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Resumo
O Sistema 2002 da American Association on Mental Retardation propõe princípios básicos para definição
de deficiência mental, diagnóstico, classificação e planificação de sistemas de apoio. A proposta teórica é
funcionalista, sistêmica e bioecológica, incluindo as dimensões intelectual, relacional, adaptativa, organicis-
ta e contextual. A deficiência mental é considerada condição deficitária, que envolve habilidades intelectu-
ais; comportamento adaptativo (conceitual, prático e social); participação comunitária; interações e papéis
sociais; condições etiológicas e de saúde; aspectos contextuais, ambientais, culturais e as oportunidades de
vida do sujeito. O paradigma de apoio proposto enfatiza a natureza e a intensidade dos apoios e sua influ-
ência na funcionalidade do sujeito. Questões relacionadas aos instrumentos de registro, avaliação e diagnós-
tico são discutidas. Revelam necessidade do estabelecimento de parâmetros conceituais e avaliativos con-
sensuais para a aplicação de estratégias quantitativas e qualitativas válidas de investigação que permitam a
identificação efetiva da deficiência mental e a eficiência do atendimento dessa população específica.
Palavras chave: deficiência mental, necessidades especiais, educação especial.
The new conception of mental deficiency according to the American Association on Mental
Retardation-AAMR: 2002 System
Abstract
The 2002 System of the American Association on Mental Retardation presents basic principles to define
mental deficiency, diagnosis, classification, and the design of support systems. The theoretical proposal is
functionalist, systemic, and bioecological, including intellectual, relational, adaptational, organicist, and
contextual dimensions. Mental deficiency is conceptualized as a deficit condition that entails intellectual
abilities; adaptive behavior (conceptual, practical, and social); community participation; social roles and
interactions; etiological and health conditions; contextual, environmental, cultural aspects and life
opportunities for the individual. The support paradigm proposed emphasizes the nature and the intensity of
support, as well as its influence over the level of functionality of the individual. Issues related to record,
evaluation and diagnostic instruments are discussed. They reveal the need for the establishment of
consensual conceptual and evaluative parameters in order to allow for the application of quantitative and
qualitative strategies that can be valid for investigation purposes, for they enable an effective identification
of mental deficiency as well as the efficiency of the assistance provided to this specific population.
Key words: mental deficiency, special needs, special education.
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Trabalho apresentado na mesa redonda Deficiência mental: diagnóstico, classificação e sistemas de apoio segundo o
modelo 2002 da American Association on Mental Retardation – AAMR, na XXXII reunião Anual da Sociedade Brasi-
leira de Psicologia, Florianópolis – SC, outubro de 2002.
Endereços para correspondência: SQS 216 – Bloco F – Apto 103 CEP: 70 295-060 Brasília-DF - E-mail: ereni-
ce@terra.com.br.
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que diz respeito ao diagnóstico, demanda retor- insuficiência radical de algumas aptidões inte-
no ao panorama histórico da deficiência, bem lectuais e morais” (Pessotti, p. 97). Beaugrand
como a apreciação crítica dos recursos disponí- lhe atribui causa orgânica, congênita, de ori-
veis que vêm sendo adotados para sua realiza- gem encefálica e provocadora de parada do
ção. É nessa direção que este artigo se orienta. desenvolvimento. Essa concepção veio a influ-
enciar as demais classificações da época.
1. Conceitualização e classificação da deficiência Ao final do séc. XIX a concepção de
mental: antecedentes históricos deficiência mental estava associada à perspec-
No séc. XIX iniciaram-se efetivamente tiva exclusivamente organicista, de natureza
os estudos científicos sobre a deficiência men- neurológica, identificada pelo atraso no desen-
tal. Segundo os historiadores, o que se tem do volvimento dos processos cognitivos. Distinta
período anterior é inconsistente acerca da con- da concepção de doença mental. Essa herança
cepção e caracterização do fenômeno (Patton, ingressou no séc. XX, de maneira hegemônica.
Payne e Beirne-Smith, 1990). O Tratado de Psiquiatria de Bleuler, em
Desse modo, optou-se por abordar, neste 1955, já incorpora aspectos dinâmicos às cha-
trabalho, o panorama histórico da deficiência madas doenças mentais. Abre espaço para
mental a partir do séc. XVIII. Ressalva-se, que questões subjetivas, admite a perspectiva de
foi no decurso do século anterior que a ênfase multicausalidade e aceita a diversidade de ex-
sobre os aspectos deficitários da deficiência pressões sintomatológicas. A deficiência men-
mental foi substituída pelo sentimento de hu- tal figura como distúrbios congênitos da perso-
manidade e valorização pessoal (González- nalidade, inscrito na categoria das oligofrenias,
Pérez, 2003). Segundo Misès (1977), o Traité assim entendidas como “estados deficitários
du goitre et du crétinisme, escrito por Fodéré congênitos e precocemente adquiri-
em 1791, constitui a primeira obra importante dos” (Pessotti, op. cit., p. 171).
sobre o tema, sedimentando as produções sub- É interessante considerar que as concep-
seqüentes. ções históricas estão na base de atuais idéias
Pessotti (1999) realiza interessante revi- sobre deficiência mental (Patton e cols., 1990),
são histórica sobre os diferentes sistemas de particularmente quanto às concepções clínicas,
classificação das doenças mentais. Seu estudo à perspectiva desenvolvimentista precoce e à
permite situar a deficiência mental entre os centralidade no déficit. As tendências para mu-
diversos sistemas, desde sua inserção inicial. A dança na direção de uma perspectiva multidi-
natureza psicopatológica da deficiência mental mensional já estão em andamento, como se
teve sua inscrição no século XIX, quando Pinel explicita a seguir.
acrescentou o idiotismo à categorização de ali-
enação mental em sua obra clássica Traité Mé-
2. Sistemas Atuais de Classificação
dico-philosophique sur l’alienation mentale, de
2. 1. Sistema 2002 da American Association on Mental
1809. O idiotismo de Pinel não era concebido Retardation - AAMR
como loucura, mas significava “carência ou Sediada em Washington, a AAMR foi
insuficiência intelectual” (Pessotti, p. 57). criada em 1876. Desde então, vem liderando o
A classificação de Pinel foi adotada e campo de estudo sobre deficiência mental, de-
ampliada por Esquirol em Des maladies menta- finindo conceituações, classificações, modelos
les considerées sous ses rapports médical, hi- teóricos e orientações de intervenção em dife-
giénique et médico-legal, de 1838. A imbecili- rentes áreas. Dedica-se à produção de conheci-
dade ou idiotia, como descritas por Esquirol, mentos, que tem publicado e divulgado em
deviam-se a causas maturacionais. Afirmava manuais contendo avanços e informações rela-
que “os órgãos responsáveis pelas atividades tivos à terminologia e classificação.
intelectuais jamais se desenvolveram normal- Desde o primeiro manual, editado em
mente.” (Pessotti, op. cit., p. 61). Essa posição 1921, revisões se sucederam na seguinte ordem
foi reforçada por Beaugrand na obra Aliéna- cronológica: 1933, 1941, 1957, 1959, 1961,
tion, de 1865, onde distingue loucura de idioti- 1973, 1977, 1983, 1992 e o atual, de 2002, a
a, sendo a última incluída dentre “os estados de ser tratado neste trabalho.
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sociadas, que possam interferir nos resultados A definição de retardo mental proposta
avaliativos das habilidades intelectuais. no Sistema 2002 diferencia-se do Sistema 92
Os critérios objetivos, próprios das me- quanto às habilidades adaptativas. Enquanto o
didas psicométricas e das escalas de mensura- Sistema 92 especifica essas habilidades em 10
ção, são recomendados pela AAMR, porém grupos, a serem avaliadas sem instrumentos
considerados insuficientes para o diagnóstico objetivos de mensuração, o Sistema 2002 indi-
da deficiência mental em suas publicações ca a avaliação objetiva do comportamento a-
mais recentes. daptativo, categorizado em 3 grupos. Essa dife-
Os instrumentos recomendados pela A- renciação pode ser constatada comparando-se
AMR para mensuração da inteligência são: a as definições de deficiência mental dos dois
Wechsler Intelligence Scale for Children - sistemas (constantes nos itens 2.1 e 2.2.1 deste
WISC-III, Wechsler Adult Intelligence Scale - trabalho).
WAIS-III, o Stanford-Binet-IV, a Kaufman O Sistema 2002 indica para a avaliação
Assesment Battery for Children. do comportamento adaptativo a utilização de
instrumentos objetivos de mensuração. Esses
Dimensão II: Comportamento Adaptativo instrumentos, existentes em quantidade e diver-
O comportamento adaptativo é definido sidade nos Estados Unidos, não estão disponí-
como o “conjunto de habilidades conceituais, veis com padronização brasileira. Os seguintes
sociais e práticas adquiridas pela pessoa para são recomendados: Vineland Adaptative Beha-
corresponder às demandas da vida cotidia- vior Scales (VABS), AAMR Adaptative Beha-
na.” (Luckasson e cols., 2002, p. 14). Limita- vior Scales (ABS), Scales of Independent Be-
ções nessas habilidades podem prejudicar a havior (SIB-R), Comprehensive Test of Adap-
pessoa nas relações com o ambiente e dificultar tative Behavior-Revised (CTAB-R) e Adaptati-
o convívio no dia a dia. ve Behavior Assesment System (ABAS).
As habilidades conceituais, sociais e prá- As limitações no comportamento adapta-
ticas constituem áreas do comportamento adap- tivo são determinadas quantitativamente, le-
tativo, explicadas a seguir. vando em conta os resultados obtidos nos ins-
(a) Habilidades conceituais – relaciona- trumentos de mensuração. A exemplo dos tes-
das aos aspectos acadêmicos, cognitivos e de tes de inteligência, a demarcação de referência
comunicação. São exemplos dessas habilida- situa-se em duas unidades de desvio-padrão
des: a linguagem (receptiva e expressiva); a (2s) abaixo da média do grupo de referência.
leitura e escrita; os conceitos relacionados ao Cabe questionamento sobre o uso de instru-
exercício da autonomia. mentos objetivos na avaliação das habilidades
(b) Habilidades sociais – relacionadas à adaptativas, tendo em vista os componentes
competência social. São exemplos dessas habi- subjetivos, interativos e contextuais que consti-
lidades: a responsabilidade; a auto-estima; as tuem o comportamento adaptativo. Essa é uma
habilidades interpessoais; a credulidade e inge- questão aberta, a ser discutida.
nuidade (probabilidade de ser enganado, mani-
pulado e alvo de abuso ou violência etc.); a Dimensão III: Participação, interações, papéis sociais
observância de regras, normas e leis; evitar Essa dimensão ressalta a importância da
vitimização. participação na vida comunitária. Em relação
(c) Habilidades práticas – relacionadas ao diagnóstico da deficiência mental, dirige-se
ao exercício da autonomia. São exemplos: as à avaliação das interações sociais e dos papéis
atividades de vida diária: alimentar-se e prepa- vivenciados pela pessoa, bem como sua partici-
rar alimentos; arrumar a casa; deslocar-se de pação na comunidade em que vive. A observa-
maneira independente; utilizar meios de trans- ção e o depoimento são procedimentos de ava-
porte; tomar medicação; manejar dinheiro; usar liação indicados para essa dimensão, tendo em
telefone; cuidar da higiene e do vestuário; as vista a consideração dos múltiplos contextos
atividades ocupacionais – laborativas e relati- envolvidos e a possibilidade diversificada de
vas a emprego e trabalho; as atividades que relações estabelecidas pelo sujeito no mundo
promovem a segurança pessoal. físico e social.
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