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A defectologia e o estudo do desenvolvimento e da

educação da criança anormal

Lev Semionovitch Vigotski

Este artigo, inédito no Brasil, foi traduzido diretamente


do russo por Denise Regina Sales, Marta Kohl de Oliveira
e Priscila Nascimento Marques, que constituem um grupo
de tradução dedicado às obras de Vigotski. O texto original
(VIGOTSKI, L. S. Defektologuia i utchenie o razvitii i vos-
pitanii nenormálnogo rebionka. In: Problemi defektologuii
[Problemas de defectologia]. Moscou: Prosveschenie, 1995.
p. 451-458.) tem sua data de produção desconhecida, mas
provavelmente foi escrito entre 1924 e 1931. Sua primeira
publicação data de 1983, no quinto volume das Obras es-
colhidas, em russo (VIGOTSKI, L. S. Obras escolhidas. t. 5.
Moscou: Pedagoguika, 1983. p. 166-173); posteriormente, o
texto foi publicado nas traduções feitas na Espanha (1997) e
nos Estados Unidos (1993). Os termos defectologia e criança
anormal, utilizados no título e ao longo do artigo, foram
mantidos na presente tradução por corresponderem à termi-
nologia utilizada no início do século XX, quando Vigotski
produziu seus textos. Atualmente, seriam equivalentes às
expressões deficiência e educação especial e criança com de-
ficiência, respectivamente. Além do interesse histórico e da
indiscutível relevância de fazer traduções diretas da obra vi-
gotskiana, destaca-se neste artigo a postulação do desenvol-
vimento como um percurso tortuoso, atravessado por rup-
turas e conflitos, e a tese central do autor de que caminhos
indiretos de desenvolvimento são possibilitados pela cultura
quando o caminho direto está impedido. Isso teria especial
importância no caso das crianças com deficiência. O desen-
volvimento cultural seria, assim, a principal esfera em que é
possível compensar a deficiência.

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Atualmente, a questão consiste em rom- ou o homem primitivo1. Nós, homens culturais,
per o aprisionamento biológico da psicologia e as crianças de idade escolar mais avançada,
e passar para o campo da psicologia históri- para fazer a divisão, usamos o caminho indire-
ca, humana. A palavra social, aplicada à nossa to; primeiramente, contamos os objetos e, dessa
disciplina, possui um importante significado. forma, o objetivo fundamental de dividir fica
Antes de mais nada, em seu sentido mais am- em segundo plano. Os homens culturais con-
plo, essa palavra indica que tudo o que é cultu- tam primeiro os objetos, depois os participan-
ral é social. A cultura também é produto da vida tes presentes; em seguida, efetuam a operação
em sociedade e da atividade social do homem aritmética, por exemplo, dividem 64 objetos
e, por isso, a própria colocação do problema do entre quatro participantes. O número obtido in-
desenvolvimento cultural já nos introduz dire- dica quantos objetos devem ficar com cada um.
tamente no plano social do desenvolvimento. Apenas depois disso a divisão tem início. Em
Além disso, seria possível apontar para o fato outras palavras, o objetivo fundamental, sem
de que o signo localizado fora do organismo, dúvida, não é alcançado de modo direto, assim
assim como o instrumento, está separado do que surge a tarefa. Mesmo em crianças de tenra
indivíduo e consiste, em essência, num órgão idade, ele é adiado, é deixado para o final, e o
da sociedade ou num meio social. Ademais, po- intervalo é preenchido por uma série de opera-
deríamos dizer que todas as funções superiores ções, que consistem em um caminho indireto
formaram-se não na biologia nem na história para a resolução da tarefa.
da filogênese pura – esse mecanismo, que se Do mesmo modo, a criança começa a
encontra na base das funções psíquicas supe- contar nos dedos quando, por não estar em
riores, tem sua matriz no social. Poderíamos condições de dar uma resposta direta à pergun-
indicar o resultado fundamental a que nos con- ta do professor sobre o resultado de 6 mais 2,
duz a história do desenvolvimento cultural da ela conta nos dedos 6, depois 2 e diz: 8. Aqui
criança como a sociogênese das formas supe- temos novamente a estrutura do caminho in-
riores de comportamento. direto para a realização de determinada ope-
A estrutura das formas complexas de ração – uma conta: a criança, sem ter uma
comportamento da criança consiste numa es- resposta pronta, automática, utiliza as próprias
trutura de caminhos indiretos, pois auxilia mãos, que antes eram para ela somente pano de
quando a operação psicológica da criança re- fundo. Nesse caso, as mãos, que não possuem
vela-se impossível pelo caminho direto. Porém, relação direta com a pergunta, adquirem signi-
uma vez que esses caminhos indiretos são ad- ficado de instrumento assim que a execução da
quiridos pela humanidade no desenvolvimento tarefa pelo caminho direto se mostra impedida
cultural, histórico, e uma vez que o meio social, para a criança. Com base nessas colocações, po-
desde o início, oferece à criança uma série de deríamos determinar também as próprias fun-
caminhos indiretos, então, muito frequente- ções, o próprio propósito que cumpre essa ope-
mente, não percebemos que o desenvolvimento ração cultural na vida da criança. A estrutura
acontece por esse caminho indireto. do caminho indireto surge apenas quando apa-
Um exemplo simples. Vamos imaginar rece um obstáculo ao caminho direto, quando a
que precisamos escolher em qual de dois gru- 1 - Fortemente influenciado por Lucien Lévy-Bruhl, Vigotski busca tratar
pos há mais objetos, ou, então, que precisamos supostos estágios de desenvolvimento cultural apenas como diferentes
dividir determinado grupo de objetos em certo entre si e não como inferiores ou superiores; entretanto, coerentemente
com as concepções predominantes em seu tempo, ele na verdade concebe
número de partes (dividir brinquedos ou peças o pensamento racional e escolarizado como o modo mais avançado de
entre algumas pessoas presentes). A operação funcionamento psicológico. Sendo assim, sua visão sobre essa questão po-
deria ser atualmente considerada evolucionista e eurocêntrica, e os termos
mais simples seria a seguinte: dividir os obje- homem primitivo e homem cultural, mantidos nesta tradução por fidelidade
tos a olho, como fazem as crianças mais novas ao original, são bastante questionáveis. (N. de T.)

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resposta pelo caminho direto está impedida; em um lápis vermelho”, ou “A lebre vai ficar sem
outras palavras, quando a situação apresenta orelhas”, ou “Vou ter que desenhar com o lápis
exigências tais, que a resposta primitiva revela- cinza”, ou “Se eu molhar o azul na água, ele
-se insatisfatória. Como regra geral, podemos vai ficar como vermelho”, e assim faz a criança.
considerar isso como operações culturais com- Em outras palavras, quando não é possível dar
plexas da criança. A criança começa a recorrer conta da situação por meio de uma ação, surge
a caminhos indiretos quando, pelo caminho di- em cena o raciocínio: como planejar o próprio
reto, a resposta é dificultada, ou seja, quando comportamento ou como conseguir o objeto
as necessidades de adaptação que se colocam que lhe falta. Às vezes, a criança tenta dar-se
diante da criança excedem suas possibilidades, conta do que está acontecendo. Esse caminho
quando, por meio da resposta natural, ela não indireto aparece quando o caminho direto está
consegue dar conta da tarefa em questão. impedido.
A título de exemplo, apresentamos nosso O experimento nos convence de que a
experimento, que é uma modificação do expe- fala egocêntrica da criança é uma importante
rimento de Jean Piaget com a fala egocêntrica função do discurso interior, uma vez que ela pla-
da criança2. Observamos a fala egocêntrica da neja o comportamento. Sabemos até que ponto
criança aproximadamente na mesma situação aquilo que vem à mente da pessoa influencia o
em que Piaget, mas nos propusemos investigar que ela faz e em que medida isso é característi-
de que fatores ela depende. Diferentemente do co do comportamento humano, condiciona seus
experimento de Piaget, dificultamos o compor- atos, sua atitude em relação ao meio circundan-
tamento da criança. Nós a observamos no mo- te. As origens desse planejamento encontram-
mento de seu desenho livre, mas organizamos a -se na fala egocêntrica infantil.
atividade de modo que falte à criança determi- O pesquisador suíço Édouard Claparède
nado lápis de cor. Enquanto ela está entretida demonstrou as leis que explicam a estrutura
com o desenho, nós retiramos, imperceptivel- de tais operações indiretas; elas foram por ele
mente, o modelo a partir do qual ela desenha; denominadas leis da dificuldade de tomada de
quando ela copia o desenho em um papel de consciência3 . Claparède pesquisou como sur-
seda, retiramos, imperceptivelmente, a tachinha ge, na criança, a resposta ao semelhante e ao
e a folha se solta. Em suma, organizamos o com- diferente e deparou com os seguintes fatos: a
portamento da criança de modo que ela depare resposta ao semelhante surge antes da respos-
com uma série de dificuldades. Constatamos, ta ao diferente, enquanto a definição verbal do
nesses casos, que a fala egocêntrica imediata- diferente surge antes da definição verbal do
mente sobe para 96%, enquanto seu coeficiente semelhante. Claparède explica isso da seguinte
normal fica em torno de 47%. Isso demonstra forma: com relação à semelhança, não há difi-
que a fala egocêntrica intensifica-se quando culdades para a criança, ela reage diretamente,
surgem dificuldades para a criança. Vamos su- não tem motivos para recorrer ao caminho in-
por que uma criança está desenhando e preci- direto; com relação ao diferente, ela erra muito
sa de um lápis vermelho. Se o lápis estiver ali, mais, realiza uma e outra ação, e, assim, revela-
surgirá a fala egocêntrica? Não. Ela precisa do -se como surge a operação indireta. Claparède
lápis vermelho, pega-o e desenha. Agora vamos formulou esta lei: procuramos compreender em
supor que a criança precise do lápis vermelho,
3 - Édouard Claparède (1873-1940), em A educação funcional (1931),
mas ele não está lá; ela olha e o lápis não está apresenta um conjunto de grandes leis da conduta, entre as quais se en-
ali. É aí que surge a fala egocêntrica, o raciocí- contra a lei da tomada de consciência aqui citada por Vigotski. Tal lei es-
tabelece que o indivíduo comporta-se em relação a determinado objeto ou
nio: “Sumiu o lápis vermelho, preciso arranjar processo inicialmente de forma automática, inconsciente. Posteriormente,
2 - Quando utiliza o conceito de fala egocêntrica em Piaget, Vigotski re- ele toma consciência desse objeto e pode comportar-se em relação a ele
fere-se à obra A linguagem e o pensamento da criança, de 1923. (N. de T.) recorrendo a caminhos indiretos, a partir de uma escolha consciente e não
levado por reações diretas, automáticas. (N. de T.)

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palavras ou traduzimos a operação do plano das rompe e afasta linhas e tendências antigas de
ações para o plano verbal à medida que apren- seu desenvolvimento.
demos a adaptarmo-nos, conforme deparamos Agora, o educador começa a compre-
com dificuldades em nosso comportamento. ender que, ao entrar na cultura, a criança não
E, realmente, não apenas os pesquisado- apenas toma algo dela, adquire algo, incute em
res da fala egocêntrica, mas também os pesqui- si algo de fora, mas também a própria cultu-
sadores de operações mais complexas, demons- ra reelabora todo o comportamento natural da
tram que a estrutura dos caminhos indiretos criança e refaz de modo novo todo o curso do
surge quando a operação pelo caminho direto desenvolvimento.
está impedida. Em outras palavras, a função bá- A distinção de dois planos de desen-
sica e o objetivo fundamental da forma superior volvimento no comportamento (o natural e o
de adaptação consistem em fazer com que ela cultural) torna-se o ponto de partida para uma
ocorra quando a adaptação pelo caminho direto nova teoria da educação.
fica difícil para a criança. O segundo ponto é ainda mais importan-
Há ainda um ponto extremamente im- te. Ele, pela primeira vez, introduz no campo
portante, que pode ser assim formulado: o da educação a concepção dialética do desen-
desenvolvimento das formas superiores de volvimento da criança. Se antes, quando não se
comportamento acontece sob pressão da neces- distinguiam os dois planos de desenvolvimento
sidade; se a criança não tiver necessidade de – o natural e o cultural –, era possível apresen-
pensar, ela nunca irá pensar. Se as dificulda- tar ingenuamente o desenvolvimento cultural
des organizadas por nós obrigam a criança a da criança como continuação e consequência
corrigir seu comportamento, a pensar antes de direta de seu desenvolvimento natural, agora
agir, a tomar consciência em palavras, como diz tal compreensão resulta impossível. Os antigos
Claparède, então acontece a situação mencio- pesquisadores não viam um conflito profun-
nada. Mas, se organizamos o experimento de do na transição, por exemplo, do balbucio às
modo que a criança não depare com dificulda- primeiras palavras ou da percepção das figuras
des, então a porcentagem de sua fala egocêntri- numéricas ao sistema decimal. Eles considera-
ca diminui imediatamente de 96% para 47%, ou vam que um era mais ou menos a continua-
seja, cai quase pela metade. ção do outro. Novas pesquisas têm mostrado,
Antes, os psicólogos estudavam o pro- e nisso está seu inestimável mérito, que, onde
cesso de desenvolvimento cultural da criança e antes se via um caminho plano, na verdade há
o processo de sua educação de forma unilate- uma ruptura; onde parecia existir um movi-
ral. Assim, todos se perguntavam quais dados mento bem-sucedido por uma superfície plana,
naturais da psicologia da criança condicionam na realidade acontecem saltos. Simplificando,
a possibilidade de seu desenvolvimento cultu- as novas pesquisas indicaram pontos de vira-
ral, em quais funções naturais da criança deve gem no desenvolvimento, em que os antigos
apoiar-se o pedagogo para introduzi-la nessa supunham haver um movimento em linha reta.
ou naquela esfera da cultura. Estudavam, por Com isso, elas esclareceram os pontos nodais
exemplo, como o desenvolvimento da fala, ou do desenvolvimento da criança mais importan-
a aprendizagem da aritmética, depende de fun- tes para a educação. Mas é natural que, junta-
ções naturais da criança, como ele é preparado mente com isso, desapareça também a antiga
no processo de crescimento natural da criança, concepção sobre o próprio caráter da educação.
mas não estudavam o contrário: como a assi- Onde a antiga teoria podia falar em colabora-
milação da fala ou da aritmética transforma as ção, a nova fala em luta. No primeiro caso, a
funções naturais do aluno, como ela reconstrói teoria ensinava à criança a dar passos lentos e
todo o curso de seu pensamento natural, como tranquilos; a nova deve ensiná-la a saltar. Essa

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mudança radical no ponto de vista educacio- pios da educação quando nos aproximamos da
nal, que emerge como resultado da revisão dos educação da criança anormal.
problemas fundamentais do desenvolvimento Aqui o caso é essencialmente diferente
cultural da criança, pode ser ilustrada em cada daquele observado no campo da educação da
problema metodológico, em cada capítulo de criança normal. Todo o aparato da cultura hu-
nossa pesquisa. mana (da forma exterior de comportamento)
A tarefa de cada teoria científica in- está adaptado à organização psicofísiológica
clui a análise das relações existentes entre o normal da pessoa. Toda a nossa cultura é cal-
meio e o organismo e dos seus principais ti- culada para a pessoa dotada de certos órgãos
pos. Entretanto, essa posição expressa, de fato, – mão, olho, ouvido – e de certas funções cere-
a ideia de que o desenvolvimento da criança brais. Todos os nossos instrumentos, toda a téc-
em cada época cultural coincide mais ou me- nica, todos os signos e símbolos são calculados
nos com pontos determinados da linha de seu para um tipo normal de pessoa. E daqui surge
desenvolvimento cultural. Assim, se examinar- aquela ilusão de convergência, de passagem
mos fenotipicamente o fenômeno, à primeira natural das formas naturais às culturais, que,
vista parece de fato que, em certo estágio de de fato, não é possível pela própria natureza
desenvolvimento do cérebro e de acúmulo de das coisas e a qual tentamos revelar em seu ver-
experiência, a criança adquire a fala humana; dadeiro conteúdo.
num estágio mais avançado, ela domina o sis- Quando surge diante de nós uma criança
tema numérico; mais adiante, em condições que se afasta do tipo humano normal, com o
favoráveis, entra no mundo da álgebra. Aqui agravante de uma deficiência na organização
é como se houvesse plena coincidência ou, psicofisiológica, imediatamente, mesmo aos
mais provavelmente, concordância das linhas olhos de um observador leigo, a convergên-
de desenvolvimento. Mas esse é um ponto de cia dá lugar a uma profunda divergência, uma
vista enganoso. Por trás dele esconde-se uma discrepância, uma disparidade entre as linhas
discrepância profunda, um conflito complexo, natural e cultural do desenvolvimento da crian-
em que sempre se transforma o encontro com ça. Por si só, entregue a seu desenvolvimento
um novo estágio de desenvolvimento, pois, na natural, a criança surda-muda nunca aprenderá
verdade, a linha de desenvolvimento natural da a falar, a cega nunca dominará a escrita. Aqui
criança, entregue à própria lógica, nunca passa a educação surge em auxílio, criando técnicas
para a linha do desenvolvimento cultural. artificiais, culturais, um sistema especial de sig-
A transformação do material natural em nos ou símbolos culturais adaptados às pecu-
uma forma histórica é sempre um processo não liaridades da organização psicofisiológica da
de simples mudança orgânica, mas de comple- criança anormal.
xa mudança do próprio tipo de desenvolvimen- Assim, no caso dos cegos, a escrita visual
to. Assim, a principal conclusão que pode ser ti- é substituída pela tátil – o sistema Braille permi-
rada da história do desenvolvimento cultural da te compor todo o alfabeto por meio de diferentes
criança, em relação à sua educação, é a seguin- combinações de pontos em relevo, permite ler to-
te: à educação cumpre sempre enfrentar uma cando esses pontos na página, e escrever perfu-
subida onde antes se via um caminho plano; rando o papel e marcando nele pontos em relevo.
ela deve dar um salto onde até então parecia Exatamente do mesmo modo, no caso dos sur-
ser possível limitar-se a um passo. O primeiro dos-mudos, a dactilologia (ou alfabeto manual)
mérito da nova pesquisa consiste exatamente permite substituir por signos visuais, por diversas
em ter revelado um quadro complexo onde an- posições das mãos, os signos sonoros do nosso
tes se via um simples. Mas esse ponto de vista alfabeto e compor no ar uma escrita especial, que
produz uma verdadeira revolução nos princí- a criança surda-muda lê com os olhos.

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A educação vai ainda mais longe e en- Nós nos acostumamos com a ideia de
sina ao surdo-mudo a língua falada, uma vez que o homem lê com os olhos e fala com a boca,
que seu aparelho fonador geralmente não está e somente o grande experimento cultural que
prejudicado. Essa criança, surda de nascença, só mostrou ser possível ler com os dedos e falar
se torna muda por estar privada de percepção com as mãos revela-nos toda a convenciona-
auditiva. A educação ensina o surdo a compre- lidade e a mobilidade das formas culturais de
ender a língua falada pela leitura dos lábios do comportamento. Psicologicamente, essas for-
falante, ou seja, substituindo os sons da fala por mas de educação conseguem superar o mais
imagens visuais, movimentos da boca e dos lá- importante, ou seja, a educação consegue incu-
bios. O surdo-mudo aprende a falar utilizando, tir na criança surda-muda e na cega a fala e a
para isso, o tato, a imitação de sinais e as sen- escrita no sentido próprio dessas palavras.
sações cinestésicas. O importante é que a criança cega lê, as-
Esses caminhos alternativos especial- sim como nós lemos, mas essa função cultural é
mente construídos para o desenvolvimento cul- garantida por um aparato psicofisiológico com-
tural da criança cega e da surda-muda, a língua pletamente diferente do nosso. E, para a criança
escrita e falada especialmente criada para elas surda-muda, o mais importante, do ponto de
são extremamente importantes na história do vista do desenvolvimento cultural, é que a fala
desenvolvimento cultural em dois aspectos. Os humana é garantida por um aparato psicofisio-
cegos e os surdos-mudos são como um expe- lógico completamente diferente.
rimento natural que demonstra que o desen- Dessa forma, a primeira lição que esses
volvimento cultural do comportamento não se exemplos nos ensinam é a independência das
relaciona, necessariamente, com essa ou aquela formas culturais de comportamento em rela-
função orgânica. A fala não está obrigatoria- ção a esse ou aquele aparato psicofisiológico.
mente ligada ao aparelho fonador; ela pode ser A segunda lição, particularmente evidente no
realizada em outro sistema de signos, assim exemplo das crianças surdas-mudas, refere-se
como a escrita pode ser transferida do caminho ao desenvolvimento espontâneo das formas
visual para o tátil. culturais de comportamento. As crianças sur-
Os casos de desenvolvimento anômalo das-mudas, por si mesmas, desenvolvem uma
permitem observar, com máxima clareza, a di- língua mímica complexa, uma fala singular. É
vergência entre o desenvolvimento cultural e o criada uma forma particular de fala não para
natural, a qual, em essência, ocorre também na surdos-mudos, mas construída pelos próprios
criança normal, mas aqui emerge com máxima surdos-mudos. É criada uma língua original,
nitidez justamente porque, entre os surdos-mu- que se distingue de todas as línguas humanas
dos e os cegos, nota-se uma impressionante dis- contemporâneas mais profundamente do que
crepância entre as formas culturais de comporta- estas entre si, pois ela retorna à mais antiga
mento, destinadas à organização psicofisiológica protolíngua humana, à língua dos gestos ou até
normal da pessoa, e o comportamento da criança mesmo só das mãos.
acometida por essa ou aquela deficiência. Porém, Por si só, mesmo privada de qualquer
mais importante, as formas culturais de compor- instrução, a criança ingressa no caminho do
tamento são o único caminho para a educação desenvolvimento cultural; em outras pala-
da criança anormal. Elas consistem na criação vras, é no desenvolvimento psicológico natu-
de caminhos indiretos de desenvolvimento onde ral da criança e no seu meio circundante, na
este resulta impossível por caminhos diretos. A necessidade de comunicação com esse meio,
língua escrita para os cegos e a escrita no ar para que se encontram todos os dados necessários
os surdos-mudos são tais caminhos psicofisioló- para que se realize uma espécie de autoignição
gicos alternativos de desenvolvimento cultural. do desenvolvimento cultural, uma passagem

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espontânea da criança do desenvolvimento mento cultural, seja ele pela linha do domínio
natural ao cultural. dos meios externos da cultura (fala, escrita,
Esses dois aspectos, tomados em con- aritmética), ou pela linha do aperfeiçoamento
junto, levam-nos a uma reavaliação radical interno das próprias funções psíquicas (elabo-
do olhar contemporâneo sobre a educação da ração da atenção voluntária, da memória ló-
criança anormal. O olhar tradicional partia da gica, do pensamento abstrato, da formação de
ideia de que o defeito significa menos, falha, conceitos, do livre-arbítrio e assim por diante).
deficiência, limita e estreita o desenvolvimen- As pesquisas mostram que a criança anormal,
to da criança, o qual era caracterizado, antes em geral, tem atrasos justamente nesse aspec-
de mais nada, pelo ângulo da perda dessa ou to. Tal desenvolvimento não depende da defi-
daquela função. Toda a psicologia da criança ciência orgânica.
anormal foi construída, em geral, pelo método Eis por que a história do desenvolvimen-
da subtração das funções perdidas em relação à to cultural da criança permite propor a seguinte
psicologia da criança normal. tese: o desenvolvimento cultural é a principal
Para substituir essa compreensão, surge esfera em que é possível compensar a defici-
outra, que examina a dinâmica do desenvolvi- ência. Onde não é possível avançar no desen-
mento da criança com deficiência partindo da volvimento orgânico, abre-se um caminho sem
posição fundamental de que o defeito exerce limites para o desenvolvimento cultural.
uma dupla influência em seu desenvolvimento. Ao falar sobre talento, detemo-nos espe-
Por um lado, ele é uma deficiência e atua dire- cialmente no modo como a cultura nivela as di-
tamente como tal, produzindo falhas, obstácu- ferenças de talento e como o desenvolvimento
los, dificuldades na adaptação da criança. Por cultural apaga ou, mais precisamente, converte
outro lado, exatamente porque o defeito produz em histórica a superação natural do desenvol-
obstáculos e dificuldades no desenvolvimento e vimento orgânico incompleto.
rompe o equilíbrio normal, ele serve de estímu- Resta-nos apenas acrescentar que, em
lo ao desenvolvimento de caminhos alternati- relação ao desenvolvimento cultural dos meios
vos de adaptação, indiretos, os quais substituem internos de comportamento (atenção voluntária
ou superpõem funções que buscam compensar e pensamento abstrato), deve ser criada a mes-
a deficiência e conduzir todo o sistema de equi- ma técnica de caminhos alternativos que exis-
líbrio rompido a uma nova ordem. te em relação ao desenvolvimento dos meios
Dessa forma, o novo ponto de vista externos do comportamento cultural. Para a
prescreve que se considere não apenas as ca- criança intelectualmente atrasada, deve ser
racterísticas negativas da criança, não só suas criado, em relação ao desenvolvimento de suas
faltas, mas também um retrato positivo de sua funções superiores de atenção e pensamento,
personalidade, o qual apresenta, antes de mais algo que lembre o sistema Braille para a crian-
nada, um quadro dos complexos caminhos ça cega ou a dactilologia para a muda, isto é,
indiretos do desenvolvimento. O desenvolvi- um sistema de caminhos indiretos de desenvol-
mento das funções psíquicas superiores é pos- vimento cultural, quando os caminhos diretos
sível somente pelos caminhos do desenvolvi- estão impedidos devido ao defeito.

Educação e Pesquisa, São Paulo, v. 37, n. 4, p. 861-870, dez. 2011. 869

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