos, que voavam. Traziam-na os horríficos algozes
E quanto enfim cuidava, e quanto via, Ante o Rei, já movido a piedade:
Eram tudo memórias de alegria. Mas o povo, com falsas e ferozes
Razões, à morte crua o persuade.
Ela com tristes o piedosas vozes,
122 Saídas só da mágoa, e saudade
Do seu Príncipe, e filhos que deixava,
De outras belas senhoras e Princesas Que mais que a própria morte a magoava,
Os desejados tálamos enjeita,
Que tudo enfim, tu, puro amor, despreza,
Quando um gesto suave te sujeita.
Vendo estas namoradas estranhezas

Literatura Portuguesa I SEAD/UEPB 57


125 131

Para o Céu cristalino alevantando Qual contra a linda moça Policena,


Com lágrimas os olhos piedosos, Consolação extrema da mãe velha,
Os olhos, porque as mãos lhe estava atando Porque a sombra de Aquiles a condena,
Um dos duros ministros rigorosos; Co’o ferro o duro Pirro se aparelha;
E depois nos meninos atentando, Mas ela os olhos com que o ar serena
Que tão queridos tinha, e tão mimosos, (Bem como paciente e mansa ovelha)
Cuja orfandade como mãe temia, Na mísera mãe postos, que endoudece,
Para o avô cruel assim dizia: Ao duro sacrifício se oferece:

126

- Se já nas brutas feras, cuja mente


Natura fez cruel de nascimento,
E nas aves agrestes, que somente 132
Nas rapinas aéreas têm o intento,
Com pequenas crianças viu a gente Tais contra Inês os brutos matadores
Terem tão piedoso sentimento, No colo de alabastro, que sustinha
Como co’a mãe de Nino já mostraram, As obras com que Amor matou de
E colos irmãos que Roma edificaram; amores
Aquele que depois a fez Rainha;
127 As espadas banhando, e as brancas
flores,
- Ó tu, que tens de humano o gesto e o peito Que ela dos olhos seus regadas tinha,
(Se de humano é matar uma donzela Se encarniçavam, férvidos e irosos,
Fraca e sem força, só por ter sujeito No futuro castigo não cuidosos.
O coração a quem soube vencê-la)
A estas criancinhas tem respeito, 133
Pois o não tens à morte escura dela;
Mova-te a piedade sua e minha, Bem puderas, ó Sol, da vista destes
Pois te não move a culpa que não tinha. Teus raios apartar aquele dia,
Como da seva mesa de Tiestes,
128 Quando os filhos por mão de Atreu comia.
Vós, ó côncavos vales, que pudestes
- E se, vencendo a Maura resistência, A voz extrema ouvir da boca fria,
A morte sabes dar com fogo e ferro, O nome do seu Pedro, que lhe ouvistes,
Sabe também dar vida com clemência Por muito grande espaço repetisses!
A quem para perdê-la não fez erro.
Mas se to assim merece esta inocência, 134
Põe-me em perpétuo e mísero desterro,
Na Cítia fria, ou lá na Líbia ardente, Assim como a bonina, que cortada
Onde em lágrimas viva eternamente. Antes do tempo foi, cândida e bela,
Sendo das mãos lascivas maltratada
129 Da menina que a trouxe na capela,
O cheiro traz perdido e a cor murchada:
Põe-me onde se use toda a feridade, Tal está morta a pálida donzela,
Entre leões e tigres, e verei Secas do rosto as rosas, e perdida
Se neles achar posso a piedade A branca e viva cor, co’a doce vida.
Que entre peitos humanos não achei:
Ali com o amor intrínseco e vontade 135
Naquele por quem morro, criarei
Estas relíquias suas que aqui viste, As filhas do Mondego a morte escura
Que refrigério sejam da mãe triste. Longo tempo chorando memoraram,
E, por memória eterna, em fonte pura
130 As lágrimas choradas transformaram;
O nome lhe puseram, que inda dura,
Queria perdoar-lhe o Rei benino, Dos amores de Inês que ali passaram.
Movido das palavras que o magoam; Vede que fresca fonte rega as flores,
Mas o pertinaz povo, e seu destino Que lágrimas são a água, e o nome
(Que desta sorte o quis) lhe não perdoam. amores.
Arrancam das espadas de aço fino
Os que por bom tal feito ali apregoam. CAMÕES, Luis de. Os Lusíadas. São Paulo: Martin
Contra uma dama, ó peitos carniceiros, Claret, 2002, p. 108-12)
Feros vos amostrais, e cavaleiros?

58 SEAD/UEPB I Literatura Portuguesa


Atividade II
a) Procure atualizar a linguagem do poema, fazendo uma paráfrase do
episódio, isto é, contando o acontecimento aqui narrado, com suas
próprias palavras.
dica. utilize o bloco
b) Analise o comportamento do rei, em relação a Inês, aos conselheiros, ao de anotações para
povo e ao filho. responder as atividades!

Texto 2
Encontramos na internet um texto que faz um comentário interes-
sante sobre este trecho de Os Lusíadas. Leia-o, compare com o episó-
dio, e tire suas conclusões.

O episódio de Inês de Castro


Sandra Macedo Santos
Introdução

A história e o mito que envolvem os amores de D.


Inês de Castro e D. Pedro têm servido como tema para
várias obras literárias. Desde autores nacionais a estran-
geiros; autores de séculos distantes a autores nossos
contemporâneos, a verdade é que a morte de Inês de
Castro tem servido de inspiração literária e, por tal, esta
história de amor portuguesa superou a temporalidade.
É no século XVI que surgem as primeiras obras literá-
rias, de que há registro, a fazer referência a este amor:
Garcia de Resende em As Trovas à Morte de Inês de
Castro, Luís de Camões no Canto III d’ Os Lusíadas e
António Ferreira em A Castro (a primeira tragédia clás-
sica portuguesa). Desde então, podemos constatar a
presença desta temática em todos os séculos, tanto na Fontes: http://1.bp.blogspot.com/_xzPn9xWjS-k/S8ze9JVSslI/
literatura erudita, como na literatura popular. AAAAAAAAAew/qg1RKeluJ1s/s1600/ines_de_castro.jpg

Com este trabalho proponho tratar alguns dos temas


responsáveis pela imortalização de Inês de Castro, tal como a repercus-
são do tema inesiano em Os Lusíadas, de Luís de Camões.

Literatura Portuguesa I SEAD/UEPB 59


O amor-paixão e o inevitável fim trágico
Poderíamos tentar encontrar várias respostas para esta perenida-
de do tema inesiano, no entanto, acabaríamos por formar grupos de
respostas subjetivas. São vários os subtemas e mitos por detrás dos
amores de Inês e Pedro, cada um deles tem dado lugar a inúmeras
interpretações. Embora as interpretações sejam subjetivas e diferentes
entre si, a verdade é que todas elas têm algo em comum: o mito do
amor-paixão, que desemboca irremediavelmente na morte. Este mito
tem sido um dos preferidos ao longo dos tempos, é aquele que faz o
homem sonhar, é aquele que causa uma certa compaixão e comoção.
Tristão e Isolda; Romeu e Julieta; Teresa e Simão; são todos casais
que têm como destino um fim trágico. Esse destino surge a partir do
momento que decidem tentar alcançar o impossível. Todos estes casos
caminharam para o abismo, abismo esse que em Amor de Perdição,
de Camilo Castelo Branco, vem bem retratado numa carta que Simão
escreve a Teresa: Lembra-te de mim. Vive, para explicares ao mundo,
com a tua lealdade a uma sombra, a razão por que me atraíste a um
abismo. [CASTELO BRANCO, Camilo, Amor de Perdição, Mem Martins,
Publicações Europa-América, 1995, capítulo X, página 106]. No caso
específico de Inês de Castro, esta desafia o poder do Estado, isto é, de-
safia a vontade de Afonso IV, é esta a sua hybris. Por motivos de ordem
política, Afonso IV não aceita Inês de Castro como esposa legítima de
D. Pedro e, por tal, ela terá de morrer, pois escolheu entregar-se a este
amor. O abismo é, então, a partir dessa escolha, inevitável.
No entanto, é o fim trágico (catástrofe) desta história de amor que
a torna transcendente. Não houvesse nenhum obstáculo e nenhum de-
safio, seria uma história de amor igual a tantas outras. O desespero
e o sofrimento progressivo (pathos) de Inês de Castro são elementos
que têm sido fortemente explorados por vários escritores. Luís de Ca-
mões dedica dezenove estâncias d’Os Lusíadas ao episódio de Inês de
Castro. Também aqui é explorado o caráter trágico do mito inesiano.
O episódio foca o encontro de D. Inês com Afonso IV, os pedidos de
clemência e a injustiça e ferocidade em redor da morte da amada de
D. Pedro. O início da narração deixa antever o desfecho do mito, isto é,
sabemos à partida que o desenlace é trágico, está indiciado:

O caso triste e digno de memória,


Que do sepulcro os homens desenterra,
Aconteceu da mísera e mesquinha
Que depois de morta foi rainha.

Camões aprofunda a dialética amor-paixão/fim trágico na estância


119, onde invoca através duma apóstrofe o puro Amor, atribuindo-
-lhe características dum deus despótico. Este Amor que surge com letra
maiúscula poderá referir-se ao próprio Cupido (constituindo assim uma
antonomásia), filho de Vênus, ou ao Amor puro, aquele amor-paixão
que é avassalador (como já vimos). Analisemos a estância:

60 SEAD/UEPB I Literatura Portuguesa


Tu, só tu puro Amor, com força crua,
Que os corações humanos tanto obriga
Deste causa à molesta morte sua,
Como se fora pérfida inimiga.
Se dizem, fero Amor, que a sede tua
Nem com lágrimas tristes se mitiga,
É porque queres, áspero e tirano
Tuas aras banhar em sangue humano.

Há uma clara culpabilização do amor, são-lhe atribuidas caracterís-


ticas humanas (animismo), mas não dum ser humano qualquer, trata-se
dum ser inexorável, áspero e tirano que exige sacrifícios, faz vítimas.
Todos os adjetivos presentes nesta estância têm uma conotação negati-
va e as aliterações em “r”, “m” e “f” dão ênfase à ferocidade e barba-
ridade com que este Amor trata as suas vítimas. Estas vítimas surgem,
ainda, como inimigas, como se duma batalha se tratasse, esta batalha
só acaba quando o Amor vê saciado o seu desejo: sangue humano,
lágrimas não são o suficiente.
Bastaria olharmos para esta estância do Canto Terceiro d’Os Lusí-
adas para compreendermos como o amor-paixão é algo tão intenso
e arrebatador que poderá ter um fim tão violento como ele próprio é.

O “eu” versus a sociedade / o “outro”


A dicotomia “eu” / sociedade é uma dicotomia inexaurível. É no
século XIX, com o Romantismo, que atinge o seu esplendor, o Homem
é visto como um Bom Selvagem (ROUSSEAU) que é corrompido pela
sociedade ou que nunca é aceito por esta. Por tal, é natural que os
intelectuais românticos tenham visto em Inês de Castro a protagonista
perfeita. O amor trágico de Inês e Pedro teve lugar na época medieval
(época favorita dos românticos) e viu como seu opositor a sociedade,
corporizada no Estado e em Afonso IV.
No entanto, já no século XVI se registrou um interesse por esta temá-
tica. Garcia de Resende escreveu as Trovas à Morte de Inês de Castro
no Cancioneiro Geral de 1516; António Ferreira explorou esta temática
em A Castro; e Luís de Camões concentrou o seu episódio lírico de Os
Lusíadas nesta problemática.
Inês de Castro constituía um obstáculo e um problema para Afonso
IV, mais concretamente para os interesses do Estado. Havia o perigo
de Inês vir a ser rainha e tal era considerado arriscado porque Inês
era filha de galegos e, uma vez rainha, a independência de Portugal
poderia estar ameaçada. Havia também receio de que os filhos de
Inês de Castro e Dom Pedro pudessem vir a lutar contra os filhos de
Dona Constança e Dom Pedro pelo trono. Não nos podemos esquecer
de que esta história se desenrola em pleno século XIV, uma época de
diferenciação cultural e afirmação política das nacionalidades. Muitas
batalhas haviam sido travadas para alcançar independência, o medo

Literatura Portuguesa I SEAD/UEPB 61


de perder tudo aquilo pelo qual se tinha lutado (e ainda se estava a
lutar) era bem visível. Assim, torna-se claro como o casamento de Inês
e de Pedro não era politicamente favorável aos interesses do Estado.
Cabia a Dom Afonso IV agir de acordo com os interesses nacionais,
mesmo que isso significasse matar uma inocente e fazer sofrer o seu
próprio filho.
Todo o episódio dedicado a Inês de Castro n’Os Lusíadas foca este
dilema. Afonso IV, juntamente com os seus conselheiros, vai ao encon-
tro de Inês para a tirar ao mundo. No entanto, a dada altura, Afonso
IV fica comovido com os pedidos de clemência de Inês e, se não fosse
a pressão do povo, teria voltado atrás na sua decisão. Vejamos em
pormenor a estância 130:

Queria perdoar-lhe o Rei benigno,


Movido das palavras que o magoam;
Mas o pertinaz povo e seu destino
(Que desta sorte o quis) lhe não perdoam.
Arrancam das espadas de aço fino
Os que por bom tal feito ali apregoam.
Contra ua dama, ó peitos carniceiros,
Feros vos amostrais e cavaleiros?

Podemos constatar que a vontade do Rei nesta fase era a de poupar


Inês, sendo, até, apelidado de Rei benigno. No entanto, a conjunção
adversativa “mas” coloca o povo e o destino contra Inês e contra, inclu-
sive, a vontade de Afonso IV. As razões do povo já conhecemos, dizem
respeito ao interesse nacional. Afonso IV como representante do povo
teria que responder aos seus pedidos, e caso voltasse atrás haveria
também a hipótese de lhe serem postos em questão a sua bravura e
absolutismo. Quanto ao destino como opositor, é um elemento que se
encontra sempre presente nas tragédias, Camões dá assim ênfase a
este elemento trágico.
É importante também salientar a interrogação retórica presente no
final desta estância. Luís de Camões faz uma espécie de denúncia e
deixa no ar a verdadeira natureza destes homens que mostram a sua
valentia atacando uma dama indefesa.
Contudo, como já foi dito, caso não houvesse um interesse nacio-
nal em oposição aos amores de Pedro e Inês, esta tragédia nunca teria
acontecido. Não é possível compreender inteiramente a situação e o
destino de Inês sem que se considere a própria situação de Afonso IV
(situação essa que analisamos nos parágrafos anteriores). Assim, Inês e
Afonso IV são uma espécie de Antígona e Creonte. Ambos têm alguns
traços em comum, são fiéis às suas posições e vontades e, por tal, so-
frem as consequências. Tal como Antígona, a figura de Inês não teria
força e expressão se não houvesse um rei a fazer-lhe oposição.

62 SEAD/UEPB I Literatura Portuguesa


Lirismo e simbolismos presentes no episódio de Inês de
Castro de Luís de Camões
É do conhecimento de todos que Os Lusíadas é uma obra de ca-
riz épico onde o universo masculino é o predominante. Assim, todo o
episódio de Inês de Castro entra em perfeito contraste com a restante
obra. Neste episódio, a personagem central é feminina e o lirismo pre-
sente nos sonetos camonianos é transposto para estas estâncias. Luís de
Camões consegue estabelecer com o leitor um contato inquestionavel-
mente emotivo. O leitor, além de emocionar-se com os versos, jamais
conseguirá esquecê-los. O desespero que Camões coloca nas falas de
Inês (inventadas por si) faz com que um universo de terror progrida e
“arraste” consigo o próprio leitor. Existem momentos em que o leitor é
levado a sentir compaixão e levado também a partilhar o sofrimento
das personagens da tragédia, a piedade perante tal destino trágico
instala-se dando assim origem à Catarse.
Os argumentos de Inês estão carregados de alusões à mitologia
pagã (tipicamente Clássico), como são os casos das referências à deu-
sa Natura, a Rômulo e a Remo. Estas referências são simbólicas, pois
colocam os animais ferozes e irracionais em contraste com Afonso IV. A
amante de Dom Pedro chama a atenção do rei para a piedade que é
possível encontrar-se nas feras, piedade essa que não estava a conse-
guir obter do soberano.
Ao ver que não está a conseguir demover o rei da sua decisão, Inês
apela a este que pense nos filhos que ficarão órfãos, filhos estes que
são netos de Afonso IV (estância 127).

Ó tu, que tens de humano o gesto e o peito


(Se de humano é matar ua donzela,
Fraca e sem força, só por ter sujeito
O coração a quem soube vencê-la),
A estas criancinhas tem respeito,
Pois o não tens à morte escura dela;
Mova-te a piedade sua e minha,
Pois te não move a culpa que não tinha.

Nesta estância o rei cruel contrasta com a mulher frágil e inocente,


a oração parentética (introduzida habilmente por Camões) questiona
a natureza deste soberano. Inês é caracterizada como sendo fraca e
sem força (pleonasmo), portanto está à mercê de Dom Afonso IV. Qual-
quer ser humano ficaria comovido perante tal cenário e, ao matar uma
dama indefesa e sem culpa, Afonso IV revela-se como mais selvagem
que todos os animais ferozes.
Inês é assassinada e todos os elementos da Natureza refletem esta
morte (típico das produções líricas renascentistas): o sol esconde-se; os
vales reproduziram em eco o último sopro de vida de Inês que continha
o nome do seu amado; e as ninfas do Mondego choraram durante
muito tempo e estas lágrimas perpetuaram-se na Fonte da Lágrimas

Literatura Portuguesa I SEAD/UEPB 63


(na Quinta das Lágrimas, em Coimbra). O episódio termina com a
referência a esta fonte mágica, dando um aspecto ainda mais lendário
a esta história de amor.

As filhas do Mondego a morte escura


Longo tempo chorando memoraram,
E, por memória eterna, em fonte pura
As lágrimas choradas transformaram
O nome lhe puseram, que inda dura,
Dos amores de Inês, que ali passaram.
Vede que fresca fonte rega as flores,
Que lágrimas são a água e o nome Amores.

As ninfas do Mondego haviam testemunhado esta linda história de


amor, pois foi nos saudosos campos do Mondego que Inês e Pedro se
terão visto pela primeira vez; e nos arvoredos da Fonte dos Amores
que terão tido os seus encontros secretos. Reza também a lenda que
o sangue que a amada de Dom Pedro derramou está, ainda hoje,
gravado numa rocha. Todavia, de acordo com os especialistas, a cor
avermelhada que podemos constatar na rocha deve-se à presença de
uma alga, a Hildenbranthiarosea. No entanto, muitos preferem ignorar
a explicação científica para que o mito não perca o seu fantástico e
maravilhoso.
Muito se tem escrito e dito sobre a história trágica de Inês de Cas-
tro e Dom Pedro. A História reproduz os fatos, mas a Literatura tem
mistificado estes fatos, transformando esta história de amor numa das
mais belas histórias de amor a nível mundial. São muitos os turistas que
visitam os túmulos e muitos aqueles que querem passear pelos jardins,
outrora secretos, de Pedro e Inês.
Existem vários aspectos da lenda que a His-
tória não consegue comprovar [É o caso de do-
cumentos a comprovarem o casamento de Pedro
e Inês e da coroação de Inês depois de morta].
Contudo, quem conhece esta história de amor
prefere acreditar em toda a magia que a envol-
ve, tudo aquilo que a transformou numa parte da
nossa tradição, tradição de há já seiscentos e cin-
quenta anos. Tradição que irá continuar a apai-
xonar as futuras gerações. (Fonte: http://www.
notapositiva.com/trab_professores/textos_apoio/
portugues/Ines_de_Castro.htm)

Fonte: http://inesdecastroesspc.files.wordpress.com/2010/02/327529286_
c90da75b85.jpg

64 SEAD/UEPB I Literatura Portuguesa


Referências
AAVV, Enciclopédia Luso-Brasileira de Cultura, Mem Martins, Ed. Verbo,
1976

CAMÕES, Luís de Vaz, Os Lusíadas, 2. ed. Porto: Livraria Figueirinhas,


1999

FRANCO, António, Memória de Inês de Castro. Mem Martins: Edições


Europa-América, 1990

LOPES, Óscar e SARAIVA, António José, História da Literatura


Portuguesa. 17. ed. Porto: Porto Editora, 1996

SOUSA, Maria Leonor de, Inês de Castro – Um Tema Português na


Europa. Lisboa: Edições 70, 1987

Web
Biblioteca Virtual: http://www.portalcen.org/bv/estudante/
inesdecastro.pdf
SILVA, Fernando Correia; http://www.vidaslusofonas.pt/inesdecastro.
htm

http://www.notapositiva.com/trab_professores/textos_apoio/
portugues/Ines_de_Castro.htm

O sonetista camões
O SONETO é uma típica composição renascentista. A admiração pela
antiguidade clássica levava os classicistas a imitar-lhe inclusive o deta-
lhismo com que eram compostos os poemas e as demais manifestações
artísticas greco-romanas. Introduzido em Portugal por Sá de Miranda,
quando de sua volta da Itália, em 1527, o soneto é uma forma fixa de
poema, composto por 14 versos, distribuídos em duas quadras (estrofes
de quatro versos) e dois tercetos (estrofe de três versos), todos rimando
entre si, e com uma chave de ouro ao final.
Luis de Camões foi um excelente sonetista, como comprovam al-
guns de suas criações, que colocaremos a seguir:

Amor é um fogo que arde sem se ver, É querer estar preso por vontade;
é ferida que dói, e não se sente; é servir a quem vence, o vencedor;
é um contentamento descontente, é ter com quem nos mata, lealdade.
é dor que desatina sem doer.
Mas como causar pode seu favor
É um não querer mais que bem querer; nos corações humanos amizade,
é um andar solitário entre a gente; se tão contrário a si é o mesmo Amor?
é nunca contentar se de contente;
é um cuidar que ganha em se perder.

Literatura Portuguesa I SEAD/UEPB 65


Alma minha gentil, que te partiste Vendo o triste pastor que com enganos
Tão cedo desta vida descontente, Assim lhe era negada a sua pastora,
Repousa lá no Céu eternamente, Como se a não tivera merecida,
E viva eu cá na terra sempre triste.
Começou a servir outros sete anos,
Se lá no assento etéreo, onde subiste, Dizendo: Mais servira, se não fora
Memória desta vida se consente, Para tão longo amor tão curta a vida.
Não te esqueças daquele amor ardente
Que já nos olhos meus tão puro viste. Quem diz que Amor é falso ou enganoso,
ligeiro, ingrato, vão, desconhecido,
E se vires que pode merecer-te Sem falta lhe terá bem merecido
Alguma cousa a dor que me ficou Que lhe seja cruel ou rigoroso.
Da mágoa, sem remédio, de perder-te,
Amor é brando, é doce e é piedoso;
Roga a Deus, que teus anos encurtou, Quem o contrário diz não seja crido:
Que tão cedo de cá me leve a ver-te, Seja por cego e apaixonado tido,
Quão cedo de meus olhos te levou. E aos homens e inda aos deuses odioso.

Sete anos de pastor Jacó servia Se males faz Amor, em mi se vêem;


Labão, pai de Raquel serrana bela, Em mim mostrando todo o seu rigor,
Mas não servia ao pai, servia a ela, Ao mundo quis mostrar quanto podia.
Que a ela só por prêmio pertendia.
Mas todas suas iras são de amor;
Os dias na esperança de um só dia Todos estes seus males são um bem,
Passava, contentando-se com vê-la: Que eu por todo outro bem não trocaria.
Porém o pai usando de cautela,
Em lugar de Raquel lhe deu a Lia. (Fonte: http://fredb.sites.uol.com.br/
lusdecam.htm)

Atividade III

a) Temos aqui quatro sonetos de Camões abordando o mesmo tema: o amor.


Leia cada um deles e procure escrever algo sobre o tipo de amor que cada
um aborda.

dica. utilize o bloco


de anotações para
responder as atividades!

66 SEAD/UEPB I Literatura Portuguesa


Resumo
O Classicismo em Portugal não diferiu muito do Renascimento eu-
ropeu, embora tenha sido menos efervescente do que na Itália, onde
nasceu o movimento. As características são comuns, dizem respeito à
admiração pela antiguidade clássica e a busca da imitação dessa an-
tiguidade. O resultado são textos extremamente bem cuidados, com
constantes referências à mitologia greco-romana. O maior nome desse
movimento, em Portugal, foi, inegavelmente, Luis de Camões, poeta
épico, autor de “Os Lusíadas” (poema que identifica Portugal enquanto
nação desbravadora dos mares “nunca dantes navegados”). Apesar da
vida atribulada que teve, um pouco por isso também, é reverenciado
como um dos nomes mais importantes da literatura portuguesa.

Autovaliação
Com o objetivo de se autoavaliar, no que se relaciona à presente unidade, você
pode observar se conseguiu:

• Identificar as principais características da literatura produzida em


Portugal na época do Renascimento europeu;

• Relacionar aspectos da vida de Camões à produção de sua obra;

• Analisar com desenvoltura os trechos apresentados do poema épico dica. utilize o bloco
camoniano “Os Lusíadas”, bem como sonetos líricos aqui postos; de anotações para
responder as atividades!

Literatura Portuguesa I SEAD/UEPB 67


Referências
CAMÕES, Luis de. Os Lusíadas. São Paulo: Martin Claret, 2002.

MOISÉS, Massaud. A literatura portuguesa através dos textos. 28. ed.


São Paulo: Cultrix, 2002

NICOLA, José de. Literatura Portuguesa – das origens aos nossos dias. São
Paulo: Scipione, 1999

Web:
http:// pt.wikipedia.org/wiki/Lu%C3%ADs_de_Cam%C3%B5es
http:// pt.wikipedia.org/wiki/Renascimento
http://fredb.sites.uol.com.br/lusdecam.htm
http://www.notapositiva.com/trab_professores/textos_apoio/
portugues/Ines_de_Castro.htm

68 SEAD/UEPB I Literatura Portuguesa


V UNIDADE

Barroco: Padre Vieira

Literatura Portuguesa I SEAD/UEPB 69


Apresentação
Em alguns trechos de
“Os Lusíadas”, Camões
já chamava a atenção
para a forma equivoca-
da como governo e so-
ciedade portugueses se
comportavam a partir
das grandes conquistas
ultramarinas realizadas
no final do século XV e
início do XVI, entre elas
a colonização do Brasil.
A falta de investimento
sério e planejado, a for-
ma luxuosa e comple-
tamente relaxada que
passou a ser o cotidiano
da nação agora rica e
Dom Sebastião
poderosa funcionaram Fonte: http://portugalsecreto.no.sapo.pt/sebastianismo/sab40a.jpg
como ingredientes fatais
para sua derrocada. O
poeta não estava errado: no ano de sua morte, 1580, Portugal caiu sob
o domínio espanhol, de certa maneira concretizando a nefasta previ-
-são do autor de “Os Lusíadas”, que afirmara que, mais do que morrer
em Portugal, morreria com Portugal.
Um rei megalomaníaco, Dom Sebastião, jovem e sem descendentes
diretos, achou que poderia transformar Portugal no Quinto Império (os
outros quatro grandes impérios teriam sido o assírio, o persa, o grego e
o romano). Para isso, se embrenhou numa guerra desigual e desastro-
sa, tendo sofrido clamorosa derrota em Alcácer-Quibir, na África, tendo
seu próprio corpo desaparecido.
A guerra pela sucessão do trono, que durou dois anos, terminou
com a subida de seu primo dom Felipe, então rei da Espanha, que ane-
xou Portugal ao seu reino, dominando por mais de meio século toda a
península ibérica.
A Espanha, como se sabe, é berço de uma das mais conservadoras
igrejas de então, tendo, aliás, materializado esse conservadorismo atra-
vés da Companhia de Jesus, que se empenhou duramente no combate
aos chamados hereges da reforma protestante, num movimento que se
chamou Contra-Reforma, cuja violência em combater os “inimigos da

70
0 SEAD/UEPB I Literatura Portuguesa
fé” foi notória. O nome institucional dessa perseguição era “Tribunal da
Santa Inquisição”.

O lado artístico desse movimento é o Barroco, marcado por con-


tradições, preciosismos e tentativas de conciliação entre o lado divino,
que a Igreja obrigava a evidenciar, e o lado humano, que a natureza e
os dois movimentos anteriores insistiam por se fazer presente.
O principal nome dessa escola, em Portugal, já evidencia essa du-
alidade: é um padre, Antonio Vieira. Outro nome também marcante é
uma freira: Mariana Alcoforado. Em sua obra, misturam-se elementos
religiosos e profanos, numa proporção praticamente equivalente.
É essa literatura que pretendemos estudar nesta unidade.

Vamos lá?!

Objetivos
É nosso desejo que, ao final desta unidade, você consiga:

• identificar os principais acontecimentos políticos e sociais, que


determinaram a instalação e consolidação do Barroco na lite-
ratura;
• observar a importância da influência espanhola na formação
do barroco literário português;
• identificar, através de alguns de seus sermões, a posição política
e social do Padre Antonio Vieira;

Literatura Portuguesa I SEAD/UEPB 71


Texto 1
Inicialmente, conheceremos alguns aspectos teóricos a respeito do
Barroco, que muito nos auxiliarão na leitura e análise de alguns textos
desse período.

O barroco
Nelly Novaes Coelho

Depois de um primeiro período luminoso e sereno (normalmente


conhecido como Renascimento e Classicismo) a Era Clássica vai sofrer
uma transformação. Altera-se a clareza, a objetividade e serenidade
que lhe eram peculiares.

Donde espumoso el mar siciliano Onde o espumoso mar siciliano


el pie argentea de plata al Lilibeo prateia de prata ao pé do Lilibeo
(bóveda de las fraguas de Vulcano, (abóboda das fornalhas de Vulcano
o tumba de los huesos de Tifeo) ou tumba dos ossos de Tifeo)
pálidas señas cenizoso un llano, pálidos sinais cinzentos um plano,
cuando no del sacrílego deseo quando não do sacrílego desejo
del duro oficio da. Allí una alta roca do duro oficio dá. Ali, uma alta rocha
mordaza es a una gruta de su boca. é mordaça a uma gruta de sua boca.

Guarnición tosca de este escollo duro Guarnição tosca deste penhasco duro
troncos robustos son, a cuya greña troncos robustos são, a cujo
menos luz debe, menos aire puro emaranhado
la caverna profunda, que a la peña; menos luz deve, menos ar puro
caliginoso lecho, el seno oscuro a caverna profunda, que à penha;
ser de la negra noche nos lo enseña sombrio leito, o seio escuro
infame turba de nocturnas aves, ser da noite negra nos ensina
gimiendo tristes y volando graves. infame turba de noturnas aves,
gemendo tristes e voando graves.
(GÓNGORA, Fábula de Galatea y Polifemo)

(Onde o mar siciliano prateia de prata o pé de Lilibeo [cidade fun-


dada pelos cartagineses] (abóboda das fráguas de Vulcão [deus roma-
no do fogo] ou tumba dos ossos de Tifeo [gigante rebelde, confinado
por Zeus]) uma faixa cinzenta dá pálidos sinais no duro ofício, quando
não do sacrílego desejo. Ali uma alta rocha é mordaça à gruta de sua
boca. Troncos robustos são a guarnição tosca desse escolho duro; a
cuja grenha a caverna profunda deve menos luz e menos ar puro que
ao penhasco; o seio escuro da noite nos ensina ser o caliginoso leito
de infame turba de noturnas aves, gemendo tristes e voando graves).
É fácil verificar em Góngora, a mais alta voz poética daquele ins-
tante, a profunda transformação que sofreu a poesia: violenta inversão
dos termos do discurso, dificultando a compreensão; os tons escuros e
agressivos da paisagem (= cromatismo que vai do “prata” ao “cinza” e
deste ao “negro”); atmosfera pesada e lúgubre. O equilíbrio rompera-se.

72 SEAD/UEPB I Literatura Portuguesa


Sessão de tortura promovida pela Inquisição, para fazer os hereges confessa-
rem suas faltas.
Fonte: http://4.bp.blogspot.com/_98Lp2dvqd9U/TBE12ts6_jI/AAAAAAAAA9w/1Sf5kcikyM4/s1600/0008+-
+SANTA+INQUISI%C3%87%C3%83O.jpg

(...)
O Classicismo inicial esforçou-se – como vimos – por estabelecer
uma ordem racional não apenas no pensamento, mas também na so-
ciedade, nos costumes, na vida enfim. A Arte também tende a ser a
mais alta de expressão de um universo penetrado de inteligência, de
uma consciência lúcida e de uma sociedade perfeitamente hierarqui-
zada. A certa altura, no entanto, dá-se como que uma explosão das
linhas equilibradas: a Arte é invadida por formas conflituosas em que
os contornos deixam de ser nítidos e a luminosidade aberta passa aos
tons sombrios e dramáticos do claro-escuro. É o período barroco que
começa, nos rastros do violento período da Contra-Reforma (com o
recrudescimento da ação punitiva do Tribunal da Inquisição, que havia
sido fundado na Espanha pelos reis católicos, em 1340, em Portugal é
instalado em 1536, a pedido de Dom João III, funcionando até 1732).
Surgindo, pois, da intensa reação que se seguiu ao movimento refor-
mista do Renascimento, o barroco inicia-se em cada país em datas
diferentes. O seu primeiro núcleo foi a Espanha do reinado dos Reis
Católicos, Isabel e Fernando I. Embora tenha sido um fenômeno euro-
peu, não resta dúvida de que foi aí, no império espanhol, que atingiu a
sua maior amplitude, riqueza e significação. Período em que a Pintura
e a Arquitetura criaram verdadeiras obras-primas, ele foi muito pobre,
porém, na área poética, onde as forças criadoras do pensamento so-
freram intensa repressão. O estilo barroco resultou, pois,

de uma nova maneira de ver o mundo e de sentir


as realidades físicas e metafísicas que nos envol-
vem. (...) O homem barroco quebrou as barreiras
da ponderação clássica. Já não é um homem feliz.
Perdeu o leme da harmonia, do sossego. A época
que lhe cabe viver é turva. Os cimentos sociais e
políticos sobre os quais se estruturou o mundo ime-
diatamente anterior se esfacelaram. As instituições

Literatura Portuguesa I SEAD/UEPB 73


perderam o vigor. A política corrompe-se. Estabele-
ce-se um desequilíbrio poderoso entre a realidade
e o desejo. (...) A naturalidade, a unidade, a sim-
plicidade, a alegria, a confiança do mundo renas-
centista, foi-se transformando em pânico. Porque
o barroco é a crise vertical dos valores clássicos.
(JULIO GARCÍA MOREJÓN)

Se por um lado o equilíbrio clássico se desfaz e a racionalidade que


dava todas as respostas foi posta em questão, por outro, no que se refere
às coordenadas formais da estética clássica, nada foi alterado. Continu-
am vigentes, pois, no período barroco, os rígidos preceitos teóricos que
alicerçavam o Renascimento e o Classicismo: “imitação da natureza”
e “imitação dos antigos”, com todas as exigências destas duas últimas
atitudes. Continuam atuantes as fórmulas criadas pelos poetas renascen-
tistas: vocabulário, estruturas rítmicas, tipos de imagens etc.
A Paisagem – Ela continua a ser, na poesia barroca, a mesma que se
alimenta do bucolismo greco-latino e que os renascentistas enriquece-
ram e fixaram em tipos. Assim, sobre a paisagem real vista pelo poeta
barroco, sobrepõe-se a paisagem estética criada pela palavra da tradi-
ção. A principal diferença entre as duas (= a renascentista e a barroca)
é mais de atmosfera (= cor e movimento) que de essência. A verdade é
que a paisagem barroca perdeu a serenidade que caracterizava a pai-
sagem renascentista. Agita-se uma efervescência contida que perturba
a placidez das formas. Propiciam essa alteração sensível de atmosfera
principalmente três elementos linguísticos: o cromatismo vocabular, o
dinamismo agressivo dos verbos e a impetuosidade dos substantivos,
adjetivos (ou sintagmas deles resultantes).
a) O Cromatismo Vocabular. Além dos termos herdados do período
renascentista (= prata, branco, luzente, luminoso, níveo, fulvo, linho, lí-
rio, pérolas, neve, cisnes) aparece uma intensificação profunda das co-
res, principalmente do vermelho e do negro. A escala cromática basea-
da no primeiro é bastante rica: púrpura, rubi, granada (pedra vermelha
escura), carmesim, escarlate, coral, cravo, rosa, sangue. A que parte
do segundo, salvo raras exceções, representa o elemento discordante
dentro da harmonia do mundo, pois, via de regra, é a representação da
dor: escuro, turvo, cinzento, cinza, negro, abóbodas de sombras, treva,
escura, noturno canto.
b) O dinamismo agressivo dos verbos infiltra uma força inquietante
e ameaçadora na poesia: fulminar, condenar, arrebatar, arquear, mor-
dendo, pesar, se abatem, sepultam, atiram, se lança, cometendo a vio-
lência, aprisionar, vomitar ondas e açoitar areias...
c) A impetuosidade dos vocábulos perturbam a paisagem: rude har-
monia, areia ardente, membros em cinza desatados, sagrado vulcão
de errante fogo, carroça ardente, duros anos, estrondos, ferro agudo.
Apesar dessa flagrante diferença de atmosfera, contudo, a poesia bar-
roca não pode ser considerada como fora dos quadros da estética clássi-
ca, uma vez que ela não inovou nada com relação às soluções formais. O
poeta barroco continuou a ter por mestres incontestes os grandes poetas
74 SEAD/UEPB I Literatura Portuguesa
que o antecederam, e deles recebeu todas as
já citadas soluções formais que, exteriormen-
te, aparecem modificadas. A essência de uma
arte corresponde a uma determinada estrutura
formal. Como no período barroco não hou-
ve alteração dessa estrutura, também a sua
essência continua a ser a mesma conquistada
pelo Renascimento. Embora em crise, os valo-
res filosóficos, éticos e estéticos instaurados no
século XVI continuam vigentes.
A Mulher – O retrato da mulher na poe-
sia barroca continua a ser traçado com os
mesmos sintagmas estereotipados: “cabelos
de ouro”, “voz plácida e doce”, “colo de ala-
bastro”, “face de neve” etc. Mas outros ele-
mentos lhe são acrescentados:” a pequenez
dos dentes”, “a brevidade dos pés”, “a testa
de cristal”, “os olhos pardos” (castanhos),
Fonte: http://artmight.
“os cabelos negros”, “o rosto redondo”, “os com/albums/classic-j/
olhos rasgados” e “as meninas negras”. Das mãos não importa mais “o Jacopo-Robusti-
Tintoretto-1518-1594/
meneio” (que na poesia anterior denota certa compostura da mulher), Tintoretto-Leda-and-the-swan.
mas sim a cor: “alvas, brancas”. “Ainda que continue triunfando o tipo jpg
petrarquista da mulher de cabelos loiros e olhos verdes, ao seu lado
se vai perfilando a de olhos e cabelos negros. (A. MONTES). “A beleza
barroca tem que ser morena e de olhos negros, em contraste com a
renascentista, que tinha de ser loira e de olhos claros. (CASALDUERO,
apud Spina/Santilli).
As estruturas rítmicas – Persistem as criadas pelo Renascimento: can-
ção, soneto, odes, tercetos, oitava-rima, redondilhas, romance etc., o
uso dos decassílabos e dos versos curtos, redondilhas. Os esquemas de
rimas sonantes ou assonantes ricas ou pobres.
Os Processos Estilísticos – Seguem iguais aos renascentistas, ou seja,
uso abundante de mitologia clássica, jogos de palavras, antíteses, os
paradoxos (com enorme exagero em todos eles). Desaparece o equi-
líbrio antigo e esses processos como que transbordam de seus limites.
A Temática – Com a exclusão de grande parte da poesia de um
Góngora e de certos altos momentos de um Marini ou Gregório de
Matos, a poesia barroca – via de regra – não vale pelo contexto que
encerra ou pela cosmovisão que possa oferecer.

Poesia de entretenimento no mais das vezes, ati-


vidade lúdica do espírito, ela nos dá imediata im-
pressão de completo divórcio com os grandes e
tradicionais problemas da vida. (...) Tendendo à
abstração, numa ânsia contínua de ilusão da rea-
lidade, podemos falar num niilismo temático dessa
poesia que, para atingir o reino da pura imagina-
ção, qualquer objeto (um papagaio, um lampadá-
rio de cristal, uma rosa, um mosquito, um pé) pode
servir de ponto de partida. (SPINA/SANTILLI)

Literatura Portuguesa I SEAD/UEPB 75


Assim, ao lado de uma poesia de angustiados conflitos religiosos,
existe uma outra em que sobressai a engenhosidade dos conceitos, os
malabarismos verbais e a vacuidade de pensamento; uma poesia en-
comiástica e também hermética, que se expressa em metáforas muitas
vezes obscuras, e que denunciam o enfraquecimento ou a sufocação
do poder criador. (...)

COELHO, Nelly Novaes. Literatura e Linguagem. A obra literária e a


expressão linguística. 5. ed. Petrópolis-RJ: Vozes, 1994, p. 149-153

Atividade I
a) A partir das considerações de Nelly Coelho, podemos entender claramente
por que o Barroco está incluído na Era Clássica. Salvo algumas poucas
alterações, há uma espécie de continuação do movimento anterior. Releia
o texto de Coelho, e veja quais os pontos de identificação mais fortes com o
Classicismo, que ela aponta no Barroco. Comente-os.

b) Você concorda com a ideia do “niilismo poético” do barroco, ou seja, que a


poesia barroca não tem muita coisa nova a oferecer? Comente.

dica. utilize o bloco


de anotações para
responder as atividades!

Texto 2
76 SEAD/UEPB I Literatura Portuguesa
Padre Antonio Vieira
Nasceu em Lisboa, numa casa humilde da Rua do
Cônego, perto da sé. Foi o primeiro dos quatro filhos de
Cristóvão Vieira Ravasco, um alentejano neto de uma mu-
lata ou africana, e casado com a lisboeta Maria Azevedo.
Antonio veio com a família para o Brasil, pois seu pai
era escrivão, e aqui assumiu um posto no Tribunal de Re-
lação da Bahia. Em Salvador, Antonio ingressou na ordem
jesuíta (1614), tendo muitas dificuldades de aprendiza-
gem, a princípio, mas depois sobressaindo-se brilhante-
mente. Foi ordenado em 1634, época em que já era co-
nhecido pelos seus primeiros sermões, obtendo fama de
pregador notável. Em 1641, retornou a Lisboa, iniciando
uma conturbada e bem sucedida carreira diplomática, so-
bressaindo-se pela oratória; conquistou a confiança de D.
João IV de Portugal, que o nomeou embaixador e depois
pregador régio.
Viajou muito entre Portugal e Brasil, tendo também
passado um tempo em Roma. Por conta de suas posições
fortes, foi várias vezes alvo de processos da Inquisição, Fonte: http://upload.wikimedia.org/
dos quais se defendia pessoalmente. “Politicamente, Vieira tinha contra wikipedia/commons/2/28/Padre_
Ant%C3%B3nio_Vieira.jpg
si a pequena burguesia cristã, por defender os capitalismo judaico e os
cristãos-novos; os pequenos comerciantes, por defender um monopólio
comercial; os administradores e colonos, por defender os índios.” (NICO-
LA, José de. Literatura Portuguesa – das origens aos nossos dias. São Paulo:
Scipione, 1999, p. 98).
O Padre Antonio Vieira faleceu em 1697, no Colégio da Bahia, onde
foi sepultado.
Autor de uma fertilidade criativa impressionante, deixou quase 200
sermões, cerca de 500 cartas, além de três profecias (História do futuro,
Esperanças de Portugal e Clavis prophetarum – em que se percebe o se-
bastianismo (crença defendida por Vieira, segundo a qual Dom Sebastião
voltaria e implantaria o Quinto Império)). Tal fato estaria profetizado na
Bíblia, o que demonstra o caráter alegórico de sua interpretação da Escri-
tura Sagrada, ou seja, através de um nacionalismo exagerado (como foi o
de Sebastião) e uma servidão incomum, característica própria dos jesuítas.

Sermão da sexagésima
(Fragmento)

Fazer pouco fruto a palavra de Deus no Mundo, pode proceder


de um de três princípios: ou da parte do pregador, ou da parte do
ouvinte, ou da parte de Deus. Para uma alma se converter por meio de
um sermão, há-de haver três concursos: há-de concorrer o pregador com
a doutrina, persuadindo; há-de concorrer o ouvinte com o entendimento,

Literatura Portuguesa I SEAD/UEPB 77


percebendo; há-de concorrer Deus com a graça, alumiando. Para um ho-
mem se ver a si mesmo, são necessárias três coisas: olhos, espelho e luz.
Se tem espelho e é cego, não se pode ver por falta de olhos; se tem espe-
lho e olhos, e é de noite, não se pode ver por falta de luz. Logo, há mister
luz, há mister espelho e há mister olhos. Que coisa é a conversão de uma
alma, senão entrar um homem dentro em si e ver-se a si mesmo? Para esta
vista são necessários olhos, e necessária luz e em necessário espelho. O
pregador concorre com o espelho, que é a doutrina; Deus concorre com
a luz, que é a graça; o homem concorre com os olhos, que é o conhe-
cimento. Ora suposto que a conversão das almas por meio da pregação
depende destes três concursos: de Deus, do pregador e do ouvinte, por
qual deles devemos entender que falta? Por parte do ouvinte, ou por parte
do pregador, ou por parte de Deus?
Primeiramente, por parte de Deus, não falta nem pode faltar. Esta pro-
posição é de fé, definida no Concílio Tridentino, e no nosso Evangelho a
temos. Do trigo que deitou à terra o semeador, uma parte se logrou e três
se perderam. E por que se perderam estas três? – A primeira perdeu-se,
porque a afogaram os espinhos; a segunda, porque a secaram as pedras;
a terceira, porque a pisaram os homens e a comeram as aves. Isto é o que
diz Cristo; mas notai o que não diz. Não diz que parte alguma daquele
trigo se perdesse por causa do sol ou da chuva. A causa por que ordinaria-
mente se perdem as sementeiras, é pela desigualdade e pela intemperança
dos tempos, ou porque falta ou sobeja a chuva, ou porque falta ou sobeja
o sol. Pois porque não introduz Cristo na parábola do Evangelho algum
trigo que se perdesse por causa do sol ou da chuva? – Porque o sol e a
chuva são as afluências da parte do Céu, e deixar de frutificar a semente
da palavra de Deus, nunca é por falta do Céu, sempre é por culpa nossa.
Deixará de frutificar a sementeira, ou pelo embaraço dos espinhos, ou pela
dureza das pedras, ou pelos descaminhos dos caminhos; mas por falta das
influências do Céu, isso nunca é nem pode ser. Sempre Deus está pronto
da sua parte, com o sol para aquentar e com a chuva para regar; com
o sol para alumiar e com a chuva para amolecer, se os nossos corações
quiserem. Se Deus dá o seu sol e a sua chuva aos bons e aos maus; aos
maus que se quiserem fazer bons, como a negará? Este ponto é tão claro
que não há para que nos determos em mais prova.
Sendo, pois, certo que a palavra divina não deixa de frutificar por parte
de Deus, segue-se que ou é por falta do pregador ou por falta dos ouvin-
tes. Por qual será? Os pregadores deitam a culpa aos ouvintes, mas não é
assim. Se fora por parte dos ouvintes, não fizera a palavra de Deus muito
grande fruto, mas não fazer nenhum fruto e nenhum efeito, não é por parte
dos ouvintes. Provo.
Os ouvintes ou são maus ou são bons; se são bons, faz neles fruto a
palavra de Deus; se são maus, inda que não faça neles fruto, faz efeito. No
Evangelho o temos. O trigo que caiu nos espinhos nasceu, mas afogara-
-no. O trigo que caiu nas pedras nasceu também, mas secou-se. O trigo
que caiu na terra boa nasceu e frutificou com grande multiplicação. De
maneira que o trigo que caiu na boa terra nasceu e frutificou; o trigo que
caiu na má terra, não frutificou, mas nasceu; porque a palavra de Deus é
tão funda, que nos bons faz muito fruto e é tão eficaz que nos maus ainda
que não faça fruto, faz efeito; lançada nos espinhos, não frutificou, mas

78 SEAD/UEPB I Literatura Portuguesa


nasceu até nos espinhos; lançada nas pedras, não frutificou, mas nasceu
até nas pedras. Os piores ouvintes que há na Igreja de Deus são as pedras
e os espinhos. E por quê? – Os espinhos por agudos, as pedras por duras.
Ouvintes de entendimentos agudos e ouvintes de vontades endurecidas
são os piores que há. Os ouvintes de entendimentos agudos são maus
ouvintes, porque vêm só a ouvir sutilezas, a esperar galantarias, a avaliar
pensamentos, e às vezes também a picar a quem os não pica. O trigo não
picou os espinhos, antes os espinhos o picaram a ele; e o mesmo sucede
cá. Cuidais que o sermão vos picou e vós, e não é assim; vós sois os que
picais o sermão. Por isto são maus ouvintes os de entendimentos agudos.
Mas os de vontades endurecidas ainda são piores, porque um entendi-
mento agudo pode ferir pelos mesmos fios, e vencer-se uma agudeza com
outra maior; mas contra vontades endurecidas nenhuma coisa aproveita a
agudeza, antes dana mais, porque quanto as setas são mais agudas, tanto
mais facilmente se despontam na pedra. Oh! Deus nos livre de vontades
endurecidas, que ainda são piores que as pedras! A vara de Moisés abran-
dou as pedras, e não pôde abrandar uma vontade endurecida. E com os
ouvintes de entendimentos agudos e os ouvintes de vontades endurecidas
serem os mais rebeldes, é tanta a força da divina palavra, que, apesar da
agudeza, nasce nos espinhos, e apesar da dureza nasce nas pedras.
Pudéramos arguir ao lavrador do Evangelho de não cortar os espinhos
e de não arrancar as pedras antes de semear, mas de indústria deixou no
campo as pedras e os espinhos, para que se visse a força do que semeava.
É tanta a força da divina palavra, que, sem cortar nem despontar espinhos,
nasce entre espinhos. É tanta a força da divina palavra, que, sem arrancar
nem abrandar pedras, nasce nas pedras. Corações embaraçados como
espinhos corações secos e duros como pedras, ouvi a palavra de Deus e
tende confiança! Tomai exemplo nessas mesmas pedras e nesses espinhos!
Esses espinhos e essas pedras agora resistem ao semeador do Céu; mas
virá tempo em que essas mesmas pedras o aclamem e esses mesmos es-
pinhos o coroem.
Quando o semeador do Céu deixou o campo, saindo deste Mundo,
as pedras se quebraram para lhe fazerem aclamações, e os espinhos se
teceram para lhe fazerem coroa. E se a palavra de Deus até dos espinhos
e das pedras triunfa; se a palavra de Deus até nas pedras, até nos espinhos
nasce; não triunfar dos alvedrios hoje a palavra de Deus, nem nascer nos
corações, não é por culpa, nem por indisposição dos ouvintes.
Supostas estas duas demonstrações; suposto que o fruto e efeitos da
palavra de Deus, não fica, nem por parte de Deus, nem por parte dos ou-
vintes, segue-se por consequência clara, que fica por parte do pregador.
E assim é. Sabeis, cristãos, porque não faz fruto a palavra de Deus? Por
culpa dos pregadores. Sabeis, pregadores, porque não faz fruto a palavra
de Deus? — Por culpa nossa.
MOISÉS, Massaud. A literatura portuguesa através dos
textos. 28. ed. São Paulo: Cultrix, 2002, p. 170-1

Literatura Portuguesa I SEAD/UEPB 79


Atividade II
“Pregado na Capela Real (Lisboa) , em março de 1655, o Sermão
da Sexagésima abre a série de quinze volumes que enfeixam as peças
oratórias do Padre Antonio Vieira, e serve-lhes de prólogo, ao mesmo
tempo em que encerra uma teoria da arte de pregar, inspirada em mol-
des conceptistas (jogo de ideias). O tema do sermão é extraído, como de
regra, duma passagem bíblica escolhida para a ocasião (...): A semente
é a palavra de Deus. O pregador transforma em indagação o tema da
peça: “Se a palavra de Deus é tão eficaz e tão poderosa, como vemos
tão pouco fruto da palavra de Deus?” Segue-se o intróito, em que expõe
o plano que pretende executar na discussão do tema. O trecho que le-
mos (correspondente ao terceiro tópico em que o sermão está dividido),
abrange o final do intróito (que termina em “Provo”) e princípio do de-
senvolvimento (ou argumentação), em que o pregador comenta os vários
aspectos da propositura inicial e fundamenta suas opiniões com os textos
evangélicos.” (MOISÉS, Massaud. A literatura portuguesa através dos textos.
28. ed. São Paulo: Cultrix, 2002, p. 169-70)

a) Você observou que o sermão de Vieira é bastante didático, como se ele


estivesse dando uma aula? Recolha alguns trechos em que você percebe
algumas técnicas pedagógicas, e comente-os.

b) Outra coisa que podemos perceber é que o Padre Vieira é doutor em


argumentação, pois ele consegue cercar todas as possibilidades de
questionamento do ouvinte, para convencê-lo. O que você acha disso?
Localize exemplo disso no sermão e comente.

dica. utilize o bloco


de anotações para
responder as atividades!

Sugestão de filme
80 SEAD/UEPB I Literatura Portuguesa
Palavra e Utopia (2000)

Em 1663, quando o padre Vieira é convoca-


do a comparecer diante da
terrível Inquisição portu-
guesa, ele precisa explicar
as idéias que defende, ao
questionar a escravidão,
a situação dos índios e a
relações império-colônia.
Intrigas na corte e um pe-
queno mal-entendido en-
fraquecem o poder do jesuíta, que chegou a ser amigo íntimo do rei
Dom João IV. Perante os juízes o sacerdote passa a limpo seu passado: a
juventude vivida no Brasil e os anos de noviciado na Bahia, seu envolvi-
mento na causa dos índios e o primeiro sucesso no púlpito. Proibido pela
Inquisição de falar em público, ele se refugia em Roma, onde conquista
enorme reputação e sucesso. A rainha Cristina da Suécia, que vivia em
Roma desde sua abdicação, manteve Vieira na Corte e insistiu para que
ele se tornasse seu confessor. Com saudades de Portugal, o padre re-
torna a seu país. Entretanto, a frieza com que é recebido pelo novo rei,
Dom Pedro, força sua volta ao Brasil, onde passa os últimos anos de sua
vida. Elenco: Lima Duarte, Luis Miguel Cintra, Ricardo Trêpa, Miguel Gui-
lherme, Leonor Silveira, Renato De Carmine, Diogo Dória, Paulo Matos,
Canto e Castro, Duarte de Almeida, Rogério Vieira, Luís Lima Barreto.
Direção: Manoel de Oliveira. Duração: 133 minutos.

Para relaxar...
Esta brincadeira é bastante conhecida. Ao mesmo tempo em que se
diverte você pode fixar algumas ideias que estudamos nesta unidade.
Vamos lá, então? Funciona assim: temos abaixo trechos do Sermão de
Santo Antonio aos Peixes, que o Pe. Vieira pregou em São Luís do Ma-
ranhão, em 1654; utilizando a alegoria de falar aos peixes, recrimina
com contundência a má vida dos ouvintes. Faltam algumas palavras
desses trechos. Localize-as no quadro e complete as frases. Em segui-
da, comente tais frases com colegas.

a) “Não só vos comei uns aos outros, senão que ________________.”

b) “(...) e eu, que prego aos peixes, para que vejais quão feio e abomi-
nável é, quero que o vejais _______________.”

Literatura Portuguesa I SEAD/UEPB 81


c) “Morreu algum deles, vereis logo tantos ________________ a despe-
daçá-lo e comê-lo.”

d) “São piores os homens que ____________.”

e) “(...) e assim como o pão se come com tudo, assim com tudo e em
tudo são comidos os ___________________.”

Q G J R K T A E Y Q K J L M N C T I D E V Z X R
O S G R A N D E S C O M E M O S P E Q U E N O S
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As respostas estão no final da unidade.

82 SEAD/UEPB I Literatura Portuguesa


Resumo
Vimos, na unidade de hoje, que o Barroco em Portugal, como no
restante na Europa, não diferiu muito do movimento anterior, o Classi-
cismo. As mudanças mais fortes aconteceram mais no campo político
que mesmo artístico. A dominação espanhola sobre Portugal, depois
da morte de D. Sebastião, e a presença intensa da Inquisição, dão as
cores do novo momento literário português. O Padre Antonio Vieira é o
principal nome desse período, cujos sermões, proferidos em Portugal e
no Brasil, aliados a sua rara capacidade retórica e diplomática, fez dele
um personagem muito importante do barroco luso-brasileiro.

Autovaliação
Com o objetivo de se autoavaliar, no que se relaciona à presente unidade, você
pode observar se:

• identificou os principais acontecimentos políticos e sociais, que


determinaram a instalação e consolidação do Barroco na literatura;

• conseguiu observar a importância da influência espanhola na formação


do barroco literário português;

• identificou, através de alguns de seus sermões, a posição política e


social do Padre Antonio Vieira.

dica. utilize o bloco


de anotações para
responder as atividades!

Literatura Portuguesa I SEAD/UEPB 83


Referências
COELHO, Nelly Novaes. Literatura e Linguagem. A obra literária e a
expressão linguística. 5. ed. Petrópolis-RJ: Vozes, 1994

MOISÉS, Massaud. A literatura portuguesa através dos textos. 28. ed.


São Paulo: Cultrix, 2002

NICOLA, José de. Literatura Portuguesa – das origens aos nossos dias. São
Paulo: Scipione, 1999

Resposta do caça-palavras

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VI UNIDADE

Arcadismo: Bocage

Literatura Portuguesa I SEAD/UEPB 85


Apresentação
O século XVIII ficou conhecido como o “Século das Lu-
zes”, por ter sido o momento que ocorreu um dos movimen-
tos mais fortes, em se tratando de conhecimento, de valori-
zação do saber: o Iluminismo.
Tudo, nesse período, estará voltado para essa questão,
inclusive – e principalmente – a estética.
A ascensão da classe burguesa, que, pela sua racionali-
dade e clareza, inviabilizou os pensamentos dominantes no
barroco, inspirados pela religiosidade, e, por isso mesmo,
nebulosos, foi fundamental para o surgimento de um outro
jeito de pensar o mundo e a vida.
Quando se fala em racionalidade, mais uma vez vem à
baila a ideia clássica do homem como centro de todas as
coisas, e, tal como aconteceu no Classicismo, a Antiguidade
Greco-Romana volta a ser a referência artística da vez.
Por isso, o movimento que vamos estudar agora se cha-
ma Arcadismo (o termo se reporta a Arcádia, uma região
do Peloponeso, na Grécia), e é também conhecido como
Neoclassicismo. Eram chamadas de “Arcádias” as academias
em que se reuniam os artistas e intelectuais, para aprimora-
mento mútuo.
Em Portugal, especificamente, essa escola teve início em
1756, quando foi fundada a Arcádia Lusitana (também co-
nhecido como Olissiponense (de Ulisses, referindo-se a Lis-
boa, que teria sido fundada por esse personagem clássico)),
pelos poetas Cruz e Silva, Esteves Negrão, Teotônio Gomes
de Carvalho e Correia Garção. Desenvolveu-se até 1825,
quando o poeta Almeida Garrett publicou o poema “Ca-
mões”, começando, então, o Romantismo lusitano.
Mas, a figura de maior expressão do Arcadismo portu-
guês, e que será o foco de nosso estudo nesta unidade é
Manuel Maria L’Hedoux Barbosa Du Bocage.
Vamos lá?!
86
8 6 SEAD/UEPB I Literatura Portuguesa
Objetivos

É nosso desejo que, ao final desta unidade, você consiga:

• observar o Arcadismo como uma reação dialética ao


Barroco decadente;
• perceber a influência do racionalismo clássico e clas-
sicista na poesia árcade;
• analisar a poesia de Bocage, no contexto português
árcade.

Literatura Portuguesa I SEAD/UEPB 87


Fonte: http://4.bp.blogspot.com/_2opzisu9iLE/TKTREZGcAaI/AAAAAAAAAB4/StwnxVdTOG0/s1600/
arcadismo+exercicio.jpg

Texto 1

Arcadismo
Nelly Novaes Coelho

Ao lermos hoje a produção poética que se seguiu ao período bar-


roco temos a impressão de que, conforme garante o ditado popular,
depois da tempestade veio a bonança. É como se surgisse um total
repúdio às formas conturbadas ou preciosistas que imperaram durante
quase um século de literatura. A serenidade e a simplicidade das linhas,
cores, vocabulário e ideias volta a predominar, já com uma aproxima-
ção muito maior entre o mundo ideal da arte e o real. O que a poesia
revela nesse momento (...) é o ideal de uma vida real, comum e sim-
ples, de um amor tranquilo, sem conflitos e realizado no plano terreno;
de um trabalho intelectual e construtivo, daquele que vai consolidar a
civilização burguesa durante todo o século XIX que se aproxima.
Período da chamada “aurea mediocritas”, o Neoclassicismo repre-
senta na literatura a calmaria que precede as tempestades... Iniciado
na Itália, com a fundação da Arcádia (= academia literária cujo pro-
grama era combater o mau gosto na arte), o movimento – chamado
de início arcádico – propunha uma severa reação contra a gratuidade,
preciosismo, vacuidade e extravagância verbal em que havia caído a
poesia seiscentista.
A Arcádia dava continuidade, com a convencional
ficção da vida de seus pastores, à mítica Arcádia
helênica, criada pela poesia de Teócrito, imitada
por Virgílio e herdada pelos bucolistas do Renas-
cimento. A mesma transposição da realidade para

88 SEAD/UEPB I Literatura Portuguesa


a ficção da ideal existência pastoril em que, nas
almas como na natureza, tudo era cristalino e har-
monioso, circunscrevendo os aspectos sombrios da
vida, predominantemente, aos rigores da amada e
às coitas de amor.
Os pastores – de nomes semelhantes aos das éclo-
gas clássicas – recitavam uns aos outros as suas
composições em verso ou prosa, e era preceituado
que fosse a crítica severamente justa, para estímulo
de progressiva perfeição. “Inutilia trunca” (= corta
as coisas inúteis) era o lema a seguir na elabo-
-ração poética – e eis assomando, em tal preceito,
o espírito da medida clássica, em reação contra a
exuberância das formas plásticas ou ornatos ver-
bais que caracterizam o Barroco. Era a subordi-
nação do engenho ao juízo, prescrita por Verney,
e o regresso aos grandes mestres da Antiguidade
que melhor o tinham exemplificado, segundo ainda
ensinava Boileau e o mesmo barbadinho (Verney),
e ainda quantos no Século das Luzes teorizavam
sobre Literatura.
Simplicidade e ordem racional, implícita na pró-
pria separação dos gêneros (que se mantinham os
mesmos na Antiguidade Clássica e regidos pelos
mesmos cânones) que, expostos por Aristóteles,
Longino e Horácio, eram reproduzidos em perfeito
e brilhante decalque por Boileau. (Hernani Cidade)

O neoclassicismo, portanto, voltava a reviver as premissas estéticas


que haviam sido instituídas pelo Renascimento no século XVI: “imitação
da natureza” e “imitação dos antigos”. Contrastando com a complexi-
dade verbal e temática da poesia barroca, a neoclássica vai primar pela
simplicidade de pensamentos, aspirações e linguagem: procura o áureo
meio termo que evita as paixões inquietantes e destruidoras do equilíbrio.
Volta aos padrões poéticos da Antiguidade Clássica através da imi-
tação direta dos clássicos latinos (Horácio, Virgílio, Obídio), dos gregos
(Amacreonte, Píndaro, Teócrito), ou da transfiguração que havia sido
realizada pelos quinhentistas (= poetas do século XVI: Sá de Miranda,
Camões, Garcilaso, Antonio Ferreira).
Sinceridade e verdade devem orientar o poeta na escolha de temas
de seu canto. É a imitação da sua realidade o que lhe é agora pedido
e permitido. Nessa “imitação”, entretanto, ele deve obedecer estrita-
mente aos mesmos ditames que refiram à “imitação” no início da Era
Clássica: “a imitação da natureza” não deve ser servil, isto é, o real não
deve ser expresso em bruto, mas sim pela seleção indicada pela Razão
e pela Verdade. Assim, os pastores e as suas amadas pastoras (= ficção
obrigatória na poesia neoclássica) só manifestavam ideias, sentimentos
e atitudes próprios de sua classe social. Às suas imaginações não eram
permitidos os largos voos individualistas (porém como ao mesmo tem-
po lhes exigiam Verdade de sentimentos, o caminho já fica aberto para
o nascimento para o espírito individualista romântico).

Literatura Portuguesa I SEAD/UEPB 89


A poesia devia revelar a Bondade, a Beleza e a Verdade que, segun-
do o senso comum, existem no mundo natural e na natureza humana.
Daí a constante presença do “locus amoenus”; o campo e as serenas
paisagens pastoris, a apologia do homem simples, sem grandes ambi-
ções (a não ser as intelectuais), sem paixões e sem excessos – o homem
da “aurea mediocritas” horaciana.
À exigência do espontâneo, do natural e do simples no mundo ob-
jetivo, corresponde uma linguagem e uma composição poética também
simples: vocabulário ingênuo, versos redondilhos, estrofação livre, verso
branco, predileção pela comparação na criação das imagens etc.
Apesar de todo esse esforço para a renovação da poesia, o perío-
do neoclássico, porém, foi pobre em criação poética. A verdade é que
ele lança as suas raízes num húmus já desvitalizado por duzentos anos
de desgaste, ou seja, a grande criação poética do século XVI. Assim,
aquilo que havia sido inicialmente uma forma criadora (= um processo
estilístico que expressava uma nova filosofia de vida) nessa metade do
século XVIII transformara-se em uma simples fórmula: uma imitação da
“imitação”. As exigências da vida e do homem daquele momento já não
podiam ser expressas com as formas que corresponderam às exigências
vitais e sociais de dois séculos anteriores. No entanto, a essa precarie-
dade criadora poética correspondeu uma grande atividade teorizada e
crítica – a prosa racionalista (filosófica, doutrinadora, cívica, didática,
crítica), criada pelo Movimento Iluminista, que influiu diretamente na fer-
mentação ideológica culminada com a Revolução Francesa, em 1789.
Poetas representativos do período Neoclássico em Portugal: Nico-
lau Tolentino (1740-1811), Filinto Elísio (1734-1819), Marquesa de
Alorna (1750-1839) e Manuel Maria Barbosa du Bocage (1765-1805).
COELHO, Nelly Novaes. Literatura e Linguagem. A obra literária e a
expressão linguística. 5. ed. Petrópolis-RJ: Vozes, 1994, p. 156-8

Atividade I
a) Veja, a seguir, alguns dos lemas divulgados e vivenciados pelo Arcadismo.
São expressões latinas, que falam sobre ou direcionam o comportamento
poético dos árcades. Procure traduzi-las e comente-as:

a. Aurea mediocritas
b. Inutilia truncat
c. Carpe diem
d. Fugere urbem
dica. utilize o bloco e. Locus amoenus
de anotações para
responder as atividades!

90 SEAD/UEPB I Literatura Portuguesa


b) Procure estabelecer relações entre a poesia árcade e elementos da
Antiguidade greco-romana.

c) Que pode ter a ver o Iluminismo, enquanto movimento que evidenciava o


racionalismo, e o tipo de poesia realizada no Arcadismo.

d) O Arcadismo aparece como uma negação ao movimento barroco. Demonstre


isso através de alguns fatos que comprovam essa negação.

Bocage
Conheçamos um pouco sobre a vida de Bo-
cage, uma vez que sua obra está impregnada
de elementos que tiveram origem em sua vida
conturbada. Utilizaremos, para isso, os dados
constantes em http://pt.wikipedia.org/wiki/Ma-
nuel_Maria_Barbosa_du_Bocage:
Nascido em Setúbal, às três horas da tarde
de 15 de setembro de 1765, falecido em Lis-
boa, na manhã de 21 de dezembro de 1805,
era filho do bacharel José Luís Soares de Bar-
bosa, juiz de fora, ouvidor, depois advogado, e
de D. Mariana Joaquina Xavier l’Hedois Lustoff
du Bocage, cujo pai era francês. Teve cinco ir-
mãos.
A sua mãe era segunda sobrinha da célebre
poetisa francesa, madame Anne-Marie Le Page Fonte: http://upload.wikimedia.
du Bocage, tradutora do “Paraíso” de Milton, imitadora da “Morte de org/wikipedia/commons/f/f6/
Manuel_Maria_Barbosa_du_
Abel”, de Gessner, e autora da tragédia “As Amazonas” e do poema Bocage.jpg
épico em dez cantos “A Columbiada”, que lhe mereceu a coroa de lou-
ros de Voltaire e o primeiro prêmio da academia de Rouen.
Apesar das numerosas biografias publicadas após a sua morte, boa
parte da vida de Bocage permanece um mistério. Não se sabe que
estudos fez, embora se deduza da sua obra que estudou os clássicos
e as mitologias grega e latina, que estudou francês e também latim. A
identificação das mulheres que amou é duvidosa e discutível.
A sua infância foi infeliz. O pai foi preso , quando ele tinha seis
anos e permaneceu na cadeia seis anos. A sua mãe faleceu quando
tinha dez anos. Possivelmente ferido por um amor não correspondi-
do, assentou praça como voluntário em 22 de setembro de 1781 e
permaneceu no Exército até 15 de setembro de 1783. Nessa data, foi
admitido na Escola da Marinha Real, onde fez estudos regulares para

Literatura Portuguesa I SEAD/UEPB 91


guarda-marinha. No final do curso desertou, mas, ainda assim, surge
nomeado guarda-marinha por D. Maria I.
Nessa altura, já a sua fama de poeta e versejador corria por Lisboa.
Em 14 de abril de 1786, embarcou como oficial de marinha para
a Índia, na nau “Nossa Senhora da Vida, Santo António e Madalena”,
que chegou ao Rio de Janeiro em finais de junho.
Na cidade, viveu na atual Rua Teófilo Otoni, e diz o “Dicionário de
Curiosidades do Rio de Janeiro” de A. Campos da Costa e Silva, pag.
48, que “gostou tanto da cidade que, pretendendo permanecer definiti-
vamente, dedicou ao vice-rei algumas poesias-canção cheias de baju-
lações, visando atingir seus objetivos. Sendo, porém, o vice-rei avesso
a elogios, e admoestado com algumas rimas de baixo calão (...), fê-lo
prosseguir viagem para as Índias”. Fez escala na Ilha de Moçambique e
chegou à Índia em 28 de outubro de 1786. Em Pangim, frequentou de
novo estudos regulares de oficial de marinha. Foi depois colocado em
Damão, mas desertou em 1789, embarcando para Macau.
Foi preso pela Inquisição, e na cadeia traduziu poetas franceses
e latinos.
A década seguinte é a da sua maior produção literária e também o
período de maior boemia e vida de aventuras.
Ainda em 1790 foi convidado e aderiu à Academia das Belas
Letras ou Nova Arcádia, onde adotou o pseudônimo Elmano Sadino
[Elmano = anagrama de Manuel, seu primeiro nome; Sadino = refe-
rência ao rio Sado, que banha sua terra natal]. Mas passado pouco
tempo escrevia já ferozes sátiras contra os confrades.
Dominava então Lisboa o Intendente da Polícia Pina Manique, que
decidiu pôr ordem na cidade, tendo em 7 de Agosto de 1797 dado ordem
de prisão a Bocage por ser “desordenado nos costumes”. Ficou preso no
Limoeiro até 14 de Novembro desse ano, tendo depois dado entrada no
calabouço da Inquisição, no Rossio. Aí ficou até 17 de Fevereiro de 1798,
tendo ido depois para o Real Hospício das Necessidades, dirigido pelos
Padres Oratianos de São Felipe Neri, depois de uma breve passagem pelo
Convento dos Beneditinos. Durante este longo período de detenção, Boca-
ge mudou o seu comportamento e começou a trabalhar seriamente como
redator e tradutor. Só saiu em liberdade no último dia de 1798.
De 1799 a 1801, trabalhou sobretudo com Frei José Mariano da
Conceição Veloso, um frade brasileiro, politicamente bem situado e nas
boas graças de Pina Manique, que lhe deu muitos trabalhos para traduzir.
A partir de 1801, até a morte por aneurisma, viveu em casa por
ele arrendada no Bairro Alto, naquela que é hoje o nº 25 da travessa
André Valente.
Assim se descreveu, poeticamente:
Magro, de olhos azuis, carão moreno,
Bem servido de pés, meão na altura,
Triste de facha, o mesmo de figura,
Nariz alto no meio, e não pequeno;

92 SEAD/UEPB I Literatura Portuguesa


Incapaz de assistir num só terreno,
Mais propenso ao furor do que à ternura;
Bebendo em níveas mãos, por taça escura,
De zelos infernais letal veneno;

Devoto incensador de mil deidades


(Digo, de moças mil) num só momento,
E somente no altar amando os frades,

Eis Bocage, em quem luz algum talento;


Saíram dele mesmo estas verdades,
Num dia em que se achou mais pachorrento.

Atividade II
a) Reúna as informações sobre a vida de Bocage e compare com o soneto em
que ele próprio se descreveu e procure elaborar um comentário a respeito
desse poeta.

b) Percebeu que a vida de Bocage tem muitos episódios parecidos com a de


Camões? Faça uma comparação entre os dois e elabore um texto, levando
em conta também este poema, que o árcade fez:

Camões, grande Camões, quão semelhante


Acho teu fado ao meu, quando os cotejo!
Igual causa nos fez, perdendo o Tejo,
Arrostar co’o sacrílego gigante.

Como tu, junto ao Ganges sussurrante,


Da penúria cruel no horror me vejo.
Como tu, gostos vãos, que em vão desejo,
Também carpindo estou, saudoso amante.

Ludíbrio, como tu, da Sorte dura


Meu fim demando ao Céu, pela certeza
De que só terei paz na sepultura.

Modelo meu tu és, mas... oh, tristeza!...


Se te imito nos transes da Ventura,
Não te imito nos dons da Natureza.

http://www.citador.pt/poemas.php?op=10&refid=200808310012 dica. utilize o bloco


[Edição: deixar 12 linhas para a elaboração do texto] de anotações para
responder as atividades!

Literatura Portuguesa I SEAD/UEPB 93


Proposta de discussão
Aproveite a oportunidade que o Ambiente Virtual de Aprendizagem –
AVA lhe proporciona de maior interação com outros alunos, e, conse-
quentemente, a possibilidade de aprender mais, e discuta a seguinte
questão:
Nicola (NICOLA, José de. Literatura Portuguesa – das origens aos nossos
dias. São Paulo: Scipione, 1999, p. 115) afirma que na poesia lírica
de Bocage, “a influência do Arcadismo limita-se aos aspectos mais
formais, pois, do ponto de vista temático, o poeta foi um pré-ro-
mântico.” Analise este soneto e observe a questão aqui levantada:

Sobre estas duras, cavernosas fragas,


Que o marinho furor vai carcomendo,
Me estão negras paixões n’alma fervendo
Como fervem no pego as crespas vagas:

Razão feroz, o coração me indagas,


De meus erros a sombra esclarecendo,
E vás nele (ai de mim!) palpando, e vendo
De agudas ânsias venenosas chagas:

Cego a meus males, surdo a teu reclamo,


Mil objetos de horror co’a idéia eu corro,
Solto gemidos, lágrimas derramo:

Razão, de que me serve o teu socorro?


Mandas-me não amar, eu ardo, eu amo;
Dizes-me que sossegue, eu peno, eu morro.

http://www.antigo.turnodanoite.com/poesia/bocage.html

94 SEAD/UEPB I Literatura Portuguesa


Sugestão de filme
Bocage, o triunfo do amor (1997)

Inspirado na vida, obra e lenda do poeta português Manoel Maria


Barbosa du Bocage, símbolo libertário da sexualidade dos países de
língua portuguesa, este filme se desenvolve em um painel que abrange
poemas de todos os gêneros. Abre com o episódio baseado no poe-
ma que conta a história da bela e requintada cortesã Manteigui, que,
ao apaixonar-se pelo poeta indomável, acaba redimindo-se no amor.
Também é narrado o episódio baseado na poesia que conta a história
de duas amigas, Olinda e Alzira, seduzidas e enganadas por Bocage
disfarçado. Há o episódio da morte de Josimo, fiel amigo de Bocage,
no qual o poeta canta a saudade, sentimento maior da lírica da língua
portuguesa. Elenco: Victor Wagner, Francisco Farinelli, Vietia Rocha,
Linneu Dias, Eugénia Melo e Castro e Cristina Marinho. Direção: Djalma
Limongi Batista. Duração: 84 min.

Resumo

Observamos, neste período da literatura portuguesa, uma revita-


lização dos valores clássicos, provocada pelos exageros poéticos do
barroco. Mas não só por isso: o mundo mudava e se iluminava, elegen-
do o conhecimento como prioridade, em detrimento da religiosidade
obscura. A burguesia, enquanto classe social e economicamente pre-
dominante, passou a ditar as normas sociais baseadas na subjetividade
e valorização do raciocínio. As artes voltavam-se mais uma vez para
a antiguidade clássica greco-romana, razão por que esse movimento
ficou conhecido como neoclassicismo. Em Portugal, o Arcadismo tem
um nome de destaque: o poeta Bocage representa, na verdade, uma
já transição entre esse movimento e o romantismo que viria a seguir.

Literatura Portuguesa I SEAD/UEPB 95


Autovaliação
Observe se:

• percebeu o Arcadismo como uma reação dialética ao Barroco decadente;


• notou a influência do racionalismo clássico e classicista na poesia
árcade;
• conseguiu analisar a poesia de Bocage, no contexto português árcade.

dica. utilize o bloco


de anotações para
responder as atividades!

Referências
COELHO, Nelly Novaes. Literatura e Linguagem. A obra literária e a
expressão linguística. 5. ed. Petrópolis-RJ: Vozes, 1994

NICOLA, José de. Literatura Portuguesa – das origens aos nossos dias. São
Paulo: Scipione, 1999

Web:
http://pt.wikipedia.org/wiki/Manuel_Maria_Barbosa_du_Bocage
http://www.antigo.turnodanoite.com/poesia/bocage.html
http://www.citador.pt/poemas.php?op=10&refid=200808310012

96 SEAD/UEPB I Literatura Portuguesa


VII UNIDADE

Romantismo:
Garrett e Herculano
Literatura Portuguesa I SEAD/UEPB 97
Apresentação
A partir da Revolução France-
sa, de 1789, protagonizada prin-
cipalmente pelas classes burgue-
sas, o mundo cultural e artístico
começa a respirar outros ares.
Rejeita-se o materialismo clássico
e assume-se de vez uma atitude
essencialmente subjetiva, indivi-
dualista, em que os sentimentos
passam a ser o referencial mais
importante do ser humano.
A Alemanha já mostrara, em
1774, de que se comporia a lite-
ratura que se iniciava, através da
publicação de Werther, obra de
Goethe que é considerada o iní-
http://www.aletria.com.br/UserFiles/Image/
cio do novo movimento literário. Fontes:
Werther.jpg
Sete anos mais tarde, outro germa-
no, Schiller, lança Os Salteadores, e, em seguida, Guilher-
me Tell, transformando seu personagem em herói na luta
pela independência nacional.
Enquanto isso, a Inglaterra produz dois escritores cujas
obras definirão basicamente os rumos da nova escola lite-
rária: Lord Byron, com sua poesia ultra-sentimentalista, e
Walter Scott, com sua prosa de ficção histórica.
Entretanto, é na França que o novo movimento toma cor-
po e ganha a Europa.
Estamos falando sobre o Romantismo, um período tão
marcante que inicia e dá nome a uma era literária.
Em Portugal, temos o registro da primeira manifestação

98
8 SEAD/UEPB I Literatura Portuguesa
romântica com a publicação, em 1825, do poema Camões,
de Almeida Garrett; quarenta anos depois, essa escola cede
lugar ao Realismo, que surge no rastro da conturbada Ques-
tão Coimbrã.
Além de Garrett, com sua poesia lírica, enfocaremos nes-
ta unidade a literatura ficcional histórica de Alexandre Her-
culano, considerado o pai do romance histórico português.

Vamos lá?

Objetivos
É nosso desejo que, ao final desta unidade, você consiga:

• identificar o momento histórico e os acontecimentos que in-


fluenciaram e determinaram o movimento romântico português;
• observar as características da poesia lírica romântica de Garrett
e do romance histórico de Herculano;
• perceber a atuação ativa dos dois maiores nomes do romantis-
mo português, Garrett e Herculano, nas lutas civis em Portugal.

Literatura Portuguesa I SEAD/UEPB 99


Texto 1
Antes de qualquer coisa, um movimento literário é o resultado de
acontecimentos históricos e sociais, que atingem, de uma forma ou de
outra, escritores e leitores de uma determinada época. Daí a impor-
tância de conhecermos o contexto histórico-social em que se deu o
período literário em foco.

Contexto histórico do
período romântico
Durante os quarenta anos que
durou o Romantismo em Portugal,
como afirma Moisés, “três são as
configurações assumidas pela esté-
tica romântica: a primeira, em que
ainda permanecem atuantes alguns
valores neoclássicos, é representado
por Garrett, Herculano e Castilho,
e transcorre mais ou menos entre
1825 e 1838; a segunda, em que
se aglutina o chamado Ultra-Roman-
tismo, é representada especialmente
por Soares de Passos e Camilo Cas-
telo Branco, e vigora entre 1838 e
1860; a terceira, em que se opera a
transição para o Realismo, é repre-
sentada sobretudo por João de Deus
e Júlio Dinis, e ocupa a década de
60. O Romantismo português acom-
panha as linhas gerais do movimento
europeu, mas adaptando-o à conjun-
tura sócio-econômico-cultural (...)”
de Portugal do século XIX. [MOISÉS,
Revolução Francesa Massaud. A literatura portuguesa através
Fonte: http://1.bp.blogspot.com/_ZIugouQ8Eog/TDu91ziQu6I/AAAAAAAAAtk/
CpRnIvm3rn0/s1600/06_french_revolution_345133928_std.jpg dos textos. 28. ed. São Paulo: Cultrix,
2002, p. 251].
Por outro lado, Falbel anuncia que “um dos mais autorizados es-
tudiosos da história europeia contemporânea, ao traçar o plano de
sua obra sobre a época do Romantismo, escreve ‘serem poucos os
períodos da história, como os anos entre 1815 e 1848, que realçam
com tanta evidência o fato de cada período não ser mais do que uma
etapa no processo histórico’ [TALMON, J. L. Romantismo e Revolta. Eu-
ropa 1815-1848. Lisboa: Verbo, 1967, p. 7]. Na verdade, o exame
do período não permite ao historiador fixar balizas cronológicas nítidas

100 SEAD/UEPB I Literatura Portuguesa


entre causas e efeitos e nem tampouco determinar uniformemente o
início e o fim do grande movimento espiritual que tão profundas raízes
deixou no Ocidente.
Pré-Romantismo e Romantismo nascem do mesmo movimento his-
tórico e o seu início coincidente em vários lugares, com diversos grupos
que então se desconhecem uns aos outros, mostram o quanto tentaram
resolver os mesmos problemas humanos nas circunstâncias que favore-
cem a ruptura com o passado próximo, ou com o mundo ‘ordenado’ Da
Idade Média, permitindo uma nova transmutação de valores.
O período do Romantismo é fruto de dois grandes acontecimen-
tos na história da humanidade, ou seja, a Revolução Francesa e suas
derivações, e a Revolução Industrial. As duas revoluções provocaram
e geraram novos processos, desencadeando forças que resultaram na
formação da sociedade moderna, moldando em grande parte dos seus
ideais (sociais). As instituições políticas tradicionais sofreram fortes aba-
los e as fronteiras entre os povos foram modificadas criando novo equi-
líbrio entre as nações. O nacionalismo nesse tempo irrompe impetuo-
samente em cena, arrastando consigo boa parte dos povos europeus
em direção às suas aspirações políticas e sociais. Novas ideologias e
teorias acerca do Estado acompanham as mudanças rápidas inerentes
a tal processo. As ciências se ampliam em um vasto número de novas
áreas do conhecimento humano, que se abrem para a investigação e
o estudo. As artes recebem os novos elementos gerados em tais cir-
cunstâncias, incorporando-os em suas várias formas de expressão, já
anteriormente preparados com a revolução intelectual dos séculos XVII
e XVIII.
(...) A ‘idade do absolutismo’ [BELOEF, Max. The Age of Absolutism,
1660-1815. Nova York: Harperíodo Torchbooks, 1962], que se esten-
de de 1660 a 1815, caracteriza-se pelo estabelecimento de governos
fortes, assentados sob o absolutismo monárquico, é justamente contra
o princípio político absolutista que vão atuar as ideias e os programas
políticos dos revolucionários do século XVIII, os quais fazem do ideal
democrático sua bandeira de luta, de forma que a história da humani-
dade caminha cada vez mais nesse rumo e as massas populares partici-
pam mais e mais das decisões políticas ligadas ao seu próprio destino.
Sob esse aspecto, o Ancien Régime era na verdade fundamentado so-
bre classes ou grupos privilegiados, limitados a certas oligarquias rurais
e urbanas concentradas tão-somente em seus próprios interesses. Tal
situação, que cingia a uma pequena minoria as conquistas culturais e
científicas da civilização, era o ideal para represar descontentamento
e revolta que iriam eclodir com violência a partir da segunda metade
do século XVIII. O desenvolvimento de novas forças sociais e de novos
credos políticos e filosóficos se conjugaram no assalto às velhas institui-
ções que já apresentavam sinais de fissura e anacronismo.”
FALBEL, Nachman. Os fundamentos históricos do
Romantismo. In: GUINSBURG, J. (org.) O Romantismo.
São Paulo: Perspectiva, 2002, p. 23-4

Literatura Portuguesa I SEAD/UEPB 101


Texto 2

Conheçamos, agora, aquele que é considerado o introdutor do


Romantismo em Portugal, graças à publicação de seu poema em ho-
menagem a Camões.

Almeida garrett
João Batista da Silva Leitão
de Almeida Garrett, o iniciador
do romantismo português, nas-
ceu no Porto (1799) e faleceu
em Lisboa (1854); foi um dos
mais radicais componentes da
primeira geração romântica.
Suas produções literárias re-
velaram, na forma e no con-
teúdo, as contradições ideoló-
gicas em que ele se debateu:
era de personalidade conser-
vadora e, ao mesmo tempo,
um defensor das ideias liberais
– pelas quais foi exilado duas
vezes de Portugal.
Garrett formou-se dentro
do Arcadismo, identificando-
-se com as ideias iluministas
e com a poética defendida
por seu mestre neoclássico,
Filinto Elíseo. Suas primeiras
obras – Lírica de João Mínimo
e Retrato de Vênus – atestam
essa filiação ao Arcadismo.
Fonte: http://www.jornaltv.info/photos/almeida_garrett.jpg
Cursou Direito na Universida-
de de Coimbra, formando-se em
1821, nesse tempo já aderira ao liberalismo, tendo defendido ardente-
mente os liberais da Revolução do Porto de 1820.
A publicação do poema Retrato de Vênus no mesmo ano de sua for-
matura trouxe-lhe notoriedade, embora proveniente de um escândalo.
Setores reacionários, ligados à igreja, acusaram Garrett de materialista
e de obsceno e levaram-no a um julgamento, no qual foi absolvido.
Pouco antes desse acontecimento, encenou a tragédia Catão, com al-
gumas menções ao movimento revolucionário liberal português. Foram

102 SEAD/UEPB I Literatura Portuguesa


acontecimentos que precipitaram a decisão governamental de exilar o
poeta, por razões políticas, após o golpe de Estado de 1822, que baniu
o liberalismo de Portugal.
Em 1823, junto com sua esposa, Luísa Midosi, esteve exilado na
Inglaterra. Lá, ele tomou contato com as tendências do romantismo in-
glês – principalmente com a obra de Walter Scott, o autor medievalista
de Ivanhoé. Também leu muito Shakespeare, o dramaturgo mais presti-
giado pelos românticos. Em 1824, esteve na França, vivendo no Havre
e escrevendo dois livros, Camões, com base na vida do mais célebre
poeta português, e Dona Branca, em torno de uma figura medieval do
século XIII.
Quando regressou a Portugal, os seus dois livros Camões e Dona
Branca já haviam sido publicados (em 1825 e 1826 respectivamente).
Entretanto, novo exílio obrigou Garrett a voltar à Inglaterra: as forças
absolutistas de D. Miguel tinham vencido a luta pelo trono português.
Passou o ano de 1828 em terra inglesa, depois transferiu-se para a Fran-
ça, e de lá para o norte da África, onde engajou-se no exército de D.
Pedro IV (ou D. Pedro I do Brasil). Em meio a essa vida aventuresca e
complicada, produziu as obras que haveriam de consagrá-lo como um
escritor em definitivo. Em 1832, participou do cerco à cidade do Porto –
um empreendimento dos liberais –, e enquanto isso escreveu O Arco de
Santana, um romance histórico. Dois anos depois, quando o país já esta-
va em situação menos caótica e sob o domínio liberal, Garrett retornou
a Lisboa. Separou-se da esposa e assumiu a tarefa de fundar o teatro
nacional, empreendimento que seria dos mais importantes de sua vida.
A primeira peça romântica é de sua autoria: Um auto de Gil Vicente. A
mais importante também leva a assinatura de Garrett: Frei Luís de Sousa.
Em 1841, uniu-se a Adelaide Deville, que lhe deu uma filha. Dois
anos depois, iniciou a publicação de Viagens na minha terra, um re-
trato-reportagem. Novos amores, entretanto, ocuparam-lhe a imagi-
nação. O falecimento precoce de Adelaide foi logo esquecido quando
aconteceu a paixão pela Viscondessa da Luz, Maria Rosa de Montúfar,
a quem dedicou uma de suas obras primas, o livro Folhas Caídas, de
1853. Faleceu em 1854.
CAMPEDELLI, Samira Youssef. Literatura História e Texto 2.
São Paulo: Saraiva, 1994, p. 22-4

Atividade I
A partir da comparação dos textos acima, estabeleça uma ligação entre
dica. utilize o bloco
a situação histórica europeia e a vida de Almeida Garrett. Em que pontos de anotações para
poderiam se encontrar? responder as atividades!

Literatura Portuguesa I SEAD/UEPB 103


Poemas de almeida garrett

Este inferno de amar

Este inferno de amar — como eu amo!


Quem mo pôs aqui n’alma… quem foi?
Esta chama que alenta e consome,
Que é a vida — e que a vida destrói —
Como é que se veio a atear,
Quando — ai quando se há-de ela apagar?

Eu não sei, não me lembra; o passado,


A outra vida que dantes vivi
Era um sonho talvez… — foi um sonho —
Em que paz tão serena a dormi!
Oh! que doce era aquele sonhar…
Quem me veio, ai de mim! despertar?
Só me lembra que um dia formoso
Eu passei… dava o Sol tanta luz!
E os meus olhos, que vagos giravam,
Que fez ela? Eu que fiz? — Não no sei
Mas nessa hora a viver comecei…

http://www.poemas-de-amor.net/este_inferno_de_amar_almeida_garrett

Não te amo

Não te amo, quero-te: o amar vem d’alma.


E eu n’alma – tenho a calma,
A calma – do jazigo.
Ai! não te amo, não.

Não te amo, quero-te: o amor é vida.


E a vida – nem sentida
A trago eu já comigo.
Ai, não te amo, não!

Ai! não te amo, não; e só te quero


De um querer bruto e fero
Que o sangue me devora,
Não chega ao coração.

104 SEAD/UEPB I Literatura Portuguesa


Não te amo. És bela; e eu não te amo, ó bela.
Quem ama a aziaga estrela
Que lhe luz na má hora
Da sua perdição?

E quero-te, e não te amo, que é forçado,


De mau feitiço azado
Este indigno furor.
Mas oh! não te amo, não.

E infame sou, porque te quero; e tanto


Que de mim tenho espanto,
De ti medo e terror...
Mas amar!... não te amo, não.

http://pensartransgredir.blogspot.com/2008/04/poesia-no-te-amo-almeida-garret.html

Atividade II

Podemos observar, nos dois poemas citados, claras características românticas,


como o sentimentalismo, o egocentrismo, as contradições provocadas pelos
sentimentos. Localize esses pontos e comente-os.

dica. utilize o bloco


de anotações para
responder as atividades!

Literatura Portuguesa I SEAD/UEPB 105


Texto 3
Para saber um pouco sobre o escritor que é considerado o funda-
dor do romance histórico português, Alexandre Herculano, vamos nos
utilizar de dois textos. Um extraído da web (http://pt.wikipedia.org/wiki/
Alexandre_Herculano), e outro de Samira Campedelli.

Alexandre Herculano
Alexandre Herculano de Carvalho e Araújo
nasceu no Pátio do Gil, na Rua de São Bento, em
28 de março de 1810, numa modesta família de
origem popular; a mãe, Maria do Carmo de São
Boaventura, filha e neta de pedreiros da Casa Real;
o pai, Teodoro Cândido de Araújo, era funcionário
da Junta dos Juros (Junta do Crédito Público). Na
sua infância e adolescência, não pode ter deixado
de ser profundamente marcado pelos dramáticos
acontecimentos da sua época: as invasões france-
sas, o domínio inglês e o influxo das ideias libe-
rais, vindas sobretudo da França, que conduziriam
à Revolução de 1820. Até aos 15 anos frequentou
o Colégio dos Padres Oratorianos de S. Filipe de
Néry, então instalados no Convento das Necessi-
dades em Lisboa, onde recebeu uma formação de
índole essencialmente clássica, mas aberta às no-
vas ideias científicas. Impedido de prosseguir estu-
dos universitários (o pai cegou em 1827, ficando
impossibilitado de prover ao sustento da família)
adquiriu uma sólida formação literária, que passou
Fontes: http://www.superdownloads.com.br/imagens/telas/aboboda- pelo estudo de inglês, francês, italiano e alemão,
alexandre-herculano-136245,1.jpg línguas que foram decisivas para a sua obra literária.
(Fonte: http://pt.wikipedia.org/wiki/Alexandre_Herculano)
Assim como Garrett, seu companheiro de geração, também foi exi-
lado, por acreditar no liberalismo. Em 1831, esteve na França, onde
passou o tempo a ler. Em 1832, incorporado ao exército liberal, ajudou
o cerco do Porto.
Em 1833, quando os ânimos políticos pareciam estar apaziguados,
Herculano começou a exercer o cargo de segundo bibliotecário na Bi-
blioteca Nacional do Porto, cargo que ocupou até 1836, quando se
demitiu a iniciou a publicação de A voz do profeta. Em seguida, dirigiu a
revista O Panorama, até 1844, onde publicou algumas de suas obras de
ficção, frutos de intensa pesquisa histórica: Lendas e narrativas; O bobo;
O monge de Cister; Eurico, o Presbítero.

106 SEAD/UEPB I Literatura Portuguesa


A década de 1850 foi para Alexandre Herculano particularmen-
te especial. Trata-se da fase mais intensa da sua atividade literária e
política em face das ideias liberais. Rediscutiu alguns fatos da história
de Portugal e acabou provocando enérgica reação do clero, que não
aceitou algumas de suas reinterpretações sobre fatos que envolviam
uma dessacralização da Igreja Católica. As polêmicas entre o autor e a
Igreja foram registradas na obra Eu e o Clero. Outras questões políticas
no cenário lisboeta levaram o historiador a sair da cena urbana para a
quinta de Val-de-Lobos.
A saída para o campo, no refúgio de Val-de-Lobos, foi muito im-
portante para o desenvolvimento de um antigo projeto do historiador:
terminar os seus dias dedicando-se à história de seu país. A obra gi-
gantesca, Portugalie Monumenta Historica foi fruto desse isolamento.
Casou-se em 1866, e sua última aparição pública aconteceu em 1871.
Faleceu em 1877.
CAMPEDELLI, Samira Youssef. Literatura História e Texto 2. São Paulo: Saraiva, 1994, p. 31-2

Trecho de eurico, o presbítero


[Sinopse do romance: No tempo em que a Península Ibérica foi in-
vadida pelos mouros, em 711, um presbítero chamado Eurico era muito
prestigiado pelas canções e pelos poemas que escrevia; abraçara o sa-
cerdócio sem vocação, e era diretamente inspirado pelo amor que sentia
por Hermengarda, cujo pai impedira o casamento dos namorados.
Eurico entra para o convento no ano da avassaladora invasão ára-
be; quando a luta entre árabes e visigodos se torna acirrada, o monge,
que era godo, abandona o hábito e pega em armas para defender as
terras da Espanha, transformando-se, então, no Cavaleiro Negro, e os
seus feitos passam a correr de boca em boca.
Enquanto Pelágio prepara a defesa das Astúrias, sua irmã Hermen-
garda é raptada e é o próprio Eurico quem salvará a amada, tirando-a
das mãos dos sarracenos e levando-a para a Gruta de Covadonga,
onde renasce o antigo amor, que agora esbarra num obstáculo intrans-
ponível: o voto celibatário de Eurico.
Os amantes resolvem separar-se. O cavaleiro se lança em sucessi-
vas investidas contra os árabes, em atitude suicida, que o leva à morte.
Hermengarda, inconformada com a perda, enlouquece.]

Capítulo I – Os Visigodos

A raça dos Visigodos conquistadora das Espanhas subjugara toda


a Península havia mais de um século. Nenhuma das tribos germânicas
que, dividindo entre si as províncias do império dos césares, tinham
tentado vestir sua bárbara nudez com os trajos despedaçados, mas

Literatura Portuguesa I SEAD/UEPB 107


esplêndidos, da civilização romana soubera como os Godos ajuntar
esses fragmentos de púrpura e ouro para se compor a exemplo de povo
civilizado. Leovigildo expulsara da Espanha quase que os derradeiros
soldados dos imperadores gregos, reprimira a audácia dos Francos,
que em suas correrias assolavam as províncias visigóticas de além dos
Pireneus, acabara com a espécie de monarquia que os Suevos tinham
instituído na Galícia e expirara em Toletum, depois de ter estabelecido
leis políticas e civis e a paz e ordem públicas nos seus vastos domínios,
que se estendiam de mar a mar e, ainda, transpondo as montanhas da
Vascónia, abrangiam grande porção da antiga Gália Narbonense.
Desde essa época, a distinção das duas raças, a conquistadora ou
goda e a romana ou conquistada, quase desaparecera, e os homens
do Norte haviam-se confundido juridicamente com os do Meio-Dia em
uma só nação, para cuja grandeza contribuíra aquela com as virtudes
ásperas da Germânia, esta com as tradições da cultura e polícia roma-
nas. As leis dos césares, pelas quais se regiam os vencidos, misturaram-
-se com as singelas e rudes instituições visigóticas, e já um código único,
escrito na língua latina, regulava os direitos e deveres comuns quando o
arianismo, que os Godos tinham abraçado abraçando o Evangelho, se
declarou vencido pelo catolicismo, a que pertencia a raça romana. Esta
conversão dos vencedores à crença dos subjugados foi o complemento
da fusão social dos dois povos. A civilização, porém, que suavizou a
rudeza dos bárbaros era uma civilização velha e corrupta. Por alguns
bens que produziu para aqueles homens primitivos, trouxe-lhes o pior
dos males, a perversão moral. A monarquia visigótica procurou imitar
o luxo do império que morrera e que ela substituíra. Toletum quis ser a
imagem de Roma ou de Constantinopla. Esta causa principal, ajudada
por muitas outras, nascidas em grande parte da mesma origem, gerou
a dissolução política por via da dissolução moral.
Debalde muitos homens de gênio revestidos da autoridade suprema
tentaram evitar a ruína que viam no futuro: debalde o clero espanhol,
incomparavelmente o mais alumiado da Europa naquelas eras tenebro-
sas e cuja influência nos negócios públicos era maior que a de todas as
outras classes juntas, procurou nas severas leis dos concílios, que eram
ao mesmo tempo verdadeiros parlamentos políticos, reter a nação que
se despenhava. A podridão tinha chegado ao âmago da árvore, e ela
devia secar. O próprio clero se corrompeu por fim. O vício e a dege-
neração corriam soltamente, rota a última barreira. Foi então que o
célebre Roderico se apossou da coroa. Os filhos do seu predecessor
Vitiza, os mancebos Sisebuto e Ebas, disputaram-lha largo tempo; mas,
segundo parece dos escassos monumentos históricos dessa escura épo-
ca, cederam por fim, não à usurpação, porque o trono gótico não era
legalmente hereditário, mas à fortuna e ousadia do ambicioso soldado,
que os deixou viver em paz na própria corte e os revestiu de dignidades
militares. Daí, se dermos crédito a antigos historiadores, lhe veio a úl-
tima ruína na batalha do rio Chrysus ou Guadalete, em que o império
gótico foi aniquilado.
(...)
http://www.virtualbooks.com.br/v2/ebooks/?idioma=Portugu%EAs&id=00696

108 SEAD/UEPB I Literatura Portuguesa


Atividade III
No capítulo inicial do romance, Herculano demonstra seus talentos de
historiador, ao situar historicamente os visigodos, povo ao qual pertence
o protagonista do romance. Entretanto, pode-se perceber que, em vários
momentos, a opinião do autor se sobressai à própria narrativa histórica, quando
ele expõe claramente seus pontos de vista. Localize alguns desses trechos e os
comente.

dica. utilize o bloco


de anotações para
responder as atividades!

Sugestão de filmes
Frei Luis de Sousa (1950)

Adaptação cinematográ-
fica da mais famosa peça de
teatro do romantismo portu-
guês: Frei Luís de Sousa, de
Almeida Garrett. Após sete
anos de buscas pelo mari-
do, D. João de Portugal, que
partiu com D. Sebastião para
a Batalha de Alcácer-Quibir,
D. Madalena de Vilhena casa-se com o cavaleiro D. Manuel de Sousa
Coutinho, e tem uma filha, D. Maria de Noronha, que sofre de tubercu-
lose. Só o aio Telmo Pais conserva a esperança de D. João de Portugal
estar vivo, presságio que se confirmará vinte anos mais tarde, na figura
de um romeiro. Elenco: Maria Sampaio, Barreto Poeira, Raul de Carva-
lho, Tomás de Macedo, João Villaret, José Amaro, Maria Dulce. Direção:
Antonio Lopes Ribeiro. Duração: 117 min.

Literatura Portuguesa I SEAD/UEPB 109


Quem és tu? (2000)

Este filme foi realizado a par-


tir de uma adaptação da obra de
Almeida Garrett, denominada Frei
Luís de Sousa, que retrata a épo-
ca sebastianista, por volta do ano
1578, altura do desaparecimento
do rei D. Sebastião na Batalha de
Alcácer-Quibir. Dado que não
existiam herdeiros, desenvolveu-
-se um longo conflito pela sucessão. Entre os candidatos ao trono, Filipe,
rei de Espanha, ligou Portugal ao seu império em 1580. Foi assim, que
nasceu a crença popular do sebastianismo, a partir do qual D. Sebastião
regressaria para reconquistar o império português. Entre os ilustres desa-
parecidos estava D. João de Portugal, primeiro marido de D. Madalena
de Vilhena. Esta tendo acreditado durante sete anos no seu regresso,
casou pela segunda vez com D. Manuel de Sousa Coutinho, tendo sido
este casamento previamente aprovado pelos pais de D. João de Portu-
gal. Esta situação manteve-se durante vinte anos, ao fim dos quais D.
João reapareceu embora ocultando a sua verdadeira identidade, através
da personagem de um romeiro. Elenco: Patrícia Guerreiro, Suzana Bor-
ges, Rui Morrisson, Rogério Samora, José Pinto, Francisco D’Orey, Bruno
Martelo. Direção: João Botelho. Duração: 112 min.

Resumo
Os primeiros anos do Romantismo português coincidiram com as
lutas civis entre liberais e conservadores, acirradas com a renúncia de
D. Pedro ao trono brasileiro e seu engajamento na luta pelo trono de
Portugal, ao lado dos liberais. Portugal vive então uma guerra civil que
se estende por dois anos (1832-34). Somente em 1836, com os liberais
já no poder, é que o país retorna a uma certa tranquilidade, sintonizado
com as maiores potências europeias. Participaram ativamente dessas
lutas, como soldados, os dois maiores nomes do movimento romântico
português: Almeida Garrett e Alexandre Herculano. Garrett é conside-
rado o iniciador do Romantismo em Portugal, com a publicação, em
1825, de obra Camões, enquanto Herculano é tido como um excelente
romancista histórico – sua obra mais conhecida é Eurico, o Presbítero.

110 SEAD/UEPB I Literatura Portuguesa


Autovaliação

Observe se:

• conseguiu identificar o momento histórico e os acontecimentos que


influenciaram e determinaram o movimento romântico português;

• pôde observar as características da poesia lírica romântica de Garrett e


do romance histórico de Herculano;

• percebeu a atuação ativa dos dois maiores nomes do romantismo


português, Garrett e Herculano, nas lutas civis em Portugal, e a
influência dessa participação em sua obra.

dica. utilize o bloco


de anotações para
responder as atividades!

Literatura Portuguesa I SEAD/UEPB 111


Referências
CAMPEDELLI, Samira Youssef. Literatura História e Texto 2. São Paulo:
Saraiva, 1994

FALBEL, Nachman. Os fundamentos históricos do Romantismo. In:

GUINSBURG, J. (org.) O Romantismo. São Paulo: Perspectiva, 2002, p.


23-50.

MOISÉS, Massaud. A literatura portuguesa através dos textos. 28. ed.


São Paulo: Cultrix, 2002

Web:
http://www.poemas-de-amor.net/este_inferno_de_amar_almeida_
garrett
http://pt.wikipedia.org/wiki/Alexandre_Herculano
http://www.virtualbooks.com.br/v2/ebooks/?idioma=Portugu%EAs&
id=00696
http://pensartransgredir.blogspot.com/2008/04/poesia-no-te-amo-
almeida-garret.html

112 SEAD/UEPB I Literatura Portuguesa


VIII UNIDADE

Realismo e Simbolismo:
a Questão Coimbrã e a
decadência
Literatura Portuguesa I SEAD/UEPB 113
Apresentação
A Questão Coimbrã foi um aconteci-
mento literário português que teve desdobra
mentos definitivos para a literatura lusa.
O mundo parecia estar cansado do sen-
timentalismo romântico, e a dura realidade
batia à porta. Influenciado fortemente por te-
orias cientificistas que começavam a se fazer
presentes no mundo, o homem passa a se
interessar mais por essa realidade, e a lite-
ratura acompanha essa tendência, tornando
seus temas mais materialistas, mais voltados
para o cotidiano, deixando o Romantismo
Fonte: http://4.bp.blogspot.com/_
oC0aHCGS9Ko/S_U8soRi3OI/ para trás.
AAAAAAAAJI4/q1uE5-5Zdok/s1600/
Clepsidra+1.jpg Na França, surge aquele que é conside-
rado o primeiro romance realista, Madame
Bovary, de Gustave Flaubert, refletindo essas ideias cientifi-
cistas da época.
Em Portugal, aparecem, neste momento, em Portugal,
nomes como Eça de Queirós e Antero de Quental, respecti-
vamente na prosa e na poesia. Portugal vive um forte senti-
mento anticlerical e antimonárquico. Juntam-se a esses dois
sentimentos, a preocupação em fazer uma literatura do seu
tempo, tendo como características: “o objetivismo, que é a
negação do subjetivismo romântico; a valorização do não-
-eu, do que está fora do indivíduo; o universalismo, que subs-
titui o personalismo romântico; e o materialismo, que leva
à negação do sentimentalismo e da metafísica.” (NICOLA,
José de. Literatura Portuguesa: da origem aos nossos dias.
São Paulo: Scipione, 1999, p. 154)
Mas, com o passar do tempo, e a aproximação do final
do século XIX, as lutas sociais pelas quais se bateram os re-
alistas mostraram-se ineficientes e incapazes de transformar
114
1 14 SEAD/UEPB I Literatura Portuguesa
o mundo como desejavam... Daí a crise existencial, a de-
pressão e a volta ao sentimento de misticismo como busca
de respostas para suas angústias. É o Simbolismo que surge,
com a publicação de Oaristos, de Eugênio de Castro, e se
estende até 1915, quando aparece o fenômeno Fernando
Pessoa, inaugurando o Modernismo português.
Nesta unidade, trataremos destas duas escolas: o Realis-
mo e o Simbolismo, com os três nomes aqui citados: Eça,
Quental e Eugênio de Castro.

Vamos lá?

Objetivos
É nosso desejo que, ao final desta unidade, você consiga:

• identificar os acontecimentos sociais e científicos que origina-


ram o Realismo;
• perceber a importância da Questão Coimbrã na implantação
de um novo movimento literário em Portugal, voltado para a
realidade;
• localizar nas obras de Eça de Queirós e de Antero de Quental
influências do Realismo;
• entender as frustrações dos realistas, que terminaram desembo-
cando no Simbolismo.

Literatura Portuguesa I SEAD/UEPB 115


Texto 1
Inicialmente, vamos ter uma ideia geral sobre o que foi a Questão
Coimbrã, através da leitura do texto seguinte, extraído da internet.

A questão coimbrã
Também conhecida como a
Questão do Bom Senso e Bom
Gosto, foi uma das mais im-
portantes polêmicas literárias
portuguesas e a maior em todo
o século XIX que, como explica
Margarida Vieira Mendes, “alas-
trou de forma explosiva, de no-
vembro de 1865 a julho do ano
seguinte, em cartas, crônicas e
artigos de imprensa, opúsculos,
folhetins, poesias e textos satíri-
cos, alusões em conferências (...)
ou mesmo discursos parlamenta-
res” (in Dicionário do Romantis-
Universidade de Coimbra mo Literário Português, Editorial
Fontes: http://www.baixaki.com.br/imagens/wpapers/BXK8813_universidade_de_ Caminho, 1997).
coimbra800.jpg
Foi desencadeada em Coim-
bra por um grupo de jovens inte-
lectuais que vinham reagindo contra a degenerescência romântica e o
atraso cultural do país.
A polêmica começou em Outubro de 1865, quando António Feli-
ciano de Castilho aludiu, na carta-posfácio ao Poema da Mocidade, de
Pinheiro Chagas, à moderna escola de Coimbra e à sua poesia ininteli-
gível, ridicularizando o aparato filosófico e os novos modelos literários
de que ela se nutria (“temporal desfeito de obras, de encômios, de
sátiras, de plásticas, de estéticas, de filosofias e de transcendências”),
numa referência provável às teorias filosóficas e poéticas expostas nos
prefácios a Visão dos Tempos e Tempestades Sonoras (ambas de 1864),
de Teófilo Braga, e na nota posfacial das Odes Modernas, de Antero
de Quental (de Julho de 1865). Para além disso, António Feliciano de
Castilho fez elogios rasgados a Pinheiro Chagas, chegando ao ponto
de propor o jovem poeta para reger a cadeira de Literatura no Curso
Superior de Letras.
Sentindo-se visado, Antero de Quental respondeu com o panfleto
Bom Senso e Bom Gosto, carta ao Ex.mo. Sr. António Feliciano de Cas-
tilho, em que definiu “a bela, a imensa missão do escritor” como “um
Fonte: http://purl.pt/93/1/contextos/ sacerdócio, um ofício público e religioso de guarda incorruptível das
res4193g/res4193g-rosto_03.jpg ideias, dos sentimentos, dos costumes, das obras e das palavras”, que
116 SEAD/UEPB I Literatura Portuguesa
exige, por um lado, uma alta posição ética, por outro lado, uma total
independência de pensamento e de caráter. Como consequência, e
numa clara alusão a Castilho, Antero repudiava a poesia que cultiva a
“palavra” em vez da “ideia”; a poesia decorativa dos “enfeitadores das
ninharias luzidias”; a poesia conservadora dos que “preferem imitar a
inventar; e a imitar preferem ainda traduzir”; em suma, a poesia que
“soa bem, mas não ensina nem eleva”.
Estavam marcadas as posições: de um lado os intelectuais conser-
vadores; do outro a nova geração, aberta às recentes correntes euro-
peias. Seguiram-se “Bom Senso e Bom Gosto, folhetim a propósito da
carta...”, de Pinheiro Chagas, que acorreu em defesa de Castilho, e, do
lado dos coimbrões, os folhetos Teocracias Literárias, de Teófilo Braga,
e A Dignidade das Letras e as Literaturas Oficiais, de Antero. Neste tex-
to, Antero repudiava uma vez mais “as literaturas oficiais, governamen-
tais, subsidiadas, pensionadas, rendosas, para quem o pensamento é
um ínfimo meio e não um fim grande e exclusivo” e preconizava uma
literatura que “se dirige ao coração, à inteligência, à imaginação e até
aos sentidos, toma o homem por todos os lados; toca por isso em todos
os interesses, todas as ideias, todos os sentimentos; influi no indivíduo
como na sociedade, na família como na praça pública; dispõe os espí-
ritos; determina certas correntes de opinião; combate ou abre caminho
a certas tendências; e não é muito dizer que é ela quem prepara o
berço onde se há de receber esse misterioso filho do tempo - o futuro”.
Embora de origem literária, a questão alargou-se a outras áreas
como a cultura, a política e a filosofia. Esta refrega durou mais de um
ano e envolveu nomes que já eram ilustres, como Ramalho Ortigão e
Camilo C. Branco.
Os artigos, folhetins e opúsculos em apoio de uma e de outra parte
multiplicaram-se, até que, a partir de Março de 1866, a polêmica co-
meçou a declinar em quantidade e qualidade.
No entanto, a rotura provocada pela Questão Coimbrã iria abalar
irreversivelmente as estruturas socioculturais do país, lançando as se-
mentes para o debate de ideias e o projecto de reforma das mentalida-
des que norteariam a intervenção da que viria a ser a Geração de 70.
Aquela que constituiu a polêmica mais importante da nossa história li-
terária, pois nela participou, em uma ou outra frente, praticamente toda
a intelligentsia da época, fez emergir uma geração nova, protagonista
de uma revolução cultural e literária cuja amplitude ultrapassaria até a
do próprio Romantismo.
Questão Coimbrã. In Infopédia. Porto: Porto Editora, 2003-2011.
[Consult. 2011-01-31]. Disponível na www: <URL: http://www.
infopedia.pt/$questao-coimbra>

Literatura Portuguesa I SEAD/UEPB 117


Atividade I
a) Uma das razões pelas quais os poetas coimbrãos atacavam os românticos
era que estes dispunham de influência e relações que lhes permitiam
facilitar a vida literária a muitos estreantes, serviço que os novatos lhes
pagavam em elogios. Qual sua posição em relação a essa questão?

b) Os românticos acusavam os realistas de exibicionismo, de obscuridade


proposita-da e de tratarem temas que nada tinham a ver com a poesia.
Você acha que a poesia só deveria tratar de temas sentimentais? Comente.

c) Veja o que Antero de Quental escreveu, na carta-folheto Bom Gosto


e Bom Senso, referindo-se a Antonio Feliciano de Castilho: “Levanto-
me quando os cabelos brancos de V. Exª. passam diante de mim. Mas o
travesso cérebro que está debaixo e as garridas e pequeninas coisas que
saem dele, confesso, não me merecem nem admiração nem respeito, nem
ainda estima. A futilidade num velho desgosta-me tanto como a gravidade
numa criança. V.Exa. precisa menos cinquenta anos de idade, ou então
mais cinquenta de reflexão.” (http://www.progressao.com/arquivos/
gilmar44.pdf) Qual a sua opinião sobre esse desabafo de Quental?

d) Veja, neste soneto, como Antero de Quental vê a função do poeta e da


poesia:
Tu que dormes, espírito sereno,
Posto à sombra dos cedros seculares,
Como um levita à sombra dos altares,
Longe da luta e do fragor terreno.

Acorda! É tempo! O sol, já alto e pleno


Afugentou as larvas tumulares...
Para surgir do seio desses mares
Um mundo novo espera só um aceno...

Escuta! É a grande voz das multidões!


São teus irmãos, que se erguem! São canções...
Mas de guerra... e são vozes de rebate!
dica. utilize o bloco Ergue-te, pois, soldado do Futuro,
de anotações para
responder as atividades! E dos raios de luz do sonho puro,
Sonhador, faze espada de combate!
118 SEAD/UEPB I Literatura Portuguesa
http://pt.poesia.wikia.com/wiki/A_um_poeta_%28Antero_de_Quental%29

Faça uma análise do texto de Antero de Quental; em seguida, emita sua opinião
sobre o que ele defende.

e) Leia este trecho do último capítulo de O Crime do padre Amaro, de Eça de


Queirós.

Amaro voltou para a porta da Carlota, esperou sentado


numa pedra, com o seu cavalo pela rédea. Mas aquela casa
fechada e muda aterrava-o. Foi pôr o ouvido à fechadura,
na esperança de ouvir um choro, uma rabugem de crian-
ça. Dentro pesava um silêncio de caverna abandonada. Mas
tranquilizava-o a idéia que a Carlota teria levado a criança
consigo, para a Micaela. Devia realmente ter perguntado à
mulher na taberna, se a Carlota trazia uma criança ao colo...
E olhava a casa bem caiada, com a sua janela em cima que
tinha uma cortininha de cassa, um luxo tão raro naquelas
freguesias pobres; recordava a boa ordem, o escarolado da
louça da cozinha... Decerto, o pequerrucho devia ter também
um berço asseado...
Ah, estava doido decerto na véspera, quando pusera ali,
na mesa da cozinha, quatro libras de ouro, preço adiantado
dum ano de criação, e dissera cruelmente ao anão: “Conto
consigo!” Pobre pequerruchinho!... Mas a Carlota compre-
endera bem, à noite na Ricoça, que ele agora queria-o vivo,
o seu filho, e criado com mimo!... Todavia não o deixaria ali,
não, sob o olho raiado de sangue do anão... Levá-lo-ia nessa
noite à Joana Carreira dos Poiais...
Que as sinistras histórias da Dionísia, a tecedeira de an-
jos, eram uma legenda insensata. A criança estava muito re-
galada em casa da Micaela, chupando aquele bom peito de
quarentona sã... E vinha-lhe então o mesmo desejo de deixar
Leiria, ir enterrar-se em Feirão, levar consigo a Escolástica,
educar lá a criança como sobrinho, revivendo nele larga-
mente todas as emoções daquele romance de dois anos; e
ali passaria numa paz triste, na saudade de Amélia, até ir
como o seu antecessor, o abade Gustavo que também criara
um sobrinho em Feirão, repousar para sempre no pequeno
cemitério, de Verão sob as flores silvestres, de Inverno sob a
neve branca.
Então a Carlota apareceu; e ficou atônita ao reconhecer
Amaro, sem passar da cancela, com a testa franzida, a sua
bela face muito grave.
– A criança? exclamou Amaro. dica. utilize o bloco
de anotações para
Depois dum momento, ela respondeu, sem perturbação:
responder as atividades!

Literatura Portuguesa I SEAD/UEPB 119


– Nem me fale nisso, que me tem dado um desgosto...
Ontem mesmo, duas horas depois de ter chegado... O pobre
anjinho começa a fazer-se roxo, e ali me morreu debaixo dos
olhos...
– Mente! gritou Amaro. Quero ver.
– Entre, senhor, se quer ver.
– Mas que lhe disse eu ontem, mulher?
– Que quer, senhor? Morreu. Veja...
Tinha aberto a porta, muito simplesmente, sem cólera
nem receio. Amaro entreviu num relance, ao pé da chaminé,
um berço coberto com um saiote escarlate.
Sem uma palavra voltou as costas, atirou-se para cima
do cavalo. Mas a mulher, muito loquaz subitamente, rompeu
a dizer que tinha ido justamente à aldeia para encomendar
um caixãozinho decente... Como vira que era filho de pessoa
de bem, não o quisera enterrar embrulhado num trapo. Mas
enfim, como o senhor ali estava, parecia-lhe razoável que
desse algum dinheiro para a despesa... Uns dois mil-réis que
fossem.
Amaro considerou-a um momento com um desejo brutal
de a esganar; por fim meteu-lhe o dinheiro na mão. E ia
trotando no carreiro, quando a sentiu ainda correndo, gri-
tando pst! pst! A Carlota queria-lhe restituir o capote que ele
emprestara na véspera: tinha feito muito bom serviço, que a
criança chegara quente como um rojãozinho... Infelizmente...
Amaro já a não escutava, esporeando furiosamente a
ilharga da cavalgadura.
QUEIRÓS, Eça de. O crime do padre Amaro.
São Paulo: Moderna, 1998, p. 211-2

O final que o autor deu ao romance foi alterado duas vezes, ao longo das três
versões da obra (uma de 1871, outra de 1876, e a definitiva de 1878-80 – que é
a que vemos aqui). Vale a pena lermos, sobre isso, uma crítica de José-Augusto
França:

“Quanto ao clímax do drama, este conhece uma solução mais ou


menos terrível, isto é, mais ou menos romântica: nas duas primeiras
versões, o padre amaro mata o filho que acaba de nascer; na versão de
1878-80 deixa-o matar (...). A falta cometida por um padre assumia,
no quadro polêmico da época, uma importância enorme. O padre
Amaro tinha-se ligado a Amélia, a filha da sua hospedeira, que era, por
seu lado, amante dum velho cônego; faz-lhe um filho, ela morrerá no
parto. É uma história triste e sórdida – mas bem natural. O jovem padre
cometeu uma falta grave, de consequências desastrosas, é certo, mas
era um ato humano. Uma falta não é um crime. Amaro teria portanto
que cometer um, matando o filho. Mas, na terceira versão, o padre não
mata a criança, pretende mesmo retomá-la duma ama especial que

120 SEAD/UEPB I Literatura Portuguesa


devia fazê-la morrer discretamente. Repare-se que, apesar da ausência
do crime, o título do romance se manteve; é preciso determo-nos sobre
este fato. Se a falta de Amaro continua a ser considerada um crime,
não existindo este, é porque o conceito de crime se desloca, passando
do nível individual para o nível social – e tal é a lição, a moral desta his-
tória que, ao contrário daquelas que os romances nacionais contavam
então, pretendia ‘estudar’ e ‘explicar’ um problema.”

FRANÇA, José-Augusto. O Romantismo em Portugal.


Lisboa: Livros Horizonte, 1975, v. 6

dica. utilize o bloco


de anotações para
responder as atividades!
Releia o final do romance, e, com base na crítica colocada acima, produza um
texto emitindo sua opinião, concordando ou não com José-Augusto França.

Texto 2
Vamos, agora, procurar entender o surgimento do Simbolismo por-
tuguês, num cenário que tinha sido tão propício à morte do Roman-
tismo, através da ênfase à realidade dada pelo movimento realista.
Leiamos este texto de José de Nicola.

Simbolismo
O Simbolismo representa, na Europa, a estética literária do final do
século XIX, que se opõe às propostas do Realismo.
De fato, nas duas últimas décadas do século XIX, já se percebe, em
boa parte dos autores realistas, uma postura de desilusão, e mesmo de
frustração, em consequência das infrutíferas tentativas de transformar
a sociedade burguesa industrial. O crítico Alfredo Bosi sintetiza esse
clima:
Do âmago da inteligência europeia surge uma
oposição vigorosa ao triunfo da coisa e do fato so-
bre o sujeito – aquele sujeito a quem o otimismo do
século prometera o paraíso mas não dera senão
um purgatório de contrastes e frustrações.

Portugal nos oferece vários e significativos exemplos. Um deles nos


é dado por Antero de Quental, que, em meio a profundas crises exis-
tenciais, acabou por se suicidar. Curiosa também foi a trajetória de Oli-
veira Martins, exato contemporâneo de Antero de Quental e militante

Literatura Portuguesa I SEAD/UEPB 121


socialista na década de 1870, que em uma de suas últimas páginas,
pouco antes de sua morte (1894), escreveu:

Quem nos diz a nós que, apesar de toda a vaidade


que pomos na descoberta de molas e mecanismos
novos para agenciar a vida, não estejamos prepa-
rando o descalabro final de um mundo desquicia-
do e o prólogo da catástrofe inevitável que para
além vemos lugubremente, quando o nosso plane-
ta girar nu e frio na noite eterna do espaço?

Outro exemplo interessante é a sociedade Vencidos da Vida, for-


mada por alguns “ex-realistas” (Eça, Ramalho Ortigão, Guerra Jun-
queiro, Oliveira Martins) que se reuniam frequentemente em jantares.
Esses intelectuais, antes defensores dos ideais realistas, defendem ago-
ra (1888-89) a família, a propriedade, a Monarquia e um nacionalista
ufanista.
Na Europa, as origens do Simbolismo devem ser buscadas na Fran-
Charles Baudelaire
ça, com a publicação de As flores do Mal, de Baudelaire, em 1857.
Fonte: http://4.bp.blogspot.com/_ (...)
ZUo1lXCdT3k/TSDyblMnrsI/
AAAAAAAAAOc/pJycKXTNwaE/ O marco inicial do Simbolismo português é a publicação, em 1890,
s1600/Baudelaire1.jpg
de Oaristos, livro de poemas de Eugênio de Castro, cujo prefácio cons-
titui um verdadeiro programa da estética simbolista. Entretanto, já em
1889 circulava em Coimbra duas revistas acadêmicas que seguiam as
orientações do Simbolismo francês – Os insubmissos e Boêmia nova –,
e que contavam, entre seus colaboradores, com Eugênio de Castro e
Antonio Nobre.
O Simbolismo português prolonga-se até a proclamação da repú-
blica, em 1910, quando a nova realidade política favorecerá o surgi-
mento de várias revistas de forte coloração nacionalista. Mas a data
considerada como o início do Modernismo português é o ano de 1915,
quando, já em meio à I Guerra Mundial, Fernando Pessoa e Mário de
Sá-Carneiro lançam a revista Orpheu.
(...)
Em Portugal, o Simbolismo está diretamente ligado a um profundo
estado depressivo, que dominava a sociedade lusitana em consequên-
cia de três fatos capitais que marcaram os últimos anos do século XIX:
• A crise da Monarquia – A partir de 1870, surgiram em Portugal
vários agrupamentos socialistas, responsáveis pelas primeiras
greves operárias) e republicanos (organizados institucionalmen-
te pelo Partido Republicano, que se tornava cada vez mais forte).
• O ultimato inglês – A partir de 1870, a Inglaterra deu início a um
ousado plano expansionista, que incluía, entre outras medidas,
mo domínio total da África (seu lema era “um domínio inglês
do Cabo ao Cairo”, ou seja, do extremo sul ao extremo norte).
Na mesma época, Portugal tentava ampliar seus territórios afri-
canos e dominar a longa faixa de terra que ia de Angola (costa

122 SEAD/UEPB I Literatura Portuguesa


atlântica) a Moçambique (costa índica), o que implicaria dividir
a África ao meio. Diante disso, a Inglaterra mandou um ultima-
to a Portugal, exigindo a retirada das tropas portuguesas dos
territórios situados entre Angola e Moçambique, e ameaçando
recorrer à força, caso fosse preciso. Acuado, o governo portu-
guês teve que ceder às pressões inglesas e abandonar os territó-
rios. Esse acontecimento gerou um clima de profunda irritação
popular contra o governo e contra os ingleses; alguns tumultos
e uma revolta de caráter republicano foram registrados, mas,
na prática, restou apenas uma frustração generalizada.
• A crise econômica e financeira – Essa crise afetou toda a Europa
nos anos 1890-91. Em Portugal, houve a depreciação da mo-
eda nacional, o fechamento de alguns bancos e o aumento da
dívida pública.
O simbolismo começa por repudiar o Realismo e suas manifesta-
ções. De fato, a nova estética rejeita o cientificismo, o materialismo, o
racionalismo, valorizando, em contrapartida, as manifestações metafísi-
cas e espirituais, o que equivale a dizer que ela corresponde à negação
do Realismo/Naturalismo.
A realidade objetiva não interessa mais; o homem volta-se para
uma realidade subjetiva, retomando um aspecto abandonado desde o
Romantismo. O “eu” passa a ser o universo, mas não o “eu” superfi-
cial, sentimentalóide e piegas do Romantismo: os simbolistas vão em
busca da essência do ser humano, do que ele tem de mais profundo e
universal – a alma. Daí a sublimação, tão procurada pelos simbolistas: o
domínio do espírito sobre a matéria, a purificação, por meio da qual o
espírito atinge as regiões etéreas, o espaço infinito. Nesse embate entre
corpo e alma, a morte representa a máxima libertação da alma, quando
se rompem as correntes que a aprisionavam ao corpo.
Em consequência desse subjetivismo, dessa valorização do incons-
ciente e do subconsciente, dos estados d’alma, do vago, do diáfano, do
sonho e da loucura, o Simbolismo desenvolveu uma linguagem carrega-
da de símbolos (o tropos, isto é, o “desvio”, a mudança de significado
de uma palavra ou expressão), em clara oposição a uma linguagem
literária mais seca e impessoal.
No Simbolismo, tudo é sugestão. “Sugerir, eis o sonho” – era a pa-
lavra-de-ordem de Stéphane Mallarmé (1842-1898), poeta simbolista
francês. O Simbolismo usa a linguagem simbólica: as palavras transcen-
dem seu significado mais comum, adquirindo outros sentidos. Ao mes-
mo tempo, essa linguagem é rica em sinestesias [figura de estilo que
explora a relação entre duas ou mais sensações físicas: “Avista-se o grito
das araras”] e aliterações [repetição de fonemas para sugerir um som],
que são recursos estilísticos usados para atrair a totalidade da nossa
percepção, ou seja, para envolver todos os nossos sentidos.
A musicalidade é outra forte característica da estética simbolista.
Paul Verlaine, um dos mestres do Simbolismo francês, em seu poema
“Art Poétique” ensinava: “De la musique avant chose...” (“A música aci-
ma de tudo...”).

Literatura Portuguesa I SEAD/UEPB 123


NICOLA, José de. Literatura Portuguesa: da origem aos nossos dias. São Paulo: Scipione, 1999, p. 172-7

Atividade III
a) Há quem afirme que todo final de século traz consigo uma natural volta do
ser humano para o metafísico, para o espiritual. Você concorda com essa
afirmação ou acha que esse traço simbolista tem a ver tão somente com
as razões de aversão ao materialismo realista? Justifique.

b) Você vai conhecer agora um poema simbolista português, “Um Sonho”, de


Eugênio de Castro. Após a leitura, elabore um texto analisando-o.

Na messe, que enlourece, estremece a quermesse...


O sol, celestial girassol, esmorece...
E as cantilenas de serenos sons amenos
Fogem fluidas, fluindo a fina flor dos fenos...

As estrelas em seus halos


Brilham com brilhos sinistros...
Cornamusas e crotalos,
Cítolas,cítaras,sistros,
Soam suaves, sonolentos,
Sonolentos e suaves,
Em Suaves,
Suaves, lentos lamentos
De acentos
Graves
Suaves...

Flor! enquanto na messe estremece a quermesse


E o sol,o celestial girassol,esmorece,
Deixemos estes sons tão serenos e amenos,
Fujamos,Flor!à flor destes floridos fenos...

Soam vesperais as Vésperas...


Uns com brilhos de alabastros,
Outros louros como nêsperas,
No céu pardo ardem os astros...
dica. utilize o bloco
de anotações para Como aqui se está bem!Além freme a quermesse...
responder as atividades! Não sentes um gemer dolente que esmorece?
São os amantes delirantes que em amenos

124 SEAD/UEPB I Literatura Portuguesa


Beijos se beijam,Flor!à flor dos frescos fenos...

As estrelas em seus halos


Brilham com brilhos sinistros...
Cornamusas e crotalos,
Cítolas,cítaras,sistros,
Soam suaves, sonolentos,
Sonolentos e suaves,
Em Suaves,
Suaves, lentos lamentos
De acentos
Graves,
Suaves...

Esmaece na messe o rumor da quermesse...


Não ouves este ai que esmaece e esmorece?
É um noivo a quem fugiu a Flor de olhos amenos,
E chora a sua morta,absorto,à flor dos fenos...

Soam vesperais as Vésperas...


Uns com brilhos de alabastros,
Outros louros como nêsperas,
No céu pardo ardem os astros...

Penumbra de veludo . Esmorece a quermesse...


Sob o meu braço lasso o meu Lírio esmorece...
Beijo-lhe os boreais belos lábios amenos,
Beijo que freme e foge à flor dos flóreos fenos...

As estrelas em seus halos


Brilham com brilhos sinistros...
Cornamusas e crotalos ,
Cítolas,cítaras,sistros ,
Soam suaves, sonolentos ,
Sonolentos e suaves ,
Em Suaves,
Suaves, lentos lamentos
De acentos
Graves,
Suaves...

Tus lábios de cinábrio,entreabre-os!Da quermesse


O rumor amolece,esmaiece,esmorece...
Dê-me que eu beije os teus morenos e amenos
Peitos! Rolemos, Flor! à flor dos flóreos fenos...

Soam vesperais as Vésperas...


Uns com brilhos de alabastros,
Outros louros como nêsperas,
No céu pardo ardem os astros...

Literatura Portuguesa I SEAD/UEPB 125


Ah! não resista mais a meus ais!Da quermesse
O atroador clangor, o rumor esmorece...
Rolemos, ó morena! em contactos amenos!
Vibram três tiros à florida flor dos fenos...

As estrelas em seus halos


Brilham com brilhos sinistros...
Cornamusas e crotalos,
Cítolas,cítaras,sistros,
Soam suaves, sonolentos,
Sonolentos e suaves,
Em Suaves,
Suaves, lentos lamentos
De acentos
Graves,
Suaves...

Três da manhã. Desperto incerto...E essa quermesse?


E a Flor que sonho? e o sonho? Ah!tudo isso esmorece!
No meu quarto uma luz, luz com lumes amenos,
Chora o vento lá fora, à flor dos flóreos fenos...

http://www.passeiweb.com/na_ponta_lingua/livros/resumos_comentarios/o/oaristos

Sugestões de filmes
Um dia, um gato (1963)
Os moradores de um vila-
rejo assistem ao espetáculo de
um mágico e seu gato, que usa
óculos e, quando os tira, tem o
poder de mudar a cor das pes-
soas à sua volta de acordo com
o caráter delas. O fato assusta
os adultos do lugar, que vêem
o animal como uma ameaça,
mas, ao mesmo tempo, atrai todas as crianças da vila. Elenco: Václav
Babka, Jirina Bohdalová, Pavel Brodsky, Vlastimil Brodský, Vlasta Chra-
mostová, Dana Dubanska, Karel Effa, Ladislav Fialka, Tonda Krcmar,
Alena Kreuzmannová. Direção: Vojtech Jasny. Duração: 91 min.

126 SEAD/UEPB I Literatura Portuguesa


Hedd Wyn - O Poeta do Armagedon (1992)

Filho de fazendeiros, romântico e sensível, Ellis Evans mostra seu


talento poético utilizando o pseudônimo Hedd Wyn. Mas chega à idade
adulta em meio ao trágico evento que dizimou uma geração: a Primeira
Grande Guerra. Filme passado no País de Gales e falado em gaélico.
Elenco: Huw Garmon, Catrin Fychan, Ceri Cunnington, Llio Silyn, Grey
Evans, Gwen Ellis, Emma Kelly, Sioned Jones Williams, Llyr Joshua, An-
gharad Roberts, Geraint Roberts, Emlyn Gomer, Guto Roberts, Manon
Prysor, Aled Gruffudd. Direção: Paul Turner. Duração: 123 min.

Resumo
O Realismo e o Simbolismo representam a ascensão e queda dos
sonhos de racionalidade e materialismo. Os jovens que desbancaram
o subjetivismo romântico, elegendo a literária como uma forte arma
contra a ganância e o sentimentalismo burgueses, foram os mesmos
jovens que, anos mais tarde, se desencantaram com seus próprios so-
nhos, mergulharam em crises existenciais profundas, gerando uma arte
também metafísica. Retoma o subjetivismo, mas não mais o romântico;
agora há um mergulho bem mais profundo, até a alma. Essas duas
tendências literárias ocuparam toda a segunda metade do século XIX.

Autovaliação
Observe se:

• identificou os acontecimentos sociais e científicos que originaram o


Realismo;
• percebeu a importância da Questão Coimbrã na implantação de um
novo movimento literário em Portugal, voltado para a realidade;
• localizou nos textos aqui apresentados características do Realismo e
do Simbolismo respectivamente;
• entendeu as frustrações dos realistas, que terminaram desembocando
no Simbolismo.

Literatura Portuguesa I SEAD/UEPB 127


Referências
FRANÇA, José-Augusto. O Romantismo em Portugal. Lisboa: Livros
Horizonte, 1975, v. 6

NICOLA, José de. Literatura Portuguesa: da origem aos nossos dias. São
Paulo: Scipione, 1999

QUEIRÓS, Eça de. O crime do padre Amaro. São Paulo: Moderna, 1998

Web:
http://pt.poesia.wikia.com/wiki/A_um_poeta_%28Antero_de_
Quental%29
http://www.infopedia.pt/$questao-coimbra
http://www.passeiweb.com/na_ponta_lingua/livros/resumos_
dica. utilize o bloco comentarios/o/oaristos
de anotações para
responder as atividades! http://www.progressao.com/arquivos/gilmar44.pdf

128 SEAD/UEPB I Literatura Portuguesa


IX UNIDADE

Modernismo: a “literatura”
Fernando Pessoa
Literatura Portuguesa I SEAD/UEPB 129
Fonte: http://4.bp.blogspot.com/_8yYvO4ngc0w/S_lz1Qq3RTI/AAAAAAAAFVk/V1GyPjX3fx8/s1600/Pessoa.jpg

Apresentação
Todo o século XX e a própria literatura portuguesa se
curvam diante de seu poeta maior, aquele que não foi um
só, antes foi toda uma “literatura”: Fernando Antonio No-
gueira Pessoa. Ele próprio se confunde com o Modernismo
português, que teve início em 1915, com a publicação da
revista Orpheu, por Pessoa, Mário de Sá-Carneiro, Almada
Negreiros e o brasileiro Ronald de Carvalho.
A Europa estava mergulhada em plena Guerra Mundial,
iniciada um ano antes; os artistas publicavam manifestos
vanguardistas, acenando para novas perspectivas de arte,
diferente de tudo que já se experimentara antes; a república
portuguesa fora proclamada em 1910, e estava, portanto,
experimentando seus primeiros passos, com toda a insegu-
rança e turbulências próprias de um período assim, sobres-
saindo-se um nacionalismo profundo. É num quadro como
este que surge um fenômeno literário chamado Fernando
Pessoa, com seus famosos heterônimos, dos quais os mais
conhecidos são Alberto Caeiro, Álvaro de Campos, Ricardo
Reis e Bernardo Soares.
Então, nesta unidade, deter-nos-emos sobre esse poeta –
diria melhor, “esses poetas”, já que cada um parece ter vida
própria, tanto literária quanto ideologicamente falando.
Vamos lá?

130
3
30 SEAD/UEPB I Literatura Portuguesa
Objetivos

É nosso desejo que, ao final desta unidade, você consiga:

• entender o surgimento e solidificação do movimento modernis-


ta português;
• perceber a importância do poeta Fernando Pessoa e de seus he-
terônimos, na construção de uma obra modernista em Portugal;
• diferenciar os diferentes estilos da poesia dos heterônimos e do
ortônimo pessoanos.

Literatura Portuguesa I SEAD/UEPB 131


Texto 1

Fernando pessoa
Fernando Antonio Nogueira Pessoa nasceu em
13 de junho de 1888, em Lisboa. Era filho de Joa-
quim Seabra Pessoa — falecido, aos 43 anos, quan-
do o poeta tinha cinco anos — e Maria Madalena
Nogueira Pessoa, que se casou dois anos depois com
o Comandante João Miguel Rosa, indo todos morar
em Durban, na África do Sul, onde Fernando teve sua
formação básica. De temperamento introspectivo,
sempre solitário, demonstrara desde cedo uma ten-
dência à dramaticidade, tendo ficado famoso o seu
processo de criação heteronímica, através do qual dá
vida a inúmeros seres que existiram de fato apenas
em sua imaginação, e dos quais se destacam Alberto
Caeiro, Ricardo Reis e Álvaro de Campos.
O poeta não era muito dado a relacionamentos.
Em toda a sua vida, tem-se notícia de apenas um
caso amoroso, com a jovem Ofélia Queiroz, a quem
conhecera em 1920, e cujo romance foi ameaçado
pelo ciúme homossexual de Álvaro de Campos, que
via naquela relação um possível afastamento de Pes-
soa da poesia. O ortônimo termina por desistir. Mor-
reu solteiro.
Com evidentes inclinações místicas, era admi-
rador de seitas esotéricas; horoscopista – chegou a
elaborar a carta astrológica dos seus heterônimos
mais famosos – fazia-se escravo do zodíaco: conta-
-se que, certa vez, cancelou um encontro com a poe-
tisa brasileira Cecília Meireles simplesmente porque o
seu horóscopo não lhe aconselhava sair naquele dia.
Escreveu bastante, sobre os mais diversos assuntos:
estética, filosofia, comércio, política e, naturalmente,
Fonte: http://upload.wikimedia.org/wikipedia/ literatura. Participou ativamente do movimento mo-
commons/4/42/216_2310-Fernando-Pessoa.jpg dernista português, colaborando na publicação de
várias revistas – das quais a mais importante é “Or-
http://4.bp.blogspot.com/_KeQHSTA2PXk/
TLTV7Yx8trI/AAAAAAAACYo/2UP6nUUZ99E/s400/ pheu”, apesar de apenas dois números terem sido
Fernando+P..jpg publicados – além de vários artigos em jornais e pe-
riódicos literários. Produziu em inglês, língua em que
foi educado, e em português, sendo considerado, ao
lado de Camões, um dos maiores poetas da literatura lusa. A maior
parte de sua obra foi publicada postumamente e ainda existem textos
inéditos, principalmente em termos de estudo. Faleceu no dia 30 de
novembro de 1935, de cirrose hepática.
132 SEAD/UEPB I Literatura Portuguesa
Assim alinhavadas as breves informações biográficas de Fernando
Pessoa, não se consegue, naturalmente, ter uma idéia da importância
artística desse fenômeno literário, que, ainda hoje, intriga estudiosos
de todo o mundo, não obstante o muito que já se tem pesquisado
sobre ele. Sua obra já foi de inúmeras formas dissecada, sob vários
pontos de vista analisada, e ainda assim guarda um considerável filão
a ser explorado.
(...)
Pessoa nos mostra a chave para que o crítico literário possa pene-
trar em sua personalidade artística. Trata-se da compreensão de que
ele é, antes de tudo, um poeta dramático. Todo o estudo pessoano
deve advir dessa premissa. Também grande parte dos escritos de Fer-
nando Pessoa gira em torno do binômio “sentir” x “pensar”, estando Fontes: http://3.bp.blogspot.com/_
WGeVQDbGvNg/THQmkAR8lcI/
presente de maneira muito marcante não apenas na obra heteroními- AAAAAAAABjQ/ua2AWiJv3Ec/s1600/
ca, mas na sua própria visão de mundo. Desde a afirmação enfática desenho-de-fernando-pessoa-por-
de que “Sentir é criar”, passando por “O que sente em mim está pen- almada.jpg

sando” até o categórico “Sentir? Sinta quem lê!”, percebemos o quanto


esse conflito está presente no interior do poeta português. Desde o
uso generoso que faz da imaginação, enquanto artista, passando pelo
aprofundamento intelectual do ortônimo e de alguns heterônimos, até
à mais completa aversão ao ato de pensar e, consequentemente, à
eleição do sentir como verdade única e bastante da vida, em Alberto
Caeiro, podemos identificar em Pessoa, através desse movimento dialé-
tico constante, um pensador dividido – ou melhor, buscando a unidade
– entre esses dois campos.
Refletir sobre o que é verdadeiro e falso, quando se discute Fernando
Pessoa, é penetrar em um terreno um tanto arenoso, como observaremos
adiante. A respeito do assunto, Peirce [apud PIGNATARI, Décio. Semiótica
e Literatura. São Paulo: Perspectiva, 1974, p. 55] afirma que “nada é mais
verdadeiro do que a verdadeira poesia”; e que “os artistas são observa-
dores muito mais finos e precisos” do que os cientistas, excetuando-se o
universo específico que compõe o objeto de investigação de cada um.
Já Alberto Caeiro [um dos heterônimos pessoanos] põe em xeque
o poder da palavra enquanto instrumento de aproximação com o real,
julgando que a visão das coisas a partir da utilização da palavra é dis-
torcida. Estaria, então, Caeiro, sendo verdadeiro (como afirma Peirce)
nessa assertiva? Verdadeiro enquanto portador da verdade de Fernando
Pessoa ou da dele próprio, enquanto mestre sensacionista e pagão, que
pensa as coisas do mundo ciclicamente, isto é, a partir delas mesmas e
para chegar a elas próprias? Mas o próprio Pessoa, ao mesmo tempo em
que se confessa uma “metamorfose ambulante” (para usar as palavras
de controvertida figura artística brasileira), reconhece na poesia de Caei-
ro um maior grau de sinceridade. Por outro lado, quando um fingidor
confesso diz que está sendo sincero, devemos acreditar ou não? Não
seria, talvez, um mero recurso literário?
TAVARES, Edson. “Nítido como um girassol”. Metamorfoses do olhar em Alberto Caeiro. João Pessoa-PB: Ideia,
2003, p. 51-4

Literatura Portuguesa I SEAD/UEPB 133


Atividade I
a) Procure responder às duas questões que finalizam o texto acima: “quando
um fingidor confesso diz que está sendo sincero, devemos acreditar ou
não? Não seria, talvez, um mero recurso literário?”. Argumente.

dica. utilize o bloco


de anotações para
responder as atividades!

Texto 2

A heteronímia e a
“ânsia de ser plural”
Já observamos que a “tendência orgânica e constante [de Fernando
Pessoa] para a despersonalização e para a simulação”, como o poeta de-
fende, poderia ser a origem “psíquica” dos heterônimos. Entretanto, ao
lado deste, apresenta-se um outro motivo para o surgimento e atuação
dessas diversas personalidades. É por uma razão crítico-literária que se
dá o surgimento dos heterônimos. Na realidade, estava brotando uma
poesia nova em Portugal. Tão nova e tão original que o próprio Pessoa
questionava se os críticos convencionais teriam competência e conheci-
mento bastantes para aquilatar-lhe o valor, sem cair no erro de comparar
o que surgia de novo com o estabelecido canonicamente. Daí os pri-
meiros críticos dos heterônimos terem sido eles mesmos, todos de uma
“integridade artística indiscutível” [NUNES, Benedito. O dorso do tigre. 2.
ed. São Paulo: Perspectiva, 1976, p. 229]: Álvaro de Campos escreveu
as notas introdutórias à poesia de Ricardo Reis, bem como notas sobre
seu relacionamento com Alberto Caeiro; e Ricardo Reis prefaciou a obra
de Álvaro de Campos e a de Caeiro. No rascunho da carta a Casais
Monteiro, o criador dos heterônimos deixa bem claro que ele (Pessoa) é
134 SEAD/UEPB I Literatura Portuguesa
o “ponto de reunião de uma pequena humanidade só minha”.
Na verdade, a heteronímia não é uma novidade com Fernando
Pessoa; já se utilizaram desse recurso Kierkegaard - que criou Cons-
tantin Contantio, Johannes de Silentio, Victor Eremita Victor - e Antonio
Machado, idealizador de Abel Martins e Juan de Mairena. O que temos
aqui é um mundo multifacetado, abrindo-se em infinitas possibilidades
perceptivas, forçando no poeta a necessidade de abarcar o mais possí-
vel do que se expunha ao seu olhar. Essa infinitude exigia mais que um
observar único, limitado a apenas um ponto de vista. Era preciso tam-
bém se multiplicar em personalidades várias, em perspectivas diversas,
no vão afã de pelo menos competir, com alguma chance, com as varia-
das formas que a realidade se lhe apresentava. Assim, o fenômeno da
heteronímia aparece como uma possibilidade viável de se experimentar
essa viagem cognitiva múltipla.
No entanto, nenhum desses heterônimos alcançou a independên-
cia intelectual e criativa que os de Pessoa, o que leva Octavio Paz a
identificar aqueles como apenas pseudônimos [apud GAMA, Rinaldo.
O Guardador de Signos. Caeiro em pessoa. São Paulo: Perspectiva, 1995,
p. 24-5]. O próprio Pessoa resiste em considerar Bernardo Soares, au-
tor do “Livro do Desassossego”, como um heterônimo, já que o estilo
deste guardava tal identidade com o seu que não deveria passar de
um semi-heterônimo. E justificava essa ausência de independência de
Soares em relação ao criador: “Em prosa é mais difícil de se outrar”.
Naturalmente, a modéstia ditou esta afirmação, uma vez que os textos
em prosa dos heterônimos são de uma autonomia teórica e estilística
ímpares.
Estava sendo sincero Fernando Pessoa quando se “outrava” em per-
sonalidades tão díspares entre si e em relação a ele próprio? O poeta
afirma que “se há parte de minha obra que tenha um ‘cunho de since-
ridade’, essa parte é a obra do Caeiro”, embora deixe claro que todos
os heterônimos se distinguem dele e que ninguém deve buscá-lo nas
idéias deles, mas lê-los como eles são. A respeito da não-sinceridade,
a concepção de Fernando Pessoa é muito clara:

O que eu chamo de literatura insincera não é


aquela análoga à do Alberto Caeiro, do Ricardo
Reis ou do Álvaro de Campos (...). Isso é escrito na
pessoa de outro; é escrito dramaticamente, mas é
sincero (...). Chamo de insinceras às coisas feitas
para fazer pasmar, e às coisas, também — repare
nisto, que é importante — que não contêm uma
fundamental idéia metafísica, isto é, por onde não
passa, ainda que como um vento, uma noção da
gravidade e do mistério da vida.

E, de mais a mais, a emoção presente em cada um dos heterônimos


é mentira na inteligência, como afirma Pessoa, porque a emoção não
se dá na inteligência, que, quando busca exprimir uma emoção está
sendo falsa. “Exprimir-se é dizer o que se não sente”.

Literatura Portuguesa I SEAD/UEPB 135


Ricardo Reis: tranquilidade e conformismo

Por volta de 1912, uma idéia de escrever versos de “índole pagã”


faz Fernando Pessoa esboçar o que será, dois anos mais tarde, o po-
eta Ricardo Reis. Este apareceria logo após o surgimento de Alberto
Caeiro, como uma necessidade de inventar discípulos para o mestre
que acabara de surgir. Logo, Ricardo Reis nasce para sistematizar o
Neopaganismo, graças a sua formação clássica, a sua rigidez e pre-
ciosismo na organização teórica. Além disso, a contenção e a sensa-
tez peculiares garantem-lhe uma poesia um pouco melhor trabalhada
que a de Caeiro – do ponto de vista formal – e mais sóbria do que a
barulheira emotiva de Álvaro de Campos. Reis teria sido encarregado
pela família de Caeiro, após a morte deste, de cuidar da publicação
de suas obras, com o devido comentário crítico.
Enquanto Álvaro de Campos, em sua sede incessante na busca de
algo que não conseguia sequer vislumbrar, prostra-se em permanen-
tes insatisfação e cansaço, Reis se contrapõe a esse cansaço como
Fonte: http://www.cfh.ufsc. um estóico, renovando o pacto firmado pelo epicurismo, de viver com
br/~magno/creis.gif
intensidade o momento presente.

Tanto o epicurismo quanto o estoicismo buscavam


a tranquilidade: o primeiro neutralizando a dor, e a
isso chamava de prazer, e o segundo resguardan-
do a inteligência racional dos reclamos do desejo
e do desvario da vontade, e a isso chamava de
virtude. [NUNES, 1976, p. 225]

Assim, como pagão histórico, Reis reconhece as verdades experimen-


tadas por Campos, mas não se debate quixotescamente contra a reali-
dade. Antes, contenta-se em contemplar o tempo presente, que passa
inexoravelmente, num típico Carpe diem horaciano. Isso o aproxima de
Caeiro, ideologicamente, como podemos perceber nos trechos a seguir:

O tempo passa,
Não nos diz nada.
Envelhecemos.
Saibamos, quase
Maliciosos,
Sentir-nos ir.

Só esta liberdade nos concedem


Os deuses: submetermo-nos
Ao seu domínio por vontade nossa.
Mais vale assim fazermos
Porque só na ilusão da liberdade
A liberdade existe.
Deixai-me a realidade do momento
E os meus deuses tranqüilos e imediatos
Que não moram no Vago
Mas nos campos e rios.

136 SEAD/UEPB I Literatura Portuguesa


A obsessão pelo presente, ante o qual, entretanto, se mantém passi-
vo, é a tônica da poesia de Ricardo Reis. “O tempo não nos diz nada”,
apenas passa, porque, como afirmaria Caeiro, se o tempo dissesse al-
guma coisa, não seria tempo, seria gente. Diante, então, desse silêncio,
restam o envelhecimento e a sabedoria de sentir, de experimentar todas
as sensações que esse passar do tempo proporciona.
A relação de Reis com os deuses, confirmando sua formação clás-
sica, é da mais completa apatia, de ambos os lados: dos deuses em
relação a ele por não considerarem o homem algo que mereça qual-
quer satisfação ou consideração; dele, em relação aos deuses, por se
achar consciente disso. A vontade do homem é presa, por natureza, à
vontade dos deuses e, por mais que a ele pareça ser livre, a liberdade
é apenas uma ilusão, corda a mais dada pelos manipuladores divinos
a suas marionetes humanas.
Caeirianamente, Ricardo Reis clama pela única realidade possível,
o momento imediato, aos seus deuses “que não moram no vago”, mas,
como defende o mestre, distribuem-se entre campos e rios. É em nome
dessa tranquilidade que Reis esconde-se em sua impermeável capa po-
ética contra a mediaticidade, direcionando todas as suas energias para
o tempo presente, a vida presente, como deseja Carlos Drummond de
Andrade, em “Mãos Dadas”. Para o mais clássico dos heterônimos pes-
soanos, a realidade faz-se do imediato que lhe permitem as sensações.
Caeirianamente, reforcemos.

Álvaro de Campos: o verdadeiro ortônimo?

Álvaro de Campos é o último dos três famosos heterônimos cria-


dos por Fernando Pessoa, surgido a partir de uma derivação oposta a
Ricardo Reis. O quanto este tem de contido e severo, Campos tem de
barulhento, emotivo, “histericamente histérico”. Homem dividido, em
busca raivosa de conciliar suas contradições interiores, produz versos
ríspidos, que escancaram a verdade de forma crua, arrojando ao leitor
toda a fúria com que encara as convencionalidades:

Todos os meus conhecidos têm sido campeões em tudo.


E eu, tantas vezes reles, tantas vezes porco, tantas vezes vil,
Eu tantas vezes irrespondivelmente parasita,
Indesculpavelmente sujo,
.......................................................................................
Eu verifico que não tenho par nisto tudo neste mundo.
Fontes: http://www.cfh.ufsc.
br/~magno/des1.gif

Literatura Portuguesa I SEAD/UEPB 137


Futurista confesso, deslocado social e intelectualmente do presente
(um dos fatores que lhe confirmam a oposição a Reis), é um dos mais
ativos heterônimos no modernismo português. É em seu nome que apa-
recem poemas em revistas do movimento, artigos analisando estetica-
mente alguns aspectos modernistas, cartas a outros teóricos e poetas,
reportagens – como a entrevista em que fala sobre a situação da Eu-
ropa, especificamente da Inglaterra e de Portugal, em pontos de vista
interessantíssimos. Sua poesia, entretanto – e quem diz isso é Ricardo
Reis –, não se faz em versos; em função do desleixo formal provocado
pela forte emotividade com que produz seus textos, poder-se-á mais
acertadamente considerar sua obra como uma produção em prosa rit-
mada. Não nos esqueçamos, no entanto, de que este é o ponto de vista
de um classicista.
Sua relação com Alberto Caeiro é a de um discípulo que ama o
mestre, mantendo com ele interessantes discussões filosóficas, em que
muitas vezes contesta a passividade do guardador de rebanhos. Boa
parte dessas discussões estão registradas nas “Notas para a Recorda-
ção do meu Mestre Caeiro”. Também aí se evidencia a forma carinhosa
com que Campos o trata. Talvez seja, emotivamente falando, o mais
próximo dos discípulos, mais próximo mesmo que o próprio Fernando
Pessoa. Sobre a influência caeiriana, Campos afirma: “Caeiro me ensi-
nou (...) a ter clareza, equilíbrio, organismo no delírio e no desvairamen-
to, e também (...) a não procurar filosofia nenhuma ”.
É tão forte este heterônimo, e com ele Fernando Pessoa atinge tal
grau de requinte em sua proposital despersonalização, que Massaud
Moisés [A literatura portuguesa. São Paulo: Cultrix, 1990, p. 245] chega
a sugerir o inusitado: Álvaro de Campos seria o ortônimo, o único dos
poetas que é real, o verdadeiro fisicamente, a matriz da qual saíram os
demais, inclusive Fernando Pessoa, sendo este apenas mais um hete-
rônimo.
Tal observação é pertinente, se observarmos a semelhança das ati-
tudes inconformistas nos versos de Campos, com os hábitos do homem
Fernando Pessoa, de ordinário avessos ao convencionalismo social. Por
sua vez, comparando alguns dos textos em prosa, acerca de Portugal,
por exemplo, veremos algumas discrepâncias ideológicas e sentimen-
tais em relação à nostalgia patriótica inflamada de seus versos ortôni-
mos.

TAVARES, Edson. “Nítido como um girassol”. Metamorfoses do olhar em


Alberto Caeiro. João Pessoa-PB: Ideia, 2003, p. 66-72

138 SEAD/UEPB I Literatura Portuguesa


Alberto Caeiro, por Fernando Pessoa

Em 8 de Março de 1914 – acerquei-me de uma cômoda alta, e, to-


mando um papel, comecei a escrever, de pé, como escrevo sempre que
posso. E escrevi trinta e tantos poemas a fio, numa espécie de êxtase
cuja natureza não conseguirei definir. Foi o dia triunfal da minha vida,
e nunca poderei ter outro assim. Abri com um título, O Guardador de
Rebanhos. E o que se seguiu foi o aparecimento de alguém em mim,
a quem dei desde logo o nome de Alberto Caeiro. Desculpe-me o ab-
surdo da frase: aparecera em mim o meu mestre. Foi essa a sensação
imediata que tive. E tanto assim que, escritos que foram esses trinta e
tantos poemas, imediatamente peguei noutro papel e escrevi, a fio,
também, os seis poemas que constituem a Chuva Oblíqua, de Fernan-
do Pessoa. Imediatamente e totalmente... Foi o regresso de Fernando
Pessoa Alberto Caeiro a Fernando Pessoa ele só. Ou, melhor, foi a rea-
ção de Fernando Pessoa contra a sua inexistência como Alberto Caeiro.
Fonte: http://www.cfh.ufsc.br/~magno/
Aparecido Alberto Caeiro, tratei logo de lhe descobrir – instintiva e caeiro.htm

subconscientemente – uns discípulos. Arranquei do seu falso paganis-


mo o Ricardo Reis latente, descobri-lhe o nome, e ajustei-o a si mesmo,
porque nessa altura já o via. E, de repente, e em derivação oposta à
de Ricardo Reis, surgiu-me impetuosamente um novo indivíduo. Num
jacto, e à máquina de escrever, sem interrupção nem emenda, surgiu a
Ode Triunfal de Álvaro de Campos – a Ode com esse nome e o homem
com o nome que tem.
Criei, então, uma coterie inexistente. Fixei aquilo tudo em moldes
de realidade. Graduei as influências, conheci as amizades, ouvi, dentro
de mim, as discussões e as divergências de critérios, e em tudo isto me
parece que fui eu, criador de tudo, o menos que ali houve. Parece que
tudo se passou independentemente de mim. E parece que assim ainda
se passa. Se algum dia eu puder publicar a discussão estética entre Ri-
cardo Reis e Álvaro de Campos, verá como eles são diferentes, e como
eu não sou nada na matéria.
(...)
Alberto Caeiro nasceu em 1889 e morreu em 1915; nasceu em
Lisboa, mas viveu quase toda a sua vida no campo. Não teve profissão
nem educação quase alguma. (...). era de estatura média, e, embora
realmente frágil (morreu tuberculoso), não parecia tão frágil quanto
era. (...) louro sem cor, olhos azuis (...).
Caeiro, como disse, não teve mais educação que quase nenhuma
– só instrução primária; morreram-lhe cedo e pai e a mãe, e deixou-se
ficar em casa, vivendo de uns pequenos rendimentos. Vivia com uma
tia velha, tia-avó. (...).
(...) Como escrevo em nome desses três?... Caeiro por pura e ines-
perada inspiracão, sem saber ou sequer calcular que iria escrever. Ri-
cardo Reis, depois de uma deliberacão abstrata que subitamente se
concretiza numa ode. Campos, quando sinto um súbito impulso para
escrever e não sei o quê. O meu semi-heterônimo Bernardo Soares

Literatura Portuguesa I SEAD/UEPB 139


que aliás em muitas coisas se parece com Álvaro de Campos, aparece
sempre que estou cansado ou sonolento, de sorte que tenha um pouco
suspensas as qualidades de raciocínio e de inibição; aquela prosa é um
constante devaneio. É um semi-heterônimo porque, não sendo a per-
sonalidade a minha, é, não diferente da minha, mas uma simples mu-
tilação dela. Sou eu menos o raciocínio e a afetividade. A prosa, salvo
o que o raciocínio dá de “tênue” à minha, é igual a esta, e o português
perfeitamente igual; ao passo que Caeiro escrevia mal o português,
Campos razoavelmente mas com lapsos como dizer “eu próprio” em
vez de “eu mesmo” etc., Reis melhor do que eu, mas com um purismo
que considero exagerado.

PESSOA, Fernando. Obra em prosa. Sel., org. e notas de Maria Aliete


Galhoz. Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 1998, p. 96-8

Atividade II
a) Depois de ler essa fantástica abordagem da forma de Fernando Pessoa
fazer literatura, da criação dos heterônimos, o que você acha disso tudo?
É um devaneio, uma loucura ou algo completamente novo e inusitado na
literatura universal? Argumente.

b) Observando as características do mundo moderno, multifacetado,


complexo, contraditório, e vendo Fernando Pessoa como o iniciador do
Modernismo português, seria uma explicação para esse esfacelamento
também do poeta em vários outros poetas? O que você acha disso?

dica. utilize o bloco


de anotações para
responder as atividades!

140 SEAD/UEPB I Literatura Portuguesa


Texto 3
Poemas
O meu olhar é nítido como um girassol.
Tenho o costume de andar pelas estradas
Olhando para a direita e para a esquerda,
E de vez em quando olhando para trás...
E o que vejo a cada momento
É aquilo que nunca antes eu tinha visto,
E eu sei dar por isso muito bem...
Sei ter o pasmo comigo
Que tem uma criança se, ao nascer,
Reparasse que nascera deveras...
Sinto-me nascido a cada momento
Para a eterna novidade do mundo...
Creio no mundo como num malmequer,
Porque o vejo. Mas não penso nele
Porque pensar é não compreender...
O mundo não se fez para pensarmos nele
(Pensar é estar doente dos olhos)
Mas para olharmos para ele e estarmos de acordo.

Eu não tenho filosofia: tenho sentidos...


Se falo na Natureza não é porque saiba o que ela é,
Mas porque a amo, e amo-a por isso,
Porque quem ama nunca sabe o que ama
Nem sabe porque ama, nem o que é amar...

Amar é a eterna inocência,


E a única inocência é não pensar... (Alberto Caeiro)
PESSOA, Fernando. Obra poética. Sel., org. e notas de Maria Aliete
Galhoz. Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 2001, p. 204-5

II
Dia após dia a mesma vida é a mesma.
O que decorre, Lídia,
No que nós somos como em que não somos
Igualmente decorre.

Colhido, o fruto deperece; e cai


Nunca sendo colhido.
Igual é o fado, quer o procuremos,
Quer o ‘speremos.

Sorte Hoje,
Destino sempre, e nesta ou nessa
Forma alheio e invencível. (Ricardo Reis)
PESSOA, Fernando. Obra poética. Sel., org. e notas de Maria Aliete
Galhoz. Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 2001, p. 275

Literatura Portuguesa I SEAD/UEPB 141


III
Todas as cartas de amor são
Ridículas.
Não seriam cartas de amor se não fossem
Ridículas.
Também escrevi em meu tempo cartas de amor,
Como as outras,
Ridículas.
As cartas de amor, se há amor,
Têm de ser
Ridículas.
Mas, afinal,
Só as criaturas que nunca escreveram
Cartas de amor
É que são
Ridículas.
Quem me dera no tempo em que escrevia
Sem dar por isso
Cartas de amor
Ridículas.
A verdade é que hoje
As minhas memórias
Dessas cartas de amor
É que são
Ridículas.
(Todas as palavras esdrúxulas,
Como os sentimentos esdrúxulos,
São naturalmente
Ridículas.) (Álvaro de Campos)
PESSOA, Fernando. Obra poética. Sel., org. e notas de Maria Aliete
Galhoz. Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 2001, p. 399-400

Atividade III
dica. utilize o bloco Veja como são diferentes os estilos dos poemas acima. Parecem escritos
de anotações para
realmente por pessoas diferentes. Procure estabelecer as principais diferenças
responder as atividades!
que você encontra entre eles, e produza um texto, que poderá ser partilhado
com os colegas.

142 SEAD/UEPB I Literatura Portuguesa


Sugestão de filme
Réquiem – um encontro com Fernando Pessoa (1998)
Num escaldante dia de
verão, Paul, o narrador, tem
um encontro marcado com
um convidado que não é
outro senão o fantasma do
grande escritor Fernando
Pessoa. Paul chega em Lisboa
ao meio-dia e se dá conta de
que os fantasmas só apare-
cem à meia-noite. Entre meio-dia e meia-noite, numa série de casua-
lidades e ao reconstituir seu passado, Paul encontra diversos persona-
gens, pessoas vivas e mortas cujos caminhos se cruzam num mesmo
momento de um tempo descontínuo. Elenco: Francis Frappat, André
Marcon, Canto e Castro, Zita Duarte, Alexandre Zloto, Márcia Breia,
Cecile Tanner. Direção: Alain Tanner. Duração: 100 min.

Resumo
Fernando Pessoa e o Modernismo português se confundem, não só
porque o poeta foi seu iniciador, através da revista Orpheu, mas pelas
próprias características essencialmente modernistas do autor, que fize-
ram dele uma referência única na literatura lusa. Tanto que chegou a
fazer sombra aos demais autores do período. O fenômeno literário da
heteronímia, desenvolvido por Pessoa, é responsável por um dos mais
intrincados – e apaixonantes – mistérios da poesia portuguesa. Alberto
Caeiro, Álvaro de Campos e Ricardo Reis, além de Bernardo Soares e
do ortônimo Fernando Pessoa (ele mesmo), compõem toda uma litera-
tura, com todas as nuanças de estilo diferenciadas entre si e do criador,
numa projeção do complexo multifacetamento do mundo moderno,
em que estão inseridos os poetas.

Literatura Portuguesa I SEAD/UEPB 143


Autovaliação

Observe se:

• entendeu o surgimento e solidificação do movimento modernista


português;

• percebeu a importância do poeta Fernando Pessoa e de seus heterônimos,


na construção de uma obra modernista em Portugal;

• conseguiu distinguir os diferentes estilos da poesia dos heterônimos e do


ortônimo pessoanos.

dica. utilize o bloco


de anotações para
responder as atividades!

Referências
PESSOA, Fernando. Obra em prosa. Sel., org. e notas de Maria Aliete
Galhoz. Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 1998.

PESSOA, Fernando. Obra poética. Sel., org. e notas de Maria Aliete


Galhoz. Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 2001

TAVARES, Edson. “Nítido como um girassol”. Metamorfoses do olhar em


Alberto Caeiro. João Pessoa-PB: Ideia, 2003

144 SEAD/UEPB I Literatura Portuguesa


X UNIDADE

Contemporaneidade: José
Saramago e outros autores
Literatura Portuguesa I SEAD/UEPB 145
1 3

Teolinda Gersão Filipa Melo


2
4

Agustina Bessa-Luís

Inês Pedrosa Rui Zink

Apresentação
fonte das imagens

1: http://1.bp.blogspot.com/_ A literatura portuguesa hoje não tem o reconhecimen-


LbCsR6WCEZI/SrcoosHtCLI/
AAAAAAAAAAw/1zN_ to dos séculos anteriores, mundo afora. Mesmo no Brasil,
BAZou9g/s1600-h/
Teolinda+Gers%C3%83%C2%A3o.jpg
ignora-se o que se está produzindo em Portugal, na contem-
poraneidade.
2: http://www.cm-pvarzim.pt/groups/
staff/conteudo/imagens-gerais/ Claro que todo mundo já ouviu falar do literato luso mais
cultura/correntes-d-escritas-2007/
fotos-dos-escritores/ines-pedrosa.jpg famoso da atualidade – José Saramago, recentemente fa-
lecido – principalmente em função de ter sido o primeiro
3: http://manuelcarvalho.8m.com/
filipafoto.jpg
escritor de língua portuguesa a ser agraciado com Prêmio
Nobel de Literatura em 1998.
4: http://3.bp.blogspot.com/_
d3EW59RNZW0/SRV4q58cIeI/ Existe uma razão para o apagamento da literatura produ-
AAAAAAAACwA/jMH_IkToF7Q/s400/
rui_zink%5B1%5D.jpg
zida em Portugal ao longo do século XX: nada é mais dano-
so à cultura de um povo que uma ditadura militar. Portugal
5: http://3.bp.blogspot.com/-
sniaT5OlFr4/TdWXw5FReeI/ esteve mergulhada no regime salazarista de 1932 a 1974.
AAAAAAAABTk/0tGD5gxiZW8/s1600/
SaramagoMemorial-do-Convento.jpg
Basicamente, então, o que conhecemos do Portugal literário
do século XX resume-se a Fernando Pessoa e os ”orphistas”
(Sá-Carneiro, Almada Negreiros) e os presencistas (capita-
neados por José Régio); segue-se, então, um grande hiato,
146
1 46
46 SEAD/UEPB I Literatura Portuguesa
só encontrando outro nome de realce em Saramago. Mas,
como ressalta Rodrigo Augusto Fiedler do Prado, em artigo
que reproduziremos a seguir, há outros nomes de projeção
local, e que já começam a ser conhecidos na Europa, como
os que ilustram esta página.
Conheceremos, nesta que é a última unidade desta dis-
ciplina, um pouco do que se produz na atualidade, em Por-
tugal.
Naturalmente, teremos um espaço maior ao autor de
Memorial do convento, mas também conheceremos outros
nomes.

Vamos lá?

Objetivos
Objetivamos, com esta unidade:

• conhecer alguns autores que estão fazendo literatura na atuali-


dade, em Portugal;
• conhecer um pouco da obra literária de José Saramago, Prêmio
Nobel de Literatura;
• compreender os aspectos que fazem da atual literatura portu-
guesa ainda pouco conhecida para além das fronteiras lusas.

Literatura Portuguesa I SEAD/UEPB 147


Texto 1
Inicialmente, conheceremos um pouco da vida e da obra de José
Saramago, em texto extraído da internet.

José saramago
José de Sousa Sarama-
go foi escritor, argumentista,
jornalista, dramaturgo, con-
tista, romancista e poeta. Foi
galardoado com o Nobel de
Literatura de 1998. Também
ganhou o Prêmio Camões, o
mais importante prêmio lite-
rário da língua portuguesa.
Saramago foi considerado o
responsável pelo efetivo re-
conhecimento internacional
da prosa em língua portu-
guesa.
O seu livro Ensaio So- Fonte: http://embaixada-portugal-brasil.blogspot.
bre a Cegueira foi adapta- com/2010/09/jose-saramago-integra-lista-de.html
do para o cinema e lançado
em 2008, produzido no Japão, Brasil, Uruguai e Canadá, dirigido por
Fernando Meirelles. Em 2010, o realizador português António Ferreira
adapta um conto retirado do livro Objecto Quase, conto esse que viria
dar nome ao filme Embargo, uma produção portuguesa em co-produ-
ção com o Brasil e Espanha.
Saramago nasceu no distrito de Santarém, na província geográfica
do Ribatejo, no dia 16 de Novembro de 1922, de uma família de pais e
avós agricultores. A sua vida é passada em grande parte em Lisboa, para
onde a família se muda em 1924. Dificuldades econômicas impedem-no
de entrar na universidade. Demonstra desde cedo interesse pelos estudos
e pela cultura, curiosidade perante o Mundo que o acompanhou até à
morte. Formou-se numa escola técnica. O seu primeiro emprego foi de
serralheiro mecânico. Fascinado pelos livros, visitava, à noite, com gran-
de frequência, a Biblioteca Municipal Central — Palácio Galveias.
Aos 25 anos, publica o primeiro romance, Terra do Pecado (1947),
no mesmo ano de nascimento da sua filha, Violante, fruto do primeiro
casamento com Ilda Reis – com quem se casou em 1944 e com quem
permaneceu até 1970. Nessa época, Saramago era funcionário públi-
co. Em 1988, casar-se-ia com a jornalista e tradutora espanhola María
del Pilar del Río Sánchez, que conheceu em 1986 e ao lado da qual
viveu até a morte. Em 1955 e para aumentar os rendimentos, começou

148 SEAD/UEPB I Literatura Portuguesa


a fazer traduções de Hegel, Tolstoi e Baudelaire, entre outros.
Conhecido pelo seu ateísmo e iberismo, foi membro do Partido Co-
munista Português e diretor-adjunto do Diário de Notícias. Juntamente
com Luiz Francisco Rebello, Armindo Magalhães, Manuel da Fonseca e
Urbano Tavares Rodrigues, foi, em 1992, um dos fundadores da Frente
Nacional para a Defesa da Cultura (FNDC).
Três décadas depois de publicado Terra do Pecado, Saramago re-
tornou ao mundo da prosa ficcional com Manual de Pintura e Caligra-
fia. Mas ainda não foi aí que o autor definiu o seu estilo. As marcas
características do estilo Saramaguiano só apareceriam com Levanta-
-do do Chão (1980), livro no qual o autor retrata a vida de privações
da população pobre do Alentejo.
Dois anos depois de Levantado do Chão (1982), surge o romance
Memorial do Convento, livro que conquista definitivamente a atenção
de leitores e críticos. Nele, Saramago misturou fatos reais com perso-
nagens inventados: o rei D. João V e Bartolomeu de Gusmão, com a Fonte: http://1.bp.blogspot.com/_
misteriosa Blimunda e o operário Baltazar, por exemplo. O contraste ZBf37Nu78aM/StYXS4SxJlI/AAAAAAAAAZ8/
fZ1QKSEkUJg/s1600-h/Agustina%2520Bess
entre a opulenta aristocracia ociosa e o povo trabalhador e construtor a%2520Lu%25C3%25ADs.jpg
da história servem de metáfora à medida da luta de classes marxista. A
crítica brutal a uma Igreja ao serviço dos opressores inicia a exposição
de uma tentativa de destruição do fenômeno religioso como devaneio
humano construtor de guerras.
De 1980 a 1991, o autor trouxe a lume mais quatro romances que
remetem a fatos da realidade material, problematizando a interpretação
da “história” oficial: O Ano da Morte de Ricardo Reis (1984) - sobre as
andanças do heterônimo de Fernando Pessoa por Lisboa; A Jangada
de Pedra (1986) - em que se questiona o papel Ibérico na então CEE
[Comunidade Econômica Europeia] através da metáfora da Península
Ibérica soltando-se da Europa e encontrando o seu lugar entre a velha
Europa e a nova América; História do Cerco de Lisboa (1989) - onde
um revisor é tentado a introduzir um “não” no texto histórico que corrige,
mudando-lhe o sentido; e O Evangelho Segundo Jesus Cristo (1991) -
onde Saramago reescreve o livro sagrado sob a ótica de um Cristo que
não é Deus e se revolta contra o seu destino e onde, a fundo, questiona
o lugar de Deus, do cristianismo, do sofrimento e da morte.
Nos anos seguintes, entre 1995 e 2005, Saramago publicou mais
seis romances, dando início a uma nova fase em que os enredos não se
desenrolam mais em locais ou épocas determinados e personagens dos
anais da história se ausentam: Ensaio Sobre a Cegueira (1995); Todos
os Nomes (1997); A Caverna (2001); O Homem Duplicado (2002);
Ensaio Sobre a Lucidez (2004); e As Intermitências da Morte (2005).
Nessa fase, Saramago penetrou de maneira mais investigadora os ca-
minhos da sociedade contemporânea, questionando a sociedade capi-
talista e o papel da existência humana condenada à morte.
Vítima de leucemia crônica, Saramago faleceu no dia 18 de Junho
de 2010, aos 87 anos de idade, na sua casa em Lanzarote onde residia.
O escritor estava doente havia algum tempo e o seu estado de saúde
agravou-se na sua última semana de vida. O seu funeral teve honras de

Literatura Portuguesa I SEAD/UEPB 149


Estado, tendo o seu corpo sido cremado no
Cemitério do Alto de São João, em Lisboa.
José Saramago foi conhecido por utilizar
um estilo oral, dos contos de tradição oral
populares em que a vivacidade da comuni-
cação é mais importante do que a correção
de uma linguagem escrita. Todas as caracte-
rísticas de uma linguagem oral, predominan-
temente usada na oratória, na dialética, na
retórica e que servem sobremaneira o seu es-
tilo interventivo e persuasivo estão presentes.
Assim, utiliza frases e períodos compridos,
usando a pontuação de uma maneira não
convencional. Os diálogos das personagens
Fonte: http://img.video.globo. são inseridos nos próprios parágrafos que os
com/320x240/1285385.jpg antecedem, de forma que não existem travessões nos seus livros. Este tipo
de marcação das falas propicia uma forte sensação de fluxo de consciên-
cia, a ponto de o leitor chegar a confundir-se se um certo diálogo foi real
ou apenas um pensamento. Muitas das suas frases (orações) ocupam
mais de uma página, usando vírgulas onde a maioria dos escritores usa-
ria pontos finais. Da mesma forma, muitos dos seus parágrafos ocupa-
riam capítulos inteiros de outros autores. Por isso, se o leitor se habituar
ao seu estilo, a sua leitura é muito agradável, pois o seu ritmo está muito
próximo da eloquência oral do povo português.
Estas características tornam o estilo de Saramago único na literatu-
ra contemporânea, sendo considerado por muitos críticos um mestre no
tratamento da língua portuguesa. Em 2003, o crítico norte-americano
Harold Bloom, no seu livro Genius: A Mosaic of One Hundred Exem-
plary Creative Minds (“Génio: Um Mosaico de Cem Exemplares Mentes
Criativas”), considerou José Saramago “o mais talentoso romancista
vivo nos dias de hoje”, referindo-se a ele como “o Mestre”.
http://pt.wikipedia.org/wiki/Jos%C3%A9_Saramago

Texto 2
Vamos ler um trecho do Ensaio sobre a cegueira, sucesso literário
que se transfor-mou também em grande sucesso de cinema.

Trecho de Ensaio Sobre a


Cegueira, de José Saramago
O disco amarelo iluminou-se. Dois dos automóveis da frente acele-
raram antes que o sinal vermelho aparecesse. Na passadeira de peões
surgiu o desenho do homem verde. A gente que esperava começou
a atravessar a rua pisando as faixas brancas pintadas na capa negra

150 SEAD/UEPB I Literatura Portuguesa


do asfalto, não há nada que menos se pareça com uma zebra, porém
assim lhe chamam. Os automobilistas, impacientes, com o pé no pedal
da embraiagem, mantinham em tensão os carros, avançando, recuan-
do, como cavalos nervosos que sentissem vir no ar a chibata. Os peões
já acabaram de passar, mas o sinal de caminho livre para os carros
vai tardar ainda alguns segundos, há quem sustente que esta demora,
aparentemente tão insignificante, se a multiplicarmos pelos milhares de
semáforos existentes na cidade e pelas mudanças sucessivas das três
cores de cada um, é uma das causas mais consideráveis dos engorgi-
tamentos da circulação automóvel, ou engarrafamentos, se quisermos
usar o termo corrente.
O sinal verde acendeu-se enfim, bruscamente os carros arranca-
ram, mas logo se notou que não tinham arrancado todos por igual.
O primeiro da fila do meio está parado, deve haver ali um problema
mecânico qualquer, o acelerador solto, a alavanca da caixa de velo-
cidades que se encravou, ou uma avaria do sistema hidráulico, bloca-
gem dos travões, falha do circuito eléctrico, se é que não se lhe acabou
simplesmente a gasolina, não seria a primeira vez que se dava o caso.
O novo ajuntamento de peões que está a formar-se nos passeios vê o
condutor do automóvel imobilizado a esbracejar por trás do pára-bri-
sas, enquanto os carros atrás dele buzinam frenéticos. Alguns conduto-
res já saltaram para a rua, dispostos a empurrar o automóvel empana-
do para onde não fique a estorvar o trânsito, batem furiosamente nos
vidros fechados, o homem que está lá dentro vira a cabeça para eles,
a um lado, a outro, vê-se que grita qualquer coisa, pelos movimentos
da boca percebe-se que repete uma palavra, uma não, duas, assim é
realmente, consoante se vai ficar a saber quando alguém, enfim, con-
seguir abrir uma porta, Estou cego.
Ninguém o diria. Apreciados como neste momento é possível, ape-
nas de relance, os olhos do homem parecem sãos, a íris apresenta-se
nítida, luminosa, a esclerótica branca, compacta como porcelana. As
pálpebras arregaladas, a pele crispada da cara, as sobrance-lhas de
repente revoltas, tudo isso, qualquer o pode verificar, é que se des-
compôs pela angústia. Num movimento rápido, o que estava à vista
desapareceu atrás dos punhos fechados do homem, como se ele ainda
quisesse reter no interior do cérebro a última imagem recolhida, uma
luz vermelha, redonda, num semáforo. Estou cego, estou cego, repetia
com desespero enquanto o ajudavam a sair do carro, e as lágrimas,
rompendo, tomaram mais brilhantes os olhos que ele dizia estarem
mortos. Isso passa, vai ver que isso passa, às vezes são nervos, disse
uma mulher. O semáforo já tinha mudado de cor, alguns transeuntes
curiosos aproximavam-se do grupo, e os condutores lá de trás, que não
sabiam o que estava a acontecer, protestavam contra o que julgavam
ser um acidente de trânsito vulgar, farol partido, guarda-lamas amol-
gado, nada que justificasse a confusão, Chamem a polícia, gritavam,
tirem daí essa lata. O cego implorava, Por favor, alguém que me leve a
casa. A mulher que falara de nervos foi de opinião que se devia chamar
uma ambulância, transportar o pobrezinho ao hospital, mas o cego
disse que isso não, não queria tanto, só pedia que o encaminhassem
até à porta do prédio onde morava, Fica aqui muito perto, seria um
Literatura Portuguesa I SEAD/UEPB 151
grande favor que me faziam. E o carro, perguntou uma voz. Outra voz
respondeu, A chave está no sítio, põe-se em cima do passeio. Não é
preciso, interveio uma terceira voz, eu tomo conta do carro e acompa-
nho este senhor a casa. Ouviram-se murmúrios de aprovação. O cego
sentiu que o tomavam pelo braço, Venha, venha comigo, dizia-lhe a
mesma voz. Ajudaram-no a sentar-se no lugar ao lado do condutor,
puseram-lhe o cinto de segurança, Não vejo, não vejo, murmurava
entre o choro, Diga-me onde mora, pediu o outro. Pelas janelas do
carro espreitavam caras vorazes, gulosas da novidade. O cego ergueu
as mãos diante dos olhos, moveu-as, Nada, é como se estivesse no
meio de um nevoeiro, é como se tivesse caído num mar de leite, Mas
a cegueira não é assim, disse o outro, a cegueira dizem que é negra,
Pois eu vejo tudo branco, Se calhar a mulherzinha tinha razão, pode ser
coisa de nervos, os nervos são o diabo, Eu bem sei o que é, uma des-
graça, sim, uma desgraça, Diga-me onde mora, por favor, ao mesmo
tempo ouviu-se o arranque do motor. Balbuciando, como se a falta de
visão lhe tivesse enfraquecido a memória, o cego deu uma direcção,
depois disse, Não sei como lhe hei-de agradecer, e o outro respondeu,
Ora, não tem importância, hoje por si, amanhã por mim, não sabemos
para o que estamos guardados, Tem razão, quem me diria, quando
saí de casa esta manhã, que estava para me acontecer uma fatalidade
como esta. Estranhou que continuassem parados, Por que é que não
andamos, perguntou, O sinal está no vermelho, respondeu o outro, Ah,
fez o cego, e pôs-se a chorar outra vez. A partir de agora deixara de
poder saber quando o sinal estava vermelho.
http://veja.abril.com.br/livros_mais_vendidos/trechos/ensaio-sobre-a-cegueira.html

Atividade I
a) Você percebeu, no trecho acima transcrito, alguns aspectos do estilo de
Saramago, apontados no texto anterior? Identifique-os e comente-os.

b) Opine sobre a presença das cores no trecho do romance de José Saramago.

dica. utilize o bloco


de anotações para
responder as atividades!

152 SEAD/UEPB I Literatura Portuguesa


Texto 3
Vamos conhecer agora, algo sobre o que está acontecendo na con-
temporaneidade, em Portugal, em termos de literatura, para além de
Saramago, através de um artigo de Rodrigo Prado, extraído do site
“Recanto das Letras” – o qual, aliás, sugerimos como leitura comple-
mentar, pela excelência do que é lá publicado.

A literatura portuguesa
contemporânea

Rodrigo Augusto Fiedler do Prado


Portugal, o berço de nossa língua e cultura, sempre, ao longo dos
tempos (precisamente desde o século XII, com o advento de nossa lite-
ratura – com os cancioneiros populares trovadorescos), nos presenteou
com grandes artistas das letras. Donos de uma literatura rica e sem par,
os escritores portugueses se fizeram, entre os falantes de línguas latinas,
um marco único e singular.
Camões, Eça de Queiroz, Teófilo Braga, Bocage, Garret, Feliciano
de Castilho, Herculano e Pessoa (e seus heterônimos) nos tornam isso
bastante claro. Mas não é só do passado que vive a Literatura Lusa.
Menos produtivo e menos divulgado, o século XX tem também seus íco-
nes. Infelizmente escritores e obras impressionantes foram sucumbidas
ao regime ditatorial de Salazar, que além de afundar Portugal numa
crise econômica e social gravíssima, cerceou sua cultura a um espaço
e a uma forma muito intrínseca à própria regionalidade portuguesa.
Diferente das naus lusitanas do século XVI, a literatura lusa do século
XX não desbravou cercanias do além mar.
Mas este espectro não foi perene. Nas últimas décadas do século
passado, na fase pós-ditadura, houve um readvento cultural em Portu-
gal. É fato que o intercâmbio cultural com o Brasil e com as outras ex-
-colônias, principalmente as ilhas e Angola, enriqueceram o ambiente
cultural luso, até então tão atrasado. Autores como Jorge Amado, Érico
Veríssimo e Drummond passaram a ser lidos com avidez, músicos como
Chico Buarque, Caetano Velo-so e Djavan passaram a ser adorados
naquele país. Artistas angolanos do mesmo quilate passaram a fazer
parte da cultura cotidiana portuguesa e, com isso, Portugal se indepen-
deu definitivamente das marcas deixadas pelo Salazarismo, readquiriu
personalidade própria e conseguiu, pela primeira vez na história da
humanidade, trazer um prêmio Nobel de Literatura para um escritor de
língua portuguesa: José Saramago.

Literatura Portuguesa I SEAD/UEPB 153


Este feito, de certa forma, funcionou como uma “faca de dois gu-
mes”. Gerou uma dicotomia interessante no aspecto literário portu-
guês: de um lado Saramago, ostentado, visionado e bem posicionado
frente à mídia, e de outro, uma gama tão interessante quanto de au-
tores, que ficaram apagados pelo próprio sucesso do autor de “Ensaio
sobre a cegueira” e que não foram por sua vez, aclamados pela crítica
internacional.
Autores com estilos e formas incomparáveis, de literatura belíssima
e riqueza gramatical; do mesmo nível (ou até superiores) que o próprio
Saramago e outros autores contemporâneos (como Salmman Rushdie,
Ernest Hemmingway, Paul Auster, Isabel Allende, Antonio Skármeta,
Jorge Luiz Borges e Garcia Marques), surgiram e estão até os tempos
atuais em produção brilhante em Portugal; mas o problema é que a
mídia, assim como cobriu este ícones todos, só o fez para Saramago.
Este quase preconceito ocorre, talvez, pela literatura lusitana ser
bem artística e às vezes complexa; talvez pelo não formato de “Best-
Seller” que possuem as obras; talvez – e o que seria lamentável – pela
língua. É sabida nos anais editoriais a dificuldade de transferir e traduzir
a questão semântica luso-brasileira para outras línguas, assim como a
questão gramatical, restando ao espanhol – língua que muito se asse-
melha à nossa – uma opção de divulgação evidente. Mas o “plus” do
mercado editorial não é em Madri, nem tampouco em Buenos Aires,
quiçá na cidade do México. É obviamente em Nova Iorque, Frankfurt
e Paris.
Para que possamos tomar conhecimento da pluralidade literária
portuguesa contemporânea, algumas editoras (em especial a Editora
Planeta, do Brasil), optou pela publicação de obras portuguesas recen-
tes, escolhendo autores de consagração local e de já algum impacto
na Europa e nos EUA.
São eles, Inês Pedrosa, Filipa Melo, Rui Zink, Teolinda Gersão e
Agustina Bessa-Luís, entre outros, sendo a primeira e a terceira escrito-
ras, respectivamente, as mais lidas atualmente naquele país, a última
(Agustina) a ganhadora do prêmio Camões 2004, e Rui Zink um autor
já com um público leitor bem definido e professor universitário.
Os temas, ligeiramente abordando o fantástico e o impossível, fler-
tam com o metafísico, mas não fogem do lugar-comum das banali-
dades do cotidiano, são textos que não têm nada de filosóficos e nos
ensinam uma nova maneira de ler. Uma leitura onde, passo-a-passo,
vamos interiorizando o contexto do livro e, de repente, nos percebemos
parte dele.
Em Fazes-me falta (Pedrosa, Inês – Editora Planeta), por exemplo, o
leitor se depara com um dispositivo narrativo de extrema simplicidade:
duas vozes apenas, que, ao longo de cinquenta blocos textuais, a que,
pela sua episódica brevidade, não chegaremos a chamar capítulos,
se cruzam numa espécie de diálogo espectral. Uma dessas vozes é
feminina, e é a ela que cabe a iniciativa de convocar os temas. A outra
voz, que viremos a saber que é mais velha, pertence a um homem. Po-
deríamos pensar, segundo as convenções de leitura para que estamos

154 SEAD/UEPB I Literatura Portuguesa


preparados, que entre estas duas personagens existe sobretudo uma
relação passional. Mas aquilo que as une é de uma outra ordem – e
de certo modo o livro não faz mais do que ir à procura do nome exato
para essa ordem, o nome apropriado para esse tecido de palavras que
une, enreda, compromete, envolve estas duas vozes. De um modo es-
quemático, dir-se-ia, como a própria Inês sugere, que se trata de uma
relação de amizade. E de que o que Inês Pedrosa pretende é relançar a
energia ficcional da amizade, habitualmente relegada, no campo dos
afetos romanescos, para um lugar secundário.
Inês Pedrosa é portuguesa, mas sua obra não – é universal, diga-
mos inclusive, transcendental . Apesar de apresentar personagens por-
tugueses, envoltos na cultura lusa, Fazes-me falta é dos romances mais
originais dos últimos tempos. Amantes que mantém sua chama acesa
após a morte da mulher e fatos da vida apresentados aleatória e poeti-
camente. Impecável escrita, envolvimento certeiro. Leia ou te fará falta.
Podemos, através do texto de Marcelo Pen, crítico literário da Folha
de São Paulo, tornarmo-nos mais esclarecidos quanto à ambientação
literária portuguesa:
...Nem Saramago nem Lobo Antunes. Os novos autores portugue-
ses não estão interessados nas questões coloniais ou pós-coloniais nem
em pregar contra a globalização. Pelo menos a julgar pelo que dizem
os escritores Filipa Melo, 31, e Rui Zink, 42, que lançam seus livros pela
nova coleção “Tanto Mar”, da editora Planeta, na Bienal do Livro de
São Paulo.
Seus romances tratam de futebol, mídia, cultura pop e morte. Além
disso, os dois querem mais do que se filiar à literatura portuguesa. Eles
querem o mundo.
A morte é o tema que une os dois romances. Em Este É o Meu
Corpo, de Filipa, o encontro de um cadáver desfigurado de mulher é o
ponto de partida para investigar o ser humano.
O livro tem longas cenas de dissecação, prática médica que exigiu
da autora uma intensa pesquisa. “A imagem de um corpo voltado pelo
avesso”, afirma, “relaciona-se com minha idéia de que a morte é um
momento de renascimento”. Ela explica que, “quando alguém morre,
começa uma nova vida, feita de memória”.
Em O Reserva, de Zink, um locutor esportivo distraído atropela e
mata um garoto de quatro anos. A tragédia permite ao autor, por meio
de um punhado de personagens, examinar diversos setores da socie-
dade portuguesa.
“A morte é um pretexto para falar da vida. Quero acompanhar a re-
ação das personagens implicadas – o atropelador, a mulher e a amante
dele; o pai, a mãe e o avô da criança – e também da sociedade e da
lei. O leitor vai reconhecer-se nalguma daquelas boas pessoas. Os
grandes crimes são cometidos por boas pessoas.”
O livro de Zink, que é professor da Universidade Livre de Lisboa e
doutorando em HQs, foi adaptado para a edição brasileira. A começar
pela troca do título lusitano, “O Suplente”, que para nós parece ter
Literatura Portuguesa I SEAD/UEPB 155
conotação política.
Melo e Zink citam sem pestanejar alguns nomes da literatura bra-
sileira contemporânea, como Adriana Lisboa, Bernardo Carvalho,
Marilene Felinto. Também mostram admiração por Rubem Fonseca:
“Pode-se dizer que é um mestre que influenciou a escrita portuguesa”,
comenta Zink.
Mas não conhecem os autores da chamada Geração 90 (Marçal
de Aquino e Nelson de Oliveira, para citar dois). Do outro lado da
balança, os brasileiros ignoram boa parte do que se passa no atual
cenário literário português. Como acabar com essa ignorância?
Filipa Melo tem uma resposta na ponta da língua: a responsabilida-
de cabe à imprensa especializada. “Em Portugal se fala muito de uma
irmandade com o Brasil; o que falta é existir essa irmandade. Os jor-
nalistas de cultura têm um papel crucial nas pontes que se estabelecem
entre as propostas literárias dos dois países.”
Melo e Zink não gostam de ser etiquetados como “nova geração”.
Para Zink, “a cultura da novidade é perigosa. As alianças entre autores
criam-se pela estética; o que se dá independentemente de geração ou
nacionalida-de”.
Para Melo, “catalogar está fora de moda; é preciso tirar as etique-
tas. É óbvio que meu romance é português, mas pode se passar em
qualquer outro local”. Zink também almeja um alcance maior: “Quero
um leitor que viaje com o livro. As palavras são postas como pedrinhas
escondidas sob a água, por cima das quais ele deve caminhar nesse
maravilhoso oceano que é a inteligência do mundo”.
Mas, voltando à importância de o leitor brasileiro vir a interessar-
-se pela ficção da “terrinha”, Zink brinca: “Olha, nós temos o Deco
(o jogador brasileiro Anderson Luís de Sousa), naturalizado português,
temos uma moeda forte, o euro. Acho que está mais do que na hora de
os brasileiros começarem a “amar” a nossa literatura!”.
Para enriquecer ainda a gama de autores lusos contemporâneos,
escritoras como Teolinda Gersão, fazem a diferença no cenário.
Teolinda Gersão nasceu em Coimbra, estudou Germanística e An-
glística nas Universidades de Coimbra, Tuebingen e Berlim, foi Leitora
de Português na Universidade Técnica de Berlim, docente na Faculdade
de Letras de Lisboa e posteriormente professora catedrática da Uni-
versidade Nova de Lisboa, onde ensinou Literatura Alemã e Literatura
Comparada até 1995. A partir dessa data passou a dedicar-se exclusi-
vamente à literatura.
Além da permanência de três anos na Alemanha, viveu dois anos
em São Paulo, Brasil (reflexos dessa estada surgem em alguns textos de
Os guarda-chuvas Cintilantes, 1984), e conheceu Moçambique, cuja
capital, então Lourenço Marques, é o lugar onde decorre o romance
de 1997, A Árvore das Palavras, mais uma publicação Planeta aqui no
Brasil.
Fica então claro que a literatura portuguesa de hoje transcende Sa-

156 SEAD/UEPB I Literatura Portuguesa


ramago, transcen-de os profundos flertes com a filosofia e, mesmo go-
zando da despretensão de tratar do cotidiano, atinge o sublime através
de “penas” menos ortodoxas das veias mais abertas da literatura – o
retrato e a recriação do próprio homem.
Atinge a qualidade e o belo do simples, através de entretenimento,
qualidade e muita, mas muita arte.
http://recantodasletras.uol.com.br/teorialiteraria/1062563

Atividade II

a) O que você acha da ação da mídia e dos interesses mercadológicos a


definir a penetração da literatura? Discuta isso.

b) Comente esse fenômeno que é um grande escritor fazer sombra a outros


escritores contemporâneos, como aconteceu com Fernando Pessoa e
José Saramago.

dica. utilize o bloco


de anotações para
responder as atividades!

Literatura Portuguesa I SEAD/UEPB 157


Sugestão de filmes
Ensaio sobre a cegueira (2008)

Conta a história de uma


inédita epidemia de cegueira,
inexplicável, que se abate so-
bre uma cidade não identifica-
da. Tal “cegueira branca” - as-
sim chamada, pois as pessoas
infectadas passam a ver ape-
nas uma superfície leitosa -
manifesta-se primeiramente
em um homem no trânsito e, lentamente, espalha-se pelo país. Aos
poucos, todos acabam cegos e reduzidos a meros seres lutando por
suas necessidades básicas, expondo seus instintos primários. O foco
do filme, no entanto, não é desvendar a causa da doença ou sua cura,
mas mostrar o desmoronar completo da sociedade que, perde tudo
aquilo que considera civilizado. Ao mesmo tempo em que vemos o
colapso da civilização, um grupo de internos tenta reencontrar a hu-
manidade perdida. O brilho branco da cegueira ilumina as percepções
das personagens principais, e a história torna-se não só um registro
da sobrevivência física das multidões cegas, mas, também, dos seus
mundos emocionais e da dignidade que tentam manter. Mais do que
olhar, importa reparar no outro. Só dessa forma o homem se humaniza
novamente. Elenco: Julianne Moore, Danny Glover, Alice Braga, Mark
Ruffalo, Gael García Bernal, Don McKellar, Maury Chaykin, Martha
Burns. Direção: Fernando Meirelles. Duração: 120 min.

Embargo (2010)

Nuno é um homem que traba-


lha numa roulotte de bifanas, mas
que inventou uma máquina que
promete revolucionar a indústria
do calçado – um digitalizador de
pés. No meio de um embargo pe-
trolífero e deparando-se com uma
estranha dificuldade, Nuno tenta
obstinadamente vender a máqui-
na, obcecado por um sucesso que o fará descurar algumas das coisas
essenciais da sua vida. Quando Nuno fica estranhamente enclausurado
no seu próprio carro e perde uma oportunidade única de finalmente pro-
duzir o seu invento, vê subitamente a sua vida embargada… Elenco: Filipe
Costa, Cláudia Carvalho, Pedro Diogo, Fernando Taborda, José Raposo,
Miguel Lança, Eloy Monteiro. Direção: Antonio Ferreira. Duração: 83 min.
158 SEAD/UEPB I Literatura Portuguesa
Resumo
Pudemos observar que, na atualidade, a literatura portuguesa do
século XX, apesar de sua aparição tímida na mídia, guarda bons escri-
tores, que não apenas Fernando Pessoa e José Saramago. A ditadura
de Oliveira Salazar, por mais de quatro décadas, foi uma das responsá-
veis pelo obscurantismo em que mergulhou a arte literária lusa, somen-
te alçada novamente às luzes midiáticas em 1998, quando Saramago
transformou-se no primeiro escritor de língua portuguesa a receber o
Nobel de Literatura. No percurso que procuramos realizar, ao longo
destas dez unidades, percebemos que, desde as primeiras manifesta-
ções trovadorescas, no século XII, até as mais recentes, o nacionalismo
português tem lugar de destaque. Claro está que não falamos sobre
todos os escritores lusos – o que seria impossível em espaço tão breve.
Ausências importantes serão apontadas, naturalmente. Resta, então,
a você, aluno, que se interessar pela rica historiografia literária portu-
guesa, e pela própria literatura lusa, pesquisar, seja em livros, seja na
internet, e mergulhar nesse universo fabuloso.

Autovaliação
Observe se:

• compreendeu a situação literária de alguns autores que estão fazendo


literatura na atualidade, em Portugal;

• identificou características próprias da obra literária de José Saramago,


Prêmio Nobel de Literatura;
dica. utilize o bloco
de anotações para
• compreendeu os aspectos que fazem da atual literatura portuguesa
responder as atividades!
ainda pouco conhecida para além das fronteiras lusas

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Referências

Web:
http://pt.wikipedia.org/wiki/Jos%C3%A9_Saramago
http://recantodasletras.uol.com.br/teorialiteraria/1062563
http://veja.abril.com.br/livros_mais_vendidos/trechos/ensaio-sobre-a-
cegueira.html

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