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Dor

Bases Farmacológicas
Para o Uso Clínico
dos Opióides
Prof. Dr. Lino Lemonica*

O
s opióides são medicamentos analgési­ pelas suas importantes diferenças farmacológi­
cos utilizados comumente para o trata­ cas, derivadas de suas complexas interações
mento de dor de intensidade moderada com três tipos de receptores (µ, κ e δ). Perten­
a elevada. Embora seja uma substância conhe­ cem à família dos receptores ligados à proteína
cida há aproximadamente 5.000 anos, somente G que sinalizam um segundo mensageiro (AMP
nos últimos 20 anos houve uma extraordinária cíclico) ou um canal iônico (K+). As alterações
expansão do conhecimento sobre os locais e nos níveis de AMP cíclico são associadas ao
os seus mecanismos de ação. Do mesmo mo­ desenvolvimento de tolerância e dependência
do, tem havido um grande avanço no estudo física. Estudos farmacológicos e sobre a ligação
farmacocinético da absorção, distribuição e do medicamento-receptor demonstram que os
seu metabolismo. Esses estudos têm contribuí­ receptores µ medeiam a analgesia e os efeitos
do para o melhor entendimento das variações indesejáveis (depressão respiratória, constipação
individuais de suas respostas e sugerido como e imunossupressão). Outros estudos demons­ * Mestre e Doutor em Medicina -
minimizar alguns de seus efeitos indesejáveis. tram a distribuição anatômica dos receptores e Fac. Medicina - Unesp. Professor
Adjunto Livre - Docente em
Embora ocorram falhas de conhecimento, o esclarecem os seus locais de ação. Assim, os
Anestesiologia (Área de Dor) -
uso racional e apropriado desses medicamentos receptores µ são encontrados em nervos peri­ Fac. de Medicina - Unesp. Ph.D
está baseado no saber de suas propriedades féricos (após inflamação), em locais pré e pós- em Dor e Cuidados Paliativos
farmacológicas derivado de estudos clínicos sinápticos no corno dorsal da medula espinhal, (Itália). Certificado de Atuação
na Área de Tratamento de
adequadamente controlados. no tronco cerebral, no tálamo e no córtex, estru­
Dor - SBA. Responsável pelo
Sabe-se que a maioria dos conhecimentos turas que constituem o sistema de transmissão Serviço de Terapia Antálgica e
farmacológicos sobre os opióides para o trata­ ascendente da dor. São também identificados Cuidados Paliativos do HC da
mento da dor é derivada de seu uso em dor on­ na substância cinzenta periaquedutal, no núcleo FMB - Unesp. Ex-Presidente
cológica, mas estudos recentes demonstraram magno da rafe e na medula ventral rostral, que da Sociedade Brasileira para o
Estudo da Dor - SBED. 
que suas propriedades podem ser seguramente compreendem o sistema inibitório descendente Ex-Presidente e Ex-Membro do
utilizadas em pacientes com dor persistente não que modula a transmissão de dor pela coluna Comitê de Dor da SBA.
cancerosa e mesmo em dor aguda. Uma das espinhal. Em nível celular, os opióides diminuem
maiores conclusões derivadas do uso em dor a entrada do íon cálcio, causando diminuição
de câncer é o fato de que o potencial abuso da liberação pré-sináptica de neurotransmissor
é irrelevante naqueles doentes sem história de (substância P), aumentam o efluxo de potássio
dependência química. que causa a hiperpolarização dos neurônios pós-
Os analgésicos opióides são caracterizados sinápticos e, com isso, diminuem a transmissão

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sináptica. Um terceiro modo de ação é a necessidades individuais e, em particular,
A morfina possui uma
inibição da transmissão GABAérgica em pelos efeitos adversos da morfina (seda­
um circuito local, como o tronco cerebral, disponibilidade oral entre ção, náusea, obstipação e vômito). Outras
onde o GABA age inibindo o neurônio razões são determinadas pela preferência
inibitório de dor. Essa ação inibitória do 35 a 75% e sua meia-vida do doente (experiência anterior) ou mesmo
opióide tem o claro efeito de excitar o disponibilidade ou acesso local ao medi­
circuito inibitório descendente.
plasmática é de 2 a 3,5 camento. É necessário enfatizar que não
Os receptores opióides fazem parte horas, características que existe evidência sugerindo que qualquer
do sistema opióide endógeno, que inclui opióide tenha uma maior eficácia analgé­
um grande número de peptídeos opiói­ proporcionam um tempo sica do que a morfina.
des ligantes (encefalinas, endorfinas e A metadona tem uma disponibilidade
dinorfinas) que parecem possuir o papel
de analgesia entre 4 e 6 oral de 85% e a relação de potência oral/
fisiológico de neurotransmissores, neuro­ horas e que limitam parenteral é de 1:2. Sua meia-vida plasmá­
moduladores e neurormônios. tica é de 24 horas, mas pode variar entre
Os fármacos agonistas semelhantes o seu acúmulo 13 e 50 horas, enquanto a duração da
à morfina (codeína, metadona, meperidina, analgesia é de somente 4 a 8 horas. Com
oxicodona, fentanil) representam outras sivos. Por sua vez, a morfina-3-glicuronídio a metadona, doses repetidas levam ao seu
substâncias que se ligam predominan­ (M-3-G) é o metabólito predominante, acúmulo, causado pela discrepância ente
temente aos receptores µ e produzem porém sem efeito farmacológico em huma­ a meia-vida plasmática e o tempo de anal­
analgesia. Eles possuem um perfil de nos. Especula-se o efeito neuroexcitatório gesia. Sedação, confusão mental e mesmo
efeitos farmacológicos semelhante ao da em pacientes que fazem uso crônico e em morte podem ocorrer quando os pacientes
morfina, porém diferem em fatores críticos, doses elevadas de morfina. não forem atentamente monitorados e as
tais como diferentes potências analgé­ A potência relativa da morfina in­ dosagens não ajustadas, como necessário,
sicas relativas oral/parenteral, meia-vida tramuscular/oral é de 1:6; porém, após durante o período de acúmulo, que pode
de eliminação e biotransformação para administrações repetidas e em esquema se estender por cinco a dez dias. Contudo,
metabólitos ativos. regular de horário, essa relação cai para é uma alternativa útil, mas requer maior
Os opióides antagonistas (naloxona) 1:2 ou 1:3. Portanto, em pacientes que atenção no uso clínico quando comparada
deslocam os agonistas de seus sítios, estão na fase de titulação de dose, a à morfina e nesses casos as doses iniciais
ligam-se fortemente a cada um dos três relação 1:6 deve ser usada inicialmente e devem ser tituladas cuidadosamente. Como
tipos de receptores (grande afinidade ao alterada ao longo do tempo até se obter a há tolerância cruzada incompleta entre a
µ) e bloqueiam ou revertem os efeitos da concentração plasmática estável. morfina e a metadona, pode ocorrer dificul­
morfina. Entre esses dois grupos situam-se As preparações de morfina de libera- dade em se calcular doses eqüianalgésicas
os fármacos agonistas-antagonistas, que ção cronogramada, seguras e eficazes, entre elas. A metadona é uma mistura ra­
podem demonstrar atividade agonista em promovem analgesia com duração de 8 cêmica do l-isômero (opióide potente) e o
receptor κ ou antagonista em receptor a 12 horas e permitem que os pacientes d-isômero (opióide fraco); contudo, ambos
opióide µ. com dor crônica se tornem livres de doses ligam-se aos receptores NMDA, sendo que
A morfina possui uma disponibilidade repetidas, especialmente durante a noite. o d-isômero possui atividade antagonista
oral entre 35 a 75% e sua meia-vida plas­ Os pacientes podem inicialmente titular as funcional (anti-hiperalgésica) e capacidade
mática é de 2 a 3,5 horas, características doses com morfina de liberação rápida e de prevenir o desenvolvimento de tolerância
que proporcionam um tempo de analgesia após a estabilização alterar o medicamento pela morfina.
entre 4 e 6 horas e que limitam o seu acú­ para o de liberação lenta, mas é possível Estudos experimentais demonstram
mulo. Sua farmacologia permanece linear fazer a titulação desde o início com morfina a existência de compostos com atividade
durante a administração repetida, fato que de absorção retardada. Para o tratamento antagonista nos receptores NMDA. Isso
contribui para o uso ser seguro. A morfina- da dor incidental, a medicação de res- ocorre com alguns opióides (metadona,
6-glicuronídio (M-6-G), um metabólito gate (morfina de liberação rápida) pode meperidina, dextropropoxifeno) e outros
ativo da morfina, parece contribuir para ser disponibilizada para os doentes que compostos (cetamina racêmica e seus
a atividade analgésica, é eliminada pelos recebem preparação de liberação lenta. isômeros, dextrometorfano, memantina).
rins, causando acúmulo em pacientes com Os opióides alternativos à morfina Esses compostos possuem atividades
insuficiência renal, mas sem efeitos conclu­ devem ser selecionados com base nas anti-hiperálgica e antialodínica em modelos

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Dor

animais com neuropatia dolorosa periféri­ O fentanil é aproximadamente indicado, nesta apresentação, para dor
ca e outros com sensibilização central. A não oncológica de intensidade moderada
utilidade clínica desses compostos (ceta­ 80 a 100 vezes mais potente a elevada. De modo geral, as preparações
mina) como eficiente analgésico em dor transdérmicas, pelas suas características
neuropática tem sido limitada pelos efeitos que a morfina, é um fármaco físico-químicas, conferem ao medicamento
indesejáveis em muitos pacientes, mas o altamente lipofílico, com respostas peculiares, como o longo início
dextrometorfano é efetivo em neuropatia de ação, níveis plasmáticos estáveis,
diabética dolorosa, sendo bem tolerado tempo de ação mais curto do menor potencial de alucinação e adição e
mesmo com doses elevadas. Desse posologia e via de administração cômoda.
modo, ao se considerar os dois efeitos que a morfina parenteral. Freqüentemente é indicada em pacientes
(anti-hiperalgesia e prevenção de tolerân­ É usado como forma de com dificuldade de deglutição e, pela
cia), a combinação de um opióide e um segurança, em doentes portadores de
antagonista de receptor NMDA pode ser tratamento de dor aguda insuficiência renal e hepática.
de particular valor em estados dolorosos A nalbufina, outro analgésico opióide
em que a potência do opióide deve ser pós-operatória, traumática agonista-antagonista, usado somente
reduzida pela ocorrência de hiperalgesia ou do queimado por via parenteral, produz analgesia em
e/ou desenvolvimento de tolerância. paciente isento de tolerância, mas pode
A meperidina, quando usada em baixa atividade analgésica. A eliminação é precipitar síndrome de abstinência em
doses repetidas, pode causar acúmulo de urinária e em pacientes com insuficiência pacientes que são tolerantes e dependen­
seu metabólito tóxico, a normeperidina, renal pode haver acúmulo de metabólitos tes de opióides agonistas. Entretanto, em
que produz hiperexcitabilidade do SNC. ativos, que podem resultar em aumento da pacientes com dor crônica deve ser usada
Ela é inicialmente caracterizada por súbita sedação, mas não da depressão respira­ antes da administração de medicamentos
ansiedade seguida de tremor, mioclonia tória. O medicamento é apresentado com agonistas opióides. Ao contrário dos ago­
multifocal e, ocasionalmente, convulsão. várias dosagens e seu emprego é indicado nistas, possui efeito-teto na capacidade
Normalmente essa hiperexcitabilidade para o tratamento de dor de intensidade de produzir depressão respiratória e uma
acomete pacientes com doença renal, mas moderada a elevada. Contudo, baixas significativa menor responsabilidade em
pode ocorrer após administrações repeti­ doses em associação com analgésicos causar abuso quando comparada com
das em pacientes com função renal normal. não-opióides (aspirina e acetaminofeno) são os agonistas. Em doses terapêuticas
Outra ocorrência clínica da meperidina é seu freqüentemente usadas para o alívio da dor pode produzir uma autolimitação do seu
elevado potencial em causar adição após de intensidade baixa a moderada. O uso de emprego, pelo aumento da incidência e
doses repetidas, portanto é absolutamente doses elevadas de oxicodona em regime gravidade dos efeitos psicomiméticos,
contra-indicada como medicamento para crônico não deve ser adotado em razão dos especialmente quando há necessidade de
tratamento de dor crônica. riscos de aumento da toxicidade. aumento de dose. Esse fato limita sobre­
A oxicodona está disponível em nosso O fentanil é aproximadamente 80 a maneira sua indicação para o tratamento
país somente em apresentação de compri­ 100 vezes mais potente que a morfina, de dor crônica. Interessante salientar que
midos revestidos de liberação controlada é um fármaco altamente lipofílico, com as mulheres apresentam melhor resposta
(efeito de 8 a 12 horas de duração), embora tempo de ação mais curto do que a mor­ analgésica do que os homens quando
exista preparação de liberação imediata. fina parenteral. É usado como forma de utilizado analgésico opióide de ação em
A disponibilidade oral é entre 60 e 87%, o tratamento de dor aguda pós-operatória, receptores κ, fato que estimula o desen­
estado de equilíbrio plasmático é alcança­ traumática ou do queimado, por via de volvimento desses medicamentos apro­
do entre 24 e 36 horas e a meia-vida de administração intravenosa e peridural, priadamente administrados por via oral e/
eliminação é de 4,5 horas. O medicamento ou ainda por adesivos de absorção ou transdérmica para o tratamento de dor
possui um modelo de absorção bifásica transdérmica quando a indicação é para persistente.
com meias-vidas de 0,6 e de 6,9 horas tratamento de dor crônica oncológica ou Os opióides agonistas parciais pos­
que refletem uma liberação inicial precoce, não. Em se tratando desta via de adminis­ suem menor possibilidade de desenvolver
seguida de outra controlada tardia. É trans­ tração, mais recentemente foi acrescenta­ abuso do que os opióides agonistas, mas
formada no fígado e os seus metabólitos da ao arsenal terapêutico a buprenorfina. assim como os agonistas-antagonistas
são a noroxicodona, oximorfona e seus Trata-se de um opiáceo sintético, agonista podem precipitar síndrome de abstinên­
glicuronídios, sendo ambos possuidores de (µ)/antagonista (κ), derivado da tebaína, cia nos pacientes que receberam doses

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repetidas de agonistas e desenvolveram eqüianalgésicas baseadas em estudos de
Outras medicações
dependência física. Ao contrário dos dose simples, embora muitas vezes sejam
agonistas-antagonistas, não produzem denominadas adjuvantes, divergentes entre si. De qualquer modo, a
efeitos psicomiméticos. A via de adminis­ decisão final sobre qual dose de opióide
tração é sublingual e parenteral, mas no comumente empregadas deve ser prescrita envolve uma rigorosa
Brasil o medicamento foi recentemente avaliação clínica, que inclusive depende
descontinuado e era disponível somente
com os opióides, são da experiência médica, para minimizar os
por via sublingual. A eventual depressão os antidepressivos riscos de prescrição inapropriada para as
respiratória causada pela buprenorfina é necessidades do doente.
reversível somente com o emprego de tricíclicos (amitriptilina, Os esquemas de administração
doses elevadas de naloxona. A indicação de opióides precisam ser individualizados
desses medicamentos é para dor crônica
imipramina, nortriptilina para cada paciente. Esses esquemas con­
oncológica ou não, moderada a intensa; e desipramina) e os sideram as condições clínicas do doente,
contudo, quando houver necessidade, o a farmacocinética dos medicamentos, a
fármaco só pode ser usado previamente anticonvulsivantes etiologia do processo, a intensidade do
ao opióide agonista. quadro álgico, a resposta prévia da eficácia
Os opióides diferem significativamente mais remotamente, à via intramuscular. da analgesia após titulação cuidadosa do
entre si com relação à farmacocinética. Quando utilizadas as vias subcutânea, medicamento e a eventual presença de
Assim, enquanto os de meia-vida curta endovenosa e raquidiana pode-se admi­ efeitos indesejáveis. Nesse esquema é par­
(morfina, oxicodona, fentanil, codeína, nistrar os opióides sob a forma de infusão ticularmente importante ser acompanhado
meperidina, buprenorfina) usados em do­ contínua ou em bolo com ou sem equipa­ por intervalos regulares de administração,
ses repetidas alcançam a concentração mento de PCA. Para todas as vias deve-se que podem prevenir a recorrência de dor
plasmática estável em 10 a 12 horas, com obedecer a um esquema de administração e reduzir a necessidade total de opióide no
os de meia-vida longa (metadona, propo­ baseado em horário regular, determinado dia. Para alguns pacientes, especialmente
xifeno, normeperidina) isso ocorre após 70 pelas características farmacocinéticas do quando se empregam medicamentos de
a 120 horas (esse valor é de aproximada­ medicamento e avaliado continuamente absorção lenta, é necessária a utilização
mente 4 a 6 meias-vidas). Durante a titula­ pela analgesia e pela presença de eventuais de doses de resgate com substâncias de
ção de dose por via oral, o pico máximo de efeitos indesejáveis. absorção rápida para promover adequado
ação com os de meia-vida curta é rápido Quando ocorre a ausência de eficácia alívio da dor.
(60 minutos), enquanto os de meia-vida ou a presença de efeitos colaterais impor­ Outra providência desejável e eficaz é o
longa são obtidos após longos períodos tantes e/ou intoleráveis para o paciente, é uso combinado de medicamentos com
de acúmulo e esse fato representa risco possível realizar a rotação de opióides a finalidade de se obter analgesia aditiva
elevado de efeitos indesejáveis. Estar (RO) ou a sua mudança com a finalidade ou potencializada com menores doses
atento para o fato de que metabólitos de reduzir e limitar esses efeitos ou então individuais e redução dos efeitos indesejá­
ativos (normeperidina e norpropoxifeno) aumentar a eficácia analgésica. Evidências veis. Várias combinações produzem efeito
têm uma meia-vida plasmática mais indicam que a RO permite a abertura da analgésico aditivo, em que se destacam
longa do que suas substâncias originais. janela terapêutica, reduzindo os limites dos o opióide associado a AINEs (inibidor
É de grande importância ressaltar que a efeitos adversos, especialmente aqueles de COX-1 e/ou de COX-2), analgésico
farmacocinética dos opióides é alterada produzidos pelo acúmulo de metabólitos antitérmico, cafeína, anti-histamínico, feno­
por interações medicamentosas e/ou com tóxicos. Parece que as diferenças interin­ tiazínico e ansiolítico. Outras medicações
certas doenças. dividuais nas respostas analgésicas, não denominadas adjuvantes, comumente
Os opióides estão disponíveis em di­ aos efeitos colaterais, desempenham um empregadas com os opióides, são os
ferentes dosagens e podem ser utilizados maior papel na vantagem que um opióide antidepressivos tricíclicos (amitriptilina,
por inúmeras vias de administração. tenha sobre outro. Finalmente, a tolerância imipramina, nortriptilina e desipramina) e
Preferentemente, deve-se utilizar a via oral, cruzada, por ser incompleta, causa dificul­ os anticonvulsivantes (carbamazepina,
mas é possível recorrer, para a maioria dos dade no cálculo de dose eqüianalgésica oxcarbazepina, gabapentina, valproato
opióides, das vias subcutânea, endovenosa, em pacientes que estão em fase de titula­ de sódio, fenitoína e clonazepam). É útil,
transdermal, retal, intranasal, transmucosa, ção de dose de opióide. Nessa situação é em determinadas situações, a utilização
raquidiana (subaracnóidea ou peridural) e, importante considerar as tabelas de doses associada de corticosteróides.

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Dor

É curiosa, mas oportuna, a classificação tivamente, medicamentos antieméticos


Uma conduta oportuna e
das ações farmacológicas dos opióides em podem ser utilizados em combinação com
efeitos desejáveis e indesejáveis. Por que pode diminuir o efeito o opióide.
ser sempre um efeito farmacológico é pre­ Todos os analgésicos opióides produ­
ferível adotar aqueles termos ao invés de adverso é a instituição zem sonolência e, embora esse efeito pos­
efeitos colaterais, que remetem à idéia sa ser eventualmente útil, não é desejável
de efeito diferente do previsto. Os meca­
de dieta apropriada quando concomitante com analgesia e, par­
nismos de ação dos efeitos adversos não associada a laxantes ticularmente, em pacientes ambulatoriais.
são totalmente compreendidos e parecem Essa precoce manifestação de depressão
depender de diversos fatores, tais como e adequada ingesta do SNC pode ser esperada quando do uso
idade, sexo, via de administração, exten­ concomitante de outros depressores, tais
são da doença, disfunção de órgão e dose
de líquidos, ao mesmo como os tranqüilizantes (ansiolíticos, feno­
do medicamento. Os mais comuns são tempo em que se inicia a tiazínicos) e hipnóticos (barbitúricos, álcool).
sedação, náusea e vômito, constipação e Os opióides de meia-vida longa (metadona)
depressão respiratória, mas outros podem administração de opióides podem causar maior sedação pelo fato da
ser possíveis, tais como alucinação, pesa­ maior possibilidade de acúmulo em doses
delo, retenção urinária, mioclonia, disforia intracraniana. É importante salientar que repetidas. A dextroanfetamina pode ser
e hiperalgesia. Os efeitos farmacológicos essas alterações são claramente identi­ utilizada como tratamento para o efeito
dos medicamentos encontram, ao se pro­ ficadas no início por sedação e confusão de sonolência, sendo também possível
longar a administração, fenômenos como mental e todas passíveis de ser tratadas o aguardo da manifestação de tolerância
a tolerância. Felizmente ela se desenvolve adequadamente com a redução da dose para esse efeito após alguns dias de admi­
rapidamente com a administração repetida do agonista e o uso de antagonista (nalo­ nistração regular.
de agonistas, sendo algumas desejáveis e xona) ou, no limite, a intubação traqueal A obstipação é o mais freqüente efeito
outras não. Exemplificando, não é desejá­ para a instituição de respiração artificial e indesejável dos opióides. Considera-se
vel a tolerância para efeito analgésico, en­ aspiração de secreções. As características obstipação a diminuição das secreções,
quanto é altamente positiva para a maioria de dose-resposta dos diferentes tipos de aumento do tono da musculatura lisa
dos efeitos indesejáveis, tais como náusea, opióides parecem ser próprias para cada involuntária e do peristaltismo referentes
vômito, sedação, depressão respiratória, um deles; assim, doses necessárias para ao trato gastrointestinal. O mecanismo de
prurido e obstipação. analgesia podem causar intensidade de ação envolve múltiplos sítios do aparelho
Os opióides agonistas agem (sempre respostas diversas sobre outros efeitos, gastrointestinal e da medula espinhal. In­
em regime de dose-dependência) nos inclusive os indesejáveis. Lembrar que o felizmente, a tolerância, comum em outros
centros respiratórios do tronco cerebral, uso de antagonistas pode gerar convul­ sintomas, é o mais resistente e persistente
produzindo todas as fases de depressão são quando do uso de meperidina (ação efeito nos pacientes que fazem uso crôni­
respiratória (ritmo, volume-minuto, fre­ depressiva do fármaco e excitatória do co dos opióides. Uma conduta oportuna
qüência) até potencialmente a apnéia, sen­ metabólito) e síndrome de abstinência para e que pode diminuir o efeito adverso é a
do essa a principal causa de óbito, embora todos os demais opióides. instituição de dieta apropriada associada
extremamente rara. Esse quadro pode ser Os analgésicos opióides produzem a laxantes e adequada ingesta de líquidos,
mascarado pela tentativa de compensação náusea e vômito pela ação medular ao mesmo tempo em que se inicia a ad­
respiratória determinada pelo acúmulo sobre a zona do gatilho quimiorreceptora ministração de opióides.
de CO2 nos quimiorreceptores centrais e e, possivelmente, por alterar a sensibili­ Outro efeito desconfortável é a re-
conseqüente aumento dos atributos respi­ dade vestibular. Esses efeitos são variá­ tenção urinária. Em razão dos opióides
ratórios. Por essa razão, os pacientes com veis entre diferentes pacientes, doses causarem aumento do tono da muscu­
função respiratória prejudicada ou com e medicamentos, sendo uma excelente latura lisa do trato urinário, pode ocorrer
asma brônquica possuem aumento signi­ oportunidade para se indicar a rotação espasmo da bexiga e aumento do tono
ficativo de risco de depressão respiratória. de opióides. Lembrar que as condições do esfíncter vesical, desencadeando a re­
A combinação de depressão respiratória clínicas dos pacientes e o grau de evolução tenção urinária, particularmente freqüente
associada ao acúmulo de CO 2 resulta da doença, especialmente oncológica de em pacientes idosos. Deve-se estar atento
em vasodilatação cerebral, aumento do trato gastrointestinal, podem por si sós para esse efeito, que pode necessitar da
fluxo sangüíneo cerebral e da pressão desencadear esses sintomas. Alterna­ cateterização urinária (de alívio ou perma­

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nente) e, portanto, aumentar o risco de analgesia efetiva. O ritmo de desenvolvi­
Existe interação entre
infecção urinária. mento de tolerância é muito variável entre
A mioclonia multifocal é verificada os peptídeos opióides os pacientes, podendo ser de alguns dias
especialmente quando do uso de altas até vários meses para uma mesma dose. É
doses de opióides. Esta complicação é derivados da imunidade necessário diferenciar essa ocorrência (to-
mais proeminente quando se utiliza me­ lerância verdadeira) para aquela quando
peridina parenteral em altas doses, sendo
celular e os receptores há maior necessidade de medicamento
o acúmulo do metabólito normeperidina o opióides localizados em pela progressão da doença (falsa tolerân-
responsável por esse efeito. cia), quando se deve reavaliar a técnica de
Há um comprometimento da função tecidos com processo analgesia utilizada. Como o efeito analgé­
imunitária com o uso continuado de sico é uma função logarítmica da dose de
opióides. São poucas as informações
inflamatório e esse opióide, em caso de tolerância verdadeira
sobre a supressão de variáveis imunoló­ processo pode resultar duplicar a dose pode ser necessário para
gicas. Estudos com pacientes após 1, 4 restabelecer uma completa analgesia.
e 12 semanas de tratamento com morfina em analgesia Desse modo, parece não haver limite para
mostram que não ocorre alteração da o desenvolvimento de tolerância e com o
função imunitária celular, mas produzem ser um sinal da expressão da HIO e nes­ ajuste de doses apropriadas os pacientes
menor quantidade de imunoglobulina que sa situação pode ser necessário o uso podem continuar a obter alívio completo da
os controles. Estudos adicionais serão ne­ de analgésicos alternativos ou analgesia dor. A combinação de medicamentos anal­
cessários para esclarecer qual o significado multimodal e detoxicação do opióide. gésicos (opióides e não-opióides), além
clínico dos efeitos observados na função Interessante observar que existe intera­ de prover analgesia aditiva, pode resultar
imune humoral com o uso de opióides no ção entre os peptídeos opióides derivados em um ritmo lento de desenvolvimento de
tratamento da dor crônica. da imunidade celular e os receptores opiói­ tolerância. A tolerância cruzada entre os
Pesquisas recentes sugerem que os des localizados em tecidos com processo analgésicos parece não ser completa e,
analgésicos agonistas também podem inflamatório e esse processo pode resultar mais uma vez, a rotação de opióides ser
causar um estado de hiperalgesia indu- em analgesia. Os receptores opióides estão uma técnica adequada durante o desen­
zida pelo opióide (HIO). Os pacientes presentes em nervos sensoriais periféricos volvimento de tolerância verdadeira.
que recebem opióides para alívio da dor onde ocorre “up regulation” durante o As propriedades dos analgésicos
paradoxalmente podem desenvolver maior desenvolvimento de inflamação e nessa opióides referentes ao abuso ou mau
sensibilidade à dor como resultado direto situação os peptídeos opióides endógenos emprego são mediadas no SNC e podem
da terapêutica. Isto significa que o uso são sintetizados por células imunes circu­ ser presenciadas após um longo tempo
de opióide pode ser “uma faca de dois lantes que migram para os sítios da lesão. de administração, incluindo dependência
gumes”, causando inicialmente efeito Sob estímulo ou em resposta à liberação de psicológica e física. É preciso enfatizar
analgésico e anti-hiperálgico e subse­ agentes (fator de liberação de corticotrofi­ que enquanto o desenvolvimento de
qüentemente está associado à expressão na ou citocinas) estes imunócitos podem dependência física e tolerância são efei­
de hiperalgesia como mecanismo de “up secretar opióides endógenos que ativam tos farmacológicos previsíveis, eles são
regulação” compensatória de vias pró- os receptores opióides periféricos pela distintos dos padrões comportamentais
nociceptivas. A hiperalgesia ocorre em di­ inibição da excitabilidade dos nervos sen­ vistos em alguns indivíduos e descritos
ferentes cenários (manutenção ou retirada soriais ou pela liberação de neuropeptídeos como dependência psicológica e adi-
do opióide), mas é caracterizada pela dose pró-inflamatórios. ção. A dependência psicológica é usada
(muito baixa ou muito elevada) e o padrão Já citada anteriormente, a tolerância para identificar um padrão de uso de me­
de administração. Embora preocupante, se desenvolve quando uma determinada dicamento caracterizado por uma busca
esse fenômeno é uma evidência indireta da dose de opióide produz uma diminuição contínua pelo opióide que se manifesta
hiperalgesia induzida por opióide, em que de efeito ou quando uma dose elevada como compulsão pela substância, com
estudos sugerem uma relação de causa- é necessária para produzir um mesmo envolvimento irresistível pela procura e
efeito somente demonstrada em pacientes efeito. A maioria dos pacientes apresenta uso. Muitos, mas nem todos os pacientes
com hiperalgesia preexistente. De qualquer algum grau de tolerância quando recebem que são aditos aos opióides desenvolverão
modo, o desaparecimento da analgesia e opióides repetidamente e o principal sinal algum grau de dependência física; entre­
uma expansão inexplicável da dor pode é a diminuição no tempo de duração da tanto, o inverso não é verdadeiro quando

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Dor

um indivíduo pode ser dependente físico opióides (ou dor resistente aos opióides) e
Quando usados em
sem ser adito. O receio da adição é a maior dor responsiva aos opióides. Inúmeras
limitação para o uso de dose apropriada dor crônica, os causas devem ser atribuídas àquele fenô­
de opióide em doentes hospitalizados e meno e, dentre elas, a mais importante é o
alguns pacientes são relutantes em usar, agonistas-antagonistas subtratamento da dor, pelo desconheci­
mesmo pequenas doses, com receio de se mento da farmacologia do medicamento,
tornar aditos. Pesquisas em pacientes com
devem ser titulados pela pequena experiência clínica no trato
dor, hospitalizados com queimaduras ou anteriormente dos pacientes com dor e, finalmente, pelo
dor crônica, indicam que o uso de opióides desconhecimento de técnicas terapêuticas
raramente causa abuso do medicamento ao início da adequadas. Portanto, o não-uso de critérios
ou adição iatrogênica. simples de escolha do medicamento, dose
A dependência física é o termo
administração prescrita, via de administração e avaliação
usado para descrever o fenômeno de prolongada constante do doente e dos resultados
retirada (abstinência) quando o opióide é obtidos podem determinar o insucesso
abruptamente descontinuado ou se um de agonistas opióides da proposta terapêutica, que deve ser
opióide antagonista for administrado. A necessariamente embasada em sólido
gravidade da síndrome de abstinência síndrome é função da meia-vida de elimi­ conhecimento teórico e prático. t
é uma função da dose e da duração da nação do medicamento; assim, o início dos
administração do medicamento descon­ sintomas da crise aparece entre 6 e 12 ho­ LEITURAS RECOMENDADAS
tinuado. A administração de um opióide ras (morfina), mas eles podem se prolongar
antagonista para um indivíduo dependente de 38 a 48 horas com medicamentos de 1. Dickenson AH. Opiates: basic mechanisms.
In: Wall and Melzach’s. Textbook of Pain.
físico produz de imediato a precipitação meia-vida longa (metadona) e alcançam o Section 3, McMahon S.B. and Koltzenburg
da síndrome de abstinência; portanto, pico entre 24 e 72 horas após ser superado Pharmacology and treatment of pain. 5a ed.
M. Elsevier 2006;427-442.
deve-se estar atento para que pacientes o tempo de meia-vida. É necessário salien­
2. Schug SA and Gandham N. Opioids: clinical
que recebem doses repetidas de agonistas tar que mesmo nos pacientes submetidos use. In: Wall and Melzach’s. Textbook of Pain.
opióides, a ponto de se tornarem depen­ a procedimentos (cordotomia) com alívio Section 3, McMahon S.B. and Koltzenburg M.
Pharmacology and treatment of pain. 5a ed.
dentes físicos, não podem ter suspensa completo do sintoma álgico, deve-se Elsevier 2006;443-457.
a medicação e tampouco ser adminis­ regredir o medicamento lentamente para 3. Buxton IL. Pharmacokinetics and pharmaco­
trado opióide antagonista (ou agonista- evitar a síndrome de abstinência. dynamics: The dynamics of drug absorption,
distribution, action, and elimination. In: Good­
antagonista), sob pena de experimentar A dose de detoxicação é aproxi­ man & Gilman’s. The Pharmacological Basis
reação de abstinência. A exposição prévia madamente um quarto da dose diária of Therapeutics. Section 1, General Principles.
11a ed. McGraw-Hill 2006;1-39.
a medicamento agonista opióide pode prévia, oferecida durante dois dias e
4. Gutstein HB and Akil H. Opioid analgesics. In:
aumentar a sensibilidade do paciente a administrada quatro vezes ao dia. A cada Goodman & Gilman’s. The Pharmacological
um componente antagonista ou agonista- dois dias diminui-se a dose pela metade, Basis of Therapeutics. Section III, Drugs Ac­
ting on the Central Nervous System. 11a ed.
antagonista; portanto, quando usados em com o mesmo esquema posológico até McGraw-Hill 2006;547-590.
dor crônica, os agonistas-antagonistas a suspensão completa da administração. 5. Lemonica L and Carvalho WA. Mecanismos
devem ser titulados anteriormente ao Exemplificando, um paciente que receba celulares e moleculares da dor inflamatória:
modulação periférica e avanços terapêuticos.
início da administração prolongada de 240 mg de morfina por dia deve passar a In: Temas de Anestesiologia. 2a ed. Editora
agonistas opióides. O início da síndrome receber 60 mg, sendo oferecidos 15 mg Unesp 2000;265-280.
a cada 6 horas, sendo o mesmo procedi­ 6. Lemonica L and Carvalho WA. Mecanismos
é caracterizado pela revelação do paciente
centrais de transmissão e de modulação
de ansiedade, nervosismo e irritação, com mento realizado com metadona. da dor: atualização terapêutica. In: Temas
alternância de desânimo e sensação de Em conclusão, os opióides constituem de Anestesiologia. 2 a ed. Editora Unesp
2000;281-296.
rubor. Sinais evidentes da síndrome são o principal medicamento para o tratamento
7. Lemonica L and Vianna PTG. Farmacocinética
salivação, lacrimejamento, rinorréia, su­ farmacológico da dor de qualquer etiologia, em anestesiologia. In: Temas de Anestesiolo­
dorese abundante e arrepio. No pico da de intensidade moderada a elevada. Em gia. 2a ed. Editora Unesp 2000;87-94.

intensidade da síndrome os pacientes são razão de alguns poucos pacientes não res­
Endereço para correspondência:
acometidos por náusea, vômito, câimbra ponderem adequadamente a uma efetiva
R. Cel. José Vitoriano Villas Boas, 545
abdominal, insônia e, mais raramente, analgesia, criaram-se os termos, embora apto 121 - Centro - CEP 18602-030
mioclonia multifocal. O tempo de curso da inadequados, de dor não-responsiva aos Botucatu - SP.

Prática Hospitalar • Ano X • Nº 56 • Mar-Abr/2008 135

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