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Tílulo do original em francês:


Histoirc du Nottvcau Monde:
Dela Ddcouverte A Ia Conquêtc, une Expérience Europêennc -1492-1550

Copyright © 1991 by Librairie Arthème Fayard


Os mapas foram feitos por Eludes et Cartograpliies, Lille.

Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)


(Câmara Brasileira do Livro, SP, Brasil)

Bernand, Carmen.
História do Novo Mundo : Da Descoberta à Conquista,
uma Experiência Européia, 1492-1550 / Carmen Bernand e
Serge Gruzinski; tradução de Cristina Murachco. - São Pau-
lo: Editora da Universidade de São Paulo, 1997.

Bibliografia.
ISBN: 85-314-0101-1

1. América Latina - Descobrimento e exploração 2. Amé-


rica Latina - História I. Gruzinski, Serge. II. Título.
III. Série.

92-1982 CDD-980

índices para catálogo sistemático:


1. América Latina : História 9S0

-Bíreitos-reservados-ft—•
Edusp - Editora da Universidade de São Paulo
Av. Prof. Luciano Gualberto, Travessa J, 374
6° andar - Ed. da Antiga Reitoria - Cidade Universitária
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Tel. (011) 813-8837 r. 21(5

Printed in Brazil 1997

Foi feito o depósito legal


SUMÁRIO

Apresentação à Edição Brasileira 9


Introdução: Oceanos e, Depois, Montes de Nuvens 13

Parte I
Os MUNDOS ANTICOS

1. Antes da Invasão 21
2.1492 65
3. Sonhos Atlânticos 101
4. A Terra e o Alto-Mar 141
5. O Eco do Novo Mundo 187
6. A Europa Imperial 217

Parte It

O Novo MUNDO

"•irTfâ-Teítardiíntesêfica 271
2. A Conquista do México 313
3. Nascimento da Nova Espanha 355
AS PORTAS DÀ AMÉRICA

Nunca consegui sentir ou entender as coisas das Índias antes


de vir vê-las e entendi o que vi e o tpie vejo de vianeira muito
diferente do que ouvi dizer.

OVIEDO

Cuba, 1517. Bernal Díaz dei Castillo estaria pensando nas proezas de
Amadis, olhando para o mar? Nas promessas de expedições longínquas em
terras ricas? Ou em Medina dei Campo, a cidade onde nasceu? O cheiro
suave das estiráceas havia-se dissolvido. O sol do meio-dia consumira os
"vapores da terra" dos fogos acesos pelos indígenas para abrandar o fres-
cor dá noite. O silêncio era quebrado apenas pelos grunhidos de u m por-
co que fuçava o campo de um indígena esgotado que mal tinha forças para
espantar o animal. Na baía, alguns postes demolidos apontavam por cima
das ondas, únicos vestígios das criações de peixes que outrora os naturais
m a n t i n h a m . Cortejos de flamingos rosas, "iguais a rebanhos de carneiros
coloridos de ocre vermelho", passavam nas águas salgadas. Indiferente à
mancha de sangue que avançava sobre o mar, Bernal Díaz dei Castillo não
esquecera sua primeira experiência, a expedição que ele conduzira três
'ãnõ"s a n t e s ' n o l i t ò r à l d ó Pãnãm'á7õ pesadelo da Castela de Ouro, os ho-
m e n s atolando nos pântanos com gases envenenados. Os guerreiros ves-
tidos de seda que tinham agonizado de languidez ou que m o r r e r a m de
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fome, no entanto, passaram perto da glória na Itália do Grande Capitão.


Mas será que o ócio das ilhas, regado pelo "vinho" azedo do lugar, em
torno de um iguana grelhado ou de u m a fatia de tartaruga, valeria mais
do que as miragens do continente? 1

NA FRONTEIRA DO NOVO MUNDO (1492-1517)

Em um quarto de século, os espanhóis tinham descoberto e ocupa-


do as Antilhas, criando um m u n d o tenso, destruidor e instável. O suntuo-
so paraíso com aléias verdes entrevisto por Colombo tornou-se rapida-
mente um m o r r e d o u r o para muitos europeus e u m a vala comum para as
populações indígenas. As portas de u m continente sobre o qual não sa-
biam ainda praticamente nada e que, com exceção do Darién, n o limite
do Panamá, das costas da Colômbia e da Venezuela, continuava sendo u m
enigma, acumulavam-se as energias, as esperanças e as frustrações. En-
quanto isso, u m a catástrofe h u m a n a e ecológica devastava as Ilhas 2 .
Lembremos algumas datas essenciais. Vinte e cinco anos antes, n o
dia 12 de outubro de 1492, Colombo chegara n u m a das ilhas das Lucaias.
Um povo nu como os guanchos das Canárias ou os negros da Guiné re-
cebeu-o. Ele atingiu Cuba no dia 28 de outubro, e depois Hispaniola (a
ilha de São Domingos), no dia 6 de dezembro. J á na primeira viagem, ou
quase, o genovês tinha descoberto a rota marítima que permite um apro-
veitamento máximo dos ventos: "A escolha na ida de u m a dupla escala de
iftvas. "O angüfoTõirseja; o^IfsiõTcamíríK^ corrTã mênõFdifi-
culdade, vento de quarto por trás e c o r r e n d o pela popa". Na volta, Co-
lombo foi buscar em direção ao n o r t e os ventos oestes favoráveis q u e
levam em direção aos Açores e à Espanha. Decisiva, essa descoberta é tão
espantosa quanto a "descoberta da América", e baliza um caminho que,
durante três séculos, será usado com regularidade pela frota espanhola
das índias. Meio por dedução, meio p o r intuição, o genovês inspirou-se
provavelmente nas manobras dos marinheiros portugueses que remonta-
-va-m às cas-tas-da-África-pim-agiiKmdo-ttma-traMposição geográfica gigarr-

1. LÍIS Casas (1986), t. II, p. 511: "Es cosa de ver cuando se comienzan a colorar, que como siempre están
500 y 1000 juntas no parecen sino greyes de ovejas senalndas o almagradas; comunmente no andan
volanclo como Ias grullas, sino que siempre o casi siempre están en Ia mar, todas Ias zancas o piernas
metidas en ei agua salada, los pies en el suelo, que no les Ilegue a la pluma el agua"; H. Colón (1984),
p. 168; Avalle-Arce (1990), pp. 133-135, 38; Saenz de Santa Mana (1984), p. 128.
2. Las Casas (1967), t. I, p. 15: "mantlo la dcscubría el Almirante y la conlemplaba, decia delia maravillfts".
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tesca em direção ao Atlântico norte. A súmula de conhecimentos, de


práticas e... de erros (a circunferência terrestre exageradamente diminuí-
da) acumulados p o r Colombo resultaram, assim, n u m a travessia magistral,
pouco mais comprida d o que a das frotas que viriam a seguir 3 .
Como b o m genovês e discípulo dos portugueses, Colombo não se
cansava em conduzir atividades de exploração, criando fortins destinados
a servir de bases comerciais, partindo em busca de gêneros raros ou fa-
cilmente comercializáveis. O ouro excitou imediatamente a cobiça, e a
exploração dos veios auríferos da Hispaniola começou p o r volta do final
do ano de 1493. Ao contrário do que acontecia na Guiné, os recém-che-
gados foram obrigados a organizar a extração em vez de se contentar em
obter o metal p o r simples escambo. As Ilhas nunca poderiam tornar-se
u m a pequena África vigiada por fortalezas e feitorias dedicadas ao reco-
lhimento do ouro e dos escravos. Colombo distanciou-se mais ainda do
precedente português quando, naquele mesmo ano, u m a frota importan-
te carregada de h o m e n s , de animais e de plantas embarcou em direção
às novas ilhas. Pouco t e m p o depois, os europeus exploravam a costa cu-
bana e contornavam a Jamaica, e o irmão de Colombo, Bartolomé, fun-
dava a cidade de São Domingos.
A p a r d r de 1495, n o entanto, os Reis Católicos esforçaram-se em cor-
roer os privilégios outorgados a Colombo e a seus parentes três anos an-
tes, quando muitos acreditavam, sob as muralhas de Granada, que o Almi-
rante desapareceria- para sempre, engolido pelas águas do Mar Oceano.
Embora contasse com a benevolência da rainha Isabel, as dificuldades
aumentaram então~para o genovês, sem que, contudo, ele jamais esmore-
cesse. Em-1498, Colombo abordou as costas da Venezuela. Um continen-
te fora encontrado. Durante sua quarta e última viagem (1502-1504), ele
quase chegou até os maias do México, singrou em direção ao leste e acom-
p a n h o u o litoral da América Central do cabo Honduras até o golfo de
Darién. O Almirante voltou para Sanlúcar em novembro de 1504. A mor-
te de sua protetora Isabel, a Católica, o transtornou, e ele morreu, maltra-
tado pela artrite, em maio de 1506, em Valladolid. Mas, j á naquela época,
grande^arte-do-Mediterrâneo-das-Carartarforarexplorada 4 : -

3. Um povo como os guanches ou os negros da Cuiné, Chaunu (1969a), pp. 211, n. 1, 213,121, 190.
4, Chaunú (1969a), pp. 2'24-229.
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/t.S PORTAS DA AMÉRICA

... HISPANIOLA, PRESA DOS INVASORES

Até 1516, a Hispaniola foi a escala e, depois, a base a partir da qual


os espanhóis percorreram as Antilhas e exploraram a Terra Firme. A his-
tória da g r a n d e ilha é curta, atroz e exemplar. Em dois decênios, prati-
camente, os colonos que desembarcam na ilha acabam com seus habitan-
tes e com seu ouro 5 .
De 1494 a 1496, a Hispaniola inteira cai, primeiro, sob o domínio
de Colombo e de seus parentes: os ataques, as deportações de escravos,
a destruição das culturas de subsistência e a fome dizimam as populações
indígenas. Contudo, a descoberta decepciona, assim como as concessões
exorbitantes feitas a Colombo assustam o p o d e r real: a Hispaniola con-
tém muito pouco ouro. Como compensação, inspirando-se nas práticas
portuguesas, Colombo monta um projeto de tráfico de escravos caribe-
nhos em direção à Espanha. Essa iniciativa não melhora suas relações com
a coroa p o r q u e se mostra desastrosa e fere a consciência da soberana que
deseja proteger seus novos súditos. A questão da escravidão indígena está
longe de ter terminado com esse acontecimento. Enfim, a guerra civil que
explode e n t r e os fiéis a Colombo e u m a facção de descontentes dirigida
por Francisco Roldán n ã o ajuda o genovês; em 1499, para acalmar os
espíritos, o Almirante organiza a primeira distribuição (repartimiento) de
índios, antes de perder, no ano seguinte, a maior parte de seus poderes.
O navegador vai ser mandado de volta, a ferros, para a Espanha 6 .
A partir de então, as regras do jogo vão ser modificadas. A máqui-
na "administrativa, doravante manipulada a partir d e Sevilha por Rodrí-
guez de Fonseca e sua equipe, substitui o genovês p o r servidores fiéis e
titulados, mas n e m sempre competentes: os governadores Bobadilla e
depois Ovando. Aos cinqüenta anos, Fonseca, antigo arquidiácono de Se-
vilha, inicia u m a carreira fulgurante. Bispo de Badajoz e depois de Cór-
doba, elo inevitável e temido entre a coroa e as Ilhas, ele se torna o se-
n h o r das Ilhas novas, p r o n t o para afastar todos aqueles que poderiam
c o m p r o m e t e r seu poderio. Não é esse o caso, pelo m e n o s n o início, de
Nicolás de Ovando, que ele envia para as Antilhas em 1502, à frente de
trinta navios. O novo governador das Ilhas e da Terra Firme do Mar Ocea-
no desenvolve o sistema da encomiencla que praticara na Espanha quando
era c o m e n d a d o r da ordem de Alcântara. Mas a encomiencla ibérica consis-
tia em distribuir vilas e terras mouras aos conquistadores cristãos. A en-

5. Sobre a história das Antilhas, Arrom (1975), Sauer (1984).


6. li., pp. 130-160.
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comienda antilhesa entrega à coroa ou aos colonos insulares, para que os


obriguem a trabalhar nos campos, nas minas e nas casas. Destinada a se
tornar u m a das instituições mais importantes da América espanhola no
século XVI, ela legaliza e organiza a prática do repartimiento inaugurada
por Colombo. Todos os espanhóis que tinham chegado com Ovando so-
n h a m , assim, em obter u m a encomienda ou um repartimiento e, entre eles,
um rapaz de dezoito anos, Bartolomé de Las Casas, cujo pai, Pedro, j á
passara cinco anos n a Hispaniola 7 .
Sob o caos dos acontecimentos, aparecem, em filigrana, as três gran-
des experiências nas quais descobridores e conquistadores se inspiram,
combinando-as: por um lado, o legado afro-luso-genovês que u n e a explo-
ração ao escambo com os indígenas; por outro, a tradição castelhana da
Reconquista ibérica, com tudo o que ela implica, como operações mili-
tares e ocupação definitiva do solo; por fim, mais distante no tempo, a
conquista brutal das Canárias. O precedente granadino e as Canárias -
a invasão conquistadora e exterminadora conduzida por homens de guer-
ra - vencem, e o genovês, mal a r m a d o para conduzir uma empresa de
povoamento, acaba p e r d e n d o em poucos anos o comando das operações.
Mas as medidas estabilizadoras e repressivas de Ovando, que massacra os
insulares, também vão falhar. O choque dos modelos e das experiências,
a gigantesca mixagem social e econômica que dele resultou, e que levou
à queda acelerada das reservas de mão-de-obra, são exemplo das decep-
ções, dos desastres e das atrocidades que se sucederam. Monstro híbrido,
a Hispaniola deixava de ser u m simples entreposto, u m a feitoria à por-
' 'íügtíêsiãrsem s e T õ r â i u í l u n ^ á T ü m ã colônia 8 .

MORTOS EM SURSIS: OS INDÍGENAS

No entanto, os primeiros contatos foram quase idílicos. As paisagens,


os seres e as coisas encantaram Colombo, e a pesquisa feita pelo religio-
so catalão Ramón Pané demonstra u m a sensibilidade à diferença igual-
-mtrnteTrcrtávdVMa:srpassada-a-etap"ariii^^ sobre aque-
las populações e n d u r e c e u e depois se fixou n a indiferença, animando-se
apenas para expressar o desprezo ou a curiosidade divertida: alguns ob-
servadores notam invariavelmente o tom "azeitonado" da pele, a sensua-

7. Chaunu (1969b), p. 227; Lockhart e Sclwartz (1983), pp. 68-71.


8. Chaunu (1969a), pp. 213, 195-196; Pané (1977), p. 200; Elliott em Bethcll (1988), p. 18.
9. Pane (1977); H. Colón (1984), pp. 184-206.
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lidade solta - mesclada de uma ponta de sodomia - , a poligamia, o cul-


to de objetos estranhos, a embriaguez provocada pelo tabaco - é outra
descoberta - , os sacerdotes-adivinhos, meio enganadores, meio curandei-
ros, a alimentação exótica (milho, farinha de mandioca e batata-doce),
a ausência de "cavalos, de burros, de touros e de carneiros". "As trocas
eram risíveis, seja porque [os insulares] desprezavam o ouro ou p o r q u e
cobiçavam os artigos comuns do comércio." Os indígenas pareciam com-
portar-se sem o m e n o r bom senso, sem n e n h u m a noção do'valor das
coisas: "Eles davam coisa que valia cem por aquilo que não valia n e m dez
n e m cinco." Raros foram aqueles que, como H e r n a n d o , filho de Colom-
bo, e n t e n d e r a m que os indígenas estavam sacralizando os objetos euro-
peus: "Como aquelas coisas eram nossas, pareciam-lhes dignas cie gran-
de estima pois estavam convencidos de que os nossos eram gente que
vinha do céu, e por esta razão desejavam muito conservar alguma coisa
deles como lembrança".
As distinções eram sumárias e utilitárias: os espanhóis diferenciavam
os g r u p o s fiéis - geralmente awaraks e tainos - e os grupos hostis
batizados u n i f o r m e m e n t e de caribes, A cegueira dos recém-chegados
confunde: "Em toclo caso, graças às relações [travadas] com os espanhóis,
tudo melhorou, embora, dos muitos milhares de homens que povoavam
a ilha, restem apenas, em vida, um ou outro". Oviedo, o espectador da
Itália renascentista, observador das paisagens do Novo Mundo, tem fór-
mulas que dispensam comentários: "Eles não usavam capas, não tinham
e n ã o têm as cabeças feitas como as das outras pessoas, mas seu crânio é
tão resistente e tão grosseiro que o cuidado principal que se recomenda
aos cristãos q u a n d o combatem contra eles é o de n ã o os estocar n a ca-
beça pois as espadas quebram. E assim como têm u m crânio grosseiro,
possuem u m entendimento bestial e mal conformado". A descoberta do
canibalismo entre os caribes conforta os espanhóis em sua rejeição, e fe-
cha o estereótipo. O tema é tanto mais sensível quanto, mais de uma vez,
sob a pressão das circunstâncias e da fome, alguns deles se sentirão ten-
tados por essa prática que lhes parece monstruosa 1 0 .

10. Oviedo (1547), fól. Lr 1 : "Era el exercício principal de los Índios desta ysla [...] mercadear y trocar unas
cosas por otras, no con la nstucia de nuestros mercaderes, pidiendo por lo que vale un real mucho
mas, ni haziendo juramentos para que los simples los crean; sino muy al revés de todo esto y desati-
nadamente porque por maraviila miravan en que valiesse tanto lo que les davan como lo que ello»
bolvían en precio o trueco; sino teniendo contentamiento de la cosa por su passatiempo, davan lo
que valia ciento por lo que no valia diez ni aun cinco", XLVv* "porque capas no Ias trayan ni tampoco
tenían Ias cabezas ni Ias tienen como otras gentes, sinon de tan rezios y gruesos cascos quel princi-
2 9-1 HISTÓRIA DO NOVO MUNDO

É difícil imaginar o olhar dos vencidos, daqueles tainos q u e povoa-


vam as Ilhas, primeira h u m a n i d a d e americana a suportar o c h o q u e do
Ocidente, De fato, n ã o se procurou recolher as reações daqueles que a
morte deveria levar tão rápido. Não devemos imaginá-los u n a n i m e m e n -
te passivos, fascinados pelos objetos da Europa que lhes são "oferecidos"
aos montes - "pérolas de vidro, guizos, sininhos, a mais modesta quinqui-
lharia" vítimas boquiabertas da rapacidade e dos cães dos conquistado-
res, como os canarinos das gerações anteriores. Como sugere o quadro
do flamengo Mostaert, os indígenas sabem m u d a r as relações de força
quando têm os meios, defender encarniçadamente suas terras, perseguir
os invasores, liquidar os agressores isolados e rejeitar a cristianização. Mas
as epidemias, com mais eficiência do que os espanhóis, vieram dar cabo
de toda,s as resistências e de todas as astúcias. Alguns índios, contudo,
passam para o campo dos vencedores e tornam-se preciosos colaborado-
res. Atitude d e t e r m i n a n t e que se vai reproduzir por todo o Novo Mun-
do, permitindo aos descobridores-conquistadores progredirem e se esta-
belecerem com m e n o r e s despesas n u m a grande parte do continente.
Se conseguimos entender as razões da colaboração de certos grupos
ou de certas etnias indígenas - oportunismo, cálculo político, temor re-
ligioso, rancor contra u m a dominação mal suportada... - , ignoramos tuclo
sobre as razões que pesaram sobre escolhas individuais e anônimas: que
esperança, que sonho, por exemplo, levaram certo índio da Jamaica a
fugir de sua família e de sua comunidade para lançar-se n a boca do lobo
e juntar-se aos navios espanhóis suplicando que o levassem para Castela?
^Tjámaica acabávã"3ê~àêT~descoBèfr t a. A condição" cTê~èmpregacTo domés-
tico - dizia-se naboría - era certamente menos insuportável do que a es-
cravidão nos campos e nas terras aluviais, mas bastava pouca coisa para;
ser expulso da casa espanhola e ir morrer n u m a encomenda11.

pai aviso que los christianos tienen quando con eflos pelean, es no darles cuchilladas en la cabeza
porque se rompen Ias espadas. Yassí como tienen el casco grueso, assí tienen el entendimiento bes-
tial y mal inclinado como adelante se dirá de sus ritos y cerimonias y costumbres...", XXVv2 (m cante);
H. Colán (1984), p. 94: "les parecia que por ser nuestras eran dignas de rochp aprecio por teper.como
cosa cierta que los nuestros fuesen gente bajada dei eielo y por ello anhelabàn que les qiiedasé alguna
cosa suya como recuerdo"; p. 211: "[el hambre] fue tan grande que muchos [csjmnolcs], como caribes,
querían comerse los Índios que llevaban; y otros, por ahorrar lo poco que les quedaba, eran de pare-
cer que se les tirase al mar"; De Rebus- Cislis (1971), p. 323; Cabeza de Vaca (1977)., p. 77.
11. H. Colón (1984), pp.165-166, lSü, 203, 167: "llegó a los navios un índio muyjoven diciendó que se
queria ir a Castilla, Detrás d e £1 vinieron muchos parientes suyos y otras personas en sus canoas,
rogSndole con grandes instnnclns que se volviese a la isla; pero no pudieron apartalo d e su propósi-
to, Antes bien, para no ver Ias lágrimas y loi gemidos de sus hermanai. se puso en parte donde nadie
pudiera verlo. Maravillado el Almirante de la constancin de este indio, mandá se le tratam muy bien''.
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Em 1517, os n a t u r a i s ' d a Hispaniola, c o m o os das outras ilhas, j á


foram dizimados ou estão em via de extinção. Todos os números, se bem
que aproximativos, são assustadores. Segundo Las Casas, a Hispaniola
teria p e r d i d o mais de 3 milhões de indígenas, entre 1494 e 1508. Em
1516, cie sua confortável Espanha, o cronista Pedro Mártir preocupa-se
com a destruição, l e m b r a n d o a estimativa de 1496: 1 ou 2 milhões de
índios. O juiz Zuazo, alguns anos depois, deplorava u m a queda de 1,3
milhões para 11 mil indígenas 12 .
As origens dessa mortalidade são muitas: a repressão às revoltas, a
caça aos escravos que os espanhóis organizados em bandos ou cuadrillas
fazem, a deportação e a r u p t u r a com o meio ambiente, os maus tratos de
todo tipo, a imperícia dos europeus, indiferentes às necessidades elemen-
tares da mão-de-obra que exploram, ávidos de lucros imediatos, prontos
para a b a n d o n a r tudo por outros territórios mais promissores e outros
índios menos esparsos. No fluxo das intrigas, e com a benção das autori-
dades, os indígenas passam de mão em mão, de u m a vila à outra, presas
de u m a d o m i n a ç ã o desordenada que transtorna a vida local. Uns - os
naborías - estavam ligados aos espanhóis como o tinham sido aos seus
senhores indígenas antes da Conquista; outros, submetidos ao sistema do
repartimiento - ou encomienda - , devem dedicar u m a parte considerável de
suas forças para satisfazer as exigências dos europeus. A subnutrição atin-
ge populações que não conseguem mais, por falta de tempo e de liber-
dade, caçar e pescar. As criações de peixes que outrora estavam abarro-
tadas são abandonadas; as poucas culturas de subsistência que se mantêm
sofrem com a devastação feita pelos porcos, verdadeira encarnação ani-
mal do i m p a c t o deixado pela irrupção dos cristãos. Decapitada pelas
guerras e pelos massacres "preventivos", a h i e r a r q u i a tradicional é
deslocada; os ritmos da vida comunitária são rompidos; as memórias apa-
gam-se. Os.grupos são irremediavelmente desarticulados. Os índios co-
laboradores massacram aqueles que tentam resistir e vice-versa. Para es-
capar do trabalho forçado, insulares se envenenam ou se enforcam. A
partir de 1508, p e n s a n d o resolver o problema da desaparição física das
populações locais, as autoridades espanholas aceleraram seu fim organi-
zando a d e p o r t a ç ã o em massa dos indígenas das Bahamas: segundo Las
Casas e Pedro Mártir, quarenta mil almas, mais ou menos, são introduzi-
das dessa f ô r m a n a ilha. Em 1512, as reservas h u m a n a s das Bahamas es-
tavam consumidas. Por todo lado, a lógica da corrida do ouro e o emba-
lo dê um sistema p o r t a d o r de morte vencem.

12. Saúer (1984), pp. 235, 304.


2 9-1 HISTÓRIA DO NOVO MUNDO

Mas será que ainda p o d e m o s falar de lógica n o clima de caos e de


estrago que asfixia as Ilhas? Em todo caso, como conseguir a maior quan-
tidade de ouro possível m a n t e n d o a produção em u m nível elevado quan-
do a mão-de-obra e o metal tornam-se mais raros? Algumas vozes erguem-
se, entre os dominicanos, contra aquela monstruosidade. A primeira voz
foi a de Antonio de Montesinos que, em 1511, n u m sermão forte, anun-
cia aos espanhóis da Hispaniola que eles corriam o risco de se p e r d e r e m
"como os mouros e os turcos", se continuassem a maltratar as populações
indígenas".
Essas n ã o são as únicas vítimas dos brancos: os animais que, em mui-
tas ilhotas, n u n c a tinham visto homens, deixam-se m a t a r sem oferecer a
m e n o r resistência. De f o r m a geral, a f a u n a e a flora pagam u m tributo tão
pesado quanto os naturais à exploração desenfreada, enquanto os animais
da Europa, soltos nas novas terras, conquistam o espaço americano com
tanta violência quanto seus senhores cristãos. Os insulares lembrariam p o r
muito t e m p o da chegada dos cavalos - desconhecidos n a América - que
espalhavam o pânico p o r todo lugar. As observações lacônicas dos colo-
nos espanhóis indicam, p o r outro lado, a extensão do drama ecológico:
"O que agora é u m t e r r e n o sem cultivo outrora fora muito povoado" 14 .
Se tudo isso n ã o fosse suficiente, os sobreviventes, reduzidos a u m
proletariado esfomeado, sofrem em cheio os efeitos de milênios de iso-
lamento que tinham preservado as populações da América das doenças
das quais sofriam a Eurásia e a África. Os descendentes daqueles que, h á
muitas dezenas de m i l h a r e s de anos, tinham passado o estreito de
BeKrffig,"pêfdêfãnTí^
ancestrais n o passado asiático. A descoberta, e depois a conquista, e a co-
lonização da América colocaram-nos, bruscamente, em contato com eu-
ropeus e africanos portadores de micróbios novos. O contrário também
verificou-se, se lembrarmos do destino da sífilis. Às infecçÔes tradicionais
acrescentam-se e n t ã o novas doenças que acabam com os indígenas: a
varíola, que mata desde 1518, a malária, que será, mais tarde, transmiti-
da pelos veteranos das guerras da Itália. Ora, a varíola, na Europa, ata-
-eaYa^rÍReípalmente-as-c-rianças-e-f>s-recém-naseidosr-Na--América-, ataca
os indígenas sem distinção de idade ou de origem. Sem ilusões, o envia-
do do cardeal J i m é n e z de Cisneros, o juiz Zuazo, anuncia p a r a o início

13. Oviedo (1547), fól. XXVIr"; Chaunu (1969b), p. 129; Pagden (1982), pp. 30-31.
14. H. Coión (1984), p. 176; "Mataron ocho lobos marinos que dormían en la arena y cogieron también
muchas palomas y otras aves; pofque no estando habitada aqueila isleta, ni los animales acostumbrados
a ver hombres, se dejaban matar a paios".
307
/t.S PORTAS DA AMÉRICA

dos anos 1520 a extinção d a população aborígine, embora tivesse resol-


vido adotar as medidas preconizadas in extremis pela coroa, que ordena
que se reinstalem os índios em suas comunidades e que os libertem da
servidão. Mas j á é tarde demais.
O d e s m o r o n a m e n t o demográfico - que voltará a acontecer no Mé-
xico n u m a escala ainda mais espetacular - não obedece a n e n h u m pla-
n o pensado, a n e n h u m a vontade deliberada. Trata-se de um "genocídio
sem premeditação" para retomar a fórmula de Jacques Ruffié. Além do
mais, p o r q u e os espanhóis iriam querer eliminar a mão-de-obra que fa-
zia sua fortuna? O genocídio é resultado da justaposição brutal de duas
sociedades e de dois universos. O m u n d o mutilado, desagregado, das
Ilhas estava desmoronando sob o brutal frenesi daqueles que chegavam,
h o m e n s de todos os riscos e saques, mas também se encontrava, repen-
tinamente, entregue ao assalto - invisível e ainda mais implacável - de
vírus e de micróbios desconhecidos 15 .
As soluções que as autoridades espanholas, amplamente ultrapassa-
das pela catástrofe, imaginaram, com as idéias e os meios da época, só vie-
ram detonar outros desastres humanos. Para compensar a falta de mão-de-
obra e aliviar a sorte das populações submetidas, os defensores dos índios
e da autoridade real - os hieronimitas que governaram a Hispaniola de
1517 a 1518, Las Casas em 1517 e depois o juiz Zuazo - pediram a impor-
tação de escravos bozales, ou seja, de negros trazidos da África. Assim, j á se
abria outro capítulo da história da América, tão decisivo quanto a desco-
berta e a conquista européias. As "santas" intenções dos hieronimitas, que
acabavam de sair de seus claustros de Castela, perderam-se em pântanos
de intrigas e de interesses no Novo Mundo e contribuíram para o fim dos
índios que, concentrados nas vilas, foram atacados por "varíolas pestilen-
tas". Administradores sem igual em Castela, os religiosos de São Jerônimo
tinham pelo menos conseguido desenvolver a indústria açucareira 15 .

OS EUROPEUS: INFERNO E PARAÍSO

O quadro macabro desse naufrágio h u m a n o é indissociável da socie-


dade colonial que se esboça em meio ao caos e aos excessos. Estranho
corpo social, faroeste precursor, microcosmo multicolorido, sem costumes

15. Crosby (1986), p. 200; Sauer (1984), pp. 306-310.


16. Ii., pp. 310-311; Oviedo (1547), fôl. XXXVlIIv".
2 9-1 HISTÓRIA DO NOVO MUNDO

e sem lei, "sem n e n h u m controle, sem n e n h u m limite" 17 , que se desenr


volve naquilo que se vai tornar a primeira das fronteiras americanas. O
m u n d o das Ilhas é um híbrido monstruoso que parece desafiar a análise
sociológica clássica: p o r cima das sociedades indígenas mutiladas para
sempre, em sua organização e em seu patrimônio, enxerta-se, sem ter
sempre sucesso, uma população européia arrancada de seu território,
sacudida pelas reviravoltas que o desenraizamento, a distância da metró-
pole e a busca do ouro desencadeiam. Sobre u m a sociedade que não
existe mais, lança-se, como um bando de predadores, um conglomerado
de seres, de esperanças e de ambições.
Desde 1494 e da segunda viagem de Colombo surge um ambiente
envenenado por incessantes rivalidades, tomado p o r u m a guerra civil
subjacente que arma os partidários de Colombo contra os de Roldán,
chefe da primeira dissidência, e depois contra os clientes e os represen-
tantes da administração real. Os primeiros que chegaram são, em sua
maioria, hidalgos acostumados com uma vida fácil - "Eram nobres educa-
dos na facilidade" tão incapazes de conservar seu séquito muito nume-
roso quanto pouco inclinados para trabalhar com suas próprias mãos,
enquanto os poucos artesãos desembarcados estão exaustos: "A maioria
estava doente, magra e esfomeada, e eles não conseguiam fazer muita
coisa porque não tinham mais forças". No entanto, a terra nova têm as-
pectos paradisíacos: a beleza, os odores e a fertilidade das ilhas encantam
os descobridores; eles se maravilham por estarem degustando n o Natal
uvas e figos frescos ou por passarem suando a noite abençoada; os pei-
Tcêssãò saborosos e as mamineês nào têm _ iguaP"Seu cHêirõ~è"sêü~sãbor sãõ
tais que nenhuma f r u t a que possuímos ou que comemos em Castela as
iguala". Além do que, é preciso saber e querer valorizar a Descoberta 18 .
As primeiras experiências são uma falência lamentável e u m a lição
para os sobreviventes. Os pioneiros de Navidad se matam quando não
são mortos pelos indígenas. Em Isabela, na costa norte da Hispaniola, os
espanhóis precisam enfrentar a fome, o calor, a sede, a impaciência e o
desespero. Em 1494, aconteceu que até cinco doentes dmdissem.um ovo
de galinha'e um cahfcir&r.de-grãos de bico. "O d í e t f õ ^ i r e A p è r a ] - - ^
muito forte e pestilento." Por muito tempo, após ter sido abandonada,

17. Sauer (1984), p. 227.


18. Las Casas (1986), t. I. p. 376; (1967), t. 1, pp. 29-30: H. Colón (1984), pp. 164-168: "el olor dei aire
era tan grato que les parecia estar entre rosas y las mas delicadas fragrancias dei mundo"; Oviedo
(1547), fól. XXXVIIv0: "la noclie de navidad uvieron tanto calor que sudaron y aquel dia a comer les
dieron los frayles uvas frescas e higos acabados d e coger".
/t.S PORTAS DA AMÉRICA 307

Isabela continuará a. aterrorizar os visitantes de passagem: os boatos di-


ziam que:

[...] perto das construções de Isabela, numa rua, apareceram duas fileiras de
pessoas, como dois coros de homens que pareciam ser todos nobres e cortesãos, bem
vestidos, com a espada do ladó e cobertos com capas de viagem como aquelas que
eram usadas, naquela época, na Espanha; surpreso, aquele ou aqueles para os quais
' essa visão aparecia perguntaram-se de que forma aquelas pessoas tão novas e tão bem
vestidas tinham desembarcado lá sem que ninguém, na ilha, nada soubesse; saudaram-
nos perguntando-lhes quando tinham chegado e de onde vinham; os viajantes respon-
deram em silêncio levando a mão até o chapéu para responder à saudação e tiraram,
junto com ele, a cabeça do corpo; ficavam sem cabeça e desapareciam"1.

Nem todos os colonos se tornavam espectros. Aqueles que, amargu-


rados ou desesperados, voltavam para a Espanha para exigir o que lhes
era devido, falavam muito mal do Almirante. H e r n a n d o Colombo, filho
mais novo de Cristóvão, está com doze anos q u a n d o escuta e vê uns cin-
q ü e n t a h o m e n s agitando-se no pátio do Alhambra de Granada, gritando
contra ele e seu irmão: "São os filhos do Almirante dos mosquitos, daque-
le q u e descobriu terras de vaidade e de enganação para servir-nos de
sepultura e mergulhar-nos na miséria, nós, hidalgos de Castela! [...] Sua
ousadia era tanta que, q u a n d o o rei católico saía, todos o envolviam e
cercavam gritando: Pague, paguei". Os manifestantes tinham comprado
u m a grande quantidade de uvas e sentaram-se no pátio (como os vende-
dores mouriscos) para mostrar à corte o destino a que estavam reduzidos.
H e r n a n d o Colombo lembrou-se durante muito tempo das gozações com
as quais era perseguido. Outra testemunha, Oviedo, confirma: "E verda-
de, vi muitos daqueles que, naquela época, voltaram para Castela com um
tal aspecto que [eu dizia a mim mesmo], mesmo se o rei m e desse suas
índias, se fosse para acabar como aquela gente, eu não iria para lá"20.

19. Oviedo (1547), fól. XVlIIr5; Las Casas (1986), t. 1, pp. 377-378: "por aquellos edifícios de la Isabela
en una calle aparecieron dos rengleras a manera de dos coros de hombres que parecían todos como
gente noble y dei palacio, bien vestidos, cenidas sus espadas y rebozados con tocas de camino de las
. que entonces en Espana se usaban; y estando admirados aquel o aquellos a quien esta visión parecia,
cómo habían veniclo allí a aportar gente tan nueva y ataviada sin haberse sabido en esta isla dellos
nada, saludándoles y preguntándoles cuándo y de d â n d e venían, respondieron callando, solamente
echando mano a los sombreros para los resaludar, quitaronjuntamente con los sombreros las caberas
„de sus cuerpos, quedando descabezados y desaparecieron; de Ia cual visión quedaron los que Io vieron
cuasi muertos y por muchos dias penados y asombrados".
20. H. Colón (1984), pp. 260-261: "Mirad los hijos dei Almirante d e los mosquitos, de aquél q u e ha
descubierto tierras de vanidad y engano para sepulcro y miséria de los hidalgos castellanosl [...] Tanto
2 9-1 HISTÓRIA DO NOVO MUNDO

TÃO LONGE DE CASTELA"

Gostaríamos de p o d e r sondar o estado de espírito dos emigrantes,


ao mesmo tempo descobridores, conquistadores e colonos. "Como p o d e
acontecer que tenham existido sobreviventes entre todos aqueles que se
foram instalar em terras tão distantes de suas pátrias, deixando [para trás]
todas as facilidades às quais estavam acostumados desde a infância, exi-
lando-se longe de seus pais e de seus amigos, sem terem à disposição
remédios para se tratarem...?" Nossa exploração dos territórios ibéricos,
daquelas "pátrias" muitas vezes minúsculas, permite perceber melhor o
alcance da pergunta de Oviedo. O mal-estar que provocava o extrcinamiento
de tierra, o exílio, aumentava o sentimento de distância até que o esque-
cimento, mesclado à amargura, distendesse os laços com a península e
com a Europa. Um pouco menos ou um pouco mais de u m mês para a
ida, levado pelos alísios; de trinta e cinco dias a dois meses para a volta.
O pior n ã o é, sem dúvida n e n h u m a , a distância relativa da travessia,
mas seus perigos. Um passageiro em três não chega às índias. Aqueles que
chegam, r a p i d a m e n t e decepcionados, voltam p a r a a Espanha; outros,
como Bernal Díaz, esperam o m o m e n t o propício para singrar em dire-
ção a terras misteriosas a descubrir. Até mesmo u m h o m e m de fé como o
flamengo Pedro de Gand não consegue dissimular suas fraquezas: "Mui-
tas vezes, eu tive a tentação de voltar para Flandres". Pedro resiste, agar-
ra-se às índias, mas, sete anos depois de sua chegada, confessa que não
consegue mais expressar-se em sua língua materna: "Eu desejaria com
"TElTtito"ar3õrT^screvê a SèUs C5iTêspõn3êní5sTrórdicõs,'"'qü5^ vos
tomasse a responsabilidade, pelo- amor de Deus, de traduzir m i n h a car-
ta para meus parentes para que, pelo menos, eles saibam de mim algo de
verdadeiro e de positivo: estou vivo e com saúde". O que dizer de algu-
mas européias que, fugindo da miséria na península, encontram-se no fim
cio m u n d o o n d e precisam saber fazer valer sua raridade para m e l h o r
e n f r e n t a r os assédios de seus compatriotas? O cúmulo do isolamento tal-
vez tenha sido atingido em 1506, quando F e r n a n d o precisou desinteres-

cuidar das Ilhas. Durante um ano, a Hispaniola foi pura e simplesmente


a b a n d o n a d a a sua própria sorte 21 .

era sLI descaro que si el rey Católico salía, lo rodeaban todos y los cogían en médio, gritando: jPaga,
Pagai»
21. Oviedo (1547), fól. XXIIIv11: "como pudo bivir o escapar hombre de todos ellos mudándose a tierras
tan apartadas d e sus pátrias y dexando todos los regalos de los manjares con q u e se criaron y
307
/t.S PORTAS DA AMÉRICA

A-Hispaniola (São Domingos)

OCEANO ATLÂNTICO

Mar (lus Caraibas

• À5seritamento espanhòl '


0 ' 100 km ' . " "".
...... ~ - Segv.ndo C. O. Sauer (1084)

O espaço e o tempo das índias não são mais os do m u n d o antigo.


O espaço é imenso, os mares, desconhecidos, e as terras, novas. O tem-
po das Antilhas situa-se na alternância das chuvas e da seca; ele não co-
n h e c e a escanção familiar das festas cristãs e dos trabalhos dos campos
da p e n í n s u l a e transcorre mais rápido do que na E u r o p a - as plantas
produzem duas vezes por ano: "As ervas e os grãos dão frutas e flores sem
interrupção". Mesma apreciação feita, mais tarde, por Pedro de Gand so-
bre o México n o início dos anos 1520: "Esta terra supera todas as outras
terras do m u n d o , j á que não é nem muito quente, n e m muito fria;, a
qualquer momento podemos semear e colher, pois é u m a terra irrigável".
A aceleração do tempo mede-se, também, pela velocidade com a qual o

desterrándose de los deudos y amigos y faltando las medicinas.,.1 Chaunu (1969a), pp. 190,-201-213;
La Torre Villar (1974), p. 51. O caso das filhas Suárez, vindas de uma família que aparentemente não
teve sucesso em sua instalação em Granada, é conhecido graças a López de Gomara (1542), fól. IIIr";
Schâfer (1935), p. 23.
286 HurÓlilA DO NOVÜ MUNDO .

que vem do Velho Mundo é transplantado e aclimatado nas índias, "num


tempo tão breve e em terras tão distantes de nossa Europa". A medida
que inventam novos pontos de referência, os europeus acostumam-se a
viver numa transformação perpétua 22 .
Os espanhóis também são sensíveis às relações extremamente alea-
tórias que mantêm com a península Ibérica. Essa precariedade transfor-
ma as relações entre os grupos e entre os seres. Quando Bernal Díaz lem-
bra que seus companheiros de destino se sentem "tâo longe de Castela,
sem receber qualquer socorro ou auxílio, a não ser aqueles que reserva
a misericórdia de Deus", está expressando um desespero que sufoca con*
tinuamente os descobridores e os conquistadores. Em compensação, a
distância favorece as condutas improvisadas, as decisões individuais e os
questionamentos da autoridade. Nas Ilhas e n a faixa continental, que
começa a ser explorada a partir de 1498, as iniciativas mais desordenadas
são comuns. Não se encontra, evidentemente, naquelas terras virgens de
europeus, nem esquadrinhamento eclesiástico, nem organização senho-
rial, nem costumes ancestrais, ou seja, n e n h u m ponto de referência, ne-
n h u m a estrutura à qual um cristão pudesse estar ligado. Multiplicando
as situações-limite, essa mudança radical de ambiente precipita decisões,
reações, escolhas, que mesclam inextricavelmente um passado que aca-
ba de ser deixado para trás e o presente !das Ilhas, o acúmulo de expe-
riências anteriores e o imprevisível, material com o qual é feita a realidade
das novas índias 23 .
Na aurora do século XVI, enquanto o poder de Colombo, "Almirante
~(^s"TO3s^rfõ?7crèHfna^resistivelmente, a Hispaniola, antes de Cuba,
cha-se com uma população de desenraizados que não se fixa em lugar ne-
nhum, com destino incerto, que, às vezes, não deixava nada a desejar ao
dos indígenas. Em abril de .1502, por volta de duas mil e quinhentas pes-
soas - administradores, clérigos, colonos e aventureiros - desembarcam em
São Domingos juntamente com o novo governador Nicolás de Ovando 24 .
Os imigrantes, em sua maioria, como Las Casas, são originários do
sul da península. Mais tarde, àqueles andaluizes, àquela gente da Estremar
dum, juntsan-se-baaeesraatttrianosi-valencianos, aragáii^éVgtTtpos-xom'
costumes e falas distintas que se consideram uns aos outros como estran-
geiros ou adversários, isso sem contar que a gente do mar não suporta a
da terra e vice-versa. Desde o verão de 1494, genoveses e catalães - o

22. H. Colón (1984), p. 164; La Torre Villar (1974), p. 13.


23. Díaz dei Castillo (1968), t. I, p. 40.
24. Sauer (1984), p. 223.
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partido de Colombo, contra o .de Fray Buil - tinham-se digladiado. Con-


tingentes de delinqüentes exilados nas índias vieram, mais tarde, a engros-
sar as fileiras daqueles que chegavam, o que faz com que Oviedo diga que,
"naqueles começos, toda vez que um nobre de sangue ilustre atravessa-
va o mar, chegavam dez grosseiros e outras linhagens obscuras e baixas".
Os "diferentes tipos de gente", usando os termos de Oviedo, cons-
tituem u m a fonte inesgotável de tensões e de dissensões. A heterogenei-
dade, u n i d a à p e q u e n a quantidade de pessoas, desmonta o j o g o habitual
das relações sociais, assim como revoluciona o sistema de valores. Essa
situação singular n ã o escapa a Oviedo: "Naquelas terras novas, para n ã o
se afastar do p e q u e n o n ú m e r o de pessoas [que somos] devemos, muitas
vezes, dissimular coisas que em outros lugares seria delituoso deixar im-
punes". Para subsistir, é preciso cimentar amizades sólidas como aquela,
por exemplo, que une, n a Hispaniola, Las Casas a Pedro de la Rentería,
companheiro inseparável com quem divide tudo. O clima é tão conflituo-
so nas Ilhas, que Oviedo faz disso u m a característica natural daquelas
regiões; ele metamorfoseia os seres ou exacerba o temperamento espon-
taneamente agressivo dos espanhóis: "Em alguns daqueles q u e chegam
nestas terras, o clima do lugar desperta u m a tendência para as mudan-
ças bruscas [dizia-se novedades ] e para as discórdias" 25 .
A exacerbação das paixões aumenta quando o paraíso se transforma
em i n f e r n o . Poucas semanas depois da chegada do novo governador, e-m
j u n h o de 1502, u m hurricane de uma violência excepcional a f u n d a vinte
dos trinta navios do governador, "sem que u m só h o m e m , p e q u e n o o u
grande"/tenha conseguido escapar, sem que se encontre ninguém, mor-
to ou vivo". Como nos melhores romances de cavalaria, os inimigos do
Almirante acusam Colombo, o Feiticeiro, de ter provocado a tempesta-
de u s a n d o de mágica para fazer os homens pagarem p o r sua desgraça.
Talvez mil e u r o p e u s t e n h a m morrido nos campos auríferos, onde, em
meio a condições materiais desumanas, amontoam-se colonos, garimpei-
ros e mão-de-obra indígena. Muitos sofrem de u m mal estranho que cha-

25. Lockhart e Schivartz (1983), pp. 65-67; Chaunu (1969a), pp. 213-214; Oviedo (1547), fôl. XXr", XVII r":
"por Ia mayor parte en los hombres que exercitan el arte de la mar, ay mucha falta en sus personas y
entendimiento para las cosas de la tierra porque, demás de ser por la mayor parte gente baxa y mal
doçtrinada, son çobdiciosos e inclinados a otrosviçios assi como gula.y.luxuria y rapina y mal sufridos",.
iiL, fól. XXIII r a , XIXv": "en estas tierras nuevas donde por conservar la companía de los poços se ha
d e disimular muchas veces las cosas que en otras partes seria delicto no castigarse", itl., fól. XXr°; Gerbi
(1978), p. 390; Las Casas (1986), T. II, p. 546.
2 9-1 HISTÓRIA DO NOVO MUNDO

mam de modorra, u m a espécie de cansaço que se assemelha à depressão


nervosa: o doente p e r d e a memória, a visão e outros sentidos 2 ".
O "mal das índias" (a sífilis) atacou desde a p r i m e i r a viagem de
Colombo (lembremos dos sofrimentos de Pinzón). Ele acaba com mais
de um terço daqueles que chegam. Para os contemporâneos, para Oviedo
como para Las Casas, a origem e o caminho desse mal n ã o deixam ne-
n h u m a dúvida: saindo das Ilhas com os marinheiros ou com os índios
levados por Colombo, ele chega à Espanha, atravessa o Mediterrâneo,
ataca, em Nápoles, as tropas francesas e assim se torna o "mal francês".
A sífilis estende seus laços de sofrimento e de morte entre a descoberta
da América e as guerras da Itália. Esse mal "contagioso e terrível" apavo-
ra as pessoas: "Como a d o e n ç a era u m a coisa nova, os médicos não a
entendiam e não sabiam curá-la". Alguns índios que parecem conhecê-
la há muito tempo atribuem sua origem às tartarugas de água doce, mas
a explicação n ã o convence Bartolomé de Las Casas que, todavia, evita
p r u d e n t e m e n t e consumi-las. Para fugir das dores lancinantes, alguns es-
p a n h ó i s a p r e n d e m a f u m a r o tabaco, erva d e s c o n h e c i d a e da qual os
índios abusam em seus ritos diabólicos. A promiscuidade das mulheres
indígenas, castas com os naturais, mas "fáceis" com os europeus - pelo
menos é u m a observação que os cronistas gostam de divulgar - , não aju-
da a melhorar a situação 27 .
No entanto, p o r q u e os sofrimentos são equivalentes, os europeus
dão a mesma importância às devastações de um parasita, o bicho-do-pé
(nigua), que se a n i n h a e prolifera debaixo da epiderme, entre os dedos.
' ETe causa muitos p r o b l e m á s s ê n l õ for retirado ã'têinpõ:' , T^Ttõspiêraiàm
os pés por causa dos bichos-do-pé". Oviedo e Las Casas descrevem deta-
lhadamente a m a n e i r a como deve ser retirada, com u m a agulha, a boli-
n h a branca do t a m a n h o de u m a lentilha, e depois de u m grão-de-bico,
que se f o r m a sob a e p i d e r m e e que contém centenas de larvas. Deve-se
esperar para jogá-la fora, para que essa bola tenha atingido seu pleno
desenvolvimento, cuidando para que não estoure a fim de evitar que os
animaizinhos fiquem debaixo da pele ou se incrustem em outras partes

26. Chaunu (1969a), p. 229; H. Colón (1984), p. 178: em 1494, Colombo foi tomado pela modorra, l a cual
d e golpe le privó de la vista, de los otros sentidos y de la memória".
27. Chaunu (1969a), p. 224; Las Casas (1967), t. I, pp. 93, 38; Oviedo (1547), fól. XXv1, XLVIIr": "sé que
ya algunos christianos Io usavan, en especial los que estavan tocados dei mal de las bubas porque dizen
los tales que en aquel tiempo que están así transportados no sienten los dolores de su enfermedad
[...] Al presente muchos d e los negros de los que estan en esta ciudad y en la ysla toda han tomado
la misma costumbre y crian en las haziendas y eredamientos de sus amos esta yerva", iiL, fói. XUXva.
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do corpo. Nos dois casos - bicho-do-pé e "mal das índias" - os espanhóis


observam que os índios são bem menos sensíveis do que eles: os bulbos
reduzem-se, nos indígenas, a uma variedade benigna da varíola, e bichos-
do-pé desprezam aquelas populações que tomam muitos banhos e que
andam descalças, enquanto os europeus calçam alpercatas quando não
usam sapatos e meias (calzas), onde a transpiração se acumula. De-outro
lado, os escravos negros, porque são sujos, não tomam b a n h o e p o r q u e
sua e p i d e r m e é propícia, são devorados pelos bichos-do-pé. L e n d o
Oviedo, percebemos que o grau de imunidade e de limpeza ajusta-se com
bastante exatidão aos grupos étnicos. Outras doenças surgem, como, ao
que parece, a febre amarela que, em 1495, devasta o primeiro estabele-
cimento nas ilhas e dá aos doentes uma cor de açafíão: Oviedo acredita
r e c o n h e c e r a febre do ouro tão cobiçado, simbiose macabra entre o or-
ganismo, o metal e a morte 28 .

OS ROBINSONS DAS CARAÍBAS

Além de tudo, era preciso, para ricos e pobres, suportar a travessia em


barcos podres ou carcomidos pelo teredo (a broma, u m molusco), varridos
pelas ondas e pelo vento, sem nenhum abrigo para proteger-se das trom-
bas-d'água ou do sol dos trópicos, com, no caso de o navio encalhar, o risco
de m o r r e r devorado pelos índios caribes, de ser comido por seus compa-
nheiros - cada qual com sua antropofagia - e, principalmente, de morrer
de sede, a pior de todas as mortes. O mar e os litorais desconhecidos re-
servam provações sobre as quais Oviedo, sempre à procura do vivido, quer
se trate de experiências ordinárias ou extremas, lembra orgulhosamente
"que não p o d e m ser ensinadas a cronistas que não vão ao mar".
Esses dramas dos trópicos estão repletos de marinheiros que aban-
donam covardemente seus passageiros, de derivas sem bússola e de bar-
cos remendados. Náufragos espertos, inspirando-se nas práticas indígenas,
esfregam galhos de madeira para conseguir fazer fogo; outros engolem
a clara dos ovos de tartaruga para enganar a sede, tomam o sangue fres-
co dos animais capturados, ou chegam a mamar n u m a "loba do mar", ou

28. Las Casas (1967), t. 1, pp. 93, 94; Oviedo (1547), fól. XXIr», XVHIr": "Aquellos primeros espanoles que
por acá vinieron quando tornavan a Espaiia, algunos de los que venían en esta demanda dei oro, si
allá bolvían era con la misma color dei, pero .no con aquel lustre, sino hechoj aznmboai o de.color
de açafran o tericia y tan enfermos que luego desde a poco que allá tornavan se morían". Poderia
também ser uma forma de hepatite endêmica, Jacques Ruffié e Jean-Charles Sournia, Lis Êjiidimies dam
1'hisloirt di Vhmmt, Paris, Flammarion, 1984, pp. 179-180.
290 HlsrÓMA DO NOVO MUNDO

seja, u m a m ã e foca, c o r r e n d o o risco de tomar u m a dolorosa m o r d i d a .


Os Robinsons das Caraíbas são também os filhos da descoberta. Transfor-
m a m conchas m a r i n h a s e carapaças de tartarugas e m utensílios d e m e s a
e de cozinha, r e c o l h e m o múrice p a r a traçar, com tinta vermelha em frag-
m e n t o s de mapas, a m e n s a g e m que p o d e r á ser salvadora, fabricam armas
improvisadas p a r a caçar tubarões, para m a t a r o t e m p o e a p r i m o r a r as
refeições. Mas c o n s e g u e m , com mais facilidade, m a t a r as focas, c u j o s
despojos f o r m a m cantis "com as mais estranhas formas" que eles e n c h e m
c o m água doce 2 0 . A sobrevivência d e p e n d e dessas f a c u l d a d e s de adapta-
ção às condições locais, e mais de u m a expedição de d e s c o b e r t a é r e d u - .
zida a inventar i n c a n s a v e l m e n t e substitutos p a r a os objetos e p r o d u t o s
q u e acabam faltando: estopa, b r e u e cordas são fabricados c o m plantas
indígenas ou c o m matérias européias c u i d a d o s a m e n t e recicladas: as ca-
misas servem p a r a fazer velas, as crinas dos cavalos p a r a as cordas.
Não p o d e m o s evitar de lembrar aqui, mesmo sendo posterior a u m a
geração, a errância de Alvar N ú n e z Cabeza de Vaca. Maravilhosamente
contada por seu herói, é u m inventário, r e c h e a d o com muitas peripécias,
dos modos de sobrevivência. U m a odisséia incrível vai levar o d e s c e n d e n t e
d o conquistador da G r a n d e Canária, da Flórida ao delta do Mississipi, e,
depois, d o Texas ao noroeste do México, p o r terra e por mar. Interminá-
vel naufrágio, em que os atores desaparecem u m p o r u m , dizimados pela
fome, pela sede, pelos índios, pelas ondas ou pelos animais. Foi p o r q u e re-
solveu tornar-se m e r c a d o r e porque, depois, aceita o papel de curandeiro,
q u e Cabeza de Vaca salva sua vida e alimenta seu c o r p o n u . A sobrevivên-
^TãTé g à n f f O õ ^ p r ê ç õ ^ d F ü m ã ^ r ç à excepcionãrêlIã~mfêgraçãõlOTçãcia nas
sociedades indígenas, j á que dessa vez as relações de força estão invertidas
e é a vez de os cristãos serem explorados até a m o r t e pelos índios 80 .
Deus salva Cabeza de Vaca e lhe dá a força de s u p o r t a r os maus-tra-
tos. Os Robinsons espanhóis, n ã o podemos esquecê-lo nunca, são t a m b é m
e acima de t u d o h o m e n s de fé q u e se esgotam em penitências e em pro-
cissões para i m p l o r a r a misericórdia celeste. A espera d o milagre e a con-
vicção de q u e a i n t e r v e n ç ã o divina p o d e , a q u a l q u e r m o m e n t o , dar umia
-soteção-às^tuações-m^is-desesperadas^^
descobridores e conquistadores. Oviedo nos l e m b r a disso n u m relato d e
r a r a intensidade.

29. Oviedo (1547), fóls. CLXVIr", CLXIIIr"-v", CLXXVIr", CLXXVMIv11. Remetemos o leitor ao |ivroj/tórao
los Infortúnios j Naufragios de Casos A caecidos en las Mares de las índias e Yslas y Tierra Firme dei Mar Oceano•
que contém, como indica seu titulo, o detalhe dessas catástrofes (fól. CLXIlIr" e ss.).
30. Cabeza de Vaca (1977), pp. 55-56, 86.
AS PORTAS DA AblÊRICA 291

Encalhados ao largo de Cuba, nas ilhas dos Escorpiões, que são tam-
bém chamadas de ilhas das Sepulturas, uns náufragos j á estavam esperan-
do pela m o r t e q u a n d o Santa Ana apareceu para um deles - u m a menina
de onze anos - para contar em qual das ilhotas eles poderiam estancar sua
sede. Então, seu chefe, o licenciado Zuazo, organizou u m a procissão com
seus companheiros de infortúnio. Devorados pelo sol, os homens traçaram
com seus pés nas areias ardentes u m a cruz imensa que dividia de ponta a
ponta sua ilhota desolada, como se fosse um pão com o qual fariam qua-
tro partes iguais. Na intersecção da cruz, a um côvado da superfície, os
náufragos encontraram enfim a água doce qxie salvou suas vidas. Mas an-
tes que eles se lançassem sobre a água, o licenciado ofertou gotas do líqui-
do milagroso ao Cristo em ação de graças e, depois, distribuiu-as a todos
os seus companheiros de infortúnio "como u m a comunhão".
• O u t r o milagre da prece, ainda nas ilhas dos Escorpiões:

Aconteceu que uma pessoa estava recitando uma longa prece que continha o
Gloria in excslsis Deo. Naquele momento [.:.], apareceram cinco grandes focas que
estavam nadando na água perto daquele que rezava. Manifestavam-se alegremente
como se brincassem umas com as outras e viravam seu ventre acima das águas. Pou-
co tempo depois, todos os cinco subiram para a praia e instalaram-se em torno da-
quele que rezava ajoelhado; duas focas colocaram-se de um lado, duas do outro e uma
a sua frente. Adormeceram e os náufragos conseguiram matar uma. Contando com
aquela, o número das focas que mataram e que muitos comeram naquela ilha foi, ao
todo, de trezentos e sessenta e três.

P o d e m o s e n t e n d e r que Oviedo, embora sem muita preocupação,


pudesse falar de "massacre" dos "lobos-do-mar" e que as focas t e n h a m
começado a ficar mais raras nas águas antilhesas. Anos antes, espanhóis tão
esfomeados quanto esses tinham exterminado os "cães" da Hispaniola. Os
mortos de sede, os náufragos que deliram queimados pelo sol, tomando
as nuvens do sol p o e n t e por caravelas que se aproximam, os esqueletos
h u m a n o s que se arrastam nas praias, partem para reunir-se aos fantasmas
sem cabeça de Isabela e às multidões índias n a vala comum da descober-
ta. Oviedo n ã o tem palavras para descrever as perdas dos seus: "Quantos
não ficaram lá para sempre, perdidos ou mortos, afogados nos rios, mui-'
tos deles massacrados p o r aqueles selvagens, a maior parte sem sepultura
sagrada, alguns entre os dentes dos crocodilos, outros nas garras dos tigres,
sem contar a quantidade infinita dos que morreram de fome?" 31 .

31. Oviedo (1547), fól. CLXXrVv", CLXXVIIIv0: "Ovo una persona que rezava una oración prolixa en la qual
entrava Gloria in excelsis Deo. V en aquel passo estando a par dei agua aparecieron cinco lobos my
2 9-1 HISTÓRIA DO NOVO MUNDO

A FORTUNA AO ALCANCE DA MÃO

Mesmo com a fome, a doença, os naufrágios, muitos optaram por


r o m p e r durante um longo tempo, ou para sempre, com o cenário fami-
liar do burgo ibérico ou das cidades atarefadas, com os horizontes tran-
qüilizantes da terra, as devoções das confrarias, o ciclo das festas locais,
a fala do país... Las Casas deixa a agitação de Sevilha, Oviedo a de Madri
e Díaz dei Castillo a de Medina dei Campo. Na verdade, muitos, como
Oviedo e Pizarro, tinham percorrido as estradas da Itália antes de tentar
o caminho das índias. Mas a Itália era, n o máximo, u m p r o l o n g a m e n t o
da península Ibérica, naquela época. A colonização canarina, os caminhos
arriscados do contrabando nas terras da África (pois os portugueses não
brincavam com as tripulações que conseguiam capturar), o tráfico suspei-
to, Oran, Bejaia com seu p e r f u m e de cruzada, preparam, incontestavel-
m e n t e , os espanhóis p a r a os estranhamentos da aventura americana,
mesmo sem possuir seus mistérios ou atingir sua intensidade 3 2 .
Desembarcando nas ilhas, os espanhóis tiveram de e n f r e n t a r todo
tipo de situações-limite e tirar partido delas. Por falta de trigo, eles acos-
tumaram-se pouco a pouco a consumir cassave (bolo de mandioca ou de
yucca ), tartaruga, guaminiquinaje e iguana, se b e m q u e Las Casas não
conseguisse fazê-lo: "Nunca conseguiram me fazer experimentá-lo". Acres-
centam às suas refeições habituais o saboroso manati, u m a espécie de
elefante-marinho "que parece muito com um tipo de saco q u e usamos
para carregar o suco de uva ainda não f e r m e n t a d o em Medina dei Cam-
.pal..De3z^eiii_co.nseguir_satwfazer.se-Gom-pG>ue(>-e-admitir- quei-rtos-trópr-
cos, água fresca é u m a delícia, com um sabor e um aroma incomparáveis,
mais suaves do que a água "que extraímos das rosas, da flor de laranjei-
ra e dos jasmins". Mesmo com as críticas das quais são objeto, os espa-
nhóis experimentam o tabaco e não conseguem mais ficar sem ele. Mais
u m a vez Las Casas, desta vez moralista: "Eu não conseguia e n t e n d e r que

grandes nadando en el agua cerca dei que orava y mostrando con alegria como que retoçavan unos
-eon-otros-^oh-mn-laHmnTgarrricmn^ sánerõn "tó"dos"cinco"en tièrra y
pusieronse alrededor dei que estava en la oración hincado de rodillas; y los dos se pusieron a un lado
y los otros dos al otro y el uno delante dei y començaron a dormir y ovo lugar para matar el uno dellos
y con aquel fueron los lobos que mataron de que muchos comieron en aquella isla trezientos y se-
tenta y tres entre chicos y grandes"; id., fól. XVÍIIr"; Oviedo (1984), p. 261; "quantos et quáles se han
quedado acá de asiento, perdidos o muertos [...] ahogados en los rríos et muchos a manos de estas
gentes salvajes, sin sepoltura sagrada la mayor parte y también algunos en papos de cocatrizes e otros
en las unas de los tigres e infinitos de hambres".
32. Sobre o conceito de exlranamiento de la tierra, ver o cap. 4.
AS PORTAS DA AMÉRICA
293

sabor ou q-ue-proveito eles encontram com isto". É verdade que os indí-


genas costumavam misturar a planta com pós narcóticos que acentuavam
seus deliciosos efeitos. De outro lado, eles aprendem a privar-se de vinho
(caríssimo e impossível de encontrar), de européias e a superar o medo
dos bubos venéreos que suas companheiras indígenas, aliás tão tentado-
ras, deviam transmitir. Os invasores assimilam rudimentos do taino e
comerciam a preço de ouro os menores objetos importados da Espanha.
Mandam construir cabanas que perdem, na comparação, dos casebres
flamengos, deslocam-se em canoa ao longo do litoral e nos rios, embalam-
se e dormem em redes, mesmo se suas costas sofrem. Milho, piroga, ca-
noa, cacique... são algumas das palavras indígenas que, por via do caste-
lhano, chegam às línguas européias'13.

Contudo, de um dia para o outro, a fortuna pode sorrir, se o ter-


reno onde estiverem garimpando esconder o ouro tão cobiçado. Essa es-
perança é o motor da descoberta e da ocupação das Ilhas. Aqueles que
sobrevivem sonham em comer em louça de ouro, e Oviedo - que não es-
quece nada - conta que, um dia, alguns felizardos mandaram servir um
leitão cozido sobre uma gigantesca pepita de ouro que uma índia encon-
trara. Las Casas registra a resposta de um velhinho a quem perguntava
pela razão de sua partida para as índias: "Com toda certeza, Senhor, para
morrer mais tarde e para deixar meus filhos numa terra livre e feliz"3''.
E verdade que as índias se tornavam um prodigioso acelerador social. Os
protagonistas da descoberta e da.conquista têm uma origem obscura ou
modesta, a começar por Cristóvão Colombo, "nascido num lugar humil-
de ou de pais miseráveis", que recebe o título prestigioso de Almirante
do Mar Oceano, cujos filhos são educados na corte e cujo neto será fei-
to duque de Veraguas (Panamá). Filho de um mercador converso, Las Ca-
sas, por outros caminhos, vai construir um prestígio e uma influência sem
iguais, denunciando magistralmente a conquista da América e a servidão
dos índios. Pedro Mártir, Américo Vespúcio, os Cabot, graças ao Novo
Mundo, ocupam, a um ou outro momento, a frente da cena oceânica.
Pedro Mártir chegou a ser o correspondente mais ouvido do papa, Cabot

33. H. Colón (1984), p. 162; Las Casas (1986), t. II, p. 513; t. I, p. 231; Oviedo (1547), fóls. CLXXIXv'
XCmr" (as observações sobre o modo de contágio): "Está averiguado que este mal es contagioso y que
se pega de muchas maneras: assi en usar el sano de las ropas dei que está enfermo de aquesta passión
como en el comer y bever en ,u compaíía o en los platos y taças con que el doliente come o beve, Y
mucho mas de dormir en una cama y participar de sü alienfo f sudòí Ymuchos más nviendo excesso
carnal con alguna muger enferma deste mal, o la muger sana con ei hombre que estuvise tocado de
tal sospecha", fói. XLIXr".
34. Aí., fól. XXVIII; Las Casas (1986), t. III, pp. 191-192.
2 9-1 HISTÓRIA DO NOVO MUNDO

é Condecorado com o título.de almirante, Colombo, e .depois Cortês,


elevam-se à altura de seus soberanos, orgulho que, de outro lado, vai
acelerar sua queda 88 .
Se, às vezes, estranhas famílias desembarcam - como u m a p o b r e
mulher de Granada, com um filho e quatro filhas das quais u m a vai cair
nos braços de H e r n á n Cortês aqueles que chegam são, em sua maio-
ria, homens sós, solteiros ou casados que deixaram mulher, amante e fi-
lhos n a Espanha. Como a astúcia e a teimosia, a j u v e n t u d e e a mobilida-
de dão a quem quer sobreviver e enriquecer atributos indispensáveis. Lás
Casas está com dezoito anos, Bernal Díaz e Cortês com dezenove, quan-
do atravessam o Atlântico. O f u t u r o conquistador do México responde a
u m amigo que p r o p õ e que permaneça n a Hispaniola e q u e aceite ficar
lá por pelo menos cinco anos para aproveitar dos privilégios reservados
aos residentes (vecinos): "Nem nesta ilha, n e m em n e n h u m a outra, não
tenho a intenção nem o pensamento de ficar aqui por muito tempo; é por
isto que não ficarei p o r aqui nestas condições". Bem que as autoridades
tinham tentado atrair camponeses e artesãos, embarcar famílias inteiras,
favorecer a chegada dos bascos, que julgavam muito numerosos em Gui-
púzcoa. Burgos, villas, deveriam reuni-los. São Domingos tornou-se, assim,
a primeira cidade do Novo Mundo, com seus edifícios públicos e sua plan-
ta em f o r m a de tabuleiro q u e se vai repetir infinitas vezes em todo o
continente americano. ,
Os recém-chegados reconstituem u m a vida urbana à imagem da vida
n a metrópole. A cidade, ou o burgo, e a organização municipal são o
suporte e o ponto de partida das empresas de colonização n o Novo Mun-
do. Contudo, a regularidade da planta urbana, a disposição em torno de
u m a praça central das principais construções civis e eclesiásticas, a exis-
tência de um centro estruturado a partir do qual a aglomeração p o d e r á
expandir-se de f o r m a geometricamente ordenada, fazem surgir um am-
biente inédito. O quadro americano rompe radicalmente com a organi-
zação tradicional do habitai medieval, mesmo que as construções j á esti-
vessem r e u n i n d o em potencial, ou de f o r m a desi^^,. < a^ria^OTj|.desses
elementos. AsUitlas, muirárverésTrrfteTávêís, qüe deveriam reter e fixar
os recém-chegados, revelam-se lugar de descanso provisório que os habi-
tantes apressam-se em deixar assim que têm alguma esperança de conse-
guir, em outro lugar, um destino melhor, índios e ouro. Burgos fantasmas,
que acabam desaparecendo dos mapas e sobre os quais, meio século
depois, não se sabe mais nada. Os europeus vivem 110 presente, em bus-

35. H. Colón (1984), p, 82: "humlli loco seu a parentibui pauperrimus ortus".
307
/t.S PORTAS DA AMÉRICA

....ca de-um lucro rápido: "Elespreferem seu interesse imediato", e isso tam-
bém é a América 30 .
A Igreja consegue colocar alguma ordem entre os mais favorecidos,
aqueles que receberam índios em concessão, ou seja, em encomienda ou re-
partimiento, para explorar sua força de trabalho. As instruções entregues
ao governador Ovando estipulavam que os casamentos mistos encorajavam
a cristianização; em 1514, u m a parte dos espanhóis casou-se, e até, o que
é mais espantoso, um h o m e m em cada três tomou uma mulher indígena.
É p o r q u e havia "uma g r a n d e escassez de mulheres de Castela". Mas as
jovens antilhesas não agradam a todos os europeus. Como revela Oviedo,
que provavelmente partilha dessa aversão: "Havia muito mais homens que
não se casariam com elas por nada no m u n d o por causa de sua incapaci-
dade e de sua feiúra". O que não exclui os contatos furtivos ou as ligações
fora do casamento amplamente toleradas, embora fossem sempre perigo-
sas, pois a sífilis, ou seja, Deus, castiga os espanhóis incontinentes.
A chegada, naquelas índias, de um contingente de européias jovens
e solteiras vai ser, por muito tempo, um acontecimento marcado e apre-
ciado p o r h o m e n s "carentes" que enchem as ilhas. Aquelas que acompa-
n h a m a vice-rainha Maria de Toledo, esposa de Diego Colombo, ou pelo
m e n o s as mais sedutoras, vêm caçar mineiros ricos que as salvarão da
miséria ibérica. O casamento com u m a indígena - ou com maior freqüên-
cia, a ligação - acrescenta a essas sociedades moventes e incertas de seu
f u t u r o o elemento p e r t u r b a d o r que o mestiço encarna. Podemos imagi-
nar sem dificuldades, à margem dessas uniões cristãs, miríades de casais
mistos mais ou menos efêmeros, filhos brutalmente abandonados ou sim-
plesmente entregues a sua própria sorte. Em 1498, a coroa autoriza os
espanhóis que estão voltando para a península a trazer suas companhei-
ras como escravas, estipulando que os filhos desses casais seriam decla-
rados livres. Legítimos ou não, os pequenos mestiços traduzem em seu
corpo o encontro de dois mundos; eles repercutem e amplificam o de-
senraizamento dos dois lados, com tanto mais intensidade quanto o gru-
po dos invasores é um m u n d o masculino feito de um bando de adultos,
sem m u l h e r e sem filhos, que não está n e m u m pouco p r e p a r a d o para
assumir sua prole insular 37 .

36. Las Casas (1986), t. II, p. 530; DeRclms Ceslis (1971), p. 317; López de Gomara (1552), fól. Ilv"; Sauer
(1984), pp. 298, 233, 301.
37. Lockhart e Schwartz (1983), pp. 68-70; Garrido Aranda (1980), p. 208; Sauer (1984), p. 300; Oviedo
(1547), fól. XXXVv°; "aunque aigunos christianos se casavan con Índias, avia otros muchos mas que
por ninguna cosa las tomaran en matrimonio por la incapacidad y fealdad dellas", fól, XXXVv"; Las
2 9-1 HISTÓRIA DO NOVO MUNDO

Naquela fronteira americana do m u n d o ocidental, nos primeiros


anos do século XVI, o provisório, o efêmero e o instável são a regra para
os europeus, assim como a exploração, o esgotamento e a m o r t e para os
índios. Fortunas consideráveis são reunidas: o mercador Nicuesa r e ú n e
fundos que permitem o financiamento da colonização da Castela de Ouro,
na costa atlântica do istmo do Panamá e da Colômbia. De fato, os verda-
deiros beneficiários cia colonização são os mercadores, que fornecem aos
conquistadores o abastecimento e os objetos manufaturados dos quais pre-
cisam, em troca do ouro que estes pilharam ou que tiraram de suas con-
cessões. Cordão umbilical com a metrópole distante, trazem as notícias
e o correio e d r e n a m para ela o metal precioso. Como os conquistado-
res, formam redes tentaculares cujos membros, investidores, representan-
tes e intermediários, dividem-se entre as cidades de Castela, Sevilha e a
Hispaniola. Sua f o r t u n a está ligada aos acontecimentos da descoberta, ao
sucesso das expedições e da pilhagem, e seus lucros p o d e m ultrapassar
os duzentos por cento a não ser que a falência ou os naufrágios os engu-
lam. Para os mercadores, o momento, esperado fervorosamente, da fun-
dição dos metais preciosos - quando todo o ouro recolhido era fundido,
avaliado e depois redistribuído entre os conquistadores - dá o ritmo do
movimento dos negócios e do crédito.
As disputas t a m b é m prosperam. Os processos multiplicam-se, os
advogados enriquecem e reinvestem seus lucros nas expedições em dire-
ção às Ilhas e ao continente. "O capital que foi acumulado na ilha naquela
época de prosperidade financiou maciçamente a ocupação da Terra Fir-
me;" H e r n á n Cõríêrê"ünTclesses C&aíBíaesembarcad5is^Esp'^Tiã'sèln'
ter feito carreira lá, mas que se mostram indispensáveis nas Ilhas. O pou-
co de ordem que reina na região repousa nesses técnicos q u e conhecem
as leis, que sabem escrever e que sabem também cobrar b e m por seus
serviços e seus pergaminhos. Um verniz de estudos em Salamanca ou com
u m tabelião de Valladolid, o conhecimento das Siete Partidas, o velho
código castelhano que vinha do século XIII, tornam-se aqui atributos tão
preciosos quanto u m a mina de ouro. Isso vai ser suficiente para que um
Gortés-íirv^de-tabel-ião-n^Hisp&mol-a-duran te-seis-bons anos. O- que não
o impede de sonhar:

Casai (1967), t. II, p. 93: "es cosa muy averiguada que todos los esparioles incontinentes que en esta
isla no tuvieron la virtud de la castidad, fueron contaminadas dellas, y de ciento no se escapaba quizá
uno si no era cuando la otra parte nunca las habia tenido"; H. Colón (1984), p. 249.
/t.S PORTAS DA AMÉRICA 307

.. Adormecido, certatarde. ele sonhou que estava, repentinamente, livre de sua


pobreza, via-se coberto com tecidos ricos e servido por muitas pessoas estranhas, que
lhe davam títulos para sua honra e sua glória; acontecia que grandes senhores daque-
las índias e o resto de seus habitantes manifestavam tal respeito para com ele que o
chamavam de Teult - o que significa deus, filho do sol e grande senhor - e davam-lhe
assim outros títulos que o cobriam de honra. Mesmo sabendo, como homem razoá-
vel e bom cristão, quç não se devia acreditar nos sonhos, alegrou-se, pois o sonho era
conforme a seus pensamentos 38 .

Quanto àqueles que também sonham mas que não receberam nada,
n e m u m só índio, e que os censos ignoram, esses fervem do desejo de
a c o m p a n h a r o capitão que vai garantir-lhes, em outro lugar, o que His-
paniola não lhes dá. Bandos de espanhóis insatisfeitos, mal recompensa-
dos ou deixados ao léu, estão prontos para partir em direção às ilhas
misteriosas em busca da fortuna e da glória. Vai ser com esse impulso que
Ponce de León e Vásquez de Ayllón descobrem a Flórida (1513) e as Ca-
rolinas, que Gil González de Ávila desembarca na América Central (1526)
e Juán de Ampués na Venezuela (1528). Nesse momento, a história bifur-
ca-se, e é preciso, para não interromper o relato, passar temporariamente
p o r cima do litoral do Panamá e da América do Sul para seguir o itine-
rário que leva Cortês da Hispaniola para Cuba e de Cuba para as gran-
des terras do Poente 3 0 .

CUBA, TRAGÉDIA INDÍGENA E MELODRAMA IBÉRICO (1511-1517)

A partir de 1510, alguns grupos deixam a Hispaniola, j á exaurida,


em direção a Jamaica, a Porto Rico ou a Terra Firme. A ocupação e a
conquista de Cuba remontam ao ano de 1511. Alguns colonos sem tra-
balho - dentre os quais Hernán Cortês - pensavam em passar para Cuba

38. Sauer (1984), p. 234; Lockhart e Otte (1976), pp. 17-27; Cortês (1986), p. XLVII; Cervantes de Snlazar
(1985), p. 100: "estando en Azúa sirviendo el oficio de escribano, adurmiéndose una tarde sofiá que
subitamente, desnudo de la antigua pobreza, se via cubrir de ricos panos y servir de muchas gentes
extranas, llamândole con títulos de grande honra y alabanza; y fue asl que grandes senorei destas
índias y los demás moradores dellas le tuvieron en tan gran veneraciôn que le llamaban teuU, que
quiere decir 'dios y hijo dei sol y gran senor', dándole desta manera otros títulos muy honrosos; y
aunque 61 como sábio y buen cristiano sabia que a los suenos no se había de dar crédito, todavia se
alegro porque el sueno había sido conforme a sus pensamientos...". Sobre a formação de Cortês e
seu universo mental, Elliott (1989), pp. 2741.
39. Sauer (1984), p. 299.
2 9-1 HISTÓRIA DO NOVO MUNDO

quando o filho do Almirante, Diego Colombo - que sucedeu a Ovando


n o cargo de governador - designou para comandar a expedição um ve-
terano que servira dezessete anos na Hispaniola, Diego Velázquez. Era um
castelhano de Cuellar, u m burgo próximo a Segóvia. O h o m e m era ex-
periente, mas constrangido por sua obesidade. Velázquez tinha-se ilustra-
do orquestrando, j u n t a m e n t e com o governador Ovando, o massacre dos
caciques de Xaraguá, na parte ocidental de Hispaniola. Um massacre
preventivo, destinado a impedir u m a possível rebelião, e que decapitou
as sociedades locais: Cortês, que desembarcou u m a n o depois, não vai
esquecer da lição ou da receita. Ligado a Velázquez, e m p u r r a d o por seus
companheiros, ele se lança na aventura cubana "esperando que o futu-
ro fosse melhor do que o presente". Em 1511, a expedição parte da His-
paniola - três ou quatro navios e trezentos colonos - e três anos depois
seis villasjá tinham sido fundadas em Cuba; o renome dos veios auríferos
atrai os colonos. Os índios foram divididos, mas n e m todos os espanhóis
conseguem ter os seus 40 .
A história sinistra da Hispaniola repete-se em Cuba. As imagens de
morte desfilam ainda mais rápido. Embora fosse maior, a ilha de Cuba
possuía menos ouro e menos indígenas. Os mesmos quadros vermelho-
sangue: fuga desesperada dos índios frente aos cavalos, procura do me-
tal precioso, exploração exagerada das minas, dos homens, das mulheres
e das crianças, vilas despovoadas, indígenas dispersos, refugiados na Sier-
ra Maestra ou d e p o r t a d o s para outras minas, culturas d e subsistência
abandonadas; os mais jovens e os velhos agonizam, esfomeados... As Leis
"(Tê~BürgõrXI5I2J p o d e m reafirmar a vontade a liberdade dos i n d í õ s T
regularizar a prática da encomienda, que a escravidão e a exploração re-
dobram de intensidade. Bartolomé de Las Casas, que possuía, ele mesmo,
um repartimiento na ilha, dará dela, anos depois, u m a descrição éntriste-
cedora. A agonia da Cuba indígena marca o paroxismo da tragédia das
Ilhas e precipita a conversão de Bartolomé, j á tocado pelas pregações dos
dominicanos da Hispaniola. Em 1515, o abade, apoiado pela afeição de
seu amigo Pedro de la Rentería, abdica de seu repartimiento: "O. abade e
-Ren teria, •qtte-era-realnrente-ttm-bom^homem-rsenriram-qu-aseaomesmo-
tempo um movimento de compaixão por aqueles povos e resolveram,
simultaneamente, voltar para Castela para conseguir, j u n t o ao rei, um
remédio para aquelas calamidades" 41 .

40. I I , pp. 26, 281; De Relms Geslis (1971), p. S20.


41. Las Casas (1986), t, II, pp. 527, 535; Saint-Lu (1971), p. 89,
29-1HISTÓRIA DO NOVO MUNDO

Por cima dessa trama apocalíptica trabalha o m u n d o movente dos


colonos que partiram para Hispaniola em busca de um ouro que se esgota
inelutavelmente. Assim como Ponce de León, o descobridor da Flórida,
ou Pedrarias, o h o m e m do Darién, Diego Veiázquez pertence aos clãs que,
no início dos anos 1510, apressam a exploração das Antilhas. Trocas de
favores e de proteções ligam-nos ao bispo de Burgos, Rodríguez de Fon-
seca, ao secretário Lope de Conchillos, ao tesoureiro Pasamonte, ao cír-
culo judeu-cristão e aragonês de Fernando, o Católico. As loucas iniciati-
vas dos descobridores e as brutalidades dos conquistadores não devem nos
fazer esquecer de que, n a Espanha, a dupla Fonseca-Conchillos consegue
o milagre de monopolizar durante anos os "negócios das índias", contro-
lando com u m a m ã o de mestre, por meio de "capitulações", todas as fa-
ses da exploração das novas terras. Mais tarde, os flamengos, que acon-
selham o f u t u r o imperador, e entre os quais encontramos "Monsieur de
Chièvres" - o ávido Guilherme de Croy, vindo de u m a antiga família da
Picardia vão-se reunir ao grupo. Diego Veiázquez até pensou em casar-
se com a sobrinha do bispo Rodríguez de Fonseca, que as más línguas
diziam ser filha do prelado.
É preciso ter em mente essas gigantescas redes de alianças, essas ar-
quiteturas de cumplicidades, de favores grandes e pequenos, prestados òu
por prestar, como eixos em volta cios quais se aglutinam e se organizam os
colonos (poblaclores) e os funcionários das Ilhas. Das índias, essas redes che-
gam, na Espanha, aos protetores influentes, à alta aristocracia, aos membros
do Conselho real, ou até ao rei. Por exemplo, por que Nicolás de Ovando
-perd^-em _ 150^eB^wmO""cta:r"ínclias para ü i e g o (^IõníBõ?~Porquê"õ~
filho mais-velho do Almirante casara com uma sobrinha do d u q u e de Alba
(que possuía a vantagem de ser primo-irmão de F e r n a n d o ) e Fonseca-
Conchillos e seus clientes na ilha conspiraram para sua eliminação 42 .
O governador de Cuba mantém-se, em princípio, submetido às auto-
ridades da Hispaniola. Mas, graças a suas brilhantes amizades metropo-
litanas, Diego Veiázquez dispõe de uma ampla margem de ação, levando
uma vida faustosa n a p o n t a sudeste da ilha, em Santiago. O governador

compra os representantes das "comunidades" de europeus, mas espalha


o descontentamento entre aqueles que lança na miséria. E verdade que
Veiázquez governava sem nunca se deslocar, sobretudo p o r q u e sua obe-
sidade impedia-o de lançar-se em novas empresas. O governador prefe-

42. Sobre estes contratos de exploração que são as capitulações, ver o cap. 5 da Parte II e Diego Fernández
(1987); Oviedo (1547), fól. XXXIVv*.
/t.S PORTAS DA AMÉRICA 307

r e patrocinar e manipular de longe as expedições q u e promove. Azar


dele, pois o p o d e r e a corrupção funcionam mal a distância".
A condição dos espanhóis instalados em Cuba, assim como nas ou-
tras ilhas, varia muito. Os representantes da coroa, os "homens ricos" que
receberam pueblos de índios que exploram até o esgotamento - entre eles
H e r n á n Cortês... - esmagam com seu desprezo os soldados pobres, incli-
nados a partir de novo para tentar a sorte. Hidalgos, h o m e n s de armas,
artilheiros, possuem, às vezes, a experiência das guerras da Itália: esse é
o caso de Umberto de Umbria a quem Cortês entregará sua artilharia n o
México. Outros fizeram seu batismo de armas massacrando índios insu-
lares por ocasião de alguma revolta ou razia. Eles têm todo o tempo para
ganhar experiência durante a conquista de Cuba, j u n t o a Cortês, que "se
esgotava nas manobras, nas marchas e nas sentinelas" 44 .
Pilotos esperam ser empregados, como Antón de Alaminos, nascido
em Paios. Q u a n d o criança, Alaminos acompanhara Colombo. Adulto, ele
guiará Ponce de León em direção à Flórida, em 1513, antes de participar
das três expedições lançadas em direção ao litoral mexicano. Ele vai-se
tornar um dos maiores conhecedores das correntes do golfo do México
e o descobridor da grande rota de volta para Sevilha, pelo canal de Iucatã
e pelo estreito da Flórida. Cuba também conta com alguns mercadores
que constroem fortunas vendendo alimentos e equipamentos às tripula-
ções que ligam as ilhas à Terra Firme, à Castela de O u r o e ao Panamá.
Evidentemente, os habitantes do litoral e os habitantes do interior da
Espanha, marinheiros e soldados, não gostam muito uns dos outros aqui
também. O antagonismo é ainda mais acentuado entre os marinheiros
levantinos e os homens de tropa. Os levantinos são, em geral, gregos do
Mediterrâneo ocidental, às vezes escravos mouros capturados pelos cris-
tãos. Excluídos dos lucros mas não dos perigos, são os esquecidos da
Conquista e da Descoberta, "pois não recebemos salário, só ganhamos a
fome, a sede, as provações e os ferimentos". Pequenos mercadores fretam
canoas indígenas e alugam remadores para transportar cargas de camise-
tas de algodão. Poucas européias, como na Hispaniola, mas as mais bonitas
são festejadas e sonham com ricos casamentos que, u m dia, farão delas
grandes damas. Os cavalos, assim como os negros e as mulheres, são ra-
ros e caros. Se ainda não existem bovinos e ovinos na ilha, os rebanhos
de porcos prosperam - Veiázquez projeta, para 1514, o n ú m e r o de trinta
mil cabeças - e destroem as culturas de subsistência e a fauna local - a

43. Cortês (1963), p. 26; Saucr (1984), p. 319.


44. De Réus Gtslis (1971), pp. 318, 324.
AS PORTAS DA AMÉRÍCA

hutia, um r o e d o r comestível d e carne saborosa, é dizimada - , enquanto


os naturais, massacrados e esfomeados, desaparecem. O u seja, a mesma
rotina sinistra das primeiras ondas de ocupação 4 3 .
Fora das redes de clientelismo e de amizade, dos laços familiares ou
dos apadrinhamentos, o indivíduo n ã o tem valor. Afinidades regionais
muitas vezes suscitam amizades assim como estimulam rivalidades, a tal
p o n t o que, uns anos mais tarde, durante a conquista do México, Cortês
vai p o d e r apresentar seu conflito com Narváez, enviado p o r Veiázquez
para eliminá-lo da cena mexicana, como u m e n f r e n t a m e n t ó entre caste-
lhanos e bascos: "Nós somos do interior da velha Castela [...], mas esse
capitão e a g e n t e q u e traz vêm de outra província q u e chamamos de
Biscaia, e falam como os índios otomíes das redondezas de México". Pura
e simples transposição do desprezo que seus interlocutores mexicas sen-
tiam pelos otomíes, cuja rusticidade satirizavam. Em todo caso, muito
antes da conquista do México, Cuba tornou-se, depois da Hispaniola, o
que p o d e m o s chamar de "saco de gatos" 46 .
Voltemos a Cortês. O modesto h o m e m de lei - letrado - que desem-
barcou n a s índias estava ligado a Medina, secretário do governador
Nicolás de Ovando. Muito mais do que na velha Europa, um h o m e m sem
apoio é, aqui, u m h o m e m perdido, e os desenraizamentos das índias
promovem seu antídoto imediato: a amizade oportuna de Medina. Cortês
conseguiu a proteção de Diego Veiázquez e, por ocasião da conquista de
Cuba, r e f o r ç o u suas relações com o governador: "É o maior dos meus
amigos". O governador de Cuba foi p a d r i n h o de u m de seus filhos. Es-
;sas~Tela~ções~de amizade e de apadrinhamento, que têm u m papel funda-
mental nas sociedades ibéricas* desdobravam-se em relações de ordem
profissional. Segundo Las Casas, foi por "ter estudado direito em Sala-
manca e conseguido o título de bacharel", que Cortês ocupou as funções
de tabelião n u m burgo da Hispaniola antes de se tornar um dos dois se-
cretários de Veiázquez e o alcalde ordinário de Santiago de Cuba. Mas a
extensão de u m a rede de amizades pode questionar situações adquiridas
e provocar reações imediatas. Imediatamente, parentes, amigos e clien-
tes do governador trabalham para solapar a influência desse astro em
ascensão fazendo com que Veiázquez perdesse a confiança em Cortês, e
fazendo com q u e o jogasse na prisão. Mas Veiázquez, após algumas peri-

45. Siiuer (1984), pp. 325, 284; Díaz dei Castillo (1968), 1.1, pp. 55,57, 92; Las Casas (1986), t. II, p. 512;
López de Gomara (1552), fól. IHr".
46. Díaz dei Castillo (1968), t. I, p. 347.
2 9-1
HISTÓRIA DO NOVO MUNDO

pécias, devolve-lhe sua confiança. E os dois homens, em sinal de recon-


ciliação, dividem a mesma refeição e a mesma cama, c o m o ditava o cos-
tume. Isso é, pelo menos, o que conta López de Gomara que, segundo
Las Casas, "ajeita muitas coisas em proveito de Cortês" 47 .
Esses laços quase físicos são feitos e desmanchados s e g u n d o os in-
teresses, os humores, os ciúmes e as traições. As raras mulheres da ilha
tomam parte nesses acontecimentos. As lindas irmãs Juárez encantam os
corações e provocam u m a briga entre Cortês e Velázquez. Nada está ga-
rantido para n i n g u é m . Essas reviravoltas desenham u m círculo dirigen-
te distinto do m u n d o dos aventureiros sem um tostão q u e ele comanda,
mas que tem u m a sorte tão instável quanto a deles, em todo caso certa-
mente indiferente ao destino dos índios de quem d e n u n c i a m a hipocri-
sia ("são todos mentirosos"), a poligamia generalizada, as uniões efême-
ras, rompidas por nada, repetindo estereótipos destinados a u m grande
f u t u r o no continente americano 4 8 .

A IMPACIÊNCIA DE BERNAL DÍAZ (1517)

A riqueza fácil ou inacessível, a inação, o tédio, as intrigas, as mu-


lheres... T u d o isso preocupa Bernal Díaz dei Castillo q u a n d o reclama dos
"vícios de Cuba". U m dos cronistas mais notáveis de seu século, era ain-
da apenas u m rapaz q u e n ã o conseguia ficar quieto. Bernal Díaz dei
Castillo nascera em Medina dei Campo, por volta de 1495, n u m a família

feiras, o n d e a corte p e r m a n e c e u por mais d e u m a vez, Bernal Díaz con-


seguira, sem dificuldades, acompanhar os acontecimentos das Ilhas, ou-
vir os relatos dos mercadores e dos navegadores, observar os objetos e os
produtos que vinham do Novo Mundo 49 . Tinha dezenove anos - a idade
de Cortês por ocasião de sua travessia - quando, em 1514, embarcou para
as índias j u n t o com Pedrarias, n o m e a d o para o cargo de governador da
Tierra Firme, a Terra Firme. A expedição acabou mal, mas voltaremos a
^ i í ^ p é ^ t F ê s ^ v - q u a t r ^ m ^ e S r ^ - d o e - n ç a - d e - v a s t & ^ a - c i d a d e • de Nombre
de Dios, situada n o litoral atlântico do Panamá: "Matou uns, e os outros

47. De Rtbm Geslis (1971), p. 324; López de Gomara (1552), fól. Itv=; Las Casas (1986). t. II, p. 530: "Tuvo
Cortês un hijo o hija, no sé si en su mujer y suplico a Diego Velázquez que tuviese por bien de se io
sacar de la pila en el baptismo y ser su compadre"; kl, p. 528; López de Gomara (1552), fól. IIIv".
48. Dt Rebus Cislis (1971), p. 338.
49. Saenz de Santa Maria (1984), p. 48.
/t.S PORTAS DA AMÉRICA 307

O Novo M u n d o p o r volta-de 1511


Pedro Mártir, Oceani Becas, Séville, Jacob Cromberger
1511 (Bibliothèque Mazarine)

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2 9-1
HISTÓRIA DO NOVO MUNDO

guardaram dela feios ferimentos nas pernas". Aquela porção do continen-


te não tinha nada a oferecer a Bernal Díaz e a seus companheiros, que
chegavam tarde demais para dividir seus despojos. Decepcionado, foi para
Cuba, contando com a proteção de Diego Velázquez a quem era ligado
d e longe: " Era de sua família'" 0 .
1515, 1516, dois anos que transcorreram na inação - "Não fizemos
nada que merecesse ser contado". Mas vão ser suficientes para ele desco-
brir que n ã o gosta dos espanhóis das Ilhas e para recusar a ajuda do go-
vernador de Cuba que lhe oferece ou dá vagamente a e n t e n d e r que ele
espere por u m a dotação de índios, "dos primeiros que estariam vagos".
"Não fiquei atrapalhado pelos muitos vícios que grassavam n a ilha de
Cuba." Siempre fui adelante. Traduzindo, "nunca fiquei n u m só lugar"...
Cortes não dizia nada de muito diferente dez anos antes. Aos vinte e dois
anos, em 1517, Bernal Díaz resolve unir-se à primeira expedição com
destino ao México, enquanto Oviedo e Las Casas estarão fora da grandi-
osa aventura. Oviedo, que também acompanhara Pedrarias na Castela de
Ouro, voltou para a Espanha em 1515 e reuniu-se ao rei Carlos em Bru-
xelas no ano seguinte. De maio de 1517 a novembro de 1520, Las Casas
também se encontrava n a Espanha o n d e , sobre a questão dos índios,
enfrentava Oviedo, a q u e m odiava, e que sentia o mesmo em relação a
ele. Como Pedro Mártir, que entra naquela época no Conselho das índi-
as, ou melhor, naquilo que o substitui, o cronista madrilense ficará redu-
zido a descrever um México que n u n c a verá 51 .

A DESCOBERTA DO MÉXICO (1517-1518)

O Almirante do Mar Oceano aconselhara aos Reis Católicos que


prosseguissem obstinadamente com a descoberta, "porque, n a verdade,
se não f o r agora, em algum outro m o m e n t o encontraremos algo de im-
portante". Não é impossível que a península de Iucatã tenha sido vaga-
m e n t e localizada por pilotos espanhóis antes de Q mzip^ gravado
n a madei'rd''~qiTei'Irrefra~'ff^Tto Pedro Mártir

50. Díaz dei Castillo (1968), t. I, p. 9; Saenz de Santa Maria (1984), p. 49.
51. Díaz dei Castillo (1968), t. I, pp. 43, 42: "siempre fui adelante y no me quedé rezagado en los muchos
vicios que había en la isla de Cuba, según más claro verán en esta relación". O padre Las Casas, dedi-
cado de corpo e alma aos índios, enfrentou o pragmatismo do conquistador "esclarecido": o primei-
ro condenava a destruição das índias, enquanto o segundo, Oviedo, o administrador, contentava-se
em denunciar as falhas.
/t.S PORTAS DA AMÉRICA 307

• comporta os contornos de u m a península com a m e n ç ã o "Baía dos Cai-


mãs". O mapa cie Canerio (por volta de 1503) j á assinalava, a oeste, u m a
ponta de terra onde figurava um "rio dos Caimãs". Em todo caso, devia-
se tratar de informações imprecisas que não devem ter atraído a atenção,
mesmo que alguns se tenham perguntado de onde vinham os índios que
desembarcavam em Cuba ou que chegavam n o Darién falando de outras
terras l o n g í n q u a s e misteriosas. Mas n a q u e l e universo com limites
movèntes, imperceptíveis, tantos boatos corriam e tantas notícias podiam
fazer recuar hoje o que era o horizonte de ontem.
Em 1502, Colombo encontrará, ao largo de Honduras, uma embar-
cação de dimensões respeitáveis "tão comprida quanto u m a galera", cujas
mercadorias e os índios intrigaram-no. Seria possível identificá-los aos po-
chtecas vindos do México ou aos m e r c a d o r e s maias acostumados com
aquelas águas? O Almirante n ã o deixara de r e p a r a r nas mulheres que
cobriam o corpo e o rosto como as mouras de Granada. A referência a
Granada n u n c a é casual: nesse como em outros casos sugeria a presença
de u m a sociedade não cristã mas civilizada, à maneira do povo que a Es-
p a n h a dos Reis Católicos acabava de vencer. No Panamá, da mesma for-
ma, o Almirante tinha descoberto os primeiros sinais de construções em
p e d r a e m a n d a r a arrancar "um pedaço como lembrança desta antigüida-
de". Na verdade, ninguém parece ter suspeitado do universo que, uma vez
passados os cento e sessenta quilômetros do canal de Iucatã, se estendia
além daquela "baía dos Caimãs". Ninguém, a n ã o ser, talvez, o piloto Ala-
minos que confiou sua intuição a um hidalgo amigo de Las Casas, Hernán-
dez de Córdoba: "Do lado daquele mar do Poente, abaixo da ilha de
Cuba, seu coração dizia que devia existir alguma tèrra muito rica" 32 .
Bernal Díaz e os espanhóis de Cuba que não tinham recebido índios,
ao todo u m a centena de pessoas, resolveram "reunir-se" para montar uma
expedição colocada sob a chefia de H e r n á n d e z de Córdoba "para ir cor-
rer atrás da nossa sorte, procurar e descobrir terras novas para empregar
nesta tarefa nossas pessoas". Em 1517, a tropa fretou dois navios, o gover-
n a d o r Velázquez forneceu um terceiro em troca da pilhagem de algumas
ilhas no caminho. Equiparam-se como puderam: "Nossa frota compunha-
se de h o m e n s pobres". Embarcaram pão caçavo feito de raízes, centenas
de porcos comprados a três pesos p o r cabeça, pois Cuba ainda não pos-

5 2 . H . Colón (1984), p. 267: "tenta por cierto que cada dia habían de descubrirse cosa» de gran riqueza
[...] No debe dejarse de continuario, porque, a decir la verdad, si no a una hora, se hallará en otra
alguna cosa importante"; itl, p. 275: "ias mujeres se tapaban la cara y ei cuerpo como hemos dicho
que hacen las moras en Granada", iil., p. 286; Sauer (1984), p. 324; Pedro Mártir (1964), t. I, p. 397.
2 9-1
HISTÓRIA DO NOVO MUNDO

suía vacas e carneiros. Amontoaram óleo, quinquilharia, cordas, âncoras,


barris "para levar água", bandeiras, anzóis e arpões. Três pilotos - dentre
os quais Alaminos - , originários de Paios, Huelva e Triana, na Andaluzia,
guiaram os navios. Um padre acompanhou a expedição e u m inspetor n o
caso de - sempre a intuição... a não ser que se soubesse mais do que se
pretendia - descobrirem "terras ricas e pessoas q u e possuíssem ouro ou
prata ou pérolas ou qualquer outra riqueza" e de ser preciso, por conse-
guinte, cobrar a quinta parte real que era devida ao soberano 5 3 .
Após u m a viagem difícil, a expedição descobriu u m a terra nova - a
p o n t a noroeste da península do Iucatã - e, a duas léguas n o interior das
terras, u m a aglomeração muito maior do que as vilas indígenas da
Hispaniola e de Cuba. Surpresos e encantados, os espanhóis chamam o
lugar de "Grande Cairo", "em h o m e n a g e m à grande capital egípcia", co-
menta Pedro Mártir que imagina o lugar segundo as lembranças de sua
viagem ao Egito. E o primeiro contato com o México. Em versão levanti-
na: os edifícios de pedra branca, as amplas vestes de algodão com as quais
se cobrem os indígenas sugerem as margens do Mediterrâneo oriental
próximo de Granada. Durante muito tempo, os espanhóis vão encontrar
mesquitas onde pensam estar vendo pirâmides, e designarão com a pala-
vra alfaquíes (ulemás) os sacerdotes dos santuários mexicanos. Era como
se a reconquista de Granada continuasse naquele litoral quente, engasta-
do no cristal do mar das Caraíbas. A lembrança da Espanha muçulmana
estava menos ligada com a descrição das Ilhas, embora as cabanas altas e
redondas dos indígenas fizessem pensar nas alfaneques, grandes tendas
mouriscas que os espanhóis usavam para a caça e para a guerra. Nesses
pontos de referência aproximativos aparece a surpresa dos descobridores,
imediatamente convencidos de terem abordado u m m u n d o sem compa-
ração com o das Ilhas e da Terra Firme: não estão esses índios vestidos,
enquanto os outros andavam nus ou quase nus? 54 Mas esse primeiro en-
contro acaba mal: os espanhóis caem n u m a emboscada da qual escapam
por pouco, para descobrir u m centro cerimonial composto por três casas
de pedra colocadas em volta de u m a p e q u e n a praça. Os cues ou santuá-
rios Luuiêiu ídulos em terraçoU e alguns objetos~cte o~ür õ" guafdados den-
tro de cofres. O butim, a guerra, a idolatria... O cenário da Conquista está
m o n t a d o desde o primeiro contato com as terras maias.
A expedição volta ao mar, sem distanciar-se da costa que acompanha
em direção aó^ oeste, chega a Campeche, depois a C h a m p o t ó n antes de

53. Díaz de! Castillo (1968), t. 1, pp. 47, 44; "Probanza...", em Garcia Icazbalceta (1971), p. 414.
54. Pedro Mártir (1964), t. I, p. 398; Sauer (1984), p. 101.
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2 9-1 HISTÓRIA DO NOVO MUNDO

atracar, via golfo do México, na longínqua Flórida, descoberta quatro


anos antes por Ponce de León. Cada vez, os espanhóis que desembarcam
para abastecer-se d e água são atacados por índios que dizimam suas filei-
ras, Os ferimentos e a sede são o destino dos conquistadores ao fim de
u m a expedição sem glória que, p e r m a n e n t e m e n t e , frisa o desastre. O
capitão H e r n á n d e z de Córdoba expira em Cuba das seqüelas de seus
ferimentos, e, j u n t a m e n t e com ele, outros soldados. No total, cinqüenta
e sete mortos em cento e dez, ôu seja, cinqüenta por cento d e perdasl
De volta a Cuba, Bernal Díaz ainda n ã o chegou ao fim de seus so-
frimentos. Tentando chegar à villa de Trinidacl, naufraga, acaba n u como
veio ao m u n d o n u m a praia, e consegue chegar a um burgo que perten-
ce ao padre Bartolomé de Las Casas. Mais u m a vez, estamos longe dos
clichês da Conquista: avanço irresistível dos conquistadores, índios toma-
dos de pânico e sempre vencidos... As derrotas são muitas, e m b o r a se
apaguem das memórias mais rápido do que as vitórias. Em todo caso, o
testemunho dos sobreviventes - viram índios vestidos com algodão e cul-
tivando milho - provoca curiosidade, e os ídolos e objetos de ouro que
pilharam excitam a cobiça em Cuba, em Hispaniola, na Jamaica e até em
Castela 55 .
Em 1518, u m a segunda expedição é organizada pelo governador de
Cuba que entrega seu comando ao jovem J u a n de Grijalva, originário,
como seu protetor, d e Cuellar, em Castela. Bernal Díaz, mesmo depois de
seus dissabores e ferimentos, também participa da viagem. Duzentos e
quarenta espanhóis atraídos pelos boatos que corriam sobre a nova ter-
ra reúnem-se à empresa, "e cada um de nós usou seus bens para pagar
as provrsõesy a í armas~e- as coisas necessárias"; Mais u m a vez, espanhóis
sem recursos, q u e n ã o tinham conseguido índios, escolhiam partir para
a aventura.
A modesta armada parte no dia 8 de abril de 1518. Vinte dias depois,
descobre a ilha de Cozumel, ao largo da península do Iucatã. A frota se-
gue a mesma rota q u e a primeira expedição, em direção ao oeste. Será
preciso, de novo, combater os índios de Champotón: graças âo enchimento
"de suas ai'rrnrckTrasTrrm"algtKlãT)7CoptãSo das armadoras"dos"n aturais - os
europeus entenderam rápido sua comodidade e sua eficiência - a tropa
agüenta firme e repele o ataque. Em Boca de Términos, encontram ído-
los e templos, mas n e n h u m a alma viva. De outro lado, os conquistadores
caçam, não sem prazer, o coelho e o cervo que melhoram suas refeições.

55, Id„ p..286; Dfaz dei Castillo (1968), t. I, pp. 43-57.


/t.S PORTAS DA AMÉRICA 307

O u t r o e n c o n t r o n a foz do rio Grijalva: dessa vez, o e n f r e n t a m e n t o é evita-


do; presentes são trocados, qtie confirmam que os índios possuem ouro;
e o q u e é melhor, os conquistadores acreditam estar e n t e n d e n d o que ha-
veria muito mais o u r o mais para a frente, p a r a o oeste, n u m a terra miste-
riosa que òs indígenas apontam com o d e d o gritando "Colúa, Colúa" e
"México". A navegação prossegue em direção ao sol p o e n t e ; os rios e as
serras atrás dos quais o sol se põe desfilam f r e n t e aos olhos de Bernal Díaz,
e todos r e c e b e m u m nome 56 .
Bernal Díaz tenta entender a atitude dos índios q u e assistem à che-
gada dos espanhóis. Ele vai saber - mais tarde - que, de México-Tenochti-
tlán, o s o b e r a n o mexica M o n t e z u m a estava a c o m p a n h a n d o com muita
atenção os acontecimentos no golfo do México. No rio de Banderas acon-
tece o primeiro e n c o n t r o com os enviados d o G r a n d e Senhor. Mas eles só
saberão disso a posteriori, pois, por e n q u a n t o , comunicam-se p o r m e i o d e
sinais, j á q u e os i n t é r p r e t e s maias dos conquistadores n ã o c o n h e c e m a
língua dos enviados. U m véu de ignorância e d e i n c o m p r e e n s ã o i m p e d e
que os dois m u n d o s se vejam. Os índios trocam o u r o p o r quinquilharias.
Mais para a frente, n u m a ilha, pela primeira vez, os espanhóis identificam
os restos de sacrifícios humanos: "Seu peito estava aberto, os braços e as
p e r n a s estavam cortados, as paredes das casas estavam cheias de sangue".
Eles batizam a ilhota, ainda sob o impacto d o espetáculo que os revolta:
"Demos-lhe o n o m e de ilha dos Sacrifícios". Na terra firme, em f r e n t e à
ilha, e n t r e as d u n a s de areia, os espanhóis instalam seu a c a m p a m e n t o ,
p r ó x i m o d o lugar o n d e mais tarde será construído o p o r t o de Veracruz.
Êm seguida, a navegação prolonga-se em direção ao n o r t e , p e r t o do lito-
ral, até a província d e Pánuco. Naquele m o m e n t o , os espanhóis resolvem
voltar p a r a Cuba: a falta de provisões, a ameaça indígena, o cansaço dos
soldados p õ e m u m fim à empresa. U m episódio ilustra o clima de incer-
teza, d e improviso e, p o r fim, de desorientação q u e envolve a expedição:
os espanhóis conseguem, durante as trocas, seiscentas libras de cobre, que
t o m a m p o r ouro. Darão muito que falar em Cuba q u a n d o os outros con-
quistadores p e r c e b e r e m seu erro.
O q u e é mais sério: Bernal Díaz aproveitou da ú l t i m a escala p a r a
s e m e a r sementes de laranjeira, "e elas cresceram m u i t o b e m p o r q u e os
sacerdotes {papas) daqueles ídolos cuidaram delas, r e g a r a m e p o d a r a m
seus galhos a partir d o m o m e n t o em q u e p e r c e b e r a m q u e eram plantas
diferentes das deles". Ou, como sacerdotes sanguinários p o d e m se trans-

56. li., pp. 60,65,67: "[ilecían] que adelante, hacia donde se p o n e el sol, hay mucho [oro]: 1 decían: Colúa,
Colúa y México, México y nosotros no sabíamos qué cosa era Colúa ni aun México".
2 9-1 HISTÓRIA DO NOVO MUNDO

formar em hábeis jardineiros! Esse detalhe, aparentemente menor, sugere


muitas outras transferências tão pacíficas e silenciosas q u a n t o essa entre
os dois m u n d o s . É verdade que o conquistador envelhecido t o m o u o
cuidado de rabiscar em sua crônica a lembrança dos sacerdotes horticul-
tores por m e d o , sem dúvida, de chamar a atenção da Inquisição! 57

57. Id., pp. 71, 76-77: "como yo sembré unas pcpitas de naranja junta a otra casa d e ídolos y fue de esta
manera: que como había muchos mosquitos en aquel rio, fuímonos diez soldados a dormir en una casa
alta cie ídolos, y junto a aquella casa las sembré, que había traído de Cuba, porque era fama que venía-
mos a poblar, y nacieron muy bien porque los papas de aquellos ídolos las beneficiaban y regaban y Iim-
piaban desde que vieron eran plantas diferentes de las suyas; de allí se hicieron naranjos de toda aquella
província. Bien sé que dirán no hacen al propósito de mi relación estos cuentos viejos y dejarlos he".
A CONQUISTA DO MÉXICO

Desde então eu sempre temi a morte como nunca a temera e


digo isto porque antes de começar os combates meu coração era
tomado por uma espécie de horror e de tristeza e eu urinava uma
ou duas vezes; depois, entregava minha alma a Deus e a sua
Mãe abençoada no momento de entrar nos campos de batalha e
imediatamente o temor me deixava.

BERNAL D T A DEL C A S T I L L O

História Verdadeira da Conquista da Nova Espanha

Foi preciso esperar pela terceira expedição para que começasse,


enfim, a conquista do México. Na Europa, as grandes questões do ano de
1519 são a m o r t e de Maximiliano, a eleição de Carlos ao Império e a
condenação de Lutero. No capítulo das descobertas, em setembro, Ma-
galhães parte de Sanlúcar e das costas da Andaluzia para tentar dar a volta
ao m u n d o . Em Cuba, repleta de boatos, na inação forçada das índias, as
notícias que o jovem J u a n de Grijalva traz sacodem a indolência. Nas
conversas que se prolongam, regadas de vinho da Espanha ou de suco de
abacaxi misturado com moscatel, as especulações sobre as terras do Oes-
te correm soltas. Discute-se sem fim sobre a origem daqueles índios: se-
riam j u d e u s expulsos, há centenas de anos, pelo imperador Vespasiano
e q u e encalharam misteriosamente naquele litoral? Ou então mouros?
J u d e u s e mouros representavam, para os castelhanos, os dois únicos po-

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