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Bem Viver e Descolonialidade
Bem Viver e Descolonialidade
“DES/COLONIALIDADE” DO PODER1
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Uma primeira e breve versão se publicou no Boletim de OXFAM, maio de 2010.
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Sociólogo e teórico político peruano, atualmente diretor da cátedra “América Latina e a Colonialidade do
Poder” na Universidade Ricardo Palma, em Lima, Peru, e professor do departamento de sociologia da Universidade
de Binghamton, Nova York, Estados Unidos.
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“Bem Viver” e “Bom Viver” são os termos mais difundidos no debate do novo movimento da sociedade,
sobretudo da população vista como indígena na América Latina, a partir de uma existência social diferente da que nos
tem imposto a “Colonialidade” do Poder. “Bem Viver” é, provavelmente, a formulação mais antiga na resistência
“indígena” contra a “Colonialidade” do Poder. Foi, notavelmente, cunhada no Vice-Reino do Peru, por nada menos
que Guamán Poma de Ayala, aproximadamente em 1615, em sua Nueva Coronica e Buen Gobierno. Carolina Ortiz
Fernández é a primeira a ter chamado a atenção sobre esse histórico feito: “Felipe Guaman Poma de Ayala, Clorinda
Matto, Trinidad Henríquez y la teoria crítica. Sus legados a la teoria social contemporânea”, em Yuyaykusun, N°.
2. Universidade Ricardo Palma, dezembro 2009, Lima, Peru. As diferenças podem não ser somente linguísticas,
senão, conceituais. Será necessário delimitar as alternativas, tanto no espanhol latino-americano, como nas variantes
principais do quéchua na América do Sul e no aimará. No quéchua do norte do Peru e no Equador, se diz “Allin
Kghaway” (Bem Viver) ou “Allin Kghawana” (Boa Maneira de Viver) e no quéchua do sul e na Bolívia costuma-se
dizer “Sumac Kawsay” e se traduz em espanhol como “Bem Viver”. Mas “Sumac” significa bonito, lindo, no norte
do Peru e no Equador. Assim, por exemplo, “Imma Sumac” (Que Bonita) é o nome artístico de uma famosa cantora
peruana. “Sumac Kawsay” se traduziria como “Viver Bonito”. Inclusive, não faltam desavisados eurocentristas que
pretendem fazer de Sumac o mesmo que Suma e propõem dizer Suma Kawsay.
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A teoria da “Colonialidade” do Poder, ou “Colonialidade” do Poder Global, e do Eurocentrismo ou
“Colonialidade”/Modernidade/Eurocentrada, como seu específico horizonte histórico de sentido, foi originalmente
proposta em meus textos desde começo da década final do Século XX. Para os fins do atual debate, pode ser útil
mencionar os principais. “Colonialidad y Modernidad/Racionalidad”, originalmente publicado em Peru Indigena,
Vol.13, No. 29, Lima 1991; “Americanity as a Concept or the Americas in the Modern World-System”, publicado em
co-autoria com Immanuel Wallerstein em International Social Science Journal, No. 134, Nov. 1992,
UNESCO/Blackwel, p. 549-557, Paris, França; “América Latina en la Economía Mundial”, publicado em
Problemas del Desarrollo, Instituto de Investigações Econômicas, UNAM, vol. XXIV, No. 95, outubro-dezembro
1993, México; “Raza, Etnia y Nación: Cuestiones Abiertas”, em Jose Carlos Mariategui y Europa. Ed. Amauta,
1993, pp. 167-188. Lima, Perú. "Colonialité du Pouvoir et Democratie en Amerique Latine", em Future anterieur:
Amérique Latine, democratie et exclusion. L'Harmattan,1994. Paris, Francia; “Colonialidad, Poder, Cultura y
Conocimiento en América Latina”, em Lima, Anuario Mariateguiano, 1998, vol. IX, No. 9, p.113-122. Peru; “Qué
Tal Raza!” em Familia y Cambio Social. CECOSAM, ed. 1998. Lima, Perú; “Colonialidad del Poder,
Eurocentrismo y América Latina”, em Edgardo Lander, comp. Colonialidad del saber, eurocentrismo y ciencias
sociales, UNESCO-CLACSO 2000, p. 201 e ss; “Colonialidad del Poder y Clasificación Social”, originalmente em
Festschrift for Immanuel Wallerstein em Journal of World Systems Research, vol. VI, No. 2, Fall/Winter 2000,
p.342-388. Special Issue. Giovanni Arrighi and Walter L.Goldfrank, eds. Colorado, USA. “Colonialidad del Poder,
Globalización y Democracia”, versão revisada em San Marcos, Segunda Época, No. 25, Julho 2006, p. 51-104,
Universidade de San Marcos, Lima, Peru.
“BEM VIVER”: ENTRE O “DESENVOLVIMENTO” E A “DES/COLONIALIDADE” [...]
R. Fac. Dir. UFG, v. 37, n. 1, p. 46 - 57, jan. / jun. 2013 ISSN 0101-7187
“BEM VIVER”: ENTRE O “DESENVOLVIMENTO” E A “DES/COLONIALIDADE” [...]
termos, essas mudanças não levaram ao “desenvolvimento”. De outro modo não poderia
estender-se porque o fim reaparece sempre. Agora, por exemplo, como fantasma de um
inconcluso passado6.
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Ver de Aníbal Quijano: El Fantasma del Desarrollo en América Latina. Em Revista Venezolana de Economía y
Ciencias Sociales, 2/2000, pp.73-91, Universidade Central de Venezuela, Caracas, Venezuela. Do mesmo autor Os
Fantasmas da America Latina, em Adauto Novais, org. Oito Visoes da America Latina. SENAC, pp. 49-87, São
Paulo, 2006, Brasil.
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sua nova característica, atrativa e persuasiva, embora se tornando cada vez mais
paradoxal e ambivalente, historicamente impossível em definitivo.
4) O desenvolvimento e a expansão do novo capital industrial/financeiro,
junto com a derrota dos grupos nazi/fascistas da burguesia mundial, na disputa pela
hegemonia do capitalismo durante a Segunda Guerra Mundial, facilitaram a
desintegração do colonialismo europeu na Ásia e África, e, ao mesmo tempo, a
prosperidade das burguesias, das camadas médias, inclusive de setores importantes dos
trabalhadores explorados, dos países euro/americanos. 49
5) A consolidação do despotismo burocrático (rebatizado de “socialismo
realmente existente”) e sua rápida expansão dentro e fora da Europa ocorreram dentro
desse mesmo canal histórico. O referido modo de dominação foi sendo afetado, cada
vez mais profunda e de maneira insana por essa corrente tecnocrática e instrumental da
“racionalidade” colonial/moderna.
6) Nesse contexto, a hegemonia dessa versão da “modernidade” operava
como o mais poderoso mecanismo de dominação da subjetividade, tanto por parte da
burguesia mundial como da despótica burocracia do chamado “campo socialista”. Desse
modo, não obstante suas rivalidades, ambos os modos de
dominação/exploração/conflito, convergiram em seu antagonismo repressivo aos novos
movimentos da sociedade, em particular entorno da ética social à respeito do trabalho,
do gênero, da subjetividade e da autoridade coletiva.
Seria mais difícil explicar de outro modo, a exitosa aliança de ambos modos
de dominação para derrotar (seja em Paris, Nova York, Berlim, Roma, Jakarta,
Tlateloco, ou em Changai e Praga) os movimentos juvenis, sobretudo, que entre os fins
dos anos sessenta e começo do século XX, lutaram, minoritariamente, mas em todo o
mundo, então já não somente contra a exploração do trabalho e contra o colonialismo e
o imperialismo, contra as guerras colonial-imperiais (nesse período, Vietnã era o caso
emblemático), senão também contra a ética social do produtivismo e do consumismo;
contra o pragmático autoritarismo burguês e burocrático; contra a dominação de “raça”
e de “gênero”; contra a repressão das formas não convencionais de sexualidade; contra
o reducionismo tecnocrático da racionalidade instrumental e por uma nova relação
estética/ética/política. Lutando, em consequência, por um horizonte de sentido histórico
radicalmente distinto que o implicado na “Colonialidad”/Modernidade/Eurocentrada.
7) Ao mesmo tempo, surgia um novo padrão de conflito. Em primeiro ponto,
a deslegitimação de todo sistema de dominação montado sobre o eixo
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Minha contribuição ao debate dessas questões, principalmente em: Modernidad, Identidad y Utopía en América
Latina. Ed. Sociedad y Politica, Lima 1988; “Colonialidad del Poder, Globalización y Democracia”, originalmente
em Tendencias Basicas de Nuestra Era, Instituto de Estudios Internacionales Pedro Gual., 2001. Caracas,
Venezuela. Uma versão revisada, em San Marcos, No. 25, Julho 2006, revista da Universidade de San Marcos,
Lima, Perú; “Entre la Guerra Santa y la Cruzada”, originalmente em America Latina en Movimiento, No. 341,
outubro 2001. Quito, Equador; “El Trabajo al Final del Siglo XX”, originalmente em Pensée sociale critique pour le
XXI siécle, Melanges en l´honneur de Samir Amin. Forum du Tiers- Monde, L´Harmattan 2003, p.131-149, Paris,
France; e “Paradojas de la Colonialidad/Modernidad/Eurocentrada”, em Hueso Humero, No. 53, abril 2009, p. 30-
59. Lima, Perú.
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Sobre o conceito de Bloco Imperial Global, remeto a Colonialidad del Poder, Globalización y Democracia, já
citado.
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predatória sobre os demais elementos existentes neste planeta. E, sobre essa base, o
Capitalismo Colonial/Global pratica uma conduta cada vez mais feroz e predatória, que
termina colocando em risco não somente a sobrevivência da espécie inteira no planeta,
senão a continuidade e a reprodução das condições de vida, de toda vida, na terra. Sobre
sua imposição, hoje estamos matando-nos entre nós e destruindo nosso lar comum.
A partir desta perspectiva, o chamado “aquecimento global” do clima na
terra, ou “crise climática”, longe de ser um fenômeno “natural”, que ocorre em algo que
chamamos “natureza” e separados de nós como membros da espécie animal Homo 53
sapiens, é o resultado da exacerbação daquela desorientação global da espécie sobre a
terra, imposta pela tendência predatória do novo Capitalismo Industrial/Financeiro
dentro da “Colonialidade” Global do Poder. Em outras condições, é uma das expressões
centrais da crise enraizada deste específico padrão de poder.
Desde fins do século XX, uma proporção crescente das vítimas de referido
padrão de poder, tem começado a resistir a essas tendências, em virtualmente todo o
mundo. Os dominadores, os “funcionários do capital”, seja como donos das grandes
corporações financeiras ou como governantes de regimes despóticos-burocráticos,
respondem com violentas repressões, agora não só dentro das fronteiras convencionais
de seus próprios países, senão através ou por cima delas, desenvolvendo uma tendência
à re-colonização global, usando os mais sofisticados recursos tecnológicos que
permitem matar mais gente, mais rápido, com menos custo.
Dadas essas condições, na crise da “Colonialidade” Global de Poder e, em
especial, da “Colonialidade”/Modernidade/Eurocentrada, a exacerbação do conflito e da
violência se tem estabelecido como uma tendência estrutural globalizada.
Tal exacerbação do conflito, dos fundamentalismos, da violência, aparelhar
à crescente e extrema polarização social da população do mundo, vai levando a própria
resistência a configurar um novo padrão de conflito. A resistência tende a desenvolver-
se como um modo de produção de um novo sentido da existência social, da vida mesma,
precisamente porque a vasta população implicada percebe, com intensidade crescente,
que o que está em jogo agora não é só sua pobreza, como sua eterna experiência, senão,
nada menos que sua própria sobrevivência. Tal descoberta implica, necessariamente,
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que não se pode defender a vida humana na terra sem defender, ao mesmo tempo, no
mesmo movimento, as condições da própria vida nesta terra.
Desse modo, a defesa da vida humana, e das condições de vida no planeta,
se vai constituindo no novo sentido das lutas de resistência da imensa maioria da
população mundial. E sem subverter e desintegrar a “Colonialidade” Global de Poder e
seu Capitalismo Colonial/Global hoje em seu mais predatório período, essas lutas não
poderiam avançar para a produção de um sentido histórico alternativo ao da
“Colonialidad”/Modernidade/Eurocentrada. 54
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Acerca disso, por exemplo, as recentes entrevistas a dirigentes aimarás na Bolívia, feitas e difundidas no e-mail da
CAOI. A revista América Latina en Movimiento, da Agência Latino-americana de Informação (ALAI), tem
dedicado o No. 452, fevereiro de 2010, integralmente a este debate, sob o título geral de Recuperar el sentido de la
vida. À Respeito das mesmas práticas sociais, há já um muito importante movimento de pesquisa específica. Ver
Vivir Bien Frente al Desarrollo. Procesos de planeación participativa en Medellin. Esperanza Gómez et al.,
Facultad de Ciencias Sociais, Universidade de Medellin, Colombia, 2010.
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