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“Cristo e o Processo Revolucionário Brasileiro”: a Conferência do Nordeste e a

responsabilidade social da Igreja Presbiteriana do Brasil


Autor: Márcio Ananias Ferreira Vilela, bolsista FACEPE
Programa de Pós-Graduação em História da UFPE

Este artigo trata de um evento realizado na cidade do Recife, nas dependências do


Colégio Agnes Erskine, entre os dias 22 e 29 de julho de 1962. Organizado pelo Setor
de Responsabilidade Social da Igreja, um grupo interdenominacional e/ou ecumênico –
excetuando a Igreja Católica –, mas que sempre manteve uma forte presença de
presbiterianos1. Grupo que se estrutura ainda na década de 1950 vindo a ser vinculado a
Confederação Evangélica do Brasil/CEB2. A Confederação agrupava desde 1934 as
principais denominações protestantes do Brasil, como presbiterianos, metodistas,
congregacionais, entre outros. Desde a sua formação, o Setor procurava organizar
estudos e conferências para debater e propor soluções conjuntas para as questões sociais
e o papel das Igrejas da sociedade3.
Intitulada de Cristo e o Processo Revolucionário Brasileiro, esta foi a IV
conferência organizada por este Setor. Com uma presença considerada significativa pela
organização e pela imprensa secular, contou com 167 delegados de 17 Estados,
representando 14 denominações protestantes, e delegados de 5 igrejas dos Estados
Unidos, México e Uruguai4. Meses antes, a imprensa no Estado de Pernambuco já
anunciava com certo destaque a importância do evento. No dia 22 de Julho, momento da
abertura dos trabalhos pela Conferência, o jornal do Comércio publica que

1
Neste artigo, darei ênfase a participação da Igreja Presbiteriana do Brasil na Conferência do Nordeste.
2
Este grupo evangélico/ecumênico foi estruturado em 1955, conhecido como Comissão Igreja e
Sociedade. Após seu primeiro estudo sobre a relação da Igreja com a sociedade neste mesmo ano, foi
incorporada a Confederação Evangélica do Brasil. Informações retiradas dos Anais da III Reunião de
Estudos Sobre a Responsabilidade Social da Igreja intitulada Presença da Igreja na Evolução da
Nacionalidade, realizado pelo Setor de Responsabilidade Social da Igreja em 1960 no Instituto Metodista
em São Paulo.
3
Um dos poucos livros que analisa especificamente a Conferência do Nordeste foi lançado
recentemente pelo cientista político Joanildo Burity. Trata-se, de um trabalho escrito nos anos de 1980
como dissertação de mestrado para o Programa de Pós-Graduação de Ciências Políticas da UFPE.
BURITY, Joanildo. Fé e Revolução: protestantismo e o discurso revolucionário brasileiro (1962-1964). Rio
de Janeiro: Editora Novos Diálogos, 2011.
4
Crônica da Conferência do Nordeste: Cisto e o processo Revolucionário Brasileiro, promovido pelo Setor
de Responsabilidade Social da Igreja do Departamento de Estudos da Confederação Evangélica do Brasil,
Recife, 22-29 de julho de 1962.

1
com a finalidade de promover estudo e promover linhas de ação para
os evangélicos, em face da conturbada situação brasileira, a
Confederação Evangélica do Brasil, através do seu Setor de
Responsabilidade Social da Igreja, está promovendo reunião de
caráter nacional no Recife. Líderes evangélicos de todas as Igrejas,
pastores, teólogos, professores, sociólogos, estudantes, operários,
através de prelações, grupos de trabalho e debates, procuraram,
durante a semana de 22 a 29 do corrente, invocar a intercessão divina
para a hora presente5.

A escolha do Nordeste tinha suas implicações naquele momento. Era a primeira


Conferência a ser realizada fora do eixo sul-sudeste. O pastor metodista Almir dos
Santos, presidente do Setor de Responsabilidade Social da Igreja, problematiza o que
teria provocado à escolha do Nordeste num tópico intitulado De como se interpretaria a
Conferência do Nordeste, que compõe a Crônica da Conferência, espécie de Diário,
elaborado e publicado por Waldo Cesar, Secretário Executivo do Setor. Para Almir esta
região era o centro das preocupações da política nacional e internacional, pois “o
próprio presidente Kennedy enviou o seu irmão para estudar os problemas daquela
região [...] O Nordeste apresentava o ponto mais crítico da crise brasileira”. Reforça
ainda esta escolha por aparte do Setor afirmando que o Nordeste tem sido chamado “a
Cuba brasileira ou estopim da revolução” 6.
Ora a Igreja Presbiteriana do Brasil, assim como outras instituições evangélicas,
no início da década de 1960, acompanhava um movimento de dimensões nacionais que
propugnavam por profundas reformas sociais. Isso poderá ser melhor observado a partir
dos Anais da Conferência onde foram apresentados uma série de estudos propondo
significativas reformas na estrutura social do Brasil. De uma maneira objetiva, vários
grupos de estudos (urbano, industrial, rural, educacional, estudantil e de arte e
comunicação) deveriam refletir e apresentar respostas às seguintes indagações
apresentadas pela organização da Conferência:

5
Confederação Evangélica do Brasil Inicia Hoje Conferência do Nordeste. Jornal do Comércio, 22 de
julho de 1962.
6
Crônica da Conferência do Nordeste: Cisto e o processo Revolucionário Brasileiro, promovido pelo Setor
de Responsabilidade Social da Igreja do Departamento de Estudos da Confederação Evangélica do Brasil,
Recife, 22-29 de julho de 1962, pp. 24-25.

2
Será a presente estrutura da Igreja adequada à sociedade urbana?
Como se aplicariam, de forma concreta, os fundamentos bíblicos de
trabalho, na situação industrial brasileira? Em que base se
estabelecerão melhores condições de vida para a população rural
brasileira? Como deve a educação participar do processo
revolucionário brasileiro? Qual o sentido e os meios de testemunho
cristão na sociedade brasileira em transformação? Sob que forma
serve a arte de meio de comunicação do evangelho à sociedade
contemporânea?7

É importante ressaltar que todas as repostas projetadas para as perguntas acima


estavam em estreita ressonância com os debates em torno das reformas de base. Apenas
como exemplo, podemos citar as recomendações do grupo responsável a pensar a
situação industrial do Brasil, para os quais os cristãos deveriam

participar intensa e conscientemente em todas as campanhas eleitorais,


visando a formar no Congresso, maioria parlamentar eminentemente
patriótica. Parlamento sem compromisso com o latifúndio nacional ou
com os grupos econômicos internacionais, porém, comprometidos
com a aprovação urgente de reformas estruturais, chamadas reformas
de base8.

Numa entrevista a revista eletrônica Novos Diálogos, em 2005, na cidade de


Mendes, no estado do Rio de Janeiro, o presbiteriano Waldo Cesar que era o Secretário
Executivo do Setor de Responsabilidade Social da Igreja, reforça a perspectiva que a IV
Conferência tinha uma enorme preocupação em discutir os aspectos reformistas.
Esclarece que “já era João Goulart, havia uma efervescência nacionalista, as reformas
de base, aquela coisa pegando fogo. O Francisco Julião fazendo uma onda medonha,

7
Anais da Conferência do Nordeste: Cristo e Processo Revolucionário Brasileiro, promovido pelo Setor de
Responsabilidade Social da Igreja do Departamento de Estudos da Confederação Evangélica do Brasil.
Rio de Janeiro: Editora Loqui LTDA, 1962.
8
Anais da Conferência do Nordeste: Cristo e Processo Revolucionário Brasileiro, promovido pelo Setor de
Responsabilidade Social da Igreja do Departamento de Estudos da Confederação Evangélica do Brasil.
Rio de Janeiro: Editora Loqui LTDA, 1962, p. 159.

3
os estudantes”9. Quando questionado se o tema revolução tinha alguma ligação com as
Ligas Camponesa e a reforma agrária, afirma que sim, que tudo teria sido discutido na
Conferência dentro de uma perspectiva social, com a ajuda de especialistas como Celso
Furtado, Paul Singer, Gilberto Freire, dentre outros.
O cientista político Joanildo Burity, faz na introdução do seu livro Fé na
Revolução, uma observação que consideramos emblemática para melhor
compreendermos a Conferência do Nordeste. Chama a atenção para a capacidade destes
grupos evangélicos inserirem tão maciçamente neste evento as preocupações sociais e
reformistas. Para ele,

O que é notável não é que falassem em revolução, mas que eles


falassem em revolução. Afinal, lendo-se os jornais, revistas,
manifestos e outros documentos da época, o discurso da ‘revolução’ é
altamente frequente. Fossem indivíduos, partidos, organizações civis
ou militares, de boca em boca, a ‘revolução’ se repetia. Mas que os
protestantes, sabidamente ausentes e resistentes a qualquer
aproximação das ‘coisas do mundo’, ou seja, das questões e problemas
sociais e políticos, se pusessem lado a lado com os movimentos
sociais e políticos do período, isto sim, é digno de surpresa10.

Não podemos perder de vista, que este era um momento onde figuravam na
agenda política do país projetos reformistas importantes, como o projeto das reformas
de base anunciadas no governo do presidente João Goulart. Em entrevista ao jornal do
Comércio sobre a Conferência, o Secretário Executivo do Setor de Responsabilidade
Social da Igreja, Waldo Cesar, apresentava uma Igreja bastante engajada com os
problemas nacionais. Afirma que

a nossa crença não é algo sem relação com o mundo em que vivemos.
Pelo contrário, Cristo esta presente no meio da crise que atravessamos,
e ele não é indiferente à sorte dos que sofrem injustiça e passam fome
e não tem esperança [...]. A relação da Igreja com o mundo, para ser

9
Waldo Cesar: vida e compromisso com a responsabilidade social da igreja.
HTTP://www.novosdialogos.com/artigo.asp?id=596. Acessado em 24 de julho de 2011.
10
BURITY, Joanildo. Fé e Revolução: protestantismo e o discurso revolucionário brasileiro (1962-1964).
Rio de Janeiro: Editora Novos Diálogos, 2011, p. 13.

4
real e corresponder às exigências de Deus, deve ser dialogal. É preciso
ouvir a voz dos homens, instituições e sistemas11.

A Igreja, nesta visão, necessitava desenvolver uma crença que estivesse em


relação com o mundo atual, que aproxime cada vez mais Cristo do homem. A Igreja
deve conhecer os problemas deste homem, como a falta de alimentos, a pouca esperança
e aqueles que se encontram injustiçados por um sistema excludente. Pois a Igreja para
ser real, concreta, precisa promover uma posição de diálogo entre Cristo e o homem.
Ela deverá manter um status de mediação dos conflitos que o mundo apresenta a cada
momento.
Ainda sobre este aspecto nos chama atenção a imagem de um cartaz utilizado pela
organização para representar e divulgar a Conferência nas inúmeras Igrejas evangélicas
de diversas denominações no Brasil. Imagem que poderá nos ajudar a compreender o
que pensava setores das Igrejas Protestantes no Brasil sobre esta suposta Igreja dialogal,
a qual se refere o presbiteriano Waldo Cesar na reportagem do jornal do Comércio do
dia 22 de julho de 1962.

11
Confederação Evangélica do Brasil Inicia Hoje Conferência do Nordeste. Jornal do Comércio, 22 de
julho de 1962.

5
Estamos diante de uma das poucas fotografias do palco do Salão Nobre do
Colégio Agnes Erskine durante a realização da Conferência do Nordeste, local onde foi
proferida a maior parte dos discursos, tendo ao centro, um cartaz representando a
Conferência. Esta fotografia compõe o considerável acervo de imagens particular do
pastor presbiteriano Enos Moura, atualmente responsável pelo Arquivo Histórico
Presbiteriano na cidade de São Paulo e que gentilmente permitiu o nosso acesso às
imagens. Ao mesmo tempo em que também concedeu uma entrevista, quando
rememora meio século depois, que ainda muito jovem teria participado de maneira
muito entusiasmada daquele encontro em 196212.
O próprio Waldo César numa entrevista para a revista eletrônica Novos Diálogos
relembra que este cartaz tinha sido produzido pelo artista gráfico e designer Claudius

12
O pastor Enos Moura foi entrevistado em sua residência na cidade de São Paulo em 2011 pelo
pesquisador Márcio Vilela.

6
Ceccon13 e teria provocado uma série de questionamentos ao Setor de Responsabilidade
Social da Igreja por parte da Confederação Evangélica do Brasil, o qual estava
subordinado. Pois

o cartaz que o Claudius Ceccon, metodista, fez para isso também foi
um problema: a cruz e umas ferramentas agrícolas, entre as quais a
foice, e era vermelho o negócio. Aí o pessoal da confederação reuniu
pessoal. O secretário geral da confederação disse: ‘Mas com essa
cor?’ O Claudius disse: “Mas essa cor é litúrgica!” (risos). Eles não
sabiam o que dizer, não tinha resposta e ficou a cor14.

O trabalho com a memória nos fornece informações em relação à imagem no


acervo, que o nosso olhar muitas vezes deixa escapar. A fotografia original encontra-se
em preto e branco, o que não nos permite elaborar, a princípio, questionamentos em
relação a sua cor, como projeta Waldo Cesar ao agenciar sua memória. Podemos pensar
que sendo o cartaz de cor vermelha poderia a Conferência ser associada a um evento
comunista. Ao mesmo tempo, o cartaz traz uma série de ferramentas de trabalho,
comumente utilizadas pelos camponeses, como a foice. No centro destaca-se uma
enorme Cruz sugerindo que Cristo encontra-se preocupado com questões do homem
comum, como o camponês e o operário. Em outros termos, a Igreja representando o
corpo de Cristo na terra, deveria manter uma posição de intenso diálogo com os
problemas mais urgente que afligiam os homens na atualidade. Um encontro prático e
direto da Igreja com os anseios espirituais, sem com isso minimixar os aspectos
materiais, ambos deveriam caminhar juntos e receber semelhante atenção da Igreja.
Paralelamente, fortes setores da Igreja Presbiteriana do Brasil encontravam-se
bastante alarmados com a postura social crescentemente difundida, por parte
13
Claudius Sylvius Petrus Ceccon é arquiteto, designer, artista gráfico, caricaturista e jornalista. Inicia a
carreira jornalística em 1952 como auxiliar de paginador da revista O Cruzeiro. Em 1954 realiza
caricaturas políticas para o Jornal do Brasil. No ano de 1964 trabalha na revista Pif-Paf, dirigida por
Millôr Fernandes. Integra em 1969 a equipe de fundadores do jornal O Pasquim. Em paralelo continua a
colaborar em publicações de caráter jornalístico. Estas são algumas informações sobre o Claudius
Ceccon obtidas pelo site
http://www.itaucultural.org.br/aplicexternas/enciclopedia_IC/index.cfm?fuseaction=artistas_biografia&
cd_verbete=3589&cd_idioma=28555&cd_item=1. Acessado em 22 de maio de 2012.
14
Waldo Cesar: vida e compromisso com a responsabilidade social da igreja.
HTTP://www.novosdialogos.com/artigo.asp?id=596. Acessado em 24 de julho de 2011.

7
significativa da instituição no início da década de 1960. Expressando um entendimento
teológico essencialmente contrário ao que apresentamos, também faziam uso do jornal
Brasil Presbiteriano para expressar seu posicionamento. Um exemplo é o editorial
intitulado Cristo é a Solução, publicado em maio de 1962. O mesmo procura responder
a seguinte indagação: “o que tem a Igreja Evangélica a oferecer como contribuição sua
na solução desse grave problema fundamental, o problema do Homem?”15. Para tal
resposta elabora uma longa explicação onde expõe que

Fazer tal pergunta é já respondê-la. Nada temos de melhor nem mais


eficaz do que a Bíblia. [...]. Por isso achamos estranhável que líderes
evangélicos se reúnam, cheios de perplexidade, para estudar uma
formula mágica que arranque o País do precipício a que
deliberadamente se lançou, esquecidos de que o Evangelho é o ‘Poder
de Deus’ para isso. Temos só a Bíblia senhores! Temos só o
Evangelho! Foi com esta alavanca somente que os cristão primitivos
mudaram a face do seu tempo [...]. Não há maior contribuição que a
Igreja de hoje possa fazer às nações, nos seus estertores de morte,
senão a de lhes pregar Cristo. Por que em Cristo temos a solução de
todos os problemas, a começar dos básicos16.

Nesta mesma direção outros editoriais e matérias foram projetadas. O pastor


Oscar Chaves ao obter em setembro de 1964 acesso ao jornal da instituição procurou
reforçar ainda mais este entendimento. O mesmo publica uma matéria com criticas
aqueles que buscavam aproximar a Igreja dos problemas sociais mais urgentes.

Quem achar que a missão da igreja é dar pão material ao povo e fazer
obra social, que o faça, já que tem recurso para isso. Mas deixe em
paz aquelas igrejas que estão pregando o evangelho aos pobres, que
estão trazendo das trevas almas para a luz e recuperando centenas de
perdidos. Essas igrejas agem assim por que acreditam, como Paulo,
que ‘o Reino de Deus não é comida nem bebida, mas justiça, e paz e
alegria no Espírito Santo’ (Rom. 14:17)17.

15
Cristo é a Solução. Jornal Brasil Presbiteriano, maio de 1962.
16
Cristo é a Solução. Jornal Brasil Presbiteriano, maio de 1962.
17
Uma Tendência Perigosa. Jornal Brasil Presbiteriano, setembro de 1964.

8
É importante ressaltar que esta Igreja de cunho mais social foi em grande medida
prejudicada quando o golpe civil-militar de 1964 foi efetivado. Passou a se fortalecer na
instituição um grupo preocupado com uma Igreja mais espiritualizada, com ênfase na
salvação da alma, como podemos visualizar no fragmento acima. A partir de abril de
1964, o jornal da instituição, o Brasil Presbiteriano, passou a assumir uma postura
bastante agressiva repudiando essa visão teológica no que tange os aspectos sociais do
homem em seu tempo.

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