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IX

Descartes
Por Affonso Henrique Vieira da Costa1
René Descartes nasceu em 31 de março de 1596, em La Haye, França, e morreu de pneumonia em 11 de fevereiro de
1650, na Suécia. É considerado o fundador da Filosofia Moderna, para a qual a descoberta do cogito é decisiva como
tomada de consciência do sujeito pensante. Em um momento de profundas mudanças, Descartes abre um diálogo
fundamental não só com Aristóteles como também com toda a Escolástica. No entanto, é aprofundando o caminho
percorrido por Montaigne, superando seu ceticismo, que o filósofo transformará toda a dúvida em método, utilizando-o
como um meio para discernir o verdadeiro do falso na busca do sentido que sua época lhe impunha. A tarefa de
encontrar-se com a clareza e a certeza do conhecimento só se realizará a partir do instante em que todas as crenças
anteriormente recebidas são submetidas ao controle e ao julgamento da razão. Entre as suas principais obras estão o
Discurso do método, as Meditações metafísicas, os Princípios de filosofia, As paixões da alma e as Regras para a
direção do espírito.

Fragmentos de textos para discussão


"Faz algum tempo que eu me apercebi que, desde os meus primeiros anos, havia tomado por verdadeiras
uma grande quantidade de falsas opiniões, e que aquilo que depois fundei sobre princípios tão mal assegurados
não podia ser senão muito duvidoso e incerto; de forma que era-me preciso buscar seriamente, ao menos uma
vez em minha vida, desfazer-me de todas as opiniões que até então eu havia recebido em minha crença, e
começar tudo novamente desde os fundamentos, caso quisesse estabelecer alguma coisa de firme e de constante
nas ciências." (p. 267)
"Mas esse propósito é árduo e laborioso, e uma certa preguiça arrasta-me insensivelmente ao curso de minha
vida ordinária. E tal como um escravo que gozasse, em sonho, de uma liberdade imaginária, quando começa a
suspeitar que sua liberdade não é senão um sonho, teme ser despertado, e conspira com essas ilusões agradáveis
para ser mais longamente enganado, assim eu recaio insensivelmente de mim mesmo em minhas antigas
opiniões, e evito despertar dessa sonolência, com medo de que as vigílias laboriosas, que viriam depois da
tranqüilidade desse repouso, em vez de trazer-me algum dia e alguma luz no conhecimento da verdade, não
fossem suficientes para aclarar as trevas das dificuldades que acabam de ser agitadas." (p. 273)
"A meditação que fiz ontem encheu-me o espírito com tantas dúvidas, que doravante não está mais em
meu poder de as esquecer. E, no entanto, não via de que maneira poderia resolvê-lo; e como se, de repente,
tivesse caído em águas muito profundas, encontro-me a tal ponto surpreso, que não posso nem colocar meus
pés no fundo, nem nadar para sustentar-se em cima d'água. Esforçar-me-ei, não obstante, e seguirei em frente
pela mesma via na qual encontrava-me ontem, afastando-me de tudo aquilo em que eu poderia imaginar a
menor dúvida, tal como se conhecesse que isso fosse absolutamente falso, e continuarei sempre nesse
caminho, até que eu tenha encontrado algo de certo, ou, pelo menos, caso nada mais me seja possível, até que
eu tenha aprendido, certamente, que não há nada de certo no mundo."2 (p. 274) Meditações metafísicas)

Conversando com Descartes acerca das primeiras meditações

Para o estudante que está se iniciando em Filosofia, os diversos autores ao lado de suas
diferentes doutrinas aparecem como detentores de uma série de opiniões totalmente desvinculadas
umas das outras acerca da própria realidade. Entretanto, tal pensamento tem a possibilidade de ser
posto em questão na medida em que as filosofias deixam transparecer uma unidade de sentido que
as atravessa e faz com que cada uma, a seu modo, esteja de acordo com sua determinada época
histórica. Tal fato deveria sempre provocar espanto, pois o que faz com que haja uma determinada
unidade? Como essa unidade é capaz de produzir diferentes textos e suas posições muitas vezes
contrárias? De onde aparecem tais questões?
A filosofia traz consigo o mistério. O mistério é o que encanta e o que está em tudo quanto provoca
espanto. O espanto ele mesmo é um encantamento recheado de mistério. É o que nos desperta para a
pergunta de por que as coisas são e não antes não são. As perguntas, filosóficas oor excelência, não

1
Doutorando em Filosofia pela UFRJ.

2
DESCARTES. Méditations touchant Ia première philosophie. In: Oeuvres et Lettres. Paris: Galimard, 1993.
pedem, no fundo, respostas, mas nos convocam para pensá-las.
Todo aquele que deseja ir ao encontro do filosofar precisa estar em condições de abrir-se para o
espanto da própria realidade. Sem isso, não há filosofia. Desde Platão e Aristóteles sabemos que o
espanto é o principio de todo filosofar. No entanto, o que precisamos ainda é experimentar este saber,
saboreá-lo, senti-lo desde dentro para autenticamente poder dizer aquilo que esses pensadores
disseram sem apenas repetir superficialmente as suas palavras.
A filosofia é, desde o seu princípio, amor pela sabedoria. Com isso, perguntamos: De que
sabedoria se trata? Qual o seu estatuto? Outra pergunta seria ainda necessária: Qual o fundamento
desse amor? E mais: Como o amor pela sabedoria se articula com o espanto acima mencionado?
É na base de questões como essas que nos entregamos paulatinamente à filosofia. Não se trata
de modo algum de intelectualismo, mas de vivenciar as questões, pô-las em ordem, organizá-las e
sentir a pulsação de sua presença no seio de nosso próprio viver. Quem não entrega a sua vida ao
projetar-se para as questões essenciais que a filosofia exige que sejam feitas, não é um filósofo, mas
um curioso que não percebe que em todo filosofar o que está mesmo em jogo é uma vida inteira,
todo um modo de ser que traz consigo a exigência de ser conquistado por essa tarefa essencial.
É dessa experiência que parte Descartes3. É por conta dela que ele pôde pensar a história. E
porque fez isso é considerado um grande pensador, um daqueles que se situam no limite de fundação
de uma época histórica. Por conta disso, é muito comum que sobre ele ouçamos a seguinte
afirmação: É o pai da Modernidade. Descartes não cria a Modernidade. Ela já estava em curso
quando o seu vigoroso pensamento a atingiu e foi também por ela atingido. E é em torno disso que
falaremos quando analisarmos mais precisamente os textos acima mencionados.
Esses textos são fragmentos da primeira, da segunda e da terceira meditações. Eles dizem
respeito a um determinado modo de ser muito próprio do filósofo, a saber, daquele que se entrega
radicalmente às questões propostas. Com isso, nos atreveríamos a dizer que todo o desenrolar das
Meditações não seria possível sem essa atitude inicial do filósofo. Sem ela - o que é decisivo para a
filosofia -, não há filosofar.
Procuraremos agora, levando isso em consideração, descrever mais ou menos os passos que
Descartes dá nessas primeiras meditações, de modo que se possa justificar a importância desse seu
comportamento e apresentar o que ele trouxe de tão importante para a filosofia.
A primeira meditação trata "das coisas que se podem colocar em dúvida". Poderíamos
perguntar: Por que colocar em dúvida? A dúvida se instaura quando os princípios que julgávamos
certos e assegurados e que fundamentavam a realidade já não dão mais conta dela. Toda a tradição
perdeu o seu vigor, a sua força originária, isto é, o "lugar" a partir do qual ela mesma se estruturou.
Quando isso acontece, se instaura uma época de profundas transformações, onde os antigos valores
já não dizem mais respeito ao mundo vigente. E como toda época transformadora, ela traz consigo
inquietações, contradições de toda parte, incertezas etc. Por um lado, tudo fica exposto a uma imensa
fragilidade e, por outro, é aberto um espaço para o que o senso comum costuma chamar de o
imprevisível, para aquilo que já vai se formando sem que o homem se dê conta dessas mudanças.
Aquele que pode pensar essas mudanças, ir ao seu encontro, é o filósofo. Estar à altura de seu tempo é
a sua tarefa. E é justamente o que é mais difícil. Mas é o que de algum modo ele assume como o que
precisa ser feito.
À filosofia não interessa uma parte da realidade. Sua investigação pretende apreender a
totalidade do real. E é o fundamento desse todo o que interessa a Descartes. Por isso é que ele
precisa se desfazer de todas as antigas opiniões que acreditava serem verdadeiras, de modo a poder
abrir-se para os fundamentos a partir dos quais o real mesmo se manifesta naquilo que ele é.
Somente assim ele julga poder estabelecer algo de firme e de constante nas ciências.
Mas o que o pensador pretende fazer para conseguir tal intento? Ele partirá de um método.
Método é caminho. É o caminho que deverá ser percorrido para que nele e somente nele isso que é o
real se manifeste. O método, então, passa pelo remetimento de suas antigas crenças ao julgamento

3
Hannah Arendt, em seu livro A Condição Humana, no capítulo dedicado ao advento da dúvida
cartesiana, afirma que, “no pensamento moderno, a dúvida é tão decisiva quanto foi o thaumazein (a
admiração, a surpresa, o espanto) dos gregos com relação à realidade ser naquilo que ela mesma é.”
da razão.
Tendo isto em vista, nas Meditações, por exemplo, o filósofo partirá do princípio da dúvida
hiperbólica, ou seja, da dúvida levada às suas últimas conseqüências. Se alguma certeza houver nesta
vida, ela só poderá ser revelada desde a dúvida. Por menor que seja a dúvida acerca de suas antigas
opiniões, é o que bastará para que as rejeite completamente. É importante observar que, a partir daí,
vários argumentos se seguirão. Estes, por sua vez, vão conduzindo o filósofo a uma profunda
solidão, pois toda a realidade se apresentará como sendo incerta, sem fundamento.
É bom que se diga que não se trata apenas de colocar tudo em dúvida. Algo também puxa o
filósofo nessa direção. Mas o que é isso que o puxa? É o próprio sentido da realidade que precisa se
manifestar. Entrar na dinâmica de manifestação desse sentido é a tarefa do filósofo. É, de acordo
com o que falamos acima, ir ao encontro daquilo que ele mais deseja e que o ama profundamente.
Ser filósofo é, sobretudo, entregar-se ao saber acerca da totalidade do real. É ser na compreensão do
sentido de ser. É corresponder à sua época e abrir caminhos para o futuro. Se quisermos citar outro
pensador, com o intuito de justificar essa afirmação, poderíamos falar em Nietzsche, que em A
vontade de pode4 diz que vai contar a história dos próximos duzentos anos. Estaria tal afirmação
prenhe de presunção? Acreditamos que não, pois o filósofo, justamente por procurar ir ao encontro
da dinâmica de manifestação da realidade, possui, como disse uma vez o poeta Hölderlin acerca de
Édipo, um olho a mais. Se ele vê e nós não, não achemos que ele é presunçoso. Nós é que não
conquistamos o espaço em que a visão5 acerca do fundamento do próprio real pode se manifestar.
Porém, o que é colocado em dúvida? Primeiramente, os nossos sentidos. Quantas vezes, por
exemplo, vimos um belo doce na vitrine de uma padaria e, ao prová-lo, achamos muito ruim?
Quantas vezes, de longe, acreditávamos ver um amigo e, quando este se aproximava, percebíamos
que se tratava de outra pessoa? Como confiar nos sentidos se eles nos enganam em demasia? No
entanto, como poderia negar que o meu corpo, que agora está sentado à escrivaninha, que essas mãos
que estão escrevendo este texto, que esta caneta, este papel, as minhas roupas são verdadeiras? É
neste instante que entra em cena o argumento do sonho.
Quantas vezes estávamos dormindo e acordávamos agitados acreditando que o que so-
nhávamos era a mais pura realidade? Qual o limite entre o sonho e a realidade? E se agora, ao
escrever este texto, na verdade estivesse sonhando? Nada pode me assegurar disso. Entretanto, as
figuras dos corpos, tais como o círculo, o quadrado, o triângulo, entre outras, são sempre as
mesmas, em que pese estar eu sonhando ou acordado. Isso também acontece quando penso, por
exemplo, na soma de dois mais três. Será cinco em quaisquer circunstâncias. Nesses casos
observamos que os objetos da matemática resistem à dúvida.
Cabe aqui ressaltar que essa resistência é muito importante, pois quanto maior ela for, mais
radical ainda será a certeza que dela poderemos extrair. Por isso é que Descartes vai fazer uso do
argumento do gênio maligno, do embusteiro, que será capaz de nos enganar a tal ponto que faça com
que acreditemos que o quadrado possui quatro lados, que a soma de dois mais três é igual a cinco,
entre outras coisas, quando, no fundo, não se trataria da verdade.
A presença do gênio radicaliza a dúvida, nos conduz a um nível maior de responsabilidade, de
modo que sejamos obrigados a usar de uma grande força para sustentar a suspensão de nossos juízos.
Não é à toa que isto que é o sentido da história experimentado por Descartes (de acordo com
Alexandre Koyré6, a saber, a incerteza e a confusão), se faz ecoar diante desse argumento. Tanto é
verdade que, logo em seguida, dadas as dificuldades, o filósofo vai afirmar que muitas vezes seu
espírito parece querer compactuar com a inércia, escolhendo o menor esforço, tudo isso por conta
das dificuldades que acabam de ser agitadas.
Isso é fundamental. Não há facilidade para o pensamento. Aliás, o verdadeiro pensamento é
4
NIETZSCHE, Friedrich. Vontade de potência. Rio de Janeiro: Edições de ouro, 1966.
5
Observar que essa visão não é propriamente aquela que vê com o aparelho visual, mas com o espírito. O
professor, muitas vezes, em sala de aula, ao invés de perguntar ao aluno se ele entendeu a questão,
pergunta se ele conseguiu ver, enxergar o problema.
6
KOYRÉ, Alexandre. Considerações sobre Descartes. Lisboa: Editorial Presença, 1963, p. 35,
aquele que se dirige contra si mesmo, desconfiado de suas conclusões fáceis, de suas respostas
rápidas. Há um longo caminho a ser seguido e o filósofo sabe disso. Não é a pressa e nem a
necessidade de corresponder às exigências fora da filosofia que comandam o processo de envio ao
saber, mas o próprio ritmo ditado pelo pensamento no ato de pensar. E aí que tudo se decide. Fora
daí não há nada, isto é, o pensamento não se faz7.
Quem é o gênio maligno! Aquele que me engana. Mas se me engana é sinal de que eu, que estou
sendo enganado, sou alguma coisa. Enquanto eu carregar comigo tal pensamento, terei a certeza de que
sou alguma coisa. Eu sou, eu existo. E isso é verdade toda vez que eu me lembre de que o gênio me faz
acreditar em tudo aquilo que antes tomava como certo e seguro.
Neste caso, a partir da universalização da dúvida, onde até mesmo os objetos da matemática não
resistem mais ao seu poder, esse "eu sou" surge. O ser desse "eu" não é matéria e não é imaginação.
Não se chega a ele através dos sentidos. Aliás, estes, por sua vez, nos jogam no erro de nossas
antigas opiniões. Lutar contra elas é muito importante. Manter-se nesse caminho também.
Entretanto, mesmo sabendo agora que eu sou, ainda não sei quem eu sou. Escreve Descartes:
"Mas eu, o que sou eu, agora que acredito que exista alguém que é muito poderoso e, se ouso dizê-lo,
malicioso e ardiloso, que emprega todas as suas forças em enganar-me?"
A proposição eu sou, eu existo nos leva a pensar no ser do "eu" em uma unidade com a
existência, até porque ela só é verdadeira todas as vezes que eu a pronuncio, que eu nela propriamente
penso. É por isso que Descartes, quando passa ao exame dos atributos da alma, verifica que somente
o pensamento é um atributo que lhe pertence. Sem o corpo, por exemplo, não se pode caminhar e
nem se alimentar, assim como também não se pode nada sentir. Mas o pensamento se manifesta sem
o corpo. Não necessita dele para ser o que é. Daí Descartes poder afirmar que "nada sou, pois,
falando precisamente, senão uma coisa que pensa, isto é, um espírito, um entendimento ou uma
razão".
Mas o que é precisamente uma coisa que pensa?
Antes de Descartes chegar à certeza do eu, ele não poderia jamais falar que o eu é algo que duvida,
imagina, afirma, nega, sente etc. A dúvida, a afirmação, a negação e tudo o mais passam a ser
atributos do eu somente após a sua descoberta. Duvidar é, sobretudo, pensar ser alguma coisa. Eu não
sei se o que vejo é verdadeiro, mas penso que vejo. Eu não posso duvidar de que penso. O meu
pensamento - o cogito - é a realidade indubitável. As cogitationes (pensamentos) são aquilo que eu
me represento a mim mesmo. Nesse ato de representar, eu sou. Eu penso, logo existo. Toda existência
é determinada pelo pensamento que se pensa a si mesmo. Estamos diante da Modernidade. Esta, por
sua vez, diz: o aparecimento do eu, da subjetividade, da consciência, da certeza de si no ato de
representar. Com isso, toda representação trará consigo sempre e cada vez mais a certeza da
existência do cogito, não só como o que pensa, como também aquele que, ao colocar-se para si os
seus pensamentos, se surpreende sendo e reafirmando o seu ser.
Eu sou uma coisa pensante - res cogitans. Entretanto, como posso eu saber algo acerca da
primazia do pensamento quando me parece que os objetos e o seu contorno são mais claros em sua
corporeidade, isto é, quando naturalmente sou levado a acreditar que a imagem que tenho dos
corpos é de uma nitidez maior do que aquela que faço de mim mesmo como coisa pensante?
Esse questionamento tem o seu fundo na confusão que se produz ao não se compreender
nitidamente a diferença entre o pensamento e seus atributos. Por isso sou levado ao erro. Para
corrigi-lo, preciso me guiar pela luz natural, pela razão propriamente dita, com a finalidade de
estabelecer uma clareza de entendimento com relação a essa diferença. É o que Descartes procura
fazer ao elaborar a análise de um pedaço de cera.

7
Essa passagem nos leva a pensar no Discurso do método, de Descartes, traduzido pela Editora
Paulus, onde se lê o seguinte: "Pois não é o suficiente ter o espírito bom, o principal é aplicá-lo
bem. As maiores almas são capazes dos maiores vícios, tanto quanto das maiores virtudes, e os
que só andam muito lentamente podem avançar muito mais, se seguirem sempre o caminho
reto, do que aqueles que correm e dele se distanciam". E, mais adiante: "...pois já colhi dele (do
método) tais frutos que, embora no juízo que faço de mim próprio eu procure pender mais para
o lado da desconfiança do que da presunção".
O pedaço de cera possui um determinado comprimento e largura, um certo odor, uma cor, entre
tantas outras coisas que os meus sentidos poderiam captar. Porém, se o levo ao fogo, tudo isso que
era captado pelos meus sentidos se perde. O que fica, então, da antiga cera? O que posso conhecer
da cera não é aquilo que é determinado pelos sentidos, pois essas características mudam. A
identidade do objeto não se revela pela percepção sensível. O que permanece é certa extensão, o ser
extenso da cera. Essa extensão só é percebida intelectivamente através do pensamento. É por isso que
posso dizer que é a mesma cera que aquela antes de ir ao fogo. A extensão é uma característica
essencial dela. E eu sei disso pela representação do que nela há de permanente, o que já não pode ser
captado pelos sentidos.
Esse exemplo nos prova que a representação intelectual tem uma primazia sobre a representação
sensível e que o eu pensante não se deixa determinar pelos seus atributos diversos, mas apenas pela
sua essência, enquanto ser intelectivo, possuidor de um poder de julgar.
Citamos inicialmente algumas passagens das Meditações. Estas nos mostraram que este texto
parte de uma experiência radical com a própria realidade em seu processo de realização. Não é uma
experiência qualquer, mas uma que procura se cercar dos seus próprios limites para poder ir ao seu
encontro e revelá-la em toda a sua plenitude. Esses passos iniciais são muito importantes para se
compreender a totalidade da filosofia propugnada por Descartes e que vai abrir um leque de
profundas discussões que se arrastarão durante toda a Modernidade e adentrarão a nossa época
histórica.
Entretanto, os problemas que se colocam agora são: 1) se Deus existe e 2) se Ele pode ser
enganador. Somente com a reposta a essas questões, Descartes poderá se desembaraçar do gênio
maligno, pois a sua presença faz com que o cogito não esteja liberado para a constituição das ciências,
já que a sua existência só está garantida enquanto não se deixar enganar pelo embusteiro. A
liberdade do cogito e a fundamentação das ciências dependem necessariamente da resposta às
questões acima.
É preciso que pensemos se todo esse caminho, na verdade, não se fez como uma nova abertura
para que Deus - compreendido como o fundamento do real - se manifestasse de um modo
completamente distinto da Escolástica, isto é, através da intuição, diferentemente da fé.
Mas o que é a intuição? Essa palavra é derivada do latim intueri, que significa olhar, inspecionar.
Olhar, no entanto, com os olhos do espírito, da mente, a partir da luz da razão, que, livre de todos os
estímulos sensoriais, possui o poder de ver as verdades nela implantadas por Deus.
Embora o filósofo já tenha demonstrado com o pedaço de cera que a essência é diferente de seus
atributos e, como conseqüência dessa investigação, que o espírito é mais fácil de conhecer do que o
corpo, a terceira meditação tratará de Deus; que Ele existe.
No entanto, para que compreendamos melhor a necessidade de se ir ao encontro da existência de
Deus, prestemos atenção quando o filósofo italiano Giovanni Reale afirma que, em Descartes, "o
eixo da filosofia não é mais a ciência do ser, mas a doutrina do conhecimento"8. Isto significa que
todas as regras propostas no Discurso do método são introduzidas nas Meditações a fim de
encaminhá-las no sentido de, ao investigar as posições tomadas pela Tradição, verificar se estas
passam por ser certas e indubitáveis ou se são duvidosas9. Se forem duvidosas, será preciso, através
das regras, ir ao encontro de certezas que, para o conhecimento humano, não sejam mais do que
idéias claras e distintas. Deste modo é que pode se compreender a guinada cartesiana com relação à
Tradição. Não se trata aqui de estabelecer uma ciência do ser, mas, através de regras rigorosas, ir de

8
REALE, Giovanni. História da filosofia III. São Paulo: Paulus, 2004, p. 293.
9
As regras expostas no Discurso do método, mais precisamente em sua segunda parte, são
quatro: 1a) Jamais acolher alguma coisa como verdadeira sem antes tê-la como evidente; 2a) Divi-
dir as dificuldades em tantas parcelas quantas forem necessárias para melhor resolvê-las; 3a)
Conduzir, por ordem, os pensamentos, começando pelos objetos mais simples até os mais com-
postos; 4a) Fazer enumerações e revisões para obter a certeza de nada ter omitido.
encontro ao ceticismo e ao dogmatismo reinantes e fundamentar uma nova cadeia de razões.
Retomando o nosso problema, diríamos, em outras palavras, que o método - o caminho - passa
pela maneira de como é possível ir ao encontro de certezas, conhecê-las, e se as regras que
anteriormente foram estabelecidas podem agora ser utilizadas com relação ao pensamento
tradicional, de modo a verificar se ele tem sua fundamentação em certezas inabaláveis ou se toda a
sua estrutura está, de fato, corroída pela falta de solidez.
As Meditações, tomadas também como forma de aplicabilidade desse método, que passa
necessariamente pela dúvida metódica, vão demonstrar, conforme vimos, que falta solidez à
Tradição e que a fundamentação das ciências precisa se fazer por outras vias.
Essa aplicabilidade das regras anteriormente formuladas para demonstrar a falta de solidez no
edifício construído pela Tradição é que revelará, com maior nitidez, a reviravolta do pensamento
cartesiano em direção a uma doutrina do conhecimento.
Porém, falar em doutrina do conhecimento pode parecer vago na medida em que apenas
pensarmos que o que está em jogo é a busca de uma determinação para todas as ciências. O caminho
de Descartes passa pela possibilidade de fundação do conhecimento desde a comprovação da
existência de Deus. E isso só é possível quando da descoberta do cogito, o que ocorre sem qualquer
mediação a partir da intuição pura.

BIBLIOGRAFIA:

DA COSTA, Affonso Henrique Vieira. Manual de Iniciação à Filosofia. Editora Vozes,


Petrópolis, Rio de Janeiro, 2007.

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