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3 SergioFSMonteirodaSilva PDF
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TABELA 1
Reconstrução hipotética de um sepultamento*
Eventos Evidências ou Vestígios
*Os eventos não estão em ordem cronológica, podendo ter ocorrido simultaneamente.
Fonte: adaptado de Breternitz et al. (1971:179).
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usado como moedor para produção do material relações de proximidade do enterramento com
corante presente na sepultura; o ocre como as demais estruturas arqueológicas, como as
cosmético ou pigmento de caráter simbólico; líticos de habitação e os outros enterramentos. Os
com sinais de uso podem apresentar uma inclusão materiais contidos no interior, sobre, sob ou ao
inespecífica na cova mas, também, representar os redor da cova e do corpo indicam associações
bens que pertenciam ao falecido. Essas evidências referentes às práticas mortuárias – e parcelas
ou vestígios representam dados mortuários para a de eventos rituais – e que necessariamente
formulação de variáveis de contexto e de laborató- devem ser documentados e estudadas as suas
rio que possam ser analisadas e relacionadas relações mediante análises que considerem os
durante esse processo de interpretação de deposi- enterramentos inter e intragrupo, em macro e
ções funerárias. microgrupos. Essas variáveis são expressas
Um dos pré-requisitos para iniciar discussões pelas terminologias e classificações comumente
sobre um dado complexo cultural, um estudo utilizadas em arqueologia para os vestígios
comparativo ou de descrição sobre os vestígios funerários e que podem ser revistas anos
funerários é a existência de um sistema de classifi- depois da realização das etapas de campo, por
cação e uma nomenclatura próprios, mais ou menos meio da documentação produzida.
conhecidos entre os arqueólogos. Neste artigo,
b) Variáveis de laboratório – do material
procuramos definir e demarcar os termos usados na
ósseo humano –, como os dados sobre os
descrição das manifestações arqueológicas dos
graus de desgaste dentário, osteométricos e
enterramentos humanos a serem observados a
osteoscópicos, sobre sexo, idade, estatura,
posteriori, por meio da análise de documentos
análises físico-químicas e microscópicas em
visuais produzidos em antigas escavações.1 Esses
estudos avançados sobre DNA, isótopos
termos restringem-se a dois conjuntos de variáveis
estáveis de determinados elementos químicos
a saber:
presentes nos ossos e dentes indicadores de
a) Variáveis de campo – do contexto dietas características, patologias e lesões
arqueológico do sepultamento – formadas intencionais, acidentais ou de origem
pelos vestígios biológicos e culturais em fisiopatológica que dimensionam estudos sobre
inserção contextual, em suas relações espaciais paleodieta, paleogenética, paleopatologia e
e de situação. Registradas por meio de paleodemografia. Para Sharer e Ashmore
sistemas de documentação diversos, referem- (s.d), White (1992, 2000), Chamberlain
se aos dados de localização (sítio, setor, (1996), entre outros, a prática de laboratório
quadra, quadrícula, cota crânio), datas da sobre as coleções esqueletais é indispensável.
evidenciação e exumação, número do Essas variáveis estendem-se à caracterização
enterramento, tipo de deposição, número de tipológica dos acompanhamentos funerários,
indivíduos depositados na mesma cova, dada pela análise morfológica, morfométrica e
conexão anatômica do esqueleto, orientação quantitativa dos artefatos osteodontomalacológicos
do corpo (eixo crânio-bacia), da face e do e líticos, entre outros. Os acompanhamentos
crânio; posição do corpo, disposição pelo grau fornecem dados sobre seu uso como objeto
de flexão dos membros e posição de suas ritual funerário, de uso cotidiano ou adornos;
extremidades, dimensões, orientação e procedência, indicando as áreas de captação
conteúdo da cova, tipo e distribuição dos de matéria- prima; sobre a caracterização
materiais associados junto ao esqueleto e as tecnológica do grupo; sobre sua freqüência em
relação ao sexo, idade e posição social, bem
como inferem situações de contatos culturais e
possíveis formas de subsistência baseadas nas
(1) O uso dos documentos visuais produzidos nas
escavações realizadas em Tenório, Piaçaguera e Buracão,
atividades de caça, coleta, pesca e/ou horticultura.
sítios arqueológicos do litoral do estado de São Paulo, As unidades representadas pelas variáveis de
escavados por pesquisadores do IPH e MAE-USP entre
campo e de laboratório constituem as informações
as décadas de 1960 e 1970, prescindiu das formulações
estabelecidas neste artigo, compondo os objetos de sobre o contexto arqueológico dos vestígios
estudo do autor. funerários e suas características tipológicas,
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TABELA 2
Terminologias e classificações para sepultamentos humanos em contexto arqueológico
2 - Localização da área da
deposição
3 - Preparação do corpo
4 - Veículo ou invólucro do
corpo para a deposição
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morto sugeridos por Kroeber referem-se às XX, tanto por arqueólogos, quanto por antropólo-
variações de enterramentos primários. gos e paleontólogos. Segundo Comas (1957), os
Griffin e Newmann (1942) fizeram os primei- dados a serem registrados pelo antropólogo sobre
ros esforços para identificar e sugerir uma classifi- os enterramentos humanos in situ são: 1) número
cação e uma terminologia úteis aos estudos das do enterramento; 2) localização; 3) profundidade
práticas e descrição dos vestígios funerários. em relação à superfície do sítio; 4) profundidade
Criticados por Sprague (1968), esses autores não em relação às estruturas depositadas sobre o
apresentaram, assim como os anteriores, categorias enterramento (pisos de pedra, lápides etc.); 5)
mutuamente exclusivas. Aceitaram a inumação presença ou ausência de cova; 6) estado de
como uma categoria exclusiva, distinta da crema- conservação dos ossos (indicando quais as partes
ção. A cremação pode ser entendida como um que se conservaram e as que não); 7) idade
método de tratamento e redução do corpo para sua fisiológica e, se possível, o sexo; 8) classe ou tipo
posterior deposição. Assim, Sprague (1968) de enterramento: primário (completo ou incom-
sugeriu que qualquer esquema sobre a deposição pleto) que apresenta os ossos em conexão anatômica;
do morto deve utilizar dois termos distintos: secundário, onde não existe conexão anatômica e
deposição simples, cujos métodos estão orienta- os ossos podem ser de indivíduos com diferentes
dos por um princípio básico, em determinado idades fisiológicas; 9) posição (do corpo); 10)
momento específico no tempo, e deposição orientação; 11) descrição sumária dos objetos
composta, com implicação da existência de dois ou que possam achar-se em relação com o esquele-
mais estágios distintos de deposição, semelhantes to (materiais associados). Esses dados têm se
ao enterramento seguido do desenterramento, mostrado recorrentes e com pouca variação quanto
exposição e enterramento, exposição, cremação e ao seu uso na literatura arqueológica que utilizamos.
enterramento ou cremação e dispersão das cinzas. Para a ordenação e sistematização de conjun-
São procedimentos funerários que resultam, tos de informações bibliográficas e diretas (de
respectivamente, em enterramentos primários e campo) sobre os tipos de enterramentos em
secundários. estruturas monticulares e visando descrever o
O problema está em desenvolver um alfabetismo material ósseo humano exumado de quatro cerritos
visual suficiente para distinguir e documentar, durante as escavações da Comisión Rescate
mediante a análise dos dados observáveis expostos Arqueológico de la Cuenca de la Laguna Merín
no contexto arqueológico e das características dos entre os anos de 1986 e 1989 na região de San
vestígios funerários, a presença de uma primeiridade Miguel, Argentina, Femenías et al. (1990) propôs
ou secundidade da deposição funerária e da dez categorias a serem observadas durante a
intencionalidade na deposição dos materiais exposição, registro e remoção de vestígios
associados no enterramento. Uma das técnicas que funerários em contexto arqueológico (Tabela 3) que
auxiliam nesse processo é o da evidenciação complementam as de Sprague (1968), em especial
sistemática dos vestígios arqueológicos pela sobre as inumações.
decapagem e do total controle e/ou administração Heizer (1950) ao descrever os aspectos mais
das técnicas de documentação visual por parte do importantes da exposição, registro e remoção de
arqueólogo ou do bioarqueólogo. enterramentos em campo, sugeriu dois tipos de
Nesse sentido, voltado à utilização de métodos deposição funerária a serem registrados, o
e técnicas empregados pelo bioarqueólogo para enterramento e a cremação (Tabela 4).
obtenção de séries esqueletais durante sua atuação Mais tarde, Heizer e Grahan (1967) sugeriram
na pesquisa arqueológica, Comas (1957) descre- quatro tipos básicos de enterramentos: primários,
veu cinco momentos que devem ser considerados secundários, múltiplos e as cremações.
em campo e em laboratório: o da descoberta, do Nos enterramentos primários (primary
registro dos dados, exumação, identificação e interment) os ossos do esqueleto apresentam-se
caracterização dos enterramentos em tumbas e da articulados. O corpo teria sido depositado na cova
restauração do material ósseo humano (Romero, antes da decomposição, nas posições contraído ou
1939; Angel, 1943). Esse autor privilegiava os fletido, estendido ou sentado, de frente, lado ou de
estudos craniológicos e osteológicos, comuns costas. Mediante um estudo sistemático dos ossos,
desde fins do século XIX à segunda metade do após sua exposição, torna-se possível descrever e
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TABELA 3
Ordens de categorias, tipos e características das inumações
precisar a posição do corpo na época em que foi intencional das partes moles por exposição,
depositado na cova. Corpos enterrados nessas decomposição por bactérias e que foram posterior-
circunstâncias podem sofrer, a posteriori, mumificação mente depositados em uma cova. Os ossos do
natural, como os escavados por Lythgoe (1965). esqueleto não estão em conexão anatômica normal.
O enterramento secundário (secondary Os enterramentos múltiplos (multiple interment),
interment) caracteriza-se, geralmente, pela tratados em especial por Ubelaker (1974 e 1981) e
presença de um pacote ou fardo (bundle), que Heizer e Graham (1967) ocorrem quando uma
resultou da coleta dos ossos após a remoção única cova contém remanescentes esqueletais de
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TABELA 4
Tipos de deposições funerárias
1 – Enterramento 2 – Cremação
vários indivíduos (acima de três), enterrados retomada e desenvolvida por Ubelaker (1996).
simultaneamente. Esse tipo de enterramento indica Assim, um enterramento pode apresentar o esqueleto
a morte de muitas pessoas em decorrência de uma cremado, sendo primário ou secundário. A cremação
mesma causa, epidemias ou guerras. O termo é considerada como mais um tipo de enterramento.
“múltiplo”, referente ao número de indivíduos Brothwell (1981) reuniu os muitos tipos de
contidos em uma mesma cova, assim como enterramentos humanos em cinco grupos (Tabela 5).
“simples”, “duplo” e “triplo”, não é um tipo de Esses tipos foram classificados pelos critérios
deposição, como descreveu Sprague (1968). de articulação do esqueleto, invólucro do corpo
Portanto, não deve ser entendido como um dos três (urna etc.), posição do corpo e disposição dos
tipos básicos de enterramento, mas como uma membros, condições da deposição e tratamento do
outra distinção referente aos tipos de enterramentos corpo, como o descarnamento (caso 5). O tipo 1
primários e secundários, aplicando-se a ambos. de Brothwell (1981) refere-se aos enterramentos
A distinção entre os enterramentos (primários, secundários. Os tipos 2 a 5 constituem enterramentos
secundários e múltiplos) e cremações como tipos primários. Em Brothwell (1981) o termo
exclusivos, criticados por Sprague (1968) foi “enterramento” refere-se ao corpo.
TABELA 5
Tipos de enterramentos humanos
1 - Remanescentes 2 - Enterramento 3 - Enterramento 4 - Enterramento 5 - Outros tipos
fragmentados estendido fletido contorcido de enterramentos
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TABELA 6
Tipos de enterramentos humanos
1 - Enterramento primário 2 - Enterramento secundário
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A categoria partly dismantled ou dismembred Kaiapó não devem ser confundidos com as
de enterramento primário definida por Haglund definições dos enterramentos secundários descritas
(1976) implica em remanescentes de esqueletos anteriormente. Para Banner (1961):
cujos membros e porções articuladas do tronco
“(...) os índios se servem de uma
foram dispostas parcialmente em conexão anatômica
sepultura velha para um segundo enterro.
normal. Trata-se de uma forma de vestígio resultan-
Quando restos do primeiro ocupante ainda
te de uma deposição composta, associada à
estão na esteira com que o jazigo foi
aplicação de processos redutivos do corpo, como
forrado, esta é retirada com cuidado.
o enterramento seguido de desenterramento,
Enquanto os homens cavam mais alguns
descarnamento ou decomposição química, propos-
centímetros para dar ao túmulo aspecto
tos por Sprague (1968). A presença da manipula-
novo, as mulheres vão remexer a cinza
ção dos ossos e partes desarticuladas do corpo,
humana, catando as contas e miçangas que
antes do enterramento definitivo, em que o corpo
sobreviveram à decomposição do dono!
não teria sido enterrado com os ossos normalmente
Depois do novo ocupante estar em posição,
articulados, caracterizaria, para outros autores
os restos do primeiro voltam novamente à
como Ubelaker (1996) e Heizer e Grahan (1967),
terra, despidos de todos os enfeites e
uma categoria de enterramento secundário.
deixados ao lado daquele que agora ocupa
A intencionalidade antrópica em relação à
o primeiro lugar (...) quando uma pessoa de
deposição e disposição do corpo já tratado,
destaque morre em viagem, e precisa ser
descarnado e desarticulado, pode ser confundida
enterrada num lugar onde não há outra
em contexto arqueológico com desmembramentos
sepultura, os parentes poderão voltar mais
do esqueleto originários dos processos mais
tarde, a fim de levar a ossada para fazer
avançados da decomposição cadavérica –
novo enterro onde terá a companhia de
esqueletonização, em especial aos corpos deposita-
qualquer outro morto”. (Banner 1961: 45-46)
dos verticalmente em relação ao plano do solo, que
podem sofrer desmantelamento parcial dos Esqueletos desarticulados de crianças,
membros, crânio e coluna vertebral. Os corpos pintados com ocre, depositados junto com
dispostos verticalmente podem apresentar, in situ, esqueletos de adultos podem ser resultado,
o aspecto estrelado, com queda dos membros segundo Banner (1961) de um tratamento dado
superiores sobre os inferiores. pela própria mãe que desenterra seu filho e o
Haglund (1976) distinguiu, ainda, outros guarda até conceber outra criança, quando volta a
elementos caracterizadores das práticas funerárias enterrá-lo, desta vez com um parente adulto. Trata-
dados pelos tipos de cova (de forma horizontal, se de um enterramento não coletivo como afirma
vertical, suas dimensões e orientação do eixo Montardo (1994), mas de um enterramento
principal) e os materiais associados. secundário simultaneamente a um primário, uma
Determinados procedimentos mortuários modalidade mista com procedimentos tanto das
resultam em vestígios ósseos não articulados ou inumações primárias quanto das secundárias.
partes isoladas – restos esparsos e articuladas do No caso dos enterramentos secundários, o que
esqueleto, indicando uma seqüência complexa de incluiria as cremações segundo Haglund (1976) ou
eventos ocorridos entre a deposição e a escavação as excluiria (Ubelaker 1996), dois critérios
do enterramento no contexto arqueológico. Seu classificatórios propostos por Sprague (1968) são
registro decorre de perfis longitudinais e transver- importantes: o da individualidade e da articula-
sais, assim como da planta baixa da área, com o ção. A individualidade relaciona-se à determinação
quadriculamento e a precisa identificação da do número mínimo de indivíduos envolvidos num
posição dos ossos desarticulados para a reconstituição mesmo recipiente (urna, tumba, esteira, estojo) e
da maneira e a seqüência da deposição e a cova. Seu grau varia em fragmentário (unidades
descrição das práticas funerárias e suas alterações ósseas e fragmentos), parcial (unidades ósseas
tafonômicas (Roksandic 2002). articuladas), simples (individual), duplo, triplo,
Os enterramentos perturbados por outro múltiplo e em massa.
enterramento exemplificados por Montardo (1994) Rohr (1960:19), ao escavar o sambaqui de
através dos estudos de Banner (1961) sobre os Praia Grande, Rio Vermelho, Santa Catarina, em
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TABELA 7
Posição do esqueleto (attitude of burial)
Posição horizontal Posição vertical e/ou oblíqua
a) Estendido em decúbito dorsal a) Fletido em decúbito dorsal a) sentado e fletido, com fêmures
(extended supine) (flexed supine) e tíbias verticalmente ao corpo
(flexed saquatting burial)
b) Estendido em decúbito ventral b) Fletido em decúbito ventral
(extended prone) (flexed prone)
c) Estendido em decúbito lateral c) Fletido em decúbito lateral
direito (extended on right) direito (flexed on right)
d) Estendido em decúbito lateral d) Fletido em decúbito lateral
esquerdo (extended on left) esquerdo (flexed on left)
Ubelaker (1996), deve ser reduzido para 15o . sempre identificadas em contexto, recebem as siglas
Assim, temos uma sugestão mais adequada: a) Sc (escápula), Cl (clavícula), P (pelve), U (úmero), R
estendido – Â maior que 165o e menor ou igual a (rádio), Ul (ulna), F (fêmur), T (tíbia), todos
180o; b) semi-fletido – Â maior ou igual a 90o e acompanhados de D ou E (direito ou esquerdo).
menor ou igual a 165o; c) fletido – Â maior ou igual Na seqüência da descrição de um enterramento
a 15o e menor que 90o; d) fortemente fletido – Â em contexto arqueológico, esses autores adotaram
maior ou igual a 0o e menor que 15o. termos específicos para o posicionamento do corpo
A posição fletida do esqueleto já havia sido (horizontal e vertical e/ou oblíqua) e dos membros
sugerida por Wilder (1905) e, juntamente com a semi- inferiores em relação a uma linha de orientação
fletida, pela “First Archaeological Conferense on the geral do tronco, bem como uma lista de posições
Woodland Pattern” de 1943. Os artigos de Wilder e gerais do esqueleto.7 Estes termos estão na Tabela 7.
Whipple (1917) apresentaram significativos avanços
sobre os pressupostos para o uso da “posição fletida”.
O termo compressed flexed body como uma (7) Os termos descritos por Blackwood e Simpson (1973)
variação do tipo de enterramento fletido (flexed para a descrição dos enterramentos quanto a sua fragmen-
burial) foi aplicado por Lothrop (1954). Sprague tação e/ou posição são: supine extended burial; unusual
(1968) propôs, antes de Ubelaker (1996), o termo kind; flexed burial lying on the left side; reclining supine
“fortemente fletido” (tightly flexed), útil quando burial (com fêmures e tíbias verticalmente ao corpo); fully
extended burial with the body in a straight line lying on
cuidadosamente definido durante sua aplicação. the right side; supine flexed burial with the head inclined
Blackwood e Simpson (1973) estabeleceram to the left; supine flexed burial; supine burial; fully
códigos para a identificação e posição das unidades extended supine burial; very fragmentary skeleton; very
ósseas do esqueleto que facilitam a leitura de fragmentary skeleton lying on the right side; fragmentary
croquis-desenhos esquemáticos dos enterramentos: prone burial; fragmentary flexed burial; fragmentary
extended supine burial; very fragmentary flexed skeleton;
na seqüência da descrição de um enterramento, os
very incomplete skeleton extending; fragmentary skeleton,
termos direito (D) e esquerdo (E) referem-se sempre apparently buried supine with the legs flexed upwards;
aos lados direito e esquerdo do esqueleto; os termos squatting burial; flexed burial with the body lying on the
superior e inferior, proximal e distal, medial e lateral right side; a prone extended burial; extended supine
são igualmente utilizáveis no senso anatômico; os burial; supine burial, apparently extended; flexed
termos por cima, em baixo, acima e abaixo, em squatting burial; fragmentary burial, apparently on the
right side; flexed prone burial; severely flexed burial lying
torno referem-se às posições das unidades ósseas on the right side, semi-prone; apparently an extended
do esqueleto na cova e em relação às demais supine burial and flexed supine burial in association with
estruturas e unidades ósseas; as unidades ósseas, other skeleton (s).
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Entretanto, segundo Ubelaker (1996), convém podendo apresentar torções em três regiões do
considerar a flexão dos membros inferiores pela corpo: na região da escápula e membros superiores
obtenção dos ângulos formados entre os eixos e da pelve (inclinados ou voltados posteriormente
longitudinais dos fêmures e das tíbias. Neste ou anteriormente) e região dos membros inferiores
procedimento são utilizados os mesmos termos (voltados à esquerda ou à direita da coluna
aplicados para os ângulos entre o eixo da coluna e vertebral) . As mãos podem estar dispostas na
os fêmures. região da cabeça ou tórax ou na região abdominal,
Saxe (1971) estabeleceu cinco códigos para pélvica e dos membros inferiores. Esses termos
descrever os graus formados pelos ângulos de para as posições aplicam-se a enterramentos
flexão entre o fêmur e a coluna vertebral, entre o primários simples, com um só indivíduo. O autor
fêmur e a tíbia, entre a coluna vertebral e os úmeros distingue outras posições para as mãos em
e entre os úmeros e as ulnas: 1 = ângulo aproxima- enterramentos duplos, acrescentando as informa-
do de 45º (médio), 2 = ângulo menor que 45º ções: mãos na região da cabeça ou coluna vertebral
(fechado), 3 = ângulo de 45º a 90º (moderado), 4 = do outro indivíduo. Entretanto, essas posições não
entre moderado e estendido (aberto), 5 = ângulo ocorrem exclusivamente para as mão direita e
de 180º (estendido). esquerda, podendo ocorrer distintas posições
A posição dos membros8 superiores (Mygoda simultaneamente, uma para cada mão.
1979: 188-189) pode ser dividida em quatro A terceira categoria de posições está relacio-
categorias: estendidos ao longo do corpo, cruzados nada com a rotação da cabeça, definida pelo
sobre a pelve, dobrados sobre o tórax ou voltados movimento da mesma em um plano lateral ao redor
para a cabeça . Esses termos, devido a sua não de um eixo central. Assim, a porção anterior do
exclusividade, podem ser aplicados individualmente crânio – face – pode estar voltada para a direita,
para cada membro superior. Em Tenório (Uchôa esquerda, anteriormente, para o tórax ou voltada
1973) os esqueletos não apresentaram, em sua para trás. No caso dos esqueletos de inumações
maioria,9 essas categorias nos dois membros primárias, a indeterminação do facing ou das
superiores: ocorriam duas posições diferentes para posições dos membros indica um estado de
cada membro superior simultaneamente. Os graus perturbação e desarticulação dos ossos ocasiona-
de flexão – associados à posição – são os mesmos das pelos processos formativos do depósito
que para os membros inferiores sugeridos por Saxe arqueológico.
(1971). Ele estabeleceu três posições básicas para A orientação do esqueleto é definida pela
o esqueleto (deitado ou em decúbito 1 – do lado direção da cabeça a partir da linha formada entre o
esquerdo, 2 – do lado direito, 3 – de costas),10 centro do crânio e o centro da pelve. Assim,
segundo Rose (1922): “(...) por orientação eu
entendo facing, a situação de maneira que a
face do cadáver está voltada em uma direção
(8) Esta posição é observada em relação à superfície em dada”(Rose 1922: 127).
que o membro se acha apoiado e em relação aos ângulos Na literatura arqueológica, termos semelhan-
formados pelos eixos longitudinais dos ossos articulados.
tes a “cabeça direcionada para” ou “crânio voltado
(9) O esqueleto do enterramento XIX de Tenório
apresentava os membros superiores com as mãos junto ao para” muitas vezes são usados para indicar
crânio. Em outros casos, como nos esqueletos dos orientação. Uchôa (1973) adotou a orientação em
enterramentos XX, XXVI e XXVIII, somente um dos relação à direção do eixo crânio-bacia, no sentido
membros superiores estava voltado para o crânio, da pelve para o crânio e da face – face voltada
enquanto o outro encontrava-se estendido, em direção ou para –, ambas em relação aos pontos cardeais.
sobre a pelve ou fletido sobre o ventre ou tórax.
(10) Decúbito dorsal – com o dorso voltado para baixo;
Dois ou mesmo três tipos de orientação podem ser
decúbito ventral – com o ventre voltado para baixo; obtidos (Sprague 1968), como a da cova, do
decúbito lateral direito – com o lado direito do corpo invólucro/recipiente e do corpo. A orientação da
voltado para baixo; decúbito lateral esquerdo – com o lado cova e do invólucro é determinada pelos seus eixos
esquerdo do corpo voltado para baixo; outras posições – longitudinais, sempre no sentido do crânio. A
sentado, em suspensão (quando preso a um suporte que
orientação do corpo quando posicionado horizon-
lhe impede o apoio total na superfície): todos esses termos
referem-se à posição do cadáver (esqueletizado ou não) em talmente refere-se à direção da posição da cabeça
relação à superfície em que foi depositado. em relação á linha formada entre os centros do
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ornamentos anexados ao corpo e vestimentas são, (1996) funciona como um dos indicativos da
possivelmente, traços do processo de preparação função desse material.
do corpo. Entretanto essa distinção pode não ser O ocre sob a forma de pigmento ferrífico
determinada em um contexto arqueológico. Esse pulverizado ou em blocos de hematita compacta,
material pode estar dentro, sob, sobre ou junto de limonitizada, constitui outro tipo de material
alguma região do corpo, bem como preenchendo a associado encontrado nos enterramentos, recobrindo
cova. As marcas, testemunhos da existência da partes ou totalmente os esqueletos e demais
cova, como blocos líticos, nichos e demais estrutu- acompanhamentos. Esse tipo de material foi
ras que a conformam podem ser consideradas descrito em Menghin (1931), Obermeier (1912) e
como uma classe especial de materiais associados: Tiburtius e Leprevost (1952). Referindo-se a
as estruturas funerárias, dispostas com evidente materiais corantes e esqueletos pintados de oito
intencionalidade durante a deposição do morto. sambaquis da região sul do Brasil, Tiburtius e
O material associado ao enterramento está Leprevost (1952:151) descrevem as análises
representado, como dado observável no contexto químicas procedidas em fragmentos de hematita
arqueológico, pelos itens não perecíveis, como as polida (utilizadas como adorno?), desbastadas por
valvas de moluscos, ossos e dentes de animais, atrito e/ou raspagem, para a obtenção do pigmento
exoesqueletos de equinodermas e crustáceos. Tem corante em pó. Nos sambaquis onde foram
sido considerados com a mesma significação os encontradas estas pedras corantes, ocorriam
termos “material associado” e “ acompanhamento esqueletos de adultos ou crianças, depositados
funerário”. Esta categoria funerária aparece como sobre camadas desse pigmento vermelho e
“oferendas presentes na cova”, “mobiliário funerá- recobertos – também seus acompanhamentos
rio” (mobiliere funeraire, grave furniture), funerários – de uma “fina película” do mesmo
“oferendas funerárias” (grave offerings), “mobiliá- pigmento. Sobre as observações de Menghin
rio mortuário” (mortuary furniture), “beigaben”, (1931) e Obermeier (1912) a respeito de esquele-
que são tidos como menos precisos por implicarem tos pintados encontrados nas grutas de Grimaldi,
função e intencionalidade precisas. Constituem os em Mentone e em outros sítios europeus, Tiburtius
grave goods ou as inclusions de Sprague (1968) e e Leprevost (1952) relataram que “(...) muitas
Hodson (1977), os clothes and ornaments, vezes os defuntos eram colocados em uma
ornaments, insignia and amulets e os offerings superfície plana revestida de uma camada de
for the dead, food and drink e companions, de óxido de ferro vermelho e pulverizados com êste
Alexander (1969) e os ajuar y elementos asociados pigmento. Tão logo a carne se decompunha, o
de Femenías et al. (1990). Ubelaker (1996) sugere óxido de ferro depositava-se nos ossos e
as “associações” – materiais associados –, dividi- adornos, que tomavam uma coloração forte-
das em artefatos e espécies (fauna). Essas mente avermelhada. Não se pode supor (...) que
“associações” podem corresponder aos materiais a carne fosse prèviamente retirada, coloridos os
perecíveis e aos itens não culturais. Heizer (1950) ossos e em seguida adicionada, para então
sugere “objetos associados”, divididos em artefatos sepultar, pois do contrário não se encontrariam
e ornamentos. Uchôa (1973) utilizou o termo os esqueletos tão bem conservados e em perfeita
“materiais associados” para designar os objetos disposição anatômica (...) além de esqueletos,
associados ao esqueleto, de deposição intencional também objetos vários foram encontrados
e relacionados ao processo de preparação do recobertos por vermelhão” (Tiburtius e Leprevost
corpo e de caráter funerário. Esses materiais 1952: 153-154).
associados comporiam três grupos: os representati- Diferentemente dos casos encontrados por
vos do padrão de enterramento, como os restos de Verneau nas grutas de Grimaldi e demais sítios
fogueiras, carvão, ocre, blocos líticos, sedimentos e europeus, os esqueletos pigmentados dos sambaquis
restos vegetais; um grupo de restos de fauna em do Paraná e Santa Catarina representam uma
valvas de moluscos, ossos e dentes, todos sem minoria de ocorrências, com ossos superficialmente
trabalho e o dos artefatos líticos, ósseos, conchíferos e homogeneamente coloridos de pigmento ocre.
e em dentes. A disposição desses materiais Entretanto, estudos referentes aos problemas de
associados junto ao corpo e na cova deve ser interpretação cultural do corante vermelho no
documentada precisamente, pois segundo Ubelaker interior das práticas funerárias, no contexto da
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evolução humana (Wreschner 1980) e mesmo terceiro grau, em que inexiste conexão anatômica
sobre suas características físico-químicas (Tiburtius completa ou parcial é o estado de desarticulação
e Leprevost 1952; Faria et al. 2002), forma de entre as unidades ósseas.
elaboração e de pigmentação do corpo do morto – Quando o corpo foi enterrado incompleto e
o pigmento é espargido, depositado em blocos que desarticulado, especialmente se não apresenta
se diluem e/ou como pigmentos misturados a pequenos ossos, um longo período, possivelmente
aglutinantes/fixadores que são aplicados sobre a meses, se não anos, separam o momento da morte
epiderme do cadáver ou na superfície de ossos já e o do enterramento final. Muitos tipos de armaze-
limpos? – por populações extintas são ainda raros, nagem ou enterramentos temporários podem ter
especialmente no Brasil. sido praticados nesse período, ocasionando a
Os procedimentos de preparação da área do perda de alguns ossos. O crânio, a mandíbula,
enterramento por meio da construção de mounds, determinados dentes e outros ossos longos
postes, fossos, rampas, cercados e plataformas de poderiam ter sido extraídos nesse mesmo período
pedra, turfa ou madeira resultam na variação de para fins rituais ou pela ação de animais que
textura e coloração do solo, bem como na visibilidade ocasionariam quebras, roeduras e extravios.13
do enterramento ou do conjunto de enterramentos Assim, um mesmo esqueleto pode apresentar ossos
no sítio arqueológico, em especial na Europa e nos três graus de articulação: completamente
norte da África. articulados, parcialmente desarticulados e
Outro critério, referente à articulação entre desarticulados. A observação das posições dos
os ossos ou conexão anatômica é observado pela ossos fornece informações para serem usadas na
sua graduação. Somente em enterramentos reconstituição de aspectos da prática funerária do
primários ou em corpos que sofreram processos grupo, assim como excluir ou incluir a ação de
moderados de redução é possível a evidenciação determinados processos após a deposição. O
de esqueletos articulados. A semiarticulação ou termo “rearticulação”, empregado por Haglund
articulação parcial refere-se à condição na qual (1976), implica em uma articulação artificial e
uma unidade óssea está na ordem da sua conexão intencional de origem antrópica, fazendo parte da
anatômica com outra, entretanto, encontra-se além etapa de tratamento e deposição do corpo na cova.
dos limites das cápsulas articulares. Um esqueleto Lothrop (1954), escavando enterramentos
rearticulado é aquele em que foi feita uma tentativa na praia de Venado, no Panamá, trabalhou com
de rearticulação intencional das unidades ósseas, esqueletos desarticulados e articulados de corpos
após um primeiro processo de desarticulação por que teriam sido enterrados ainda vivos, em rituais
destroncamento, desmembramento, espostejamento de suicídio, após morte involuntária sacrificial e
por traumas, decomposição intencional das com mutilação pela decapitação ou extração de
cápsulas sinoviais pelo processo lento ou rápido de caninos. A observação dessas formas de morte a
esqueletização por enterramento temporário, partir dos restos esqueletais decorre das posições
submersão para maceração ou exposição controla- dos ossos e as marcas de lesões que apresentam.
da do corpo a animais necrófagos. Os graus de Nos casos de corpos enterrados ainda vivos, os
articulação do esqueleto, segundo Ubelaker esqueletos estavam com mandíbulas abertas e os
(1996) e Brown (1971), podem ser: 1) completa, ossos dos dedos sugerindo movimentação das
em que todos os ossos do esqueleto estão na mãos. A morte involuntária, decorrente de rituais
posição e articulação corretas ou 2) parcial, em de sacrifício em Venado teriam deixado suas
que alguns ossos estão em conexão anatômica. A
articulação parcial entre as unidades ósseas do
esqueleto pode indicar um período de tempo entre (13) Modificações iniciais dos vestígios são condiciona-
a morte e a deposição e a estimativa desse período. das pela atividade dos agentes tanatófagos. Marcas e
Normalmente os ossos das mãos, pés, costelas e alterações deixadas pela ação de uma variável fauna
vértebras são encontrados parcialmente articulados cadavérica durante os estágios de decomposição do
devido a sua mobilidade por processos pós- corpo humano observadas como traços cronotanatológicos
indicadores da época da morte e da deposição constituem
deposicionais formativos do substrato arqueológico
dados normalmente estudados em Medicina Legal, mais
em que estão inseridos e ao próprio processo de especificamente pela Tanatologia Forense e, mais
esqueletização e reacomodação desses ossos. Um tardiamente, pela Arqueologia Forense.
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marcas in situ, na região posterior das vértebras a mobilização dos mesmos pela ação de quaisquer
lombares e nas cervicais, partidas em vida, processos formativos do sítio arqueológico.
identificável pela posição anormal, desarticulada As modificações post mortem do corpo foram
do crânio e torção brusca das cervicais por definidas por White (2000) como decorrentes da
destroncamento. Em outros casos, esqueletos de ação de animais necrófagos, das práticas funerárias,
adultos são encontrados sob a forma de bundle do canibalismo, decomposição química, da
burials em urnas ou articulados junto a urnas cremação e da fragmentação intencional dos ossos.
contendo esqueletos de crianças, também em Assim, não perfazem apenas a ação dos agentes
conexão anatômica. Para Lothrop (1954) os naturais, mas também resultam da intervenção
bundle burials consistem de ossos que foram antrópica, ocorrendo antes, durante ou após a
preservados após o descarnamento para serem deposição. Os aspectos tafonômicos, classificados
depositados em cova permanente. em biológicos, físicos e antrópicos, foram estuda-
Nas mutilações, partes do corpo são removi- dos sob uma perspectiva arqueológica por White
das em rituais e novamente depositadas junto do (2000), Haglund e Sorg (1997), Henderson (1987)
corpo. No caso dos crânios e dentes, estes podem e Bonnichsen e Sorg (1989).
ser removidos e não mais rearticulados, sendo Em Duday (1978) e Duday e Manet (1987) é
enterrados como “troféus”, com corpos não ressaltada a importância da comunicação constante
mutilados. As marcas de remoção dos crânios – entre o arqueólogo e o osteólogo durante as
cortes – podem estar nos côndilos da mandíbula e sucessivas fases de escavação dos remanescentes
no atlas de esqueletos articulados. esqueletais. A disposição do esqueleto informa
Segundo Lothrop (1954), os enterramentos sobre como o corpo teria sido depositado. As
de acordo com os problemas que encontrou no circunstâncias culturais e tafonômicas envolvidas
sítio da praia de Venado, apresentaram-se nos após a morte e o enterramento influenciam no
seguintes tipos: fletido (de costas, de frente, dos estado de conservação apresentado pelo esqueleto
lados direito ou esquerdo), estendido (de costas, e no direcionamento das estratégias de escavação,
de frente, dos lados direito e esquerdo), sitting descrição, registro, consolidação, transporte e
burials (sentado), infant burials, bundle restauro do material, bem como no estudo das
burials, urn burials, mouth open-alive e as coleções esqueletais constituídas.
mutilations, eventos exclusivos. Estes últimos As formas de enterramento podem ser
podem apresentar lesões somente no crânio, classificadas e sistematizadas considerando-se as
ausência deste, mandíbula ausente, membro terminologias vistas até então, de acordo com as
superior ausente, pé ausente, outros ossos variáveis de campo e de laboratório que se seguem:
ausentes, dente extraído, falanges de dedos a) tipo de deposição funerária (enterramento) e
amputadas, dedos sobre o crânio, esqueletos de tratamento dado ao corpo, por descarnamento
com marcas de espostejamento, decapitação, e desarticulação, pigmentação e/ou queima, entre
com lesão contusa das vértebras dorsais, outros; b) identificação das características das
lombares ou das cervicais. condições da deposição funerária, com a
Por outro lado, os fenômenos cadavéricos localização espacial em relação a outras estruturas
transformativos, conservativos e destrutivos arqueológicas e enterramentos; orientação, forma e
(Gonzales et al. 1954), podem ou não deixar suas dimensões da cova; c) tipo, número, localização e
impressões in situ. Assim, a ação dos animais dados morfoscópicos e morfométricos dos
necrófagos e grupos entomológicos podem intervir materiais associados ao corpo no enterramento e
no desaparecimento das partes moles do cadáver, d) estado de preservação dos esqueletos, número
esqueletizando-o, assim como sobre os materiais mínimo de indivíduos, sexo, idade biológica e
perecíveis associados ao corpo. O processo de patologias (Cheuiche Machado 1995).
esqueletonização, resultante da ação de uma fauna
entomológica relacionada ao processo de miasis
cadavérica foi estudado por Bertomeu (1975) e Conclusões e sugestões
Spitz e Fisher (1977), entre outros. A esqueletização
resulta no desaparecimento das cápsulas sinoviais e A partir dessa breve revisão das terminologias
dos ligamentos articulares entre os ossos, permitindo e classificações que pareceram mais significativas
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para podermos planejar uma discussão sobre como sentido proximal-distal nos fragmentos de
descrever e compreender os vestígios funerários no diáfises) deve ser registrado;14
contexto arqueológico, no âmbito de uma Arqueo-
b.2) o critério da posição: considerando
logia da Morte, foram escolhidas e adaptadas as
a presença de conexão anatômica generaliza-
variáveis funerárias observáveis tanto em campo
da entre as unidades esqueléticas, uma
quanto em documentações visuais já produzidas
classificação das disposições dos membros e
durante antigas escavações. O objetivo final desse
posição do corpo tem sido comumente
levantamento é instrumentalizar uma recognição
empregada. O primeiro tipo de posição do
visuográfica sistematizada de deposições funerári-
corpo refere-se à forma como este foi
as nos variados contextos arqueológicos e fazer um
depositado na cova: horizontalmente, em
bom uso dos seus registros fotográficos, com vistas
decúbito (lateral direito, esquerdo, ventral ou
à catalogação das coleções esqueletais e dos
dorsal), verticalmente, sentado (com eixo
materiais associados; contribuição com os métodos
crânio–bacia perpendicular ou inclinado para
e técnicas de escavação de deposições funerárias,
cima ou para baixo em relação ao plano da
em especial aquelas encontradas em todo o litoral
base da cova), entre outras variações; a
brasileiro e em sítios de interior, representando
flexão do corpo (estendido, semi-fletido,
parcelas do comportamento funerário e das
fletido, fortemente fletido) é dada pelo grau
características bioarqueológicas de populações
de flexão entre os eixos longitudinais dos
pescadoras-coletoras-caçadoras e horticultoras.
fêmures e o eixo crânio-bacia; a posição da
A proposição que sugerimos para esquematizar
cabeça refere-se sempre ao lado para o qual
a leitura dos sepultamentos humanos em contexto
a face está voltada (para a frente, para o lado
arqueológico, baseada em sugestões terminológicas
direito, lado esquerdo, para trás, para baixo
como as de Sprague (1967), Ubelaker (1996),
– com mento sobre o esterno –, para cima);
Brothwell (1981), Heizer e Grahn (1967) e Heizer
posição das mãos e dos pés (cruzados,
(1950), entre outros descritos anteriormente,
cruzados sobre o tórax, sobre a pelve, sobre
considera as seguintes características básicas:
a face, entre outras); a disposição dos mem-
a) as características da deposição: o bros (estendidos, semi-fletidos, fletidos,
aspecto da primeiridade ou secundidade de fortemente fletidos), com membros superiores15
uma deposição funerária é indicado, a priori, estendidos ao longo do corpo, voltados para
pela presença ou ausência de conexão frente, para trás, para a direita ou esquerda,
anatômica entre as unidades esqueléticas. para cima; as torções na região das cinturas
Nesse caso a interferência de fatores pós escapular e pélvica (voltadas para o lado
deposição, biológicos ou naturais pode direito, esquerdo, para baixo ou para cima,
dificultar a identificação da intencionalidade ou sempre em discordância com as posições
não intencionalidade antrópica desse aspecto, esperadas para o decúbito e as demais.
observável em contexto arqueológico. O Embora subjetivas, podem ser quantificadas
processo de redução do corpo pela queima pela mensuração dos ângulos formados entre
pode resultar em outro aspecto da deposição os eixos longitudinais dos ossos longos entre
funerária: a cremação (Ubelaker 1996). si e entre a coluna vertebral, sugeridos por
Temos por essas características o tipo de Saxe (1971) e Ubelaker (1996).
sepultamento (primário, secundário, terciário,
cremação, restos esparsos). A deposição
pode ser compreendida como contenedora
(14) Nesse caso, em esqueletos fragmentados, o
das características b), c) e d), descritas a direcionamento proximal-distal (P-D) das diáfises pode
seguir; ajudar na identificação de possíveis áreas em conexão
anatômica ou mesmo auxiliar na identificação de
b) as características do corpo: rearticulações ósseas intencionais ou de áreas semi-
b.1) o critério da articulação: conside- articuladas do esqueleto.
(15) Nos membros inferiores, os graus dos ângulos
rando a ausência de conexão anatômica formados entre os eixos longitudinais dos fêmures e o eixo
generalizada entre as unidades esqueléticas, a crânio-bacia têm sido empregados para mensurar a flexão
identificação e direcionamento das mesmas (o do esqueleto (do corpo ou do “enterramento”).
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(16) Este número, embora possa ser dado em campo, é (17) Os blocos líticos podem constituir elementos de
também normalmente estabelecido após exames em proteção do corpo, portanto partes da estrutura da cova;
laboratório, em especial nos casos de esqueletos podem ser usados na própria confecção das paredes da cova
extremamente fragmentados e em deposições secundárias. e terem servido para acentuar a visibilidade da inumação.
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