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DOI: 10.1590/1413-81232018244.

01222019 1369

Avanços e desafios da atenção à saúde da população idosa

artigo article
com doenças crônicas na Atenção Primária à Saúde

Advances and challenges of health care of the elderly population


with chronic diseases in Primary Health Care

Miriam Schenker (https://orcid.org/0000-0003-1307-3586) 1


Daniella Harth da Costa (https://orcid.org/0000-0002-9881-9545) 2

Abstract This paper analyzes the developments Resumo Este artigo analisa os avanços e os de-
and challenges of healthcare for older adults, espe- safios da atenção à saúde da população idosa, so-
cially those with chronic diseases in primary care, bretudo daquela com doenças crônicas na atenção
in a study setting of a family clinic in the city of primária, tendo como cenário de estudo uma clí-
Rio de Janeiro. Data were produced through the nica da família na cidade do Rio de Janeiro. Os
development of techniques such as participant dados foram produzidos a partir da realização das
observation, a focal group with a Family Health técnicas de observação participante, grupo focal
Strategy (ESF) team, an interview with the fami- com equipe da ESF, entrevista com o gestor da clí-
ly clinic manager, and interviews with seniors ac- nica da família e entrevistas com idosos acompa-
companied or not by relatives or caregivers. Worth nhados ou não de familiares ou cuidadores. Des-
highlighting is the shift of the biomedical health- taca-se o deslocamento do modelo de atenção à
care model to the biopsychosocial model and saúde de caráter biomédico para o modelo biopsi-
its implications in elderly care, prevention and cossocial e suas implicações na atenção, prevenção
health promotion. Despite care advances, some e promoção da saúde do idoso. Apesar dos avanços
difficulties were observed, especially regarding observados na assistência, dificuldades, sobretudo
the access of the population to the service, point- em relação ao acesso da população ao serviço, fo-
ing to the perpetuation of health care inequities. ram observadas apontando para a perpetuação de
Concerning the elderly with chronic diseases, it is iniquidades no cuidado à saúde. Quanto aos ido-
noted that the ESF team employs a set of both in- sos com doenças crônicas, nota-se que a equipe de
dividual and group strategies, whose effects were ESF lança mão de uma série de estratégias tanto
identified in the statements of the older adults, individuais quanto coletivas, cujos efeitos foram
family members and caregivers, who positively identificados nas falas dos idosos, familiares e cui-
qualify the care received. We can conclude that the dadores, que qualificam de modo positivo a assis-
1
Departamento de Estudos care process is influenced by a myriad of factors tência recebida. Conclui-se que o processo de cui-
sobre Violência e Saúde
Jorge Careli/Claves, Escola that appear as objects of questioning and inter- dado é influenciado por uma miríade de fatores e
Nacional de Saúde Pública vention in primary care. que se configuram como objetos de questionamen-
(ENSP), Fiocruz. Av. Brasil Key words Primary health care, Chronic diseas- to e intervenção no âmbito da atenção primária.
4036/700, Manguinhos.
21040-361 Rio de Janeiro es, The elderly, Family health strategy Palavras-chave Atenção primária à saúde, Do-
RJ Brasil. schenkerbrasil@ enças crônicas, Idosos, Estratégia de saúde da fa-
hotmail.com mília
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ENSP, Fiocruz. Rio de
Janeiro RJ Brasil.
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Introdução atenção integral dos usuários, capaz de melhorar


as condições de saúde, a qualidade de vida e a
Este estudo é parte de uma pesquisa maior inti- autonomia dos indivíduos e da coletividade6. A
tulada ‘Promoção e atenção à pessoa idosa no Rio Estratégia Saúde da Família (ESF), por sua vez,
de Janeiro: um estudo de formas inovadoras de configura-se como uma reorientação do modelo
produzir saúde e reduzir desigualdades’, realizado assistencial em saúde na APS que busca garantir
pelo Departamento de Estudos de Saúde e Vio- a integralidade da assistência centrada na família
lência Jorge Careli (Claves/ENSP/Fiocruz), que e direcionada à comunidade7.
buscou conhecer formas inovadoras de aborda- A APS apresenta atributos específicos como
gem à saúde do idoso portador de doenças crôni- a atenção ao primeiro contato, logitudinalidade,
cas (diabete, hipertensão, depressão) a partir de integralidade e coordenação do cuidado8, desta-
análise de cinco serviços de excelência na atenção cando-se no âmbito da prevenção e cuidado de
à pessoa idosa na cidade do Rio de Janeiro. A Clí- condições crônicas. De acordo com Oliveira9,
nica da Família Sergio Vieira de Mello (CFSVM), ainda são poucos os estudos que investigam o
situada no bairro do Catumbi foi escolhida como potencial da APS no atendimento a idosos, no
um desses locais por permitir analisar a assistên- controle de condições crônicas e na prestação de
cia ao idoso com doenças crônicas no nível da serviços preventivos, no entanto, os estudos exis-
atenção primária à saúde (APS) e também por tentes indicam que ela é capaz de prestar melhor
comportar um Programa de Residência em Me- gerenciamento do cuidado das condições crôni-
dicina de Família e Comunidade, que faz parte cas, reduzir internações desnecessárias e idas à
do Departamento de Medicina Integral Familiar emergência ou unidades de pronto atendimento.
e Comunitária da Universidade do Estado do Rio A despeito da expansão da APS e da ESF no
de Janeiro (PRMFC/DMIF/UERJ). país nos últimos anos, alguns desafios ainda per-
Segundo dados do Censo 2010, pessoas com sistem. Araújo10, ao analisar a qualidade do cuida-
65 anos ou mais representam 7,4% da população do na APS ofertado à pessoa idosa, observou que
brasileira indicando um importante alargamen- pontos como integralidade, orientação familiar
to do topo da pirâmide etária1. Em menos de 40 e acessibilidade são frágeis, indicando a necessi-
anos, o Brasil passou de um perfil de mortalidade dade de melhorias, principalmente, em relação à
típico de uma população jovem para um desenho ampliação do foco na família, no horário de fun-
caracterizado por enfermidades complexas e mais cionamento das unidades básicas de saúde e no
onerosas, próprias das faixas etárias mais avan- desenvolvimento de ações para além do enfoque
çadas. As Doenças Crônicas Não Transmissíveis nos agravos e doenças mais prevalentes. Também
(DCNT) crescem com o passar dos anos e entre os Silva11, ao avaliar a qualidade do cuidado à pessoa
idosos atingem 75,5% da população (69,3% entre idosa com diabetes mellitus e/ou hipertensão na
os homens e 80,2% entre as mulheres)2, podendo APS em um distrito sanitário da cidade de Belo
gerar limitações funcionais e incapacidades. Horizonte, verificou fragilidade das equipes de
O processo de envelhecimento é também saúde da família em promover ações de cuidado
fortemente influenciado pela história de vida do proativo, planejado, coordenado e centrado na
idoso, em suas diferentes formas de inserção so- pessoa, estratégias consideradas importantes na
cial ao longo da vida e exposição a contextos de atenção às doenças crônicas.
vulnerabilidade3. A complexidade das demandas Reconhecendo a centralidade do cuidado da
de saúde apresentadas pelos idosos exige dos ser- população idosa com doenças crônicas, preten-
viços a capacidade de responder adequadamente de-se aqui identificar os desafios e os avanços na
às suas necessidades não só de prevenção e con- atenção à saúde dessa população no nível da APS
trole de doenças, mas também da promoção de através do entendimento das especificidades do
um envelhecimento ativo e saudável, visando a atendimento ao idoso com doenças crônicas em
sua maior autonomia e bem-estar. um serviço que precisa assistir, de forma igualitá-
Neste sentido, destaca-se o papel da atenção ria, pessoas de diferentes faixas etárias e necessi-
primária à saúde (APS) que serve de base para dades de saúde.
um novo modelo de assistência e organização
dos sistemas de saúde, configurando-se como
porta de entrada prioritária e capaz de prestar Metodologia
serviço para todas as pessoas e famílias da co-
munidade, que também dele participam ativa- Estudo realizado na Clínica da Família Sergio
mente4,5. As ações da APS devem conduzir a uma Vieira de Mello (CFSVM), situada no bairro do
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Catumbi, região central do município do Rio temática12 e sob a ótica sistêmica que busca com-
de Janeiro. Em seu território de abrangência são preender o mundo e seus fenômenos através da
identificados usuários que apresentam grande noção de complexidade, ou seja, considera-se o
desigualdade social, com áreas que variam da potencial dinâmico e interrelacional dos sistemas
extrema pobreza e ausência de infraestrutura até e sua capacidade de transformação, e o pressu-
outras com uma população de classe média. Nes- posto de que não há uma realidade a ser desco-
se território, o convívio com a violência é cons- berta descolada do observador, mas uma relação
tante, desenhando um cenário corriqueiro dessa intersubjetiva que implica no reconhecimento do
cidade e de outras metrópoles do país. sujeito que observa como parte inseparável do
A CFSVM cobre seis territórios que também sistema observado13.
dão nome às equipes de saúde da família: Catum- A análise dos dados das entrevistas seguiu as
bi, Navarro, Apoteose, Coroa, Mineira e Paula seguintes etapas14: a) transcrição das gravações
Mattos. Com exceção do Catumbi, todas as ou- das entrevistas; b) leitura exaustiva e compre-
tras equipes contam com médicos residentes do ensiva do material transcrito à luz das premissas
Programa de Residência em Medicina de Família iniciais; c) elaboração de estruturas de análise a
e Comunitária (PRMFC/UERJ). Cada equipe é partir do agrupamento de trechos das entrevistas
formada por um corpo multidisciplinar, com- em eixos temáticos iniciais; d) recategorização
posto por agentes comunitários de saúde (ACS), temática após identificação das ideias centrais
técnico de enfermagem, enfermeiro, médico de presentes em cada um dos eixos; e) elaboração
família e comunidade, médicos residentes do PR- de sínteses compreensivas, interpretativas e con-
MFC/UERJ. Optou-se por realizar o estudo com textualizadas dos problemas assinalados, a par-
a equipe Paula Mattos por contar com residen- tir dos preceitos teóricos da visão sistêmica. Os
tes do Programa e também por englobar tanto principais achados do estudo são apresentados
famílias de baixa renda quanto de maior poder a partir dos seguintes temas centrais: (1) Avan-
aquisitivo. ços, obstáculos e desafios na atenção à saúde e
O trabalho de campo foi realizado entre ja- promoção da qualidade de vida dos idosos; (2)
neiro a abril de 2016 e incluiu: observação par- Assistência aos idosos com doenças crônicas; (3)
ticipante e entrevistas individuais com os idosos Percepção dos idosos, familiares e cuidadores
junto, ou não, com familiares, ou cuidadores, acerca do acompanhamento recebido pela equi-
tanto nas visitas deles à clínica quanto nos seus pe da CFSVM.
domicílios. Além dessas, foi realizada entrevista
com o gestor da clínica e um grupo focal com
profissionais da Equipe Paula Mattos. Participa- Resultados e discussão
ram do grupo duas médicas do PRMFC, uma en-
fermeira e três ACS. A equipe entrevistada indi- Avanços, obstáculos e desafios na atenção
cou o nome de cinco idosas com doenças crôni- à saúde e promoção da qualidade de vida
cas, que foram convidadas a participar do estudo. dos idosos
As cinco idosas entrevistadas tinham entre 84
e 88 anos de idade, três estavam acompanhadas Por representar uma das parcelas mais vul-
de um familiar ou cuidador que também parti- neráveis da população, espera-se que os serviços
cipou da entrevista. A inclusão deles no estudo de atenção primária à saúde sejam capazes de se
buscou resgatar as falas de outros atores que, organizar e ofertar serviços aos idosos conside-
diante da experiência de cuidar do idoso com rando suas demandas específicas e busca pela re-
doenças crônicas, contribuem com percepções dução das iniquidades em saúde.
sobre a assistência à saúde dele. Essa aproxima- Ao serem questionados sobre as ações de
ção é relevante, pois amplia a visão da complexa atenção à saúde do idoso os profissionais e gestor
trama do processo de cuidado e permite ao fami- entrevistados elencaram uma série de serviços
liar/cuidador ser um interlocutor quando o idoso como consultas agendadas e eventuais, e procedi-
apresenta limitações cognitivas. mentos gerais como coleta de sangue e vacinação
O projeto de pesquisa foi submetido ao comi- que, inclusive, podem ser feitos em atendimento
tê de ética da Escola Nacional de Saúde Pública domiciliar, e ações de atenção à saúde bucal que
Sérgio Arouca- Fiocruz e aprovado com data de não se restringem à população idosa.
relatoria de 30 de março de 2015. Quanto às ações voltadas à atenção à saúde
Os dados coletados foram explorados à luz dos idosos, sobretudo dos que convivem com do-
da técnica de análise de conteúdo, na modalidade enças crônicas, destaca-se o suporte do Núcleo
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de Apoio a Saúde da Família (NASF). No caso es- ser atendida em casa está ótimo, excelente. Ela não
pecífico da CFSVM, a equipe do NASF que presta tinha esse tipo de cobertura. Nunca teve (familiar).
apoio às equipes de saúde da família é composta A importância da VD aos idosos também tem
por equipe multiprofissional que inclui nutricio- valor pela presença dos profissionais, por serem
nista, fisioterapeuta, educador físico, psicólogo e bons ouvintes e pelas palavras de conforto em
assistente social. momentos difíceis.
Ações de promoção da saúde dos idosos tam- A despeito das ações desempenhadas na clíni-
bém foram identificadas como o Grupo ‘Campe- ca que buscam garantir a integralidade do cuida-
ões da Vida’ que ocorre em parceria com o Cen- do, alguns obstáculos são colocados pelos entre-
tro de Referência de Assistência Social (CRAS). vistados. Uma dificuldade inicial está justamente
Trata-se de um grupo de convivência voltado na recusa ao SUS em geral, e na ESF em particu-
exclusivamente para idosos, que debate temas lar, por uma parcela da população, sobretudo en-
variados de seu interesse. A Academia Carioca, tre os idosos com maior poder aquisitivo. Como
atividade direcionada a toda população, mas destacado anteriormente, a equipe Paula Mattos
que recebe um número considerável de pessoas abrange um território onde se encontram pesso-
idosas, faz parte de um programa da prefeitura as com características socioeconômicas distintas.
municipal do Rio de Janeiro ligado às Unidades No Brasil, a reforma sanitária resultou na
Básicas de Saúde, e atua na perspectiva da pro- superação de um modo hegemônico de compre-
moção da qualidade de vida a partir de atividades ender o processo saúde-adoecimento centrado
físicas. Além dessas, também promove atividades na doença e na segmentação do corpo, indo na
externas (passeios e reuniões na casa dos usuá- direção de uma concepção ampliada de saúde, a
rios). Essas iniciativas apresentam um impacto partir de um modelo biopsicossocial. Entretanto,
importante nos determinantes sociais de saúde e esta mudança requer a quebra de um paradigma
na prevenção de doenças crônicas15. que engloba uma profunda mudança cultural,
A Academia Carioca e o grupo ‘Campeões da não só entre os profissionais de saúde, mas tam-
Vida’ são os principais dispositivos de convivên- bém entre os usuários dos serviços de saúde:
cia, realizados em parceria com a clínica, para os Eu acho que tem dificuldade com aderência de
idosos, o que gera benefícios para a saúde física e pacientes que estão acostumados com outros siste-
mental. Ao empreenderem encontros e trocas de mas. A gente vê o paciente como um todo, inclusive
experiências, atenua-se o isolamento social no qual a parte psicológica. A gente não vê só a pressão, só
muitos idosos estão submetidos, fortalecendo a so- a diabete. Muitas vezes a gente vai na casa para ver
ciabilidade e os laços sociais comunitários. Assim, como está a situação e muitos deles são vistos só
coloca-se em prática um componente importante pelo cardiologista, só pelo pneumologista. Para os
da APS: promover mudanças sociais e culturais a pacientes entenderem a nossa função e por que ele
partir de uma noção ampliada de saúde. não está indo mais no cardiologista, eu acho que é
Por se tratar de uma população com impor- um desafio também que a gente tem no consultório,
tantes limitações físicas, as visitas domiciliares na VD (profissional).
(VD) são reconhecidas pelos profissionais e ges- Esse posicionamento pode ser explicado, pelo
tor como de grande relevância na atenção ao ido- menos em parte, pela noção histórica da saúde
so, ao permitir uma aproximação constante da pública e dos centros de saúde como locais de
equipe com ele, sobretudo nos casos que deman- controle de doenças entre a população pobre, sem
dam maior cuidado ou quando o usuário não a preocupação da atenção integral ao indivíduo16.
consegue chegar ao serviço devido às limitações A aceitação social desse novo modelo coloca-se,
próprias do território: portanto, como um desafio, na medida em que
Como a gente tem essa característica territorial ainda existe dificuldade das famílias de reconhe-
com muitas ladeiras e escadas, a gente usa o critério cerem a importância da visita da equipe, ainda
para visitas domiciliares, não só o critério de estar que o médico não esteja presente. Persiste a ideia
acamado, mas estar em um local de difícil acesso de que se o médico não vai, não está havendo
do idoso para o serviço. Uma primeira coisa que a acompanhamento, embora todos os outros pro-
gente faz é avaliar se o acesso é bom pra ele ou não fissionais estejam presentes. A esse respeito, uma
(Profissional). das idosas entrevistadas questionou enfaticamen-
Os familiares e idosos entrevistados também te as visitas espaçadas do médico, mesmo rece-
reconhecem a relevância da VD: bendo visitas regulares da ACS e da enfermeira.
Porque ela já tem dificuldade de locomoção e Por outro lado, isso que se coloca como um
aqui em casa tem que subir escada. Então pra ela obstáculo também é entendido pela equipe como
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o principal avanço na atenção à saúde dos idosos dade da equipe na marcação das consultas como
pelas mudanças que o modelo biopsicossocial modo de garantir a segurança dos usuários:
opera no modo de cuidar. A relevância do cui- A situação é ainda preocupante quando a
dado enquanto processo também atravessado própria equipe não consegue chegar às casas das
pelos contextos familiares e comunitários é reco- famílias:
nhecido. Os problemas de saúde são encarados A gente teve uma situação muito complicada
a partir de um olhar sistêmico que não se limita com uma idosa em função da violência [...], a gen-
ao enfoque das doenças como priorizado pelo te não estava conseguindo fazer visita domiciliar, a
modelo biomédico tradicional. A expectativa idosa evoluiu para óbito. [...] se a gente não tivesse
da população em relação ao modelo de cuidado essa violência, teria conseguido manejar de uma
que é ofertado é pertinente, pois, como destaca forma melhor e, de repente, isso poderia ter sido
Almeida17, em geral, a responsabilidade pelo es- evitado (profissional).
tabelecimento do vínculo fica a cargo do profis- A violência como entrave na atenção à saúde
sional sem considerar que as pessoas possuem da população já vem fomentando importantes de-
concepções e estratégias de busca por cuidados bates tanto em relação ao impacto que produz no
de saúde que não necessariamente passam pela funcionamento dos serviços de saúde quanto na
proposta da ESF. própria produção de novas demandas para o se-
Outro obstáculo referido pela equipe foram tor saúde, na medida em que tem repercussões na
barreiras de acesso provocadas pelas caracterís- saúde da população e dos profissionais. A ESF, por
ticas geográficas do território. Considerando as ter como locus de atenção a família e a comunida-
Clínicas da Família como porta de entrada prio- de, exige que os profissionais circulem pelo terri-
ritária da APS, a acessibilidade, ou seja, o grau tório, levando-os a ficarem expostos a contextos
de facilidade ou dificuldade com que as pessoas violentos19. Não raro, unidades de saúde precisam
obtêm cuidados de saúde é essencial. Trata-se, ser fechadas por medida de segurança, deixando
portanto, do fator que intermedeia a relação en- a população desassistida. A vulnerabilidade à vio-
tre a procura e a entrada de fato no serviço18. A lência no ambiente de trabalho gera medo e ansie-
própria geografia do território, composto por la- dade, além de sentimentos de impotência e frus-
deiras e pavimentação de paralelepípedo, soma- tração, com consequências à saúde física e mental
do à escassa oferta de transporte público coletivo, dos profissionais. A violência pode levar ainda à
impõem barreiras de acesso à plena utilização do descaracterização do trabalho da ESF, pois, muitas
serviço. A população idosa é a mais afetada, pois, vezes, limita a atuação dos profissionais de saúde
em muitos casos, já convive com problemas de ao interior das unidades de saúde, alterando assim
locomoção e a equipe também tem dificuldades a natureza do atendimento19.
de fazer VD: A necessidade de assistir uma população para
Porque já existiu um meio de transporte. Antes além do preconizado é apresentado como mais
tinha o bonde e uma linha de ônibus. Criou-se um uma limitação: recomenda-se uma média de 3 mil
isolamento geográfico absurdo porque você não tem usuários por equipe de saúde da família5, no en-
facilitadores. Os taxis, às vezes, selecionam porque tanto, a equipe entrevistada relatou ter que assistir
não querem subir e nem descer. Às vezes, a gente um número maior, o que nomearam de equipe
quer fazer uma coleta de sangue e vem com todo ‘superpopulosa’. Na época da realização do estudo,
material, mas é muito difícil o acesso. O transporte haviam 3.633 usuários cadastrados na Paula Mat-
efetivo seria muito importante (profissional). tos. Essa discrepância representa um obstáculo
Há que se pensar o acesso de modo amplo, ao cuidado, já que existem grupos prioritários de
inclusive, por meio de ações sobre o sistema de acompanhamento, sendo possível que a assistên-
transporte público local. Para a equipe, a existên- cia cuidadosa ao idoso aí não se inclua
cia de um veículo institucional significaria uma A gente tem idoso, grávida, criança, a tubercu-
solução simples capaz de facilitar o deslocamento lose, e isso tudo com tempo de atendimento míni-
dos profissionais no território, reduzir as distân- mo. Então para você atender, atenção, prevenção,
cias e aumentar o número de visitas no tempo tratar a doença, diagnóstico é muito difícil no tem-
que se tem disponível. po que a gente tem. Temos às vezes vinte minutos
Outra barreira de acesso diz respeito à vio- pra fazer tudo isso (profissional).
lência no território. Durante a ocorrência de tiro- O excesso de demanda e as cobranças de pro-
teios a equipe observa um maior número de faltas dutividade para toda a equipe podem dificultar
às consultas, pois os usuários também têm medo ou impedir o exercício do cuidado integral. Os
de sair de casa. Tal situação exige maior flexibili- ACS ficam especialmente sobrecarregados ao fa-
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zerem visitas periódicas a um número maior de organização do serviço que consiga responder às
famílias do que são capazes de acompanhar, com- necessidades deles. O vínculo se configura como
prometendo a qualidade do trabalho ofertado. condição determinante para o cuidado:
A figura dos ACS é especialmente importante Se você não tiver um vínculo com a pessoa, ela
nas situações em que os idosos não contam com não vai vir, não vai abrir a porta pra você, não vai
o apoio de familiares. Em alguns casos, ele é a tomar a medicação. Já pensou... ‘Eu não gosto do
única referência de cuidado do idoso, o que exige meu médico, eu não gosto da minha enfermeira, a
atenção constante. Através do vínculo estabeleci- minha enfermeira me passou esse tratamento, será
do entre eles, se dá o cuidado: que está certo? Porque eu acho que ela não gosta de
É essa dificuldade do idoso que mora só. Muitas mim’ (gestor).
vezes, ele só conta com a gente, depende da nossa vi- O gestor vê a CFSVM como um local onde
sita, do nosso acompanhamento. Tem uma pacien- os idosos ganham visibilidade e suas queixas são
te que passou mal, ela até tem família. E eu fui lá, tratadas como únicas.
‘Você veio aqui? Vocês são a minha família’. E somos! As ações de atenção e promoção da saúde dos
As filhas estão todas no exterior (profissional). idosos, bem como os seus obstáculos e desafios,
Existe também uma preocupação da equipe foram esmiuçados pelos sujeitos do estudo, for-
direcionada à dinâmica familiar dos idosos, vi- necendo um amplo panorama do grau de exce-
vida como um desafio. A fala dos profissionais lência do cuidado desenvolvido na APS. Chama a
sugere que as interações entre membros de di- atenção a qualidade do vínculo, força motriz que
ferentes gerações dentro do próprio lar ou com une os sujeitos em rede, que se estabelece entre
os quais o idoso não tem afinidade, tanto por a equipe Paula Mattos e os idosos e cuidadores
uma imposição financeira ou por debilidade fí- entrevistados. Os obstáculos e os desafios apre-
sica, contribuem para quadros de adoecimento. sentados dizem mais respeito a questões sociais
No entanto, é precisar considerar que em classes e estruturais da Cidade do que a qualidade da
populares, a agregação de diferentes gerações no atenção ofertada pela referida equipe à popula-
mesmo lar, ou espaço geográfico, está para além ção estudada da CFSVM.
de problemas de cunho financeiro como se cos-
tuma pensar. Trata-se de um modo de organi- Assistência aos idosos com doenças
zação familiar que engloba cuidados solidários crônicas
entre gerações.
No âmbito familiar, a violência contra os No tocante à situação dos idosos com doen-
idosos, expressa como abuso financeiro e econô- ças crônicas, a atuação do NASF ganha desta-
mico, desponta como um fator que preocupa a que. A interconsulta com profissionais do NASF
equipe: foi enfatizada como uma estratégia que ajuda a
Eles reclamam muito quando a pessoa recebe equipe a lidar com situações mais complexas, por
pagamento. Eles se sentem muito oprimidos e di- qualificar o atendimento ao usuário e auxiliar os
zem: ‘Eu não tenho mais dinheiro, agora estou nas profissionais nas abordagens e tomadas de de-
mãos de fulano’. Então bate uma depressão muito cisões. Apresenta-se como uma ferramenta que
forte neles (profissional). potencializa a integralidade do cuidado e que, do
Essa violência é descrita como a exploração ponto de vista da equipe, diminui o número de
ilegal ou imprópria dos idosos ou o uso não au- encaminhamentos para a atenção secundária.
torizado por eles de seus recursos financeiros e A construção do projeto terapêutico singu-
patrimoniais. Essa natureza da violência é obser- lar (PTS) é uma estratégia importante da qual a
vada, principalmente, no âmbito familiar e está equipe lança mão, principalmente nas situações
associada, muitas vezes, a maus tratos físicos e de maior dificuldade. Os pactos e o planejamen-
psicológicos20. to do cuidado são realizados conjuntamente pela
Para o gestor da clínica, o principal desafio equipe com apoio do NASF, o que permite a ela-
enfrentado pela equipe da ESF é o estabelecimen- boração coletiva do cuidado e a integralidade da
to de uma conexão com o idoso. O vínculo é um atenção. As reuniões de equipe também são vistas
dos princípios que orienta a Política Nacional de pelos profissionais como um importante disposi-
Atenção Básica e que tem como base as relações tivo de educação e capacitação permanente.
de afetividade e confiança capazes de gerar um Os grupos voltados para usuários com doen-
potencial terapêutico5. Segundo o gestor, a cons- ças crônicas são empregados como estratégia de
trução do vínculo requer confiança, respeito e ampliação da oferta qualificada e de aderência dos
empatia entre usuários e equipe, além de uma usuários idosos com problemas de saúde, embora,
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não sejam destinados exclusivamente a esse públi- que ela vai ter horários para tomar o medicamento.
co. Pelo seu caráter educativo, os grupos apresen- O nosso grande desafio é mostrar que são doenças
tam-se como dispositivos de promoção da saúde. silenciosas, mas graves. E a questão da medicação...
A CFSVM contava, na época do estudo, com os A importância da medicação quando não tem sin-
seguintes grupos: “nutrição”; “hipertensos”; “por- tomas, porque muitos só se conscientizam quando
tadores de distúrbios mentais” (“Roda vida”); estão usando insulina (profissional).
“dor crônica” e previsão de implementação de O processo de adoecimento é vivido de modo
mais dois: “diabéticos” e “meditação e relaxamen- singular e a consciência da enfermidade está
to” (Med SUS) que consta na Política Nacional de muito atrelada a sentir dor ou à incapacidade
Práticas Integrativas e Complementares21. física. A comunicação clara entre usuários, fami-
Esses grupos funcionam como espaço de mu- liares e profissionais sobre as implicações a cur-
dança de estilo de vida e de interação com outras to e longo prazo das doenças crônicas mostra-se
pessoas que vivenciam uma situação semelhante: fundamental no entendimento da situação22. Sa-
Os grupos são motivacionais. Porque é legal be-se que o sucesso do tratamento está atrelado à
você ter pessoas que bem ou mal partilham das participação e envolvimento do usuário de modo
mesmas aflições, têm as mesmas doenças com evo- ativo nesse processo. A adesão ao tratamento não
luções diferentes, e podem trocar experiências. Ain- depende somente da prescrição profissional, mas
da mais nos pacientes que são mais relutantes em do reconhecimento pelo usuário da sua situação
seguir determinada orientação (profissional). de saúde e a relação com os seus hábitos15.
A equipe reconhece nesses grupos o estímu- Para o gestor, tão importante quanto respei-
lo à reflexão sobre o processo de adoecimento tar o direito do usuário de negar a visita ao ACS
e os fatores envolvidos que tendem a estimular ou de recusar algum tratamento específico é in-
formas de autocuidado e mudança de estilo de vestigar os fatores por trás dessa recusa. A relação
vida, elementos cruciais no tratamento de doen- entre gênero e cuidados de saúde é um desses
ças crônicas. fatores que chama a atenção da equipe, exigin-
A equipe identifica a necessidade de uma vi- do esforços de conscientização. O gestor observa
gilância à saúde mais próxima aos idosos com que os homens costumam frequentar menos o
doenças crônicas. O gestor reconhece o prontu- serviço, indicando que homens e mulheres são
ário eletrônico, componente do sistema de infor- influenciados por elementos culturais distintos
mação clínica, como indispensável não só para que os levam a desenvolver padrões comporta-
o registro, mas para a qualificação do acompa- mentais opostos em relação ao autocuidado com
nhamento dos usuários, especialmente, dos com a saúde. A baixa procura dos homens pelos servi-
doenças crônicas que demandam maior regulari- ços de saúde é influenciada por um modelo he-
dade de assistência. gemônico de masculinidade, no qual prevalece as
Na equipe, o ACS desenvolve papel estratégi- noções de virilidade, força e invulnerabilidade23.
co na vigilância à saúde dos idosos, pois consegue Soma-se às questões de gênero, o estigma em
sinalizar para os demais profissionais da equipe torno de algumas doenças que representa uma
a necessidade de intervenções mais específicas. barreira à aderência ao tratamento. É o caso da
Quanto ao cuidado domiciliar dos idosos acama- depressão, que, nas classes populares, costuma
dos, o gestor pontua: ser vista como “doença de rico” e não como um
Agora, [a VD] aos acamados é excelente. Em legítimo problema de saúde. Nesse sentido, um
média eles [os ACS] fazem de duas a três visitas ao grande desafio para a equipe é quebrar essas bar-
mês. Agora vamos supor que foi lá e não está bem, reiras culturais que prejudicam o cuidado:
leva para uma equipe. Até porque o enfermeiro, o E a depressão muitas vezes é difícil, em um grau
médico, eles têm que visitar esses pacientes uma vez leve, o paciente ter aceitação sobre isso. O pacien-
ao mês (Gestor). te idoso é mais difícil de ser trabalhado porque, às
Uma grande preocupação da equipe refere- vezes, eles têm dificuldade de entender por que isso
se à dificuldade de aderência ao tratamento por está acontecendo. Eles vêm de uma geração que em
idosos com doenças crônicas. A falta de conheci- relação à depressão muitas vezes parecia ‘frescura’
mento sobre as implicações desses agravos, prin- ou coisa de quem tem condição financeira, e não
cipalmente nos casos em que se trata de acometi- tem nada a ver com isso. Um paciente jovem que
mentos silenciosos, desafia a equipe: vem de outra geração vai aderir muito mais fácil do
Quando a pessoa se machuca, corta o pé ela que um paciente idoso (profissional).
está vendo. Mas quando a pessoa tem diabete e não Tanto os profissionais quanto o gestor da
sente nada e sequer soube disso é difícil você falar unidade fazem referência à dificuldade de con-
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tar com algumas famílias no tratamento do idoso quantidade e qualidade, para idosos em situação
com doenças crônicas, o que contribui, do ponto de vulnerabilidade.
de vista da equipe, para um tratamento irregular. A intersetorialidade é um elemento funda-
Para o gestor, nos casos em que é difícil implicar mental na efetivação da integralidade da atenção,
a família no cuidado, faz-se necessário um maior pois articula diferentes órgãos a partir de um ob-
investimento na construção de um laço de con- jetivo comum: a melhoria da qualidade de vida
fiança entre a família e a equipe. Outro ponto a da população. E para que cada indivíduo possa
se sublinhar são conflitos em relação ao cuida- ser trabalhado como um todo é preciso que todos
do tanto em contextos nos quais os idosos não os setores trabalhem juntos24.
querem se sentir dependentes dos seus familiares Para além do suporte formal representado
quanto no quais os familiares se veem obrigados pelas instituições de saúde e assistência social, a
a cuidar de seu idoso contra a seu desejo e mo- equipe aponta os vizinhos como elementos-cha-
tivação. ve na atenção à saúde dos idosos, na medida em
Os profissionais referem ter dificuldade em que exercem papel de informantes e parceiros não
lidar com os conflitos que se dão no âmbito fa- só no âmbito da saúde, mas também nos afazeres
miliar dos idosos com doenças crônicas. O em- diários dos idosos. Os vizinhos são capazes de
baraço sentido pela equipe nessas situações exige evitar acidentes, ajudá-los em tarefas domésticas
um exercício de desconstrução das noções tradi- e passar informações para a equipe de saúde da
cionais de cuidado no seio da família. Minayo20 família caso notem algo diferente. Nas situações
esclarece que no Brasil, e também no mundo, a em que o idoso não conta com o suporte familiar,
família é locus privilegiado de moradia e de cui- os vizinhos assumem um papel fundamental. A
dado do idoso. No entanto, as competências para equipe traz dois exemplos:
cuidar, proteger e respeitar o idoso não é algo A gente tem dois casos emblemáticos de idosos,
natural, mas uma coconstrução feita ao longo uma de cada médica [residente] que o cuidador é
do ciclo da vida familiar. A justificativa de que a o mecânico da oficina que não tem grau de paren-
família é a única estrutura responsável pelo idoso tesco nenhum, mas é uma pessoa que pegou para si
é facilmente quebrada quando se observa dinâ- a responsabilidade. A outra são as vizinhas que são
micas familiares marcadas por conflitos resul- vizinhas daquela idosa há muitos anos que apesar
tantes de situações diversas como, por exemplo, de não ter contato íntimo são pessoas que também
o abandono e a incompatibilidade de personali- se responsabilizam pelos cuidados (profissional)
dade, valores e estilos de vidas entre os jovens e Os idosos, os familiares e os cuidadores
os mais velhos22. também destacaram a importância dos laços de
As múltiplas demandas exibidas pelos idosos amizade estabelecidos com os vizinhos enquan-
com doenças crônicas exigem, não raro, ações in- to mecanismo de interação social e de proteção,
tersetoriais de atenção à sua saúde. A equipe citou ponto relevante, pois muitos idosos tendem a se
parcerias com: Universidade Aberta da Terceira sentir sozinhos e isolados. Estudos mostram que
Idade (UNATI-UERJ), CRAS, Coordenadoria de o cultivo de amizades e de relacionamentos fun-
saúde da área de planejamento (CAP) e Progra- ciona como fator protetivo importante, princi-
ma de atenção domiciliar ao idoso (PADI). No palmente, em relação ao desenvolvimento da de-
entanto, a dificuldade de articulação com a rede pressão e de comportamentos autodestrutivos25.
de atenção é ainda apontada como um dos prin- A assistência aos idosos com doenças crôni-
cipais desafios na consolidação da atenção global cas é permeada por opções variadas de ações de
ao idoso: cuidado, porém ainda com interação anêmica
Acho que a gente ainda tem pouca conversa entre os componentes da rede de assistência a
com o CRAS e com os outros dispositivos que a essa população. O processo de adoecimento traz
gente possa lançar mão no caso de algum proble- algumas dificuldades de entendimento da sua
ma. Facilitar e estreitar essa relação seria bem im- gravidade pelo idoso, o que irá demandar maior
portante. Eu acho que isso ainda é uma fragilidade aproximação da família. Entretanto, o trabalho
(profissional). com essa instituição de raiz pela ESF mostra-se
Além da desarticulação da rede, da burocra- incipiente, pois, para estar no lugar de cuidadora,
cia excessiva e da ausência de um fluxograma a família precisará também ser cuidada em suas
bem definido, a equipe entende que faltam dis- dificuldades relacionais entre os familiares e en-
positivos estratégicos para que o idoso seja aco- tre eles e o idoso. Isto porque as doenças crônicas
lhido em toda a sua complexidade. É o caso, por dos idosos poderão ser amenizadas num contex-
exemplo, da ausência de abrigos temporários, em to familiar amoroso e acolhedor.
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Percepção dos idosos, familiares e embora observem avanços no modelo de atendi-
cuidadores acerca do acompanhamento mento, reconhecem que essa não é uma realidade
recebido pela equipe da CFSVM que atinge toda a população idosa do país.
Uma crítica dos idosos refere-se ao encami-
Das cinco idosas entrevistadas, quatro apre- nhamento para a atenção especializada que se
sentavam importante comprometimento da apresenta como um ponto frágil na atenção in-
capacidade de locomoção, sendo que uma de- tegral à saúde dos idosos com doenças crônicas.
las encontrava-se acamada devido a um quadro Os entrevistados demonstraram angústia e insa-
avançado de artrose e mal de Alzheimer. Desse tisfação com as longas esperas por uma consulta.
modo, as visitas domiciliares foram destacadas Em se tratando da atenção às doenças crônicas, a
pelas idosas, familiares e cuidadoras como de assistência especializada deve ser complementar
suma importância para dar conta das necessida- e integrada à atenção básica de modo a superar
des apresentadas por elas, acompanhando uma a atuação fragmentada e descontextualizada dos
percepção também compartilhada pela equipe. modelos tradicionais de cuidado15.
As visitas regulares da equipe foram reconhe- De fato, ainda persiste no cenário brasileiro
cidas como algo que melhora o bem-estar das profunda iniquidade na atenção à saúde dos ido-
idosas, pois como destaca uma entrevistada: A sos fazendo com que os usuários entrevistados
presença, uma palavra de conforto na gente. Tudo se sintam privilegiados em um cenário de múl-
isso ajuda né (idosa). Essa fala dá prova do papel tiplas carências. A equipe admite que embora o
do vínculo e do acolhimento na produção do cui- país tenha caminhado para a redução dessas de-
dado. Em algumas entrevistas, as falas das idosas sigualdades a partir da construção de um sistema
deixavam transparecer a solidão e o isolamento de saúde universal, o acesso à educação, ao lazer
que sentiam. A ausência de familiares por perto e aos meios de transporte ainda se dá de modo
e mesmo o sentimento de deslocamento quan- seletivo afetando, sobretudo, a população mais
do vivendo em meio a familiares revelam alguns pobre.
dos desafios enfrentados pelos idosos, aspectos A mudança do modelo biomédico de cuidado
a serem considerados pelas equipes de saúde da para o biopsicossocial na APS trouxe reconheci-
família. Apesar da relevância do vínculo, do aco- mento e gratidão dos usuários entrevistados que
lhimento e da humanização do cuidado para o passaram a receber atendimento à saúde integral,
controle das doenças crônicas em idosos, Penha longitudinal e regular, feito pelos ACS, médicos e
et al.26 verificaram que alguns profissionais da enfermeiros da ESF.
APS não as reconhecem como relevantes e privi-
legiam abordagens que empregam recursos ma-
teriais e palpáveis. Conclusões
De modo geral, os idosos, familiares e cuida-
dores entrevistados identificam as mudanças no Este estudo mostra, a partir das falas dos entre-
modelo de assistência à saúde e experimentam, vistados, avanços na atenção à saúde dos idosos
de modo positivo, uma atenção mais próxima e com doenças crônicas na APS. Os profissionais
singular. Demonstram, inclusive, surpresa com e o gestor da clínica da família analisada apre-
o tipo de acompanhamento ofertado pela clínica sentam-se sensíveis à situação dos idosos, espe-
da família que difere do que estavam acostuma- cialmente, àqueles com doenças crônicas que
dos a receber: demandam estratégias de cuidado diferenciadas
Eu estou surpreso, porque o pessoal vem aqui, a e regulares.
gente tem acompanhamento, ela [a idosa] também Conjectura-se que o alinhamento das falas e
está tendo acompanhamento, coisa que ela nunca práticas dos profissionais com o que vem sendo
teve, de ter um médico que vem aqui consultar. Até preconizado pelas políticas públicas de saúde seja
fazer exame de sangue em casa. Qualquer proble- resultante, pelo menos em parte, do maior incen-
ma a gente leva lá, é atendida no mesmo dia (fa- tivo nos últimos anos à qualificação dos profis-
miliar). sionais de saúde enquanto um dos eixos para o
Os usuários conhecem os profissionais pelo fortalecimento da APS. Destaca-se, neste sentido,
nome, o que denota um sinal importante do vín- a presença, na equipe da ESF entrevistada, de mé-
culo estabelecido entre usuário e equipe e quando dicos residentes em medicina de família e comu-
questionados sobre a qualidade do cuidado rece- nidade, que a partir de uma formação preocupa-
bido, os entrevistados teceram diversos elogios da com a tríade indivíduo-família-comunidade,
e mostraram-se bastante satisfeitos. No entanto, ou seja, com uma visão complexa e contextual
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das questões de saúde, são capazes de operar um físicas e mentais, situação da maioria dos que
cuidado norteado pela noção de integralidade foram entrevistados. Caldas28, em estudo reali-
dentro do paradigma biopsicossocial. Além das zado com familiares responsáveis pelo cuidado
reuniões de equipe, os médicos residentes são de idosos com demência, observou que esses
acompanhados por preceptores que incentivam a cuidadores demandam apoio objetivo e subjeti-
reflexão da prática e qualificação da atuação dos vo, pois além de precisarem contar com serviços
residentes in loco. Estudos evidenciam que a APS confiáveis para acompanhar o familiar idoso,
é mais efetiva quando conta com a presença de necessitam, eles próprios, de espaços adequados
médicos especializados, neste caso, o Médico de de acolhimento, uma vez que se sentem esgota-
Família e Comunidade27. dos e fragilizados pela intensa carga de trabalho
Apesar dos avanços, algumas barreiras persis- ao qual estão submetidos no trato diário com o
tem, afetando o pleno acesso dos idosos aos cui- idoso.
dados de saúde, limitando a qualidade da aten- Esse grupo foi lembrado pela cuidadora de
ção, da proteção e da promoção à saúde dessa uma das idosas entrevistada como um momento
população. O cuidado aos usuários com doenças de aprendizado e troca de experiência, essencial
crônicas deve acontecer de modo integral15, o que quando o cuidador não dispõe de conhecimento
só é possível se articulado em rede. A desarticu- prévio para a tarefa.
lação das redes intra e intersetoriais, apontada Dependência, estresse e o isolamento familiar
como uma fragilidade nesse estudo, mostra-se são fatores de risco para a violência, maus-tratos
um desafio a ser superado. Dificuldade de acesso, e negligência intrafamaliar com os idosos29, por
limitações da atuação da equipe pela falta de re- isso a importância de maior apoio aos idosos e
cursos humanos e materiais e as dificuldades das seus familiares.
equipes da ESF no lidar com as especificidades Quanto às limitações do estudo, destaca-se
das dinâmicas familiares e mesmo com o próprio que as entrevistas com os idosos e seus familia-
idoso comprometem a resolutividade da assis- res/cuidadores alcançaram uma população espe-
tência. cífica: idosas com mais de 80 anos e com múlti-
As tensões entre as famílias dos idosos e a plas comorbidades. A equipe indicou os usuários
equipe sugerem a necessidade do fortalecimento que demandavam acompanhamento regular.
da rede de apoio ao idoso e da qualificação dos Desse modo, não foi possível ouvir os idosos, por
profissionais de modo que possam ter uma pos- exemplo, que frequentavam os grupos de promo-
tura mais compreensiva em relação às questões ção da saúde, carecendo o estudo, da percepção
que envolvem a família. São muitos os desafios desses usuários sobre a assistência recebida.
enfrentados pela família no cuidado de um ido- O estudo revela um universo complexo, no
so, que podem gerar desgaste físico, emocional e qual o processo de cuidado é influenciado por
grande sobrecarga de tarefas no seu cotidiano. uma miríade de fatores tanto macros como mi-
A CSVM já teve um grupo direcionado para cros e que se configuram como objetos de ques-
cuidadores de idosos, familiar ou cuidador con- tionamento e intervenção no âmbito da atenção
tratado. Esse apoio institucional é relevante, so- primária, uma vez que afetam a qualidade de
bretudo, no cuidado dos idosos com limitações vida da população idosa.
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Colaboradores Referências

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Artigo apresentado em 10/06/2018


Aprovado em 20/08/2018
Versão final apresentada em 22/08/2018

CC BY Este é um artigo publicado em acesso aberto sob uma licença Creative Commons

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