Alfabetizando Sem o Ba Be Bi Bo Bu

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ALFABETIZANDO SEM O BÁ-BÉ-BI-BÓ-BU

SUMÁRIO
Prefácio 4
Introdução 8

1. História da alfabetização 11
2. O ensino e a aprendizagem: os dois métodos.. 35
3. Avaliação, promoção, planejamento 61
4. O método das cartilhas 79
5. Panorama do processo de alfabetização 103
6. A decifração da escrita 119
7. Procedimentos para o estudo das letras 133
8. Sugestões de atividades na alfabetização 163
9. A produção de textos espontâneos 197
10. As hipóteses por trás dos erros 241
11. Ditado e cópia 287
12. Leitura e interpretação de texto 311
13. Ortografia da língua portuguesa 341

Apêndice — A categorização gráfica das letras 359


Bibliografia 389
Índice de tópicos por capítulo 397

PREFÁCIO
Alfabetizando sem o bá-bé-bi-bó-bu é, sem dúvida, um livro pioneiro. O próprio título já evidencia o seu
pioneirismo: uma nova proposta de metodologia da alfabetização, totalmente liberta do método silábico,
cartilhesco ou não.
Ao contrário do que se pode imaginar, não é apenas quando nos utilizamos da cartilha que o método silábico
do bá-bé-bi-bó-bu se encontra subjacente à prática de ensinar a ler e escrever. Como bem mostra o autor,
mesmo em práticas consideradas inovadoras e bem distantes da cartilha, a única tábua de salvação, para
muitos professores, é voltar ao antigo bê-a-bá.
Outra grande inovação (diríamos até “evolução”) trazida por este livro é colocar no centro da discussão da
aquisição da leitura e da escrita a noção de ortografia, ausente de qualquer outra abordagem do assunto já
conhecida. Não nos referimos à ortografia apenas como uma meta a ser atingida no final do processo, mas
como a noção fundamental que sustenta o nosso sistema de escrita. O autor nos mostra que, ao contrário do
que comumente se pensa, nosso sistema de escrita não é apenas alfabético (o que o tornaria uma mera
transcrição fonética), mas ortográfico (servindo a ortografia, entre outras coisas, para anular a variação
lingüística no nível da palavra). Assim, a partir de considerações a respeito da própria natureza do nosso
sistema de escrita, e de como isto interfere no processo de alfabetização, vemos como a ortografia deve ser
considerada desde o início do processo e não como objetivo final
— como o fazem tanto os métodos tradicionais baseados no bá-bé-bi-bó-bu, como também os ditos
construtivistas, que dividem a aquisição da linguagem escrita em níveis (pré-silábico, silábico e alfabético), os
quais não encontram correspondência exata em qualquer sistema de escrita conhecido, menos ainda em um
sistema de escrita ortográfico como o nosso.
Alfabetizando sem o bá-bé-bi-bó-bu é uma obra voltada para a formação do professor alfabetizador. Discute a
teoria da aquisição da linguagem escrita e fornece subsídios ao professor que tiver coragem, vontade, ou
simplesmente necessidade, imposta pelo seu cotidiano de alfabetizador, de mudar. É o resultado de quase
vinte anos de dedicação do autor à causa da alfabetização e de seus mais de trinta anos como lingüista. ~,
<4>
Representa, pois, a visão de um lingüista sobre o processo de aquisição da leitura e da escrita e a sua
contribuição, como professor, para a educação do país, de um modo mais geral. O autor afirma que um
professor que tenha os conhecimentos apresentados neste livro consegue conduzir com calma e segurança o
processo de alfabetização e tem chances de alfabetizar uma criança a partir dos cinco anos ou um adulto em
dois ou três meses — o que significa uma enorme conquista, dados os alarmantes níveis de analfabetismo no
Brasil. Isso porque os conhecimentos apresentados independem do tempo histórico e do espaço geográfico, já
que dizem respeito diretamente à natureza, função e usos da linguagem oral e escrita e não estão
subordinados a métodos pedagógicos. As estratégias de ensino podem variar de professor para professor, mas
o conhecimento da linguagem oral e escrita é uma aquisição da ciência e, desse modo, depende única e
exclusivamente do progresso da ciência. E nesse sentido, a ciência Lingüística já tem um conjunto considerável
de conhecimentos solidamente estabelecidos, dos quais uma parte é colocada aqui à disposição para uma
aplicação à educação.
Na sua carreira acadêmica, Luiz Carlos Cagliari tem trabalhado com três linhas de pesquisa: fonética e
fonologia, sistemas de escrita e alfabetização. Nas três áreas, além de ter produzido muitas pesquisas, que
resultaram em várias publicações, seu percurso como professor do Instituto de Estudos da Linguagem da
Unicamp inclui cursos na graduação em Letras e Lingüística e na pós-graduação em Lingüística, além de
comunicações em reuniões científicas importantes, dentro e fora do país. No entanto, este livro não pode ser
considerado apenas o resultado de uma pesquisa desenvolvida do lado de dentro dos portões da universidade,
desvinculada da realidade de sala de aula dos professores alfabetizadores do país. O contato e trabalho
conjunto do autor com os professores alfabetizadores vêm já de longa data.
O ano de 1980 é uma data-chave para a compreensão do seu envolvimento com os estudos de alfabetização.
Nessa ocasião, uma equipe da CENP o convidou para ministrar um curso de fonética acústica para professores
alfabetizadores, uma vez que, segundo os especialistas, os erros de troca de letras cometidos pelos alunos
eram devidos ao fato de os professores não conhecerem o assunto, não tendo, portanto condições de
resolverem o problema quando ele se manifestava. ~,
<5>
Analisando a questão, ele concluiu que os problemas não se restringiam à fonética acústica, mas envolviam
falhas sérias no processo de alfabetização, devido à falta de conhecimento lingüístico. Esse curso, realizado
com a colaboração de uma de suas colegas de departamento na Unicamp, a Drª Maria Bernadete Abaurre, e do
Dr. Márcio Silva, foi o início de um longo caminho de pesquisa e de cooperação com órgãos públicos,
faculdades e, sobretudo, com professores alfabetizadores, que forneciam ao autor material produzido pelos
alunos. Começou a organizar assim um enorme arquivo de produções infantis.
No ano seguinte, a convite da equipe pedagógica da Secretaria de Educação de Alagoas, juntamente com
Maria Bernadete, Luiz Carlos Cagliari ministrou um curso para professores alfabetizadores. Na ocasião, foi
possível pôr em prática as novas orientações propostas no curso da CENP, sobretudo, convencendo os
professores a deixar seus alunos produzirem textos espontâneos. O que parecia a eles uma loucura logo se
revelou uma grata surpresa. A evidência dos fatos mostrou a dimensão da capacidade dos alunos e que seus
erros, mais do que “falhas”, revelavam hipóteses que os levavam a fazer opções diante da escrita.
No ano de 1983, destaca-se sua participação no I Seminário Multidisciplinar: Alfabetização, realizado na
Pontifícia Universidade Católica (PUC) de São Paulo. Nessa ocasião, apresentou um trabalho intitulado A
formação do professor alfabetizador, em que já aparece um esboço de suas principais idéias sobre o processo
de alfabetizar.
Neste mesmo ano, outra colega sua do departamento de Lingüística da Unicamp, a Drª Cláudia Lemos,
organizou um encontro sobre Linguagem, Aprendizagem e Interação. Ela já conhecia o trabalho do autor na
área de alfabetização e achava que correspondia em grande parte ao que faziam os construtivistas, sobretudo
uma psicóloga que tinha encontrado na Europa, chamada Emília Ferreiro. Nesse encontro foram apresentadas
as idéias do construtivismo, que, a partir daí, invadiram os programas de alfabetização. Para esse evento, o
autor levou os textos espontâneos dos alfabetizandos de Alagoas e de Campinas com os quais ele havia
trabalhado, expondo-os em dois varais que acompanhavam toda a extensão do corredor do pavilhão dos
professores. Todos ficaram impressionados, e os textos forneceram material para muita discussão.~,
<6>
Em 1984, o autor já, havia juntado grande quantidade de trabalhos sobre os mais variados tópicos da
alfabetização relacionados com a fala, a escrita e a leitura. Esse material iria formar, mais tarde, o livro
Alfabetização e lingüística, publicado pela Scipione em 1989. Um dos trabalhos que não entrou naquele livro foi
o “Roteiro de sugestões para professores alfabetizadores”, que serviu de embrião para esta obra que ora
prefaciamos, cuja versão preliminar foi escrita nos dois primeiros meses de seu estágio de pós-doutoramento
em Londres, em 1987, e depois foi intensamente discutida e levada à sala de aula por professores
alfabetizadores de várias regiões do país.
Já em 1985, Luiz Carlos Cagliari participou do Projeto Ipê, coordenado pela CENP Nessa ocasião, publicou o
artigo “Caminhos e descaminhos da fala, da leitura e da escrita na escola”, que teve enorme repercussão. Com
o material desse artigo, foi feito o roteiro para um programa da TV Cultura relacionado com o Projeto Ipê.
Paralelamente a isso, começaram a ser publicados no Brasil artigos de Emília Ferreiro e suas idéias apareceram
também no Projeto Ipê. A pesquisadora Telma Weisz, discípula de Ferreiro passou a liderar a divulgação do
construtivismo no estado de São Paulo, com o apoio da CENP e, sobretudo depois, com a FDE. Nessa época, já
era notória a discordância do autor ver artigo “O príncipe que queria ser sapo”) e de outros lingüistas com
relação às interpretações de Emília Ferreiro a respeito do processo de letramento. A opção pelo construtivismo
e, de certo modo, sua imposição às atividades da rede pública deixaram em um plano secundário as críticas e
outras formas de pensar e de fazer o processo de alfabetização. Apesar disso, Luiz Carlos Cagliari continuou
pesquisando com empenho e profundamente, até a formação de um conjunto de idéias sólidas, bem
fundamentadas, que explicam não só como alguém se alfabetiza, mas também como tirar alguém do “mau
caminho” e fazer com que supere seus obstáculos e consiga se alfabetizar. São estas as idéias apresentadas no
presente livro.
Atualmente, seus olhos voltam-se para um novo horizonte: a alfabetização de adultos. Continua sua luta
incansável contra o analfabetismo e por rumos melhores para a alfabetização dos que efetivamente
conseguem chegar até a escola.
Gladis Massini-Cagliari. ~,
<7>

INTRODUÇÃO

Em 1981, baseando-me na experiência de alfabetização de meu filho Daniel na Escócia (1976), disse para
muitos professores (em cursos e palestras) que as crianças podiam escrever textos já no início da alfabetização,
passando da capacidade de produzir textos orais para a representação escrita, mesmo sem saber bem a grafia
das palavras. Fui então considerado um maluco, que nunca tinha alfabetizado alguém. Bastou a coragem de
alguns professores, já no ano seguinte, para que todos descobrissem que isso era possível. Com o trabalho de
colegas como Maria Bernadete Abaurre e João Wanderley Geraldi e com a divulgação das idéias de Emília
Ferreiro, o que era medo de ensinar tornou-se procedimento comum com relação à produção de textos
espontâneos na alfabetização e de livrinhos de classe em todas as séries iniciais.
Neste livro, há um outro desafio: ensinar a ler a partir da reflexão sobre o processo de alfabetização,
tornando conscientes para o professor e o aluno as regras de decifração da escrita. As crianças gostam de
aprender coisas sérias, ensinadas com seriedade — e é isto o que mais falta hoje na escola. Esse desafio é fruto
de extenso estudo sobre o processo de alfabetização, ponderando as implicações dos estudos da linguagem no
modo como as crianças usam a fala, a escrita e a leitura. Além disso, leva-se em consideração uma investigação
profunda da história da escrita, da natureza e usos dos sistemas de escrita. Sem esse suporte lingüístico e esse
conhecimento dos sistemas de escrita, grande parte da problemática do processo de letramento fica
distorcida, não raramente levando os estudiosos por caminhos sem saída. A simples aplicação de um método
ou de uma teoria conduz facilmente o processo pedagógico a reproduzir um modelo. Nesse contexto, os alunos
precisam se virar com os recursos do modelo.
E se não der certo, se o aluno, apesar das repetições a que é submetido, não conseguir se alfabetizar? Essa
preocupação sempre foi a central de todos os meus estudos. A única saída para impasses como esse — e, por
que não, para conduzir tranqüilamente um processo de letramento — é o conhecimento sofisticado e correto
das questões lingüísticas relacionadas à alfabetização, bem como do funcionamento dos sistemas de escrita.
Idéias simples, porém, fundamentais, como a variação lingüística e o fato de a ortografia ter modificado ~,
<8>
profundamente o sistema alfabético, quando ausentes ou mal interpretadas na escola, podem criar grandes
embaraços para a aprendizagem do aluno e um quebra-cabeça extremamente complicado para a ação do
professor.
Tenho certeza (pois também já constatei na prática) de que os professores irão descobrir nos procedimentos
sugeridos neste livro uma forma nova e segura de alfabetizar. Não basta deixar de lado o livro das cartilhas; é
preciso deixar de lado o método das cartilhas, o ensino centrado na noção de sílaba como unidade privilegiada
da escrita e da leitura. Ensinar as crianças a tornar conscientes os procedimentos de decifração da escrita é
uma estratégia que as agrada mais do que ficarem repetindo coisas aparentemente sem sentido, ou ser
largadas à própria sorte, esperando que saiam de dentro de si os conhecimentos que a escola exige para ler e
escrever. A proposta deste livro é ensinar de maneira clara e com precisão como se faz para aprender a ler e a
escrever — o que corresponde exatamente às expectativas das crianças.
O fato de ser este livro volumoso, abrangendo um assunto complicado, não deve ser motivo de receio para
os professores, que sentirão seu trabalho facilitado e valorizado com a adoção de uma nova postura em sala de
aula. As crianças vão se sentir valorizadas também em suas descobertas, ganhando maior segurança ao
observarem seu próprio progresso. Para o professor, no começo, talvez esta apresentação do processo de
alfabetização possa parecer muito técnica e fora da realidade pedagógica e psicológica das crianças. Lembro
que o mesmo me diziam quando afirmava que as crianças eram capazes de produzir textos espontâneos,
passando dos conhecimentos que tinham da linguagem oral para a forma escrita. Hoje, todos concordam que
produzir textos é algo que as crianças fazem com facilidade, criatividade e prazer. Com o tempo, mesmo
problemas altamente complexos passam a ser vistos como desafios comuns quando se familiariza com eles e
com as soluções necessárias. Um bom exemplo disso no mundo moderno é a maneira como as crianças lidam
com os jogos de vídeo games. Depois de certa prática, aprendendo uma quantidade enorme de regras, jogam
com facilidade, para espanto de quem não é capaz. Outro exemplo mais próximo de nosso assunto está no
próprio fato de as pessoas que aprenderam a ler e a escrever (e isso se constata já nas primeiras séries)
tiveram de passar por todas essas regras e por todos os ~,
<9>
conhecimentos “técnicos” que constituem o objetivo deste livro. Na verdade, não há outra saída. O que existe
são os caminhos diferentes para se obter um resultado. Como costumo dizer, alguém pode ir de São Paulo ao
Piauí andando a pé, a cavalo ou de avião. Há muitas escolhas, mas nem todas têm o mesmo valor.
Para juntar conhecimentos teóricos com metodologias ou estratégias de ação, foi preciso me alongar no
assunto, dado o volume de informação e a necessidade de clareza na exposição. O livro está dividido em treze
capítulos e um apêndice. Para auxiliar na pesquisa do professor que está em busca dos conhecimentos básicos
há uma breve história da alfabetização, uma sucinta apresentação da história da ortografia da língua
portuguesa e o apêndice, no qual as letras são estudadas individualmente, mostrando as facilidades e
dificuldades de seu ensino e aprendizagem. O método das cartilhas mereceu um estudo à parte, para
contrastar com o que se propõe: deixar de lado o bá-bé-bi-bó-bu e partir para um trabalho de pesquisa
envolvendo professor e alunos. Algumas questões pedagógicas, como a avaliação, a promoção e o
planejamento escolar, tiveram de ser abordadas em vista de suas conseqüências para a ação do professor e do
aluno. O que se propõe é que a escola ensine os alunos a estudar, a trabalhar com os conhecimentos, e não
com o objetivo menor de ganhar nota e passar de ano. A parte principal do livro concentra-se nos
procedimentos para o estudo das letras, com sugestões de atividades e destaque especial para a produção de
textos espontâneos. Os problemas que o aluno e o professor encontrarão são analisados e discutidos em
detalhes, mostrando, por um lado, o que é preciso saber para decifrar a escrita e, conseqüentemente, ler e
escrever, e, por outro, quais as hipóteses que os alunos apresentam quando erram e como não cair em
impasses que impedem o progresso desses alunos. Outras atividades importantes foram também
consideradas, como o ditado, a cópia e a interpretação de textos.
Este livro pretende ser uma contribuição a mais (há tantas coisas interessantes e importantes que têm sido
apresentadas aos professores alfabetizadores nas duas últimas décadas...) para que se entenda melhor o
processo de alfabetização. O objetivo não foi fazer um livro teórico nem um manual do professor, mas
apresentar, discutir e sugerir idéias que o autor pesquisou, que foram amplamente discutidas com
pesquisadores e, sobretudo, com professores alfabetizadores. ~,
<10>

Gladis Massini-Cagliari é professora assistente doutora de língua portuguesa do Departamento de Lingüística


da Faculdade de Ciências e Letras da Unesp-Araraquara. É mestre e doutora em lingüística pelo Departamento
de Lingüística da Unicamp e autora de trabalhos publicados na área de alfabetização, fonologia, lingüística
histórica e lingüística textual. Interlocutora privilegiada do autor por ser sua mulher e tê-lo conhecido como
professor do Instituto de Estudos da Linguagem da Unicamp, vem acompanhando seu percurso como lingüista
e, a partir de 1991, passou a colaborar ativamente em seus trabalhos na área de alfabetização.

1
História da alfabetização

Quem inventou a escrita inventou ao mesmo tempo as regras da alfabetização, ou seja, as regras que
permitem ao leitor decifrar o que está escrito entender como o sistema de escrita funciona e saber como usá-
lo apropriadamente. A alfabetização é, pois, tão antiga quanto os sistemas de escrita. De certo modo, é a
atividade escolar mais antiga da humanidade.
Para que os sistemas de escrita continuem a ser usados, é preciso ensinar às novas gerações como fazê-lo.
Quando esse elo se rompe, por abandono ou porque é trocado por outro modelo, a escrita antiga passa a ser
um sistema sem decifração. Nesses casos, só com muito estudo, e também com um pouco de sorte da parte
dos decifradores dessas escritas abandonadas, as regras que envolvem tais sistemas voltam a ser conhecidas,
permitindo assim que os textos antigos sejam lidos e que a escrita possa ser novamente utilizada.
Na história da escrita, registram-se apenas dois casos de povos que empregavam um sistema de escrita e
que, por alguma razão estranha e desconhecida, deixaram de fazê-lo, ficando por um longo tempo sem utilizar
qualquer sistema. Isso aconteceu com os gregos e com os indianos.
A escrita cretense minóica (Linear B) foi usada pela cultura grega micênica até 1250 a.C., quando Micenas foi
destruída. Os gregos voltaram a escrever somente 500 anos mais tarde, usando o alfabeto semítico. No vale do
rio Indo, houve um sistema de escrita ainda não decifrado que só foi empregado por volta de 2500 a.C.
Naquela região, a escrita só ressurgiria muito tempo depois, no século III a.C., com a escrita brãmane.
Curiosamente, esses dois tipos de escrita, ao que tudo parece, tiveram um uso muito popular, ou seja, não
ficaram restritos a atividades religiosas ou científicas. Mesmo guerras muito violentas nunca interromperam o
conhecimento da escrita, razão pela qual esses dois casos são considerados hoje misteriosos. ~,
<12>
Estudando atentamente os sistemas de escrita, percebe-se que quem os inventou sempre teve a
preocupação de fornecer a chave da decifração juntamente com o próprio sistema. Os sistemas de escrita
nunca tiveram nada de muito estranho ou misterioso em si, pelo contrário, sempre foram simples e práticos.
Por essa razão, ensinar as novas gerações a usar o sistema de escrita sempre foi uma tarefa fácil e de certa
forma banal.

< CAGLIARI, 1996b,p. 106-24.


A antiga civilização da ilha de Creta usou dois sistemas de escrita que os estudiosos chamaram de Linear A e B.
O primeiro representara uma língua desconhecida e foi decifrado somente em parte. O segundo representava
a língua grega arcaica e foi decifrado.

A LEITURA E A ESCRITA NA ANTIGUIDADE

HAMURABI, da Babilônia entre os anos de 1792 e 1750 a.c., fundador do Império Babilônico. Seu código é o
mais extenso conjunto de leis conhecido da Antiguidade.

Os sistemas de escrita estabelecidos na história dos povos nunca foram privilégio de ninguém. É falsa a idéia
de que na Antiguidade somente os sacerdotes, os reis ou pessoas de grande poder dominassem a escrita e a
usassem como um segredo de Estado. Essa é uma idéia errada e estranha, que não faz sentido algum, bastando
lembrar como argumento que a escrita é um fato social, é uma convenção que não consegue sobreviver à custa
de um punhado de pessoas. Os fatos históricos também mostram o contrário. Quando um faraó enche todas as
paredes e até colunas com escrita e exibe isso publicamente, não pensa, certamente, que essa seja a melhor
maneira de guardar um segredo de Estado. Ao ler o que ele mandou escrever, ficamos sabendo que, às vezes, o
texto tem como interlocutor o próprio povo, súdito do monarca. Na Mesopotâmia, Hamurabi mandou publicar
em praça pública um código de leis para que o povo soubesse sob quais leis vivia e como deveria se portar em
sociedade.
O que tem perturbado aqueles que acreditam ser a escrita um privilégio das pessoas poderosas é o fato de
terem chegado até nós grandes obras da Antiguidade. Certamente essas obras foram feitas por especialistas,
assim como, hoje em dia, um livro de engenharia é escrito por um engenheiro, um livro de medicina por um
médico, um livro de religião por um teólogo e assim por diante. Isso não significa que somente engenheiros,
médicos e teólogos conheçam a escrita no mundo moderno.
Costumo dizer que quem inventou a escrita foi a leitura: um dia, numa caverna, o homem começou a
desenhar e encheu as paredes com figuras, representando ~,
<13>
animais, pessoas, objetos e cenas do cotidiano. Certo dia recebeu a visita de alguns amigos que moravam
próximo e foi interrogado a respeito dos desenhos. Queriam saber o que representavam aquelas figuras e por
que ele as tinha pintado nas paredes. Naquele momento, o artista começou a explicar os nomes das figuras e a
relatar os fatos que os desenhos representavam. Depois, à noite, ficou pensando no que tinha acontecido e
acabou descobrindo que podia “ler” os desenhos que tinha feito. Ou seja, os desenhos, além de representar
objetos da vida real, podiam servir também para representar palavras que, por sua vez, se referiam a esses
mesmos objetos e fatos na linguagem oral. A humanidade descobria assim que, quando uma forma gráfica
representa o mundo, é apenas um desenho; mas, quando representa uma palavra, passa a ser uma forma de
escrita. A partir dessa descoberta, criar um sistema de formas gráficas, figurativas ou não, para representar
palavras ou frases ou mesmo histórias, era um passo fácil de ser dado.
A história contada acima é obviamente fantasiosa e não corresponde aos fatos reais, mas revela algo
importante, que não pode ser captado pelos documentos materiais da história, porque pertence ao reino do
pensamento. Provavelmente, a necessidade de um sistema de escrita veio de situações vividas.
De acordo com fatos comprovados historicamente, a escrita surgiu do sistema de contagem feito com
marcas em cajados ou ossos, e usado provavelmente para contar o gado, numa época em que o homem já
possuía rebanhos e domesticava os animais. Esses registros passaram a ser usados nas trocas e vendas,
representando a quantidade de animais ou de produtos negociados. Para isso, além dos números, era preciso
inventar símbolos para os produtos e para os nomes dos proprietários.
Nessa época de escrita primitiva, ser alfabetizado significava saber ler o que aqueles símbolos significavam e
ser capaz de escrevê-los, repetindo um modelo mais ou menos padronizado, mesmo porque o que se escrevia
era apenas um tipo de documento ou texto. Com a expansão do sistema de escrita, a quantidade de
informações necessárias para que alguém soubesse ler e escrever aumentou consideravelmente, o que obrigou
as pessoas a abandonar o sistema de símbolos para representar coisas e a usar cada vez mais símbolos que
representassem sons da fala, como, por exemplo, as sílabas. Como há cerca de 60 tipos de sílabas diferentes ~,
<14>
por língua, em média, o sistema de símbolos necessários para representar as palavras através das sílabas ficou
muito reduzido, fácil de ser memorizado e conveniente para a difusão da escrita na sociedade.
O longo processo de invenção da escrita também incluiu a invenção de regras de alfabetização, ou seja, as
regras que permitem ao leitor decifrar o que está escrito e saber como o sistema de escrita funciona para usá-
lo apropriadamente.
A escrita, pelo que se sabe hoje, começou de maneira autônoma e independente, na Suméria, por volta de
3300 a.C. É muito provável que no Egito, por volta de
3000 a.C., e na China, por volta de 1500 a.C., esse processo autônomo tenha se repetido. Os maias da América
Central também inventaram um sistema de escrita independentemente de um conhecimento prévio de outro
sistema de escrita, num tempo indeterminado ainda pela ciência, que talvez se situe por volta do início da era
cristã. Todos os demais sistemas de escrita foram inventados por pessoas que tiveram, de uma maneira ou de
outra, contato com algum sistema de escrita.
Na Antiguidade, os alunos alfabetizavam-se aprendendo a ler algo já escrito e depois copiando. Começavam
com palavras e depois passavam para textos famosos, que eram estudados exaustivamente. Finalmente,
passavam a escrever seus próprios textos. O trabalho de leitura e cópia era o segredo da alfabetização. Note
que essa atividade está diretamente ligada ao trabalho futuro que esses alunos irão desempenhar, escrevendo
para a sociedade e a cultura da época.
Muitas pessoas aprendiam a ler sem ir para a escola, já que não pretendiam tornar-se escribas. A
curiosidade, certamente, levava muita gente a aprender a ler para lidar com negócios, comércio e até mesmo
para ler obras religiosas ou obter informações culturais da época. A alfabetização, nesses casos, dava-se com a
transmissão de conhecimentos relativos à escrita de quem os possuía para quem queria aprender. Aprender a
decifrar a escrita, ou seja, a ler, relacionando os caracteres às palavras da linguagem oral, devia ser o
procedimento comum. Aqui, não era preciso fazer cópias nem escrever: bastava saber ler. Para quem sabe ler,
escrever é algo que vem como conseqüência.
Com a escrita semítica aconteceu algo muito curioso e que, sem dúvida alguma, foi proposital para facilitar o
uso do sistema de escrita e sobretudo o seu aprendizado, ou seja, o processo de alfabetização.
<15>
Ao formar seu sistema de escrita, os semitas escolheram um conjunto de palavras cujo primeiro som fosse
diferente dos demais. Como nenhuma palavra naquelas línguas começasse por vogal, a lista ficou apenas com
consoantes. Essa escolha foi urna decisão muito importante porque reduziu os modelos de silabários da época,
da escrita cuneiforme, por exemplo, de cerca de 60 elementos para apenas 21 consoantes. Para representá-las
graficamente, foram escolhidos hieróglifos egípcios cujo aspecto figurativo lembrava o significado das palavras
daquela lista. Por exemplo, a primeira palavra da lista era ‘alef, que significava “boi”, e o hieróglifo escolhido foi
o que representava a cabeça de um boi. Dessa maneira, a figura da cabeça do boi passou a representar o som
inicial da palavra ‘alef, que era oclusiva glotal. E assim com as demais palavras e suas respectivas consoantes.
Uma outra novidade decorreu desse fato: as palavras da lista passaram a ser os nomes das letras que
representavam a consoante inicial dessas palavras. Além disso, esse nome passou a ser a chave para se saber
que som a letra representava: aief representava a oclusiva glotal, por exemplo. A escolha de uma lista de
palavras como essa constitui o que se chama de princípio acrofônico, ou seja, o som inicial do nome das letras
é o som que a letra representa: o desenho da cabeça de boi representa o som da oclusiva glotal, porque o
nome dessa letra é ‘alef A segunda letra era Beth, representada por um hieróglifo que retratava a figura de
uma casa; era usada para o som de B e significava “casa”. A terceira letra era o Daieth, que significava “porta” e
representava o som de D; tinha a forma gráfica da figura de uma porta, tirada também de um hieróglifo
egípcio, e assim por diante.
O princípio acrofônico foi uma das melhores idéias que apareceram nos sistemas de escrita: além de permitir
uma grande simplificação no número de letras, trazia de forma óbvia como se devia proceder para ler e
escrever. Uma vez identificada a letra pelo nome, já se tinha um som para ela. Juntando os sons das letras das
palavras em seqüência, tinha-se a pronúncia de uma dada palavra — o que, feitos os devidos ajustes, dava o
resultado final de sua pronúncia; e, pronunciando, o significado vinha automaticamente.
Para se alfabetizar nesse sistema de escrita, bastava a pessoa decorar a lista dos nomes das letras, observar a
ocorrência de consoantes nas palavras e transcrever esses sons consonantais, usando o princípio acrofônico.
Para escrever David, por exemplo, bastava identificar as consoantes DVD, procurar, na lista de letras, aquelas
que começam com sons de D e V e escrevê-las.
Já os gregos, como precisassem fazer alguns ajustes nas próprias consoantes, uma vez que, em grego, o
conjunto de consoantes era diferente daquele das línguas semíticas, resolveram escrever não apenas as
consoantes, mas também as vogais, mantendo o mesmo princípio acrofônico. Assim, por exemplo, a letra
egípcia que representava pictograficamente a cabeça de um boi foi usada, como vimos, pelos semitas para
representar uma consoante oclusiva glotal, e a letra recebeu o nome da palavra que significava boi, ou seja,
‘alef. Como em grego não houvesse consoante oclusiva glotal, a letra ‘alef passou a representar a vogal A,
agora denominada alfa.
Apesar de manter o princípio acrofônico, os gregos adaptaram os nomes das letras semíticas para a sua
língua. Para eles, a alfabetização acontecia de maneira semelhante à dos semitas, com a única diferença de que
os gregos tinham de detectar na fala não apenas as consoantes, mas também as vogais, para escreverem
alfabeticamente. Como sempre, a ortografia fixou a forma de escrita das palavras, para evitar que falantes de
dialetos diferentes escrevessem as mesmas palavras de maneiras diferentes, seguindo apenas a observação da
própria fala e o valor fonético das letras.
Quando os gregos passaram a usar o alfabeto, aprender a ler e a escrever tomou-se urna tarefa de grande
alcance popular. De fato, pode-se mesmo dizer que na Grécia antiga havia as escolas do alfabeto.
Os romanos assimilaram tudo o que puderam da cultura grega, inclusive o alfabeto. Práticos como sempre,
acharam interessante o princípio acrofônico do alfabeto grego, mas perceberam que não precisavam ter
nomes especiais para as letras: era mais simples ter como nome da letra apenas o próprio som dela. Dessa
forma, mantinha-se o princípio acrofônico e ficava ainda mais fácil usar o alfabeto e se alfabetizar. Foi assim
que alfa, beta, gama, delta, épsilon, etc. transformaram-se em a, bê, cê, dê, e, etc.
Os semitas, os gregos e os romanos nos deixaram alguns “alfabetos”: tabuinhas ou pequenas pedras ou
chapas de metal onde se encontravam todas as letras, na ordem tradicional dos alfabetos. Na verdade, serviam
~,
<17>
de guia para as pessoas aprenderem a ler e a escrever, ou mesmo quando fossem escrever. Tais documentos
foram, por assim dizer, as mais antigas “cartilhas” da humanidade: uma cartilha que continha apenas o
inventário das letras do alfabeto.
A alfabetização, na Idade Média, em geral ocorria menos nas escolas do que na vida privada das pessoas:
quem sabia ler ensinava a quem não sabia, mostrando o valor fonético das letras do alfabeto em determinada
língua, a forma ortográfica das palavras e a interpretação da forma gráfica das letras e suas variações.
Aprender a ler e a escrever não era uma atividade escolar, como na Suméria ou mesmo na Grécia antiga. Nessa
época, como as crianças já não iam mais à escola, as que podiam eram educadas em casa pelos pais, por
alguém da família ou até mesmo por um preceptor contratado para essa tarefa. Isso se estende desde a época
clássica latina até o século XVI d.c.
Como o alfabeto tinha no nome das letras o princípio acrofônico, que é a chave de sua decifração, bastava o
aprendiz decorar o nome das letras para ter condições de iniciar a decifração da escrita, a qual se completava
quando, somando-se os valores das letras, descobria-se que palavra estava escrita. Isso era altamente
facilitado pelo fato de os aprendizes serem falantes da língua que estavam decifrando, o que ajuda em muito
as tentativas para descobrir, entre as várias possibilidades, a leitura correta. O contexto lingüístico e as
ilustrações sempre ajudaram com informações complementares, facilitadoras do processo de decifração. Vê-
se, pois, que a alfabetização pode perfeitamente acontecer fora da escola e do processo escolar, podendo ser
feita em casa se a isso as pessoas se dedicarem. Ainda hoje, muitas pessoas aprendem a ler em casa: algumas
porque decidiram não esperar a escola chegar, outras porque foram expulsas da escola e resolveram aprender
fora da tradição escolar. Um exemplo famoso desse último caso é Thomas Edison. Com o uso cada vez maior
da escrita na sociedade e com a produção crescente de livros escritos à mão (e depois impressos), o alfabeto
passou ter um problema a mais: foram surgindo formas variantes de representação gráfica das letras (sem
modificar o inventário do alfabeto). Isso fez com que uma letra passasse a ser apenas um valor abstrato do
alfabeto, que podia ser representado por muitas formas gráficas, as quais, agora, o usuário do sistema de
escrita tinha de conhecer.
<18>
A primeira manifestação desse fato aconteceu quando das letras capitais (as maiúsculas — que eram as
únicas do sistema de escrita latina) surgiram as letras minúsculas com forma gráfica diferente das antigas, que
passaram a chamar-se maiúsculas. Isso aconteceu sem que as letras perdessem seu valor fonético e sem que a
ortografia das palavras mudasse. Agora, o usuário da escrita precisava saber que ‘A” e “a” são a mesma letra e,
portanto, “CASA’ equivale a “casa”. Isso trouxe um problema novo e complicado para a alfabetização e para os
leitores, em geral. Não bastava saber o alfabeto, seu princípio acrofônico e a ortografia: era preciso, ainda,
saber fazer a categorização correta das formas gráficas, reconhecendo a que categoria pertence cada letra
encontrada nas diferentes manifestações gráficas da escrita. Nesse caso, a ortografia mostrou uma vantagem a
mais: além de servir para neutralizar a variação lingüística na escrita, do ponto de vista fonético, passou a ser o
guia interpretativo do valor da variação gráfica das próprias letras. Este último aspecto pode ser observado
ainda hoje, quando descobrimos (ou desconfiamos) que letra está escrita, ao analisar o todo. Como sabemos,
ainda através da ortografia, quais letras devem compor aquela palavra, acabamos nos convencendo de que
determinada forma gráfica está representando uma letra e não outra. Na escrita cursiva, esse princípio é posto
em prática a todo instante.

Notas
Thomas Alva Edison (1931), considerado um dos maiores inventores do milênio, era americano de Milan
Obio. Patenteou 1093 inventos, inclusive a lâmpada elétrica o gravador o microfone e o projetor de cinema.
Freqüentou a escola por apenas três meses, sendo dispensado por ser “confuso de cabeça e não conseguir
aprender”. Nunca mais voltou para a escola tornando-se um autodidata com a ajuda da mãe, uma es-
professora.

O APARECIMENTO DAS CARTILHAS

Com o Renascimento (séculos XV e XVI) e, sobretudo, com o uso da imprensa na Europa, a preocupação com
os leitores aumentou, uma vez que agora se faziam livros para um público maior, e a leitura de obras famosas
deixou de ser coletiva para se tornar cada vez mais individual. Por isso, a preocupação com a alfabetização
passou a ter uma importância muito grande. A primeira conseqüência disso foi o aparecimento das primeiras
“cartilhas”. Nessa época, surgem as primeiras gramáticas das línguas neolatinas, e esse foi outro motivo que
levou os gramáticos a se dedicarem também à alfabetização: era preciso estabelecer uma ortografia e ensinar
o povo a escrever nas línguas vernáculas, deixando de lado cada vez mais o latim.
<19>
A seguir apresentamos um breve apanhado das primeiras obras de alfabetização que surgiram na Europa
entre os séculos XV e XVIII.
Jan Hus (1374-14 15) propôs uma ortografia padrão para a língua tcheca e, juntamente com este trabalho,
apresentou o ABC de Hus: um conjunto de frases de cunho religioso, cada qual iniciando com uma letra
diferente, na ordem do alfabeto. Essa obra era voltada para a alfabetização do povo.
Em 1525, foi publicada na cidade de Wittenberg uma cartilha do ABC intitulada Bokeschen vor leven ond
kind, que continha o alfabeto, os dez mandamentos, orações e os algarismos. Em 1527, Valentim Ickelsamer
incluiu, numa obra semelhante, listas de sílabas simples. Esse tipo de obra permanece com esquema
semelhante até o século XVII. Somente no século XVIII, apareceram as primeiras gravuras das letras iniciais, por
exemplo, a letra S com o desenho de uma cobra, a letra A com a figura de uma escada, etc.
O educador tcheco Jan Amos Komensky, mais conhecido como Comênius (1592-1670), fez de sua obra Orbis
sensualispictus (“O mundo sensível em gravuras”), publicada em 1658, um livro de alfabetização em que as
lições vinham acompanhadas de gravuras para ajudar e motivar as crianças para os estudos.
São João Batista de la Salle escreveu, em 1702, um regulamento para as escolas que fundara, chamado
“Conduite des é coles chrétiennes” (“Conduta das escolas cristãs”), publicado em 1720. Com essa obra, pode-
se ter uma idéia bem detalhada de como eram as aulas naquela época, inclusive as de alfabetização. O ensino
era dividido em “lições”, cada uma tendo três partes, uma destinada aos alunos principiantes, outra aos
médios e a terceira aos avançados. A primeira lição era a “tábua do alfabeto”; a segunda, a “tábua das sílabas”;
a terceira, o silabário; a quarta, o segundo livro, para aprender a soletrar e a silabar; a quinta (ainda no
segundo livro) cuidava da leitura para quem já sabia silabar perfeitamente, etc. No terceiro livro, os alunos
aprendiam a ler com pausas.
Para ensinar ortografia, o professor mandava os alunos copiarem cartas-modelo e documentos comerciais
para aprenderem, ao mesmo tempo, coisas úteis para a vida. Nesse modelo de ensino, aparece uma distinção
clara entre ler e escrever. A leitura era dirigida para as coisas religiosas; a escrita, para o trabalho na
<20>
sociedade. Esse modelo de escola partiu da França e teve grande repercussão nas escolas dirigidas por
religiosos em outros países.
Após a Revolução Francesa, surgiu o Ensino Mútuo, que se espalhou sobretudo entre povos
anglogermânicos. O pedagogo alemão José Hamel, em sua obra Ensino Mútuo, descreve o método de
alfabetização em detalhes. Os alunos aprendem em aulas de 15 minutos, estudando exercícios fáceis e em coro
ao redor de lousas colocadas nas paredes da sala. O ensino é nitidamente coletivo, sendo dado para classes e
não mais com atenção individual.
O ensino com muitos alunos numa classe acabou criando um tipo de escola para as crianças, as escolas
infantis, jardins de infância ou escola maternal, iniciadas por Robert Owen (1771-1858) em 1816 para os filhos
dos operários de sua fábrica têxtil de New Lanark, na Escócia. Essas escolas logo se espalharam e passaram a
cuidar da alfabetização das crianças. O pedagogo alemão Friedrich Froebel (1782- 185 2) fundou o primeiro
jardim de infância (Kindergarten) em 1837.
A Revolução Francesa trouxe grandes novidades para a escola: uma delas foi a responsabilidade com a
educação das crianças, introduzindo a alfabetização como matéria escolar. Alfabetização popular nessa época
significava a educação dos ricos que não tinham ligação com a nobreza, ou seja, membros da burguesia.
Diante dessa nova realidade, as antigas cartilhas sofreram uma modificação notável. Com a escolarização, o
processo educativo da alfabetização tinha de acompanhar o calendário escolar. Como as antigas cartilhas
fossem simples esquemas, passaram a ser mais desenvolvidas. O estudo foi dividido em lições, cada uma
enfatizando um fato. O ensino silábico passou a dominar o alfabético. O método do bá-bé-bi-bó-bu começava a
aparecer. Com poucas modificações superficiais, esse tipo de cartilha iria ser o modelo dos livros de
alfabetização.
A moda das escolas que ensinavam as crianças a ler e a escrever espalhou-se pelo mundo. Apesar de a
escola se encarregar da alfabetização, os alunos que freqüentavam essas escolas pertenciam a famílias com
certo status na sociedade. O povo simples e pobre continuava fora da escola. No Brasil, até as primeiras
décadas deste século, a escolarização da maioria das
<21>
pessoas que iam à escola pública não passava do segundo ou do terceiro ano. Alguns documentos do final do
Império mostram que as Escolas Normais não
tinham alunos e o governo era obrigado a dar vantagens extras àquelas pessoas que trabalhavam com
alfabetização.
Naquela época, os professores das escolas
públicas eram em geral eleitos pela comunidade e tinham um mandato determinado. Muitos professores
queixavam-se dos baixos salários, razão pela qual as poucas escolas públicas lutavam para conseguir quem
desse aulas.

CARTILHAS DA LÍNGUA PORTUGUESA

João de Barros (1496-1571) escreveu a gramática portuguesa mais antiga, publicada em 1540. junto com
a gramática, publicou a Cartinha, que é um outro diminutivo
de “carta”, ao lado de “cartilha”. O nome
“cartinha” ou “cartilha” tem a ver com “carta”, no sentido
de esquema, mapa de orientação.
A Cartinha de João de Barros trazia o alfabeto (em
letras góticas, que eram as da imprensa da época); depois, vinham as “taboas” ou “tabelas”, com todas
as combinações de letras, que eram usadas para escrever todas as sílabas das palavras da língua portuguesa.
Em seguida, havia uma lista de palavras, cada
uma começando com urna letra diferente do alfabeto e ilustrada com desenhos (como: nau, tesoira, etc.). Por
último, vinham os mandamentos de Deus e da Igreja
e algumas orações. João de Barros incluiu também um gráfico que permitia fazer todas as combinações de
letras das “taboas”.
A Cartinha de João de Barros não era um livro para ser usado na escola, uma vez que a escola naquela época
não alfabetizava. O livro servia igualmente para adultos e crianças. Para se alfabetizar, a pessoa decorava
o alfabeto, tendo o nome das letras como guia
para sua decifração, decorava as palavras-chave, para pôr em prática o princípio acrofônico, próprio do
alfabeto, e depois punha-se a escrever e a ler, interpretando,
nas “taboas” (ou tabuadas), as sílabas da fala
com a correspondente forma de escrita. Notem que a ortografia não tinha vez, O método estava mais voltado
para a decifração da escrita do que escrever corretamente.
<22>
A cartilha do ABC, que há poucos anos se podia comprar até em alguns supermercados ou em certas lojas de
estações de trem e rodoviárias, segue o mesmo esquema da cartinha de João de Barros. Muitas pessoas que
não podem ir à escola, ou que saíram dela porque foram consideradas “burras” demais para aprender, acabam
aprendendo a ler através de livrinhos como esse.
Uma cartilha famosa foi a de Antonio Feliciano de Castilho, chamada Método portuguez para o ensino do ler
e do escrever, publicada em 1850. Essa obra merece um estudo detalhado. Uma de suas características mais
importantes é o emprego dos chamados “alfabetos picturais ou icônicos”, já usados na Grécia antiga e muito
em voga durante o Renascimento — na verdade, até hoje aparecem nas cartilhas modernas.
Castilho apresentava também “textos narrativos” para ensinar o uso das letras, fazendo urna lição para cada
uma delas e para os dígrafos. A segunda edição, de 1853, intitula-se Método Castilho para o ensino rápido e
aprazível do ler impresso, manuscrito, e numeração e do escrever Obra tão própria para as escolas como para
uso das famílias.
<23>
Além do método de Castilho, outra cartilha portuguesa que ficou muito famosa inclusive no Brasil foi a de
João de Deus (1830-1896), chamada Cartilha maternal ou arte de leitura.
Utilizava um modo de escrever letras com destaque dentro das palavras, desenhando-as com hachuras;
dessa forma, o aprendiz se concentrava no que de novo era apresentado.
A cartilha de João de Deus apresentava já uma forte tendência para o privilégio da escrita sobre a leitura,
embora, no título da obra, haja um destaque à leitura. Essa cartilha foi, sem dúvida, o modelo para muitas
outras que vieram depois e que chegaram até os nossos dias.
Entre os livros que pertenceram a D. Pedro II, encontra-se, na Biblioteca Nacional do Rio de Janeiro, uma
cartilha intitulada: Manual explicativo do método de leitura denominado escola brasileira, organizada por
Francisco Alves da Silva Castilho (e dedicada à classe dos professores de primeiras letras), publicada no Rio de
Janeiro em 1859. Já pelo título pode-se notar que essa cartilha opõe o método do Castilho brasileiro ao do
Castilho português. O autor foi professor em Campo Grande e alfabetizava as crianças pobres, passando depois
a se dedicar à alfabetização de adultos.
Ele chama a atenção para o fato de que se devem ler palavras inteiras e não letras ou sílabas. Seu método
começa sempre com urna leitura coletiva, depois individual e, então, vêm os exercícios de escrita, seguindo o
método que ele denomina “sintético/analítico”.
<24>
No Brasil, depois da grande influência da Cartilha maternal (1870), de João de Deus, apareceram inúmeras
outras. Entre elas há quatro tipos bem marcantes, com métodos e estratégias diferentes de conduzir o
processo de alfabetização.
O mais antigo (até a Cartilha maternal) foi chamado de método sintético. Partia-se do alfabeto para a
soletração e silabação, seguindo uma ordem hierárquica crescente de dificuldades, desde a letra até o texto.
Com a Cartilha maternal, começa o método analitico, que vai assumir importância maior na década de 30,
quando a psicologia passa a fazer testes de maturidade psicológica e a condicionar o processo a resultados
obtidos nesses estudos. Um exemplo típico desse caso é a Cartilha do povo (1928), de Lourenço Filho, e o
famoso Teste ABC (1934), do mesmo autor.
Com o passar do tempo, apareceram mais obras que seguiam o método misto, ou seja, cartilhas que
misturavam estratégias do método sintético e do analítico. A cartilha Caminho suave (1948), de Branca Alves
de Lima, com o período preparatório, é um bom exemplo. No final dos anos 90, têm surgido obras que se
classificam como construtivistas e que se propõem a aplicar os ensinamentos da psicogênese da língua escrita
de Emília Ferreiro e Ana Teberosky ao processo de alfabetização programada através de livro didático.
Um livro como Primeira leitura para crianças, de A. Joviano, é um tipo de cartilha. Na introdução, o autor traz
muitas considerações a respeito da forma de alfabetizar.

Nota
Primeira leitura para crianças, de A. Joviano

João de barro leva no bico uma bola de barro para fazer o ninho
João leva uma bola de barro leva uma bola para seu ninho uma bola vai no seu bico fazer bola de barro com o
bico vai uma bola no bico de João de barro
Leva João, o barro para fazer bola!

<25>
AS CARTILHAS E A ALFABETIZAÇÃO
As primeiras cartilhas escolares até cerca de 1950 ainda davam ênfase à leitura. Achavam importante ensinar o
abecedário. A leitura era feita através de exercícios de decifração e de identificação de palavras, por meio dos
quais os alunos aprendiam as relações entre letras e sons, seguindo a ortografia da época. Havia um cuidado
com a fala (e sobretudo com a pronúncia), voltado para o padrão social, trazido para a escola a partir de textos
de autores famosos. Copiava-se muito, e os modelos eram sempre os bons autores, ou seja, autores famosos
da literatura. Como acontecia com as gramáticas, a norma de bem escrever era a imitação dos bons escritores.

A cartilha dá ênfase à escrita


A cartilha baseada na leitura passou, em seguida, por uma modificação radical, já na década de 50, quando a
escola começou a se dedicar à alfabetização dos alunos pobres, carentes de recursos materiais e culturais na
vida familiar, que empregavam dialetos diferentes da fala culta. A ênfase passou a ser dada à produção escrita
pelo aluno e não mais à leitura. O importante, agora, era aprender a escrever palavras. A atividade escolar
deixou de privilegiar a aprendizagem e passou a cuidar quase que exclusivamente do ensino — aquilo que o
professor deveria fazer em sala de aula. Em lugar do alfabeto, apareceram as palavras-chave, as sílabas
geradoras e os textos elaborados apenas com as palavras já estudadas. As famílias de letras passaram a ser
estudadas numa ordem crescente de dificuldade. Completadas todas as letras, o aluno começava seu livro de
leitura, agora também programado de maneira a ter dificuldades crescentes, libertando aos poucos o aluno da
cartilha e levando-o a ler autores de textos infantis. Essa cartilha já trazia em si o esquema de todas as outras
cartilhas que apareceram depois, até recentemente, caracterizando a alfabetização pelo estudo da escrita e
usando como técnica o monta-e-desmonta do método do bá-bé-bi-bó-bu.
Parecia que ia dar certo, mas não foi bem assim. A cartilha parecia um caminho suave, mas não era. E a
escola percebeu logo de início que muitos alunos tinham dificuldade em seguir o processo escolar de
alfabetização. E as reprovações na primeira série tornaram-se freqüentes.
<26>
Até o advento do ciclo básico na década de 80, a média de reprovação na primeira série era de cerca de
cinqüenta por cento. Apesar de todos os esforços para superar essa situação, a média de reprovação sempre se
manteve por volta de cinqüenta por cento. Diante dessa realidade, muitos alunos abandonavam a escola, não
conseguindo superar essa barreira inicial; outros desistiam logo depois, e apenas uns poucos, cerca de dez por
cento, conseguiam concluir a última série do ginásio (na época, o correspondente à oitava série do primeiro
grau, ou seja, do ciclo II do ensino fundamental).

O manual do professor
Pode-se dizer que a experiência escolar da alfabetização com cartilhas foi desastrosa. Os dados estatísticos
mostram que a escola não consegue alfabetizar mais de cinqüenta por cento de seus alunos. A repetência e a
evasão escolar foram sempre um monstruoso fantasma para as crianças, pais e professores.
Diante de um quadro desolador e perturbador, a escola começou a investigar mais uma vez o que estava
errado com a alfabetização escolar. A primeira coisa que saltava aos olhos era o fato de as cartilhas serem
livros esquemáticos demais, o que podia dificultar a sua aplicação. Alguns professores podiam não saber
exatamente como usar aquele tipo de livro, comprometendo assim o processo educativo. Era necessário, pois,
dar uma ajuda especial aos professores, uma orientação mais pormenorizada, subsídios mais práticos para uso
em sala de aula. Foi assim que a cartilha ganhou um companheiro: o manual do professor. As cartilhas que
sobreviveram passaram a ter seu manual do professor, com raríssimas exceções, como a Cartilha Sodré.
Mesmo assim, o índice de repetência continuou assustador. Onde será que residia o segredo de tanta
reprovação na primeira série? A cartilha era “logicamente” perfeita, o professor tinha todos os subsídios
necessários e prontos para aplicar o método das cartilhas; então, a dificuldade deveria residir nas crianças.
Devia haver “algo” em certos alunos que não permitia que aprendessem adequadamente.
Os manuais do professor apostam na ignorância deste e por isso não passam de verdadeiros scrzpts para
serem representados nas salas de aula. Em vez de ensinar os conteúdos básicos do trabalho do professor,
partem ~,
<27>
de considerações muito vagas a respeito do valor da educação, e vão, em seguida, dizendo o que o professor e
o aluno devem fazer, passo a passo. Num certo manual encontra-se até um diálogo que o professor deve
promover com seus alunos, sendo determinada a fala de cada um. Se o aluno responder diferente, o professor
precisa ensiná-lo a responder o que está no manual, senão a lição não funciona. Nenhum diálogo. porém,
ensina o que o professor deve fazer se não der certo. A única saída que se pode imaginar é repetir tudo de
novo, para ver se o aluno aprende, o que é, obviamente, uma estultícia. Como o manual do professor não
resolveu o problema da repetência e a evasão de grande parte dos alunos, a escola foi buscar socorro nas
universidades.

O período preparatório
A partir dos anos 50, a psicologia começou a fazer um enorme sucesso nas universidades do Brasil. Muitos
alunos pesquisavam para teses, aplicando teorias que, muitas vezes, nem eles próprios tinham entendido
muito bem. E a escola tornou-se um bom laboratório para esses pesquisadores. Sem formação pedagógica,
sem formação lingüística, os psicólogos começaram a aplicar uma variedade de testes e chegaram à conclusão
de que a grande dificuldade de aprendizagem das crianças na alfabetização devia-se ao fato de essas crianças
repetentes serem pessoas carentes. Carentes de alimentação na infância, carentes de estímulos ambientais,
necessários para que pudessem desenvolver o conhecimento, carentes de emoções que as motivassem para
aquisição de cultura, enfim, carentes de praticamente tudo. Assim, não podiam aprender. Para resolver o
problema, já que não era conveniente deixar essas crianças fora da escola, foi inventado um período que
precedesse a alfabetização, o chamado período preparatório, no qual as crianças seriam treinadas nas
habilidades básicas até ficarem “prontas” para se alfabetizarem. Sem “prontidão” não se podia realizar um
processo de alfabetização eficiente.
Os psicólogos inventaram, então, uma série de coisas estranhas para as crianças fazerem antes da
alfabetização: fazer curvinhas para cá e para lá, completar figuras, fazer bolinhas, dizer se uma caixa de sapato
é maior do que uma caixa de fósforos ou não, localizar o gatinho à direita e à esquerda da menina numa figura
cm que ela aparece de frente e de costas, fazer o ~,
<28>
coelhinho ir da esquerda para a direita numa linha curva até chegar à toca, etc. Além da cartilha e do manual
do professor, surgiu agora o livro de “exercícios de prontidão”.
CAGLIARI, 1997c, p. 193224. > Num artigo intitulado “O príncipe que virou sapo”, discuti alguns aspectos mais
importantes da teoria do “déficit” das crianças ou, como alguns chamam, “a síndrome da dificuldade de
aprendizagem”. A discussão é longa, mas as conclusões são muito evidentes. A universidade foi responsável
pelo mal que causou à educação com o período preparatório e os exercícios de prontidão, convencendo os
professores de algo que a academia achava cientificamente correto, mas que era um grande equívoco. Os
testes aplicados às crianças foram mal elaborados, envolvendo questões de linguagem, sem levar em conta o
conhecimento dos conceitos lingüísticos envolvidos, sobretudo da noção de variação lingüística. O que aqueles
psicólogos pensavam da linguagem era algo muito diferente do que os lingüistas dizem a respeito da
linguagem.
Em meio a tantos equívocos, os resultados só podiam ser igualmente equivocados. Por trás de tudo, o que
se nota é um grande preconceito contra a pobreza e as crianças menos favorecidas. Os assim chamados “pré-
requisitos lógico-formais” da teoria da prontidão são semelhantes aos argumentos de preconceito racial,
baseados na teoria da carência sociocultural e na teoria da superioridade racial. Mais antigamente, as mulheres
tinham sido discriminadas de maneira semelhante, com mil teorias acadêmicas, que pretendiam provar que a
mulher era um ser inferior porque tinha um volume de massa cerebral menor do que o homem.
As crianças pobres têm mais coisas para aprender, ao entrar na escola, do que as crianças ricas, por causa da
história de vida de cada uma e da natureza das nossas escolas. Isso, no entanto, não deve ser confundido com
falta de capacidade mental, perceptiva, motora, psicológica, ou seja lá o que for. As crianças pobres passaram a
ser tachadas de deficientes, excepcionais e carentes, simplesmente porque falavam ou escreviam errado,
segundo a opinião desses acadêmicos. A questão central desse problema é essencialmente lingüística. Ao
analisar com os devidos cuidados lingüísticos os fatos de linguagem que a escola diz que atrapalham o
progresso dos alunos na alfabetização, logo se verifica que esses alunos “incapazes” são, na verdade, falantes
de variedades lingüísticas estigmatizadas pela sociedade.
<29>
Como a escola não aceita isso e não pode dizer que tem preconceito contra a pobreza, começou a achar
razões mais sutis para disfarçar seus preconceitos.
Fazendo curvinhas, ninguém aprende a escrever nem a ler. Para não escrever espelhado, de nada adianta
ficar fazendo exercício sobre coordenação motora direita e esquerda. Aliás, algumas pessoas se confundiram
com relação a isso, justamente por causa dos exercícios de prontidão, uma vez que nunca sabiam se direita e
esquerda era para ser respondido em função de quem vê ou do objeto visto: a direita de quem vê é a esquerda
do objeto visto, e vice-versa. Perguntar a uma criança se uma caixa de sapato é maior ou menor do que uma
caixa de fósforos é uma ofensa. As crianças respondem a perguntas dessa natureza porque, apesar de acharem
a brincadeira de mau gosto, são sempre muito dóceis e condescendentes. Perguntar a uma criança: “O que é
dentro?” é uma maldade, porque o próprio professor não sabe responder e, quando responde, simplesmente
exemplifica, o que, sem dúvida alguma, não é uma resposta à pergunta que fez à criança. Se um professor
disser a uma criança: “Dentro da cozinha que fica dentro da escola tem uma geladeira e dentro do congelador
tem um sorvete dentro de uma caixa amarela... você pode pegar que é todo seu” e deixar, de fato, a criança
fazer o que lhe foi dito, não há criança que não saiba o que quer dizer “dentro de”. Por coisas como essas (e
tantas outras...) é que o período preparatório não passa de um grande equívoco pedagógico e psicológico. Está
tudo tão errado, que a melhor solução é abandona-lo por completo.
Apesar do enorme esforço em aperfeiçoar a “prontidão” nos mínimos detalhes, o índice de cinqüenta por
cento de reprovação na primeira série manteve-se mais ou menos inalterado. Aquela imensa parafernália não
servia para resolver o mais importante, que era a aprendizagem da leitura e da escrita pelas crianças.
Em vez do período preparatório e dos tradicionais exercícios de prontidão, o professor pode fazer inúmeras
outras atividades mais inteligentes, que contribuam de fato para o processo de alfabetização. Uma delas, de
valor inestimável, é propor aos alunos que façam muitos desenhos livres. A sofisticação e a riqueza dessa
atividade são tantas que por si só valem tudo o que se pensava alcançar com o tradicional período
preparatório.
<30>
Nota
De acordo com a nova Lei de Diretrizes e Bases (LDB) da Educação (1997), cabe aos estados decidir pela forma
de promoção dos alunos: com ou sem reprovação. Os estados de Minas Gerais e São Paulo pretendem abolir a
reprovação e introduzir a promoção automática no ensino fundamental. Algumas idéias, mesmo plenamente
justificáveis, demoram a ser absorvidas pelos órgãos oficiais, por causa muitas vezes de uma discussão mal
conduzida. No Brasil é evidente a confusão que se costuma fazer entre avaliação (necessária sempre) e
promoção (que deveria ser automática). Veja a respeito as entrevistas A escola não deve reprovar ninguém”
(CAGLIARI, 1988b) e Avaliação e promoção” (CAGLIARI, 1 996e).

ALFABETIZAÇÃO HOJE
Apesar de todas as interferências recentes no processo de alfabetização, a prática escolar mais comum em
nossas escolas ainda se apóia na cartilha tradicional (a cada ano com nova roupa e maquiagem). Quando o
professor diz que não adota a cartilha, continua usando o método da cartilha, fazendo ele próprio o que antes
vinha nos livros didáticos. Contudo, há cada vez mais um número crescente de professores que estão
conduzindo um processo de alfabetização diferente do método das cartilhas, procurando equilibrar o processo
de ensino com o de aprendizagem, apostando na capacidade de todos os alunos para aprender a ler e a
escrever no primeiro ano escolar e desejando que essa habilidade se desenvolva nas séries seguintes, até
chegar ao amadurecimento esperado pela escola. Cada vez mais professores estão se dedicando seriamente ao
próprio objeto de estudo e ensino, que é a linguagem. Velhas idéias, porém básicas, como ensinar o alfabeto,
as relações entre letras e sons, os diferentes sistemas de escrita que temos no mundo em que vivemos, a
ortografia, estão voltando a ter importância na alfabetização.
Por outro lado, o “entulho” que se acumulou com o tempo, enchendo a alfabetização de ridículos exercícios
de prontidão e coisas semelhantes, está sendo eliminado aos poucos da prática escolar. Mesmo o “entulho
gramatical” que se cristalizou na primeira série, como o estudo de categorias gramaticais, número, gênero,
grau, etc, tem sido removido, trazendo para o trabalho de alfabetização um esforço concentrado na
aprendizagem da escrita e da leitura como decifração da escrita e do mundo através da linguagem.
Num esforço de muitas pessoas, a começar pelo estado de São Paulo, conseguiu-se introduzir na escola o
“ciclo básico”, juntando a primeira e a segunda série. A idéia inicial era ter mais dois ciclos posteriores, um
incorporando a terceira, a quarta e a quinta série, e outro, a sexta, a sétima e a oitava série. Desse modo, o
aluno seria submetido a uma avaliação de promoção ao final de cada ciclo. Infelizmente, só foi posto em
prática o cicio básico, o que deu a entender a muita gente que o objetivo era apenas mudar as estatísticas de
reprovação dos alunos da primeira série, uma vez que agora a promoção era automática. Muitos outros
equívocos apareceram juntamente com o ciclo básico, alguns ~,
<31 >
motivados pelos próprios órgãos oficiais da educação. Apesar disso tudo, com ele foi possível realizar uma
grande discussão sobre a situação da alfabetização em nossas escolas e introduzir novos estudos e novos
modos de trabalho, com grandes vantagens para a educação como um todo. Além disso, foi possível tratar a
alfabetização sem o medo da reprovação, levar adiante um trabalho de ensino e de aprendizagem que não
tinha mais a nota como objetivo a ser alcançado, mas a formação, a instrução, enfim, a educação.

ALFABETIZAÇÃO E ESCOLA
A história da alfabetização e das cartilhas fala por si. Aqui, como em outros campos, vemos como a escola
veio para complicar tudo. A alfabetização que poderia (e deveria) ser um processo de construção de
conhecimentos que se faz com certa facilidade, tornou-se um pesadelo na escola. A razão principal é a atitude
autoritária da instituição escolar. A autoridade escolar funciona melhor depois que os alunos estão “domados”.
Porém, nas primeiras séries, as crianças resistem mais porque ainda não aprenderam a se submeter a tudo o
que ouvem e vêem. A individualidade ainda é uma marca forte da personalidade das crianças, mas,
infelizmente, já não se pode dizer o mesmo dos alunos das últimas séries e sobretudo de níveis mais altos de
escolaridade.
Enquanto a alfabetização escolar ficou presa à autoridade de mestres, métodos e livros, que tinham todo o
processo preparado de antemão, constatou-se que muitos alunos que não trabalhavam segundo as
expectativas dos mestres, métodos e livros eram considerados incapazes e acabavam de fato não conseguindo
se alfabetizar.
Por outro lado, as propostas de alfabetização que começaram a valorizar a criança e seu trabalho criaram um
clima mais calmo e tranqüilo em sala de aula, uma melhor interação entre professor e aluno, proporcionando
condições mais saudáveis para que o processo de alfabetização se realizasse.
Os órgãos da administração pública encarregados da educação interferiram muito no trabalho escolar, quer
ditando as regras da burocracia, quer, sobretudo, ditando ~,
<32>
as normas pedagógicas. Este é o país onde tudo é feito por meio de leis e decretos e, desse modo, todo o
mundo tem uma escusa para o próprio fracasso, achando que tudo está bem e correto quando a burocracia
está em dia. Como as escolas de formação de professores para o magistério, guiadas por estranhas idéias
oriundas das faculdades de educação, não conseguem dar a formação necessária para os professores, os
órgãos públicos encarregados da educação passaram a dar periodicamente “pacotes educacionais”, de acordo
com os modismos da época; é o método sintético, analítico, fônico, global, lúdico, psicopedagógico, freinet,
semiótico, construtivista, lingüístico, etc. Os professores, atormentados com tantas mudanças, vítimas da
própria incompetência, foram experimentando todos os “pacotes”. Essa loucura serviu mais para criar nos
professores uma aversão a tudo o que é novo, mesmo que traga contribuições realmente importantes para seu
trabalho. Houve tantos “pacotes” e tantas decepções em tão curto prazo, que hoje muitos professores já não
sabem mais distinguir o que vale e o que não vale, o que é certo e o que é duvidoso, o que é verdade e o que é
engodo. Se sua competência já era muito limitada, agora além de tudo ficou confusa, diante de tantas
“experiências educacionais”. Alguns, novatos no trabalho ou ingênuos por natureza, ainda acham que a última
moda é a panacéia para todos os males do passado e a esperança do futuro.
CAGLIARI, 1992c, MAGNANI, 1993. e O que de fato está por trás de toda essa história é a
presença de um grande número de professores alfabetizadores que nem sequer são capazes de avaliar o que
vêem diante de seus olhos, quer se trate de um “pacote educacional, quer se trate de um aluno que não
aprende o que eles ensinam. Um professor que não sabe avaliar com precisão se um método é bom ou não,
dando as razões de sua conclusão, é um professor mal-preparado, incompetente. A culpa em grande parte vem
das escolas de formação e dos “pacotes” educacionais mas em parte vem também da atitude comodista do
próprio professor, que não se interessou pessoalmente em estudar o que não lhe foi ensinado.
Essa competência está ligada ao conhecimento de muitos aspectos da sua atuação como educador e como
professor alfabetizador. Estudar pedagogia, metodologia psicologia é importante. Mas ninguém se forma um
bom alfabetizador só com essas disciplinas. O fundamental é saber como a linguagem oral e escrita são e
<33>
os usos que têm. Resumindo, a competência técnica do professor alfabetizador se apóia em sólidos e
profundos conhecimentos de lingüística e dos sistemas de escrita (de matemática e de ciências inclusive...).
Esses conhecimentos, aliados aos de pedagogia e psicologia, fazem dele um profissional que sabe exatamente
o que faz e por que faz de um jeito e não de outro. Se formássemos de maneira correta nossos professores
alfabetizadores, teríamos, neste país, em pouco tempo uma outra realidade em termos de analfabetismo.
Hoje, não só existem milhões de pessoas analfabetas, como também pessoas que foram, de fato, mal
alfabetizadas. Nenhum método educacional garante bons resultados sempre e em qualquer lugar; isso só se
obtém com a competência do professor.
O Brasil precisa de uma modificação profunda na educação e, em especial, na alfabetização. Para isso
necessita de professores com melhor formação técnica. As escolas de formação dedicam muito tempo às
matérias pedagógicas, metodológicas e psicológicas e não ensinam o que devem a respeito da linguagem; nem
sequer têm cursos de lingüística (ou de aritmética). Como um professor pode lidar corretamente com o
fenômeno lingüístico, se ele nunca estudou lingüística? Ninguém alfabetiza só com metodologia e psicologia,
como também não alfabetiza somente com lingüística. A escola precisa saber dosar todos esses conhecimentos
para poder atuar de maneira correta. Nada substitui a competência do professor e, enquanto nossas escolas
continuarem a formar mal nossos professores, a alfabetização e o processo escolar como um todo continuarão
seriamente comprometidos.

Nota
Não se pode encerrar mesmo um sucinto relato da história da alfabetização sem mencionar a importância da
figura de Paulo Freire. O chamado Método Paulo Freire dirigido sobretudo para a alfabetização de adultos —
foi aplicado em larga escala em outros países, além do Brasil como outros grandes educadores que se
dedicaram à alfabetização. Paulo Freire trabalhou mais com a intuição o bom senso e menos com rigor
científico ao tratar de fatos da linguagem. Sua obra mais importante está voltada principalmente para questões
ligadas à política educacional e à pedagogia em geral.
<34>

2
O ensino e a aprendizagem: os dois métodos

A questão metodológica não é a essência da educação, apenas uma ferramenta. Por isso, é preciso ter idéias
claras a respeito do que significa assumir um ou outro comportamento metodológico no processo escolar. É
fundamental saber tirar todas as vantagens dos métodos, bem como conhecer as limitações de cada um.
Como o assunto é muito vasto e complexo, e sobre ele já existe considerável literatura, apresentaremos
apenas um esboço geral dos pontos mais importantes para a discussão que faremos em seguida. Existe, no
mercado, uma quantidade enorme de livros e publicações
a respeito de métodos de ensino (raramente
de métodos de aprendizagem) que, num esforço para defender ou atacar certos procedimentos adotados pelas
escolas, acaba confundindo seus leitores, os quais, em meio a tantas posições diferentes, ou mesmo
contraditórias, já não sabem mais no que acreditar. Daí o descrédito de alguns professores na educação, fruto
da indignação metodológica, oriunda dos pacotes educacionais e das contradições metodológicas a que são
submetidos.
Às vezes, é preciso voltar às origens, aos princípios básicos, às coisas mais simples e claras, rever a história,
retomando uma visão correta do fenômeno. Para isso, é preciso rever alguns pontos gerais a respeito de
ensino, aprendizagem e métodos.
Por incrível que pareça, existe uma confusão muito grande entre ensino e aprendizagem em meio às pessoas
que lidam com educação. O mais comum é se levar em consideração apenas o ensino, supondo que a
aprendizagem ocorre automaticamente, como fruto inevitável
do ensino, o que é um erro grosseiro. Muitos
aceitariam a diferença sem problemas, na teoria, mas a prática mostra que a confusão é visível e está presente
a cada passo.
CAGLIARI, 1990; PATTO, 1990; PATTO 1997

O QUE É ENSINAR, O QUE É APRENDER


Ensinar é um ato coletivo: pode-se ensinar a um grande número de pessoas presentes numa aula ou numa
conferência, etc. Quem ensina procura transmitir informações
que julga relevantes, organizadas do modo
que lhe parece mais razoável, para que seus ouvintes aprendam algo que deseja transmitir.
<36>
Aprender é um ato individual: cada um aprende segundo seu próprio metabolismo intelectual. A
aprendizagem não se processa paralelamente ao ensino. O que é importante para quem ensina, pode não
parecer tão importante para quem aprende. A ordem da aprendizagem é criada pelo indivíduo, de acordo com
sua história de vida e, raramente, acompanha passo a passo a ordem do ensino.
No ensino, é muito importante o que se diz; na aprendizagem, o que se faz, mesmo quando o fazer significa
dizer. Aprender não é repetir algo que foi ensinado, mas criar algo semelhante, a partir da iniciativa individual
de quem aprende. Quando simplesmente se repete um modelo, não ocorre exatamente uma aprendizagem.
Ela vai aparecer somente quando a pessoa, por ação própria, conseguir realizar algo de acordo com as
expectativas alheias.
A aprendizagem é sempre um processo construtivo na mente e nas ações do indivíduo. O ensino não
constrói nada: nenhum professor pode aprender por seus alunos, mas cada aluno deverá aprender por si,
seguindo seu próprio caminho e chegando onde sua individualidade o levar. Por isso, a aprendizagem será
sempre um processo heterogêneo, ao contrário do ensino, que costuma ser tipicamente muito homogêneo.
Escolas que se apegam demais ao processo de ensino, em detrimento do processo de aprendizagem, gostam
de manter classes homogêneas, fazendo remanejamentos, sempre que oportuno e possível, para facilitar o
processo de ensino, desconsiderando totalmente a natureza do processo de aprendizagem, entre outros
fatores pedagógicos.
Não é porque o professor ensina, que um aluno automaticamente aprende. Aprender depende muito da
história de cada aprendiz, de seus interesses, de seu metabolismo intelectual. A maneira como aquilo que é
ensinado passa a ser algo aprendido é do foro íntimo de cada indivíduo. Obrigá-lo a agir diferentemente é uma
violência contra sua liberdade e racionalidade. Obrigar alguém a aprender alguma coisa é “lavagem cerebral”.
A aprendizagem precisa partir de uma opção individual. O fato de se ter um professor, uma classe, uma turma
de alunos não significa que se tem uma escola. É essencial saber o que faz o professor e o que fazem os alunos,
o que compete a cada um, o que cada um espera do outro. Sem uma visão clara e correta da atividade escolar,
corre-se o risco
<37>
de se colocar em prática um processo de educação totalmente equivocado como, aliás, vem acontecendo
muito freqüentemente neste país.
Por outro lado, não é porque um professor não ensina algo, que um aluno necessariamente não aprende tal
ponto. Há muitas maneiras de aprender: ir à escola é uma forma prática e organizada (pelo menos deveria ser)
de aprender “as coisas da escola”. Nada impede, todavia, que se aprenda com os pais, com um colega, por
iniciativa própria, olhando os livros ou mesmo refletindo sobre o mundo. Afinal, antes da escola, as pessoas
aprendiam como? Nossa cultura ocidental atual criou urna dependência exagerada das instituições escolares e
seus métodos. As atividades de sala de aula estão voltadas para o que o professor faz ou deixa de fazer e
deixam pouco espaço para que os alunos aprendam de outra maneira que não por intermédio do professor.
Um aluno pode ensinar ao outro, os alunos podem usar sua criatividade para procurar explicações e soluções
para os problemas escolares, refletir, pensar, tentar fazer, refazer, etc. São coisas que os alunos são capazes de
fazer por iniciativa própria, se a escola criar condições de estudo que facilitem esse tipo de atividade.
Infelizmente, nossas escolas reduziram-se cada vez mais à sala de aula e ao processo de ensino dirigido pelo
professor.

O PROFESSOR COMO EDUCADOR


Alguns professores têm muita dificuldade em olhar para seus alunos e enxergar o que se passa com eles. Na
maioria das vezes, sabem apenas aplicar o que aprenderam nas escolas de formação ou em livros, sem levar
em conta se aquele é o momento adequado para o que pretendem fazer e se aqueles alunos se enquadram ou
não no caso que querem aplicar. A insensibilidade dos professores, da escola e dos órgãos públicos com
relação ao processo de aprendizagem é patente e geralmente catastrófica para o ensino.
O que mais falta na educação deste país é a figura do educador. Há muitos professores e profissionais da
educação, mas poucos educadores. Falta o professor educador que em primeiro lugar se preocupa em
conhecer seus alunos e só depois diz a eles, de maneira clara, honesta e adequada, aquilo que os educa, de
fato, para
<38>
a vida. A educação não se conhece a si mesma: quantas vezes se vê um órgão público tomar decisões
obrigando todos os professores a agir de determinada maneira, sem respeitar a individualidade de cada um,
seu modo de ser e de trabalhar. Exigir competência e honestidade profissional dos professores é algo de que
nunca se vai abrir mão, mas isso não significa que se deva fazer com os professores o que alguns professores
fazem com seus alunos: dizem e nem querem saber o que o outro pensa, como se toda ordem que vem de
cima fosse sempre perfeita e inquestionável.
Está na hora de devolver a educação aos educadores, está na hora de exigir daquelas pessoas que lidam com
educação uma competência maior. A educação, no Brasil, é tão ineficaz que nem consegue gerenciar
adequadamente a si própria, O que falta não é dinheiro: falta competência em todos os níveis para melhorar a
educação.
Infelizmente, não é raro encontrar nas nossas escolas professores analfabetos por opção, ou seja,
professores que, depois de formados, pararam seus estudos. Não compram mais nenhum livro e raramente
escrevem algo que não seja sua obrigação diária de sala de aula. Há muitos professores que passam anos e
anos lendo e escrevendo as mesmas coisas, porque acham que aprenderam assim e assim devem ensinar. São
professores que sabem ler e escrever, mas não usam esse conhecimento. a não ser para repetir todos os anos
as mesmas práticas educativas.
A evidência maior da incompetência da educação neste país encontra-se na falta de um projeto de educação.
Muito se fala sobre o assunto, mas, em vez de um projeto de educação estruturado e de valor, tem-se um
amontoado de leis e regulamentos, juntamente com pacotes metodológicos que alguém ou um grupo de
pessoas decide impor a todos os demais.
O grande trabalho educativo deve voltar às mãos do professor. Ele precisa ter liberdade de ação para que se
possa exigir dele competência e desempenho profissional à altura dos ideais da verdadeira educação. Sem o
professor, não há escola, e, sem escola, não há educação de massa, de que o Brasil tanto precisa. A educação
vive mergulhada numa burocracia sufocante. Ninguém parece confiar mais no professor. Todo mundo quer
dizer o que um professor deve ou não fazer. Em vez disso, dever-se-ia dar mais liberdade e exigir mais
responsabilidade.
<39>
DOIS MÉTODOS
A educação não pode viver só do ensino, caso em que o professor vem para a sala de aula e despeja em seus
alunos um longo discurso a respeito de um determinado ponto, como também não pode viver só da
aprendizagem, deixando os alunos descobrirem tudo por si mesmos e livres para fazer o que bem entenderem.
Deve haver um equilíbrio entre os dois tipos de atividade: o professor deve ensinar, caso contrário, as escolas
não precisariam existir, pois cada um aprenderia por iniciativa própria. Por outro lado, o professor não pode
ser o dono da educação, aquele que tem tudo sob seu comando. É preciso que haja também uma grande
participação do aprendiz, porque afinal de contas é ele quem precisa aprender e mostrar que aprendeu e,
sobretudo, saber que aprendeu. O aluno só pode ter certeza de que de fato aprendeu algo, quando, por
iniciativa própria, conseguir utilizar adequadamente os conhecimentos que são objeto do seu processo de
aprendizagem.
Por essas razões, entre outras, pode-se dizer que a educação, na sua essência, tem dois métodos apenas,
com muitas variantes: um baseado no ensino e outro na aprendizagem. A verdadeira prática educativa serve-se
de ambos, na medida adequada. A exclusão pura e simples de um ou de outro torna o processo falho, às vezes
com conseqüências sérias.
Nos estudos pedagógicos, a metodologia do ensino ocupa um lugar muito importante e em conseqüência
disso tem-se produzido uma vasta literatura a respeito. Talvez por isso mesmo, algumas pessoas tenham certa
dificuldade de perceber o essencial em meio à complexidade dos detalhes. Por essa razão, apresenta-se, a
seguir, um esboço geral e muito simplificado do que vem a ser um método de ensino. O objetivo aqui vai além
da sala de aula e pretende mostrar que toda atividade de ensino e de aprendizagem, no seu extremo, tem as
características básicas apresentadas abaixo.
Em primeiro lugar, podemos dizer que todos os métodos, no fundo, baseiam-se em um dos dois métodos
básicos, que vou chamar de método de ensino (método 1) e método de aprendizagem (método 2).
Há uma tipologia de métodos que, considerando os seus processos de argumentação, costuma classifica-los
de uma maneira ou de outra, como, por exemplo, método dedutivo, método indutivo, método mecanicista,
<40>
método construtivista, método global, método fônico, etc. Toda essa discussão pode, de certo modo, ser
derivada das características daquilo que chamamos aqui de método 1 e método 2. São as variantes das duas
vertentes principais.
Como o enfoque neste livro é a alfabetização, o que se dirá a respeito desses dois métodos estará voltado
para o processo escolar de alfabetização. No entanto, o método 1 e o 2 servem para qualquer atividade de
ensino e de aprendizagem.

DUAS CONCEPÇÕES DE UNGUAGEM


É importante levar em conta ainda o fato de que, na prática, esses métodos dependem muito da concepção
de linguagem que as pessoas têm: professor e aluno, quem ensina e quem aprende. A linguagem exerce, na
alfabetização, uma importância fundamental. Na verdade, nesse momento, tudo gira em torno dela. Por isso,
dependendo da maneira como uma pessoa interpreta o que a linguagem é, como funciona, que usos tem,
pode-se ter um determinado comportamento pedagógico e métodos diferentes na prática escolar.
Inversamente, pode-se ver com clareza na prática em sala de aula, nos métodos que a escola usa, qual é a
concepção de linguagem subjacente.
Por exemplo, toda cartilha (independentemente do método que lhe seja atribuído pelo autor ou pelos
entendidos) baseia-se exclusivamente no método do ensino. Mesmo atividades que devem ser feitas pelos
alunos, devem seguir um modelo prévio, transmitido como ensino. Não conheço, em nenhuma cartilha, um
espaço real dedicado ao processo de aprendizagem. O aluno procura sempre responder, com o que faz, de
acordo com as expectativas do autor da cartilha ou do professor “que passa a lição”. Essa atitude revela uma
concepção de linguagem na qual o falante se vê diante de um impasse, tendo de decidir entre o certo e o
errado. A linguagem apresenta-se como algo “que precisa ser corrigido”. Ora, na vida real, quando as pessoas
usam a linguagem, não têm esse tipo de preocupação: elas, simplesmente, pensam e falam o que quiserem, do
jeito que acharem mais conveniente. Nenhum falante acha que fala errado, a não ser na escola, ou por
influência da educação escolar.
<41>
Outro exemplo: o método fônico considera que uma criança, aprendendo a reconhecer e a analisar os sons
da fala, passa a usar o sistema alfabético de escrita de maneira melhor. Essa idéia revela uma concepção de
linguagem segundo a qual uma pessoa “fala melhor” quando monitoriza os sons que pronuncia, o que é falso.
Quem fala “tchia” em vez de “tia” e aprende a escrever “tia”, continua falando “tchia” e nem se dá conta da
diferença, porque, quando falamos, nos preocupamos mais com as idéias que queremos transmitir do que com
os sons das palavras que irão revelar nossos pensamentos. Há, ainda, o problema da ortografia, que não
atrapalha quem fala “tchia” e tem de escrever “tia”, mas que irá atrapalhar, e muito, quem fala “drento” e tem
de escrever “dentro”; trata-se de regras lingüísticas diferentes.
Outra concepção de linguagem muito facilmente detectada através da prática escolar é aquela que considera
que a função mais importante da linguagem, senão a única, é a comunicação. A linguagem também serve para
comunicar, mas os lingüistas estão cada vez mais convencidos de que a comunicação não é a função mais
importante da linguagem, nem talvez a mais usada. Atrás de notícias encontram-se censuras, ocorrem tomadas
de posição, transmite-se uma cosmovisão, além de outros pressupostos e de conotações que tornam o literal
da comunicação algo secundário, quando não um pretexto para a manipulação das idéias do ouvinte. Quanto
de enganação, de mentira e de outras coisas pouco louváveis existe numa simples enunciação ou numas
poucas palavras escritas que encontramos pelo mundo e pela vida... Basta refletir um pouco, que essas
verdades logo se revelam. Ora, a escola não pode ser ingênua e pensar que a linguagem é essencialmente
comunicação. Juntar idéias e sons — formando a linguagem — não é a mesma coisa que “comunicar”. A
comunicação é uma função importante da linguagem, porém, esta não se reduz apenas a comunicar.

O MÉTODO 1- VOLTADO PARA O ENSINO

A situação inicial
O método 1 volta-se exclusivamente para o processo de ensino. Nesse caso, a situação inicial do aprendiz
é interpretada como um começo absoluto de tudo,
<42>
o marco zero de uma caminhada, uma página em branco onde se vai começar a escrever sua vida escolar. No
começo do ano, o professor programa o que vai ensinar, sem sequer conhecer seus alunos, porque o que vai
ensinar é um começo absoluto que não precisa de pré-requisito, é um ponto de partida considerado ideal para
todos os alunos, independentemente da maneira de ser e de saber de cada um.
Essa atitude é até mais comum nas outras séries do que na alfabetização, porque os alfabetizadores já
aprenderam, na prática, que não podem ser tão cegos assim. Nas séries mais adiantadas da escola, essa é a
regra geral. Alguns professores acham mesmo que a atitude mais adequada é “nem querer saber” o que os
espera, que alunos vão ter. Os alunos que se virem, dizem.
Nesse quadro, os envolvidos acham que ninguém pode reclamar do professor, porque ele começou do
começo e de maneira igual para todos, dando chances iguais para todos. Obviamente, isso é muito conveniente
para quem ensina, mas é má pedagogia.

A técnica
A técnica do método 1, na alfabetização, consiste na atividade do desmonta-e-monta da linguagem, em
todos os seus níveis, de todas as formas possíveis. O método 1 considera que a melhor maneira de ensinar
alguém é desmontando e remontando, ou montando coisas novas a partir de pedaços. Nesse caso, parte-se
sempre de um modelo exemplar, por exemplo, uma palavra-chave. Depois, desmonta-se a palavra em
“pedaços” (ou sílabas). Em seguida, desmontam-se as sílabas em letras (ou sons). Feito isso, a palavra é
remontada. Assim, o professor espera que o aluno aprenda como funciona a escrita e que relações tem com a
linguagem oral. Com alguns pedaços de palavras, pode-se descobrir que é possível formar palavras novas,
diferentes das palavras-chave. Por exemplo, desmontando BATATA, tem-se BA, TA, TA. Com esses pedaços,
pode-se formar as palavras “Tatá”, “bata” e “taba”. As sílabas geradoras (o bá-bé-bi-bó-bu) nada mais são do
que a organização dos pedaços das palavras, extraídos das palavras-chave, para os alunos construírem palavras
conhecidas e palavras novas.
Alguns alunos vão seguindo as pegadas do professor e acabam fazendo tudo direitinho. Outros pensam que
pegaram o “espírito da coisa” e passam a inventar formas
<43>
estranhas de escrever, segundo o professor. Por exemplo, escrevem “cavalolalelilolu” ou “tapabapa”,
mostrando que aprenderam as sílabas geradoras, no primeiro exemplo, e que sabem juntar os pedaços de
palavras, formando “palavras novas”, no segundo caso. Aprendem o jogo da escola, mas não sabem de seus
limites e usos reais, porque o método não ensina isso. Alguns alunos unem palavras aparentemente sem
sentido, porque seguem apenas as regras do jogo, que diz que, juntando dois pedaços de palavras, forma-se
uma palavra nova. Como não conhecem todas as palavras da língua (todos nós aprendemos palavras novas
todos os dias...), as crianças ligam os pedacinhos, achando que o professor, que sabe tudo, saberá qual o
significado de uma palavra como “tapabapa”, como sabia antes o que significava “taba”, que a criança nunca
tinha ouvido.
Por mais estranho que pareça, alguns professores, diante de fatos como esse, vão direto ao aluno e
perguntam “O que significa tapabapa?” O aluno fica assustado com a pergunta: afinal de contas, quem deve
saber essas coisas é o professor, não ele. Ele apenas faz a lição, isto é, liga os pedacinhos de letras para formar
palavras. A pergunta do professor faz com que o aluno sinta-se mais perplexo ainda, porque além de tudo
aquilo que não entendeu, o professor ainda quer que ele se sinta culpado por um erro que ele não sabe onde
está nem por que aconteceu. E, se aconteceu, foi mais por culpa do professor do que dele.
Desmontar e montar as palavras da língua não é um uso natural nem da linguagem oral nem da linguagem
escrita, apenas uma estratégia de ensino escolar. Na linguagem oral, falamos tudo junto, fazendo pausas
apenas em alguns lugares. Não falamos fazendo pausa após cada palavra. Na escrita, separamos as palavras
com um espaço em branco por razões ortográficas, não porque falamos desse modo.
Na verdade o método pretende associar os pedacinhos das palavras aos sons, para que os alunos aprendam
a ler. Ora, como a ortografia esconde todas as variações dialetais, logo se percebe que essa técnica causará
confusão na cabeça das crianças. Ninguém pode esperar das crianças (na verdade de nenhum falante) que
saibam se o que estão remontando com o bá-bé-bi-bó-bu forma uma palavra aceitável ou não na língua. Por
outro lado, muito raramente um professor abre o jogo com os alunos e diz que não basta ligar os pedacinhos,
mas que é preciso ir além e checar se a palavra que foi
<44>
formada existe, de fato, na língua e se sua forma de escrita está de acordo com as normas ortográficas.
A base: o já dominado
Com o método 1, parte-se do zero e vão-se acrescentando informações, uma após a outra, as quais o
aprendiz precisa dominar. Dominado ou aprendido algo, passa-se ao conteúdo seguinte, que deve ser
aprendido. Aprender é dominar, ou seja, devolver a quem ensinou o conteúdo ensinado. A base desse método
é, pois, o conhecimento já dominado. Para isso, decorar é fundamental, sobretudo decorar de modo a repetir
um modelo dado e que será cobrado como expectativa de resposta. A repetição é a prática mais comum para
se dominar qualquer conhecimento. Portanto, o aprendiz é levado a repetir a lição até dominá-la, e, enquanto
não provar que já o faz, repetindo-a corretamente, irá fazer tantas tentativas quantas forem necessárias.
Não é raro encontrar professor que vive se queixando dos alunos, dizendo que sempre ensina as mesmas
coisas e os alunos não aprendem. Esses professores mostram que usam o método 1. Nesses casos, nunca se
questiona o ensino, mas tão-somente o comportamento do aprendiz. O método 1 não é capaz de aceitar que o
mais importante não é dominar, mas saber aplicar um conhecimento para realizar uma tarefa. Nem sempre
reproduzir um modelo garante a aprendizagem, embora garanta, sim, uma réplica de algo que o aprendiz pode
fazer sem saber exatamente o que está acontecendo.
Na alfabetização, alguns alunos são exímios repetidores de lições que dominam sem saber o que significam.
Conseqüentemente, quando precisam aplicar o conhecimento de maneira criativa e individual, acabam
revelando sua ignorância, produzindo escritas absurdas. Por exemplo, alguns alunos copiam corretamente o
que lhes é solicitado, fazem sem erros os ditados das palavras já dominadas, escrevem pequenas frases em que
só aparecem palavras “já dominadas”, mas, quando se vêem diante de palavras cuja escrita lhes é
desconhecida, ou não fazem nada, ou escrevem simplesmente amontoados de letras ou de sílabas geradoras.
Esses alunos foram ensinados pelo método 1.
Alunos que fazem isso raramente chegam a descobrir como o sistema de escrita funciona, como se decifra
algo escrito para ler e, conseqüentemente, não chegam
<45>
a se alfabetizar. Como a escola não pode viver só do que é considerado dominado, logo chega o dia em que o
professor se esquece disso e leva os alunos a aplicarem o que ele achava que tinha ensinado e que o aluno
tinha aprendido (fazia tudo tão direitinho), e o resultado é uma enorme decepção para ele e, principalmente,
para o aluno.

O uso da memória
O uso da memória, nas atividades escolares, é muito importante e não deve ser confundido com a prática de
promover o ensino baseando-se no já dominado. A memorização é fundamental no processo de aprendizagem,
mas não pode ser um truque, como acontece no método 1. Neste, o já dominado apenas revela um modelo
repetido. No processo de aprendizagem, a memorização faz parte do processo de reflexão, trazendo para a
prática do aprendiz todos aqueles conhecimentos necessários para que ele tome as decisões corretas.
Às vezes, alguns professores, querendo fugir desse esquema, acabam desterrando a memorização do
processo pedagógico escolar. Outras vezes, convencem-se, graças a argumentos falaciosos que ouvem em
congressos, palestras ou lêem em livros, de que a memória não tem vez na aprendizagem, e de que aprender é
entender e não decorar. São frases feitas de grande efeito e de pouco sentido. É preciso não confundir o
memorizar que vem da reflexão de um simples repetir que vem de um exercício vazio de repetição controlada,
como acontece com a prática pedagógica do método 1. São duas realidades muito diferentes. Memorizar é
fundamental; repetir padrões do já dominado não é uma prática escolar saudável.

A hierarquia: do fácil ao difícil


O método 1 tem uma concepção de ensino/aprendizagem segundo a qual tudo deve ser hierarquizado, isto
é, disposto numa ordem necessária, para que o ensino e a aprendizagem caminhem suavemente. Obviamente,
essa hierarquia precisa ir dos elementos mais fáceis para os mais difíceis, como se esperaria de alguém que
tem bom senso. Por essa razão, o método 1 gosta de atribuir valores às diferentes tarefas que a escola realiza:
o professor precisa saber o que deve ensinar
<46>
primeiro, caso contrário poderá pôr a carroça na frente dos burros.
Será que as coisas são mesmo assim, quando se trata do processo de ensino e de aprendizagem? Na
verdade, para o processo de ensino, até certo ponto, a organização hierarquizada é uma atitude esperada, e
caberá ao professor seguir uma certa ordem quando for ensinar. No entanto, essa ordem depende muito mais
do jeito de cada professor trabalhar do que da verdade das coisas que ensina. E difícil, e talvez seja mesmo
impossível, estabelecer uma hierarquia dos elementos que constituem um saber, mesmo em sua forma
sistematizada, utilizada pela educação nos currículos escolares. É claro que alguém precisa aprender a ler, para
poder ler um livro ou escrever uma carta sem a ajuda de outra pessoa; é claro que alguém precisa aprender
aritmética para poder fazer cálculos corretamente. No entanto, tais afirmações são tão gerais, que não se
aplicam ao que se quis dizer acima.
A questão verdadeira reside no fato de a maioria dos professores e a totalidade das cartilhas considerarem,
por exemplo, que a letra X é intrinsecamente mais difícil do que a letra A. Isso acontece porque partem do
pressuposto que escrever palavras em que ocorre a letra X é mais difícil do que escrever palavras em que
ocorre a letra A. Ledo engano. Na verdade, esses professores estão levando para a prática pedagógica algo que
é muito peculiar a eles, e não ao processo de alfabetização.
Para uma criança que não sabe ler nem escrever, qualquer palavra é igualmente difícil, não há nenhuma
palavra fácil. Para quem duvidar disso, aconselho estudar árabe, por exemplo. Como a escrita dessa língua é
muito diferente da nossa, achamos difícil escrever, no começo, qualquer palavra. Somente depois que
aprendemos algumas tantas coisas é que vamos descobrir que certas palavras (por serem mais familiares a
nós) são mais fáceis de escrever do que outras. Do mesmo modo vamos achar mais fácil escrever certas letras
do que outras, porque erramos menos a ortografia com elas. A letra X só é difícil para quem já sabe escrever e
tem uma certa prática, mas ainda se confunde com a grafia de certas palavras.
A dificuldade do alfabetizando é de outra natureza. Para ele, tudo é difícil. Escrever “casa” é tão difícil quanto
para o adulto alfabetizado escrever “ojeriza”, “estender” ou “extensão”.
<47>
As dificuldades dos alunos vão mais longe do que em geral imaginam os professores. O aluno que fala
“drentu”, “bardi”, “andano” (“dentro”, “balde”, “andando”) tem uma dificuldade muito séria para acertar a
forma ortográfica dessas palavras, e essa dificuldade jamais é suspeitada pelos autores de cartilhas e pelos
professores.
Alguns professores acham que a letra X é mais difícil porque pode referir-se a vários sons, como o som de S
(“externo”) e o de SS (“próximo”), o que é um absurdo, uma vez que há o mesmo som S em palavras como
“externo” e “próximo”. O que há de diferente é o uso das letras na escrita. De acordo com as regras de nossa
ortografia, poderíamos escrever “esterno”, mas, se escrevêssemos “prósimo”, o som da letra S, nesse caso,
seria o de Z, por estar entre duas vogais. É preciso, pois, separar fatos da fala dos da escrita ortográfica. Além
do som de S, a letra X pode ter ainda os sons de KS (“táxi”), de CH (“lixo”) e de Z (“exame”).
Essas mesmas pessoas que reclamam das dificuldades do X esquecem-se de que uma letra como A pode
apresentar muito mais casos de sons diferentes do que a letra X, dependendo do dialeto e de outros fatores
lingüísticos. Por exemplo, um aluno fala “fizeru”, “acharu”, e esse som de U precisará ser escrito com as letras
A e M: “fizeram”, “acharam”. Falamos “todamiga” e temos de saber que há um A que não foi pronunciado, mas
que deve ser escrito: “toda amiga”. Dizemos “rapais” ou “rapaich”, mas, na hora de escrever, suprimimos o I:
“rapaz”. Por outro lado, em palavras como “caixa”, é comum não se pronunciar o I que vem junto com o A, mas
não se pode deixar de escrevê-lo. E a lista é longa. Esses casos, que realmente são armadilhas para os alunos,
jamais entram nas considerações daqueles que acham que precisam ensinar primeiro A e bem depois X,
porque A é mais fácil do que X, tanto para quem ensina, quanto para quem aprende.
Na verdade, em todos os ramos do saber, é praticamente impossível dizer o que é mais fácil ou mais difícil: é
fácil aquilo que se sabe e é difícil o que não se sabe; o resto não faz sentido. Muitas pessoas contam que
descobriram como realmente funcionavam noções básicas de geometria e de álgebra somente quando
aprenderam a fazer cálculos avançados. Isso não quer dizer que fossem maus alunos antes, mas precisaram ir
além, estudar coisas que aparentemente são consideradas complexas para aprenderem coisas aparentemente
<48>
mais simples e mais fáceis. Fáceis e difíceis “aparentemente”, mas não de fato.

Controle rígido e avaliação


O método 1 necessita de um controle rígido e absoluto sobre tudo o que é feito, cobrando a mais rigorosa e
constante avaliação. Como o ensino é completamente hierarquizado, desenvolvendo-se passo a passo, do mais
fácil para o mais difícil, e exigindo que o aprendiz progrida dominando o que foi ensinado, é preciso verificar a
todo instante se realmente o aprendiz dominou o que deveria dominar, para que o ensino possa dar um passo
adiante. A avaliação, aqui, contempla apenas o que foi ensinado e constitui-se do que o aluno precisa dominar
e repetir. Se não houver uma avaliação rigorosa e constante, o aluno pode revelar dificuldade mais adiante,
atrapalhando a programação do professor e a ordem natural das coisas, prevista pelo método 1.
Se o aluno revelar que não dominou algum ponto, o método 1 manda que se volte atrás e obrigue o aluno a
repetir tudo de novo, até demonstrar que já dominou, mesmo que tenha, no final do ano, de repetir o ano
todo, voltando àquele zero inicial, àquele ponto de partida em que o aluno é encarado como uma folha de
papel em branco.
Na avaliação, o que conta são os erros e não os acertos. Como o acerto é considerado previsível dentro da
perspectiva do já dominado, são os erros que irão mostrar que o aluno precisa parar e recuperar o que ainda
não dominou. O problema desse método de ensino é o erro do aluno, não o que ele aprende. Isso é tão
ridículo, sobretudo para as crianças na alfabetização, que elas não conseguem entender como a escola pode
ser tão injusta. O aluno escreve urna história de dez linhas e, só porque cometeu dez errinhos, ganha nota
cinco. E as outras coisas que escreveu certo, as outras trezentas e oitenta letras que foram escritas
corretamente, e o resto que fez e fez bem, não conta? Já que errou uma palavra com J ou G, precisa fazer
cópias para dominar a lição estudada, desconsiderando-se todas as demais ocorrências de J e de G que o aluno
escreveu corretamente?
O método 1 é implacável com a avaliação: errou, tem de voltar atrás e repetir a lição. É pela importância
exagerada e equivocada dada a esse tipo de avaliação, que os ditados, na alfabetização, passaram a ser uma
das
<49>
atividades mais importantes e freqüentes. Ditado só serve mesmo para avaliar o processo de ensino, fazendo
aparecerem erros, e em nada contribui para a aprendizagem. O aluno não aprende fazendo ditados. Não é
pensando que ele vai descobrir, naquele momento, como se escreve uma palavra. O ditado, na verdade, visa a
detectar apenas se o aluno já dominou ou não o que se pede nas lições.

A fixação da aprendizagem
Uma vez constatado que o aluno sabe algo, que já dominou um certo conteúdo programático, o método 1
manda que se faça imediatamente a fixação da aprendizagem. A fixação da aprendizagem é um reforço na
atividade de ensino, cujo objetivo é fazer com que o já dominado fique sempre consciente na mente do
aprendiz, como naquele momento da avaliação.
Nesse caso, em geral, a cópia é a maneira mais comum com que o método 1 trabalha a fixação da
aprendizagem, dando-se preferência àquele tipo de cópia repetitiva e longa. Mais raramente, acontece uma
revisão geral para que o conteúdo novo seja avaliado e fixado dentro do conjunto geral de conhecimentos a
que pertence. Repetir e repetir é o que manda o método 1.

O que fazer com o erro


No método 1, o erro serve para indicar que o aluno não dominou algum conhecimento nas avaliações. Fora
isso, o erro é um problema que o método não sabe resolver. Por isso, a solução que adota é ignorá-lo. Não se
discute e muito menos se analisa o que está errado na tarefa do aluno. Simplesmente ensina-se o certo. Há, na
tradição pedagógica de nossas escolas, sobretudo nas classes de alfabetização, a estranhíssima idéia de que
não se pode mostrar o erro ao aluno, discutir o erro, porque isso levaria o aluno a aprender o errado, tendo
maiores dificuldades futuras para fixar o certo.
Não deixa de ser curioso ouvir uma afirmação muitíssimo comum segundo a qual a professora não pode
deixar o aluno diante de uma escrita errada, porque assim ele fixa o erro e depois não consegue mais corrigir.
Por que as crianças fixariam apenas o que está errado, não fazendo o mesmo com o que está certo? Não há aí
uma certa discriminação? Alguns professores apagam o que os alunos escrevem errado e colocam o certo,
<50>
na santa e ingênua crença de que escondendo o erro e mostrando apenas o certo, seus alunos aprenderão
melhor.

Aprender pelos efeitos


O método 1 faz com que o aluno aprenda pelos efeitos, não pelas causas. Se o aprendiz precisa reproduzir o
modelo e corresponder às expectativas do professor que ensina, não precisa saber por que acertou ou errou:
basta acertar e está tudo em ordem. O método garante a certeza ao aluno de que seguindo as instruções,
passo a passo, irá chegar ao resultado esperado. Se acontecer qualquer imprevisto, o aluno não contará com
nenhuma ajuda específica que o faça sair do impasse, porque o método não prevê nada fora daquilo que foi
efetivamente ensinado e copiado pelo aprendiz. O aluno não pensa no que faz, simplesmente se deixa guiar
por um processo de tentativa-e-erro. Obviamente, a escola não tem sido tão rígida assim, na prática, mas
infelizmente também não tem estado muito longe dessa realidade.

Um bom método de adestramento


Como se pôde observar no quadro descrito anteriormente com tintas um pouco carregadas, o método 1 é
fortemente mecanicista, dando tudo pronto para o aluno, esperando que ele siga sempre o modelo proposto.
Se tentar inovar, corre o risco de errar e não saber mais retomar o caminho suave e tranqüilo das coisas já
dominadas. O método 1 é, na verdade, um excelente meio de adestramento e em geral funciona bem com
animais que precisam dominar certas habilidades para desempenhar certas tarefas, agindo sempre de um
único e mesmo modo. Porém, as crianças são racionais, e pensam o tempo todo, mesmo quando a escola se
esquece de que são seres humanos e, portanto, escravos da própria racionalidade.
Tudo o que o ser humano faz precisa de um comando de seu pensamento: isso é sublime e, ao mesmo
tempo, terrível. O método 1 não é bom para os seres humanos porque somos dotados da racionalidade e
refletimos a todo instante. Quando fazemos isso, temos toda a liberdade do mundo de acharmos o que
quisermos, seja lá a respeito do que for, com que idade for, na rua, na sala de aula, na igreja ou em qualquer
lugar.
<51>
Refletir pode desviar o esperado pelo método 1, conduzindo os alunos por outros caminhos não previstos e
atrapalhando a vida do professor e da escola. Os alunos que usam mais de sua própria reflexão se dão pior
quando são submetidos a um processo de ensino baseado no método 1. Eles se dão melhor com o método 2,
que será comentado logo a seguir.

O MÉTODO 2— VOLTADO PARA A


APRENDIZAGEM
A base: a reflexão na aprendizagem

O método 2 é o oposto do método 1 em tudo e caracteriza-se por estar voltado para o processo de
aprendizagem. Leva em conta o fato essencial de que o aprendiz como um ser racional, vai juntando
conhecimentos adquiridos pela vida toda, a partir do momento em que nasce. Para isso, usa sua capacidade de
refletir sobre todas as coisas. O método 2 é, portanto, centrado na reflexão, oposto ao método de
condicionamento.
O método 2 concebe a linguagem como expressão do pensamento; o falante a usa de maneira intencional
para interagir com os outros. Assim a comunicação é apenas um aspecto desse processo.

A situação inicial
Num método baseado na aprendizagem e na reflexão, a situação inicial de cada aprendiz é diferente, porque
cada um tem a sua própria história de vida e de conhecimentos. Como diz uma velha recomendação da
metodologia, deve-se partir sempre da realidade da criança. Mas o que significa, na prática, partir da realidade
da criança? A escola, nesse aspecto, tem trilhado caminhos muito estranhos, não raramente achando que a
realidade dos alunos é a “tábula rasa”. Conhecer a realidade e a história do aluno é fundamental para uma
prática educativa que respeite o aprendiz como um ser humano em sua plenitude.
As classes de alfabetização formam-se necessariamente com um conjunto de alunos com histórias de vida
diferentes, sendo, pelas contingências práticas, classes heterogêneas. Uns sabem algumas coisas, outros sabem
outras; alguns já aprenderam algumas coisas
<52>
próprias da escola, outros não. Algumas crianças tiveram pré-escola e aprenderam os rudimentos da leitura e
da escrita, outras nunca estudaram nada. Algumas crianças aprendem coisas em casa, têm lápis, papel, livros,
outros nunca tiveram nada disso. Cada aluno tem urna história, e o método 2 vai levar isso em consideração.
Como ficar sabendo qual é a realidade de cada um? Em vez de fazer avaliações coletivas — ditado, prova,
etc. —, o professor precisará interagir com seus alunos, conversar com eles, deixar que cada um expresse o
que sabe, à sua maneira, ou que se cale, porque ficar quieto também é um comportamento revelador. O
professor precisará conversar sobre todos os assuntos, inclusive a respeito dos conhecimentos que a escola se
propõe a ensinar aos alunos, para que a aprendizagem e o ensino sejam tarefas compartilhadas entre professor
e alunos, através dos mais variados modos de interação. Entre outras coisas, o alfabetizador conversará com os
alunos, logo no início, a respeito da história de cada um, da comunidade onde vivem, dos ideais de vida, da
escola, da família e até a respeito do que os alunos acham que a escrita e a leitura são nas suas mais variadas
formas. Ouvir os alunos é necessário para conhecer a realidade de cada indivíduo, ponto de partida do
processo de aprendizagem de cada um.
O professor pode ainda pedir para os alunos fazerem desenhos ou rabiscos numa folha de papel para ver
como usam o lápis e o papel. Se alguém quiser, poderá escrever. Se alguém quiser copiar algo, também poderá
fazê-lo, mostrando suas habilidades. Em suma, desde o começo do ano, o professor precisa incentivar os
alunos a falar e trabalhar com lápis e papel. Isso permitirá a ele fazer uma análise dos conhecimentos e
habilidades dos alunos, de seu comportamento lingüístico oral e escrito, porque essa é a melhor maneira de
ficar logo conhecendo a realidade de cada um.
O processo de ensino, segundo o método 2, levará em conta o fato de que cada aluno é diferente do outro, e
que, portanto, o ensino não poderá ser somente coletivo, mas deverá em grande parte estar voltado para as
peculiaridades de cada aluno ou de grupos de alunos que necessitem do mesmo tipo de assistência por parte
do professor. Isso não significa que haverá somente aulas particulares. A aula é coletiva, mas numa sala de aula
podem acontecer concomitantemente coisas
<53>
diferentes, sobretudo em relação às atividades realizadas pelos alunos. O professor deverá dizer coisas de
interesse comum, voltando-se para toda a classe, e outras de interesse particular, nos momentos adequados,
ensinando uma questão ou outra a um ou mais alunos, de maneira especial.

Nota
Tábula rasa: expressão de origem latina que era usada para significar que deixar limpa a tábula revestida de
cera em que se escreviam mensagens breves que não deveriam permanecer escritas durante muito tempo.
Hoje, a expressão refere-se à falta absoluta de conhecimento sobre determinado assunto.

A técnica: explicações adequadas


Como a base do método 2 é a reflexão, a técnica a ser usada se apóia nas explicações adequadas,
transmitidas ao aprendiz nos momentos oportunos. A aprendizagem depende crucialmente de entender o que
se quer saber, e quanto melhor e mais abrangente for esse entendimento, maior e melhor será o processo de
aprendizagem.
Entender é ter um conjunto de informações que expliquem a natureza, a função e os usos do conhecimento.
Isso não se adquire linear nem automaticamente, pelo simples fato de se ter ouvido alguém falar dessas coisas,
mesmo que as palavras sejam familiares e o texto, claro e correto. Cada um reage de uma maneira individual à
construção do conhecimento, cada um tem um caminho próprio, cada um atribui valores próprios, muito
individuais, aos elementos do conhecimento que constrói no processo de aprendizagem. Tudo isso precisa ser
levado em conta, porque faz parte intrínseca da natureza humana e, portanto, de cada indivíduo.
Dar explicações adequadas requer do professor um trabalho preliminar de descobrir a necessidade de
esclarecimento de cada aluno e da classe como um todo. Para isso, o professor precisa ter um preparo
profissional de alta qualidade: competência para analisar todas as situações de trabalho escolar que enfrenta
na sala de aula, e para tomar decisões corretas como educador e como professor, dizendo aos alunos o que é
necessário, da maneira adequada.
Infelizmente, muitos professores são, na realidade, mal formados e, conseqüentemente, incompetentes, a
ponto de preferirem usar o método 1, que vem com toda a programação curricular já pronta nos livros
didáticos. No método 1, a competência do professor pode ficar camuflada pela aplicação da lição, retirada de
um manual qualquer. No método 2, a competência do professor é posta em xeque a cada momento.
Dependendo de sua atitude, fica logo muito claro a todos (inclusive às crianças) o fato de um professor ser um
profissional
<54>
competente ou não. O professor tem de procurar saber a razão de tudo o que seus alunos fazem ou deixam de
fazer, caso contrário não saberá o que dizer.
O professor não pode ter medo de dizer a verdade aos seus alunos. As crianças também gostam de saber as
coisas como elas são, também gostam de ser tratadas seriamente. E fazer isso não é tratá-las como adulto;
porém, o respeito sem preconceitos é fundamental. Alguns professores, por razões muito equivocadas, acham
que precisam explicar tudo metaforicamente para os alunos. Essa é uma atitude preconceituosa para com a
capacidade mental das crianças.

O professor como mediador


Costuma-se dizer que o professor é um mediador entre o saber e o aluno. Ser um mediador, aqui, é ajudar o
aprendiz a construir seu conhecimento, passando a ele as informações adequadas, explicando o que tem de ser
explicado. Essas explicações não devem referir-se apenas ao conteúdo programático organizado pelo
professor, de acordo com um currículo, o que na prática representa a atividade de ensino. Devem, sobretudo,
estar voltadas para os trabalhos que os alunos realizam por iniciativa própria, como atividade específica de
aprendizagem. É dessa maneira que o processo de ensino, através da mediação do professor, interfere no
processo de aprendizagem levado adiante pelo aluno. Quando o aluno erra alguma coisa, ou não sabe realizar
uma tarefa, precisa ouvir do professor uma análise do caso e receber uma explicação adequada para entender
o que fez ou deixou de fazer, a fim de agir corretamente nesses casos e fazer progredirem seus conhecimentos.

O que fazer com o erro


No método 1, quando um aluno erra, o professor volta atrás e repete tudo de novo. No método 2, quando
uma explicação não serviu para levar um aluno a corrigir um erro ou a fazer determinada tarefa, o professor
precisa procurar uma outra maneira de explicar. Não há burrice maior do que a daqueles professores que
dizem que ensinam sempre as mesmas coisas e os alunos não aprendem.
Procurar explicações adequadas requer saber abordar um problema de muitas maneiras, de ângulos
diferentes, seguir caminhos alternativos. Se, apesar de todo
<55>
o esforço e competência do professor, ele ainda constatar que determinado ponto não está sendo
devidamente entendido por um aluno (ou por uma classe), o que ele deve fazer é passar para o ponto seguinte,
sem remorso, sem sentimento de culpa, sem preconceito contra a capacidade de aprendizagem dos alunos.
Muitas vezes, para se entender algo aparentemente simples é necessário ter informações complementares,
que o professor obviamente tem, mas o aluno não. Freqüentemente, é preciso ter conhecimentos
pressupostos ou até mesmo saber relacionar coisas já conhecidas de uma forma determinada para que o novo
conhecimento possa ser assimilado e aplicado.
Se o professor marcar passo diante das dificuldades, o impasse pode se estabelecer, com sérias
conseqüências para o processo escolar. Nessas circunstâncias, o melhor que ele tem a fazer é partir para outra,
porque um dia, com ou sem as explicações do professor, os alunos acabarão aprendendo aquela questão
deixada incompleta ou mal entendida.
Quando os adultos discutem coisas sérias, é muito comum que fatos semelhantes aconteçam: tem-se a
nítida impressão de que o interlocutor entendeu tudo errado, e, no debate, a questão é tratada de todas as
maneiras possíveis; o resultado acaba sendo o mesmo: cada um sai pensando exatamente o que pensava
antes, mesmo diante da evidência estrondosa de uma bela argumentação. Sem dúvida alguma, as pessoas não
se convencem apenas graças a uma bela argumentação. Por que, na escola, as coisas deveriam ser diferentes?

A concepção de aprendizagem
A concepção de aprendizagem do método 2 baseia-se nas decisões que o aprendiz toma, levando em conta
as explicações adequadas que recebeu. Isso faz com que ele se aventure no mundo do saber e procure a
maneira correta de dar o passo seguinte, como conseqüência de tudo o que aprendeu até o momento. Aqui
está o grande segredo da aprendizagem: o aprendiz não só aprende o ponto, mas aprende a aprender. A
verdadeira aprendizagem proporciona ao aluno generalizar o processo de tal maneira que a intermediação do
professor vai, aos poucos, cedendo lugar à sua própria independência e competência para buscar as
explicações adequadas por si mesmo e a construir seu
<56>
próprio saber. Quanto mais cedo o aprendiz chegar a essa autonomia, melhor será para ele: aprenderá
melhor, mais rapidamente, mais dados. O método 1 fixa o aprendiz à lição sob estudo, ao currículo, ao
programa, ao que o professor manda fazer. Isso segura o ritmo de muitos alunos os quais, apesar de
submetidos ao método 1, na prática agem por conta própria, seguindo o método 2.
Para que o aprendiz possa tomar suas decisões, é preciso que a escola tenha um espaço especial em sua
programação destinado a esse tipo de atividade. Na alfabetização, é fundamental que os alunos produzam
trabalhos espontâneos, façam atividades a partir de sua iniciativa, do jeito que acharem melhor. Mesmo um
trabalho com objetivos definidos, como fazer um cartaz ou escrever uma carta reclamando da destruição das
florestas ou da poluição das cidades, pode ser realizado de maneira a permitir que a expressão individual de
cada aluno encontre liberdade de realização.

Avaliação: tudo serve


No método 2, qualquer coisa que o aprendiz faça ou deixe de fazer serve como material para avaliação da
aprendizagem. Avaliação, aqui, não significa dar nota ou conceito, como no método 1, mas realizar um estudo
interpretativo daquilo que foi feito, para verificar o que está correto e o que está errado e por que está certo e
por que está errado.
A avaliação no método 2 tem como objetivo analisar as decisões tomadas pelo aluno ao fazer o que fez, do
jeito que fez, para que o professor possa dar as explicações adequadas e para que o aluno corrija seus erros,
melhore e dê um passo adiante na formação de seus conhecimentos. No método 1, a avaliação é sempre
circunstancial, localizada, e pondera fato por fato isoladamente. No método 2, a avaliação leva em conta o
processo de aprendizagem, a história de cada um dentro desse processo; é sempre cumulativa, exigindo uma
comparação com o que já foi realizado. No método 1, basta constatar o erro, quantificar, dar a nota ou
conceito e ponto final. No método 2, é preciso fazer um dossiê com os trabalhos dos alunos para estudar o
caminho que o aluno está seguindo ao construir seus conhecimentos e saber que tipo de hipóteses ele faz a
respeito das questões que está estudando. Não basta
<57>
constatar os erros e deficiências, é preciso interpreta-los e discutir o assunto com o aluno. Nenhuma tarefa é
um trabalho isolado: faz parte de um conjunto de outros trabalhos que o aluno vem fazendo, e a avaliação
precisa estudar cada caso dentro deste contexto maior. A nota é algo que não faz sentido no método 2. Em vez
de nota, o método 2 responde com explicações. Esse tipo de avaliação do processo de aprendizagem em
andamento, associado à intermediação do professor, incentiva o aluno a dar o passo seguinte, tentando
generalizar os conhecimentos que já tem ou fazendo novas hipóteses sobre a nova questão com que se
defronta.

Caos e caminhos tortos


Um método que privilegie a aprendizagem sobre o ensino nunca será um caminho linear, bem-definido, será
antes um modo de progredir circular. Muitas questões serão tratadas em diferentes ocasiões, dependendo da
maneira como o aluno reage e trabalha. O professor não precisa preocupar-se em levar um programa à frente,
item por item. No final, se o processo de ensino e aprendizagem for bem equilibrado, os alunos acabarão
aprendendo tudo aquilo que constitui a expectativa da escola para determinada fase do processo educativo.
Na alfabetização, os alunos acabarão aprendendo a ler, a escrever, enfim, a fazer tudo certo e bonito. Esse
resultado, no entanto, só começará a aparecer depois de certo tempo.
No método 1, como tudo fica sob o controle do ensino, desde o início os alunos apresentam cadernos muito
bonitos, com tudo certinho e no devido lugar, dando a impressão de que estão aprendendo às mil maravilhas.
Depois de certo tempo, começam a aparecer os problemas, e o caos instaura-se na cabeça de alguns alunos,
para desespero do professor, da escola e dos pais. No método 2, tem-se a impressão, no início, de que se está
em meio a um caos, por causa do tipo de trabalho que os alunos fazem. Porém, à medida que o tempo passa, a
rotina de trabalho leva os alunos a se organizarem melhor, a classe torna-se mais homogênea e, no final do
ano, o que parecia um caos acaba revelando ao professor que valeu a pena. Por caminhos diversos, os alunos
acabaram chegando aonde o professor queria que eles chegassem. E ninguém fica perdido no meio do
caminho, como acontece com o método 1.
<58>

Como fixar a aprendizagem


Como ficou claro pelo exposto acima, o método 2 faz com que o aluno aprenda pelas causas, não pelos
efeitos. Nesse caso, o que vale são as hipóteses levantadas nos trabalhos, revelando as decisões que os alunos
tomaram, seguindo um processo de reflexão.
A fixação da aprendizagem, no método 2, é o outro lado da moeda da reflexão. Quando uma pessoa
entende algo, ela automaticamente sabe e, portanto, não precisa “fixar”. Isso não quer dizer que tudo o que
entendemos (e sabemos) permanece ao nível da consciência o tempo todo, a vida toda. Mas quem sabe
verdadeiramente sabe de cor, caso contrário, não sabe. Em muitos casos, sabemos como operar com certos
conhecimentos, mas precisamos de auxílio externo para realizar determinadas tarefas. Isso também é saber, e
o fato de memorizar todas as etapas intermediárias e procedimentos operacionais é simplesmente um
exercício de tornar consciente fatos já entendidos e memorizados.
Existe uma memorização que é intrínseca ao próprio ato de entender e aprender, e existe outra
memorização que é simplesmente um ato de tornar consciente uma série de fatos do conhecimento. Os dois
tipos de memorização são importantes no processo escolar. O que não faz sentido é a memorização como
repetição de algo, sem conhecimento nem entendimento do que está sendo feito a não ser do próprio ato de
repetir.

OS DOIS MÉTODOS NA
ALFABETIZAÇÃO
No caso do método 1, os cadernos dos alunos mostram que eles logo aprendem a escrever usando apenas as
formas já dominadas, mesmo que, para isso, tenham de abrir mão da habilidade que têm para produzir textos.
As caricaturas de textos desse método tornam-se pretextos para o uso das palavras já dominadas. Salva-se a
ortografia nos cadernos, mas sacrifica-se a produção de textos reais, o uso real da linguagem.
No caso do método 2, o aluno aprende primeiro a ler, depois a escrever e somente então passa a se
preocupar com a ortografia. No início, escreve a partir das hipóteses que tem sobre a ortografia. Nessa fase,
costumam
<59>
aparecer as formas mais estranhas de escrita quando comparadas com a forma ortográfica estabelecida.
Porém, essa prática permite que o aluno passe da habilidade que tem como falante nativo, de produzir textos
orais, para a habilidade de produtor de textos escritos. No começo, será uma simples transferência do oral para
o escrito. Aos poucos, no entanto, as regras do estilo escrito também começam a marcar presença.
Tem-se a impressão, no início, de que o aluno nunca aprenderá ortografia. Com a produção de textos desde
o início da alfabetização, salva-se o uso real da linguagem, quer na sua forma oral, quer na sua manifestação
escrita. A ortografia é algo que se recupera facilmente com o tempo, com a ajuda dos dicionários e,
principalmente, de muita leitura. Porém, quando um aluno entende que fazer um texto é simplesmente utilizar
as palavras que sabe escrever, isso significa que ele está muito enganado com relação ao significado real da
linguagem. Escrever assim é um erro que a própria escola mais tarde não irá perdoar. Não demorará muito
para esse aluno encontrar um professor que diga que ele escreve mal e não sabe organizar um texto de forma
correta. O aluno, que acreditava que bastava não errar a ortografia para obter um texto bem escrito, ficará
perplexo e não saberá, de imediato, o que há de errado. A culpa será atribuída ao professor de português, e
este, por sua vez, continuará dizendo que o aluno não foi bem alfabetizado. Uma boa nota nas avaliações nem
sempre garante uma boa educação.
Um método não é uma panacéia que resolve todos os problemas educacionais. Todavia, como se pode notar
pelas observações anteriores, o processo educativo depende do método adotado. Os dois métodos podem
alfabetizar, mas o método 1 o fará de uma maneira indesejável, embora aparentemente adequada. O método
2 exige experiência e competência do professor, paciência dos pais e uma escola preparada para ser uma
oficina de trabalho, não apenas uma sala de aula onde o professor ensina e o aluno tem de se virar para
aprender.
<60>

3
Avaliação, promoção, planejamento
A avaliação e a promoção são duas atividades pedagógicas sem as quais a escola não sobrevive, mas nem por
isso as pratica de maneira exemplar.
O primeiro ponto a ser levantado é a confusão que se estabeleceu nas nossas escolas (e em muitas outras
no mundo moderno) entre avaliação e promoção. Nas nossas escolas a avaliação tem como única meta a
promoção, ou seja, os alunos recebem notas pelos trabalhos que fazem para passar ou não de ano. Isso parece
óbvio e natural para muitos professores, acostumados com essa prática. No entanto, é muito importante que
essas duas atividades sejam feitas independentemente. A avaliação deve contemplar um julgamento sobre o
que os alunos fazem para aprender e sobre o que o professor faz para ensinar, para que o ensino e a
aprendizagem aconteçam da melhor maneira possível. A promoção julga da conveniência ou não de um aluno
passar para as atividades escolares do ano seguinte.
CAGLIARI, 1996e,

NOTAS E CONCEITOS
A prática de dar notas ou conceitos é o centro da confusão entre avaliação e promoção. Na verdade, esse
hábito desvirtuou até mesmo o modo de avaliar. Algumas pessoas apresentam mil argumentos para dizer que
conceitos são melhores do que notas, uma vez que os conceitos englobam menos categorias, facilitando,
portanto, um julgamento mais amplo e com menos risco de erros. Certamente esse argumento é um contra-
senso, porque se poderia contra-argumentar, entre outras razões, que as notas de O a 10 permitem avaliar
com mais justiça do que o uso de apenas 5 conceitos. Na verdade, a questão central não é essa, mas o próprio
fato de atribuir notas ou conceitos. Nem a avaliação nem a promoção precisam de notas ou conceitos.
O surgimento de notas e especialmente dos conceitos deveu-se não só ao fato de se avaliar o certo e o
errado no trabalho do aluno, como também ao fato de se premiar com um elogio o aluno aplicado aos estudos
e castigar expondo ao vexame o aluno preguiçoso. Este último argumento é o mais comum para justificar o uso
de notas e conceitos, Os professores dizem que, sem as notas, os alunos não estudam e não existe uma
<62>
competição que os estimule. Alguns acham que as notas são essenciais até para manter a disciplina. Ainda
existem professores que reprovam por indisciplina.
A necessidade de dar e receber nota tomou-se, com o tempo, compulsória nas atividades escolares e
estendeu-se por todos os níveis, abrangendo todas as atividades. Como a escola educa para a sociedade,
vemos que nossa sociedade passou a ter a mesma obsessão. Mesmo atividades que não precisam de
julgamento de valor passam a ganhar notas, como um jogo social. Tudo pode ser traduzido em valores de O a
10, de acordo com qualquer parâmetro. Por ocasião da última Assembléia Constituinte, até os deputados e
senadores passaram a ganhar notas de acordo com o seu desempenho. Uma bela mulher passa a ser conhecida
como “mulher nota dez”, a exemplo da tradução do título de um filme.
Curiosamente, mas não sem razão, as notas são menos encontradas justamente nos esportes e jogos. Como
o objetivo é muito claro, ganha quem consegue atingir tal meta: não adianta o time de futebol ter um
excelente desempenho, se no último minuto o adversário, que jogava mal, faz o gol da vitória. No boxe,
contam-se pontos, mas um nocaute basta para qualquer lutador vencer. Na patinação sobre o gelo e em
muitas formas de ginástica olímpica, o júri dá notas baseado na realização de determinadas tarefas e na
perfeição com que elas são realizadas. Neste último caso, as notas servem para classificar e indicam o nível do
desempenho de cada um na competição, uma vez que o objetivo dessa atividade é apontar o campeão, ou
seja, o melhor de todos.
Nos concursos de seleção, a situação é semelhante: é preciso classificar para admitir um certo número de
pessoas e excluir as demais. Em algumas escolas, as notas servem também para indicar o campeão da turma,
da série, da escola.
Como se vê, as notas estão por toda a parte.
As notas, refletindo um julgamento de valor, funcionam bem quando se trata de classificação e, sobretudo,
quando se pretende fazer uma seleção a partir dessa classificação. Isso é muito útil num concurso ou numa
competição esportiva. Nesse sentido, vê-se claramente a relação entre notas e competitividade.
Nosso problema, porém, é outro: será que os alunos, quando estudam, estão participando de uma
competição, de uma seleção para ver quem fica e quem é excluído ou, simplesmente, quem é o campeão? Será
esse o objetivo da escola, da educação, dos estudos?
<63>
Na prática, o uso de notas nas atividades escolares parece deixar bem claro que a escola optou por esses
objetivos. Será que estudar é uma competição em que é preciso ganhar, senão se acabam as chances de
continuar? Será que não se pode estudar por ideais mais nobres? Será que a escola não pode ter objetivos
voltados mais para a formação e menos para a competição?
Em qualquer ambiente escolar, é comum haver competição, pela própria natureza das atividades da escola.
Quando se reúnem muitas pessoas, fazendo determinadas tarefas, a partir da capacidade de cada um, logo fica
evidente que algumas fazem melhor, com mais arte e perfeição do que outras. E a comparação mostra quem é
melhor e quem é pior nisso ou naquilo. Na vida, cada um se especializa naquilo que se julga melhor. O fato de
que alguém é melhor em determinada tarefa não significa que é preciso desprezar todas as demais pessoas
que não sabem fazer com a mesma perfeição. Uma análise das ocupações de trabalho em sociedade ilustra
bem o que se disse acima. Cada um cumpre o seu dever da melhor maneira possível e a existência de
diferenças é uma característica da própria sociedade.
Pode haver promoção escolar sem competição através de notas? A promoção depende de como se faz a
programação escolar e dos objetivos que se pretende alcançar. Nas escolas da Antiguidade não fazia sentido
reprovar alguém: as pessoas iam para discutir idéias e muitas vezes cada um defendia seu ponto de vista
contra o do mestre.
A nota só entrou na escola quando a prática pedagógica tirou a aprendizagem como alvo e colocou o ensino
em seu lugar. Ou seja, as notas surgiram quando os alunos começaram a ter de reproduzir o que o mestre
ensinava, do jeito que era ensinado, deixando de lado as opiniões individuais. É por essa razão que as notas
não avaliam o processo de aprendizagem do aluno ou sua esperteza intelectual, mas simplesmente sua
capacidade de reproduzir ou aplicar um modelo dado pelo professor ou pelo livro didático. Basta fazer uma
análise de provas, testes e exames, para descobrir que essas avaliações nada mais são do que um exercício de
“faça segundo o modelo”. Essas formas de avaliação exigem que os alunos repitam para o professor o que este
lhes disse. Mesmo quando um aluno faz uma redação livre, a nota é fruto do que o professor ensinou e que
acha que o aluno precisa reproduzir em seu trabalho, principalmente no que se refere à ortografia, à
concordância e a uma
<64>
certa lógica no desenvolvimento do argumento. Essa prática de aplicar provas determinou o sentido que a
avaliação e a promoção passaram a ter na escola.

PROMOÇÃO AUTOMÁTICA
A promoção é feita a partir dos resultados das notas, o que significa que, no fundo, depende da avaliação. É
muito confortável saber que o artigo da Constituição brasileira que diz que toda criança dos 7 aos 14 anos tem
direito à escolarização não faz nenhuma menção a notas nem avaliações. Certamente, também não se pensou
que uma pessoa pudesse ficar durante 7 anos na primeira série simplesmente porque tem o direito de
escolarização garantido pela Constituição. Intui-se que uma lei como essa existe para não ser cumprida,
servindo apenas para mostrar para os demais países que o Brasil também se preocupa com a educação. Não só
não há escolas para abrigar toda a população necessitada, como a própria escola encarrega-se de marginalizar
grande parte das crianças de 7 a 14 anos, julgadas inaptas para o trabalho escolar. No caso, é um desrespeito
não só à criança como também à Constituição.
Uma pedagogia sadia e lúcida recomenda que a promoção seja automática. Aliás, a promoção não deveria
sequer ser objeto de preocupação da escola, a não ser em casos muito excepcionais. Assim, seria candidato à
repetição de ano o aluno que não tivesse assistido, por exemplo, a pelo menos metade das aulas, talvez por
motivo de saúde ou de trabalho, desde que não tivesse compensado essa falta com conhecimentos escolares
adquiridos fora da escola.

AVALIAÇÃO E RENDIMENTO ESCOLAR


O rendimento escolar não é razão suficiente para reprovar ninguém. Pessoas que apresentam patologias
deveriam ter uma escola especial para receberem uma formação adequada. Nesse caso, faz menos sentido
ainda falar em reprovação.
<65>
Alguns professores ficam chocados quando ouvem dizer que o rendimento escolar, expresso por notas ou
conceitos, não é razão suficiente para reprovar alguém. Algumas considerações bastam para esclarecer esse
ponto, embora haja muito mais a ser dito.
Em primeiro lugar, a nota serve para que o interesse em passar de ano (ganhar diploma) se torne o objetivo
maior da educação, deixando a idéia de formação, no sentido pleno da palavra, num plano secundário e
mesmo dispensável. O aluno estuda não porque é importante para a vida, mas para livrar-se de mais uma
competição intelectual.
Uma análise honesta do que de fato acontece com o atual sistema de avaliação mostra que um aluno pode
ter nota, passar de ano com louvor e não saber o conteúdo da matéria. Acertar nas provas nem sempre
significa que o aluno aprendeu, assim como errar nem sempre significa que ele não estudou ou não aprendeu.
Quantas vezes um aluno lembra logo depois da prova como se resolve uma questão? Mas, então, já não há
mais tempo. O tempo da avaliação é irreversível, como irremediável é a nota. De nada adianta o aluno dizer
para o professor no dia seguinte que ele sabe a lição na ponta da língua. A avaliação não volta atrás.
Por outro lado, quantos alunos chegam mesmo a dizer, depois de terminada uma prova, que fazem questão
de se esquecer de tudo, porque agora já conseguiram nota necessária para serem aprovados? Quantos
estudantes esperam as férias para rasgar os apontamentos, queimar livros e tratar de esquecer a escola,
porque a nota já garantiu a promoção e, talvez, até o diploma? Essa atitude é um alarme para a educação e
significa, entre outras coisas, que esses alunos estudam apenas para ganhar nota e passar de ano. Esse será o
típico cidadão que jamais se interessará pelos estudos depois de diplomado. Estudar não é uma atividade que
se faça apenas na escola, mas ao longo da vida, como aprimoramento pessoal e profissional. A educação
precisa modificar sua visão de si própria. E preciso educar para a vida, não para a nota.

Qualidade de ensino e motivação


A falta de nota não é responsável pela baixa qualidade do ensino. Num país como o Brasil, dizer isso é uma
piada, uma vez que piorar o ensino é impossível. A qualidade do ensino se consegue com um trabalho
<66>
competente, quer com relação ao conteúdo técnico das matérias, quer na ação do professor como educador. E
nada disso tem a ver com notas.
Outro argumento, também inconcebível do ponto de vista pedagógico, é dizer que as notas servem de
motivação para o aluno. Se o professor nunca passar uma prova, os alunos não estudam. Pelo menos com
medo das provas, eles estudam um pouco.
Os alunos acabam tendo esse comportamento porque a escola não deu a eles, desde cedo, uma outra
perspectiva de trabalho escolar. Os alunos são vítimas desse processo, não culpados. Ainda nessa linha de
raciocínio, alguns professores pensam que seu trabalho (ou o do colega) perde a seriedade, fica sem controle,
se não houver provas exigentes e notas baixas. Alguns diretores até consideram que professor bom é aquele
que passa muita prova e dá muita nota baixa. Professor que não faz isso, passa a ser avaliado como alguém
irresponsável, que gosta de matar o tempo. Como pode ser diretor de escola urna pessoa com essa
mentalidade?

Avaliação e castigo escolar


Se alguém quisesse fazer um livro sobre a vida na escola, encontraria, nas provas e notas, um tesouro em
comportamentos patológicos e um sem-número de casos trágicos daí decorrentes. Já ocorreram até casos de
suicídio devido a notas e reprovação escolar. O drama que pais e filhos passam a ter nas famílias por causa das
notas é algo de que a escola nunca quis tomar conhecimento, embora seja ela a principal causadora dessas
tragédias.
Por fim, cria-se na escola aquele famoso clima de vingança mútua: professor faz prova para os alunos
ganharem notas baixas, se sentirem humilhados e castigados. Em troca, os alunos revidam com uma enorme
bagunça nas aulas e nas dependências da escola. Com o aumento das irregularidades de comportamento, o
professor se volta de novo contra os alunos, usando sua arma terrível que é a nota. Surpreende-os com provas
relâmpagos para complicar ainda mais a relação entre ensino e aprendizagem, comprometendo
traiçoeiramente a promoção de alguns alunos e instalando um ambiente de guerra.
Alguns professores elaboram provas já sabendo quais os resultados que irão obter: duas questões são
escolhidas a dedo para que ninguém acerte; três questões são mal formuladas para enganar de certo modo e
confundir
<67>
o aluno menos esperto; três questões são tão longas que exigem dos alunos um tempo que eles não vão ter
para responder direito e de maneira completa; por fim, duas questões de resposta fácil, mas com pequenas
armadilhas na escolha das palavras. Esses professores se gabam quando seus alunos erram ao responder as
coisas mais banais da matéria. Acreditam que, dessa forma, estão ensinando seus alunos a estudarem direito, a
não se deixarem enganar pelas aparências...
Um professor que acompanha de perto o trabalho de seus alunos na sala de aula acaba percebendo o que
eles sabem e o que não sabem, aluno por aluno. Este acompanhamento é a melhor forma de avaliação, e a
mais honesta. A convivência mostra ao professor quem são de fato seus alunos. Essas informações são cruciais
para o professor planejar adequadamente suas aulas e dirigir os trabalhos do aluno para que ele progrida. Uma
prática semelhante realmente dispensa qualquer tipo de prova e nota.
Filosofar sobre a justiça ou não das notas e conceitos é uma discussão bizantina, uma perda de tempo, e
equivale a discutir se existe uma avaliação justa.
Gostaria, não obstante, de dizer que o problema não está em haver ou não um teste objetivo ou um critério
bem-definido para se atribuir uma nota justa. Como vimos, existem muito mais coisas por trás dos testes e
critérios utilizados na avaliação, cujo envolvimento com as notas mostra que não é a maneira como a nota é
dada que faz justiça ou não, mas o próprio fato de dar notas.

O valor dos cálculos na avaliação


Algumas vezes ouvi professores alfabetizadores dizerem que um aluno que acertasse mais de 70% da
ortografia das palavras teria condições de passar de ano. Analisando, porém, a produção de crianças que
tinham sido reprovadas e contando minuciosamente os acertos e os erros, constatei que quase sempre os
alunos tinham um índice de acerto maior do que o mínimo exigido.
Na verdade, a reprovação não vinha do cálculo de acertos e erros, mas da qualidade dos erros. O professor
dizia que não podia aprovar o aluno que tinha escrito “mecadio” em vez de “mercadinho”, ou “piçoa” em vez
de “pessoa”. Numa frase como: “Ze piriri fio uomino
<68>
mecadio” (“Zé Piriri viu um homem no mercadinho”), o professor achava que estava tudo errado, dizendo que
havia apenas uma palavra certa. Obrigado a contar os erros de ortografia pelas letras — o que é mais justo —
achou 8 erros e 18 acertos. (Uma contagem mais rigorosa mostraria que há 12 erros e 26 acertos, o que dá
uma porcentagem de 3 1,57% de erros contra 68,43% de acertos nesta frase, uma das mais problemáticas do
texto.)
Se os professores tivessem olhos para ver também o que os alunos acertam, começariam a ver as notas com
outros olhos. O erro é sempre muito chocante, mas os acertos não costumam despertar entusiasmo nos
professores.

AVALIAÇÃO SEM NOTA


Tirar as notas da escola não significa acabar com o
processo de avaliação. Assim como a promoção não precisa de notas, também a avaliação não precisa delas.
A avaliação é uma atividade importante, que deve estar sempre presente na escola e na vida em geral. Na
escola, a avaliação deve ser uma análise e interpretação do progresso do aluno. O professor também deve se
auto-avaliar.
A avaliação é sempre uma atividade voltada para cada indivíduo de maneira específica, porque cada um é
diferente dos demais, cada um tem uma história de vida diferente e apresenta uma realidade escolar peculiar.
O progresso de um aluno não precisa ser igual ao de outro. O importante é que todos cresçam, trabalhando e
fazendo o que tem de ser feito.
Passar a mesma prova para todos os alunos de uma classe, sobretudo nas primeiras séries, é desconhecer a
realidade de cada aluno. Somente aquele tipo de ensino massilicante, uniformizante, em que o professor
manda e os alunos obedecem, leva um professor a aplicar a mesma prova para toda a classe. Não é porque o
professor ensinou algo, que todos os alunos aprendem do mesmo jeito. Não é porque o professor ensinou, que
já tem o direito de cobrar de seus alunos, na forma de provas ou chamadas, uma reprodução do modelo
apresentado, como conteúdo específico ou como conhecimento derivado, aplicado à solução de algum
problema.
<69>

O trabalho substitui a nota


Uma escola sem nota precisa, em primeiro lugar, mudar seus objetivos e adotar um processo de educação
para a vida, não para passar de ano. Nesse clima pedagógico, o que conta é o trabalho sério do professor e do
aluno. A escola precisa trocar as provas, os testes, enfim as notas, por trabalhos que os alunos irão fazer,
alguns sob orientação direta do professor, outros por iniciativa própria sob a supervisão dele.
Se a escola incentivar os alunos a produzir trabalhos, e se esses trabalhos forem guardados, fica muito fácil
para o professor provar, para quem quiser ver, como um aluno começou sem saber muito e, depois de uns
tantos meses de aula, aprendeu e fez inúmeras coisas interessantes. Em vez de boletim de notas, OS
professores deveriam ter arquivos para guardar os trabalhos que os alunos realizaram ao longo do ano. No
final do ano letivo, o próprio aluno poderia ver, nesse arquivo, a história da sua educação naquela série e
constatar o quanto progrediu.
Através de uma prática intensa de realização de trabalhos, o professor tem condições de estudar o processo
de aprendizagem de cada um de seus alunos e orientá-los melhor. Esse tipo de avaliação, porém, exige que o
professor conheça profundamente o assunto que ensina para poder analisar e interpretar os resultados
encontrados nos trabalhos e propor soluções e melhorias. Somente quem possui um conhecimento técnico
sofisticado é capaz de conduzir um processo de avaliação contínuo durante o ano todo, levando em conta tudo
o que o aluno fez ou deixou de fazer.

Auto-avaliação e autocorreção
Uma avaliação que acompanha o processo de alfabetização de cada aluno, além de ajudá-lo, servirá para o
professor organizar melhor suas aulas futuras e adaptar seu programa de trabalho à realidade do dia-a-dia,
durante o ano escolar.
Com isso, o professor ensina ao aluno que avaliação é um ato contínuo, paralelo a tudo o que se faz, e o
treina a se auto-avaliar e a refletir criticamente sobre o
próprio trabalho. Alguns alunos nem sequer chegam a desconfiar de que podem errar por falta de um trabalho
de avaliação acompanhada pelo professor, quando
<70>
realizam suas tarefas. A escola deve formar pessoas competentes não só para dizer e fazer, como também
para julgar o que os outros e o que elas próprias fazem.

O aluno na série seguinte


Se todos os professores, incluindo não só os da alfabetização, mas também os demais, partirem da realidade
de seus alunos, no começo do ano, para ensinar o que acham que deve ser ensinado, tem-se um argumento a
mais para a promoção automática na escola. Uma programação geral deve distribuir conteúdos básicos para
serem ensinados ao longo dos oito anos do primeiro grau. Se um aluno não aprendeu direito um ponto num
ano, o professor do ano seguinte, em vez de reclamar do colega, tem de assumir seu papel e ensinar a esse
aluno o que ele precisa saber.
Portanto, a promoção automática não precisa se preocupar com a hipótese de um aluno não conseguir
acompanhar a matéria no ano seguinte. Mesmo hoje, apesar das provas e das notas, quando um aluno é
promovido, não se tem garantias de que ele aprendeu de fato o que estudou no ano anterior.
Analisando friamente, constata-se que alguns alunos foram reprovados porque cometeram certos erros em
suas provas. Quais serão esses erros, que conhecimentos tão importantes eles envolvem para que um aluno
repita de ano? Encontramos, por exemplo, que o aluno errou o sujeito da oração, confundiu o predicativo do
objeto direto com outra função sintática ou, mesmo, não soube resolver um binômio de segundo grau. Na
alfabetização, os erros de ortografia prevalecem
como causas de reprovação. Como avaliar essa avaliação, senão dizendo que é fruto de uma ingenuidade e
uma ignorância que só poderia vir de uma escola tão desorientada como a nossa?
< CAGLIARI, 1993c. >
Será que vale a pena criar tantos problemas por tão pouco? O mundo não vai cair se o aluno não aprendeu o
que é predicativo do objeto direto ou como resolver um problema de álgebra, ou qualquer dessas coisas que se
tomam objeto de perguntas fatídicas nas provas e testes.
Por causa de um predicativo do objeto direto, um erro de ortografia ou o binômio de segundo grau mal
resolvido numa prova, muitos alunos já foram reprovados. A escola não sabe dimensionar esses fatos nem
mede as conseqüências do que faz. Tal reprovação, além de causar danos emocionais nos alunos, ocasiona
danos financeiros às famílias e ao governo.
<71>

O círculo vicioso de quem não aprende

A avaliação por meio de testes e provas muito freqüentemente cria um problema sério para os professores:
eles acabam acreditando que aquela forma de avaliação é de fato um espelho do processo de aprendizagem. E
se o aluno vai mal na prova, o professor pensa que ele não aprendeu e repete tudo de novo, esperando que
um dia o aluno devolva o que foi ensinado do mesmo jeito como foi passado.
O processo de aprendizagem não funciona assim. Por isso, alguns professores dizem que ensinam sempre as
mesmas coisas e os alunos nunca aprendem: isso mostra que esses mestres não são muito espertos. Por que
não ensinar algo diferente? Talvez assim os alunos aprendam. Muitas vezes, para aprender adequadamente
um ponto é preciso avançar bastante na matéria. Ora, se o aluno fica marcando passo em algumas idéias e não
tem a chance de ver outras, pode ficar condenado a não aprender nada.

UMA NOVA VISÃO DA AVAHAÇÃO


E DA PROMOÇÃO

Como vimos, a escola não sabe avaliar para corrigir e ensinar, mas somente para promover ou não o aluno. A
formação de arquivos com os trabalhos realizados pelos alunos é o material de que o professor precisa para
poder avaliar o progresso dos alunos. Agir assim requer uma mudança de atitude. Não acontece simplesmente
porque alguém decretou uma lei ou uma norma. Deve fazer parte das convicções pedagógicas mais profundas
do educador.
A implantação do ciclo básico teve mais a pretensão de começar uma discussão sobre o estado da educação
do que estabelecer a idéia, que muita gente passou a ter, de que haveria apenas o aumento do período de
alfabetização de um ano para dois. A idéia mais elaborada contemplaria a promoção automática para todo o
ensino fundamental e médio (primeiro e segundo graus).
Muitos professores gostariam de mudar radicalmente sua prática pedagógica, mas encontram obstáculos nas
normas e até mesmo no comportamento de diretores
<72>
supervisores e orientadores pedagógicos, sem mencionar a tradicional queixa dos pais.
Se o patrão exige que o professor dê notas a seus alunos, ele pode até agir assim, mas certamente isso será
feito com base numa avaliação do progresso de cada aluno e de seus trabalhos, e não através de provas e
testes padronizados. Um professor que incentiva seus alunos a trabalhar nas aulas, pesquisando, fazendo todo
tipo de atividade escolar, não pode dar outra nota senão 10 ou A. Ninguém pode reclamar disso, porque afinal
de contas essa nota é mais do que justa: cada um fez o que devia, dentro de suas possibilidades, e isso é
altamente educativo e uma excelente maneira de o aluno e o professor conduzirem o processo escolar.
Os alunos podem ter notas sem ligar para isso, considerando uma tarefa do professor, uma obrigação
profissional sem conseqüências educacionais. Estudar é outra coisa. É algo sério, que precisa ser feito com
responsabilidade, como uma forma de respeito que cada pessoa precisa ter consigo própria.
Outra questão que perturba muitos professores é o que fazer com quem não aprende. Na alfabetização,
esse é um ponto muito grave: se o aluno não aprendeu a ler, o que vai fazer depois?
Em primeiro lugar, se um aluno não aprendeu a ler, é porque o professor fracassou: não é possível que um
ser humano não aprenda a ler durante um ano de escola. Infelizmente, isso acontece porque os professores
não sabem lidar com esses casos: ficam repetindo sempre as mesmas coisas, em vez de fazer uma análise das
dificuldades do aluno e orientá-lo de maneira específica. Quando o professor ensina com competência e
seriedade, os alunos aprendem. Todos eles aprendem alguma coisa. Talvez não saibam reproduzir o modelo de
maneira exata e completa, mas alguma coisa eles aprendem, e isso basta.
< CAGLIARI, 1998a. >
Fazer recuperação é uma tarefa desnecessária se na atividade do professor a recuperação estiver presente
todos os dias, como deve estar. A necessidade de um período de recuperação surge somente quando o
professor ensina seguindo seu programa, sem ligar para o que acontece com seus alunos. Então, de vez em
quando, faz uma prova e recomenda uma recuperação para aqueles que tiraram nota baixa. Para os piores,
recomenda
<73>
uma mudança para a classe especial. Para os repetentes incorrigíveis, a única solução que visualiza é a evasão
escolar.

O PLANEJAMENTO ESCOLAR
A questão das notas e da promoção exige uma visão além da série em que o professor atua, especialmente
se for na primeira série. As escolas costumam fazer seu planejamento, e os professores deveriam aproveitar
essa ocasião para deixar bem claro o caminho que a instituição espera oferecer aos seus alunos nos anos de
sua escolaridade. Apresentamos adiante uma sugestão de como o ensino deve ser abrangente, levando em
conta as principais áreas da lingüística moderna.
Um planejamento do ensino de português (deixando de lado os estudos literários...) deveria abandonar
completamente a gramática normativa e desenvolver um trabalho epilingüístico, principalmente no ensino
fundamental (primeiro grau), no qual as questões básicas da linguagem fossem tratadas através de um
processo de reflexão sobre elas.
Por causa da variação lingüística, sabemos que uma língua não dispõe de normas (gramática normativa) que
controlam o certo da norma culta e o errado das variações dialetais, e sim regras (gramática descritiva) que
mostram como todos os falantes, cada um do seu jeito, no seu dialeto, usam a linguagem. Uma gramática
descritiva apóia-se em teorias específicas, como têm demonstrado os lingüistas modernos. Entretanto, para se
chegar a essas teorias e a uma descrição adequada dos fenômenos lingüísticos é preciso refletir sobre a língua,
num primeiro momento, usando apenas a intuição do sujeito falante e conhecimentos básicos sobre a
linguagem. Depois o resultado dessa reflexão tornar-se-á uma interpretação exata dentro dos domínios de uma
teoria.
Ao processo de reflexão sobre os fatos da linguagem sem “compromissos” preestabelecidos por
determinada teoria, chama-se epilingüismo. As aulas de português deveriam ensinar os alunos a refletir sobre a
linguagem, deduzindo explicações e regras a partir de conhecimentos que vão sendo adquiridos na escola e da
intuição que qualquer falante nativo tem de sua língua.
74
CAGLIARI, 1991a.

Um planejamento mais detalhado para o ensino fundamental poderia ser, por exemplo, o seguinte:

1º ano
Alfabetização: ensinar a criança a lei; explicar como funcionam os sistemas de escrita, sobretudo a ortografia.
História da escrita. treinar o aluno na produção de textos espontâneos. Desenvolver o gosto pela leitura
individual e a participação em atividades que envolvam o uso da fala no dialeto padrão. Visão geral da
aquisição da linguagem oral. Primeiras noções de variação lingüística.

2º ano
Continuação do trabalho de alfabetização. Treino de leitura em voz alta com pronúncia no dialeto padrão.
Produção de narrativa orais e escritas - Atividades de pesquisa envolvendo leitura individual. Produção de
textos de natureza diferente, como cartas
notícias, etc. Introdução de noções básica de fonética e de fonologia.

3° ano
Estudo mais sistemático de fonética e da variação lingüística. Estudo das relações entre linguagem oral e
linguagem escrita. Autocorreção da ortografia. Produção de
textos orais e escritos. Leitura de lazer e de pesquisa. Exploração de textos literários, sobretudo poesia.

4° ano
Estudo mais sistemático de fonologia. Estudo das funções básicas da linguagem e da pragmática, ou seja, dos
usos da linguagem oral e escrita. Produção de textos orais e escritos. Leitura de lazer e de pesquisa. lJabaibo
com contos e pequenos romances.

5º ano
Estudo de morfologia. Noções básicas de sociolingüística, ou seja, dos vínculos entre os usos da linguagem e a
realidade socioeconômica e cultural das pessoas (dialetos, por exemplo). Produção de textos oriundos de
pesquisas. Leitura de lazer e de pesquisa. Cuidado especial na produção de textos orais. Leitura de romances.

6º ano
Estudo de sintaxe, regência e concordância. Introdução à teoria da literatura. Leitura literária orientada.
Produção de textos mais sofisticados. Apresentação das línguas indígenas brasileiras.

7° ano
Estudo de semântica lexical e argumentativa. Introdução à análise literária. Leitura de obras importantes da
literatura nacional e internacional. Estudo da história da língua portuguesa. Produção de textos de pesquisa e
de obras de modelo literário.

8º ano
Estudo de lingüística textual (estudo da estrutura textual, tipos de texto e de fenômenos como coerência e
coesão) e de psicolingüística (aquisição da linguagem, interação lingüística, linguagem e pensamento). Relatos
de pesquisas desenvolvidas pelo aluno. Produção de textos literários e científicos. Leitura de textos científicos,
artísticos e de autores famosos da literatura universal. História da ortografia. História da literatura.

Diante de um quadro como esse, percebe-se logo que um aluno precisa apenas participar das atividades
escolares normais para ter o direito de passar de ano. Como verá coisas diferentes a cada ano, a única
exigência para sua promoção é saber ler e escrever, o que deverá aprender no primeiro ano.
No ensino médio (segundo grau), podem-se introduzir teorias lingüísticas adaptadas, num trabalho
metalingüístico, estudando a formalização das regras descobertas
<75>
no primeiro grau, interpretadas agora segundo uma teoria e formando uma gramática moderna descritiva da
língua.
No terceiro grau (graduação), haveria um aprofundamento no estudo da linguagem, através da reflexão
epilingüística e da formalização metalingüística, com vistas a um estudo crítico de teorias.
Na pós-graduação, além do aprofundamento de conteúdos teóricos e da especialização de conhecimentos
em determinada área da lingüística, os alunos deveriam tornar-se pesquisadores.

AVALIAÇÃO NA ALFABETIZAÇÃO
Aprender a ler e a escrever no primeiro ano não significa saber tudo sobre a produção da leitura e da escrita,
tampouco saber de cor a forma ortográfica de todas as palavras. Também não significa que o aluno possa
escrever sem se preocupar com a ortografia. O professor deve deixar o aluno começar escrevendo como ele
acha que as palavras são. Depois, deve ensinar o aluno, desde o primeiro ano, a corrigir a ortografia e a passar
a limpo as suas lições.
Em termos mais específicos, a expectativa dos professores alfabetizadores com relação a seus alunos no final
do primeiro ano poderia ser a seguinte:
• Saber ler algo novo que lhe é apresentado.
• Produzir textos espontâneos, não importando os erros de ortografia.
• Ser capaz de corrigir individualmente um texto, de modo a eliminar os erros de ortografia, com o auxílio de
um dicionário ou fichário de palavras.
• Participar das atividades escolares.
• Reproduzir oralmente textos que lê (com total liberdade para fazê-lo a seu modo).
• Preparar e ler um texto no dialeto padrão.
• Escrever com letras de fôrma e com letras cursivas.

Como se vê, a escola não pode fugir à sua missão. Basta fazer um trabalho sério, competente e constante,
que não precisará de provas, testes, notas nem terá dúvida de que assim todos os alunos serão legítimos
merecedores de aprovação final. Por outro lado, isso
<76>
não significa que todos os alunos terminarão o ano iguaizinhos. A escola precisa saber lidar com as diferenças.
É justamente nas diferenças individuais que a sociedade se enriquece e a vida se torna mais interessante.

A LIÇÃO DE CASA
Uma última observação a respeito de atividades escolares relacionadas à avaliação diz respeito às lições de
casa. Alguns pais pensam que uma escola que não pede lição todos os dias é fraca e ruim. Isso é um absurdo,
principalmente nas primeiras séries. Lugar de estudar é na escola, onde os alunos encontram os professores e
os materiais à disposição.
Em casa, podem eventualmente fazer uma tarefa ou outra, mas normalmente farão outras coisas, sobretudo
brincar e se divertir. Criança precisa se divertir e, se não fizer isso em casa, fará na escola. A criança precisa
aprender desde cedo que há hora de brincar e hora de estudar, lugar para brincar e lugar para estudar. Se a
escola não deixar os alunos brincarem em casa, obrigando-os a fazer longas e difíceis tarefas, as crianças
acabarão passando a infância e a adolescência mal vividas e com raiva justa e imperdoável desses professores
irresponsáveis, que infelizmente proliferam em nossas escolas. Um bom planejamento escolar deve
necessariamente abrir um espaço durante o período de aulas para os alunos fazerem as tarefas que o professor
acha que eles devem fazer.
Essa carga de lição de casa já seria uma aberração em escolas particulares, em que estudam as crianças mais
favorecidas social e economicamente. Nas escolas públicas, onde os alunos pobres estudam, elas tornam-se
um absurdo. Esses alunos não têm condições de estudar em casa: não há lugar, não há livros, e seus pais, em
geral, pouco sabem para ensinar (alguns são até analfabetos) e quase nunca têm tempo para essa tarefa,
depois de um dia de trabalho.
Mesmo em séries avançadas, é inconcebível que um pai ou uma mãe tenha de colaborar com a escola,
ensinando aos seus filhos matemática, geografia, história ou coisas como predicativo do objeto ou sujeito
oculto. Isso é tarefa exclusiva da escola.
<77>
Muitos pedagogos equivocadamente insistem em querer que a família seja uma extensão da escola, e em
pretender que os pais ajudem seus filhos a fazer suas tarefas escolares e a estudar as lições, sobretudo para
provas e exames.
Por outro lado, já desde as primeiras séries a escola deve incentivar os alunos a criar o hábito de estudar em
casa por iniciativa própria, gastando nessa atividade uma pequena parcela de tempo. A medida que vão
crescendo, o tempo dedicado aos estudos em casa deve ir aumentando e o tempo da brincadeira e do lazer,
diminuindo. É mais importante a constância na atividade de estudo individual em casa, do que gastar muito
tempo de vez em quando. E, mais importante, é preciso mostrar ao aluno que ele deve estudar sem envolver
seus familiares. Mas, para que isso aconteça, o professor não pode passar tarefas todos os dias, nem que
absorvam grande parcela do tempo que o aluno dispõe fora do período escolar. Se a criança tem de fazer
enormes e complicadas lições, como achará tempo para estudar, para ler? O hábito de estudar em casa não
deve prever somente assuntos escolares do momento. Pelo contrário, deveria satisfazer uma certa curiosidade
científica e artística do gosto pessoal. Quando se ensina a pesquisar e a trabalhar em sala de aula, o aluno
poderá fazer o mesmo em casa, não para dar satisfação ao professor, mas para estudar o que ele, aluno,
escolheu para si. Muitos cientistas e artistas famosos desenvolveram grandes trabalhos por iniciativa própria,
estudando e trabalhando fora da escola, pelo gosto da pesquisa e da arte e para realização pessoal, sem prova,
sem nota, sem professor, sem diploma. A escola que conseguir formar alunos assim é a verdadeira escola.
<78>

4
O método das cartilhas
A CARTILHA NA ESCOLA E NA VIDA
Já comentamos que a cartilha era antigamente apenas um abecedário; depois tornou-se uma tabela de
letras, que representava as escritas dos padrões silábicos da fala; reestruturando-se em seguida em palavras-
chave e sílabas geradoras, deixando assim de ser apenas um livro para ensinar a ler e tornando-se um livro para
fazer exercícios de escrita. Então começou a apresentar textos com palavras já estudadas pelos alunos, numa
ordem crescente de dificuldades, e foram incorporados exercícios gramaticais e estruturais para o aluno
desmontar e montar palavras. Tempos depois, recebeu a companhia do manual do professor e uma seção
especial, dedicada ao período preparatório, cuidando da prontidão dos alunos para a alfabetização. As tabelas
de letras sumiram e até o alfabeto não fazia mais parte da cartilha.
Adota-se esse tipo de livro didático até hoje amplamente. Mesmo quando, por alguma razão, baseada em
conhecimentos adquiridos em treinamentos, ou através de simples acompanhamento dos modismos da
educação, alguns professores deixam de usar as cartilhas, constata-se que o método das cartilhas tem resistido
muito mais às críticas e encontra-se em praticamente todas as salas de aula de nossas escolas.
Muitos professores fizeram sua própria cartilha, com material de preparação de aulas elaborado em anos de
trabalho. Alguns chegaram até a publicar esse material, fazendo ver aos demais colegas como conseguiram
uma boa receita para a alfabetização. Os próprios órgãos encarregados da educação, atendendo a pedidos de
professores, compram, todos os anos, uma quantidade enorme de cartilhas para uso nas escolas públicas.
Há ainda aqueles professores (e Secretarias de Educação), que, não querendo adotar uma cartilha,
compram, em substituição, livrinhos de histórias, os quais, além de reduzir o trabalho de alfabetização a
interpretações subjetivas dos textos e transformar a sala de aula em palco de fantasia sem fim, ainda são
usados por alguns professores para extrair o que antes eles faziam com as cartilhas, agora de maneira muito
mais confusa e difícil.
A opção por um trabalho alternativo, sem cartilhas, exige, antes de tudo, que se conheça como elas são, o
que propõem, como propõem, o que pretendem e,
<80>
principalmente, o que deixam de fazer. Por essa razão, apresentaremos a seguir alguns comentários para
explicar melhor o que representam as cartilhas no processo de alfabetização. O que muitas vezes salva o
trabalho escolar nesses casos é a competência, a habilidade e o bom senso de alguns professores, que
conseguem obter resultados surpreendentes mesmo usando uma ferramenta muito ruim.
Uma análise mais cuidadosa mostra que esses livros têm em comum o fato de alfabetizarem através de
palavras-chave e de sílabas geradoras, ou seja, aplicando o bá-bé-bi-bó-bu. A única coisa que varia é a maneira
como esse “produto” vem apresentado.
Como é constituído de letras, nosso sistema de escrita tem como chave de decifração o princípio acrofônico
associado aos nomes das próprias letras. Partir daí para palavras-chave é um pequeno pulo. Como as letras
representam consoantes e vogais, nada mais natural do que estudar o processo de alfabetização através das
sílabas. Foi assim que surgiu o interesse pelo bá-bé-bi-bó-bu. É por isso que muitos professores não vêem outra
saída para ensinar a ler e a escrever, a não ser com o bá-bé-bi-bó-bu. Na verdade, esse é o aspecto mais
interessante das cartilhas, em que se emprega o princípio acrofônico. No entanto, essa vantagem é prejudicada
pela maneira como essas idéias são organizadas em lições e passadas para os alunos.
Um exemplo típico de cartilha é apresentado a seguir. Cada lição trata apenas de uma unidade silábica. Os
conteúdos das lições são organizados de forma hierárquica, do mais fácil ao mais difícil, segundo algum critério
escolhido pelo autor. No fim, apresenta-se um resumo, em que o alfabeto pode estar ou não presente.
Geralmente, a cartilha acaba num texto, considerado teste final de leitura e modelo de escrita para introduzir o
aluno na etapa seguinte, que é o uso de textos que o aluno deverá saber escrever e ler por conta própria.
Todas as lições têm a mesma estrutura: partem de uma palavra-chave, ilustrada com um desenho, e
destacam a sílaba geradora, que é quase sempre a primeira sílaba da palavra. Em seguida, apresenta-se a
família silábica daquela sílaba destacada. Vêm abaixo algumas palavras novas, escritas com elementos já
dominados, mais elementos novos introduzidos na lição. Depois, aparecem os exercícios estruturais em que
palavras
<81>
principalmente, o que deixam de fazer. Por essa razão, apresentaremos a seguir alguns comentários para
explicar melhor o que representam as cartilhas no processo de alfabetização. O que muitas vezes salva o
trabalho escolar nesses casos é a competência, a habilidade e o bom senso de alguns professores, que
conseguem obter resultados surpreendentes mesmo usando uma ferramenta muito ruim.
Uma análise mais cuidadosa mostra que esses livros têm em comum o fato de alfabetizarem através de
palavras-chave e de sílabas geradoras, ou seja, aplicando o bá-bé-bi-bó-bu. A única coisa que varia é a maneira
como esse “produto” vem apresentado.
Como é constituído de letras, nosso sistema de escrita tem como chave de decifração o princípio acrofônico
associado aos nomes das próprias letras. Partir daí para palavras-chave é um pequeno pulo. Como as letras
representam consoantes e vogais, nada mais natural do que estudar o processo de alfabetização através das
sílabas. Foi assim que surgiu o interesse pelo bá-bé-bi-bó-bu. E por isso que muitos professores não vêem outra
saída para ensinar a ler e a escrever, a não ser com o bá-bé-bi-bó-bu. Na verdade, esse é o aspecto mais
interessante das cartilhas, em que se emprega o princípio acrofônico. No entanto, essa vantagem é prejudicada
pela maneira como essas idéias são organizadas em lições e passadas para os alunos.
Um exemplo típico de cartilha é apresentado a seguir. Cada lição trata apenas de uma unidade silábica. Os
conteúdos das lições são organizados de forma hierárquica, do mais fácil ao mais difícil, segundo algum critério
escolhido pelo autor. No fim, apresenta-se um resumo, em que o alfabeto pode estar ou não presente.
Geralmente, a cartilha acaba num texto, considerado teste final de leitura e modelo de escrita para introduzir o
aluno na etapa seguinte, que é o uso de textos que o aluno deverá saber escrever e ler por conta própria.
Todas as lições têm a mesma estrutura: partem de uma palavra-chave, ilustrada com um desenho, e
destacam a sílaba geradora, que é quase sempre a primeira sílaba da palavra. Em seguida, apresenta-se a
família silábica daquela sílaba destacada. Vêm abaixo algumas palavras novas, escritas com elementos já
dominados, mais elementos novos introduzidos na lição. Depois, aparecem os exercícios estruturais em que
palavras
<81>
são desmontadas e remontadas com elementos feitos de sílabas geradoras ou de pedaços de palavras. Ou,
então, aparecem os exercícios de “faça segundo o modelo”. Há, ainda, um pequeno “texto” para leitura, cópia
e ditado, e que pode servir também para exercícios de interpretação de texto. Nas lições mais adiantadas, além
das tradicionais cópias, aparecem os exercícios de escrita: “minhas primeiras frases” e “minhas primeiras
histórias”. Recheando esse esqueleto, uma quantidade enorme de atividades, que vão desde a colagem de
letras e palavras recortadas de jornais e revistas, até propostas de representações teatrais pelos alunos. Em
geral, essas atividades dão a falsa impressão de que uma cartilha é diferente da outra. Como se disse antes,
elas são diferentes apenas na maneira como aplicam o bá-bé-bi-bó-bu.
As cartilhas partem de uma concepção de linguagem segundo a qual uma palavra é feita de sílabas, uma
sílaba, de letras, uma frase é um conjunto de palavras e um texto é um conjunto de frases. Isso está evidente
nas atividades de “desmonte” das palavras e reagrupamento das unidades geradoras. Ora, a linguagem tem
esses aspectos, mas ficar apenas nisso produz uma imagem distorcida. A linguagem é basicamente a união de
sons e de significados, tudo muito bem ligado, através das diferentes estruturas gramaticais que exercem
funções próprias e que têm usos específicos nos diferentes contextos em que ocorrem.
A maneira como as cartilhas lidam com a fala e a escrita confunde as crianças, uma vez que passa a idéia de
que a linguagem é uma “soma de tijolinhos”, representados pelas sílabas e unidades geradoras. Ora, as
crianças aprenderam a falar de outra maneira e, portanto, para elas, a linguagem apresenta-se como um todo
organizado de maneira muito diversa daquela que a escola lhes mostra. No fundo, as cartilhas deixam de lado
toda a trama da linguagem, ficando apenas com o que há de mais superficial. Isso faz com que os alunos
passem a fazer apenas um uso superficial da fala e da escrita nas suas atividades escolares futuras.
A alfabetização gira em torno de três aspectos importantes da linguagem: a fala, a escrita e a leitura.
Analisando esses três pontos, tem-se uma compreensão melhor de como são as cartilhas ou qualquer outro
método de alfabetização.
<82>

A CARTILHA E A FALA
A variação lingüística
A variação lingüística mostra como uma língua é composta de inúmeros dialetos, que apresentam
semelhanças e diferenças. As semelhanças constituem a base comum que permite agrupar os dialetos em
torno de uma mesma língua. Com relação às diferenças, algumas não causam estranheza, pois são aceitas
socialmente, como o fato de algumas pessoas falarem “tia” e outras “tchia”. Há, porém, diferenças que
representam a fala de pessoas pobres, que não usam a norma culta da língua, e que são, pois, interpretadas de
maneira preconceituosa pela sociedade como um modo errado de falar. Exemplos: “drento”, “drobar”, em vez
de “dentro”, “dobrar”, etc.
A cartilha simplesmente ignora tal realidade lingüística da sociedade. O aluno vai seguir as lições da cartilha
usando, desde o começo, uma fala espelhada no modelo apresentado pelo professor. Como a cartilha é um
livro que se propõe a tratar dos assuntos de maneira gradual, quase sempre lidando com questões muito
fáceis, pressupõe-se que os alunos acompanhem sem dificuldade o uso da fala padrão, mesmo que em casa
sejam falantes de dialetos que apresentam enormes diferenças com relação ao dialeto da escola.
A dificuldade do aluno surge quando ele se vê obrigado a responder a perguntas formuladas pelo professor.
Como não domina a norma culta, fala seguindo seu próprio dialeto, recebendo dos professores inúmeras
correções, acompanhadas ou não da zombaria dos colegas.

O idioleto do professor
Através da prática dos professores em sala de aula, percebe-se que o que se entende por dialeto padrão é na
verdade um idioleto do professor. Ou seja, usa-se como modelo de fala uma maneira especial de pronunciar
certas letras, de modo a facilitar a compreensão pelo aluno das relações entre letras e sons em função das
formas ortográficas das palavras. Obviamente, esse modo de falar inventado pelo professor é usado de modo
especial em certas atividades do processo de alfabetização, como nos ditados ou nas explicações básicas da
introdução de uma lição nova.
<83>
Por ser um dialeto artificial, sem vida na sociedade, nenhum professor conseguirá manter esse modo de falar
o tempo todo, porque ele também é um falante nativo de uma variedade lingüística (dialeto). Quando o
professor se esquece de que está passando matéria, fala como se estivesse usando seu modo de falar coloquial
de fora da sala de aula. Alguns professores convencem-se de tal maneira que aquela fala que inventaram para
ensinar os sons das letras é, de fato, a ideal, que acabam tornando-se pessoas pedantes fora da escola, levando
para o dia-a-dia uma pronúncia estranha de professor de alfabetização.
Para ilustrar o que ficou dito acima, seguem alguns exemplos. Um professor, para explicar aos seus alunos a
diferença entre a escrita de L e U, pronuncia todas as letras L com o som de L, incluindo aquelas que já
passaram a ter o som de U (mesmo na norma culta, pronunciando “balde” em vez de “baudi”; “alto” em vez de
“autu”, etc. Outro exemplo: o professor faia “ta-té-tchi-tó-tu”, “da-dé-dji-dó-du” (sem perceber que palataliza
os “tis” e “dis”), mas ensina que se deve dizer “balde” e não “baudji”; “póte” e não “pótchi”, etc. Do mesmo
modo, exige que o aluno leia “tudo” e não “tudu”, etc.
Esses professores acham que, procedendo assim, farão com que os alunos errem menos quando forem
escrever. Esquecem-se, porém, de que eles mesmos dizem “balde” porque conhecem a forma escrita da
palavra. O aluno, por sua vez, não sabe como se escrevem as palavras e, conseqüentemente, não pode saber
quando se usa L ou U: é “falta” ou “fauta”? é “flauta” ou é “flalta”? Somente quem sabe escrever saberá
responder corretamente a perguntas como essa.
O método das cartilhas não leva em conta, no entanto, que a maior dificuldade dos alunos, sobretudo
daqueles que não são falantes da norma culta em uso na sociedade, é aprender que nem tudo o que eles falam
fora da escola está de acordo com a norma culta. Para esses alunos, falar palavras como “casa”, “batata”, tem
o mesmo valor de palavras como “drentu”, “drobar”, “uzómitrabaia”, “pranta”, etc. E verdade que esses alunos
terão mais facilidade para escrever corretamente as palavras depois que aprenderem a norma culta, mas
pressupor tal conhecimento como estratégia para aprender ortografia é algo descabido. Ortografia se aprende
de outra maneira.

Nota
Idioleto: variedade lingüística típica de um indivíduo: não pertence a um dialeto (variedade lingüística comum
a muitas pessoas). XAVIER & MATEUS, 1990.
<84>

A silabação

Outro problema sério que o método das cartilhas (o bá-bé-bi-bó-bu) traz é o uso da silabação a todo
instante. Tudo gira em torno da silabação. Isso faz com que o aluno passe a pensar que, para ler, é preciso
silabar (silabar para decifrar a escrita e silabar para ter uma pronúncia bonita, bem-articulada). Alguns levam
até para a própria fala essa pronúncia silabada. Ao fazer isso, o ritmo e a entoação (para não falar de outros
elementos prosódicos da fala) ficam totalmente modificados, descaracterizando a fala natural, com
conseqüências como pedantismo e preciosismo, de quem fala assim, e, sobretudo, com dificuldades de
expressão do falante e de compreensão geral dos textos.
A cartilha ensina os alunos a silabarem e depois quer que eles leiam com fluência: isso é contraditório! As
crianças aprendem a falar e dizem tudo de maneira adequada nas mais diferentes circunstâncias da vida,
justamente porque, como falantes nativos, aprenderam a agir assim e nisso são perfeitas. Poderiam aprender a
ler usando esse mesmo comportamento fonético. Porém, a escola destrói essa habilidade já conquistada,
porque acha que falando naturalmente os alunos não irão aprender a grafar corretamente as palavras nem a
ler no dialeto padrão. Há um equívoco educacional nessa atitude escolar.

Observando a fala para escrever


Quando vão aprender a ler e a escrever, as crianças têm, como única referência de conhecimento já
adquirido, a própria fala. Elas observam demais a própria fala, nesse momento. A cartilha, porém, ignora esse
fato e, aos poucos, induz os alunos a interpretarem os fenômenos fonéticos da fala, tendo como modelo a
forma escrita das palavras e não a realidade fonética. Depois de certo tempo, os alunos já não conseguem
sequer analisar a própria fala ou a de outras pessoas, a não ser através da escrita ortográfica. E uma pena.
<CAGLIARI, 1989b. >

A escola deveria aproveitar essa habilidade de percepção da fala que as crianças têm para explorar a
linguagem oral cada vez mais e fazer com que essas análises se tornem conhecimentos solidamente
estabelecidos. Isso é importante e servirá como um recurso significativo para se entender muitos outros
aspectos da natureza da linguagem. Até para aprender ortografia é uma excelente estratégia, porque o aluno
não ficará mais tentando achar a forma ortográfica, falando possíveis pronúncias de professores
alfabetizadores, mas saberá que a fala funciona diferentemente da ortografia. É muito importante passar da
habilidade de falar naturalmente uma língua para a de ler textos com fluência: para tanto, a cartilha precisa
mudar radicalmente sua postura diante da linguagem oral.

Confusão entre fala e escrita


As cartilhas apresentam praticamente a cada passo erros grosseiros de fonética, porque confundem fatos da
fala com fatos da escrita. Um exemplo clássico encontra-se na interpretação dos valores fonéticos da letra X,
em que se distinguem o que alguns professores chamam os sons S e SS quando, na verdade, eles representam
um único som, como se pode comprovar, observando a pronúncia de palavras como “próximo” e “extra” (para
os que falam “éstra” e não “échtra”). Outro fato notório é que a cartilha considera a mesma coisa o BA de
“banho” e o de “batata”.
Como a cartilha está completamente equivocada a respeito do funcionamento da fala e como a maioria dos
professores não recebe uma formação lingüística adequada, em particular com relação à fonética, muitas
explicações relacionadas a certos erros da fala ou da escrita que alguns alunos cometem na alfabetização
chegam às raias do ridículo, como aquelas relativas às famosas trocas de letras.
Dificilmente se encontra um professor que faça uma análise correta desses erros. Eles acham que os alunos
têm problemas auditivos (há sempre uma deficiência qualquer quando aparece um erro na alfabetização), que
os alunos falam errado porque vivem constantemente distraídos, que não sabem observar corretamente as
letras, que não são capazes de memorizar diferenças elementares, como as pronúncias de “vaca” e “faca”, etc.
A incompetência desses professores fica evidente quando se pede para que analisem (ou escrevam) palavras
inventadas (sem ortografia definida), como, por exemplo, “vixrrabzó” (com a letra X representando o som de
CH). Em primeiro lugar, eles não são capazes de ouvir direito e têm dificuldade em memorizar, exigindo que o
enunciado seja repetido inúmeras vezes. Não sabem se existe ou não um I depois do X, estranham se lhes é
perguntado se o RR é surdo ou sonoro,
<86>
trocam V por F, B por P, Z por 5, exatamente como fazem seus alunos, de quem eles tanto reclamam. O pior de
tudo é que esses professores nem sequer são capazes de entender os erros que eles próprios cometem.
Haverá sempre aquelas pessoas que acabam concluindo que, apesar de todos esses problemas, os
professores alfabetizam e os alunos aprendem (pelo menos alguns). E isso, é necessário admitir, é verdade.
Acontece, porém, que a escola não pode adotar essa postura: ela não faz sentido. Se podemos ter um ensino
decente, por que nos contentarmos com um ensino indecente?

< CAGLIARI, 1984b. >


Veja “Ditados e ditadores”
(CAGLIARL 1990, p. 94-117, no qual se relata uma pesquisa realizada a partir de um ditado especial feito para
professores alfabetizadores e os resultados obtidos.

A CARTILHA E A ESCRITA
A cartilha moderna apresenta um método de alfabetização baseado na aprendizagem da escrita (e não da
leitura, como antigamente). Tudo na cartilha gira em torno da escrita. Até a fala dos professores que seguem a
cartilha imita a escrita e não a linguagem oral dos falantes nativos da língua. Essa visão centrada na escrita será
levada pelos alunos até o dia em que puderem estudar seriamente lingüística e aprenderem que a escrita é
apenas uma forma de representação gráfica de alguns elementos fonéticos da linguagem e esta, na sua
essência, é oral.

A escrita prevalece sobre a fala


Depois que a cartilha passou a fazer parte da escola, os estudos sobre a oralidade ficaram praticamente
excluídos: tudo é feito por escrito. A escrita, então, passou a ser considerada algo nobre, perfeito, portador do
pensamento lógico e literário, ao passo que a fala começou a ser considerada algo vulgar, uma linguagem cheia
de erros e falhas, deselegante, incapaz de traduzir o pensamento mais sofisticado da cultura.
Infelizmente esses são grandes preconceitos de nossa cultura. As pessoas esquecem-se de que sem a
linguagem oral sequer poderia haver linguagem escrita. A escrita requer decifração para ser entendida, e
decifrar é devolver o texto escrito à forma oral de realização da linguagem. É uma ilusão pensar que se pode
passar diretamente da decifração da escrita para o pensamento puro, sem passar pela organização da
linguagem humana,
<87>
a qual, na sua essência mais profunda, nada mais é do que a união de significados com sons da fala.
Embora a cartilha tenha em tão alta estima a escrita e faça com que tudo, no processo de alfabetização, gire
em torno dela, constata-se que ela não sabe quase nada a respeito dos sistemas de escrita e, pior ainda,
divulga muitas idéias estranhas e erradas a respeito desse assunto.

A palavra

Sem dúvida alguma, a palavra é a unidade principal de todos os sistemas de escrita. A cartilha foi além: não
só assumiu isso, como passou a trabalhar como se a palavra escrita fosse a unidade mais importante da
linguagem, o que é falso. Na verdade, a palavra, como unidade lingüística, é algo muito confuso e de difícil
definição e manipulação. A grande prova disso pode ser encontrada na própria alfabetização, observando-se a
dificuldade que os alunos têm no começo para segmentar a própria fala em palavras, seguindo os padrões da
escrita.
Todavia, a palavra é o centro das atenções da cartilha. Pode-se até ter uma frase ou um pequeno texto,
junto com as lições, porém o que vale não é o texto em si, mas o fato de ele conter apenas palavras já
estudadas. Uma frase é pura e simplesmente uma seqüência de palavras. Do significado de cada palavra, tira-
se o significado total do texto. Essa é uma visão muito reducionista da linguagem humana, a qual, no entanto,
fica tão marcada na formação dos alunos, que eles podem continuar com essa idéia pelo resto da vida. Desse
modo, a linguagem como expressão do pensamento e como ação sobre o mundo fica destruída. Essa é uma das
razões pelas quais muitos alunos têm dificuldades em lidar com a linguagem na escola e fora dela, escrevem
sempre coisas estranhíssimas nos seus textos e têm enorme dificuldade para entender as sutilezas (e às vezes
até as coisas mais óbvias) da linguagem.
O que a cartilha faz diante da palavra escrita que ela considera a essência da linguagem? Começa um jogo de
desmonte e remontagem, pressupondo-se agora que as palavras são feitas de pedacinhos que se juntam. Esses
pedacinhos, é claro, serão organizados em famílias, compostas de uma consoante mais uma das cinco vogais da
escrita. Assim, a família do B é constituída de ba-bé-bi-bo-bu. Como resquício do princípio acrofônico,
<88>
tradicionalmente ligado ao alfabeto, cada família recebe uma palavra-chave, que servirá de recurso
mnemônico. Por exemplo: BARRIGA será a palavra-chave para a família do bá-bé-bi-bó-bu. Como um dos
objetivos do monta-e-desmonta é associar letras às sílabas da linguagem oral, estudam-se primeiro as famílias
mais simples, constituídas de uma consoante mais uma vogal (usando apenas as letras disponíveis na escrita,
não os fonemas que cada letra apresenta na fala), e depois as famílias em que aparecem grupos de consoantes,
como a família do chá-ché-chi-chó-chu, do prá-pré-pri-pró-pru, etc. Finalmente, são estudados os casos em que
ocorre uma consoante no final de sílaba, como nas palavras an-jo, cam-po, etc.
As cartilhas apresentam os piores textos, elaborados por “razões pedagógicas”, para gerar as unidades das
lições com os elementos já dominados. Basta comparar os textos das cartilhas com os textos espontâneos das
crianças para perceber imediatamente como os primeiros são ridículos e idiotas. Os textos das cartilhas não
lidam adequadamente com os elementos coesivos e, às vezes, nem com a coerência discursiva, o que faz deles
péssimos exemplos para os alunos.

<MASSINI-CAGLIARI, 1997a. >


Elementos coesivos dizem respeito àquelas palavras que fazem referência a outras mencionadas antes num
texto, com os pronomes substituindo nomes, advérbios, etc. A coerência discursiva refere-se ao fato de se
manter uma lógica nas afirmações que o texto traz, um compromisso com a verdade do texto, e ao fato de se
passar de um assunto a outro mantendo uma relação harmônica entre as partes.

Muitos alfabetos

Mas há outros aspectos da escrita a serem considerados. Nenhuma cartilha explica a seus usuários que
usamos “diferentes alfabetos”, como ABCÇDEFG... e abcçdefg... Certamente, o professor dirá que temos letras
maiúsculas e minúsculas (além das letras de fôrma ou imprensa e das letras cursivas ou manuscritas). No
entanto, o essencial, que é o fato de existirem alfabetos diferentes, nesses casos, passa despercebido. Uma
letra maiúscula pode ser escrita em tamanho menor do que uma letra minúscula, porque não é o tamanho que
conta, mas a forma gráfica. Alguns alunos têm grandes dificuldades para perceber que letra é um valor
abstrato ao qual podemos associar uma variedade de alfabetos diferentes. E a cartilha não explica isso. Os
alunos acabam constatando por si, depois de certo tempo, mas isso pode ser um processo longo e difícil.

A escrita cursiva

O método das cartilhas tem uma preferência declarada pela escrita cursiva, embora isso não fique evidente
ao analisarmos os próprios livros, nos quais se utiliza
<89>
também a letra de imprensa. Para se ter uma idéia da importância da escrita cursiva na alfabetização, é
preciso analisar o que acontece nas salas de aula e nos cadernos dos alunos — e não apenas nas cartilhas. Essa
atitude de valorizar a escrita cursiva revela um preconceito da escola e um equívoco sério. Ninguém nega que a
escrita cursiva seja importante, que é mais fácil escrever rapidamente na forma cursiva do que usando letras
de fôrma. Também é verdade, porém, que a letra cursiva representa essas vantagens apenas para as pessoas
que já estão muito familiarizadas com a escrita e com a leitura, ou seja, pessoas já alfabetizadas. Para quem
está aprendendo, a letra de fôrma — especialmente a maiúscula — proporciona um material gráfico melhor
para a leitura e até para as primeiras escritas. Tanto isso é verdade que as crianças quando estão passando dos
rabiscos para as primeiras formas gráficas utilizam espontaneamente a letra de fôrma, mesmo estando
habituadas a ver as duas formas de escrita no seu cotidiano.
A escrita cursiva é uma maneira de adaptar o grafismo das letras aos maneirismos pessoais: por isso,
freqüentemente se constata que é difícil ler a letra do outro. A escrita cursiva apresenta um traçado de letras
ligadas, facilitando uma escrita rápida, que, por outro lado, dificulta o trabalho de leitura. Como exige uma
ação mais complexa do usuário pela sua natureza gráfica, a escrita cursiva torna-se mais difícil para quem não
tem prática. Os alfabetizadores gostam dela também por essa razão, uma vez que, sendo mais difícil de
elaborar, permite avaliar melhor se um aluno está aprendendo ou não a traçar as letras.
A escrita cursiva tem um uso quase exclusivamente pessoal. Com o grande desenvolvimento tecnológico das
máquinas de escrever (chegando até os computadores), a escrita deixou de ser feita à mão, ficando essa
atividade restrita a pequenas notas pessoais. Isso fez a escrita cursiva perder um pouco da sua importância no
mundo moderno. Apesar disso, o método das cartilhas e a escola continuam insistindo na escrita cursiva.
Alguns professores acham que, se os alunos começarem a escrever com letras de fôrma, não vão aprender a
escrever com letras cursivas, e no processo de alfabetização o alvo a ser atingido é a bela escrita cursiva,
redondinha, igual para todos. Padronizar a escrita cursiva desse modo é ir contra a sua própria natureza, cuja
característica fundamental é ser uma expressão gráfica individualizada.
<90>

Equívocos a partir da escrita cursiva

Um certo número de erros encontrados nas tarefas escolares dos alunos deve-se a confusões causadas pelo
uso da escrita cursiva. Como ela deforma certas letras quando agrupadas, fica difícil saber exatamente onde
começam e onde terminam algumas letras e até mesmo quais os elementos gráficos que as constituem. É por
isso que um aluno pode pensar que, na escrita cursiva a letra “b” é formada por traços que se assemelham às
formas da letra “I”, seguida dos de uma letra
— A. “v”; ou que a letra “h” é uma combinação de “I” e “s”;
que a letra “A” é formada de um “C” e “e”. Ou, ainda,
P — O que a letra “a” e a letra “d” são a mesma coisa, distinguindo-se apenas pelo som que têm nas palavras
(assim como o “t” e o “tch”, em palavras como TV e TIA,
— etc.). O aluno pode até constatar que há uma diferença na altura da “perninha”, que também varia, de caso
para caso. Afinal, esse tipo de variação acontece a todo instante e nunca foi considerado relevante, por que
seria então no caso de “a” e “d”? Dificuldades como essas em geral passam despercebidas pela maioria dos
professores, os quais se contentam em apagar o erro
do aluno e mostrar a forma certa.
Há outros problemas da escrita com os quais a cartilha não lida adequadamente. Por exemplo, há uma série
de exercícios e orientações que vem desde o período preparatório, esclarecendo à criança que se escreve da
esquerda para a direita. Quando diz isso ao
aluno, o professor está pensando na ordem das letras nas palavras. Porém, o aluno pode pensar de outra
maneira seguindo a instrução recebida e entendida dentro do quadro de suas dificuldades particulares, alguns
alunos acabam escrevendo de forma espelhada letras
esquerda como S, C, etc., em início de palavras. Uma letra puxa
outra e de repente o aluno está escrevendo a palavra e
até a frase inteira de forma espelhada. E o professor
(mal-informado) pode achar que essa criança tem problema de lateralidade cerebral, um caso sério para a
medicina resolver.

Escrita sem sistema

Como a cartilha não apresenta nem discute, em momento algum, a natureza, a função e os usos dos
sistemas de escrita, alguns alunos acabam enveredando por caminhos complicados, em geral becos sem saída
para si e para o professor. É o caso daquele aluno que faz
<91>
uns rabiscos e diz que escreveu seu próprio nome. O professor pensa que ele está “doido”, sobretudo porque,
ao ser indagado, o aluno mostra que sabe ler o que escreveu. Esse mesmo professor, que concluiu que seu
aluno era “doido”, horas depois vai ao banco, assina um cheque fazendo exatamente o que fez seu discípulo e
não acha nada estranho; pelo contrário, orgulha-se de ter uma assinatura exótica, cheia de rabiscos.
O aluno provavelmente levou para a sala de aula algo que constatara na vida: as pessoas assinam o próprio
nome — isto é, escrevem — fazendo rabiscos.

Cópias e ditados
Através de cópias e ditados, o trabalho prossegue, até que o aluno passe por todas as lições, podendo,
então, ganhar seu famoso diploma de alfabetização. O aluno, nesse meio tempo, vai desmontando e
remontando palavras para ver o que acontece: não tem liberdade nem lhe é facultado ter qualquer iniciativa
para escrever o que gostaria. Pelo contrário, toda aventura individual pode levar ao erro, e o erro pode ser
irremediável. Por isso, ninguém pode escrever nada, a não ser o que já tenha estudado com o professor.
Os alunos copiam palavras muitas vezes para fixar sua forma ortográfica; depois, copiam as primeiras frases
e, finalmente, os primeiros textos. Somente depois de terminada a cartilha, podem começar a escrever frases
por iniciativa própria e, mais adiante, os primeiros textos. Antes de chegar a este ponto, tudo é feito de
maneira coletiva: todos realizam a mesma tarefa, da mesma maneira, no mesmo momento.
A cartilha pensa que ensina a ler, por meio de cópias e ditados e desmontando e montando as palavras em
famílias de letras. A cartilha jamais discute a leitura em si, a decifração. Somente em dois momentos (e de
maneira equivocada) trata das relações entre letras e sons:
quando apresenta os dois sons do E e do O, e os cinco sons do X.

O que falta no estudo da escrita


Infelizmente, a cartilha não apenas trata a escrita de maneira inacreditavelmente equivocada, como deixa de
tratar de muitos aspectos da escrita que são interessantes e importantes e que, por essa razão, deveriam
começar a ser estudados desde a alfabetização.
<92>
A história da escrita deveria fazer parte das preocupações da escola e dos livros didáticos desde a
alfabetização. As crianças adoram ouvir histórias e a da escrita é verdadeira e fascinante. Em particular,
deverse-ia contar a história das letras do alfabeto, os diferentes tipos de letras (ou estilos) que o alfabeto latino
produziu ao longo da história do Ocidente. Seria interessante apresentar ainda, mesmo que sumariamente, um
relato sobre a ortografia da língua portuguesa, para mostrar aos alunos de um modo muito interessante como
a ortografia funciona numa sociedade.
O mundo em que vivemos está cheio de escrita ideográfica, feita com pictogramas ou com caracteres
convencionais. Esse é um aspecto interessantíssimo para ser explorado pela escola e, conseqüentemente, pelas
cartilhas, na alfabetização. Os alunos podem inventar sistemas de escrita seguindo modelos conhecidos.
Podem experimentar escrever o que quiserem com eles e testar se as demais pessoas conseguem ler ou não,
conferindo, assim, os limites e a importância da convencionalidade na escrita. Uma atividade como essa
permite ao aluno ler e escrever logo
no primeiro dia de aula, o que pedagogicamente é motivo de grande alegria e de entusiasmo para os alunos e
grande motivação para continuarem explorando novas formas de escrita até chegar à escrita
com as letras do alfabeto.
A escola precisa explicar como funciona o sistema de escrita, o que são letras, como se decifra uma escrita
com letras, o que é escrever à moda de uma transcrição fonética — com a qual os lingüistas registram
os sons da fala de acordo com a pronúncia de cada um — e comparar esses modos de escrever com a escrita
ortográfica. A escola precisa explicar o que é ortografia, como funciona, como os alunos fazem para
escrever respeitando a ortografia, para corrigir os textos que produzem, para tirar dúvidas. A escola precisa
não incutir nas pessoas o medo de escrever errado alguma palavra de conhecimento comum. Para isso, ela
precisa ensinar os alunos, primeiro, a aprender a escrever e, depois, a escrever de acordo com as regras
ortográficas, sem medo de ter dúvidas, de perguntar, de buscar informações nos dicionários ou com as pessoas
que sabem, porque ninguém passa pela vida sem ter dúvidas de ortografia. Às vezes, temos uma imensa dúvida
ortográfica com uma palavra que parecia conhecida, familiar, que sempre escrevemos. Se a sociedade
<93>
fosse melhor preparada pela escola, não se escandalizaria diante dessas dúvidas. Mas do jeito que a cartilha
trata o assunto, parece burrice não ter certeza sobre a ortografia das palavras. É óbvio que a escola vai cobrar
dos alunos que memorizem a ortografia das palavras de uso comum, de acordo com o nível de escolaridade,
mas poderia ser muito mais benevolente com os erros. E quando não se sabe como se escreve uma palavra,
não adianta pensar, refletir, especular: é preciso perguntar a quem sabe ou olhar no dicionário.
A pior conseqüência da maneira como a cartilha trata a escrita na alfabetização decorre inegavelmente da
sua concepção de texto. Mas esse ponto terá um tratamento especial, mais adiante.

A CARTILHA E A LEITURA

Como a cartilha ensina a ler


Existe uma leitura que é a decifração da escrita, que a cartilha pensa ensinar aos alunos quando mostra as
famílias de letras e propõe exercícios de desmonte e remontagem de palavras. E é só o que os livros
apresentam. Como a cartilha tem uma maneira equivocada de tratar a escrita, a leitura também fica
prejudicada, pois depende crucialmente da escrita. Alguns alunos chegam mesmo a explicitar o processo de
decifração que aprenderam, dizendo, por exemplo, “le-a-la, te-a-ta” ao tentar ler “la-ta”. Quando chega o
momento da leitura, alguns professores obrigam seus alunos a acompanhar com os olhos letra por letra, uma
depois da outra, decifran do-as individualmente e falando o que estão lendo. Os mais espertos acabam
realizando uma leitura silabada que, com o tempo, pode até adquirir velocidade suficiente para dar a
impressão de fluência. Todavia, não raramente ocorre que, mesmo esses alunos fluentes e rápidos na leitura,
quando acabam de ler um texto, não são capazes de lembrar o que leram, a não ser uma ou outra palavra
(geralmente aquelas que apresentaram dificuldade de leitura, em que o aluno gaguejou, parou para pensar...).
Do modo como a cartilha trata a escrita e a fala, é quase impossível que um aluno, na alfabetização, leia
<94>
com o devido ritmo e a desejada entoação. As cartilhas preferem leituras coletivas às silenciosas, sem
cobranças. Os alunos são solicitados freqüentemente a ler de surpresa um texto novo (é claro, composto só de
palavras já estudadas, ou de palavras com sílabas das famílias de letras já dominadas). Preparar uma leitura
com antecedência vai contra os costumes das cartilhas. A leitura de improviso é mais uma atividade para testar
se o aluno aprendeu ou não a lição, se já dominou um determinado conteúdo ou não. Para um aprendiz ler em
voz alta, como deveria ser a leitura, ele precisa decifrar a escrita com facilidade, o que, nos primeiros meses de
alfabetização, não está ao alcance da maioria dos alunos.
A cartilha usa, ainda, a leitura como forma de ensinar e fixar a pronúncia da norma culta, freqüentemente
exigindo dos alunos uma leitura com uma pronúncia artificial.

A interpretação de textos segundo a cartilha


O método das cartilhas introduziu uma nova atividade quando percebeu que alguns alunos, bons leito res,
não eram capazes de dizer com as próprias palavras o que tinham lido. Essa atividade é a interpretação de
textos.
Qualquer texto passou a ser um pretexto para colocar em prática aquela atividade. Mais uma vez, a cartilha
meteu as mãos pelos pés. Fazer interpretação de texto passou a ser preencher os vazios de perguntas feitas
com trechos do texto. Por exemplo, se o texto diz: “Maria foi visitar a vovó”, pergunta-se: “Quem foi visitar a
vovó?” “Maria foi fazer o que na casa da vovó?” “Maria foi visitar a...“ Ora, achar que um falante nativo de
português não é capaz de ouvir (ou ler) uma frase banal como essa e não a entender é um insulto à
racionalidade da pessoa.
Alguns professores, que preferiram trocar os textos das cartilhas por “livros paradidáticos”, passaram a dar
importância exagerada à interpretação de textos, reduzindo suas aulas a essa atividade. Nesses casos o
professor costuma propor um longo exercício de perguntas e respostas, em um momento inoportuno para
esse tipo de atividade, já que o aluno mal sabe ler. O que os alunos gostariam mesmo de fazer era aprender a
ler e a escrever, para ler por si e escrever suas historinhas como bem quisessem.
<95>
OUTROS PROBLEMAS DAS CARTILHAS
O método das cartilhas tem outros problemas que não são menos graves do que aqueles relativos à fala,
escrita e leitura. Alguns deles merecerão aqui um destaque.

Aprender em ordem
O princípio da progressão controlada, baseado na idéia dos elementos já dominados, ordenando as
dificuldades progressivamente com cronogramas minuciosos, estabelecendo o que vem antes e o que vem
depois no ensino e na aprendizagem, amarra de tal forma o processo de alfabetização que os alunos passam a
fazer apenas o que o professor manda. Por outro lado, esse princípio serve de base para a avaliação que
permite ao professor passar para a lição seguinte ou não. Como tudo vem rigidamente em seu lugar, quando o
aluno erra, deve voltar atrás e repetir a lição. O princípio da progressão controlada pressupõe que apenas o
elemento novo introduzido na lição constitui dificuldade para o aluno, uma vez que o resto “já foi dominado”.
Acontece, porém, que à medida que os alunos avançam, acabam se esquecendo de coisas já vistas, e isso gera
uma enorme confusão na aplicação do método. A única saída para esses casos é separar os alunos atrasados
em classes especiais, onde começarão tudo de novo. Para alguns alunos, esse processo irá se repetir até que
ele abandone a escola, julgando-se incapaz nos estudos.

O entulho gramatical
As cartilhas costumam trazer exercícios de gramática que são verdadeiros entulhos jogados nas lições para
preencher o tempo dos alunos com atividades de linguagem. Esses exercícios tratam, sobretudo, de gênero, de
número e de graus das palavras. Há, ainda, exercícios de identificação de categorias gramaticais. Querer
ensinar essas coisas na alfabetização é um desastre. Como não há explicações sérias, apenas exercícios como
“faça segundo o modelo”, nota-se que muitos alunos erram, nesses exercícios, coisas que, de fato, conhecem
perfeitamente, como falantes nativos da língua. Assim, um aluno ao ser perguntado sobre o feminino de “o
pai” escreve “o paioa”; de “tio”, escreve “tioa”.
<96>
Nenhum falante confunde “pai” com “mãe” ou “tio” com “tia”, a não ser fazendo exercícios gramaticais como
esse. Resumindo, esses exercícios não só não ensinam nada, como ainda induzem os alunos a errar. Para
muitos alunos, parece mais natural que o aumentativo de “macaco” seja “grande macaco” ou “gorila” ou talvez
até “cigecougue” (King-kong), mas não “macacão”. Para elas, definitivamente, “macacão” é um tipo de roupa.

Metáfora e fantasia
Faz parte da praxe das cartilhas conduzir um processo de ensino em que se diz quase tudo de maneira
metafórica, indireta, evitando um tratamento sério, objetivo, preciso e direto das verdades que se devem
ensinar. Por se tratar de crianças, alguns professores falam com seus alunos como se todos vivessem num
mundo de fantasia. Supõem que as crianças não conseguem acompanhar uma explicação correta e objetiva,
precisando sempre aprender através de subterfúgios pedagógicos. Então, sílaba virou “pedacinho”, as palavras-
chave precisam ser apresentadas através de uma história fantasiosa e representar uma idéia importante no
texto básico da lição. Para tudo, deve haver uma história e, se possível, uma musiquinha para cantar, cuja letra
repita inúmeras vezes os elementos da lição. Tudo precisa vir acompanhado de gravuras, figuras, com muito
colorido e enfeites.
Ninguém contesta o fato de que as crianças gostam de histórias e se divertem em meio a esse clima de sala
preparada para festa de aniversário; porém, quando vão para a escola, sabem que não estão indo a uma festa,
mas a um lugar sério, onde se aprendem coisas sérias, úteis para a vida e, portanto, importantes. Elas têm essa
consciência da seriedade. A escola, não obstante, às vezes torna-as levianas e comodistas.
O excesso de histórias, na maioria das vezes sem nenhuma graça, apresentadas apenas como pretexto
pedagógico, acaba levando a um ensino absurdamente metafórico. Evita-se a todo custo falar de como as
coisas são na realidade. Na prática tradicional das cartilhas não se podem usar termos técnicos. As letras não
têm nomes: em vez de U, os alunos dizem “a letra do chifre”; a letra o é “a letra da boca”, porque foi com o
desenho dos chifres do boi que aprenderam a escrever a letra U, e com o desenho de uma boca aberta que
aprenderam a letra Q
<97>
Remanejamento para evitar problemas
A cartilha equivocadamente confunde ensino com aprendizagem, avaliação com promoção, favorecendo
uma atitude de segregação dentro da escola e da própria sala de aula, com os remanejamentos de alunos para
classes especiais. Tudo precisa ser avaliado e receber uma nota, e o que saiu errado precisa ser refeito, até
acertar. O método das cartilhas procura uma homogeneização que destrói a iniciativa individual, partindo do
princípio de que educar é fazer com que todo o mundo saia da escola exatamente com a mesma cara. O
diferente é combatido e não pode existir na escola. As diferenças individuais não são permitidas porque não
podem ser avaliadas através de testes coletivos, iguais para todos.
As cartilhas representam a prática de métodos mecanicistas, bons para adestramento, para
condicionamento, mas muito ruins para quem quiser usar a reflexão para construir o conhecimento. Na
cartilha, tudo vem pronto para o aluno, basta digerir: não há lugar para uma reflexão autônoma, para uma livre
iniciativa, para a criatividade, para continuar com as características próprias. A uniformização é um imperativo.

O erro não tem vez


Como as cartilhas não sabem lidar com as diferenças no processo de aprendizagem e como prevêem
somente o certo, nenhum erro será objeto de estudo. Por essa razão, não encontramos nas cartilhas, nem nos
manuais de professores, formas de proceder quando um aluno não aprende algo que o professor explicou
direitinho, segundo manda o figurino. Os professores sabem, por experiência própria, que é difícil ensinar a ler
e a escrever, mas quem analisa uma cartilha fica com a impressão de que tudo é tão simples e perfeito, que
ninguém nunca erra nem tem dúvidas.
As cartilhas são implacáveis com relação a quem não entra no esquema e, por isso, não têm nenhuma
sugestão para o professor aproveitar quando a evidência dos fatos da vida mostra claramente que o método
não funcionou. A única saída é repetir tudo de novo, da mesma maneira, remanejar a criança para uma classe
de alunos com dificuldades de aprendizagem, os chamados “alunos carentes”. E se não se corrigirem, a saída
da escola é a solução para o problema.
< CAGLIAR!, 1985b e 1986b.
<98>

O fascínio pelo já pronto


A maioria dos professores que usam o método das cartilhas foi informada de que essa ou aquela cartilha é,
de fato, um grande livro didático, com métodos excelentes de alfabetização, comprovados desta e daquela
maneira. Ouviram dizer que tal colega usa tal cartilha e seus alunos são alfabetizados da melhor maneira
possível. Por falta de espírito crítico, por falta de competência necessária para discutir a questão a fundo e
seriamente, muitos professores continuam achando que a melhor maneira de alfabetizar é pelo método das
cartilhas, se possível, seguindo o próprio livro didático.
Outros (poucos?) preferem as cartilhas pela comodidade de aplicar em sala de aula um método já pronto,
escolhendo, de preferência, aquelas que vêm com toda a parafernália didática preparada para o ano letivo.
Há ainda o interesse econômico, que tem feito das cartilhas um negócio muito lucrativo, sobretudo junto aos
órgãos públicos encarregados da educação. Para um bom trabalho de alfabetização, sobretudo nas es colas
públicas, é mais importante ter lápis e papel do que cartilhas. Apesar de tudo, o governo insiste em distribuir
cartilhas, esquecendo-se do lápis e do papel. Em algumas escolas, os alunos recebem um belo livro e fazem as
lições com tocos de lápis e sucata de papel de escritório.

SUBSTITUTOS DAS CARTILHAS


As considerações acima mostram como é problemático o uso do método das cartilhas na alfabetização. Mas,
se a cartilha é tão ruim assim, o que fazer para alfabetizar sem a cartilha e, sobretudo, sem o método das
cartilhas? Qual é a saída, ou melhor, quais são as alternativas?
Depois desse longo caminho, analisando a história e os métodos de alfabetização, podem-se tirar algumas
conclusões interessantes que nos levarão a entender por que proceder de um jeito e não de outro, na escola, a
fim de conduzir um processo de ensino e aprendizagem da leitura e da escrita de maneira mais correta e
proveitosa.
Em primeiro lugar, é preciso entender que o segredo da alfabetização está na aprendizagem da leitura.
Aprender a ler, aqui, significa aprender a decifrar a escrita. <99>
Para saber decifrar a escrita, é preciso saber corno os sistemas de escrita funcionam e quais os seus usos.
Como a escrita é uma forma gráfica de representação da linguagem oral, é necessário estudar os mecanismos
da produção da linguagem oral, quais os seus usos e, ainda, como a linguagem oral se relaciona com a forma
escrita que a representa, num contexto culturalmente específico da sociedade moderna.
Infelizmente, constata-se que não basta jogar o livro fora ou dizer que não se quer mais seguir o método do
bá-bé-bi-bó-bu, para levar adiante um bom trabalho de alfabetização. Há coisas erradas demais no sistema
educacional do Brasil, que tornam qualquer iniciativa de boa vontade fadada ao fracasso, por falta de infra-
estrutura, pela presença constante e sufocadora de uma máquina burocrática anacrônica e, principalmente,
pela incompetência de alguns professores. Estes recebem das escolas de formação todos os equívocos,
preconceitos e barbaridades que depois levam para a sala de aula. Alguns autores de livros didáticos, por sua
vez, são tão despreparados quanto os malformados professores. Acrescente-se a isso a exigência ridícula de
pais e avós que fazem questão de que seus filhos sejam educados exatamente da maneira como eles o foram.
Apesar desse quadro pouco animador, aos poucos, os professores interessados podem ir deixando de lado a
velha prática de alfabetização e iniciar um trabalho novo, com dedicação ao estudo para suprir as lacunas e
deficiências e muito bom senso. A própria prática - mestra da vida - ajuda muito.
O professor não pode ter medo de levar seus alunos a sério, de ir direto ao assunto, conduzindo um processo
equilibrado de ensino e aprendizagem. Afinal de contas, o professor sabe ler e escrever. Com um pouco de
reflexão mais cientificamente controlada, ele é capaz de realizar um excelente trabalho, sem precisar gastar
muito tempo, refazendo desde o início sua formação. O professor também aprende ensinando. Se seus alunos
forem instigados a construir um processo de alfabetização baseado na reflexão, na pesquisa, no trabalho
compartilhado, o próprio professor verá, para sua surpresa, que ele também está aprendendo. Mais do que
isso, ele começará a deixar de lado a idéia de que seu trabalho é maçante, acabando por descobrir o mundo
fascinante da construção do conhecimento pelos alunos, como uma mãe deslumbrada
<100>
diante do crescimento de seu filho, num processo de aprendizagem verdadeiro, como deveria existir sempre
nas escolas.

A CARTILHA E OS PROFESSORES

CAGLIARI, 1997c.
Apesar de todos esses problemas, o método das cartilhas é considerado em geral muito conveniente pelos
professores. Se o aluno não aprender, a responsabilidade não é dele, nem do método, mas da incapacidade do
aluno. Como o método considera que todos os alunos partem do zero e vão estudando ponto por ponto, do
mais fácil para o mais difícil, isso dá uma falsa aparência de ordem e organização. Todos os alunos devem fazer
a mesma coisa, do mesmo modo, no mesmo tempo. Para o professor, fica fácil avaliar quem está
acompanhando e quem está ficando para trás. Como o trabalho é igual para todos e avança aos poucos em
complexidade, os professores conseguem fazer com que seus alunos apresentem cadernos muito bonitos, em
que tudo está perfeito, em ordem, sendo muitas vezes uma cópia exata do próprio caderno do professor, que
ele usa como modelo. Se o aluno errar alguma coisa, o professor apaga e coloca o certo. Os pais e diretores
olham os cadernos desses alunos e acham que tudo vai às mil maravilhas. Ledo engano, que não irá durar
muito.
Por trás de toda aquela aparente ordem, esconde-se muita coisa mal compreendida, que irá produzir
péssimos frutos nas séries posteriores. No esforço para salvar a ortografia e a aparência correta da escrita, o
método da cartilha destrói a habilidade do aluno de lidar com a linguagem na sua forma plena e natural, como
fazia antes, quando apenas falava. O método da cartilha produz cadernos belos, sem erros, porque os alunos só
reproduzem o já dominado, e o professor só permite que ali fique registrado o que está certo. Depois, quando
os alunos tiverem de escrever espontaneamente, cometerão toda sorte de erros, mostrando uma
“desaprendizagem” perigosa.
Aos professores que dizem que também se aprende pela cartilha, que muita gente fez isso e aprendeu bem,
deve-se rebater, lembrando todos aqueles que não aprenderam e que tiveram de abandonar a escola por
causa de um método que privilegia um planejamento
<101>
escolar rigoroso e detalhado, inocentando os professores e os livros de sua incompetência. Os professores que
adotam as cartilhas nem sequer param para analisar cuidadosamente o que fazem, ou para investigar por que
alguns alunos aprendem e outros não, ou ainda para ponderar a que preço seus alunos aprendem.
Finalmente, convém ressaltar que, em séries posteriores, já não aparecem mais cartilhas. Alguns professores,
no entanto, são tão obcecados por elas, que continuam aplicando esse método nas séries posteriores. Livros de
matemática tendem fortemente a seguir o método de ensino das cartilhas. O que salva, em parte, as aulas de
português é a produção de textos, a leitura e a literatura. Como a matemática não tem dessas coisas, o ensino
torna-se insuportável para grande parte dos alunos, que se vêm obrigados a ter um estudo cujo único objetivo
é o de reproduzir um modelo. Afinal, para que servem os exercícios de matemática, da maneira como
aparecem em certos livros? A atividade parece que se esgota em si mesma, e o aluno faz a tarefa para ver se
acerta e não tem a sensação de estar aprendendo algo que poderá ser útil e aplicável na vida real. Um fato
semelhante acontece com certos professores de português que passam um ano inteiro fazendo exercícios de
análise sintática.
O uso do método das cartilhas (com livro ou sem livro) é largamente difundido entre os professores
alfabetizadores porque é um programa de trabalho já pronto, do começo ao fim, que se escolhe no início do
ano e que será aplicado ao longo dos dias escolares.
Algumas pessoas partilham da opinião de que não se pode estudar sem um livro didático, só que, em vez de
escolher livros mais interessantes, preferem as cartilhas, porque são mais “práticas”. Na verdade, há uma longa
tradição escolar que tem produzido cartilha atrás de cartilha, sem propor nada de diferente. Se um professor
achar no mercado editorial atual uma obra que ensine a alfabetizar sem o bá-bé-bi-bó-bu, será um fato
surpreendente. Os livros didáticos são feitos, em geral, por professores, e como eles não têm outra visão do
processo de alfabetização, repetem sempre o velho esquema. O círculo vicioso se fecha quando, por falta de
material adequado e de uma sólida formação lingüística crítica, os professores justificam a própria
incompetência apegando-se à única tábua da salvação que conhecem, o próprio método das cartilhas.
<102>

5
Panorama do processo de alfabetização
VALORIZAR O QUE É PRIORITÁRIO
O trabalho escolar de primeira série tem vários objetivos, mas o principal deles é alfabetizar as
crianças. A alfabetização é uma das coisas mais importantes que as pessoas fazem na escola e na vida. Os
esforços devem estar voltados para isso, embora a escola não deva se esquecer dos outros objetivos que tem
como instituição.
Para realizar um trabalho de ensino e de aprendizagem da leitura e da escrita sem o método do bá-bé-bi-bó-
bu, é preciso ter em mente alguns pontos fundamentais.
Em primeiro lugar, é necessário saber exatamente o que se quer fazer e o que se entende por alfabetização.
Muitos problemas surgiram na história da alfabetização realizada na escola porque os objetivos a serem
alcançados não eram muito claros. Por exemplo, todo o período preparatório veio como uma concepção de
alfabetização baseada numa teoria discriminatória contra a capacidade intelectual das crianças, criando nelas
uma auto-avaliação de incapacidade para aprender os conhecimentos que se adquirem nas escolas. A
alfabetização passou a se resumir, então, em grande parte, a exercícios que preparavam o aluno para o estudo,
enquanto o mais importante era deixado de lado, ou seja, o conteúdo específico que torna uma pessoa
alfabetizada. Não é raro ouvir histórias de crianças que não queriam mais ir à escola porque não aprendiam a
ler nem a escrever, mas apenas a rabiscar e a fazer joguinhos.
Alfabetizar é ensinar a ler e a escrever. Como já dissemos, o segredo da alfabetização é a leitura (decifração).
Escrever é uma decorrência do conhecimento que se tem para ler. Portanto, o ponto principal do trabalho é
ensinar o aluno a decifrar a escrita e, em seguida, a aplicar esse conhecimento para produzir sua própria
escrita.
Conhecendo a rotina nas escolas, a primeira coisa a ser feita é uma faxina: jogar fora uma série de atividades
que nada têm a ver com os objetivos, tornando o trabalho mais simples e mais tranqüilo tanto para o professor
como para o aluno.
Brincar, cantar, contar histórias, recortar, colar, desenhar, etc. sem dúvida são atividades escolares. Mas isso
não é ensinar a ler nem a escrever. Aprende-se a ler e a
escrever, lendo e escrevendo, e não pulando corda e fazendo festa.
<104>
Tem hora para aprender a ler e escrever e tem hora para brincar. Juntar essas duas coisas o tempo todo é uma
loucura pedagógica: tira a seriedade da formação escolar e introduz uma leviandade nos trabalhos. Brincar é
imprescindível, mas deve ter seu valor claramente estabelecido para todos.

OS ALUNOS SÃO FALANTES NATIVOS


Rigorosamente falando, na alfabetização não é preciso ensinar ninguém a falar: nossos alunos já aprenderam
isso quando tinham de um a três anos. São todos falantes nativos do português, cada qual usufruindo o dialeto
da região em que nasceu e viveu e que é partilhado pelas pessoas com quem convive. Ensinar a norma culta
também vai ser uma preocupação da escola, e deve começar desde a alfabetização. Porém, essa deverá ser
uma atividade secundária, tecnicamente falando, com relação à aprendizagem da leitura e da escrita. Qualquer
aluno pode alfabetizar-se perfeitamente sem precisar mudar o modo de falar de seu dialeto.
Vendo essa questão por outro ângulo, percebe-se claramente que o professor não precisa preocupar-se com
o fato de seus alunos falarem errado no início. Não é necessário que os alunos aprendam a pronunciar bem as
palavras, sílabas ou outros elementos fonéticos para aprenderem a escrever as palavras. Uma coisa não é
condição para a outra.
Tampouco quando um aluno é falante de um dialeto não aceito como norma culta pela escola, não precisa
abandonar seu dialeto para aprender a norma padrão. Quando alguém estuda uma língua estrangeira, por
exemplo, inglês ou francês, não deixa de ser falante de português. Aprende-se uma língua, sem esquecer a
outra. Do mesmo modo, quando alguém está aprendendo um dialeto diferente, não precisa se desvencilhar
daquele que conhece. Na sociedade, a variedade lingüística deve adaptar-se ao contexto, às exigências do
momento, do lugar e das pessoas com quem se fala. Numa sociedade tão heterogênea como a nossa, as
pessoas acabam falando mais de um dialeto: um em casa e
outro na vida formal em sociedade. Variações de pronúncia (do R; das fricativas CH e TCH; variações como
“déis” ou “dés”, etc.), de concordância (por exemplo,
<105>
“chegou os homens” em vez de “chegaram os homens”), de regência (por exemplo, “eu preciso dinheiro” em
vez de “eu preciso de dinheiro”) fazem parte da vida dos falantes em geral, marcando um uso informal e outro
formal da língua.
MASSINI-CAGLIARI, 1997b

A IDADE PARA SE ALFABETIZAR


Por razões ideológicas, interesses políticos e econômicos, somados a uma postura tradicionalista de pessoas
que trabalham nos órgãos públicos da educação. corroborada por alguns psicólogos e outros que se acham
entendidos no assunto, ficou estabelecido que a alfabetização, no Brasil, começaria aos sete anos e que o
primeiro grau (atual ensino fundamental) se encerraria aos quatorze anos.
Durante muitos anos venho fazendo uma campanha pessoal para convencer as pessoas de que seria muito
melhor que a alfabetização começasse aos cinco anos (como, aliás, acontece na grande maioria dos países do
mundo) e que o primeiro grau se estendesse até os doze anos. Com quatorze anos, muitos jovens já são arrimo
de família, têm de trabalhar duro para sobreviver e sustentar irmãos, pais, avós, etc. Além disso, começando a
alfabetização aos cinco anos, todas as crianças passariam a gozar de um beneficio que hoje está restrito
àqueles que freqüentam a pré-escola. Dos cinco aos sete anos, a pré-escola é importante como escola e não
como creche. Muda-se a Constituição do país, mas não se muda a mentalidade dos governantes, e os
problemas sérios continuam sem solução.
Aos cinco anos uma criança está mais do que pronta para ser alfabetizada, basta o professor desenvolver um
trabalho correto de ensino e de aprendizagem na sala de aula. Nessa idade, ela já conheceu e aprendeu muita
coisa da vida, do mundo e até da história, já testou sua participação na sociedade, seu relacionamento com
pessoas diferentes. Aprender a ler e a escrever, dentro desse contexto, é algo simples e banal, considerando-se
a capacidade e a experiência de vida de qualquer criança com cinco anos. Duvidar da capacidade de aprender
das crianças de cinco anos é um grande equívoco, mesmo quando anunciado em teses e livros publicados por
intelectuais com muitos títulos acadêmicos.
<106>

QUERER SER ALFABETIZADO


Se com cinco anos uma criança pode ser alfabetizada, isso não significa que ela queira ser alfabetizada.
Dependendo do modo de vida, algumas pessoas não acham que a alfabetização seja algo de muita
importância. As vezes, ganhar dinheiro é o que realmente conta. Algumas pessoas chegam à idade adulta sem
se interessar pela alfabetização. Para elas, ler e escrever não é algo tão fundamental como nós comumente
achamos que seja.
Essas considerações mostram que, mais importante do que a idade é a vontade do aluno de se alfabetizar.
Estar na escola é um fato que cria expectativas. Mas alguns alunos podem ter uma visão muito restrita do que
os espera. Por isso, é necessário que o professor, no início do ano, converse com seus alunos para saber de
suas expectativas com relação ao trabalho escolar de alfabetização que terão pela frente.
É preciso conversar a respeito do que significa aprender a ler e a escrever, o que se faz com esses
conhecimentos, em que sentido a vida das pessoas se modifica depois que aprendem a ler e a escrever, quais
as previsões de uso desses conhecimentos pelo resto da vida, fora da escola. Não é raro haver alunos,
provenientes de classes pobres, que achem que vão aprender a ler e a escrever como uma espécie de
obrigação da escola. Como em casa ninguém lê nem escreve e não há livros (nem caneta ou papel), essas
crianças acham que aprender a ler e a escrever é simplesmente fazer a lição da escola.
A escrita e a leitura têm muitos usos, que precisam ser discutidos ao longo do processo de alfabetização, e
uma boa conversa deve acontecer antes mesmo do início das atividades de ensino e aprendizagem. Os autores
das cartilhas nunca pensam que esse tipo de troca de informações entre o professor e o aluno e dos alunos
entre si seja algo importante. Mas é imprescindível.
A questão exposta acima está relacionada com o próprio conteúdo que vai ser ensinado. A escola sempre
parte do princípio de que o professor é quem decide o que é bom e o que deve ser excluído do processo
educacional. Mas é bom também perguntar aos alunos quais são seus anseios. O que eles pretendem ler? O
que eles pretendem escrever? O que pretendem fazer no começo da alfabetização? O que pretendem fazer
depois, quando já souberem ler e escrever fluentemente? O que pretendem fazer depois, quando saírem da
escola já formados?
<107>
Muitos professores ficam surpresos com as exigências
dos alunos. É muito comum, por outro lado, a escola
subestimar a vontade das crianças. Às vezes, elas estão ansiosas para copiar coisas que lhes interessam,
mas um professor que ouviu dizer que cópia é algo que deve ser abolido da escola causa grande frustração
nos alunos. É melhor, na maioria das vezes, deixar os alunos fazerem coisas por iniciativa própria, mesmo
que seja uma missão quase impossível, do que obriga-los
a fazer somente aquilo que o professor decide que deve ser feito. Quando as crianças fazem trabalhos por
decisão própria, o processo de aprendizagem voa, mesmo quando os resultados aparentemente não são
tão organizados e muito bem apresentados quanto os feitos sob o controle direto do professor.
Para muitos alunos, o professor deverá explicar o que significa aprender a ler e a escrever, segundo as
expectativas da escola e da sociedade. Deve fazer ver a
todos os alunos a importância do trabalho escolar que
irão começar.

UM MÉTODO SEM MÉTODOS


O melhor método de trabalho para um professor deve vir de sua experiência, baseada em conhecimentos
sólidos e profundos da matéria que leciona. O fato de não ter um método preestabelecido não significa que o
ensino seguirá navegando à deriva, O professor
terá sempre as rédeas nas mãos, porque, afinal de contas,
ele é um educador e não um simples observador. O fato de não se ter um método rígido para alfabetizar
não significa, tampouco, que o trabalho escolar será
feito sem método algum.
Quando o professor é um bom conhecedor da matéria que leciona, ele tem um jeito particular de ensinar,
assim como os alunos têm seus jeitos de aprender. Essa
heterogeneidade, em vez de atrapalhar, é fundamental em todo processo educativo.
Alguns órgãos públicos que respondem pela educação partem do princípio de que todos os professores
de determinado nível e matéria precisam fazer as mesmas
coisas, do mesmo modo, porque senão — dizem eles — como se poderá transferir alunos de uma escola para
outra? O que essas pessoas não percebem é que,
<108>
em nome de uma burocracia idiota, preferem comprometer o mais importante, que é o trabalho verdadeiro
que deve ser feito pelos professores nas salas de aula. Se um aluno sai de uma escola onde aprendeu alguma
coisa e vai para outra escola onde se está estudando outra coisa, deverá adaptar-se à nova realidade e, com o
tempo, isso acontecerá inevitavelmente, assim como quem muda de país vai ter que adaptar sua vida à do
novo ambiente.
O bonito da verdadeira educação é ser um caleidoscópio: a diferença a todo instante é seu charme e beleza;
cada momento revela algo novo e surpreendente. A educação deve formar pessoas diferentes, não clones,
réplicas intelectuais.
O professor que domina a matéria não precisa preocupar-se com métodos: ele saberá entender e resolver
tudo o que encontrar pela frente na sala de aula. Além do mais, dentro do processo de ensino, ele organizará
suas atividades de um modo geral: o que vai passar para os alunos, quando e como. Associado ao modo de
trabalhar de cada professor, isso acaba se traduzindo, na prática escolar, num método de trabalho. Depois de
terminado o ano, o caminho percorrido mostra que nada aconteceu por acaso, mas que houve uma intenção
de realização, houve decisões importantes, houve opções de escolha, enfim, houve, na prática, um método de
trabalho. Entretanto, o que aconteceu num ano não precisa ser repetido no ano seguinte, mesmo porque os
alunos serão diferentes e surgirão fatos novos. Quando se adota um modelo de trabalho escolar como método
para ser aplicado ano após ano, incorre-se no erro de supor que o que conduz o ensino e a aprendizagem é a
estrutura programática de um método, e não a interação entre o processo de ensino e de aprendizagem,
mediado pelo professor, levando em conta a realidade de seus alunos, a cada dia de aula.

EM QUANTO TEMPO SE ALFABETIZA?


Outra questão que precisa ser comentada é o tempo necessário para alguém se alfabetizar. Se a escola
eliminar o entulho do período preparatório, se for clara e objetiva, priorizando a decifração da escrita como
segredo da alfabetização e dedicando uma hora por dia
<109>
às atividades específicas, todos os alunos aprenderão a ler (com mais ou menos dificuldade) em dois ou três
meses de trabalho. Esse é o tempo suficiente para que os alunos aprendam a decifrar o que está escrito. Quem
sabe fazer isso está, tecnicamente falando, alfabetizado, O resto é o desenvolvimento dessa habilidade e a
complementação com conhecimentos que serão aprendidos depois.
Ao longo dos últimos anos, o processo de alfabetização foi confundido com tantas coisas estranhas e ficou
amarrado a tantas atividades inúteis, que o tempo necessário para um aluno aprender a ler (e a escrever) se
espichou demais. O que podia ser feito num semestre passou a ser feito em um ano. Com o ciclo básico, alguns
professores passaram a entender que agora o aluno tem dois anos para se alfabetizar, o que é falso. Em alguns
casos, contando com a pré-escola e o segundo ano, o aluno leva três anos para se alfabetizar, o que é um
absurdo.
O professor precisa ter idéias bem claras a respeito do que espera de seus alunos em todos os períodos
escolares. A falta de uma perspectiva como essa desorienta o professor e confunde os alunos. Em todo o
processo educacional, há coisas importantes que receberão uma atenção especial, e coisas secundárias, que
são em geral irrelevantes. Por exemplo, é de importância fundamental que o aluno tenha em mãos a chave da
decifração da escrita — o segredo da alfabetização. Sem isso, tudo o mais fica prejudicado. Uma vez adquirida
a chave da decifração da escrita, o aluno tem condições de desenvolver, até por si só, o resto do processo de
alfabetização, explorando a extensão e a profundidade da matéria. O professor que sabe disso trabalha mais
satisfeito, porque consegue acompanhar o progresso de seus alunos, valorizando o que cada um faz, inclusive o
seu próprio trabalho.
Por outro lado, alguns professores vivem em meio a muitas frustrações porque exigem demais do processo
de alfabetização e têm pressa de resolver todos os problemas de fala, leitura e escrita dos alunos em apenas
um ano. É preciso aliviar um pouco essas tensões na escola, acalmar a ansiedade e ter perspectivas mais
realistas, O tempo é o melhor remédio, e a paciência, uma virtude do educador. O importante é o professor e
os alunos trabalharem séria e constantemente, com perseverança e calma, porque a aprendizagem não tem
dia marcado para acontecer.
< CAGLIARI 1992a.
<110>
QUEM COMANDA É O PROFESSOR
O professor deve assumir o comando de seu trabalho e não abrir mão disso. Não é o Ministério da Educação,
nem a Secretaria Estadual ou Municipal de Educação, nem o diretor da escola, nem a coordenadora, nem a
monitora de alfabetização, nem a associação de pais e mestres, nem a comunidade, nem os pais, nem os avós
ou os tios, nem as teorias acadêmicas, nem as cartilhas ou os livros que devem impor ao professor o que fazer.
Antes de mais nada, é preciso salvar o direito sagrado de cátedra. Na educação se propõe, e não se impõe.
Quando a autoridade — seja de quem for — se impõe à razão do professor, significa que a educação perdeu
seu Sentido e tornou-se uma máquina de produzir resultados intelectuais. A educação vive da criatividade de
todos.
A tarefa escolar de sala de aula precisa ser devolvida aos professores. Eles precisam ter liberdade para poder
se responsabilizar pelo que fazem. Se todo o mundo dá palpite, a educação vai de mal a pior, e ninguém se
responsabiliza pela situação. Discutir é uma coisa, impor um comportamento profissional ao professor é outra,
muito diferente e intolerável.
De um professor deve-se cobrar competência e responsabilidade e não métodos ou adesão aos modismos
acadêmicos. Algumas pessoas acham que atualizar-se significa falar de acordo com a última palestra que ouviu
ou livro que leu. A busca de conhecimentos novos é tão importante para a sobrevivência do sistema quanto a
alimentação para os seres vivos. Mas tais conhecimentos precisam ser digeridos, ponderados, avaliados, para
depois entrarem na corrente sanguínea do sistema educacional.

REMANEJAMENTOS SÃO AVILTANTES


O professor que realiza um trabalho sério em sala de aula não pode permitir que ocorra remanejamento de
alunos. As classes formam turmas de amigos, que é preciso respeitar. A discriminação é sempre aviltante.
Não é raro casos de professores incompetentes que adoram remanejamentos, porque, assim, podem ficar
sempre com os melhores alunos. Isso alivia o trabalho e esconde sua incompetência. O trabalho duro acaba
sobrando para uns poucos professores que têm de aceitar
<111>
qualquer coisa, uma vez que nem sequer são considerados professores de uma escola, mas apenas tapa-
buracos do sistema.

CONDIÇÕES MATERIAIS
Um bom trabalho de alfabetização não pode ser desenvolvido sem as condições materiais adequadas.
Criança odeia ficar sentada, mas a maioria das salas de aula reservadas aos alfabetizandos é exatamente igual
às das demais séries. Criança gosta de escrever em pé, às vezes até deitada. As salas de alfabetização precisam
ser mais espaçosas para permitir maior trânsito de alunos.
É impossível desenvolver um trabalho adequado com uma classe que tem um número exagerado de alunos.
Mais de vinte alunos por professor cria dificuldades muito sérias para um bom trabalho. Infelizmente, por
causa de uma noção errada de humanidade e dó, alguns educadores acabaram engolindo dos governantes
classes superlotadas. Preferiram optar pela má educação a decepcionar as promessas eleitoreiras dos
governantes, que prometem um lugar na escola para todas as crianças, sem saber o que isso representa em
termos de educação nas situações atuais. Cuidar das escolas é algo que eles não querem. Escolas em condições
precárias de funcionamento, superlotadas e com pessoal mal pago fazem o perfil da educação neste país.
Depois de algumas semanas de aula, professores e alunos passam a viver num clima de guerra, numa irritação
geral, causada por esses fatores. Para consertar a alfabetização não basta abolir a cartilha e o bá-bé-bí-bó-bu; é
preciso muito mais.
Tudo o que foi exposto aqui deixa claro que cada professor terá de traçar seu caminho de trabalho e não
deverá esperar soluções prontas. Assim como a aprendizagem, o ensino também é um processo que deve ser
construído pelo professor à medida que acontece e, a cada vez que ocorre, terá um jeito próprio de ser.
Isso, porém, não impede que se ilustre um trabalho de alfabetização sem a cartilha e sem o bá-bé-bi-bó-bu
sem, contudo, fazer, desse exemplo, o modelo ideal que deva ser seguido por todos e sempre. Exemplos são
exemplos: são elucidativos, mas não impositivos. E claro que uma boa idéia sempre acha um seguidor, e adota-
la não significa necessariamente escravizar-se a ela.
<112>
É dentro desse espírito que propomos seguir idéias, sugestões e apresentamos exemplos. E sempre bom
discutir certos assuntos na teoria e constatar que de fato funcionam na prática.

LEITURA E ESCRITA
Ao contrário do que muita gente pensa, inclusive professores de alfabetização, para alguém ser alfabetizado,
não precisa aprender a escrever, mas sim aprender a ler. Ou seja, no processo de alfabetização, o professor
poderia prescindir do ensino da escrita, mas não da leitura. Em outras palavras, a alfabetização realiza-se
quando o aprendiz descobre como o sistema de escrita funciona, isto é, quando aprende a ler, a decifrar a
escrita. De posse desses conhecimentos, escrever nada mais é do que colocar no papel esses conhecimentos
fornecidos pela leitura. Quem escreve deve guiar-se necessariamente pelos conhecimentos da decifração da
escrita. Deve escrever pensando em como seu leitor fará para descobrir (decifrar) o que escreveu. Se cometer
erros, poderá deixar seu leitor confuso ou mesmo impossibilitado de entender o que foi escrito. Se fizer tudo
de acordo com as convenções e as regras do sistema de escrita, seu leitor poderá decifrar com facilidade.
Portanto, o segredo da alfabetização, como se disse várias vezes, é a leitura, ou seja, a decifração da escrita.
Em sentido mais amplo, a alfabetização tem outros objetivos, além de ensinar a decifrar a escrita, sobretudo
na escola. Saber escrever corretamente é um deles. A escrita não deve ser vista apenas como uma tarefa
escolar ou um ato individual, mas precisará estar engajada nos usos sociais que envolve, principalmente como
forma especial de expressão de uma cultura. Sem dúvida alguma, um bom professor terá sempre essa
preocupação em mente, em todos os momentos da vida escolar. Porém, como essa questão está mais ligada
aos usos especiais que se faz da escrita do que à aquisição propriamente dita da habilidade de escrever, o
alfabetizador dará mais atenção a esse último item do que ao anterior. Em séries mais adiantadas, quando os
alunos já souberem escrever com facilidade e tiverem um estilo próprio, a perfeição do texto será objeto de
trabalho específico.
<113>
A reprodução de modelos
O método das cartilhas — o bá-bé-bi-bó-bu — ensina o aluno a escrever reproduzindo um modelo. Em
seguida, o aluno aprende a ler o que escreveu. Esse método vai no sentido oposto ao sugerido neste livro. Para
a cartilha, o importante é aprender a escrever juntando pedacinhos (as sílabas geradoras), sempre supondo
que esses pedacinhos, por serem conhecidos, permitirão a leitura. Essa abordagem envolve muitos equívocos e
erros, como ficou claro no capítulo anterior.
A progressão, no método do bá-bé-bi-bó-bu, é rigorosa, e o aluno só faz algo segundo um modelo
preestabelecido, até dominar o exercício, passando então à lição seguinte. Se o aluno cometer algum engano, o
erro é logo apagado e substituído pela forma correta. Isso faz com que os alunos apresentem lindos cadernos.
Um fato comum na história de alguns alunos é que eles foram excelentes estudantes nas duas primeiras
séries, mas apresentaram seriíssimas dificuldades na terceira. Na alfabetização, o aluno escrevia tudo muito
bonito, sem erros de ortografia, como mostram seus cadernos. Na terceira série, apareceram dificuldades
insuperáveis porque a tarefa não consiste mais em reproduzir o modelo dado pelo professor, mas exige que o
aluno tome a iniciativa de fazer um texto, uma redação ou o que for preciso nas diversas atividades escolares.
Até sua letra piorou. Não é mais capaz de escrever sem cometer inúmeros e estranhíssimos erros de ortografia.
O aluno tinha aprendido a escrever tão bem... Por que, agora, não sabe mais?
A explicação para esses casos é simples e, ao mesmo tempo, trágica. O aluno não aprendeu, de fato, como o
sistema de escrita funciona, como se lida com o texto oral e o escrito, como funciona a ortografia e como se
resolvem dúvidas. Simplesmente fazia o que o professor mandava, seguindo o modelo das coisas já dominadas.
Na terceira série, não existe mais modelo (semelhante àquele a que estava acostumado) e não faz mais sentido
escrever somente palavras já dominadas. Nesse momento, começa a refletir sobre seu trabalho, sobre como
funciona a escrita, como funciona a cabeça de quem vai ler o que ele escreve, achando, talvez, que vai
encontrar em todos os leitores que achar pela frente uma espécie de professor que apaga o errado e coloca o
certo quando necessário. Em vez disso, encontra a constatação do seu fracasso, do erro incorrigível, levando-o
ao desespero. E, junto com ele, desesperam-se professores, pais, amigos, etc.
<114>
Esse aluno deveria ter tido a oportunidade de errar antes. Deveria ter tido antes a oportunidade de refletir
sobre o sistema de escrita. Não deveria ter ficado repetindo um modelo e construindo a escrita apenas com
elementos já dominados. A terceira série foi a primeira viagem fora da cartilha. Somente então foi solicitado a
refletir sobre como funciona o sistema de escrita e a elaborar suas próprias hipóteses a respeito dela. Só na
terceira série, esse aluno começou a produzir escrita como se fosse um iniciante no processo de alfabetização,
e o resultado do que faz se assemelha muito aos resultados obtidos pelas crianças quando começam a escrever
errado no início da alfabetização. Conseqüentemente, as pessoas passam a considerá-lo um aluno mal-
alfabetizado.
Se essa criança tivesse sido alfabetizada de outra maneira, se tivesse tido a chance de mostrar ao professor o
que pensava a respeito da fala, da escrita e da leitura, apresentando um trabalho de escrita feito por iniciativa
própria e não apenas seguindo um modelo de coisas já dominadas, teria resolvido seus problemas logo no
início.
O professor deve ter em mente que nem sempre um aluno que escreve corretamente está sabendo o que está
fazendo e como funciona a escrita. Por outro lado, não é porque um aluno erra, ao tentar escrever uma
palavra, que ele não esteja aprendendo a escrever.
É preciso distinguir bem o ato de escrever do resultado que uma escrita produz. O método das cartilhas
preocupa-se apenas com o gesto, com o ato de escrever em si, uma vez que o resultado é controlado
rigidamente pelo professor e passa a ser então totalmente previsível. Por outro lado, um aluno que tem seu
espaço de aprendizagem aberto pelo professor para construir seu conhecimento, sabe que o ato de escrever é
uma tentativa que pode levar a um resultado correto ou não. Sabedor disso, deverá fazer um juízo de valor
sobre sua ação e verificar se, de fato, obteve êxito. Nesse caso, o professor sabe perfeitamente bem que,
primeiro, precisa deixar o aluno aprender a escrever, para depois cobrar dele o resultado esperado, em termos
de correção ortográfica e perfeição gráfica.

A descoberta do mundo da escrita


A descoberta do mundo da escrita é mais fácil para alguns alunos do que para outros. As crianças que vivem
em casas onde há livros, revistas, jornais, onde as
<115>
pessoas lêem e escrevem, começam logo cedo a se interessar por essas atividades e a saber coisas a respeito
da escrita e seu funcionamento. Por outro lado, crianças que vivem em casas onde não se lê e não se escreve
crescem tendo um outro tipo de comportamento e de conhecimentos a respeito da escrita e da leitura.
Fora de casa, no mundo, a escrita está em toda a parte, e tanto ricos como pobres sabem que ela existe e
podem até dizer que num jornal, na embalagem de um produto, nas placas comerciais há coisas escritas. Isso
não quer dizer que todos sejam capazes de distinguir qualquer material de escrita do que não é escrita. Mas,
de modo geral, as pessoas sabem que desenhos figurativos não constituem escrita. Sabem que a escrita pode
ser feita de inúmeras maneiras, o que torna muito difícil ter uma idéia clara sobre ela. Por exemplo, não é fácil
distinguir rabiscos de escrita cursiva.
Ao contrário do que algumas pessoas pensam uma leitura incidental não representa um reconhecimento de
uma escrita como desenho. Por exemplo, uma criança pode reconhecer que se trata de Coca-Cola porque está
vendo uma garrafa desse produto ou uma propaganda ou, mais especificamente, um rótulo onde aparece
escrito, de maneira típica, o nome da marca. O reconhecimento do rótulo (leitura incidental, nesse caso) é de
fato uma leitura. Como a criança não conhece as relações entre letras e sons, não pode identificar como o
sistema de escrita funciona de maneira específica. Porém, nosso sistema de escrita não se presta a ser lido e
escrito apenas através das relações entre letras e sons, uma por uma. Embora não seja a maneira mais comum
e própria de se ler e escrever, urna pessoa poderia em princípio tratar todas as palavras escritas como se
fossem ideogramas, e escrevê-las e lê-las como se estivesse diante de um sistema ideográfico de escrita.
Parece que a primeira tentativa que as crianças fazem para penetrar no mundo da escrita tem como estratégia
considerar toda escrita como sendo ideográfica. Muitas crianças abordam a escrita dessa maneira quando
ainda são muito novas e estão explorando o mundo. Mas algumas chegam a levar essas idéias para a sala de
aula e, se o professor não perceber, durante um certo tempo elas tratarão a escrita escolar como se fosse um
puro sistema ideográfico.
Essa idéia é reforçada muitas vezes quando uma criança (ou um analfabeto) pergunta a um adulto (ou a
quem sabe ler) o que está escrito. A resposta não é
uma explicação de como a escrita funciona, mas a
<116>
identificação de uma ou mais palavras. Isso a leva a imaginar que um conjunto de sinais gráficos
(misteriosamente elaborados) refere-se a uma palavra. No início, raramente acha que existe um sinal para cada
som da fala. Essa é uma idéia muito elaborada, que exige uma explicação particular e detalhada. Ninguém
chega a ela sem a ajuda de alguém que já conhece como nosso sistema de escrita funciona. E por isso que
ainda hoje há sistemas de escrita que não foram decifrados, apesar de todas as tentativas: falta alguém para
dizer como se relacionam os caracteres com a linguagem oral.
Na sociedade, existem pessoas que lêem ou interpretam a escrita, respondendo à pergunta mencionada
acima, dizendo que em tal lugar está escrita tal palavra; mas também, não é raro as pessoas virarem
decifradores tentando ler. Ao fazer isso, algumas características do sistema começam a emergir e podem servir
de informações a quem não sabe ler. Por exemplo, é comum alguém soletrar ou fazer sua tentativa de
decifração pronunciando possíveis sílabas. Seria muito estranho alguém que pronunciasse apenas segmentos
fonéticos, como se estivesse interpretando uma transcrição fonética. Ora, aquele esforço de decifração
transmite a quem não sabe ler a idéia de que se lê por sílabas, ou seja, que a escrita vem associada a sílabas,
antes de estar associada a palavras, e muito dificilmente deixa claro que existem unidades menores do que a
sílaba.
Outro fato comum ocorre quando alguém vai escrever e tem dúvidas sobre a ortografia de uma palavra.
Nesse caso, pode perguntar diretamente por uma letra: “teste” se escreve com X ou com S? Diante disso, uma
pessoa analfabeta intui que a escrita tem um conjunto de nomes especiais para analisar as palavras, antes de
descobrir o que ela representa. Mas o que fazer com esses nomes? O que significa “xis” ou “esse”? Num
primeiro momento, essas palavras não têm um significado para o ouvinte analfabeto ou significam apenas
nome de letra, e a palavra “letra” significa apenas “escrita” e não unidade de um sistema.
Outro procedimento é responder às dúvidas ortográficas de alguém usando o princípio acrofônico, típico do
método das cartilhas; isto é, comportando-se na vida real como um professor alfabetizador. Quando alguém
está tendo dificuldades para escrever um nome, a resposta vem da seguinte forma: L de lata, E de escola, S de
sapo, C de cebola, A de árvore, U de urubu e X de xarope, e acento agudo no E: LÉSCAUX.
<117>
Diante disso, uma pessoa analfabeta poderá fazer uma idéia de que a escrita é algo surrealista e um jogo no
qual cada um diz o que bem quiser. Aquele procedimento de decifração, sem uma explicação muito detalhada
e convincente, não é transparente para o analfabeto. Só mostra as relações entre letras e sons para quem
conhece as regras do jogo. No máximo, um analfabeto pode perceber que um certo padrão frasal se repete,
como em “u de urubu”, “a — de árvore”, o que já exige um enorme esforço de análise. No mais, em geral, as
relações entre letras e sons não são nem um pouco transparentes.
Algumas crianças interessam-se pela escrita logo cedo e começam a reconhecer certas palavras que vêem
freqüentemente. Depois, querem saber como se escreve o próprio nome e acabam decorando que
determinada letra é a letra do seu nome. Aqui também funciona o princípio acrofônico: A de Antônio, R de
Regina, T de Tomás, etc. Esse tipo de explicação é muito precioso para a criança porque ensina duas coisas
importantes: o nome das letras e seu valor fonético através do princípio acrofônico.
Quando o professor começar a falar de escrita para as crianças, precisa lembrar-se de que a maioria delas já
tem informações a respeito. Se ele fizer com que elas explicitem essas informações, conversando a respeito do
que já sabem, terá um bom motivo e um caminho interessante para ensinar a ler e a escrever.
Algumas classes, com crianças que já passaram por escolas maternais ou pré-escolas, têm alunos que sabem
muito mais a respeito da escrita. Por isso, o professor deve fazer esse levantamento antes de organizar o
trabalho de ensino. Reconhecer e respeitar esses conhecimentos das crianças motiva-as a aprender mais
rápido, uma vez que elas constatam que já sabem muita coisa. Por outro lado, esse estudo prévio é crucial no
caso daqueles alunos que sabem muito pouco ou quase nada a respeito do sistema de escrita. Com esses
alunos, o professor deverá tomar cuidados especiais, devendo ensinar noções que parecem óbvias a todo o
mundo, mas que não foram sequer percebidas por algumas crianças. Se esses alunos não receberem uma boa
explicação, por exemplo a respeito da distinção entre desenho e escrita ou, ainda, que escrevemos com letras
representando os sons das palavras, dificilmente acompanharão explicações mais específicas a respeito do
funcionamento da escrita, da leitura e da fala.
<118>

6
A decifração da escrita
REGRAS PARA A DECIFRAÇÃO
DA ESCRITA
Neste capítulo, começaremos a analisar que conhecimentos uma pessoa precisa ter para decifrar
e ler algo escrito no nosso sistema de escrita. Em outras palavras, vamos ver quais são as regras que guiam
uma pessoa nessa tarefa. Para quem já sabe ler, a decifração é algo mecânico, assim como o controle fonético
dá-se naturalmente para quem já aprendeu a falar. Mas se quisermos explicitar esses conhecimentos, vamos
encontrar uma série de normas, mesmo porque, se elas não existissem, não haveria a convenção social que
torna a escrita algo compartilhado pelos usuários. O conhecimento dessas regras constitui o segredo da
decifração da escrita, que, por sua vez, é o segredo do processo de alfabetização.
Há uma tradição equivocada segundo a qual não se deve ensinar os alunos a decifrar a escrita, mas a ler
“com naturalidade”... Como alguém consegue ler um texto se não sabe decifrá-lo? Constata-se em geral que os
professores não sabem dizer quais são os conhecimentos que uma pessoa precisa ter para saber ler e, por isso,
recusam-se a adotar o estudo da decifração como matéria em suas aulas. A questão, com efeito, é muito
complexa, e os livros não costumam tratar desse assunto correta e seriamente.
Apresentaremos a seguir os principais pontos que
urna pessoa precisa conhecer para saber ler.
1. Conhecer a língua na qual foram escritas as palavras
Diante de uma escrita chinesa, se eu não souber chinês, posso ficar tentando descobrir o que está escrito,
mas jamais conseguirei ler. A história das decifrações tem mostrado isso. Conhecer a língua é o primeiro
requisito para se ler.
Por outro lado, conhecendo uma língua, posso usar
esse conhecimento para tentar “ler” algo escrito em outra língua.
O fato de uma criança saber que está escrito uma determinada palavra, e não outra, ajuda muito a refletir
sobre seus conhecimentos da escrita e da leitura e a ousar um processo de decifração. Se dissermos a uma
criança que a palavra está escrita numa língua que ela
<120>
não conhece, isso certamente não irá animá-la a usar seus conhecimentos para ler o texto.

2. Conhecer o sistema de escrita


É preciso saber distinguir um desenho (figurativo ou abstrato) de uma manifestação de escrita. O desenho
representa algo do mundo (ou relativo a ele), e a escrita representa a linguagem oral (uma palavra). A
linguagem oral, por sua vez, representa o mundo. Uma mesma forma gráfica, portanto, pode ser apenas um
desenho ou uma escrita.

3. Conhecer o alfabeto
O alfabeto que usamos é uma das possíveis formas do alfabeto latino e segue um conjunto de normas atuais.
É composto de letras, formando um conjunto, tendo cada letra um nome, que lhe foi dado para indicar um dos
sons possíveis que a letra apresenta na língua, através do uso de um princípio acrofônico.
Contar um pouco da história do alfabeto é, talvez, a
melhor maneira de apresentá-lo para as crianças.

4. Conhecer as letras
As letras são unidades do alfabeto que representam os sons vocálicos ou consonantais que constituem as
palavras. Variam na forma gráfica e no valor funcional. As variações gráficas seguem padrões estéticos, mas são
também controladas pelo valor funcional que as letras têm.
É importante aprender a distinguir as letras entre si e com relação a outros sinais e marcas da escrita. Saber
dizer que letras aparecem em seqüência numa palavra é mais fácil com alguns tipos de letras (por exemplo,
letras de fôrma) do que com outros (escrita cursiva). Saber os nomes das letras é importante para poder
conversar a respeito de quais rabiscos são letras e quais, não.

5. Conhecer a categorização gráfica das letras


As letras podem ter muitas formas gráficas, gerando diferentes alfabetos, como podemos ver na história dos
sistemas de escrita. Apesar da diferença gráfica entre
essas formas, uma mesma letra permanece a mesma porque exerce a mesma função no sistema de escrita, ou
seja, é usada exatamente da maneira exigida pela ortografia das palavras.
<121>
As letras são categorias abstratas que desempenham uma determinada função no sistema, que é preencher
um determinado lugar na escrita das palavras. Assim, no caso da palavra CASA, de acordo com a ortografia da
língua portuguesa, é escrita com as seguintes letras:
1ª letra: letra cê; 2ª letra: letra a; 3ª letra: letra esse; 4ª letra: letra a, novamente. A forma gráfica pode variar
até os limites das convenções que permitem ao leitor, vendo um rabisco, reconhecer a letra cê, a, esse e a. Ou
seja, é preciso saber a categorização das letras, quer no seu aspecto gráfico (equivalência das letras nos
diferentes alfabetos), quer no seu aspecto funcional (quais letras devem ser usadas para escrever determinada
palavra e em que ordem).

6. Conhecer a categorização funcional das letras


Apesar de variarem graficamente, as letras — como unidades abstratas do alfabeto — têm valores funcionais
fixados pela história das letras, pelo processo de adaptação a uma determinada língua e, principalmente, pela
ortografia das palavras. Portanto, não se pode escrever qualquer letra em qualquer posição numa palavra. Se
as letras não tivessem esses valores, poderíamos, por exemplo, escrever CASA com as letras APXP (onde A C, P
= A, X = S), ou mesmo MRIT, desde que houvesse uma convenção que permitisse isso.
Além disso, seguindo as possibilidades geradas pela ortografia, a palavra pronunciada “casa”, em princípio,
poderia ser escrita das seguintes formas (apesar de apenas a primeira forma ter sido escolhida pela ortografia):
CAZA
QAZA
KAZA
CASA
QASA
KASA
CAG
CAXA
QAXA
KAXA

Nota
O desenho das letras está muito diferente dos modelos tradicionais, mas podemos lê-la porque distinguimos
“letras” nesse rabisco, e, para tanto, nos servimos dos conhecimentos ortográficos da palavra CASA, ajudados
pelo contexto em que aparece essa escrita.

A alfabetização depende crucialmente do conhecimento da categorização gráfica e funcional. Aí se localiza


um divisor de águas: quem consegue entender isso, pula a barreira do analfabetismo e aprende a ler; quem
não consegue, fica tentando em vão outras maneiras de aprender. Grande parte do trabalho de alfabetização
deverá voltar-se, portanto, para o estudo desses dois aspectos.
<122>

7. Conhecer a ortografia
A ortografia é mais importante do que a simples idéia de um alfabeto no nosso sistema de escrita, porque ela
controla a categorização gráfica e funcional, muito mais do que o princípio alfabético.

A dificuldade de ler começa com o problema da identificação das letras. No início da alfabetização, uma
criança tem tantas dificuldades em reconhecer as letras em uma escrita cursiva quanto um adulto experiente
em ler “a letra do outro” como no nome do remetente de uma carta.

CAGLIARI, 1986b e 1994b.


Saber que a ortografia congelou o modo de escrever as palavras ajuda muito os alunos a não tentar fazer do
alfabeto um sistema de transcrição fonética e a perceber que a fala segue as variações dialetais, neutralizadas
na escrita pela ortografia.
Conhecer a natureza, a função e os usos da ortografia é importante ainda para entender as relações entre
letras e sons e entre fala e escrita. A ortografia comanda a função das letras no sistema de escrita,
estabelecendo a ordem dos caracteres nas palavras e o valor fonético de cada um deles, de acordo com a
linguagem oral (dialetos de todos os usuários). Além disso, estabelece como a linguagem oral deve ser
segmentada para formar as unidades da escrita, que chamamos de palavras.
Por outro lado, a ortografia fez com que a escrita tivesse como função permitir a leitura, ou seja, permitir
que os usuários de diferentes dialetos pudessem
<123>
reconhecer uma determinada palavra e, assim, entender o que está escrito. Uma vez identificada a palavra,
através do estudo dos sons e dos significados, o usuário está livre para dizer o que está escrito, usando seu
dialeto ou outro qualquer, porque as marcas dialetais ficaram neutralizadas pela ortografia na escrita.
Dentro desse quadro constatamos que é mais fácil partir da escrita ortográfica para a decifração da
linguagem, atribuindo valores fonéticos às letras, do que analisar a fala e chegar à forma ortográfica que a
palavra tem. Em outras palavras, as relações entre letras e sons são mais simples e fáceis do que as entre sons
e letras. Ou ainda, é mais fácil decifrar e ler do que escrever. Juntando os segmentos da fala de todos os
dialetos e as letras, segundo o estabelecido pela ortografia das palavras, temos o quadro completo das
relações entre letras e sons.
Tem sido dada pouca importância ao estudo da ortografia, quer nos sistemas de escrita quer nas atividades
escolares. A única coisa que alguns professores sabem fazer é corrigir erros de grafia. O importante, contudo,
está em compreender bem como é a ortografia e como ela atua na linguagem escrita e na leitura. Desse
conhecimento, como vimos, dependem muitas noções básicas, necessárias e indispensáveis para que uma
pessoa possa ler.

8. Conhecer o princípio acrofônico


O princípio acrofônico existe desde a formação do primeiro alfabeto. O nome das letras traz, em seu início, o
som mais característico que a letra representa no sistema de escrita. Assim, no nome “bê”, da letra B,
encontramos o som “b”, que é o som mais comum que essa letra assume. E isso acontece com praticamente
todas as letras.
O princípio acrofônico na verdade é um conjunto de regras que usamos para decifrar os valores sonoros das
letras. Num primeiro momento, atribuímos a cada letra o som que é dado pelo seu nome. Depois, somamos os
sons para descobrir que palavra está escrita. Nesse momento, são feitos os arranjos necessários a respeito dos
valores sonoros das letras em função da história das palavras, da ortografia e do dialeto que o leitor conhece.
Alguns professores acreditavam que as cartilhas tinham algo de especial e inexplicável, que fazia os alunos
aprenderem. Esse algo especial encontrava-se na
<124>
prática escolar que aplicava o princípio acrofônico de uma forma ou de outra para ensinar as crianças a ler. Na
verdade, o princípio acrofônico é uma das ferramentas mais importantes que o leitor tem para realizar sua
tarefa de decifração e leitura.

9. Conhecer os nomes das letras


Os nomes das letras são: a, bê, cê, cê-cedilha, dê, é, efe, gê, agá, i, jota, cá, ele, eme, ene, ô, pê, quê, erre,
esse, tê, u, vê, dáblio, xis, ípsilon, zê. Notar que o nome da letra H não se escreve com H, o nome da letra K é
com C (porque não se escrevem palavras comuns com K na nossa língua), no nome da letra W não aparece o
som correspondente, nem no nome da letra Y. Isso mostra que no nosso sistema o princípio acrofônico não
está mais presente em todas as letras. Mas isso acontece principalmente com letras de pouco uso, como K, W e
Y; a letra H é exceção.
Em Portugal, em vez de “dáblio” diz-se “duplo vê”. Em inglês o nome significa “duplo u”. Alguns dialetos (por
exemplo, do Nordeste) têm outros nomes para algumas letras, para facilitar o uso do princípio acrofônico. Eles
dizem, por exemplo, fê, lê, mê, nê, rê. Muitos professores de alfabetização adotam os dois nomes para as
letras, e isso facilita o trabalho.

10. Conhecer as relações entre letras e sons (princípios de leitura)


Para saber que som uma letra tem, é preciso relacioná-la com seu nome (som básico) e em seguida estudar
o contexto em que ocorre (letras que vêm antes e depois), para saber se existe alguma regra especial que
modifica o som básico em função do contexto - por exemplo, S entre duas vogais tem o som de “zê”; C diante
de A, O, U tem o som de “ka” e não de “cê”, etc. Por outro lado, é preciso levar em conta o dialeto do leitor.
Por exemplo, para alguns falantes, a letra T tem os sons de “tche” e “tê”, mas para outros tem apenas o som de
“tê”. Alguns falantes dizem “catano” em vez de “catando” e, para esses, a letra D não tem som, nesses
contextos verbais.
As considerações acima mostram que existem regras que controlam os valores fonéticos que as letras podem
ter numa língua. Conhecer essas relações é indispensável para decifrar e ler. Essas regras podem transformar-
se em exercícios em sala de aula. Os alunos adoram
<125>
descobrir as regras a partir de um conjunto de dados que lhes é apresentado. Os professores devem
aproveitar esse interesse — para os alunos, um desafio ou jogo — e deixar que eles construam, a partir da
análise dos dados, o conhecimento de como o sistema de escrita funciona e como se faz para ler.

11. Conhecer as relações entre sons e letras (princípios de escrita)


Como vimos anteriormente, se alguém quisesse escrever “kaza”, teria diante de si muitas alternativas, mas
deveria acabar escolhendo apenas a forma estabelecida pela ortografia.
Para quem toma por base a ortografia para chegar à fala de acordo com a norma culta ou com a pronúncia
de seu dialeto, o caminho partindo das letras para chegar aos sons é relativamente fácil. Por exemplo, o aluno
pode ver escrito DENTRO e ler “drentu”, aplicando seus conhecimentos básicos das relações entre letras e
sons, e depois adaptar o resultado final à pronúncia do seu dialeto. Ao ler a palavra XA, dará à letra X o som de
CH, porque de acordo com as normas da nossa língua em início de palavra todo X apresenta apenas o som de
CH. Por outro lado, partindo da fala (que é sempre dialetal) para a escrita, ou seja, indo dos sons para as letras,
o caminho é outro. Não basta, por exemplo, saber que X no início de palavras representa o som de CH, uma vez
que esse som pode ser representado também por CH. Ao ouvir e tentar escrever “chá” ou “cheque”, o aluno
deverá decidir se essas pronúncias serão representadas por X ou por
CH: XÁ, XEQUE/CHA, CHEQUE. Quando se diz “andano” e “drentu”, dificilmente se descobre a forma
ortográfica dessas palavras: ANDANDO e DENTRO. Mas, no caminho inverso, quando se conhece a norma
padrão é mais fácil deduzir que a forma ANDANDO é equivalente a “andano” e DENTRO, a “drentu”.

12. Conhecer a ordem das letras na escrita


Para ler, é preciso ainda saber em que direção a escrita vai. Quando dizemos que escrevemos da esquerda
para a direita, significa que a seqüência das letras nas palavras obedece a essa ordem. Algumas crianças, muito
preocupadas com o traçado das letras, interpretam mal essa afirmação sobre a direção da escrita e acabam
escrevendo (sobretudo as letras arredondadas) de forma espelhada, uma vez que o movimento
<126>
da mão, nesse modo de escrever, vai da esquerda para a direita e, na forma correta, da direita para a
esquerda:
Podemos escrever seguindo outras direções. O importante é permitir uma leitura clara, o que se obtém
através da identificação da linha de base sobre a qual as letras das palavras se apóiam.

13. Conhecer a linearidade da fala e da escrita


A questão anterior está ligada à característica linear da fala e da escrita. Quando falamos, pronunciamos os
elementos segmentais (vogais e consoantes) e os elementos prosódicos (entoação, ritmo, volume, velocidade,
duração e ainda a nasalidade, o acento, a qualidade de voz, etc.) todos ao mesmo tempo e variando a cada
momento. Mas, na escrita, fazemos algumas separações.
Representamos as vogais e as consoantes sem outras especificações. Depois, colocamos alguns sinais de
pontuação no final das frases, embora se deva modular a frase de maneira apropriada desde o início.
Escrevemos uma vogal e depois a modificamos colocando um til ou um acento. As pausas da fala nem sempre
têm correspondência fixa com as pausas ou sinais de pausa vírgulas, pontos) da escrita. A segmentação de
palavras na escrita, indicada pelo espaço em branco, corresponde menos ainda a pausas ou segmentações na
fala. Isso tudo mostra que a fala e a escrita têm muitas diferenças e que não há uma correspondência direta
entre o que se escreve e o que a escrita representa da fala. A escrita simplesmente dá indicações que
permitem a leitura. Cabe ao leitor, como conhecedor da língua, tirar do texto as informações necessárias para
<127>
reconstruir a linguagem oral na leitura, como se o que ele fosse ler fosse o que ele estivesse dizendo por
iniciativa pessoal.

14. Reconhecer uma palavra


Definir uma palavra na linguagem oral é uma tarefa difícil, mas é fácil na escrita. De acordo com as normas
ortográficas, todo conjunto de letras separado por um espaço em branco constitui uma palavra. O critério
semântico ajuda muito, mas não resolve todas as dúvidas.
No esforço para ler, a decifração começa a fazer sentido no momento em que o leitor descobre uma palavra.
Para chegar lá, o fato de a escrita separar as palavras por espaços em branco ajuda enormemente.
O professor deve mostrar ao aluno que uma primeira tarefa é começar a identificar as segmentações das
palavras. Para tal, deve ater-se apenas à escrita.

15. Nem tudo o que se escreve são letras


Além de letras, a escrita usa sinais de pontuação, acentos e outras marcas, que é preciso conhecer. A letra A
com um til representa um som diferente, ou seja, um A nasalizado. Porém, nem todo A nasalizado será escrito
com A mais til. A escrita usa de acentos para marcar variações da qualidade das vogais, mostrando se são
abertas ou fechadas. Os sinais de pontuação são diacríticos que servem para orientar a entoação e a prosódia,
embora façam isso de maneira muito precária. As vírgulas servem, às vezes, para indicar pausas ou elementos
parentéticos. O ponto final representa uma pausa longa possível, mas nem sempre necessária. Outras marcas
como ponto de interrogação, exclamação, reticências, etc. representam também elementos prosódicos,
sobretudo relacionados com a entoação.
O desconhecimento dessas marcas às vezes confunde o leitor iniciante, que julga tratar-se de uma letra que
ele desconhece, o que bloqueia o processo de decifração.

16. Nem tudo que aparece na fala tem representação gráfica na escrita
Como o leitor raciocina não só como alguém que está tentando desvendar os segredos da escrita, mas
também como um falante que pode refletir sobre sua
<128>
fala, é preciso controlar as expectativas com relação ao que se vai ou não encontrar na escrita, comparada
com a fala. No fundo, essa é uma questão complexa.
Nem todas as características sonoras da linguagem oral têm representação gráfica no sistema de escrita. No
sistema alfabético, as letras representam apenas os segmentos fonéticos, isto é, aquelas unidades chamadas
vogais e consoantes, que são definidas como unidades constitutivas das sílabas das palavras. Na prática, as
vogais são mais facilmente reconhecíveis através do prolongamento das sílabas: caaaa-vaaaa-loooo, aaaan tiiii-
gooo; e as consoantes pela observação dos movimentos articulatórios da boca: ca-ca-ca-ca va-va-va-va lo lo-lo-
lo, an-an-an-an ti-ti-ti-ti go-go-go-go.
Como vimos, elementos prosódicos também têm pouca ou nenhuma representação na escrita. Esses
elementos ficaram de fora porque o sistema de escrita segmentou a fala em palavras sem levar em conta
unidades maiores. Essas unidades formadas da soma de palavras, como o grupo tonal por exemplo, precisam
ser recuperadas através dos conhecimentos que o leitor tem da língua. Dado que nossos leitores são falantes
do português, saberão concatenar as palavras devidamente, como se o texto fosse falado por iniciativa pessoal.
Apesar dessa limitação do sistema de escrita, na alfabetização basta o professor falar, por exemplo, que o
aluno precisa ler com ritmo e entoação e explicar o que isso significa.

Nota
Neste livro optamos pelo uso das letras do alfabeto com seu valor sonoro baseado no princípio aerofônico e
não na forma de transcrição fonética usual dos lingüistas (alfabeto próprio e escrita entre colchetes) Assim o
som da fricativa alveolar surda será representado aqui por “çê” e não por (s). Essa opção foi feita para mostrar
ao professor que ele também pode fazer boas transcrições fonéticas, usando apenas os conhecimentos do
alfabeto e uma boa observação de como as pessoas falam. Por outro lado, mostra ao professor como a escrita
parece estranha quando se sai da ortografia, revelando um pouco da sensação que o aluno tem ao se
alfabetizar.

17. O alfabeto não é usado para fazer transcrições fonéticas


CAGLIARI, 1992c. >

Se deixarmos de lado a ortografia, podemos usar nossos conhecimentos do sistema de escrita alfabético para
fazer transcrições fonéticas. Como os valores das letras foram estabelecidos em função da ortografia da língua
e da fala dos dialetos, e não a partir das possibilidades articulatórias do homem, tendo em vista todas as
línguas e dialetos do mundo, o uso do alfabeto para se fazer transcrição fonética é precário — há melhores
sistemas para isso. Não obstante, esse uso especial do alfabeto apresenta uma certa eficiência que pode ser
aproveitada pela escola. Dessa forma, pode-se transcrever foneticamente a variação lingüística que
encontramos nos dialetos. Pode-se transcrever, por exemplo, as maneiras diferentes que as crianças têm de
pronunciar as palavras e registrá-las sob a forma escrita. Esse tipo de prática ajuda
<129>

da enormemente a contrastar a escrita que respeita a ortografia com a transcrição fonética da fala, com a qual
os alunos começam a escrever.
Alguns alunos acabam pensando que o alfabeto serve apenas para escrever os sons à moda das transcrições
fonéticas, e isso causa algumas dificuldades não só na escrita, como também no processo de aprendiza gem da
leitura. Mostrar as duas possibilidades de uso do alfabeto é indispensável para os alunos poderem trabalhar
tranqüilamente.
A COMPETÊNCIA TÉCNICA DO PROFESSOR
Saber decifrar a escrita é o segredo da alfabetização. E muito importante que o professor tenha isso sempre
em mente. Ele deverá fazer muitas coisas como professor e principalmente como educador. Mas ensinar a ler é
sua tarefa principal. Para tanto, é preciso ter, em primeiro lugar, os conhecimentos necessários para que
alguém possa ler o que vê diante de si. Os < CAGLIARJ, 1992c e 1 99 6h. cursos de formação de professor têm
se preocupado muito com outros aspectos da escola, dando muitas vezes um valor indevido aos aspectos
pedagógicos, metodológicos e psicológicos. Como educador, o professor precisa ter uma formação geral, e
esses conhe cimentos são básicos. Como professor alfabetizador, precisa ter conhecimentos técnicos sólidos e
completos. Para ensinar língua portuguesa, é preciso saber o mais possível sobre a linguagem em geral e sobre
a língua portuguesa em particular. Para ensinar alguém a ler e a escrever, é preciso conhecer profundamente o
funcionamento da escrita e da decifração e corno a escrita e a fala se relacionam.
<130>
Um professor bem-preparado, com competência técnica, sabe exatamente o que fazer em qualquer situação
de seu trabalho. Sabe o que o espera pela frente, quais os problemas que costuma enfrentar e como resolvê-
los. Se acontecer algum imprevisto, saberá como se comportar. Esse tipo de discurso encontra-se em qualquer
livro de pedagogia: é o óbvio. A aplicação dessas palavras à vida das pessoas, porém, é uma questão não tão
óbvia, e menos fácil e comum ainda entre os professores.
Se se perguntar a um professor alfabetizador tradicional como ele faz para ler uma simples palavra como
POTE, ele responde que a gente verifica quais são os sons das letras e diz “pote”. E se quiser escrever a mesma
palavra, basta observar que sons a palavra tem, ver as letras correspondentes a esses sons e escrever: POTE. E
como alguém sabe quais são os sons das letras? A sua resposta será que se aprende isso com o bá-bé-bi-bó bu.
O conhecimento de como a escrita, a leitura e a fala funcionam está restrito a essas noções. Com apenas esses
conhecimentos, no entanto, ninguém é capaz de ensinar uma pessoa a ler e a escrever como se deve. Nessas
circunstâncias, um aluno precisará descobrir, por conta própria — porque é falante da língua portuguesa, capaz
de refletir sobre o funciona mento de sua fala e da fala alheia e de decifrar a escrita —, muitas informações,
sem as quais não poderá tornar-se um leitor.
A AUTONOMIA DO PROFESSOR
A explanação acima é oportuna para que o professor reflita sobre seu trabalho, vendo as questões não do
ponto de vista metodológico, mas da sua competência. Ele não precisa de “pacotes” educacionais. Os métodos
e técnicas não passam de ferramentas que ajudam em alguns casos e atrapalham em outros. Um professor
competente saberá avaliar quais livros didáticos são úteis e interessantes e se trazem erros e omissões de
questões importantes ao ensino. O professor precisa libertar-se das pessoas que apresentam soluções
miraculosas num livro ou método. Mas, para isso, para que esta autonomia possa se sustentar, deverá ser
realmente compe tente e um especialista em sua área.
<131>
Um professor que pergunta numa palestra o que ele deve fazer para ensinar a um aluno como ler sem
soletrar, como ensinar os grupos consonantais, como ele pode explicar ao aluno o emprego das consoantes
nasais em final de sílaba, etc, mostra quão despreparado está para o desempenho de seu trabalho. Como um
professor como esse pode alfabetizar alguém? Se nem ele sabe resolver essas questões, de que forma seus
alunos poderão saber?
Por outro lado, um professor que passou vários anos em sala de aula tem uma experiência de vida muito
rica, que pode e deve ser aproveitada, para tirar daí o que a escola de formação não lhe deu. Existe uma idéia
muito preconceituosa em nossa sociedade com relação aos autodidatas. No entanto, essa talvez seja a maneira
mais usual e eficiente de corrigir os defeitos de um sistema educacional falho.
Aos poucos, o professor pode ir lendo livros de lingüística geral ou de áreas particulares (fonologia,
sociolingüística, semântica, etc.) e verificando onde esses conhecimentos entram na sua prática de sala de aula
e quais as conseqüências que eles trazem. Deve estudar os sistemas de escrita e decidir como levar esses
conhecimentos para suas aulas. Deve, sobretudo, refletir como usuário da língua portuguesa a respeito dos
mecanismos da fala, escrita e leitura e quais os seus usos. Deve procurar explicitar, através de pequenas regras,
o que faz quando ouve, fala e escreve. Se o professor sabe ler, pode refletir sobre todos os conhecimentos
necessários para realizar essa tarefa e traduzir essa reflexão em regras, que serão passadas oportunamente
para os alunos. Deve refletir sobre as próprias dificuldades e tentar descobrir formas de superá-las, porque
assim saberá voltar-se às dificuldades particulares dos alunos e procurar urna solução para elas.
Muitas das coisas que se ensina neste livro poderiam perfeitamente sair de um trabalho pessoal de qualquer
professor alfabetizador, já que na vida profissional lidamos com todas essas questões. Simplesmente não
estamos acostumados a refletir sobre elas e menos ainda a explicitá-las na forma de um estudo. Mas é
justamente essa explicitação que traz à consciência do professor sua competência.
<132>
Procedimentos para o estudo das letras
Como já dissemos várias vezes, aprender a ler é o segredo da alfabetização. Para alguém conseguir ler algo,
precisa saber como esse sistema de escrita funciona, isto é, precisa saber decifrar a escrita. De acor do com o
sistema de escrita, o processo de decifração ocorre de uma determinada maneira. Para decifrar uma escrita
feita com letras de um alfabeto, a questão mais importante é saber quais sons estão associados a quais letras.
Por essa razão, apresenta-se, logo adiante, a título de sugestão, o modo como um professor pode trabalhar
esse aspecto na alfabetização. Antes disso, porém, é bom lembrar alguns fatos que servem de guia para que o
processo de alfabetização seja mais eficiente.
1. Fornecer as explicações básicas ao aluno
Do ponto de vista funcional, a escrita escolar que usamos baseia-se num alfabeto de 26 letras (incluindo o
“ç”), em alguns diacríticos, como os acentos e o til, e em marcas, como os sinais de pontuação. Cada letra
representa um valor abstrato, que pode ter inúmeras formas gráficas. Esse valor é dado pela expectativa de
ocorrência em palavras, de acordo com as normas ortográficas. Por exemplo, “E” representa o mesmo valor de
“e”, e, embora graficamente esses dois caracteres sejam muito diferentes, é possível escrever a mesma
palavra, variando esses caracteres: “SELO” e “selo”. A escrita representa sons da fala. O próprio nome das
letras traz em si um dos sons (em geral o principal) que a letra representa. Ler não é o mesmo que escrever.
Quando se lê, o que vale é a decifração que conduz ao reconhecimento da palavra, indo da análise de letra por
letra e de combinações de letras, até compor o resultado final. Feita a decifração, o contexto em que aparece
escrita a palavra em geral é suficiente para mostrar para o aluno que ele está no caminho certo. Quando se
trata da palavra isolada, é preciso verificar as alternativas possíveis, que o aluno pode checar, levando em
conta os conhecimentos que tem da linguagem oral, como falante nativo. Depois, ele vai aprender que pode
encontrar escrita uma palavra que não conhece. Precisará, então, consultar um dicionário.
Entretanto, o procedimento é diferente quando se escreve. Em primeiro lugar, observam-se os sons que a
palavra apresenta na linguagem oral. Em seguida, faz-se uma hipótese a respeito de quais letras podem ser
usadas para transcrever os sons detectados. Finalmente, leva-se em conta a ortografia. Se o aluno já souber
como é a forma ortográfica da palavra, escreve com facilidade. Se não
<134>
souber ou tiver dúvidas, deverá resolvê-las antes, perguntando ou procurando no dicionário.
É sempre bom lembrar que não é preciso ter uma ilustração para se escrever ou ler: um texto basta, ou seja,
algo falado (quando se vai escrever) ou algo que se pode falar (quando se vai ler). É interessante recordar
também que a escrita não representa a fala de um dialeto em particular. Qualquer falante, de qualquer dialeto,
pode ler decifrando as letras e compondo as palavras segundo a fala de seu dialeto. Ao escrever, pensa nos
sons das palavras em seu dialeto, procura a forma padroniza da pela ortografia e escreve.
É preciso estar atento para o fato de que se pode fazer “leitura incidental” e até escrever palavras com
letras, como se fossem glifos, ou seja, caracteres ideográficos. Como, porém, o sistema também é fonográfico e
usa letras, o segredo da escrita das palavras é a combinação de letras. Isso simplifica enormemente a tarefa de
escrever uma palavra, seja ela familiar ou não. O mesmo vale para a leitura: pode-se ler uma palavra como se
fosse um ideograma, mas essa não é uma leitura produtiva. Quem sabe combinar os valores fonéticos das
letras para deci frar as palavras escritas tem muito mais vantagens e facilidades para ler. E é assim que os
alunos devem aprender.
Essas noções básicas devem ser discutidas com os alunos desde o início dos trabalhos e sempre que o
professor tiver oportunidade. Se perceber que algum aluno está fazendo confusão com alguma dessas idéias,
precisará esclarecê-lo. O professor precisa explicar cada uma dessas noções, e não ficar camuflando com
histórias ou exercícios que indiretamente propiciem o aluno a chegar às conclusões desejadas. É preciso ir
direto ao assunto, sem rodeios.
2. Explicar o que é uma letra
O aluno deve saber ainda que as letras são dispostas em linhas (em geral horizontais e mais raramente de
cima para baixo), e que uma letra sucede a outra, da esquerda para a direita, linha por linha. As letras têm
tamanhos e formas definidas nos alfabetos. Letras maiúscula e minúscula indicam alfabetos diferentes
(conjuntos diferentes de caracteres), e não letras em tamanho grande ou pequeno. Toda letra tem uma forma
básica, que serve para distinguir um caractere de outro, mas pode variar e ter “enfeites” sem interferir nas suas
características distintivas, como as serifas das letras de fôrma maiúsculas. Corno as letras são dispostas no
espaço,
<135>
em linhas, apoiadas na linha-base horizontal, e a seqüência é da esquerda para a direita, elas têm uma direção
fixada por esse espaço, de tal modo que não se pode virá-la de cabeça para baixo, da direita para a esquerda. A
letra deverá estar disposta na escrita das palavras, tal qual aparece no alfabeto. Aliás, a disposição das letras no
próprio alfabeto já mostra esse fato. As letras são escritas separadamente, no alfabeto de letras de fôrma, mas
são interligadas na escrita cursiva.
Com relação aos usos da escrita, o aluno deve saber onde se pode encontrar exemplos de escrita, através do
reconhecimento do que é letra e do que não é. Letras podem vir acompanhadas de figuras ou rabiscos: é
preciso saber distinguir um de outro. É necessário saber por onde começar a ler ou a escrever, e onde
terminar, o que são palavras isoladas e o que é um texto. As vezes, juntamente com o aspecto gráfico e
funcional de urna letra, o autor tira proveito artístico ou qual quer outro efeito, para “enriquecer” a escrita
com mais idéias. É preciso distinguir um uso lingüístico da escrita de outros usos possíveis.
Como vivemos num mundo onde coexistem muitos sistemas de escrita, o aluno precisa saber isolar a escrita
alfabética, composta de letras e seguindo uma ortografia, de outras formas de escrita, tais como numérica,
simb&lica, as que utilizam sinais e marcas. É preciso, ainda, distinguir uma escrita linear de certas formas
“abrevia das” ou “compostas”, em que as letras são simples pretexto para urna escrita do tipo ideográfica e
não-linear.
Enfim, antes de se ensinar as relações entre letras e sons, o aluno deve saber o que é uma letra e corno
reconhecê-la quando a encontrar pela frente. Reconhecer o material da escrita e suas características básicas é
im prescindível para começar um trabalho de decifração, descobrindo quais sons as letras apresentam em
deter minada palavra. Aprender a ler significa aprender todas essas coisas. Alguns alunos se perdem em
detalhes (segundo o professor), mas sem superar essas “pequenas” dificuldades, tudo o mais fica
comprometido. E se o aluno não for capaz de decifrar uma palavra, ele não saberá ler e não poderá ser
considerado alfabetizado, mesmo que consiga dizer coisas que vê escritas, ou reproduzir graficamente o
traçado de palavras.
3. Explicar como segmentar a fala em palavras
Uma palavra separa-se de outra na escrita por um espaço em branco. Para saber como segmentar uma
<136>
palavra, observando a linguagem oral, há duas estratégias importantes: a primeira, é separar por significado —
cada significado corresponde a uma palavra possível; a segunda, é tentar colocar outra palavra no local que se
quer segmentar — se isso for viável, a segmentação é possível. Tudo isso é muito mais complicado na prática
do que esse comentário revela. Mas essas idéias representam um primeiro passo para os alunos poderem
segmentar a fala oral em palavras, que deverão escrever, sem muitas dificuldades. A palavra final será sempre
dada pela ortografia. E, nesse caso, quem sabe sabe; quem não sabe tem de perguntar. Por exemplo, embora
represente uma idéia só, é possível separar em palavras escritas a expressão “assistir à televisão”, porque
podemos reconhecer um significado em “assistir” e outro em “televisão”, o que nos permite variar parte da
expressão: “assistir ao jogo”, “assistir ao filme”, “ver televisão” “consertar televisão”, etc. Pode-se colocar uma
palavra intercalada entre uma e outra: “assistir sempre à televisão”. Porém, no caso de “macarrão”, se houver
segmentação, pode-se ter “maca”, mas o que sobrou fica sem sentido: “-rrão”; tampouco pode-se intercalar
algo entre uma palavra e outra: “maca-gostoso-rrão”... Compare as formas “casa pequena” e “casinha” e faça
os testes.
Os alunos não devem se preocupar em cortar palavras no final de linha, porque esse é um procedimento
encontrado em livros, mas não na escrita comum do dia-a-dia.

Nota
E aconselhável pendurar uma faixa sobre a lousa em que apareçam primeiro as letras de fôrma maiúsculas e
depois as letras de fôrma minúsculas e minúsculas lado a lado.

4. Explicar como descobrir as regras de decifração


Deve haver um cartaz bem grande (ou uma faixa) com as letras do alfabeto em sala de aula, para que os
alunos possam consultar sempre que desejarem. Quando o professor for ensinar as relações entre letras e
sons, começará pelo nome das letras. Em geral, a classe como um todo conhece todas as letras do alfabeto,
porque as crianças costumam ir aprendendo, mesmo antes de entrar na escola, pelo menos as letras iniciais do
próprio nome. Decorar os nomes das letras é importante, mas o professor não irá exigir isso, através de
exercícios de memória, nos quais os alunos recitam o alfabeto. Isso se aprende e se decora com o próprio
estudo das letras.
O professor poderá pedir para os alunos ditarem palavras para verem como são escritas e para proceder à
análise de uma ou de outra letra do interesse deles.
<137>
Poderá, se quiser, proceder a uma análise geral da palavra, dizendo o nome de cada uma das letras que a
compõem. Seguindo a ordem da esquerda para a direita (ordem correta), pode-se ler a palavra corretamente,
mas se a leitura for feita da direita para a esquerda, tem-se um amontoado de sons sem sentido (raramente dá
certo ler da direita para a esquerda. Entretanto, pode-se ter palavras diferentes, ou até mesmo a mesma
palavra, como AMOR e ROMA; ASA, etc.).
Descobrir regras de decifração (relação letra/som) e de escrita (relação som/letra) é uma estratégia para se
alfabetizar com rapidez e segurança, deixando de lado o método das cartilhas, o famoso bá-bé-bi-bó-bu. Nessa
atividade, o professor pode programar aulas e material, fazendo o levantamento dos sons que as letras têm.
Por outro lado, pode fazer um levantamento das letras que são usadas para representar um mesmo som.
Escrever listas de palavras para mostrar as funções das letras será um procedimento cotidiano. Os exemplos
das listas servirão para uma discussão reflexiva sobre as relações entre letras e sons e demais fatos lingüísticos,
como a variação dialetal e a ortografia. Como resumo e conclusão das reflexões, o professor ajudará os alunos
a formularem regras que expliquem os fatos considerados.
As cartilhas jamais pensaram nessas coisas, porque nunca se preocuparam em ensinar como decifrar a
escrita, deixando que o aluno descobrisse isso por conta própria, de tanto escrever palavras com “pedacinhos”.
É incrível que alguns professores alfabetizadores nunca tenham pensado nesses fatos e, quando se pede a eles
para organizar um material nesse sentido, sentem-se embaraçados e confusos.

JUNTANDO E GENERALIZANDO
Um estudo detalhado de letra por letra é apresentado no Apêndice no final deste livro. Recomenda-se que o
professor consulte-o sempre que necessário. Levando em consideração esse estudo em anexo, pode-se ver a
questão das relações entre letras e sons por outro ângulo. Como algumas letras têm um comportamento muito
semelhante entre si (paralelismo), ou se comportam de uma maneira semelhante sempre que se encontram
em determinadas circunstâncias, isso permite
<138>
juntar o que for igual e generalizar os casos comuns a mais de uma letra. Desse modo, em vez de uma série de
regras parecidas, para letras diferentes, pode-se ter a mesma regra para todos os casos que se enquadram
dentro das regras propostas. Refletir sobre tais questões é uma maneira um pouco mais sofisticada de conduzir
a análise dos conhecimentos necessários para que alguém consiga ler e escrever. Uma incursão por esse
território será feita a seguir.
Em primeiro lugar, é preciso distinguir fatos de leitura (decifração) de fatos de escrita (produção de escrita).
Um fato pode ser fácil para o aluno quando ele tem de decifrar e ler, mas pode ser muito complicado quando,
observando esse fato na fala, ele tem de decidir como escrever. As facilidades e as dificuldades de ler não são
as mesmas quando se trata de escrever. Esse é um ponto que as cartilhas nunca levaram em conta porque
tratam apenas da escrita, mesmo quando estão pensando na leitura.
Além de distinguir fatos da leitura de fatos da escrita, procuraremos avaliar o que é mais “fácil” e o que é
mais “difícil”, partindo da complexidade que as letras têm nas suas relações com os sons da fala, e vice-versa. A
própria natureza das letras, suas funções e empregos serão a medida usada para definir se uma letra é mais
difícil ou mais fácil do que outra, na decifração ou na escrita. Essa é uma ordem de análise científica, não uma
ordem pedagógica. Para um aluno principiante, escrever ou ler qualquer coisa é sempre muito difícil. Somente
quem conhece o funcionamento de todo o sistema pode hierarquizar o que, para si, é mais fácil ou não. O mito
de que a letra x é a mais difícil deve-se ao fato de as pessoas já alfabetizadas encontrarem dificuldades
ortográficas quando estão diante dessa letra. Para o principiante, ler ou escrever CASA ou EXTRA pode
apresentar o mesmo grau de dificuldade e, nessas circunstâncias, é difícil hierarquizar qualquer tópico com
segurança.

OQUE É MAIS FÁCIL DE DECIFRAR


Antes de mais nada, é bom relembrar o que se disse
acima a respeito das noções de “fácil” e “difícil” aplicadas ao estudo das letras. Trata-se de uma dificuldade
<139>
medida de acordo com a complexidade dos fatos de nossos sistemas de escrita (decifração e ortografia) e de
fala (variação lingüística). Essas dificuldades aparecem cada vez mais à medida que o aluno progride nos
estudos. No início, tudo é igualmente muito difícil. Entretanto, sabendo das dificuldades futuras, o professor
poderá entender melhor o percurso que os alunos farão.
Quando se fala em decifração, subentende-se leitura. Vamos separar os comentários a respeito das letras
que representam vogais (A, E, I, O, U) das demais que representam consoantes.
As vogais mais fáceis de decifrar são o I e o U. Sempre que se encontrar uma delas lê-se “i” ou “u”.
Igualmente fáceis são essas mesmas vogais quando são ou podem ser nasalizadas. Exemplos: JUNTO, TINTA.
Em seguida, tratemos da vogal oral A. Essa vogal muda de qualidade vocálica quando se junta a ela a
nasalização (note a diferença entre LÁ e LÃ). A letra A, quando nasalizada, pode gerar a formação de ditongos,
juntamente com o M, ou o NH, como em ACHARAM, BANHA. Pode ainda ser nasalizada ou não quando ocorrer
um M ou N ou NH no início da sílaba seguinte, como
em: CAMADA, BANANA, BANHA.
As vogais mais difíceis são o E e o O. Ambas apresentam regras semelhantes (mudando apenas os valores
fonéticos em jogo). A letra E pode ser lida como “é” ou como “é” em sílabas tônicas (o valor fonético “é” ocorre
raramente em sílabas átonas, e somente em palavras derivadas, como CAFEZINHO, ou na pronúncia especial de
certos dialetos do Norte e do Nordeste). Exemplos: DELE, DELA, BELO, BELEZA. Em sílabas átonas, a letra E
pode, ainda, ser lida com o som de “i”. Veja os exemplos: FERE, “féri”, EMPRESTADO, “imprêstadu”.
A letra O pode ter o som de “ô” ou de “ó” quando ocorre em sílaba tônica (em sílaba átona, o som de “ó”
ocorre somente em palavras derivadas e na pronúncia de certos dialetos, semelhantemente à letra E). Em
sílabas átonas, é comum a letra O ter o som de “u”. Confira os seguintes exemplos: FOCA, FOGO, COMIDA,
COZINHA.
Todas as vogais juntas apresentam regras semelhantes quanto à nasalização, embora somente a vogal A
mude sua qualidade vocálica básica ao se nasalizar. Assim, quando uma vogal se encontra diante de um M ou
de um N, que por sua vez ocorre diante de outra comsoante,
<140>
a vogal precisa ser nasalizada: CAMPO, CANTO, ENTRE, EMBORA, VINDA, LIMPO, ONDA, OMBRO, JUNTO,
TUMBA. Quando a vogal vem diante de uma consoante nasal (M, N, NH), a qual, por sua vez, ocorre diante de
outra vogal, a vogal precedente pode nasalizar-se ou não. Se ocorrer diante de NH pode ditongar-se ou não:
CAMA, CANA, BANHA, PENA, LENHA, LEME, VIME, CINEMA, VINHO, ZONA, COMA, SONHA, UNA, UMA, UNHA.
Em final de palavra, as vogais E e I, quando seguidas de M, podem ditongar-se com “i”, e a consoante nasal
pode ser um “nh” na fala. Por outro lado, as vogais O, U e A, quando seguidas de M, em final de palavra,
podem ditongar-se com “u”, e a consoante nasal pode ser uma velar, como nos seguintes exemplos: VEM, VIM,
ALGUM, BOM, ACHARAM.
Finalmente, toda vogal com til representa um som nasalizado. Porém, na escrita o til só pode ocorrer sobre A e
O, como em: LÃ, MÃE, CIDADÃOS, LEÕES, PÕEM, etc.
Com relação às consoantes que são mais fáceis de
decifrar, podem-se ter três grupos. Primeiro grupo: H e
os dígrafos CH, LH, NH, mais Ç e J. Segundo grupo: P
B, T, D, F e V. Terceiro grupo: L e Z.
Com relação ao primeiro grupo, a letra H só ocorre em início de palavra e aí não tem som algum (é preciso
começar a decifração pela vogal que vem logo depois). Exemplos: HORA, HINO, HÁBITO, HERÓI. Como parte de
um dígrafo, modifica o som da letra que a precede, mas resulta num valor fonético de fácil controle pelo
falante (“chê”, “lhê” e “nhê”). Exemplos: CHINA, PALHA, VENHA. A letra Ç tem sempre o som de “çê”, e a letra J
tem sempre o som de jê”. Exemplos: MAÇÃ, POÇO, JOVEM, AJUDAR.
As letras do segundo grupo representam valores fonéticos fáceis quando ocorrem em início de sílaba. Em
final de sílaba, são pronunciadas com um “i” optativo. Apresentam maior dificuldade quando são a primeira
letra de grupos consonantais terminados em R ou L (ou mais raramente S). Exemplos: POTE, BOLA, TATU,
DADO, FACA, VACA, OBJETO, RITMO, ADVOGADO, TRABALHO, BROTAR, LIVRO, FRANGO, etc.
No terceiro grupo, estão as letras L e Z em início de sílaba. Nesse contexto, a letra L tem sempre o som de
“lê”, e a letra Z tem sempre o som de “zê”. Em final de sílaba, a letra L tem o som de “u”, e a letra Z, de “çê”. A
<141>
letra L apresenta certa dificuldade quando ocorre formando grupos consonantais, ou seja, entre uma
consoante e uma vogal, na mesma sílaba.

O QUE É MAIS DIFÍCIL DE DECIFRAR


Podemos agrupar as maiores dificuldades de decifração das consoantes em seis grupos. Primeiro grupo: letra
C e grupos consonantais SC, XC; segundo grupo:
S; terceiro grupo: G e os dígrafos GU e QU; quarto grupo: R (o dígrafo RR é de fácil leitura); quinto grupo: os
casos de juntura intervocabular envolvendo R, S, Z e M; e sexto grupo: X e os dígrafos XC e XÇ.
Com relação ao primeiro grupo, a letra C tem o valor fonético de “çê” diante de E, I ou de outra consoante,
como no caso dos dígrafos SC, SÇ ou XC. Nos demais casos, tem o som de “kê” (diante de A, O, U ou de outra
consoante). Exemplos: CEBOLA, CIDADE, NASCIMENTO, NASÇA, EXCEÇÃO, CABANA, COR, CRISE, CLARO,
TÉCNICA.

Quanto ao segundo grupo, a letra S tem o som de “çê” no início de palavra, depois de consoante e no
dígrafo SS, como em SAPO, SELVA, PSICOLOGIA, PASSO Entre duas vogais, tem o som de “zê”. Exemplo: MESA.
A letra S não representa som nos dígrafos SC, SÇ e na forma de plural de certas palavras, em certos contextos,
em alguns dialetos (cf. “as casas amarelas foram vendidas”). Em alguns dialetos, a letra S, em final de sílaba,
tem o som de “çê”, mas, em outros, tem o som de “chê”. Nesse caso, se houver uma consoante sonora no
início da sílaba seguinte, no meio da palavra, a letra S pode ter os valores sonoros correspondentes nos
dialetos mencionados acima, ou seja: “zê” e “jê”. Confira os exemplos:
BESTA, COSTA, DESDE, MESMO, SATANÁS, TOMÁS.
Com relação ao terceiro grupo, a letra G é semelhante à letra C: diante de E e de I tem um tipo de som (“jê”)
e, diante de outras letras, tem outro tipo de som (“guê”). Os grupos de letras GU e QU podem ser dígrafos ou
não. Só são dígrafos diante de E e de 1 e nunca diante de outra vogal (A, O e U. No entanto, em algumas
palavras, os grupos GIJ e QU não são dígrafos, uma vez que o U é pronunciado. Somente o falante nativo sabe
se o u é pronunciado ou não numa determinada palavra. Não há regras. Exemplos: GENTE, GIRAFA, GARRAFA,
GULOSO, GOTA, GLÓRIA, GRAÇA, IGNORAR;
<142>
dígrafos: GUERRA, GUIMARÃES, QUENTE, ANIQUILAR, AQUI, AQUELE; não-dígrafos: AGÜENTAR, SAGÜI,
LÍQÜIDO, FREQÜENTE.
O quarto grupo é o formado pela letra R (o RR é de fácil decifração — tem como única dificuldade a variedade
de sons em diferentes dialetos). O R representa o som do tepe (vibrante simples) quando está entre duas
vogais, e representa o som da fricativa velar (ou da vibrante múltipla) quando está em início de palavra.
Acontece que esse segundo valor fonético é típico do RR em posição intervocálica, motivo da confusão que
alguns alunos fazem com as duas formas de escrita. Nos outros contextos, a variação é menos problemática
(final de sílaba, por exemplo). É preciso levar em conta, ainda, o fato de o R em final de verbos não ser
pronunciado em certos dialetos ou em certos registros de fala (fala informal). Em todos os casos, soma-se
ainda a grande variedade de sons foneticamente possíveis nos vários dialetos, sem contar a ocorrência ora de
uma pronúncia vozeada (sonora), ora desvozeada (surda). Exemplos: CARO, CARRO, MURO, MURRO, RATO,
RIO, RUA, BRASIL, POBRE, CRAVO, PORTA, CERTO, MAR, PLANTAR, FERIR.
O quinto grupo refere-se aos casos de juntura intervocabular envolvendo R, S, Z e M. Juntura significa ligar
uma palavra com outra na fala. Quando escrevemos, separamos as palavras com um espaço em branco, mas,
quando falamos, não é isso o que acontece. Não há uma pequena pausa entre uma palavra e outra; pelo
contrário, o que ocorre mais freqüentemente é a ligação de uma palavra com outra como se ambas fossem
uma coisa só. Em português, além disso, costumam ocorrer algumas modificações quando certas palavras se
juntam.
Vamos ver uma série de exemplos, mostrando qual a pronúncia quando duas palavras se juntam:

Palavras isoladas Palavras concatenadas


casa amarela (1) casamarela
está aqui (2) estáqui
fala alto (3) falaálto
está alto (4) estáalto
parte azul (5) parteazul
carro azul (6) carroazul
todo ódio (7) todoódio
está infeliz (8) estáinfeliz
compre ovo (9) compreôvo
<143>

No primeiro exemplo, quando se juntam dois “as”, um deles cai, o mesmo acontecendo com o exemplo
número dois. Porém, nos exemplos 3 e 4, houve o encontro de dois “as” mas nenhum deles caiu. Será que
existe alguma regrinha para esses casos? Vamos ver que tipo de sílaba ocorre nesses contextos. No exemplo 1,
têm-se uma sílaba átona final e uma sílaba átona inicial. No exemplo 2, ocorre uma sílaba tônica final, seguida
de uma sílaba átona inicial. No exemplo 3, tem-se uma sílaba átona final, seguida de uma sílaba tônica inicial.
No exemplo 4, ocorrem duas sílabas tônicas.
Considerando apenas o exemplo 1, não se sabe qual vogal deixou de ser pronunciada. O exemplo 2 é de difícil
análise. Porém, nos exemplos 3 e 4, nota-se que a vogal tônica permanece sempre, e que a vogal átona
mantém-se apenas quando é final da palavra e a seguinte começa com vogal tônica, como no exemplo 3.
Podemos formular agora uma regra: em juntura intervocabular, a segunda vogal cai se for idêntica à primeira
em sua qualidade, e se for, além disso, átona. Essa regra inclui todos os exemplos estudados.
O que acontece, porém, quando se juntam duas vogais de qualidades diferentes? Vejamos os exemplos de 5
a 9. Nota-se que, no contexto de juntura, formam-se ditongos crescentes (o final do ditongo é mais saliente do
que o inicio). E isso ocorre independentemente da qualidade das vogais e da tonicidade que elas apresentam,
como mostram esses exemplos.
Fez-se uma análise mais completa do fenômeno para evidenciar, mais uma vez, como refletir sobre as
relações entre fala e escrita. Do ponto de vista da decifração e da escrita, a dificuldade dos alunos é maior no
caso da juntura que provoca a queda de alguma vogal. Envolve também algumas dificuldades com a
segmentação, nos demais casos, uma vez que as sílabas se fundem, com a formação dos ditongos. A
dificuldade mais comum que os alunos enfrentam, encarando o problema por outro ângulo, é saber se devem
ou não escrever o artigo “a”, em contextos de juntura com outra vogal precedente (ou, mais raramente,
subseqüente). Por exemplo, é comum alguns alunos omitirem o artigo em expressões como “toda a família”.
Confere, ainda, “toda a amizade”, em que caem dois “as” na fala, mas não na escrita.
Em alguns casos, a presença do artigo não é obrigatória, mas muda levemente o significado da frase, como
em: “comprava a cebola por quilo e a banana a dúzia” em confronto com “comprava cebola por quilo
<144>
e banana a dúzia”. No primeiro caso, o falante quer marcar uma oposição, no segundo caso, apenas enumera
fatos.
Com relação à decifração, a maior dificuldade dos fenômenos de juntura intervocabular acontece quando,
em final de palavra, há uma consoante e, no início da palavra seguinte, uma vogal. Nesses casos, a consoante
final junta-se à vogal inicial, formando uma sílaba única e dificultando, assim, o trabalho de segmentação da
fala.
Pior ainda é o fato de haver mudanças muito significativas na qualidade fônica dos elementos envolvidos.
Por exemplo, uma letra R em final de palavra tem o som de RR (cujo valor fonético varia de dialeto para
dialeto, como já se viu antes). Porém, quando se encontra em juntura intervocabular, o R tem o som da
vibrante simples (tepe) e não da vibrante múltipla (RR). Concluindo, troca-se o som de RR por R, como se pode
ver nos exemplos a seguir: MAR ALTO, VIR AQUI, POR ALI, CARÁTER AGRESSIVO, etc.
Quando o aluno analisa sua fala contínua, encontra um tipo de som, mas, depois que a segmenta, depara-se
com outro, pronunciando a palavra isoladamente. Isso costuma causar dificuldades sérias para alguns alunos,
no início. O professor precisa explicar ao aluno que a fala funciona de um jeito e a escrita, de outro. A escrita
funciona como se as palavras ocorressem sempre isoladas.
Fato semelhante é o caso do S ou Z em final de palavra e vogal no início da palavra seguinte, em juntura. As
letras S ou Z, nesses casos, têm sempre o som de “zê”, independentemente do dialeto. Porém, quando o aluno
segmenta e vai analisar a palavra isoladamente, descobre que o som mudou de “zê” para “çê” ou “chê”. Veja
os exemplos: CASAS AMARELAS, TRÊS AMIGOS, DEZ AMIGAS, RAPAZ INFELIZ, etc.
Em final de palavra, quando ocorre M e a palavra seguinte começa por vogal, a nasal pode formar a sílaba
independente com a vogal seguinte. Nesse caso, se a nasal for precedida por I ou E, ocorre uma consoante
nasal palatal (“nhê”); se o M for precedido por outra vogal, ocorre uma consoante nasal velar. Veja os
exemplos: VEM AQUI, VIM AQUI, HOMEM AMARELO, VIERAM AQUI, RUM AMARGO, BOM AMIGO, etc. A
mesma regra aplica-se quando, mesmo não havendo a letra M na escrita, ocorre uma vogal nasal no final de
palavra, em juntura intervocabular. Observe os seguintes
<145>
exemplos: MÃE INFELIZ (“mãi-nhi-fe-liç”), IRMÃ INFELIZ (“ir-mã-rji-fe-liç”), PÕE AQUI (“põi-nha-ki”), etc.
Como se disse, essa regra, diferentemente da regra estabelecida para o R e o S, o Z é opcional. Isso significa
que, em vez da consoante nasal indicada para a fala, pode não ocorrer nenhuma consoante nasal,
permanecendo apenas sílabas diferentes, de acordo com a forma de cada palavra. Assim, os exemplos acima,
poderiam ser ditos da seguinte maneira: “véi-a-ki”, “vi-é-rãua-ki”, “bõu-a-mi-gu”, “ir-mã-i-fe-liç”, “põi-a-ki”, etc.
Aqui também a variação entre escrita e fala traz dificuldades para o aprendiz, sobretudo quando ele se
depara com esses fatos pela primeira vez. Uma simples explicação, contudo, é quase sempre suficiente para
que o aluno perceba como deve agir perante a fala e a escrita. A falta de explicação, no entanto, pode deixar
algumas crianças num impasse ou em sérias dificuldades, não entendendo por que as palavras variam tanto e
quais são as regras que regem as variações. Mesmo que o aluno não as aprenda, o simples fato de ouvir uma
explicação significa para ele que se trata de uma questão difícil, que ele aprenderá mais tarde. Sem nenhuma
explicação, o aluno procurará uma e acabará confuso, julgando-se incapaz de aprender.
O último grupo de dificuldades de decifração da escrita proposto anteriormente é aquele que se refere ao X
e aos dígrafos XC e XÇ. A letra X tem o som de “chê” no início de palavra, o que torna sua leitura fácil, nesse
contexto. Em final de palavra, tem o som de “kç” ou “kch”, dependendo do dialeto: TÓRAX, PIREX, LATEX, etc.
Quando ocorre em final de sílaba, no meio da palavra, a letra X tem o som dc “çê” ou de “chê”, dependendo do
dialeto: EXTRA, EXPLICAR, etc. Aqui, pode haver uma ditongação da vogal anterior quando se trata do som de
“ê”, como cm: “eichplicarr” (EXPLICAR). O mesmo acontece com os dígrafos XC e XÇ: EXCEÇÃO (“eçeçãu”,
“eichçeçãu”). Porém, não ocorre uma pronúncia como “echçeçãu”.
A maior dificuldade com a decifração da letra X ocorre quando ela representa uma consoante em início de
sílaba e ocorre em contexto intervocálico, como nos seguintes exemplos: VEXAME, EXAME, PROXIMO, FIXO,
etc. Como temos dito várias vezes, quando o leitor se encontra diante de casos assim, saber as relações entre
letras e sons resolve o problema da decifração só em parte. Para chegar à conclusão final, deverá lançar mão
de outro expediente, que consiste
<146>
em decifrar o que for possível e checar se o resultado obtido produz uma palavra da língua portuguesa. Se não
produz, ocorreu algum equívoco nas relações entre letras e sons. Se produz, ainda assim é preciso checar o
contexto em que a palavra se insere para saber se ela está correta. Por exemplo, alguém vai tentar ler a palavra
FIXA na frase “a etiqueta estava fixa no caderno”. Como o X entre vogais pode ter o som de “chê”, uma leitura
possível seria “ficha”. Porém, confrontando com o contexto, o aluno percebe que a palavra que ele descobriu
não faz sentido ali. Deverá procurar então uma outra alternativa. Sabe-se que entre vogais a letra X pode ter
ainda o som de “kç”. Portanto, a leitura é “fikça” e o texto adquire seu sentido correto.
Finalmente, deve-se destacar que as dificuldades de decifração apresentadas acima levam em consideração
o fato de se usar a leitura como uma forma de aprendizagem e o emprego da norma culta em sala de aula.
Porém, na realidade individual de cada aluno, sobretudo quando ele está lendo sozinho, a passagem da escrita
para a leitura o conduz de maneira natural à fala do seu dialeto. Nesse caso, as diferenças entre escrita e fala
aumentam, dependendo da variedade lingüística em uso, podendo trazer dificuldades sérias para alguns
alunos.

OQUE É MAIS FÁCIL DE ESCREVER


Existe uma diferença notável entre a decifração da escrita e a produção de escrita com relação ao que é mais
fácil ou difícil. Alguns casos são de fácil decifração, mas apresentam dificuldades sérias na escrita. As
dificuldades referem-se ao fato de haver mais de uma possibilidade de escrita, em princípio, ou de a forma
lexical de uma palavra, na fala, ser diferente da forma escrita, em geral, por causa da variedade lingüística do
aluno.
Para o professor e para o aluno, é interessante e útil fazer um levantamento desses casos, já que essa
também é uma maneira de ensiná-lo a decifrar a escrita e a escrever sem o bá-bé-bi-bó-bu. Vamos começar
fazendo um levantamento do que é mais fácil de escrever. Esse é um estudo das relações entre sons e letras
(da fala para a escrita) e não entre letras e sons (da escrita para a fala).
<147>
De modo geral, é fácil escrever quando ocorrem os casos de: P/B, T/D, F/V É curioso, pois os professores
dizem que é justamente nesses casos que ocorrem as famosas trocas de letras, ou seja, quando os alunos
escrevem P em vez de B, F em vez de V e T em vez de D. A explicação mais comum é que as crianças cometem
essas trocas de letras porque têm dificuldades auditivas para distinguir sons sonoros de surdos. Essa afirmação
não faz sentido, porque analisando tudo o que as crianças fazem, logo se percebe que elas usam sons surdos e
sonoros, em outras situações, sem a menor dificuldade (lembrar que as vogais são sonoras, assim como as
laterais; as vibrantes podem ser sonoras ou surdas, assim como as fricativas...).
Um aluno pode trocar letras pelo simples fato de sussurrar os sons das palavras que escreve e, assim,
produzir uma fala sem sons sonoros, razão pela qual acaba concluindo que precisa escrever as letras “surdas” e
não as “sonoras”.
Mais complicado é o caso de pessoas que não fazem essa distinção na fala (por exemplo, os imigrantes
poloneses). Nesses casos, o aluno precisa se guiar pelo significado para escrever uma letra ou outra. Então,
sempre que achar que precisa escrever F, deverá levantar a hipótese de ter de escrever também V. A decisão
final será tomada em função do significado e da ortografia. Assim, se ele pretende escrever “vaca” e pensa em
F para a primeira letra, deve comparar as duas formas:
FACA e VACA. Em seguida, começa a aprender que a escrita com F refere-se à ferramenta e a escrita com V
refere-se ao animal. Será mais dificil quando não houver um par mínimo. Por exemplo, se o aluno for escrever
“livro”, irá comparar as duas possibilidades: LIFRO e LIVRO. Nesse caso, como a troca de V por F não muda o
significado, a única solução é o aluno decorar a ortografia.
Passando a outros casos, constata-se que é mais fácil escrever o som de “zê” no início de palavra, porque a
única letra que representa este som nesse contexto é o Z.
É claro que o aluno principiante está pensando em geral nas relações entre letras e sons fora dos contextos.
Por isso, esse exercício complementa as informações de que ele precisa para aprender. Em outras palavras, ele
pode achar que o som de “zê” também pode ser escrito com X (EXAME) ou com S (CASA). Pode, então, chegar
à conclusão de que ZEBRA é escrita como
<148>
XEBRA ou SEBRA. Porém, ao estudar a distribuição dos sons e das letras no contexto da palavra, o aluno vai
aprender algumas regrinhas: neste caso, que o som de “zê” em início de palavra só pode ser escrito com a letra
Z. Essa regra então resolve uma dificuldade e ajuda o aluno.
Outros casos: o som de “lê” em início de sílaba é fácil de transpor para a escrita: LATA, LADO, LIVRO, etc.
Quando faz parte de grupos consonantais, pode ser fácil se, na fala do aluno, ocorrer a consoante lateral e não
a vibrante, como em: PLANTA, GLÓRIA, CLARO, etc.
O mesmo vale para os sons “mê”, “nê” e “nhê”, em início de sílaba: MAPA, CAMA, NATA, CANA, TENHO,
BANHO, etc.
O som de “jê” só pode ser escrito com J quando a vogal seguinte for A, O ou U: JACA, JOVEM, JUNIOR, CORRIJO,
CORUJA, HAJA, VIAJA, etc.
O som de “guê” só pode ser escrito com a letra G quando a vogal seguinte for A, O ou U (não seguida de
outra vogal): GOLA, GULA, GARRAFA, etc. Se for preciso escrever o som de “guê” seguido das vogais “ê” ou
“i”, o aluno deverá escrever a letra U entre o G e a vogal E ou I: GUERRA, GUIMARÃES, etc.
O som de “kê” é um pouquinho mais difícil. Há uma tendência para escrevê-lo com C quando o som “kê” vem
antes de A, O ou U (não seguido de outra vogal):
CADA, COLAR, etc. Por outro lado, há uma tendência para escrevê-lo com QU quando o som de “kê” vem
seguido do som de “u” e do som de outra vogal, como em: QUATRO, FREQÜENTE, INÍQUO, etc. O som de “kê”
seguido de E ou de I só pode ser escrito com QU: QUENTE, QUINTO, etc.
Há outros modos de ver o problema. Por exemplo, pode-se ensinar aos alunos que, no início de palavra, só
se escreve um R, nunca dois: RATO, RIO, etc. Nenhuma palavra começa com Ç, nem com NH ou LH (exceto LHE
e algumas palavras estrangeiras como LHAMA, NHOQUE, NHEENGATU, etc.). Do mesmo modo, não se
escrevem palavras com certas seqüências de letras, como por exemplo, numa mesma sílaba, HR, TH, etc. (a não
ser em palavras estrangeiras ou grafadas com ortografia antiga).
Outro tipo de regra que se pode ensinar é a seguinte: as terminações verbais de verbos derivados escrevem-
se com -IZAR (e não com -ISAR), como: FERTILIZAR (de fértil), UTILIZAR (de útil). Porém: ALISAR (de liso — se
fosse “alisizar” seria com -IZAR). Outra regra:
palavras derivadas que não terminam em S no singular
<149>
que recebem a terminação com o som de “eza” são escritas com -EZA. As que terminam em - s são escritas
com -ESA. Exemplos: BELEZA (de belo), INTEIREZA (de inteiro), porém: MARQUESA (de marquês), INGLESA (de
inglês), etc.
Mais uma regra: os finais paroxítonos dos verbos que terminam com o ditongo nasal “ãu” são escritos com -
AM, e os finais oxítonos, com - ÃO. Exemplos: FIZERAM, ESTAVAM, IAM; porém: ESTÃO, FARÃO, SÃO,
ACHARÃO, etc.
É relativamente fácil mostrar aos alunos que, ao encontrarem uma vogal nasalizada seguida de uma
consoante, no meio de palavra, se essa consoante for P ou B (M é muito raro), a ortografia obriga o uso da letra
M, entre a vogal e a consoante. Nos demais casos (consoantes diferentes de P e B), a ortografia obriga o uso da
letra N, entre a vogal nasalizada e a consoante. Exemplos: CAMPO, BOMBA, CANTO, BANCO, ONÇA, INFELIZ,
ENVIAR, ENLATADO, etc.
Com relação às vogais, é mais fácil escrever os sons “é”, “é”, “ó”, “ô”, os quais, quando identificados na fala,
passam a corresponder às letras E ou O (desconsiderando a acentuação gráfica). Os sons de “a” e de “â” serão
escritos com a letra A (desconsiderando o til). Também é fácil escrever os sons de “i” e “ii” quando ocorrem em
sílabas tônicas, porém nas sílabas átonas é muito difícil.
Nesse campo, também é possível estabelecer certas regrinhas úteis. Por exemplo: pode-se dizer aos alunos
que, ao encontrarem o som de “à” em final de palavra, ele será escrito sempre com til: LÃ, IRMÃ, ÍMÃ,
TALISMÃ, etc. Se tiverem de escrever o ditongo “ãu” em palavras que não são verbos, usarão as letras -ÃO (e
não -AM): IRMÃO, ÓRGÃO, ALEMÃO, etc.
O professor não deve se preocupar se, por acaso, houver exceções às suas regras. Fatos novos ajudam a
melhorar as regras ou a indicar seus limites. Por exemplo, é muito raro encontrar palavras em português que se
escrevem com I + s + consoante. Em geral, quando se tem os sons de “is + consoante” (ou “ich + consoante”,
em alguns dialetos), a palavra escrita começa com a vogal E: ESCOLA, ESPADA, ESQUADRA, etc. Como exceção
temos ISQUEIRO, ISTMO, ISCA... e alguns nomes de origem estrangeira: ISRAEL, ISLAMITA, ISLANDÊS.
Algumas regras requerem conhecimentos gramaticais mais sofisticados e, por essa razão, são menos
interessantes na alfabetização. E o caso de regras que envolvem conceitos como “verbo”, “adjetivo”, “palavras
primitivas
<150>
e derivadas”, “sílabas tônicas e átonas”, “paroxítonas e oxítonas”, etc. Às vezes, uma pequena explicação a
respeito desses conceitos pode ajudar. Não custa o professor tentar uma vez para ver a reação da classe.
Poderá se surpreender com o interesse de alguns alunos.

OQUE É MAIS DIFÍCIL DE ESCREVER


A grande dificuldade que os alunos têm para passar da observação da fala para a escrita reside no fato de
esta não ser uma espécie de transcrição fonética (como, às vezes, o sistema alfabético nos leva a crer).
Igualmente complicado é o fato de alguns alunos falarem dialetos, cujas palavras têm uma forma muito
diferente da forma das palavras da norma culta, usada como referência mais próxima da escrita que respeita a
ortografia.
Essas dificuldades somente se resolvem com o tempo. Entretanto, o conhecimento do funcionamento da
escrita, da fala e da leitura pode ajudar muito a se obter um bom resultado com esses alunos. Dentro desse
quadro de preocupações, deve-se lembrar que uma discussão a respeito da variação lingüística (dialetos) e que
papel a ortografia desempenha no nosso sistema de escrita é imprescindível e deve ser freqüentemente
recordada pelo professor.
A passagem da fala para a escrita apresenta algumas dificuldades especiais no caso de algumas letras,
justamente pelo fato de o aluno ter de optar por uma única forma entre várias possibilidades. Vejam-se, a
seguir, alguns casos.
O som de “chê” pode ser escrito com CH ou com X,
e só a ortografia pode dizer onde vai uma letra e onde
vai outra. Os professores costumam dizer que essa é
uma dificuldade inerente à letra X, mas na verdade é
inerente ao X e ao CH, quando se consideram os fatos
a partir da fala, e não da escrita.
Notar que o som de “chê” (ou “jê”) que ocorre no final de sílaba, em certos dialetos, será representado por
S, Z ou X (X somente no meio da palavra), como em CASAS, RAPAZ, EXTRA, DESDE, etc.
Outro exemplo tradicional é o caso da escrita da letra L, representando o som de “u”, como parte final de
alguns ditongos. As vezes, esse “u” é escrito com L e, às vezes, é escrito com U, como se pode ver nos
<151>
exemplos: “baudi” BALDE, “méu” — MEL, “çóu” — SOL, porém: “çaudadi” — SAUDADE, “mêu” — MEU, “çôu”
— SOU, etc. Em alguns casos, é possível distinguir a forma ortográfica pelo significado, como em ALTO e AUTO,
mas esses casos são raros e ajudam pouco.
Mais um caso dificil é o som de “çê”, que pode ser escrito com S, Ç, C (somente diante de I e E), Z (somente
em final de sílaba) e X. Aqui também dizer que apenas a letra x é complicada significa ver o problema apenas
pela ótica de uma letra. Um caso mais simples é o do som “zê”, que pode ser escrito com Z, S ou X. Porém, em
início de palavras, só se emprega a letra Z. A letra S tem o som de “zê” apenas entre vogais ou diante de uma
consoante sonora.
O som de ‘jê” se confunde na escrita apenas quando está diante de I ou de E — quando pode ser escrito com
G ou com J. Nos demais casos, será usado apenas o J.
O som de “kê” apresenta dificuldade apenas diante de A, O ou U, quando pode ser representado por C ou
por QU. Diante dos SONS “j” ou “e”, só se escreve QU, nunca C.
A dificuldade de escrever R ou RR não é grande. Só se usa RR, por oposição a R, quando o som estiver entre
duas vogais. Nesses casos, a distinção se faz pelos valores fonéticos diferentes. Nos demais casos, o aluno
escreverá sempre um R só. A dificuldade maior que o professor encontra comumente se relaciona com a
variação lingüística e com a forma lexical de algumas palavras, em alguns dialetos.
Notar que algumas diferenças de fala, na verdade, não trazem dificuldades para a escrita. Por exemplo, há
pessoas que falam “tchia”, “djia” e há pessoas que falam “tia” e “dia”, mas esse tipo de variação não atrapalha
a escrita (casos de distribuição complementar de sons no sistema fonológico). Isso significa que uma pessoa
que fala “drentu”, “ãdãnu” pode aprender facilmente a escrever DENTRO e ANDANDO, mesmo sem eliminar
sua pronúncia original.
Como se disse anteriormente, aqui também é possível fazer algumas regrinhas que mostram que certas
dificuldades são mais aparentes do que reais. Por exemplo, o som de “ksi” pode ser escrito com X ou com -
QUE-SE. Porém, só serão escritos com -QUE-SE se forem verbos, cujo infinitivo apresenta o som de
na última sílaba, como COLOCAR, SOCAR, FICAR, etc. Portanto, nos demais casos, a escrita será provavelmente
com X.
<152>
Com relação às vogais, a grande dificuldade está na escrita dos sons “i” e “u” átonos e de alguns casos de
vogais nasalizadas.
Os sons de “i” e “u” átonos podem ser escritos com as letras I, U ou E, Q Aqui, não há regras para facilitar o
aprendizado, a única saída é recorrer à ortografia. Deixar de lado a dúvida e imediatamente procurar ver com
que letras determinada palavra é escrita.
Apesar do que foi dito acima, o professor poderá mostrar a seus alunos que em certos casos é muito mais
comum o uso das letras E e O do que I e U Considerações a respeito de “inícios de palavra”, “prefixos”, “finais
de palavra” e “sufixos” podem revelar tais tendências. Já se falou antes, por exemplo, que palavras que se
iniciam com o som de “chk” ou “çk”, dependendo do dialeto, são escritas com ESC, e não de outra forma:
ESCADA, ESPADA, ESCORREGADOR, ESCOLHER, ESPÍRITO, etc.
Se o aluno conseguir perceber que certas palavras têm um “mesmo sufixo”, e se souber como se escreve
esse sufixo, poderá generalizar a regra e ter menos dificuldades na escrita. Por exemplo, vendo as seguintes
palavras, constata-se que todas acabam com os mesmos sons (porque têm o mesmo sufixo): AMAVEL,
TERRÍVEL, INCRÍVEL, HORRIVEL, POTÁVEL, etc. Exemplos semelhantes ensinam os alunos a escrever o sufixo -
VEL. Outros exemplos, como HORROROSO, BONDOSO, FORMOSO, DANOSO, CURIOSO (e as respectivas formas
do feminino), podem ajudar o aluno a escrever o sufixo -OSO, -OSA. Outro sufixo comum é -MENTE:
INFELIZMENTE, ALEGREMENTE, TRISTEMENTE, PREGUIÇOSAMENTE, etc.
É fácil explicar aos alunos que a terminação -ÃO (tônico), ou melhor ainda, o ditongo nasal que tem o som de
“ãu” tônico se escreve com O e não com U. Do mesmo modo o ditongo nasal que tem o som de “õi” se escreve
com ÕE e não com ÕI. Conferir: PÃO, MELÃO, FARÃO, TÃO, SIMÃO, ou PÕE, PÕEM, SIMÕES, LIMÕES, FERRÕES,
LEÕES, etc.
Alguns alunos falam o gerúndio, usando a terminação -NO e não -NDO. O professor pode aproveitar a
oportunidade e explicar que a norma culta admite que se fale “-ndu” e se escreva -NDO. Portanto, em vez de
escrever: ANDANO, FAZENO, FALANO, CORRENO, FUGINO, o aluno, ao aprender o sufixo do gerúndio,
aprenderá a escrever também ANDANDO, FAZENDO, FALANDO, CORRENDO, FUGINDO, etc.
<153 >
Fazer um levantamento de sufixos e de rimas pode ser uma boa estratégia para o professor ensinar a
escrever certos pedaços de palavras. Isso acelera o domínio da ortografia. O professor deve mostrar o que há
de igual e o que há de diferente e, se possível, até mesmo a extensão dessas considerações. Esse procedimento
tem a vantagem de ensinar não só a escrever, mas também a refletir sobre a linguagem em geral e a escrita em
particular.
Outra dificuldade séria que os alunos encontram é quanto à escrita da nasalidade vocálica. Escrever M, N e
NH em início de sílaba é fácil. Porém, escrever M e N em final de sílaba traz muitas dificuldades para certos
alunos, porque, em seus dialetos, eles não pronunciam essas consoantes nasais, apenas nasalizam a vogal
precedente. Mesmo nos dialetos (em geral do Sul do país) em que se falam comumente essas consoantes
nasais, é freqüente ouvir pessoas que não as falam, sobretudo numa fala mais rápida, menos formal. Como a
norma culta não exige que essas consoantes nasais sejam pronunciadas, fica mais difícil para o professor
ensinar ao aluno quando se deve escrevê-las. A tendência geral dos alunos é escrever as palavras sem
nenhuma marca de nasalidade, seguindo o exemplo da palavra MUITO, que não leva til nem tem consoante
nasal entre o I e o T Mas o ditongo Ul é um ditongo nasalizado.
Com relação ao problema da nasalidade, a melhor estratégia é fazer uma análise da fala, escolhendo
exemplos apropriados, propostos pelo professor e pelos alunos, para esclarecer, em primeiro lugar, a diferença
entre ocorrências orais e nasalizadas de vogais e ditongos, anotando em colunas, palavras como:
CAMA CAMPO PENTE ONÇA
CANA BOMBA CANTA ENLUARADA
BANHA LIMPO VINDA ENVIAR
CATA BOBA VIDA JUTA
CANTA BOMBA VINDA JUNTA
OUÇA MATA A IDA CEDO
ONÇA MANTA AINDA SENDO

O uso de pares mínimos é sempre uma boa maneira de mostrar os contrastes e de ajudar o aluno a passar da
fala para a escrita com mais informações.
<154>
Logo no início, alguns alunos apresentam alguns problemas na ordem das letras de algumas palavras. As
inversões de letras representam os casos mais comuns. O professor não precisa preocupar-se com esse fato.
Trata-se apenas de uma dificuldade inicial que os alunos resolvem por si mesmos. E o caso de quem escreve
ON em vez de NO, ou mesmo TAMA em vez de MATA, ou ainda CESUSU em vez de SUCESSO.
Mais complicado do que a ordem é a dificuldade que os alunos têm para segmentar. Aqui também a melhor
estratégia é deixar que eles escrevam como pensam e esperar que descubram por si mesmos como fazer.
Algumas expressões levam mais tempo para os alunos segmentarem corretamente. Se o professor perceber
que alguns alunos estão demorando muito para segmentar expressões mais fáceis, poderá organizar algumas
aulas com o objetivo de ensinar a segmentação. Nesse caso, basta usar exemplos dos próprios alunos e analisá-
los com eles. A regra de identificação semântica (uma idéia, uma palavra) não ajuda muito nesse momento. Na
verdade, essa regra pressupõe muitos outros conhecimentos, inclusive de como a escrita funciona. O fato de os
alunos virem palavras escritas separadas por espaços em branco é a melhor indicação de que dispõem. Em
último caso, dizer sempre que se deve escrever junto ou separado isso ou aquilo porque é assim que a
ortografia estabeleceu. Portanto, quem tiver dúvidas, não adianta ficar pensando sozinho: é preciso perguntar
a quem sabe ou procurar no dicionário.

A DIFÍCIL ARTE DE LER


E DE ESCREVER
Como se pôde ver nos estudos das letras, as relações entre letras e sons são muito complexas. Isso explica
por que decifrar e escrever o nosso sistema de escrita é uma tarefa que exige muito conhecimento. Ficou claro
também que as relações entre letras e sons não são exatamente as mesmas das relações entre sons e letras.
Resumindo, para ler, são necessários alguns conhecimentos e, para escrever, além dos relacionados à leitura,
são necessários conhecimentos complementares. Isso mostra, ainda, que é melhor
<155>
começar o processo de alfabetização ensinando o aluno a decifrar a escrita e a ler, do que a escrever, como faz
tradicionalmente o método das cartilhas. Depois que o aluno aprendeu um pouco a ler, pode ir tentando
escrever, mas, se misturar as duas coisas, acabará com sérios problemas de leitura e, pior ainda, de escrita.
Uma decorrência das reflexões acima expostas é a consciência que o professor deve ter de que para ler e
para escrever são necessários inúmeros conhecimentos, alguns complexos. Muitas vezes, a cartilha e o
professor ensinam muito pouco ao aluno e cobram dele um resultado injusto.
Um aluno aprende umas poucas palavras-chave, umas poucas famílias de sílabas geradoras, e a regra
insistente de que ele deve observar a própria fala (ou a do professor) para escrever. Soma-se a isso a
expectativa de que aprendendo a escrever aprenderá automaticamente a ler. Além de essa ser uma forma
muito complicada de ensinar a ler e a escrever, é incompleta e, por essa razão, pode não ser suficiente para dar
os subsídios necessários para os alunos resolverem seus problemas.
Alguns alunos resolvem suas dificuldades por conta própria, não levando muito a sério algumas coisas que
ouvem na sala de aula, e procurando as informações complementares que nem a cartilha nem o professor
forneceram. Outros tentam aplicar ao pé da letra e à risca as regras que são apresentadas, e mais nada (porque
o aluno só faz o que o professor manda, senão aprende errado...), e acabam sem saída. Então, vêem seus
colegas que já encontraram uma saída, que fazem coisas certas, enquanto eles fazem tudo errado. Esses alunos
acabam entrando em pânico e causando muitos problemas para si, para o professor, para a escola, para o
governo e para os pais.
Nessa situação, encontramos alunos que, seguindo a cartilha e a regra de observar a própria fala a fim de
escrever, fazem o seguinte: ao tentar escrever uma palavra simples como PAI, a primeira coisa que fazem é
falar e observar. Dizem “pai-paaaaa” e escrevem o A porque detectaram o som de “a”. Depois, falam: “paiaaaa-
iiii” e reconhecem o ditongo e escrevem AI. Voltando à fala, repetem: “pa-pa-pa-ii” e escrevem PA, que é da
família do pá-pé-pi-pó-pu, e sempre se deve escrever essas coisas, como se aprende com as palavras-chave. O
resultado final é: AAIPA.
<156>
CAGLIARI, 1997c. >
Muitas pessoas, vendo as crianças escreverem coisas assim, em vez de estudar por que isso acontece,
analisam a questão apenas superficialmente, dizendo que elas não sabem escrever, que escrevem de qualquer
jeito, que não têm direção certa para colocar as letras e não aprendem porque escreveram “aaipa” e dizem
que escreveram “pai”, numa clara evidência de que têm problemas de aprendizagem, certamente de fundo
psicológico ou neurológico.
A incompetência desses profissionais é um crime contra as crianças. A criança simplesmente fez o que o
professor mandou. Ela simplesmente ainda não dispunha das informações necessárias para escrever de outro
modo. Para o professor, parecia claro e evidente que “pai” se diz “pai” e se escreve PAI, porque ele, professor,
já sabe muito mais do que a simples regrinha de “escreva observando a fala”. O pior disso tudo é a
preocupação do professor com o aluno que escreve AAIPA. Para que um aluno que escreve assim possa
superar sua dificuldade, tem de deixar de lado algumas das explicações mais comuns e enfáticas que o
professor dá. Nem todos os alunos conseguem superar essa barreira, porque acreditam demais nos
professores. Mas tudo tem limite. Depois de um certo tempo sem obter resultados, alguns alunos começam a
duvidar de si, do professor, da escola e transformam a própria vida num dilema. Muito freqüentemente, antes
que isso aconteça, o aluno já deve ter passado por outra experiência traumatizante, ao ser colocado numa
classe especial, com colegas que também não conseguem aprender. Essas classes são portas fáceis para os
alunos abandonarem a escola e os estudos, principalmente numa escola pública.

A AÇÃO DO PROFESSOR
O professor deverá explicitar aos seus alunos como se faz para ler e, ao realizar essa tarefa, deverá tratar das
relações entre letras e sons na leitura e na escrita.
O professor não deverá explicar tudo o que consta no estudo das relações entre letras e sons (Apêndice).
Para o aluno começar a ler e a escrever, alguns conhecimentos são prioritários e outros vão ser adquiridos com
o tempo. A respeito das relações entre letras e sons, é mais importante ensinar ao aluno como aprender,
<157>
do que ficar analisando detalhadamente letra por letra, caso por caso. Ao estudar uma determinada letra, por
exemplo A ou G, o professor irá abordar alguns aspectos, deixando outros para depois. Ele voltará muitas vezes
a falar no assunto, e algumas observações serão feitas somente quando houver razão para isso, ou porque um
aluno perguntou ou porque se tornou necessário para corrigir um erro, ou até mesmo por curiosidade.
Mantendo uma prática regular de análise do processo de decifração com os alunos, os conhecimentos vão se
sofisticando à medida que os alunos aprendem mais a respeito da leitura e da escrita. E importante deixar os
alunos tomarem a iniciativa de refletir sobre os fenômenos que estudam, porque sozinhos também chegam a
resultados interessantes e até surpreendentes. Os conhecimentos passados já adquiridos servem de apoio para
o desenvolvimento de novos conhecimentos. Assim funciona o processo de aprendizagem. O ensino nada mais
é do que a criação das condições adequadas para que a aprendizagem aconteça.
Em geral, não vale a pena o professor ficar explicando questões que são muito complexas. Essas explicações
servem para uma análise lingüística, mas já não são tão interessantes para a alfabetização. As crianças acabam
aprendendo a decifrar e a escrever muito mais tranqüilamente através de umas poucas regrinhas e praticando
a leitura e a escrita, do que através de explicações muito complicadas. O professor precisa ter bom senso para
avaliar a situação. Se os alunos quiserem saber algo que exige uma explicação técnica muito sofisticada, o
professor pode dar uma explicação mais elaborada, mesmo que os alunos não compreendam bem o alcance e
a profundidade do que ele diz. É melhor ouvir uma explicação correta, mesmo que difícil, do que uma mentira,
um erro ou uma explicação que deverá ser abandonada logo adiante.
Um roteiro de idéias gerais para começar uma discussão pode levar em conta os tópicos:

Quando se vai ler.


1. Usamos o nome das letras para saber que som a letra tem: a letra A tem o nome de a e o som de “a”. A
letra C tem o nome de cê e o som de “çê”.
2. Uma letra pode ter mais de um som, representando sons diferentes. A classe vai aprender isso aos poucos.
Por enquanto, é só não estranhar se isso acontecer.
<158>
3. A letra A também tem o som de “ã”.
4. A letra C tem o som de “çê” somente quando vier antes das letras I e E. Nos demais casos (diante de A, O, U,
R, L ou de qualquer outra consoante), terá o som de “kê”.

Quando se vai escrever:


1. Em primeiro lugar, é preciso descobrir a palavra, isolando-a da frase.
2. Depois, é preciso saber a ordem das sílabas na palavra.
3. É preciso descobrir as vogais e consoantes que formam as sílabas e em que ordem.
4. Para cada segmento (vogal/consoante), é necessário escrever uma letra, partindo dos conhecimentos
adquiridos, no caso da leitura.
5. Ficar atento aos problemas causados pela variação lingüística: quem é falante do dialeto padrão tem um
tipo de dificuldade e quem é falante de outros dialetos tem outro tipo de dificuldade.
6. Checar o que se escreveu com a forma gráfica das palavras de acordo com o estabelecido pela ortografia, ou
seja, aprender a ter dúvidas ortográficas inteligentes.
7. Resolver as dúvidas ortográficas, perguntando a quem sabe ou olhando no dicionário.

Com esse conjunto de informações específicas sobre as relações entre letras e sons, mais o estudo de uma
meia dúzia de outras letras e noções básicas sobre a escrita, vistas anteriormente, o professor terá um aluno
que já sabe bastante e que até pode se arriscar a escrever algumas palavras e pequenas frases. Este é o
segredo da alfabetização. Um trabalho como esse não leva mais de dois meses e, após esse tempo, o professor
constata que seus alunos já sabem ler e escrever, certamente com muita dificuldade, mas já sabem o que
devem fazer para progredir, porque o segredo já foi aprendido. A perfeição virá com o tempo e com muito
trabalho tanto por parte do professor como do aluno.
Existe uma grande diferença na prática de ensino que distingue a competência do professor do conteúdo da
matéria que ele ensina. Todos esses conhecimentos detalhados e explícitos a respeito da fala, escrita e leitura
fazem parte da competência técnica do professor. Será daí que ele irá tirar os conteúdos daquelas
<159>
matérias que ensina, O que ele vai tirar, como vai apresentar e quando ensinar são coisas que ele deve julgar e
resolver, levando em conta as circunstâncias. É por isso que se disse que, quando o professor é de fato
competente, ele sabe o que ensinar, como ensinar e quando ensinar. Se ele não tem essa competência técnica,
a única saída é usar um método preestabelecido como o bá-bé-bi-bó-bu, ou um livro guia como a cartilha,
levando para sua prática, juntamente com os problemas que esses métodos têm, sua incompetência de modo
velado ou aberto.

APRENDENDO A ESTUDAR
O esforço dispendido na análise das letras do alfabeto é um bom exercício de reflexão sobre o
funcionamento do nosso sistema de escrita com relação ao seu aspecto alfabético, ortográfico e sobre as
características fonéticas mais importantes que essas letras representam. Somente de posse desses elementos
uma pessoa pode decifrar algo escrito e ler um texto.
Todos nós, como usuários familiarizados com o sistema de escrita, sabemos como proceder para decifrar a
escrita, mas comumente lemos e escrevemos sem explicitar, a cada instante, as regras que permitem que
façamos isso. Agimos automaticamente, guiando-nos, como convém, pelo fluir do texto, acompanhando as
idéias que queremos expressar ou que vamos descobrindo à medida que a leitura prossegue. Ou seja, acontece
com as atividades de leitura e de escrita algo semelhante ao que acontece quando falamos: precisamos de toda
a gramática, de todo o vocabulário disponível, de todos os mecanismos articulatórios de produção de fala, mas
não ficamos pensando nessas coisas. Quando falamos, simplesmente usamos esses conhecimentos
interiorizados para guiar a expressão lingüística do pensamento.
Assim como um lingüista precisa saber explicitar as regras da linguagem para poder entendê-la, analisá-la e
formar a ciência da linguagem, assim também o professor de alfabetização precisa saber explicitar todos os
conhecimentos necessários para que alguém possa ler e escrever e se alfabetizar. O grande problema dos
nossos professores, acostumados com a cartilha, está
< CAGLÍAR1, 1996h.
<160>

em confiarem demais nos métodos e em seus procedimentos. Desse modo, acabaram deixando de lado a
própria reflexão sobre a matéria que lecionam. É fundamental e imprescindível que o professor alfabetizador
saiba analisar qualquer fato que aconteça no processo de aprendizagem da leitura ou da escrita e saiba
interpretar o valor correto dos acertos e erros. Assim, saberá também conduzir com tranqüilidade e
competência o processo de ensino (que depende do professor) e o processo de aprendizagem (que depende
do aluno, mas que necessita do professor como mediador e guia).
O esforço de pensar e explicitar as regras necessárias para alguém ler em nosso sistema de escrita é um
exercício que não se esgota no estudo das letras feito neste capítulo e no Apêndice. Uma tarefa como essa tem
como objetivo apenas ensinar o professor a refletir sobre essa matéria e a desenvolver a sua argumentação
diante dos fatos observados, chegando a regrinhas que possam orientar o aluno. Se o professor desenvolver
esse hábito, com tudo aquilo que encontra pela frente no seu trabalho (e nos seus estudos), após pouco tempo
terá uma poderosa ferramenta de trabalho:
sua competência técnica. Quanto mais se imbuir disso, menos precisará de conselhos, recomendações,
subsídios, métodos e livros didáticos do tipo cartilhas ou similares. Ele começará seu trabalho e aconteça o que
acontecer em termos de leitura e de escrita, será um bom motivo para discutir com seus alunos, levá-los a
descobertas, motivá-los a tentar produzir leitura e escrita, enfim, a se alfabetizarem, O tempo, o programa
predeterminado, o tipo de aluno (a escola, o diretor, a coordenadora pedagógica...), tudo isso torna-se
irrelevante: o que conta é seu trabalho. Com a competência técnica de que dispõe, o professor irá pouco a
pouco realizando um trabalho sério, cujos frutos estarão no fato de ele ensinar a todos os alunos a ler e a
escrever.
Esse esforço de reflexão do professor pode aprofundar-se e expandir-se e, quanto mais longe for, melhores
condições trará a tarefa de educar e alfabetizar. Quando o professor incentiva os alunos a analisar fatos, a
refletir, a tirar conclusões, a formular regras, a melhorar as regras já existentes, tornando-as mais detalhadas e
abrangentes, não estará ensinando aos seus alunos apenas o conteúdo da matéria. Mais do que isso e
principalmente, estará ensinando-lhes os bons hábitos de
<161>
em confiarem demais nos métodos e em seus procedimentos. Desse modo, acabaram deixando de lado a
própria reflexão sobre a matéría que lecionam. É fundamental e imprescindível que o professor alfabetizador
saiba analisar qualquer fato que aconteça no processo de aprendizagem da leitura ou da escrita e saiba
interpretar o valor correto dos acertos e erros. Assim, saberá também conduzir com tranqüilidade e
competência o processo de ensino (que depende do professor) e o processo de aprendizagem (que depende
do aluno, mas que necessita do professor como mediador e guia).
O esforço de pensar e explicitar as regras necessárias para alguém ler em nosso sistema de escrita é um
exercício que não se esgota no estudo das letras feito neste capítulo e no Apêndice. Uma tarefa como essa tem
como objetivo apenas ensinar o professor a refletir sobre essa matéria e a desenvolver a sua argumentação
diante dos fatos observados, chegando a regrinhas que possam orientar o aluno. Se o professor desenvolver
esse hábito, com tudo aquilo que encontra pela frente no seu trabalho (e nos seus estudos), após pouco tempo
terá uma poderosa ferramenta de trabalho:
sua competência técnica. Quanto mais se imbuir disso, menos precisará de conselhos, recomendações,
subsídios, métodos e livros didáticos do tipo cartilhas ou similares. Ele começará seu trabalho e aconteça o que
acontecer em termos de leitura e de escrita, será um bom motivo para discutir com seus alunos, levá-los a
descobertas, motivá-los a tentar produzir leitura e escrita, enfim, a se alfabetizarem. O tempo, o programa
predeterminado, o tipo de aluno (a escola, o diretor, a coordenadora pedagógica...), tudo isso torna-se
irrelevante: o que conta é seu trabalho. Com a competência técnica de que dispõe, o professor irá pouco a
pouco realizando um trabalho sério, cujos frutos estarão no fato de ele ensinar a todos os alunos a ler e a
escrever.
Esse esforço de reflexão do professor pode aprofundar-se e expandir-se e, quanto mais longe for, melhores
condições trará à tarefa de educar e alfabetizar. Quando o professor incentiva os alunos a analisar fatos, a
refletir, a tirar conclusões, a formular regras, a melhorar as regras já existentes, tornando-as mais detalhadas e
abrangentes, não estará ensinando aos seus alunos apenas o conteúdo da matéria. Mais do que isso e
principalmente, estará ensinando-lhes os bons hábitos de
<161>
estudar, de investigar. Os resultados deverão ser considerados muito importantes (e imprescindíveis). Para o
educador, durante a formação de seus alunos, mais importante do que os resultados é a formação de bons
hábitos de estudo. A cartilha tira a iniciativa do aluno de pensar, refletir, pesquisar e chegar a conclusões. Se o
professor, abandonando o método do bá-bé-bi-bó-bu, conduzir um processo de ensino e de aprendizagem,
refletindo junto com seus alunos, depois de certo tempo, seu trabalho de mediador torna-se muito reduzido,
uma vez que seus alunos saberão como estudar o que não sabem. Muitas vezes, os professores preocupam- se
tanto com notas, com resultados positivos em testes e provas, que acabam se esquecendo de que é muito mais
importante saber como estudar do que dominar o conteúdo de uma determinada matéria.
Infelizmente, alguns professores jamais pensam nisso. Passam anos ditando pontos, lendo livros didáticos,
resolvendo exercícios, aplicando provas, passando testes, atribuindo notas, e a educação fica reduzida a esse
ritual de reproduzir um modelo, fazer segundo o que foi visto, etc. Tudo gira em torno do ensino do professor,
e o aluno não tem nenhum espaço para desenvolver seu processo de aprendizagem. Ele não aprende de fato,
apenas repete o modelo segundo as expectativas do professor. O problema de nossas escolas não está
somente na alfabetização, no ensino da leitura e da escrita; talvez o problema mais grave seja não ensinar a
estudar.
<162>

8
Sugestões de atividades
na alfabetização
O TRABALHO COM A LEITURA
Como se tem insistido tanto até aqui, o segredo da
alfabetização é a leitura, é ensinar ao aluno como
decifrar a escrita. Outras interpretações sobre a leitura
só fazem sentido depois que o leitor tiver acesso à decifração.
Por outro lado, outras práticas escolares não se comparam em importância à decifração da escrita. Há muitas
maneiras de se chegar ao conhecimento que
permita ler um texto, algumas muito confusas e demoradas,
como a prática que proporciona o aluno a
descobrir por si — tendo o professor como simples
espectador —; outras estão mais voltadas para um trabalho
conjunto de ensino e aprendizagem, envolvendo
professor e aluno numa mesma tarefa.
Além de uma atitude sadia diante do processo de
alfabetização, há muitas coisas práticas que ajudam
pouco ou mesmo atrapalham o trabalho em sala de
aula. A seguir, serão feitos alguns comentários a respeito
disso.
Primeiras leituras
Em vez de começar o trabalho com letras e palavras
escritas ortograficamente, pode-se mostrar aos alunos
que eles conseguem ler outros sistemas de escrita, por
exemplo, os pictogramas usados de modo geral na sociedade
moderna, como as indicações de toalete masculino e feminino, os logotipos de marcas famosas, etiquetas,
símbolos, etc., explicando que a essas formas
gráficas se pode associar uma palavra, e que isso é ler,
no sentido mais técnico do termo. Aqui há um mundo
inteiro a ser explorado.
O professor pode mostrar para os alunos que se ele
fizer um tracinho, pode representar o número 1; se for
acrescentando outros tracinhos, pode representar os
demais números, estabelecendo uma contagem. Isso é
urna estratégia aritmética: para saber que número representa
um conjunto de tracinhos, basta contar. Esse
é um processo de decifração de um sistema de escrita.
Depois, com as letras faz-se a mesma coisa, só que, em
vez de contar, será preciso descobrir que som a letra
tem e ir somando esses sons até descobrir a palavra,
como se descobre um número. Um número é a soma
de unidades aritméticas e uma palavra é a soma de unidades
sonoras na fala e de letras na escrita.
<164>
MASSINJ-cAGLIAR1, 1993c. >
Pode-se mostrar a diferença entre desenho e escrita. Uma figura é um desenho quando é usada para
representar um objeto do mundo. E uma escrita quando é usada para representar uma palavra da linguagem
oral. O professor pode fazer o desenho de uma casa (ou mostrar uma foto), fazer o desenho de um caminho,
ou de alguém andando, e fazer o desenho de uma pessoa (ou uma foto de si próprio). Cada figura ou foto está
representando coisas do mundo, não constituindo, portanto, linguagem escrita. Porém, juntando a foto do
professor com o desenho de um caminho ou de alguém andando, mais o desenho da casa, nessa seqüência,
posso representar uma frase como: “Vou para casa”. Nesse momento, as figuras deixam de ser apenas
desenhos e passam a representar palavras. As figuras transformam-se em escrita. Ler o que está escrito
significa saber que palavras as figuras representam. Escrevendo desse modo, pode-se ter leituras variadas: “Fui
para casa”, “Irei para casa”, “Ele vai para casa”, etc.
Essa demonstração deixa claro para os alunos que eles podem usar figuras para representar as palavras que
querem escrever. Podem testar a leitura, isto é, o processo de decifração e de interpretação da escrita,
pedindo aos colegas que leiam o que escreveram. O professor pode explorar esse tipo de atividade, escrevendo
palavras, frases, pequenas mensagens e até pequenas histórias.
Recortando material de jornais e revistas, o professor pode mostrar aos alunos como esse tipo de escrita
(pictográfica, com desenhos) é usada na vida real. Pode exemplificar como, além de desenhos que
representam figuras de objetos, esse tipo de escrita inventa desenhos para representar palavras, como os
logotipos, as grifes, os escudos, as bandeiras, etc.

Inventando um código
Os alunos podem inventar seus sistemas de escrita servindo-se de pictogramas. Podem tentar escrever
histórias e fazer bilhetes. O professor deve acompanhar o trabalho dos alunos, mostrando-lhes como o sistema
que estão inventando funciona: coisas iguais são escritas da mesma maneira, coisas diferentes precisam de
formas diferentes ou de marcas diferenciadoras, tendo o cuidado de permitir que as outras pessoas possam
interpretar o código e ler. Para isso, ou se usa uma figura evidente num pictograma ou se ensina aos possíveis
leitores como interpretar e ler os caracteres.
<165>
Os alunos podem inventar desenhos convencionados por eles para representar palavras. Podem, por
exemplo, recortar figuras de objetos, animais, pessoas, e colocá-las em colunas, fazendo ao lado os símbolos
ou desenhos que representarão as palavras que essas fotos mostram. Depois, podem tentar escrever usando o
sistema de escrita que inventaram. Um aluno vai mostrar e explicar aos outros o que fez, enfim, vai ensinar os
demais a lerem seu sistema de escrita. O professor irá discutir as vantagens e as desvantagens da tarefa. Irá
pedir para que escrevam sem a chave da decifração, ou seja, usando apenas os símbolos inventados, sem
mostrar as figuras a que eles se referem. Em seguida, o aluno pedirá para os colegas descobrirem o que ele
escreveu. Como fica muito difícil guardar na memória todos os símbolos e seus significados inventados na
sala de aula, essa tarefa será resolvida apenas em parte. Exceto quem inventou o símbolo, os outros terão
muita dificuldade para ler o que foi escrito.
Com isso, o professor mostra aos alunos que seria bom todos usarem apenas um sistema de escrita porque,
uma vez estabelecido, todos se comunicariam apenas através dele. Isso seria muito mais útil e fácil de ser
usado na sociedade, onde vivem milhões de pessoas. Essa imitação do que aconteceu historicamente, há muito
tempo, ajuda os alunos a desenvolverem conhecimentos a respeito do funcionamento da natureza da escrita.
Além disso, motiva-os a progredir, pois eles começam a ver que, de certo modo, não só já entraram no mundo
da escrita e da leitura, como também já conseguiram ler e escrever.
É sempre possível escrever coisas enigmáticas ou códigos secretos. A criptografia é algo que fascina as
crianças: por que não deixá-las usar isso, neste momento inicial de descoberta da escrita? Podem fazer
dicionários em que apareçam dois sistemas de escrita: um pictográfico de fácil reconhecimento, e outro
constituído de caracteres arbitrários, como os de um código secreto. Esses jogos de escrita e leitura servem
para mostrar à criança que escrever e ler é algo fácil ou difícil, dependendo da forma como o sistema se
apresenta.
As letras já foram um sistema de escrita muito mais fácil do que são hoje. E isso pode servir de motivo para
se introduzir um pouco da história da escrita e das letras do alfabeto, mostrando seu caráter pictográfico
antigo e a época em que havia pouca variação na forma gráfica das letras.
<166>

A palavra como unidade de escrita


A história da escrita servirá também para mostrar aos alunos que ela gira em torno de palavras, e não apenas
de letras. Isso irá facilitar, futuramente, a tarefa que os alunos terão pela frente de segmentar a fala para
escrever palavras, bem como a de lidar com letras isoladas em sílabas e em palavras.
Unidades de fala menores do que a palavra podem ser tratadas, nesse momento, através do uso de rébus,
como se explica com o exemplo a seguir. Pode-se escrever a palavra “irmão” desenhando um menino ao lado
de outro, o que consistiria num pictograma e não num rébus para a palavra “irmão”. Por outro lado, pode-se
também escrever essa mesma palavra, fazendo o desenho das pernas de uma pessoa andando (“ir”) ao lado do
desenho de uma mão. Os dois desenhos representam agora uma única palavra “irmão”. Esse modo de escrever
tem o nome técnico de rébus. Através dessa estratégia de escrita, é fácil mostrar aos alunos que se pode
escrever baseando-se no significado das palavras ou nos sons que elas têm. Temos, assim, um sistema
ideográfico e um sistema fonográfico.

Nota
IR MÃO
O rébus é um jogo mental muito antigo e comum, consiste em exprimir palavras ou frases através de desenhos
ou de sinais cuja leitura e interpretação oferecem uma analogia com o que se quer fazer entender Exemplos:
20V — “vim te ver”; D+ = “demais”

Letras e sons
Para chegar aos segmentos fônicos que correspondem às letras, a questão é muito mais complexa. Vão ser
necessárias três etapas: primeiro, será preciso reinventar as letras, o que se pode fazer a partir dos próprios
pictogramas que deram origem às nossas letras; segundo, aplicar o princípio acrofônico para atribuir a cada
letra um som especial, particular e distintivo no sistema; terceiro, aprender a analisar os sons que a palavra que
se quer escrever tem na fala, achar as letras correspondentes, na ordem correspondente e, então, escrever a
palavra, segmento por segmento, com as letras convencionadas. Esse pode ser um longo caminho, mas basta
percorrê-lo uma vez, passo a passo. Isso não significa que com essa atividade os alunos já aprenderam a
escrever facilmente palavras com letras. O que se pretende nesse momento é simplesmente mostrar ao aluno
como diferentes sistemas de escrita funcionam e o que os espera pela frente.
Para o professor mostrar aos alunos como observar
os sons da fala, há duas maneiras principais, ou seja,
duas estratégias de observação. A primeira consiste em
<167>
silabar uma palavra, prolongando o som das vogais (mais raramente de algumas consoantes, como as
fricativas). Por exemplo, a palavra BATATA: “baaaa-taaaataaaa”. Note que existe uma parte diferente (“ba’) e
duas iguais (“ta-ta”). Note ainda que o som de “a” é o mais longo nas três sílabas. Desse modo, pode-se
perceber a recorrência prolongada de um mesmo som, a vogal “a”. Outro exemplo: FESTA: “féééés-taaaa” (ou
“fééééchtaaaa”). Agora, destacamos um som na primeira sílaba, que é o “ééé”, e outro diferente na segunda,
“aaa”. Por outro lado, na segunda sílaba da palavra FES-TA, tem-se o mesmo som observado na palavra BA-TA-
TA.
Seguindo esse procedimento de análise, acompanhado dos devidos comentários, o professor pode mostrar
aos alunos como observar os sons da fala de uma maneira muito interessante para a alfabetização.
A outra estratégia para analisar os sons da fala consiste em silabar as palavras, repetindo as articulações das
consoantes nos inícios das sílabas. Por exemplo: BATATA: “babababa-tatatata-tatatata”; ou FESTA:
“fésfésfésfés-tatatata”; ou CADERNO: kakakakaderderderder-nunununu”. O professor pode fazer vários
exercícios desse tipo, analisando com os alunos o que há de igual e o que há de diferente.
Na primeira abordagem, o professor ajuda os alunos a destacar as vogais das sílabas e, na segunda, a
consoante inicial das sílabas. Há outras maneiras de mostrar como analisar a fala. Uma delas, de uso muito
comum, é fazer levantamento das rimas. Toma-se uma palavra e procuram-se outras que terminem nos
mesmos sons (em geral, as rimas são dadas não por sílabas completas, mas somente pelas vogais das sílabas
finais das palavras). Por exemplo: encontrar palavras que rimem com AVIÃO:
CORAÇÃO, IRMÃO, DEDÃO, ACHARÃO, etc. Outra maneira é identificar palavras que comecem com os mesmos
sons (aqui é preciso levar em conta a sílaba como um todo). Por exemplo, palavras que comecem com o som
de “çi”: CIDADE, SINO, CINEMA, SITIO, CIGARRO, SINAL, etc. Outro exemplo são palavras que comecem com o
som de “dis”: DESCOBERTA, DESCASCAR, DESCARREGAR, DESMONTAR, DISTRIBUIR, DISTINTO, DISPUTAR, etc.
O professor irá fazer todos esses exercícios sem escrever nenhuma palavra: todos acompanharão a análise
somente através da fala e da audição.
Além disso, o professor pode inventar mil situações
para explicar fatos importantes da escrita e da leitura.
Por exemplo, pode começar escrevendo a palavra “camelo”,
<168>
recortando uma foto ou um desenho de camelo e mostrando a associação entre a palavra “camelo” e sua
representação.
Pode decompor a palavra através da análise dos sons e atribuir a cada segmento uma forma de
representação gráfica. Essa representação pode ser feita com desenhos de objetos cujos nomes permitam,
através do princípio da acrofonia, associar o desenho à fala. Nesse segundo modo de escrita, um desenho não
representa mais uma palavra inteira, mas apenas um pedaço, de preferência apenas um som, o som inicial do
nome do desenho. Procedendo assim para cada som da palavra “camelo”, acaba-se tendo um tipo de escrita
com letras figurativas. Por exemplo, como um dos resultados possíveis, a palavra “camelo” poderia ser escrita
com “letras” na forma de desenhos (pictogramas) representando, por ordem, um cabide (“e”), um avião (“a”),
o mar (“m”), um elefante (“e”), uma lata (“L”) e um ovo (“o”). Ensinar o truque para ler essa escrita é ensinar o
aluno a ler letras. Se há algo de bom e eficiente nas cartilhas é a aplicação do princípio acrofônico através do
bá-bé-bi-bó-bu. Os alunos aprendiam a ler com a cartilha por essa razão.
Se um aluno preferir usar um cacho de uva, representando o som “u” no final da palavra “camelo”, está
perfeito, e o professor pode mostrar aos alunos que podemos falar “camelu” ou “camelo”, razão pela qual ele
optou pelo som de “o”, e o aluno, pelo som de “u”. A solução encontrada pelo aluno pode criar uma boa
oportunidade para o professor falar um pouco sobre ortografia e variação lingüística. Como se vê, um assunto
puxa outro. O professor sabe de onde vai partir quando começa seu trabalho de ensino, mas quase nunca sabe
de antemão onde vai parar. E é assim que deve ser.
Quando os alunos inventaram um sistema de escrita, basearam-se no significado das palavras: as fotos e os
desenhos correspondiam às idéias que as palavras
<169>
representavam. Os sons vinham depois de identificados os significados e produziam palavras da língua
portuguesa porque os alunos estavam representando, na escrita, a língua que falam. Assim, vendo a foto de
uma casa, atribuímos a ela a palavra que tem esse significado e que se pronuncia, em português, com os sons
“kaza”. A escrita revelou uma idéia, através da atribuição de uma palavra aos sinais gráficos. Ao fazermos isso,
descobrimos também os sons dessa palavra que representa a idéia que falamos. Portanto, as palavras sempre
se compõem de idéias e sons. Podemos dividir o significado de uma palavra em partes, gerando novas idéias
(significados), que fazem parte da idéia mais geral. Por exemplo, podemos dividir a idéia de “casa” nos
componentes que constituem uma casa, como telhado, paredes, chão, janela, porta, etc. Ao fazer isso,
descobrimos que essas idéias formam novas palavras. As idéias não conseguem sobreviver sem os sons das
palavras. E sons sem significado não formam palavras, são apenas ruídos.
Por outro lado, quando segmentamos os sons da palavra “casa”, temos “ka-za”. No todo, existe um
significado. Porém, considerando cada pedaço (sílaba) em separado, perde-se o significado original, podendo
ou não resultar outro significado. Assim, “ka” significa, isoladamente, “aqui”, “cá estou eu”; mas “za” não
significa nada (talvez um apelido...).
Mexer com o significado para saber o que faz parte de uma idéia ou não é muito complicado e, na prática, é
uma tarefa impossível de ser feita até o fim... Sempre se descobre algo novo. Porém, com os sons das palavras
tudo é bem mais simples e fácil.

O alfabeto
Aos poucos, passa-se da escrita ideográfica para a fonográfica, do aspecto figurativo dos caracteres para o
convencional, dos grifos para as letras e, assim, chega-se ao alfabeto das letras de fôrma maiúsculas. Essas
letras serão usadas por um bom tempo e com elas os alunos aprenderão a decifrar nossa escrita tradicional e a
escrever seus primeiros textos.
Quando se chega às letras, o melhor é falar logo do alfabeto e apresentar todas as letras de uma vez. Para
isso, seria bom que houvesse na sala uma faixa com o alfabeto das letras de fôrma maiúsculas, que pudesse
ficar bem visível, talvez acima da lousa (ou quadro-negro), para que os alunos tenham esse modelo
constantemente
<170>
diante dos olhos. Esse alfabeto deve conter todas as letras do dicionário, seguindo a ordem alfabética, ou
seja:
A B C Ç D E F G H IJ K L M N O P Q R S T U V W X Y Z.
Apresentado o alfabeto, ensina-se o nome das letras, não só para que os alunos o aprendam, mas também
para terem um referencial dos sons que as letras têm. É claro que a questão na verdade é bem mais
complicada, mas nesse momento basta o professor alertar para a dificuldade futura, esclarecendo que um dos
sons possíveis que as letras têm pode ser encontrado no próprio nome das letras. Portanto, sabendo o nome
das letras, pode-se decifrar a escrita de uma palavra, sem grandes dificuldades. O professor pode, por exemplo,
apresentar uma palavra na forma escrita, sem dizer do que se trata, e pedir aos alunos para decifrá-la.
Descobre-se que a tentativa não deu certo, quando não se chega a nenhuma palavra (conhecida). Então, pode-
se deixar de lado algumas letras e tentar recuperar a palavra (descobrir seu significado). Desconfiar e tentar
são tarefas comuns nesse momento. É sempre muito importante estar atento para o fato de o resultado da
decifração ter de revelar uma palavra conhecida, cujo significado é evidente, e não apenas sons. Na vida às
vezes nos deparamos com palavras desconhecidas, mas isso não acontece na alfabetização ou, se acontecer,
será algo extremamente raro. Portanto, se o resultado final é uma palavra desconhecida, o aluno deve
desconfiar que a decifração apresentou alguma interpretação errada dos valores fonéticos de uma ou mais
letras. O que vale sempre é o resultado final, ou seja, a palavra, que o aluno deverá reconhecer facilmente,
como falante nativo.
Para ilustrar o que foi dito, suponhamos que o professor escreveu CASA e pediu para os alunos identificarem
primeiro os nomes das letras: c, a, esse, a. Com os nomes das letras, os alunos tentam juntar os sons relevantes
e descobrir de que palavra se trata. Um aluno pode dizer que está escrito “saça”. Então o professor o faz ver
que não existe a palavra SAÇA (não se conhece um significado para essa seqüência de sons) e volta-se atrás e
se procura um som diferente e possível para as letras. A letra C pode ter o som de “kê” e a letra S pode ter o
som de “zê”. O resultado, agora, é “kaza”. Está descoberta uma palavra conhecida.
Com essa técnica, o professor pode escolher palavras, fazer com os alunos o reconhecimento das letras
escritas, identificar cada letra com seu respectivo nome,
<171>
dizer que palavra está escrita, analisar os sons e fazer a correspondência das letras com os sons, para verificar
naquela palavra que sons as letras têm. Isso não só ensina os alunos a identificarem as letras, como também
ensina-os a ler palavras simples. Não é tudo, mas já é um grande avanço.

Primeiros problemas com a decifração


Com o progresso obtido, logo começam a aparecer problemas que deverão ser tratados cuidadosamente.
Alguns deles exigem explicações um tanto complicadas. E sempre preferível dar uma boa explicação, mesmo
que complicada, a ter de camuflar o problema, disfarçar, usar de subterfúgios com explicações metafóricas. Se
os alunos não entenderem direito (ou nada), não faz mal. Algumas explicações precisam ser dadas por causa
das circunstâncias, mas como os problemas voltarão a aparecer em outras ocasiões, os alunos terão outras
chances de aprender. Quando o professor prefere uma explicação aparentemente fácil, metafórica, incompleta
e meio deturpada, corre o risco de ter de se desculpar mais tarde. Alguns alunos se sentirão enganados quando
descobrirem que a verdade tem outra cara.
Ao iniciar a decifração da escrita, os alunos irão encontrar algumas dificuldades causadas pela falta de
informação a respeito de alguns aspectos da linguagem oral e escrita. O professor não pode ensinar tudo de
uma vez. Portanto, é preciso reconhecer a falta de informações preliminares e procurar resolver isso à medida
que for conveniente e importante. Somente depois que os alunos tiverem ouvido explicações a respeito de
muitos fatos básicos da linguagem oral e escrita, poderão entender verdadeiramente os mecanismos da
decifração. Mas começar tentando decifrar a escrita é a melhor prática para discutir e aprender.
Entre esses problemas estão os seguintes: a variação lingüística; a aquisição da linguagem oral e da escrita;
as noções básicas de fonética e fonologia; o modo como a fala, a escrita e a leitura funcionam e quais os seus
usos; o que é decifrar uma escrita e como fazer; o que é a ortografia e como resolver dúvidas ortográficas;
como é um texto na linguagem oral e como é um texto na linguagem escrita; como analisar e interpretar os
erros; como avaliar a importância de atividades pedagógicas relacionadas com os conteúdos programáticos e
outros menos importantes.
<172>
O professor não poderá tratar cada um desses assuntos de maneira isolada e completa, numa ordem
predeterminada. As explicações devem acontecer quando for o momento e de maneira dosada às
necessidades. Em geral, é preciso abordar vários aspectos de muitos tópicos numa única ocasião. Somente em
séries mais adiantadas, quando os alunos já tiverem certas noções básicas, será o momento oportuno de fazer
um estudo mais detalhado e organizado desses pontos.

Pares mínimos
Voltando ao trabalho específico de decifração da escrita e de técnicas para aprender a ler, há um tipo de
exercício, muito usado pelos lingüistas, que ajuda a explicar aos alunos como detectar os segmentos fonéticos
da fala, para relacioná-los depois às letras do alfabeto. São os pares mínimos. Obtém-se um par mínimo
quando se juntam duas palavras de significados diferentes, cuja forma fonética varia apenas com relação a um
som. Por exemplo: “bato/mato” (a única diferença fonética é B, que se opõe a M no início das palavras do par),
“casa/caça”, “mar/mas”, etc.
Do ponto de vista da fala, “concerto” e “conserto” são palavras ambíguas (como “manga”, por exemplo, que
significa uma fruta e uma parte de roupa), mas do ponto de vista da escrita, formariam uma espécie de “par
mínimo”, porque representam palavras de significados diferentes. O professor pode explorar essas duas
possibilidades: pares mínimos considerando a fala ou a escrita, relacionados entre si ou não. Com o par mínimo
falado, destacam-se os sons que distinguem uma palavra de outra; com o par mínimo escrito, destacam- se as
letras diferentes que representam um mesmo som. Perceber diferenças em meio a igualdades é um requisito
muito importante em todo trabalho lingüístico.
Feito isso, basta mostrar quais letras serão usadas para representar os sons distintivos, explicando que no
próprio nome da letra, já se tem uma dica de que som ela representa, ou de que letra terá de ser usada para
escrever, quando já se sabe o som, observando a fala.

Rimas
Outra atividade muito útil para ensinar o reconhecimento de segmentos fonéticos de palavras é o uso de
rimas: palavras terminadas em sons semelhantes, como,
<173>
por exemplo, em “ão”: “avião”, “coração”, “habitação”, “irmão”, etc. O professor pode escrever na lousa as
palavras rimadas, ditadas pelos alunos, fazendo colunas, de tal modo que se perceba na escrita que todas essas
palavras terminam com um mesmo conjunto de letras e sons (no caso, “ão”).
Fazer exercícios que levem o aluno a aprender a relacionar as letras com os sons das palavras é fundamental.

Categorização gráfica das letras


Outro aspecto importante dos sistemas de escrita é a categorização das letras do alfabeto. Como usamos
muitos alfabetos, é preciso saber que uma mesma letra pode ser escrita com formas gráficas diferentes.
Depois que os alunos já avançaram bem no trabalho de decifração, usando apenas as letras de fôrma
maiúsculas, o professor pode apresentar escritas de palavras com alfabetos diferentes, em colunas, para que
os alunos percebam que, para cada lugar de escrita na palavra, há uma letra, e que as letras, nas colunas
verticais, pertencem a alfabetos diferentes (colunas horizontais), e têm, portanto, o mesmo valor alfabético.

Primeiras leituras de textos


Depois que os alunos conseguirem decifrar por si palavras isoladas, o professor os levará a ler pequenos
textos. Aqui, há alguns pontos importantes a serem considerados. Em primeiro lugar, é preciso que o professor
convença-se de que é mais importante que o aluno leia e não que exiba para ele ou para a classe que já sabe
ler. Assim, o professor estimulará seus alunos a lerem em particular, para si, até que adquiram habilidade e
velocidade de leitura para ler em voz alta para a classe, sem grandes dificuldades
Ler textos de uma ou duas frases, no início, exige um grande esforço de decifração (são muitas letras...).
Porém, esses textos oferecem a vantagem de poderem ser facilmente decorados. Portanto, o professor deixará
que cada aluno descubra o que está escrito. Feito isso, poderá, então, dizer o que foi que leu. Aqui, o fato de
reproduzir literal e exatamente o que está escrito não é importante. O que conta é o fato de o aluno descobrir
o que está escrito porque, para isso, ele precisará ter decifrado pelo menos as palavras mais importantes para
a compreensão do texto. Uma leitura mais rigorosa, mais fiel ao texto, será cobrada mais adiante.
< MASSINI-CAGLIARI, 1998a.
<174>
Com o tempo, vai-se passando de textos curtos para textos cada vez mais longos, deixando sempre os alunos
lerem individualmente. Se algum aluno quiser ler para os colegas, será preciso que prepare muito bem sua
leitura com antecedência. Se o professor perceber que o aluno está lendo mal (gaguejando, silabando, sem
ritmo, sem a correta entoação, etc.), deverá solicitar do aluno que prepare melhor sua leitura, mostrando
como ela deve ser feita.

Interpretar ou discutir o que leu


Convém relembrar que é desnecessário, e mesmo ridículo, querer fazer interpretação de texto nas primeiras
séries. Análise literária ou análise de discurso de textos deverão ser feitas em séries avançadas. Portanto, o
professor não deverá ficar preocupado se seus alunos estão entendendo ou não o que estão lendo, pois é claro
que estão entendendo, uma vez que os textos são, em geral, histórias de fácil compreensão. Trabalhar as
sutilezas dos textos é de menor importância na alfabetização.
Isso não quer dizer que o professor não possa discutir certos assuntos com seus alunos, servindo-se da
leitura de textos. Nesse tipo de atividade, o que vale é a discussão das idéias pessoais, incluindo as expressas
pelo autor do texto. O que não faz sentido é querer discutir o texto como fato lingüístico ou literário.
Discussões podem ser feitas mesmo sem o pretexto de um texto. Fazer discussões em sala de aula é uma
atividade de grande importância. Interpretar textos com perguntas e respostas é uma idiotice.

O que ler
Os alunos precisam ser incentivados a ler todo tipo de material, quer com relação à forma gráfica, quer com
relação aos variados tipos de textos. Devem ler coisas impressas e coisas manuscritas, devem ler propagandas
ou outro material semelhante. O professor precisa mostrar aos alunos material escrito com os mais variados
tipos de letras. Usos artísticos da escrita merecem um destaque. Usos especiais em propagandas também são
interessantes, como palavras decoradas com desenhos que ilustram seu significado. Por exemplo, a palavra
“incêndio” escrita com letras pegando fogo.
É preciso ler histórias (muitas), notícias, reportagens que falem de assuntos científicos, técnicos, curiosos, da
vida de pessoas famosas, etc. É preciso ler jornal,
<175>
revistas, receitas culinárias, instruções de uso de equipamento, de montagem ou de conserto, enfim, ler de
tudo. E ler nunca é demais.

O TRABALHO COM A ESCRITA


Quando se falou da leitura, incluíram-se muitos fatos
relativos à escrita, porque um processo necessariamente
implica outro. Aos poucos a escrita vai tornando-se
familiar quando se estuda como se deve ler. O
próprio sistema de escrita revela-se com a descoberta
da decifração. Em outras palavras, as noções básicas
de um sistema de escrita, do ponto de vista gráfico e
funcional, são aprendidas no processo de aprendizagem
da leitura. Por essa razão, insistimos no fato de
que o segredo da alfabetização está em saber ler, ou
seja, em decifrar o sistema de escrita que temos.
As considerações que seguem estão voltadas para os
conhecimentos dos sistemas de escrita que os alunos
adquirem ao lidar com a leitura. Interessa mais a produção
de material escrito pelas crianças do que teorizar
a respeito desse fato. Tal qual foi feito em seções anteriores,
serão apresentadas sugestões numa ordem que
não precisa ser necessariamente aquela que vai ser
transmitida.

Primeiras descobertas sobre a escrita


No começo, os alunos podem colecionar letras, fazendo
álbuns de recortes: uma folha para cada letra.
Depois, dispõem-se as folhas em ordem alfabética e tem-
se um pequeno dicionário de letras.
Os alunos conseguem fazer leituras incidentais, isto
é, reconhecem que certas coisas estão escritas em certos
lugares. Por exemplo, sabem que numa garrafa de
Coca-Cola está escrito Coca-Cola com o design feito
de uma determinada maneira. E interessante que eles
colecionem rótulos de produtos para terem consigo
esses materiais que sabem ler. Podem, ainda, colecionar
pictogramas, sinais de trânsito, símbolos, grifes, logomarcas,
logotipos, etc. Esse material já impresso, que é recortado, pode servir para os alunos montarem suas
mensagens escritas, bolarem suas propagandas ou fazerem cartazes. Essa já é uma maneira de escrever sem
precisar usar o lápis.
<176>
Paralelamente ao estudo da leitura, os alunos irão produzir textos escrevendo com os pictogramas que
inventarem, podendo chegar a escrever textos relativamente longos, como histórias e cartas. Brincar de
escrever, inventando sistemas de escrita, é altamente instrutivo e auxilia muito na alfabetização. Explorar
caminhos novos é sempre um desafio, e as crianças gostam muito de enfrentar essas aventuras educativas. Até
para o professor, o trabalho toma-se mais atraente e menos pesado.
Descobrindo que a escrita representa a fala
À medida que os alunos forem trabalhando, o professor irá orientando-os a relacionar os símbolos com os
textos (a pomba da paz com o ramo de oliveira... lembrando o dilúvio...), sinais de trânsito com frases (é
proibido estacionar), pictogramas com suas mensagens (é proibido fumar, frágil...), pictogramas que
representam palavras (banheiro masculino, natação...), formas de rébus que indicam sílabas ou pedaços de
palavras, cartas enigmáticas, etc. É importante que esse caminho desemboque sempre nas letras e na
representação de sons da fala associados às letras.
A exploração desse material, aliada ao processo de leitura, permite que os alunos já realizem muitas
atividades de escrita. O professor deve ajudar os alunos a percorrerem esses caminhos todos, mas deve,
sempre que possível, andar um passo atrás e não à frente dos alunos. E fundamental deixar que eles escrevam
o que acharem importante, mesmo não sabendo quase nada sobre a escrita. Eles vão se sentindo cada vez
mais confiantes no processo de aprendizagem e no desempenho das tarefas escolares. Assim, para a criança,
escrever logo deixa de ser um mistério e torna-se, sem que eles percebam, algo familiar e banal.

Sistema ideográfico e fonográfico


Depois de muito fazer, o professor pode ensinar aos alunos que os sistemas de escrita são basicamente dois:
ideográfico ou fonográfico. No primeiro caso, escreve-se a partir do significado, procurando encontrar depois
os sons que esses significados têm. Quando fazemos um pictograma figurativo e depois dizemos a palavra que
aquela escrita representa, ou quando escrevemos um número e sabemos que aquele caractere representa uma
certa quantidade, que se traduz numa palavra, estamos diante de uma escrita ideográfica.
<177>
No segundo caso, o fonográfico, escreve-se a partir
dos sons que as palavras têm na linguagem oral. A relação
entre letras e sons pode ser estabelecida de várias
formas, através de rébus, sílabas, vogais e consoantes e
até de outras propriedades fonéticas (por exemplo, o til
indicativo da nasalidade — LÃ —, o acento indicativo
de tonicidade ou de mudança de qualidade vocálica —
AVÔ, AVÓ). É importante saber relacionar os elementos
da fala com os da escrita. Tratando-se da escrita alfabética,
a cada letra será associado um som, com exceção
da letra h, que depois deverá compor os sons da
palavra.
Existem estratégias diferentes para ler e para escrever,
usando-se o sistema fonográfico. Para escrever é preciso relacionar cada som da fala a uma letra, seguir uma
ordem de escrita e verificar a ortografia. Para ler,
é necessário associar a cada letra um som, somar os
sons na ordem e descobrir que palavra está escrita. Se
não der certo, será preciso rever o processo e usar
outras alternativas, até que o significado apareça.
Contar a história da escrita
O professor deverá contar para os alunos a história
da escrita, privilegiando as letras e os números. Explorar
esse assunto ao máximo, como recurso para ensinar
fatos importantes a respeito da leitura e da escrita.
Contar a história do alfabeto, sua evolução, a história
dos estilos de letras, da caligrafia, dos livros. Os recursos
visuais aqui são úteis.
Outro tipo de material interessante é encontrado na
maneira como as línguas adaptaram o alfabeto latino
para escrever as mais diferentes línguas do mundo. As
vezes, uns poucos exemplos são suficientes para mostrar
coisas curiosas e altamente pertinentes para o processo
de alfabetização. Uma lista de palavras de línguas
diferentes pode esclarecer como uma letra, por exemplo,
A, tem sons diferentes.

Nota
Português Inglês Francês;
banho “bãnhu” table “teibl” (mesa) nouveau “nuvô” (novo)
caixa “kacha” cat “két” (gato) maitre “métr” (professor)
rapaz “rrapaiç” battle “btl” (batalha) mâle “mal” (macho)
é símbolo da IPA — International Phonetical Association (Associação Fonética Internacional,).
<178>

Traçar as letras com gabaritos


Quando os alunos já estiverem sabendo os nomes das letras e os principais sons que elas têm, está na hora
de começar a usar esses conhecimentos para escrever.
Com relação à parte gráfica, um modo interessante de ensinar os alunos a traçarem correta e facilmente as
letras (no começo apenas as letras de fôrma maiúsculas), pode ser através do uso de gabaritos, como fazem os
letristas. Para as letras de fôrma maiúsculas, um gabarito de três linhas é o suficiente. Um gabarito mais
completo tem oito quadradinhos para cada letra, em duas fileiras verticais de quatro quadradinhos, por quatro
fileiras horizontais de dois quadradinhos.
ABCDEMPQRX
ABCDMPQR

O professor deverá ainda dar instruções precisas sobre como fazer o traçado das letras, dizendo, por
exemplo, que nas de fôrma maiúsculas, o traçado é feito sempre de cima para baixo e da esquerda para a
direita, quando houver mais de um traço, ou da direita para a esquerda, quando houver só curvas, etc.
Cada tipo de alfabeto exige um traçado gráfico próprio. As letras, em geral, sobretudo as de fôrma
maiúsculas, são escritas iniciando-se o traçado na linha de cima e riscando para baixo. As curvas presas a hastes
verticais começam nas hastes, na parte mais alta, e vão para a direita, descendo. Traços horizontais vão da
esquerda para a direita e são feitos depois dos traços verticais (que são os primeiros) e das curvas. Letras que
apresentam apenas curvas, sem hastes, são traçadas da direita para a esquerda, e de cima para baixo. Essas
técnicas também devem ser ensinadas pelo professor. Elas ajudam os alunos a escrever uniforme e
caligraficamente. Ajudam também a reconhecer os traços distintivos que compõem as letras graficamente.
<179>
Explicações como essa são de grande ajuda, mas o professor não deve exigir que os alunos façam somente
como ele indicou. As crianças podem inventar alguns traços. Todavia, é bom não deixar que escrevam de
qualquer jeito, segurando o lápis displicentemente. O professor deve avaliar, usando o bom senso, o que está
acontecendo e intervir quando julgar necessário. Por outro lado, é bom lembrar que escrever tem uma
tradição gráfica no feitio e no resultado que é conveniente preservar; a escola tem o dever de zelar para que
essa tradição não desapareça.

Localização da escrita no espaço


Olhando fotografias de casas comerciais nas ruas das cidades, logo percebemos que também é possível
escrever uma letra debaixo de outra, isto é, podemos escrever na vertical. Nesse caso, a seqüência das letras
de uma palavra deve respeitar a ordem que vai de cima para baixo e nunca de baixo para cima. Isso também
tem de ser discutido com os alunos.
O professor pode ir além e mostrar como se escreve formando um círculo, exemplificando com moedas e
medalhas. Nesse caso, a linha de base fica sendo a do círculo interno e a linha de cima, a do círculo externo.
Esse princípio aplica-se também quando se quer escrever fazendo curvas para cima e para baixo. Aplica-se
ainda quando se considera que o material sobre o qual se escreve será usado de maneira variada, estando ora
com uma parte voltada para cima, ora para baixo ou para os lados. Quando a escrita em círculo se atém a um
material fixo, que o leitor verá sempre numa única posição, há várias formas de dispor as letras em curvas.
Pode-se até escrever como se fosse uma reta que foi cortada ao meio e dobrada: metade para cima e metade
para baixo. Uma investigação desses fatos no mundo real revela as regras para dispor as letras em curvas.
O alfabeto das letras de fôrma maiúsculas apresenta todas elas bem distintas graficamente, o que não
acontece com as letras de fôrma minúsculas e, menos ainda, com a escrita cursiva. Por exemplo, há uma
notável distinção gráfica entre D, B, Q e l porém o que distingue as letras minúsculas correspondentes d, b, q e
p é apenas a sua localização espacial. Uma pessoa só sabe se se trata de uma letra ou de outra, se souber qual
é o lado de cima e o lado de baixo. Se a folha estiver de cabeça para baixo (posição que ocorre
freqüentemente), o valor
<180>

dessas letras altera-se: o d transforma-se em p, o bem q, o q em b e o p em d. Se o professor não tiver uma


boa conversa com seus alunos a respeito da localização das letras no espaço, eles podem se confundir.
Para ensinar isso, o professor não precisa disfarçar que existe uma dificuldade de interpretação, dependendo
do modo como se observam as letras, e, em contrapartida, passar exercícios de “prontidão”. Pelo contrário,
deve mostrar ao aluno o que acontece quando vemos as letras de um lado ou de outro, com o papel certo ou
virado de cabeça para baixo. Além disso, deve dizer que, para se saber o valor das letras, é preciso estabelecer
primeiro o lado certo do papel, o que se consegue, analisando em que sentido estão dispostas as letras: se da
esquerda para a direita (ou vice-versa), se há letras facilmente reconhecíveis como estando de cabeça para
baixo (ou não), como a letra A, e outras pistas que o aluno pode encontrar para se orientar.
É mais difícil escrever as letras sem confundir sua localização espacial do que reconhecê-las. Quando algum
aluno apresenta dificuldades nesse sentido, deve-se mostrar a ele a importância da relação espacial que as
letras apresentam com relação ao leitor. Cartazes com diferentes alfabetos ajudam os alunos a entender
melhor o que se pretende ensinar.

Copiar para aprender


Fazer cópias, principalmente de alguns exemplos que o professor explica na lousa, é algo que os alunos
apreciam. Faz muito bem a eles. Copiar para aprender sempre foi uma prática muito usada e eficaz de estudar
e se alfabetizar. Um dos segredos da alfabetização tradicional é a cópia. Enquanto os alunos copiam, pensam
naquilo que as letras representam. Porém, se o aluno encarar a cópia como uma simples reprodução, caso das
cartilhas, essa atividade pode não só não ajudar o aluno, como lhe passar a idéia de que escrever é apenas
copiar. Daí a importância da cópia de textos significativos para o aluno, como aquilo que o professor explica e
escreve na lousa ou outros textos sugeridos pelos próprios alunos.

Escrita espelhada
O professor não pode simplesmente dizer para os alunos escreverem da esquerda para a direita, supondo
que assim eles não irão escrever de forma espelhada. Quando o professor diz isso, está pensando na seqüência
<181>
de letras na palavra: que letra antecede qual. Porém,
muitos alunos estão, nesse momento, mais preocupados em como se traçam as letras. Lembrando das
orientações do professor, eles tentam escrever as letras
indo com o lápis da esquerda para a direita e acabam
fazendo, por exemplo, o S e o C de forma espelhada. Seguindo essa direção, compõem todas as
demais no mesmo padrão, e a palavra inteira muitas vezes apresenta-se da forma espelhada.
O professor pode apresentar palavras escritas em
vidros ou plásticos transparentes para mostrar como vemos as letras do lado certo e na forma espelhada.
Portas de casas comerciais costumam mostrar a escrita
dessas duas maneiras. Carros de bombeiros, de polícia
e ambulâncias apresentam palavras escritas de forma
espelhada na dianteira. Isso acontece para que o motorista
do carro que estiver à frente possa ler direito, pelo
retrovisor, o que está escrito nesses carros oficiais. O
professor pode arrumar um espelho grande e mostrar como as letras ficam invertidas (espelhadas) quando
refletidas no espelho. Essa também é uma forma de
analisar com alunos como a escrita funciona.

Explicar o que é ortografia


Muito mais importante do que a cópia é incentivar
os alunos a produzirem escritas espontâneas, visando
sempre à redação de um texto, seja ele curto ou longo.
Quando isso começar a acontecer, inevitavelmente vão aparecer os famosos e inúmeros problemas de
ortografia, que a escola costuma chamar de troca de letras.
Então, está na hora de explicar o que é ortografia, como
funciona e quais os seus usos.
A explicação ficará mais atraente e será mais bem
assimilada nos seus pontos principais se vier associada à história da ortografia da língua portuguesa, ilustrada
com exemplos do passado.
Muitos alunos vão se sentir menos frustrados quando
souberem que antigamente havia pessoas que escreviam
(em documentos e em livros) palavras como eles
fazem atualmente, porque a ortografia naquela época
permitia. Mas hoje é diferente. Como exemplo, escrever “onrras” (honras), “deru” (deram), “çinquo” (cinco),
“homes” (homens), “filia” (filhas), “doçe” (doce), “vaquas” (vacas), “milhor” (melhor, “dici” (disse), etc.
Ficarão mais consolados ainda quando, ao explicar a
ortografia, o professor mostrar que os próprios dicionaristas, em alguns casos, não sabem qual é a forma
<182>
ortográfica preferida das palavras e, portanto, admitem mais de uma maneira de grafá-las como, por exemplo,
“flecha” e “frecha”, “caminhão” e “camião”, “aluguel” e “aluguer”, “assobiar” e “assoviar”, “louro” e “loiro”,
etc. Não são só os alfabetizandos que têm dúvidas ortográficas. Com essas explicações, os alunos sentir-se-ão
mais confiantes na aventura de escrever os seus textos e o professor receberá com mais tranqüilidade o
resultado obtido pelas crianças.
Como atividade de escrita, é essencial que os alunos aprendam (e pratiquem) primeiro a escrita e ponham-se
a escrever como eles acham que deve ser. Somente depois, já mais familiarizados com o ato de escrever, serão
levados a reconsiderar o que fizeram, em função das normas ortográficas. À medida que os alunos forem
escrevendo e forem sendo instruídos a respeito da ortografia, de seus usos e de como tirar dúvidas
ortográficas, procurarão escrever cada vez mais corretamente, chegando em pouco tempo a ter poucos erros
de grafia, mesmo na primeira versão dos textos que escreverem.

Texto não é só ortografia


Juntamente com a habilidade de escrever graficamente, o professor precisa ir ensinando aos alunos que os
textos escritos têm peculiaridades próprias e que os escritores precisam respeitá-las, porque isso faz parte da
nossa cultura.
Quando se fala, tem-se o interlocutor diante de si e, por essa razão, podem-se fazer gestos, usar recursos
não-lingüísticos para tornar o texto oral eficaz e ser entendido plenamente. A escrita é muito pobre em
recursos dessa natureza e, quando se escreve, o interlocutor não está vendo o autor nem interagindo com ele,
perguntando o que não entendeu, pedindo explicações, etc. Portanto, o autor do texto escrito precisa de certo
modo adivinhar as possíveis dificuldades de seu interlocutor (o leitor) e facilitar a compreensão do texto,
revelando através de palavras todas as informações contextuais necessárias para que seu texto tenha a eficácia
esperada.
Fazer isso requer prática. Adquire-se essa habilidade através de um trabalho escolar bem desenvolvido,
desde a alfabetização. Escrever, como qualquer arte, é algo que também se aprende com o estudo das
técnicas, embora o gênio, como se diz, já nasça com a arte
<183>
no sangue. A escola, todavia, não espera que todos os alunos sejam grandes escritores. Espera apenas que
todos aprendam a escrever o que for necessário, de acordo com a tradição da cultura da sociedade em que
vivem.

A correção da escrita
Tão importante quanto aprender a escrever é aprender a corrigir o que se escreve. A correção feita pelo
professor deve ser sempre acidental e ocasional. O importante é a correção que o próprio aluno faz dos seus
trabalhos. Como diz um velho ditado chinês, não basta dar um peixe a quem tem fome; é preciso ensinar a
pescar. Não basta dizer ao aluno que ele errou, que seu texto está todo desarticulado ou coisa semelhante. É
preciso ensinar a ele como resolver essas dificuldades, como se autocorrigir, sem precisar do professor. Essa é
uma tarefa que vai sendo aprimorada aos poucos e, sem dúvida, leva anos para atingir um nível satisfatório.
Mas é preciso que comece a se desenvolver desde as primeiras manifestações de escrita.
Nos primeiros textos, como o objetivo é simplesmente fazer com que o aluno passe da habilidade que tem
de produzir textos orais para a habilidade de traduzi-los para textos escritos, o professor não deve nem sequer
mencionar o fato de que o aluno precisa corrigir o que escreveu, que precisa fazer primeiro um rascunho ou
versão preliminar, corrigir, melhorar e, depois, passar a limpo. No começo, vale o que o aluno faz, do jeito que
ele fez. Nenhum professor tem condições nem tempo para corrigir todos os erros dos alunos no começo da
alfabetização e, pedagogicamente, nem é preciso.
Com o tempo, quando os alunos já estiverem mais à vontade com a escrita e a leitura, produzindo textos
espontâneos, o professor começa a explicar-lhes que é preciso melhorar os textos, não só no aspecto visual-
gráfico, como também levando em conta a ortografia e, acima de tudo, a estruturação do conteúdo do
discurso.
Esse é o momento das explicações técnicas adequadas e das cobranças. A partir daí, os alunos farão dois
tipos de texto: aqueles para uso pessoal, que não precisam ser corrigidos e têm apenas uma única versão, e
outros, que serão lidos por outras pessoas, que irão formar livrinhos, os quais deverão atender às exigências da
escola, e serão feitos em pelo menos duas versões, permitindo a correção e o aprimoramento da versão inicial.
<184>
Esses cuidados significam formas de respeito ao leitor e, portanto, uma prática pedagógica muito
importante, a que a escola precisa dedicar-se. Não há nada mais desagradável do que receber uma carta, um
bilhete ou um trabalho mal escrito, mal organizado, ininteligível com relação às idéias e à grafia, sujo, mal
planejado. Fazem parte da boa educação esses cuidados com a escrita.

Diacríticos, marcas e arte na escrita


A escrita não é feita só de letras. Há uma série de
marcas e diacríticos que fazem parte do sistema de escrita como um todo e que precisam ser estudados com os
alunos, juntamente com o alfabeto. No início, os acentos e os sinais de pontuação, como o ponto final, a
vírgula, o ponto de interrogação, os dois-pontos e o travessão são os diacríticos mais importantes.
As crianças gostam de escrever palavras com letras artísticas, enfeitadas. Esse é um bom motivo para fazer
cartazes sobre os mais variados assuntos. Os alunos se entusiasmam com essas atividades e, ao mesmo tempo,
vão aprendendo e produzindo novos materiais escritos.
A arte de escrever prevê uma programação gráfica, um layout, ou seja, uma maneira elegante de distribuir o
material gráfico sobre a folha de papel, além da caligrafia bonita. Essas sutilezas da cultura também precisam
ser cultivadas na escola, desde a alfabetização. Esses temas serão tratados a seguir.

Letras cursivas
As letras cursivas representam modos individuais de traçar as letras. Tradicionalmente, por causa do método
das cartilhas, a escola passou a exigir dos alunos um certo tipo de letra cursiva (manuscrita, script...), com ou
sem as adaptações que os professores poderiam fazer.
O ensino à prática da escrita cursiva começa quando os alunos já aprenderam a ler (decifrar) e já escreveram
os primeiros textos com as letras de fôrma maiúsculas e minúsculas. Em geral, a escrita cursiva é dada no início
do segundo semestre. Quando os alunos estiverem na terceira série, ou forem mais adiantados, seria bom que
o professor analisasse com eles como funciona a escrita cursiva que eles apresentam naquele momento. Além
das formas pessoais de amalgamar letras,
<185>
deformando características gráficas das letras (isoladas), os usuários costumam abreviar palavras e usar outros
tipos de anotação ideográfica.
De acordo com sua natureza, a escrita cursiva serve para escrever com rapidez ou para fazer anotações
pessoais. Por essa razão, ela contempla todas as idiossincrasias dos usuários. Porém, como as pessoas se
acostumaram a escreverem textos com letra cursiva também para que outras pessoas lessem, é preciso que se
escreva de maneira clara e elegante. É por essa razão que muitos professores ensinam um certo tipo de letra
cursiva e exigem-no de seus alunos.
O professor precisa explicar esses usos da escrita cursiva para que seus alunos compreendam que podem
escrever com a letra que quiserem quando fizerem anotações pessoais, porém deverão usar uma letra clara e
bonita quando forem escrever para outras pessoas.

Caligrafia
A caligrafia sempre foi uma arte. Os próprios computadores modernos não se esqueceram disso. Parece, no
entanto, que muitos professores, por razões estranhas, abandonaram o ensino da caligrafia. Os alunos passam
anos na escola e escrevem cada vez mais garranchos, sem saber escrever de uma maneira elegante, quando
necessário. Caligrafia não deve ser confundida com aquele tipo de letra que em geral as cartilhas exigem dos
alunos (letra cursiva), nem com o tipo de traçado atribuído tradicionalmente a Petrarca. Caligrafia é
simplesmente escrever bonito. Cada um pode desenvolver a sua caligrafia desde que obtenha uma escrita
bonita, elegante, charmosa, sofisticada. Caligrafia é uma arte típica da escola. No Brasil, essa manifestação de
arte, à semelhança de outras, não tem tido a menor chance nas salas de aula. É uma pena.
O traçado caligráfico atribuído a Petrarca, usado tradicionalmente nos cursos de caligrafia, pode ser ensinado
em séries mais adiantadas, complementando os estudos sobre a escrita iniciados na alfabetização. O segredo
desse tipo de escrita consiste em usar uma caneta que permita a variação da espessura dos traços; desse
modo, quando se escreve a linha descendente, força-se o traçado com a caneta, e, quando se escreve a linha
ascendente, suaviza-se.
Na alfabetização, o professor pode mostrar catálogos de letras, no qual os alunos poderão encontrar uma
variedade enorme de estilos, cujas peculiaridades divergem da forma original de letras de fôrma maiúsculas e
minúsculas. Encontrarão letras enfeitadas para fazerem cartazes, letras sugerindo fogo, vento, alegria, tristeza,
etc. Usar letras desse tipo para enfeitar trabalhos, títulos, cartazes, etc. é uma forma de ensinar não só a
escrever, como também a escrever segundo uma cultura. No mundo em que vivemos, essas formas escritas
são muito comuns, e a escola não pode deixá-las de lado. As crianças divertem-se com essa atividade e,
enquanto se preocupam com os enfeites, vão aperfeiçoando os conhecimentos sobre a escrita e a leitura.
Os professores deveriam dispor de uma coleção de material de escrita diversificado para ilustrar o que vem a
ser escrever bonito. Há inúmeras maneiras de fazer caligrafia e enfeitar um texto escrito. Apresentar esse
material aos alunos é altamente educativo e incentivá-los a fazer uso desse aspecto artístico também é uma
obrigação da escola.
Os alunos também podem recortar de jornais e revistas tipos diferentes de letra, classificá-las do ponto de
vista das características gráficas e organizar álbuns. A classe pode fazer um álbum coletivo, com as
contribuições dos alunos. Esse tipo de atividade educa o bom gosto e o senso crítico do aluno, além de
contribuir para que avance em seus conhecimentos a respeito da natureza e usos da escrita, no mundo em que
vivemos.

Layout e pontuação
O layout ou o modo como se distribui o material escrito sobre o papel, também merece a atenção de
professores e alunos. Quando estes estiverem escrevendo textos, o professor precisará explicar como se cuida
do layout. Muitas informações a respeito desse aspecto só serão acessíveis aos alunos em séries mais
adiantadas, quando souberem, por exemplo, como dividir um texto em parágrafos. O professor, porém, pode
introduzir algumas idéias gerais. Um texto fala de um assunto, seguindo algumas idéias básicas. Essas idéias
básicas constituem os parágrafos. Quando alguém disser alguma coisa, usa-se o espaço de parágrafo, a marca
do travessão e escreve-se a fala. Quando se acaba
<187>
de falar sobre uma idéia (período), coloca-se ponto final. A vírgula traz algumas dificuldades, mas, em certos
casos, como nas enumerações, é fácil mostrar o emprego da vírgula. No início de períodos usam-se letras
maiúsculas e, em seguida, as letras minúsculas do alfabeto adotado. Poesias têm um modo especial de dispor
as palavras.
Embora as explicações não sejam rigorosas, os alunos vão aprendendo que precisam cuidar não só da
ortografia, da clareza e da beleza gráfica das letras, mas também da maneira como as palavras são colocadas
no papel, dos sinais de pontuação e das demais marcas da escrita.
No começo, os alunos escrevem palavras isoladas, e o professor não precisa se preocupar com o lugar onde
essas palavras estão escritas. Porém, quando os alunos estiverem escrevendo histórias, vão ter de tomar
alguns cuidados especiais.
Nos livros, por razões estéticas, as palavras são cortadas no final de linhas, quando isso é necessário.
(Existem regras para isso...) Porém, quando as pessoas escrevem à mão, não é costume cortar palavras, porque
não há necessidade de manter o padrão estético dos livros. Muitas pessoas fazem isso porque aprenderam
assim na escola e levam esse costume escolar para a vida, O professor de alfabetização deveria mostrar aos
alunos que eles deveriam calcular se uma palavra vai caber ou não no final da linha, e se acharem que não vai
caber, simplesmente a escrevem na outra linha.
Deve haver uma preocupação com a margem esquerda, mesmo na escrita à mão, mas não é preciso fazer
margem direita. No entanto, faz parte da boa estética da arte de escrever deixar sempre um espaço em branco
em toda a volta do texto (nas quatro margens). Os alunos devem aprender isso desde o começo da
alfabetização.
No primeiro semestre de aulas, provavelmente, o professor só tocará nesse assunto se algum aluno
perguntar algo a respeito ou para dar alguma instrução muito especial e particular. Porém, no segundo
semestre, esses aspectos precisam ser esclarecidos. O acabamento correto do texto, quanto à sua
apresentação gráfica, também faz parte daquele conjunto de elementos culturais associados ao uso da escrita
na nossa sociedade que a escola precisa cultivar.
<188>

As primeiras escritas da criança


Quando o professor começar a ensinar as relações entre letras e sons, deve escrever palavras no quadro-
negro para exemplificar os fatos que comenta. Nessa hora, as crianças gostam de copiar. O professor pode
deixá-las fazer isso, mas deve chamar a atenção para o fato de que elas vão aprender a escrever um pouco
mais adiante, quando forem passadas as informações básicas sobre como traçar as letras.
Essas escritas que as crianças procuram copiar do quadro-negro servem para o professor perceber como elas
estão se virando: alguns alunos copiarão direitinho, outros, não, O professor ficará atento a todos os detalhes,
porque essas informações o ajudarão a saber quais conhecimentos os alunos têm a respeito dos aspectos da
escrita.
Depois de treinado o traçado das letras com os gabaritos, o professor irá sugerir aos alunos que escrevam o
que quiserem: palavras isoladas, pequenos textos, frases, expressões, nomes, etc. Nesse momento, fazer
pequenas cópias de versos, provérbios, letra de música ou coisa semelhante é um bom exercício. Os alunos
têm um certo medo de escrever errado quando são solicitados a escrever uma palavra a partir dos
conhecimentos que têm, mas se sentem mais tranqüilos ao copiar algo já escrito. A cópia ajuda, então, a aliviar
um pouco a tensão. Como sempre, o professor procurará dar como cópia algum material interessante e não
qualquer coisa. Um bom texto dispensa qualquer motivação para a escrita.
O material escrito pode ser ilustrado pelos alunos, quer colando recortes, quer desenhando o que quiserem.
É sempre uma boa estratégia pedir para o aluno escrever primeiro e ilustrar depois, e não o contrário. Quando
parte de um desenho ou de uma figura colada, o aluno pode ir simplesmente ajuntando palavras e frases, cada
uma relativa a algo que vê nas figuras. Isso desarticula o texto. Quando o aluno faz o texto primeiro, o
conhecimento da linguagem o guia a compor um texto mais bem planejado.
É muito importante que os alunos produzam textos espontâneos. Esses textos devem ser feitos com total
liberdade. Portanto, os alunos vão escrever o que quiserem, do jeito que quiserem. As crianças gostam de
contar histórias verdadeiras ou inventadas. Algumas até se arriscam a fazer poesias. Produzir textos
<189>
deve ser a principal atividade de escrita, depois que os alunos souberem os rudimentos da escrita. Os textos
espontâneos podem começar quando a criança se interessar por escrever, ou, por sugestão do professor,
quando o aluno já tiver escrito e feito cópias com letras de fôrma maiúsculas. Isso não significa que esse tipo de
texto pode ser sugerido já na metade do primeiro semestre.
Ao iniciar esse tipo de atividade, o professor pode deixar os alunos redigirem, por exemplo, dia sim, dia não.
Os alunos farão o texto e o ilustrarão. O professor não deve interferir de modo algum no trabalho dos alunos, a
não ser que alguém pergunte alguma coisa. Como alguns alunos (inseguros) gostam de perguntar tudo para o
professor, este deve perceber qual é a intenção do aluno e, se for o caso, dizer que se deve escrever como a
criança achar melhor, porque, assim, o professor saberá como ensiná-la se houver algum erro. O professor não
corrige nada que for entregue pelos alunos. Simplesmente analisa o que eles fizeram e faz suas anotações para
poder preparar melhor suas aulas futuras, ensinando aqueles pontos que descobrir que os alunos erram mais,
ou com relação aos quais cometem erros mais graves. No próximo capítulo, trataremos de modo detalhado da
produção de textos na alfabetização.

Aprender fazendo
Como se pôde observar nos comentários a respeito da produção da escrita na alfabetização, o mais
importante é os alunos produzirem os mais variados tipos de material escrito, desde textos curtos e simples,
até textos longos e pequenos livros. Aprende-se a escrever, escrevendo, e quanto mais os alunos escreverem,
mais e melhor aprenderão.
O professor não precisa ter a lição preparada: o ideal é que as crianças decidam o que querem escrever e
como realizar o que pretendem. O professor simplesmente orienta para facilitar os trabalhos ou dar condições
reais de realização. Isso mostra que o mais comum numa sala de aula de alfabetização é a ocorrência de
atividades diferentes, realizadas por diferentes alunos, em grupos ou individualmente, todos escrevendo, mas
cada um a sua tarefa. Essa produção de trabalho é a atividade pedagógica que se espera, e não que os alunos
façam segundo um modelo, como pretendem a cartilha e o método do bá-bé-bi-bó-bu.
<190>

ENTENDENDO COMO SE FALA


Os alunos são falantes nativos

O professor de alfabetização não precisa se preocupar em ensinar português aos seus alunos, porque todos
são falantes nativos e ninguém mais do que o falante nativo é dono da língua que fala. Isso, na verdade, é um
grande alívio. Quando se trata de decifrar um sistema de escrita, se a pessoa não conhece a língua, a tarefa é
praticamente impossível. Uma das condições básicas para aprender a ler é saber a língua em que o texto foi
escrito. Como todos os alunos são falantes de português, pode-se conversar com eles, discutir, ouvi-los e,
quando eles forem ler, decodificarão as mensagens da escrita de maneira semelhante à que usam para
entender uma conversa ou alguém falando.
Quando as pessoas adquirem a linguagem, aprendem não só a falar, como também a entender o que as
outras pessoas dizem. Compreender bem esse fato é fundamental para lingüistas e professores.

A variação lingüística
Todo falante nativo fala de acordo com a variedade lingüística estabelecida na comunidade em que cresceu e
viveu. Porém, como a língua portuguesa, como um todo, é falada em muitos lugares, apresenta variedades,
firmando-se assim os dialetos. Na verdade, todo falante é falante de um dialeto. Uma vez que as pessoas
compartilham uma vida social e política no âmbito da nação, os falantes de dialetos diferentes ouvem uns aos
outros, comunicam-se, conversam entre si e, depois de certo tempo e costume, as diferenças dialetais passam
quase despercebidas ou são simplesmente consideradas irrelevantes.
O resultado dessa situação torna o falante nativo ouvinte e entendedor de muitos dialetos. Em resumo, um
falante nativo é geralmente monolíngüe de um dialeto: fala de determinada maneira; mas é ouvinte poliglota
de todos os dialetos de sua língua: participa, como ouvinte, de todos os dialetos. Mais ainda, o falante nativo
usa um sistema lingüístico específico quando fala (a gramática do seu dialeto), mas usa todos os demais
sistemas que integram a língua, relativos aos dialetos, quando ouve. Para entender o que ouve, é preciso que
esse falante nativo tenha interiorizado todas as gramáticas de todos os dialetos da língua.
<191>
Como se vê, o problema da escola não é ensinar a falar ou a entender português: isso todos os falantes
nativos sabem fazer e muito bem. O problema escolar coloca-se quando se pretende que uma pessoa, que não
é falante de um determinado dialeto, passe a falá-lo ou adquira a habilidade de substituir seu dialeto por outro
em certas ocasiões, quando necessário. Nesse caso, falar um dialeto diferente do próprio exige um esforço
semelhante àquele necessário para aprender uma língua estrangeira. Falar uma outra língua ou um outro
dialeto, por mais semelhante que seja do próprio, é uma tarefa árdua, que requer tempo e muita prática.
Na verdade, aprender uma língua estrangeira é mais difícil do que aprender a falar um dialeto diferente,
dentro de uma mesma língua, porque, no caso do dialeto, o falante entende, embora não fale, o mesmo não
acontecendo no caso de uma língua estrangeira.

O dialeto padrão na escola


As crianças que entram na escola já falando o dialeto padrão ou norma culta têm uma enorme vantagem
sobre aquelas que são falantes de outros dialetos. No começo, o professor não deve se preocupar muito com
os diferentes dialetos. Esse fato em si não atrapalha o ensino e a aprendizagem da leitura e da escrita. Apenas
exige uma compreensão correta do fenômeno, por parte do professor, para explicar adequadamente o que
deve ser feito e, por parte do aluno, para saber o que a escola espera dele.
Como o objetivo da escrita é a leitura, uma pessoa pode ler um texto em seu próprio dialeto sem problema
algum. Assim como alguém vê escrito “pote”, “dia” e pode ler “póti”, “dia”, outra pessoa pode ler “pótchi”,
“djia”, e assim por diante. Do mesmo modo, um falante do dialeto caipira pode ver escrito “planta”, “milho”,
“dentro”, e ler, seguindo seu dialeto, “pranta”, “miiu”, “drentu”, etc. Para escrever, há menos problemas ainda,
porque, embora usemos um alfabeto, somos obrigados a escrever seguindo uma ortografia preestabelecida, e
não fazendo transcrições fonéticas da pronúncia que cada pessoa usa. Basta conferir “pote” e “dia”, que
automaticamente se entende “dentro” e “milho”.
Os professores que trabalham com as cartilhas têm uma visão tão errada de como a fala, a escrita e a leitura
funcionam, que acabam ficando desesperados quando
<192>
encontram um aluno que é falante de um dialeto muito diferente do dialeto padrão. Entendem que o aluno
precisa, sempre, aprender a falar primeiro para então aprender a ler e, sobretudo, a escrever.
A aquisição do dialeto padrão ou norma culta é uma tarefa que deve ser realizada não só na sala de aula e
não só através de lições planejadas. A melhor e mais segura maneira de aprender uma língua (ou um dialeto) é
usando-a na vida real. Na escola, é preciso que haja muito recreio, muita festa, muito entrosamento entre
alunos e professores, para que os alunos se sintam pressionados a usar o dialeto padrão. As zombarias dos
colegas, muitas vezes, são um argumento decisivo para os medrosos ou acomodados. Nessas ocasiões de
interação social, a criança vai passando da habilidade de ouvir e entender o dialeto padrão para a habilidade de
expressar-se nele.
Na sala de aula, o professor irá orientando aos poucos seus alunos para empregar, na escola, só o dialeto
padrão. Mas não se deve ficar cobrando dos alunos, chamando a atenção a todo instante para seu modo
diferente de falar. Certamente, a maneira mais eficaz de os alunos aprenderem a falar o dialeto padrão está na
aprendizagem da escrita e principalmente na prática da leitura. Mas às vezes isso requer muito tempo.

Falar sobre como se fala


Para que os alunos não se desesperem, quando perceberem que terão de aprender a falar um dialeto
diferente do habitual, é preciso que o professor, nos momentos oportunos, converse com eles a respeito dos
vários problemas de fala, explicando-lhes como a fala funciona e quais os seus usos. Algumas dessas questões
serão comentadas brevemente neste capítulo e mais detalhadamente em outra parte do livro.
CAGLIARI, 1997a. c
Para que o professor desempenhe adequadamente esse papel de conversar sobre a fala dos alunos, ele
precisa conhecer bem fonética e fonologia geral e, principalmente, o português do Brasil. Há muitos trabalhos
de lingüistas que o podem ajudar.
A aquisição da linguagem oral
É sempre importante contar para os alunos como uma pessoa adquire a linguagem oral. Qualquer um, em
qualquer lugar do mundo, aprende a falar entre o primeiro e o terceiro ano de vida, aproximadamente. Nesse
<193>
espaço de tempo, aprende uma gramática, um vocabulário
e uma série de regras que permitem usar a linguagem
nas mais diferentes circunstâncias. Como já dissemos antes, as pessoas usam mais esses conhecimentos
para entender o que ouvem do que para falar. Na fala, empregam uma parte menor desse conhecimento
geral. Por exemplo, as crianças entendem frases na voz passiva, porém não costumam usar essa construção
quando falam.
Nessa ocasião, os conhecimentos gramaticais são adquiridos
na sua quase totalidade, e a pessoa aprenderá poucas novidades nessa área, pelo resto da vida. O vocabulário,
por outro lado, é uma lista aberta de palavras
que irá se enriquecendo à medida que a pessoa for
vivendo
Aprender a falar significa seguir regras. Ninguém consegue
falar, seja que dialeto for, sem seguir regras muito
precisas. Se alguém diz que “mesa” é “copo”, “cavalo” é
“árvore”, etc., não está seguindo as regras da língua
portuguesa, mas cometendo um verdadeiro “erro” do
ponto de vista lingüístico. Porém, esse tipo de “erro”, os
falantes nativos não cometem.
A linguagem não é feita só de palavras isoladas; ela é
fundamentalmente um conjunto de palavras organizadas
num discurso ou texto, com regras de combinação muito específicas. Por exemplo, num dialeto, algumas
palavras precisam concordar, ficando todas no singular ou no plural, conforme o caso. Deve-se dizer, por
exemplo:
”As meninas loiras brincam nos jardins”. Já num outro dialeto, a gramática tem regras diferentes, e o falante
dirá: “as menina loira brinca nos jardim”. No segundo
caso, não há falta de regras ou de lógica, mas a aplicação de regras de gramáticas diferentes, cada uma
específica de um dialeto. Note que o resultado semântico é igual nos dois dialetos.
Todas as línguas do mundo — ou, mais especificamente, todos os dialetos de todas as línguas — precisam de
regras. As línguas nada mais são do que um
conjunto de regras de um determinado tipo. Em razão
disso, um mesmo pensamento, dito no dialeto padrão de uma língua ou num dialeto estigmatizado pela
sociedade, tem o mesmo valor semântico. Isso pode acontecer até com línguas diferentes. O exemplo acima,
se vertido para o inglês, apresenta outras regras gramaticais:
“The blond girls play in the gardens”. Traduzida literalmente para o português, a frase inglesa corresponde ao
seguinte esquema sintático: “A loira meninas
<194>
brinca no jardins”. Aí, encontra-se um terceiro tipo de regra de concordância, diferente das apresentadas
pelos dialetos do português.
Ser diferente não é um problema lingüístico; pelo contrário, são as diferenças que permitem que as línguas
existam. A linguagem exige tão-somente que as regras sejam observadas. Essa é a razão profunda pela qual um
falante nativo comumente se recusa a modificar sua fala. Para ele, seu jeito de falar é a maneira exigida pela
gramática do seu dialeto. Falar diferente, para ele, seria deixar de ser falante de seu dialeto, o que nem sempre
é uma idéia muito atraente, sobretudo para uma criança.

Essa concepção de linguagem era encontrada comumente em gramáticas do século passado.


Linguagem e lógica
Não existe verdade na afirmação de que o dialeto padrão representa a expressão do pensamento lógico,
bem-estruturado, ao passo que os dialetos populares revelam mentes desorganizadas, desarticuladas e sem
capacidade para exprimir idéias mais sofisticadas. Todo dialeto serve para exprimir qualquer idéia, basta o
usuário se dispor a isso. Como, na nossa sociedade, os bens culturais são escritos no dialeto padrão e não em
outro, alguém pode ter a impressão de que é a gramática do dialeto padrão que controla o pensamento. Na
verdade, ocorre o contrário.

GNERRE, 1985.
A discriminação pela linguagem
O homem vive em sociedade e, por isso mesmo, rodeado de preconceitos. Sempre alguém quer prevalecer
sobre os demais, levar vantagem, destruindo, como pode, seus concorrentes. Por essas razões, formam-se as
classes sociais. Esses grupos passam a ter um modo de vida diferente e, depois de muito tempo, um dialeto
próprio. As diferenças lingüísticas passam, então, a fazer parte daqueles elementos marcadores das diferenças
sociais e, conseqüentemente, da manifestação dos preconceitos. Na prática, a linguagem acaba sendo apenas
uma maneira conveniente de a sociedade disfarçar sua intolerância para com os menos favorecidos econômica
e culturalmente. Desse modo, passa-se a crer que a fala dos pobres é errada, ilógica e sem elegância.
A escola precisa analisar esses fatos com os alunos, explicando o que significam, e não ser uma mera
reprodutora desses preconceitos. A escola deve respeitar todos os dialetos e inculcar nos alunos o respeito ao
indivíduo.
<195>
Respeitar um dialeto não significa não dar chance ao aluno de aprender outro. Aprender o dialeto padrão é
indispensável, não para justificar os preconceitos associados a ele, mas como forma de garantir uma vida
melhor aos que estudam.
O aluno pode aprender o dialeto padrão sem precisar esquecer o dialeto com que adquiriu a linguagem oral.
Todos os dialetos representam bens culturais. Essa é uma questão que deve abrir muitos debates na escola,
desde a alfabetização.

SOBRE O TRABALHO ALTERNATWO


As considerações apresentadas neste capítulo mostram como é possível desenvolver um trabalho de
alfabetização sem usar a cartilha e o método do bá-bé-bi-bó-bu. A proposta é simples e não tem um caminho
predeterminado. Existe uma sugestão de trabalho direta e muito produtiva em tarefas específicas de leitura e
de escrita.
A proposta deste capítulo não é apenas tirar a cartilha como livro didático, mas, sobretudo eliminar a idéia
de que o professor precisa de uma receita que o oriente passo a passo na sua atividade. Se ele souber tudo o
que necessita a respeito da leitura, da escrita e da fala, tem o segredo pedagógico para desenvolver um
trabalho correto. Na verdade, ele não precisa ser um grande lingüista: o conteúdo necessário para fazer um
bom trabalho não é tão grande, nem tão complicado, quanto as pesquisas lingüísticas modernas. Nem tudo o
que a lingüística estuda e descobre serve para a atividade de alfabetização. Além disso, muita coisa o professor
já aprendeu na sua prática de trabalho, ao longo de anos de observação.
<196>

9.
A produção de textos
espontâneos
UM TEXTO NÃO É UM AMONTOADO
DE PALAVRAS

Na vida real, as pessoas não pronunciam palavras


isoladas. Quando alguém se põe a falar, sua intenção é dar uma informação completa, e isso acontece através
de um texto. Somente em circunstâncias especiais, num contexto específico, as pessoas dizem palavras
isoladas, mas sempre elas estão inseridas num texto maior ou são esperadas como resultado de ações
ocorridas. Assim, se alguém fizer uma pergunta, posso responder dizendo apenas “Sim” ou “Não”. Esse tipo de
resposta faz parte de um texto maior, que motivou a resposta. Na verdade, o texto continua na resposta do
interlocutor. Houve apenas mudança de falante. Em outro contexto, se alguém grita por socorro, ou dá uma
ordem, tendo em vista a necessidade do momento, dizer apenas uma palavra é o que basta, dada a situação.
Normalmente, o que acontece é um uso da linguagem que obriga o locutor e o ouvinte a produzirem um
texto e não palavras isoladas. O tamanho do texto varia. As pessoas falam o que acham que precisam falar,
organizando o conteúdo e o estilo do texto de acordo com sua vontade.
Na vida real, quando as pessoas usam a linguagem oral, estão mais preocupadas com o que vão fazer com
ela, como vão despertar idéias e reações no seu interlocutor, do que em falar certo ou errado. Essa
preocupação só surge quando as circunstâncias sociais de uso da linguagem trazem à consciência do falante o
peso que a sociedade atribui ao falar, seus preconceitos e suas manias. Por isso, o aluno fala sem se preocupar
com juízos dessa natureza quando está no seu ambiente familiar, mas começa a se apavorar quando entra na
escola e, sobretudo, quando o professor lhe dirige a palavra pessoalmente. Nesse momento, esquece-se de
que é falante nativo e de que é senhor da sua língua, e passa-se a ser um escravo daquilo que pensa que
representam as expectativas culturais da sociedade, da escola e, principalmente, do professor.
A escola (mais especificamente nas aulas de linguagem) é o único lugar onde se ouve e também se fala de
outra maneira. O professor desmonta e monta textos, frases, palavras e até sílabas para explicar os
mecanismos da linguagem. Desse processo resultam
<198>
segmentos que remetem ora para o significado, ora apenas para os sons da linguagem, e até mesmo para as
letras. Todo corte implica, de certo modo, modificações do texto. Mesmo quando se procura explicar um texto,
palavra por palavra, como os elementos prosódicos se modificam, os comentários semânticos perdem de vista
as atitudes do falante e, às vezes, até informações gramaticais importantes, como as carreadas pela entoação e
o ritmo. As segmentações da fala feitas nas aulas de linguagem pretendem justamente isolar partes para
melhor analisá-las, uma vez que a fala como um todo é sempre extremamente complexa. No entanto, nem
tudo num texto pode ser segmentado para análise, porque em certas situações o significado depende do
contexto.
Depois de muitos anos de estudo sobre a linguagem, as pessoas acham muito fácil e familiar fazer todos os
tipos de segmentação da fala. Com o uso dos sistemas de escrita, isso se torna ainda mais corriqueiro. A escrita
segmenta a fala em palavras e em letras, e isso parece ser a essência da linguagem para as pessoas que
estudaram. No entanto, na sua essência, a linguagem é uma realidade oral falada e existe como a soma de
inúmeros parâmetros que controlam o significado e os sons do que se diz.
As pessoas que não conhecem o sistema de escrita são levadas a ver a linguagem oral como unidades de
outro tipo: para elas, o que vale, em primeiro lugar, é o significado e, em segundo lugar, a maneira como esse
significado é dito. Quando as pessoas pensam e falam, guiam-se quase exclusivamente pelo significado,
permanecendo no nível do inconsciente todos os conhecimentos requeridos para um completo e necessário
controle da linguagem. A gramática de uma língua nada mais é do que a explicitação desses conhecimentos.
Somente quando acontece algo estranho com o significado ou com os sons é que os usuários de uma língua
começam a transpor do subconsciente para o consciente as regras que regem o uso da linguagem. Caso
contrário, tudo vem normalmente, e a gramática é o que menos interessa numa conversa.
Essa maneira de conduzir a fala e usar a linguagem também pode ser claramente constatada pelas pessoas
que usam a escrita com muita facilidade. Depois que alguém passa a escrever com velocidade e fluência,
começa a deixar para o domínio do subconsciente as regras que regem o sistema de escrita que usa, passando
<199>
a escrever (quase) automaticamente, guiando-se apenas pelo significado. As palavras são escritas tão
naturalmente quanto são ditas numa conversa. Para falar, é preciso articular os sons de maneira precisa e, para
escrever, é preciso traçar as letras. Essas atividades são feitas automaticamente. Se tivéssemos de relembrar
todas as regras para falar ou escrever, a todo instante, ficaríamos perdidos e confusos em meio a uma enorme
complexidade de dados.
Quando se interrompe a fala ou a escrita, procura-se em geral uma forma melhor de expressar o
pensamento. A dificuldade reside mais em juntar as idéias do que em falar ou escrever o que se gostaria de
dizer. É claro que alguém pode não se lembrar de uma palavra específica, ou ter dúvidas quanto à pronúncia ou
à ortografia. Mas esses são casos especiais e raros.

TEXTOS OU PALAVRAS ISOLADAS?


As considerações anteriores mostram que usar a linguagem como um material que se pode dissecar,
analisar e comparar é uma atividade escolar típica e não um uso comum. Quando entram na escola, as crianças
lidam com a linguagem como qualquer falante nativo. Para elas, a linguagem é um texto que se diz ou que se
ouve, um texto dito por uma pessoa ou elaborado com a participação de várias pessoas. Pensar a linguagem
como sendo composta de unidades bem-delimitadas e com valores bem-definidos é algo que se consegue
somente depois de muitos anos de estudo.
Isso tudo mostra que, para uma criança que entra na escola para se alfabetizar, é muito mais natural e fácil
lidar com textos do que com palavras isoladas, sílabas ou outros segmentos. O mundo da linguagem é o mundo
dos textos. Por essa razão, o professor deve tentar, sobretudo no início, criar situações em sala de aula em que
predominem o texto. Por outro lado, principalmente no começo, o professor deve tomar cuidado quando
exemplifica com pedaços de fala. Obviamente, será necessário segmentar a fala não só para ensinar a escrever,
mas também para analisar a linguagem oral.
Sempre que possível, o professor precisa estar atento para as prováveis dificuldades oriundas dessa
atividade. Engana-se redondamente o professor que pensa
<200>
que é banal e fácil dizer que a palavra-chave BEBE tem dois pedacinhos “bê” + “bê”, os quais, por sua vez,
pertencem à família dos “bês”, ou seja, do bá-bé-bi-bó-bu. Isso parece óbvio para o professor que está mais do
que acostumado a lidar com a linguagem. Para os alunos, trata-se de algo fantástico. Eles jamais pensaram a
linguagem oral dessa maneira. É surpreendente que se possa falar sobre a linguagem fazendo as palavras
perderem seu significado próprio e ficando sujeitas a novas regras e valores semânticos, restando sobretudo
valores semânticos que só existem quando fazemos esse exercício de análise da linguagem.

TEXTOS ORAIS E ESCRITOS


Quando se fala em texto (ou discurso como dizem os lingüistas), algumas pessoas se confundem, concluindo
que nem toda produção oral é um texto, mas somente aquelas que revelam traços literários. Essa atitude nega
uma das realidades lingüísticas mais notáveis, uma vez que as línguas só existem porque as pessoas produzem
textos quando falam. No fundo, tudo o que se diz, mais o contexto em que é dito, forma um discurso ou texto.
Outra coisa é o modo como esse discurso ou texto é apresentado e a finalidade para a qual ele é feito.
A literatura nada mais é do que um dos possíveis usos da linguagem ou uma das possíveis finalidades para
esse uso. Um texto literário precisa ter um toque de arte, um texto científico precisa ter uma apresentação
especial, uma carta é escrita com outro estilo. Resumindo, os textos têm estilos diferentes. Há diferenças
notáveis entre o modo como produzimos nossos textos orais e nossos textos escritos, dentro das exigências
escolares ou em determinadas circunstâncias culturais.
Alguns professores consideram que as crianças que iniciam sua alfabetização não conseguem lidar bem com
textos e, por isso, eles dão em sala de aula apenas palavras e frases isoladas. Acham que as crianças não são
capazes de produzir textos literários, científicos ou mesmo de uso escolar mais comum. Em outras palavras,
essas pessoas estão preocupadas com os estilos culturalmente exigidos pela escola, e não
<201>
com o fato de as crianças saberem ou não produzir textos, no seu sentido mais amplo. Pior ainda, esses
professores supõem que na fala comum não existe um texto ou um estilo que valha a pena. Por causa de idéias
preconceituosas dessa natureza, desprezam em geral os textos dos alunos quando estes não apresentam
traços culturais bem marcantes (ou estereótipos baseados numa expectativa literária que têm).
Como se disse, a fala é diferente da escrita, e nisso não há nada de novo nem de ruim. A criança vem para a
escola sabendo lidar bem com os estilos de sua linguagem oral e espera que lhe ensinem os demais estilos,
especialmente os da linguagem escrita. Para tanto, a escola não precisa destruir o que o aluno já sabe nem
negar o valor dos conhecimentos da criança. Precisa, ao contrário, discutir o assunto com os alunos.

O TEXTO NA VIDA E NA ESCOLA


Uma criança deve levar a sua habilidade de produzir textos orais para a sala de alfabetização e usar isso
como ponte para aprender a produzir os textos escritos nos estilos esperados pela escola e pela cultura.
Porém, se em vez de fazer isso, a escola começar negando essa habilidade e substituindo-a por atividades
pedagógicas equivocadas, como os exercícios de monta/desmonta a linguagem, acabará passando ao aluno a
idéia de que o texto que ele fala (a língua que conhece) não tem nada a ver com o texto que a escola exige dele
(um uso um tanto misterioso de sua própria língua).
O emprego de atividades que atomizam demais a linguagem, como o uso dos “tijolinhos” das famílias de
sílabas para construir o “muro” chamado texto, acabam destruindo o texto na sua essência, porque não se
trata simplesmente de uma fileira de palavras. Há regras muito rígidas de coerência e coesão que estabelecem
relações entre as palavras. Essas regras não estão em palavras isoladas, mas nas pontes que ligam as palavras
num texto. Essas relações ou pontes jamais aparecerão num bá-bé-bi-bó-bu.
Falar a linguagem da criança não significa ser confuso e ensinar errado. O excesso de metáforas pode levar o
ensino ao caos. Algumas atividades são apresentadas como uma espécie de jogo de adivinhação, o que
<202>
acaba insinuando a alguns alunos que a linguagem nada mais é do que um jogo de azar. Há momentos em que
a escola tem de ser clara, objetiva, precisa, mesmo que alguns alunos não compreendam bem o que se diz num
primeiro momento.
Apesar do que ouve e faz na escola, a criança continua usando a linguagem oral normalmente no seu dia-a-
dia. Trazer para a sala de aula essa atuação é muito importante para que o aluno perceba que está lidando com
o mesmo objeto e não com coisas muito diferentes.
Uma criança pode lidar bem com seus textos orais na alfabetização, quer falando, quer escrevendo. A partir
deles, pode aprender como a linguagem funciona, comparar sua fala com outros tipos de texto, de estilos
diferentes, e ir aprendendo a produção de textos orais e escritos dentro das expectativas da escola.
Além disso, pode lidar com conceitos e regras que se utilizam de segmentos da fala sem perder de vista “o
contexto maior”. O método do bá-bé-bi-bó-bu procura tirar da mira do aluno todas as palavras não estudadas
para não confundi-lo, quando na verdade esse uso da linguagem sem um contexto maior torna muito mais
difícil o próprio estudo de unidades menores, que precisam, às vezes, ser isoladas.
Para aprender a falar, as crianças não precisam estudar os sons da fala isoladamente e depois agrupá-los,
formando seqüências que começam por padrões mais simples e vão até os mais difíceis. As crianças aprendem
a falar usando a linguagem no seu contexto natural e na sua forma mais plena e abrangente possível.
O mesmo pode-se aplicar à aprendizagem da escrita. Temos o alfabeto com letras, mas escrevemos palavras
e não apenas letras, uma depois da outra. O método que propicia o aluno a aprender letra por letra ou sílaba
por sílaba, cria um contexto no qual a linguagem não faz mais sentido. Fora desse âmbito, as regras perdem
seu poder explicativo. Esse procedimento de lidar com a linguagem é sem dúvida uma das grandes causas da
dificuldade que algumas crianças apresentam para se alfabetizar. O professor acha, às vezes, que está
facilitando o trabalho do aluno, quando na verdade o está complicando, a ponto de impedir a aprendizagem.
Há muita diferença entre uma palavra-chave, geradora de uma análise em sílabas, letras e sons, e um uso de
palavras num outro contexto, em que elas encontram
<203>
vida própria. As palavras-chave ocorrem de maneira arbitrária e são pretextos com fundamento equivocado,
quer do ponto de vista lingüístico, quer do ponto de vista da motivação do ensino. A escolha da palavra-chave
gera um esvaziamento semântico, no qual o próprio sentido literal soa estranho, como é o caso do professor
que diz “bebê” ou mesmo “cachorro”. Os métodos aconselham a narrativa de uma história em que a palavra-
chave representa o personagem central. Essas histórias em geral não têm graça e soam ridículas. Esse uso da
linguagem é típico da escola.
Na vida real, entretanto, algumas palavras isoladas podem ter um uso perfeito. Quando alguém escreve o
nome de um estabelecimento comercial, uma indicação, o rótulo de um produto, podem-se encontrar palavras
isoladas e usadas com propriedade. Muitos professores já descobriram isso e fazem seus alunos pesquisarem o
mundo da escrita nas situações cotidianas. Alguns professores inicialmente trabalham com os nomes dos
alunos, etiquetando cabides, material escolar, carteiras, etc. Obviamente, o professor não vai ficar fazendo só
isso. Não há muito jeito de explicar os mecanismos da linguagem, sobretudo a escrita, sem levar em conta o
uso de palavras isoladas.
Trabalhar só com palavras isoladas é tão errado quanto trabalhar somente com textos. As duas coisas são
indispensáveis.

O PROFESSOR E O TEXTO DO ALUNO


O professor precisa tomar alguns cuidados. Em primeiro lugar, deve incentivar seus alunos a ler e escrever
textos, e não apenas palavras isoladas. Sempre que possível, é melhor usar textos do que palavras soltas. Em
segundo lugar, o professor precisa dar explicações, dizendo o que está fazendo e o que pretende fazer e
mostrando o funcionamento da linguagem basicamente através de discursos orais. Mas, para tanto, é
necessário fazer uns cortes e pensar a linguagem de outro jeito, através de regras que consideram uma
questão por vez, de maneira isolada. Com relação à escrita, essa abordagem é mais evidente. Desse modo, o
aluno fica sabendo que o estudo gramatical faz um uso especial da linguagem.
<204>
O professor deverá mostrar ainda que seus alunos conhecem muitas coisas sobre a linguagem, mas que não
estão acostumados a refletir sobre seu funciona mento. Para isso deverão usar a capacidade de refletir e
examinar o que conhecem da linguagem através da simples introspecção da própria fala. Nesse caso, a
segmentação da fala em partes arbitrárias ou motiva das mais por regras sintáticas do que pela semântica é o
que eles precisam levar em conta. Esses conhecimentos estão implícitos na cabeça do professor, mas precisam
ser explicitados aos alunos. Aqueles que recebem esse tipo de explicação antes das atividades lidam melhor
com os estudos depois.
Quando aprendem a falar e a ouvir a linguagem diante de textos, as crianças passam a dominar não só os
sons da fala e os significados literais das palavras, mas também as formas de argumentar, de construção da
coerência e da coesão dos textos e o uso literal e metafórico da linguagem. Num texto, esses elementos são
tão importantes quanto as palavras e os sons da fala. Isso tudo é adquirido com a aquisição da linguagem oral.
Uma discussão entre os tais chamados “meninos de rua” mostra como conseguem manipular a linguagem
muito bem, mesmo nunca tendo ido à escola.
Se a escola encarar o ensino da alfabetização dessa forma, irá fazer com que os alunos não percam essas
habilidades orais quando forem aprender a ler e a escrever, pelo contrário, irão enriquecê-las. Porém, se a
escola reduzir a linguagem a conjuntos de palavras isoladas, pedaços de palavras, esses elementos básicos do
discurso lingüístico desaparecem, e o aluno começa a produzir textos que não passam de amontoados de
palavras e frases. A escola destrói algo que os alunos já tinham e depois irá cobrar caro pela incapacidade de
certos alunos de produzirem textos aceitáveis, porque nesses textos faltam justamente os elementos que
foram negligenciados. Uma metodologia inadequada pode fazer alguns alunos desmontarem a linguagem e
não saberem remontá-la corretamente, como atividade escolar de produção de textos.
Para facilitar e se adequar aos métodos usados, os autores das cartilhas e muitos professores inventam
textos que representam o pior exemplo que os alunos podiam ter do que vem a ser um texto. Fazem isso por
que pensam que os textos dos escritores famosos são muito difíceis ou inapropriados para os objetivos da
lição, segundo as expectativas do método. Essa é uma
<205>
visão equivocada. Primeiro, porque o método das cartilhas é um grande equívoco em todos os sentidos.
Depois, porque o texto de um escritor famoso, que escreve para crianças, de fato envolve os leitores, caso
contrário, esses escritores não seriam famosos. Escrever textos como esses é muito difícil e poucos conseguem
tal proeza. Mas os bons autores representam o que há de melhor também para as crianças. Ouvir, ler e
entender esses textos é bem diferente de produzi-los. Se é difícil escrever um texto desse tipo, isso não
significa que seja igualmente difícil lê-lo ou ouvi-lo. Os escritores famosos conseguem envolver seus leitores de
tal modo que eles nem se dão conta da forma do texto, muitas vezes deixando-se levar apenas pela mensagem
transmitida.
Um ensino baseado em palavras-chave e no bá-bé-bi bó-bu exige uma repetição excessiva de elementos
semelhantes para a fixação da aprendizagem, ou simples mente para chamar a atenção para uma determinada
estrutura. Porém, um ensino que está profundamente comprometido com a reflexão e com a construção do
conhecimento pela criança encontra nos textos de escritores famosos o que há de melhor.

O PLANEJAMENTO DOS TEXTOS


Há muitas coisas que se podem dizer a respeito de textos. Os estudos literários têm uma tradição milenar. A
filosofia e, mais recentemente, a lingüística moderna têm contribuído enormemente para esse tipo de estudo.
Tudo é muito importante e muito interessante. As considerações que estamos fazendo, no entanto, estão
selecionando alguns aspectos tendo em vista o trabalho de alfabetização nas primeiras séries escolares. Dentro
dessa perspectiva, um texto tem dois aspectos: um interno e outro externo.
O aspecto interno é o planejamento textual, ou seja, juntar o que se quer dizer com o modo com que isso
vai ser dito, seguindo uma determinada ordem. Todo texto pronto revela essas noções. O aluno que vai
escrever um texto precisa aprender a fazer o planejamento textual. A idéia em si não é novidade. Porém, a
maneira como muitos livros e professores tratam desse assunto revela problemas sérios.
<206>
Quando uma pessoa conversa, organiza o que diz em função das idéias que tem e da reação das pessoas a
seu redor, à medida que vai falando. Quando escreve, não conta com a reação de pessoas presentes como
interlocutores. Por isso, é preciso prever as reações possíveis dos leitores que são os interlocutores ausentes na
hora da produção do texto, mas que entrarão na história desse texto mais tarde. Os textos não têm apenas
palavras e personagens da história; contêm também os personagens da produção e da leitura do mesmo.
Além disso, quando se fala, não se volta atrás, a não ser em continuação do que já foi dito. Quando se
escreve, porém, pode-se apagar e fazer tudo de novo, como se nada tivesse acontecido. Assim, ao escrever, é
possível fazer um planejamento melhor daquilo que vai ser dito.
Esse planejamento realiza-se em duas etapas. Na primeira, o escritor pensa e anota algumas idéias a respeito
das quais vai dissertar. Na segunda, o escritor faz seus comentários sobre o que tinha assinalado, completando
seu discurso. Terminada uma versão, procede-se a uma correção e revisão, para melhorar o que for possível.
Cada texto acaba saindo de uma determinada forma, dentre as inúmeras possibilidades de realização.
A prática tradicional de montar um roteiro para os alunos escreverem textos ou simplesmente mandarem
fazer, por exemplo, cinco frases usando uma determinada palavra ou idéia é uma concepção errada de
planejamento de texto. Quando as pessoas falam, não precisam disso e, quando vão escrever, também não. A
reflexão do indivíduo é que deve guiar o texto.
Na produção dos primeiros textos pelas crianças, não vale a pena ficar tratando de planejamento de texto.
Basta o professor dizer para os alunos escreverem o que quiserem, do jeito que quiserem, sobre o que
quiserem ou sobre um determinado assunto. O planejamento do texto deve ser ensinado depois que os alunos
já estiverem produzindo textos com certa facilidade e estiverem familiarizados com textos que eles próprios
leiam. Quando for a hora, o professor deve cuidar para que os alunos aprendam a escrever textos como um
arquiteto que planeja a casa que vai construir, acostumando-os a ter na mente uma visão de qual vai ser o
resultado final. Alunos que escrevem sem planejamento freqüentemente fazem textos que são difíceis de
corrigir, tendo como única saída refazer tudo.
<207>
Faz parte da bagagem de conhecimentos educativos relativos à linguagem, o treinamento para planejar o
que se pretende escrever. Além disso, a escrita, dependendo de quem é o destinatário, exige do escritor a
tomada de certas providências, por exemplo, com relação à escolha do vocabulário, da organização das idéias,
do modo de argumentar ou conduzir as idéias, e até mesmo do capricho e elegância da apresentação gráfica. A
cultura e a sociedade em que vivemos têm exigências com relação aos textos que as pessoas escrevem, e a
escola tem a obrigação de discutir essa questão e mostrar aos alunos como proceder, de maneira muito
semelhante à discussão a respeito da variação lingüística e da norma culta.
Os aspectos externos à estrutura dos textos referem-se à forma de apresentação, quer do ponto de vista do
modo como o discurso é estruturado, quer do ponto de vista do modo como esse discurso é transmitido.
Podemos ver essa arquitetura do texto de outro jeito. Quanto à forma, um texto pode ser uma poesia, uma
prosa, um esquema, etc. Do ponto de vista do estilo, pode ter uma linguagem formal ou informal, mais arcaica
ou mais cheia de gíria, mais típica de uma região ou de outra, de uma categoria social ou de outra, etc. Sob
outra ótica, pode ser do tipo dissertativo, narrativo, como pode ser uma carta, uma descrição, uma
propaganda, um informativo com instruções, etc.
Outro aspecto externo aos textos é a forma como são transmitidos. Um texto oral pode ser apresentado em
diferentes dialetos e com interpretações mais teatrais ou mais próximas de uma fala comum. Um texto escrito
tem características próprias de organização espacial sobre o papel ou o material sobre o qual se escreve, além
das letras empregadas. Aprender a apresentar trabalhos acabados com a sofisticação necessária também deve
ser uma preocupação da escola, desde as atividades de alfabetização. Desde cedo, os alunos precisam
aprender os bons hábitos, e os professores das séries posteriores também deveriam continuar exigindo uma
boa apresentação para os textos produzidos pelos alunos. Essa não é uma tarefa exclusiva da alfabetização.
É muito importante que o professor peça aos seus alunos para tomarem a iniciativa e escolherem por si o
que desejam fazer, o que acham que podem fazer, produzindo textos livres ou espontâneos. O professor deve
também apresentar textos de tipos diferentes, compara-los,
<208>
mostrar o que caracteriza um tipo e o que o diferencia dos demais, e incentivar seus alunos a produzirem
todos os tipos de texto.

A PRODUÇÃO DE TEXTOS NA ALFABETIZAÇÃO


MÁSSINI-CAGLIARI, 1996a. e 1997a; CAGLIARI, 1985b.
Se o professor alfabetizador deve trabalhar, sempre que possível, com textos, os alunos também devem
estar sempre envolvidos com a problemática da linguagem, analisando-a dentro de um contexto real de uso,
ou dentro da própria linguagem, como é o caso do estudo das relações entre letras e sons. Isso faz com que os
alunos passem da habilidade de produzir textos orais para a habilidade de produzir textos escritos; da
habilidade de produzir textos no estilo da fala do dia-a-dia para a habilidade de produzir textos segundo as
exigências escolares e culturais. Essa liberdade de usar uma língua que o aluno já domina para estudar permite
que
ele escreva sem medo de dizer o que pensa e sem medo de errar. O que os alunos fazem produzindo textos
serve, ainda, para mostrar para o professor o que eles já sabem e o que precisam aprender no processo de
aquisição da leitura e da escrita. Desse modo, acompanhando o desenvolvimento de cada um e da classe nas
suas necessidades gerais, o professor pode programar melhor suas aulas e conduzir adequadamente o
processo de ensino e de aprendizagem.
Para um bom professor deve ser tão importante o que o aluno acerta quanto o que ele erra. Se o ensino for
muito dirigido, se o aluno só fizer segundo o modelo, só trabalhar com os elementos já dominados, o professor
recebe apenas a reprodução de algo que ele passou para os alunos. O que de fato eles pensam não tem chance
de aparecer. Os textos livres feitos espontaneamente pelos alunos revelam o que realmente sabem e como
operam com esses conhecimentos. Analisando o que os alunos elaboram, o professor acaba descobrindo,
como os lingüistas, quais as hipóteses que regem o comportamento lingüístico das crianças e quais as regras
que utilizaram na sua produção. O erro é mais revelador do que o acerto. O acerto pode ser fruto do
acaso, mas o erro sempre é fruto de uma reflexão, de um uso indevido de algum conhecimento.
<209>
Dentro dessa visão da produção de textos na alfabetização, logo se vê que os alunos farão apenas pequenos
textos no começo, com uma ou duas frases. Depois, irão tentando escrever mais, à medida que ficarem mais
fluentes na escrita. Certamente, os primeiros textos vêm sobrecarregados de erros de todos os tipos, O que
vale é o trabalho, não o resultado em si. Por isso, o professor não irá corrigir esses primeiros textos. Irá
simplesmente analisá-los, discuti-los com os alunos, mostrando algumas coisas interessantes e guarda-los no
dossiê de material de cada aluno. Algumas anotações serão feitas tendo em vista a programação de aulas
futuras.

A CORREÇÃO DE TEXTOS
Depois que os alunos começarem a ficar mais hábeis e a produzir textos mais longos e com mais facilidade, o
professor começará a exigir o planejamento textual e, sobretudo a autocorreção. Essa autocorreção pode ser
feita em duplas, individualmente ou até mesmo coletivamente. Nem todo texto precisa ser corrigido, alguns
são feitos simplesmente para que o aluno desenvolva mais fluência ao escrever. De modo geral, todo texto que
deverá ser lido por outra pessoa e quando for divulgado, precisará ter passado por rigorosa correção.
Feito o texto, o professor pede para os alunos corrigirem e melhorarem tudo o que quiserem. Em seguida,
discutem o texto em duplas e chegam a uma versão definitiva. Finalmente, o texto será revisado pelo
professor. Somente então, o aluno o passa a limpo, produzindo o texto definitivo.
O professor precisa ensinar aos alunos como fazer a autocorreção. Problemas de coesão, coerência ou uso
de determinadas estruturas sintáticas precisam ser tratados diretamente com o professor. Na alfabetização, o
mais importante é cuidar da ortografia.
O professor precisa ensinar os alunos a terem dúvidas, a desconfiar se algo está certo ou errado. Aprender a
ter dúvidas ortográficas é tão importante quanto aprender a escrever, O aluno deve saber, a partir de uma
análise pessoal de seus conhecimentos, se, ao escrever uma palavra, todas as letras estão corretas ou não.
<210>
Um aluno pode não apresentar nenhuma dúvida ortográfica ao escrever a palavra PATO. Ele a escreve e vai
adiante. A próxima palavra pode ser GIRAFA. Aqui, se não tiver certeza absoluta de que GIRAFA se escreve com
G, ele precisará olhar no dicionário ou perguntar a quem sabe. Depois, poderá escrever a palavra GENTE e não
ter dúvida ortográfica, embora o caso seja semelhante ao da GIRAFA. O professor deveria reservar algumas
aulas, de vez em quando, para ensinar os alunos o que pode suscitar uma dúvida ortográfica e o que não. Não
adianta pedir para os alunos fazerem autocorreção, se eles não souberem o que corrigir.
Do ponto de vista do aluno, não existe professor mais desagradável do que aquele que não sabe ler o texto
de um aluno, principalmente quando o texto apresenta dificuldades. Não basta o professor dizer que o texto
está ruim. É preciso fazer uma análise e mostrar por que está ruim e, especialmente, o que fazer para que o
texto fique bom. Alguns professores lêem os textos de seus alunos (ou simplesmente o que os alunos escrevem
em ditados, cópias, etc.), como se a escrita fosse uma transcrição fonética da fala. Essa é uma forma
desrespeitosa de tratar o trabalho da criança. O professor não faz isso com os textos dos livros. O professor
pode escrever TIA e falar “tchia”, pode escrever BALDE e falar “baudji”, mas se o aluno pensa que se escreve
PRANTA, o professor não lê “planta”, achando que a única forma possível de leitura, nesse caso, é “pranta”.
Quando erra na grafia, o aluno não está querendo escrever conforme a sua própria pronúncia. Isso acontece
porque ele ainda não domina o sistema de escrita e, sobretudo, a ortografia das palavras. O professor pode
perfeitamente ler um texto de um aluno em que aparecem muitos erros, em conformidade com a norma culta.
Ao fazer isso, nota-se quase sempre que os textos espontâneos são muito mais interessantes do que parecem,
muitas vezes, a alguns professores.
Resultado semelhante surge quando o professor pede para o aluno ler o que escreveu, e ele faz uma leitura
fluente. O texto, então, torna-se outro, mais interessante. Um professor jamais pode dizer para o aluno que ele
leu errado, porque escreveu uma coisa e leu outra. Afinal, a escrita existe para representar a fala e usamos um
sistema ortográfico para neutralizar a variação dialetal. O que o aluno escreveu representa a sua fala e, se leu
daquele jeito, é porque ele quer que seja lido daquele jeito. Seus erros são de ortografia e não de transcrição
<211>
fonética. Se quisermos que o aluno respeite o que ensinamos, precisamos respeitar o que o aluno sabe, o que
aprende e, sobretudo, seu esforço para melhorar.
Um bom professor também está atento ao que acontece com seus alunos nas diferentes atividades que eles
realizam, observando o que os ajuda e o que os atrapalha. Por exemplo, é muito evidente que os alunos que
fazem um desenho antes (ou colam uma ilustração) e depois escrevem um texto são mais inclinados a produzir
textos menos interessantes, em que predominam descrições de personagens e ações, resultando quase
sempre num conjunto de frases soltas. O ideal é pedir para o aluno fazer o texto e depois ilustrá-lo. Nesse
caso, há menos problemas de coesão, e os textos são em geral mais bem estruturados e desenvolvidos. Alguns
alunos gostam de sugestões, outros não. Alguns temas trazem mais motivação para os alunos, outros menos
ou, até mesmo, são do desagrado de certas crianças. É necessário habilidade para lidar com cada caso.

TEXTOS SIGNIFICATIVOS PARA OS ALUNOS


A prática de produção de textos, que é uma das atividades mais importantes das aulas de português, não
deve restringir-se ao trabalho do aluno, unicamente porque o professor assim ordenou, sob pena de baixar a
nota.
Na alfabetização, a prática da produção de textos tem como objetivo ensinar os alunos a passar seus
conhecimentos sobre a linguagem oral para a forma escrita. Numa segunda etapa, se cuidará para que o aluno
aprenda a produzir textos de todos os tipos, conforme as exigências culturais e escolares.
Há ainda outro aspecto importante. Ninguém fala para si próprio e, por razão semelhante, ninguém escreve
apenas para si. A fala e a escrita precisam de interlocutores ou de leitores. É lamentável o que fazem alguns
professores que passam redações simplesmente para ocupar o tempo de seus alunos ou dar notas. O aluno
acaba tendo como interlocutor apenas o professor, que corrige o que ele faz, ou apenas a nota que recebe.
<212>
Desde a alfabetização, o professor deve desenvolver atividades de produção de textos dentro de um
contexto no qual o aluno tenha um interlocutor e um leitor,real para o que produz, além do professor que
corrige. No início da alfabetização, os alunos irão compor textos com o objetivo de aprender a escrever. Esses
textos são mais um pretexto para a escrita do que uma produção para ser lida pelos outros. Muitas vezes, os
alunos irão escrever anotações em sala de aula. Esses textos são pessoais e não precisam interessar a outras
pessoas.
As atividades de produção de texto propriamente ditas devem ser feitas sempre com possíveis leitores em
mente. Isso se consegue redigindo textos para finalidades específicas. Desde a alfabetização, os alunos podem
fazer textos que irão ser reunidos num livrinho de histórias, de poesias, de pesquisas da classe, etc. A redação
de cada aluno irá seguir instruções no que se refere aos aspectos externos do texto. Os alunos sabem que esses
livrinhos vão ser reproduzidos em xérox, por exemplo, e cada qual terá um exemplar para poder mostrar em
casa aos pais, parentes e amigos. Antes disso, os colegas da classe já terão lido os textos. Nesse tipo de
atividade, já aparecem alguns leitores em potencial, além do professor. Isso dá uma nova dimensão ao trabalho
do aluno. Ele passa a se interessar mais pela atividade e se esforça cada vez mais para apresentar um bom
trabalho. Os trabalhos que não forem aproveitados para formar o livrinho da classe serão usados para formar
livrinhos individuais de cada aluno, no final de cada semestre.
Além dos livrinhos, os alunos podem fazer textos para um jornal da classe. Alguns professores gostam
mesmo que ele seja semelhante a um jornal de verdade que se compra em bancas de revista. Pega-se uma
folha de papel grande e divide-se o espaço em partes, como nos jornais comuns. Cada espaço será reservado
para um tipo de texto e de ilustração. Cada aluno ou grupo de alunos ficará encarregado de um espaço.
Completada a tarefa, cola-se cada trabalho no respectivo espaço e tem-se uma folha de jornal. Os assuntos
podem ser notícias internacionais, do país, da cidade, da escola, bem como esportes, moda, ocorrências
policiais, cultura, televisão, fofocas, etc.
Os alunos podem fazer também revistas à moda dos jornais, imitando algum modelo. Podem ser revistas em
quadrinhos, propaganda para televisão, noticiários que
<213>
depois serão lidos em aula, etc. Uma outra idéia é escrever pequenas peças de teatro para serem encenadas
ou quadros do tipo que se vê na televisão. Podem fazer documentários que serão apresentados ou até mesmo
pequenas novelas. Concluindo, a escola deve imitar a vida, e o professor lança mão de inúmeras manifestações
que requerem a produção de textos, as quais propiciam uma prática mais significativa e interessante para os
alunos.
Certa ocasião, fui a uma escola que não sabia o que ensinar aos alunos nas aulas de Problemas Brasileiros de
segunda série. Sugeri, como atividade, que os alunos fizessem pesquisas sobre determinados assuntos e
escrevessem um livrinho com suas anotações, O tema escolhido, então, foi o trânsito. Cada aluno entrevistou
motoristas e pessoas para saber o que elas achavam do trânsito, o que havia de ruim, o que podia ser
melhorado. Eles próprios deram sua opinião. De repente, todos passaram a se interessar pela atividade até a
conclusão do livrinho.
Atividades de produção de texto podem estar ligadas a muitas matérias e a uma infinidade de conteúdos, não
só na alfabetização. Se os alunos de matemática, em vez de ficarem só fazendo problemas de matemática,
pesquisassem, por exemplo, a história da matemática e elaborassem livrinhos relatando suas descobertas, a
matéria passaria a ter um gosto especial para muitos alunos, e o ensino se tornaria muito mais fácil e eficiente.
Há professores que desenvolvem um belo trabalho de produção de poesias ou de letras de músicas com seus
alunos. O que não se pode fazer na escola é simplesmente mandar o aluno fazer uma redação. Essa atividade
precisa ser feita dentro de um outro contexto, que não seja apenas o de ganhar uma nota.

A CARTILHA E A PRODUÇÃO DE TEXTOS


O método das cartilhas, em geral, não propõe a produção de textos, menos ainda textos espontâneos e
livres. Os alunos só escrevem frases, empregando as palavras já dominadas, juntando-as do jeito que acharem
melhor. A própria cartilha dá exemplos de textos assim.
<214>
Além disso, o método das cartilhas gosta muito de controlar tudo o que os alunos produzem, fazendo com que
todos os alunos façam suas tarefas do mesmo modo, seguindo o mesmo caminho.
De acordo com o método das cartilhas, alguns professores usam uma estratégia indesejável para induzir os
alunos a produzir o que eles chamam de “texto”. Para tanto, dão roteiros. Após a indicação do título, vem uma
série de perguntas a que o aluno deverá responder: o quê, quem, quando, onde, como, por quê, não se
esquecendo de que o texto deve ter começo, meio e um fim com uma lição de moral para qualquer tipo de
história... As respostas a esse esquema produzem o texto esperado.
Quando falam, as crianças não precisam desses esquemas ou roteiros. Não precisam se preocupar com
começo, meio e fim. O texto sai espontaneamente, de acordo com as idéias que têm na cabeça. Quando elas
forem escrever seus textos, devem agir do mesmo modo. A marca da individualidade faz de um simples texto
um trabalho original, e se seu estilo agradar a uma comunidade, torna-se um texto literário.
Se a escola insiste em fazer com que os alunos escrevam, guiando-se por esquemas como os mencionados
acima, eles acabarão produzindo textos estereotipados, que serão severamente criticados, depois, nas séries
mais adiantadas, pela própria escola. Aqui, como em outras ocasiões, a escola ensina os alunos a fazerem suas
tarefas de um jeito e, depois, cobra deles justamente o contrário. O método das cartilhas quer que os alunos
escrevam textos seguindo uma forma inadequada e depois a escola vai exigir que eles escrevam bem, com
criatividade e arte.
Outra forma de uso de uma camisa-de-força para a produção de textos são os exercícios com lacunas para
completar. Alguns livros antigos faziam esse tipo de exercício, de tal modo que numa lição o aluno completava
as frases com nomes (substantivos), noutra com adjetivos, noutra com verbos e assim por diante.
Tais exercícios podem ser feitos esporadicamente. O professor, no entanto, cuidará para que os alunos não
pensem que eles estão produzindo textos, mas que estão apenas fazendo os exercícios de busca de palavras
apropriadas para certos contextos. A atividade de produção de textos Será feita de outra maneira e não se
confundirá com isso.
<215>
Outra atividade que não pode ser confundida com a produção de textos é a formação de frases a partir de
uma palavra dada. Por exemplo, o professor escreve no quadro-negro uma lista de palavras: pedreira, água,
alto, mexer — e os alunos deverão formar frases usando essas palavras. No final, terão cinco frases. O
professor deverá estar atento para distinguir esse tipo de trabalho — que serve apenas para mostrar aos
alunos que se podem inventar inúmeras frases a partir de uma mesma palavra — da produção d textos.
Essas atividades sem a produção concomitante de textos espontâneos (e distinguindo-se uma coisa de outra)
podem induzir o aluno a uma dependência nefasta dos famosos esquemas de produção de frases, destruindo
sua criatividade e inibindo sua capacidade de produção de textos, alcançada juntamente com a aquisição da
linguagem oral quando ainda era bem pequeno.
Tenho diante de mim o livro da 2ª série, de Antônio Pedro Wolff, intitulado Composições escolares, 7ª ed.,
1950. Esse livro traz as atividades com que o professor ensinava a prestar atenção à elaboração de frases e
textos, seguindo o velho esquema de responder a perguntas. Para se ter uma idéia mais completa, seguem os
títulos dos capítulos:

— completar sentenças. — Descrição de objetos por meio de


— Formação de sentenças interrogativas, perguntas.
— Formação de sentenças exclamativas. — Descrição de animais por meio de
— Responder a perguntas. perguntas.
— Responder a questionários referentes a — Descrição de gravuras com assuntos de outras disciplinas.
questionário.
— Reprodução de contos com — Descrição de gravuras sem questiona questionários. — Redação de
envelopes.
— Reprodução de contos sem questionário. — Redação de cartões de visita.
— Passar quadrinhos para prosa. — Redação de bilhetes.

Esse programa mostra como os alunos aprendiam a redigir antigamente. O objetivo de trazê-lo aqui não foi
matar as saudades. Ainda hoje se ouve com freqüência professores dizerem que antigamente as pessoas
aprendiam muito bem com as cartilhas. Essa argumentação leva em conta apenas os alunos que aprenderam,
esquecendo-se dos que não aprenderam, aprenderam mal e tiveram de interromper os estudos. Esse tipo de
argumento saudosista é uma forma de justificar o mal do presente com uma utopia do passado.

<216>
Outra prática consiste em pedir para os alunos escreverem uma história depois de ouvirem um texto várias
vezes. Contar com as próprias palavras uma história que o professor leu para a classe ou que eles leram em
algum livro às vezes ajuda a escrever com mais tranqüilidade, com a segurança de que será um bom trabalho. A
verdade não é bem essa, mas a expectativa dos alunos de que assim farão um bom trabalho ajuda, em geral, a
conseguir melhores resultados.
O excesso dessas atividades, porém, pode criar preguiça intelectual e favorecer a idéia de que se pode fazer
um texto desde que haja um modelo prévio. Esse tipo de atividade facilmente descamba na idéia de que a
produção do aluno depende de um modelo, como ensina o método das cartilhas. E isso, como já vimos, é
desastroso.

A OPÇÃO PELOS TEXTOS ESPONTÂNEOS


Recentemente, muitos professores acabaram se convencendo, pelas evidências encontradas no próprio
trabalho, de que vale a pena fazer com que os alunos produzam textos espontâneos variados. Surpreenderam-
se com os resultados. Pensavam que seus alunos, por serem pobres e oriundos de famílias problemáticas e
carentes, não seriam capazes de escrever belas históri as, como os alunos bem-nutridos e bem-vestidos das
ricas escolas particulares.
Entretanto, certos professores têm medo de entrar nesse mundo porque o acham muito caótico, uma vez que
sempre trabalharam sob rígido controle das atividades produzidas pelos alunos, para que eles não errassem e,
conseqüentemente, não fixassem o erro. Com muito bom senso e um pouco de coragem, talvez começando
como atividade paralela às demais atividades tradicionais, o professor pode propor a redação de textos
espontâneos a título de experiência para checar os resultados.
É preciso tomar certos cuidados, nesses casos, já que os alunos, acostumados a trabalhar sob um rígido
controle por parte do professor e do método, sentem-se inibidos, no início, a fazer, por exemplo, textos
espontâneos. Lamentam, dizendo que assim não dá para fazer
<247>
nada (e com razão, pelo que aprenderam até então). O professor deve conversar sobre esse tipo de atividade,
mostrar suas vantagens e deixar que os alunos encontrem aos poucos um novo caminho para produzir seus
textos. O tempo como sempre é um fator importante, e o professor não deve desanimar com as dificuldades
iniciais.
Um outro tipo de comentário comum, quando se discutem questões como a produção de textos
espontâneos, encontra-se na seguinte afirmação: “Eu sempre fiz assim e não deu certo... não é bem assim... os
bons alunos aprendem de qualquer jeito e os maus alunos não aprendem nunca”. Em primeiro lugar, gostaria
de dizer a esses professores que é muito estranho o comportamento relatado: se eles chegavam sempre à
conclusão de que não adiantava ensinar desse modo, porque repetiam sempre as mesmas estratégias? Em
segundo lugar, se algum aluno não aprendia, por que o professor não foi estudar as razões mais profundas e
verdadeiras do fracasso? Em terceiro lugar, tenho sérias dúvidas com relação à afirmação de que eles “faziam
sempre assim”, querendo dizer que, de fato, não seguiam o método do bá-bé-bi-bó-bu e sempre trabalharam
com a produção de textos, tal qual sugerida por nós.
Um comentário diferente, mas que ainda demonstra certa relutância em levar para a prática escolar da
alfabetização a produção de textos espontâneos, vem daquele professor que declara que pediu para seus
alunos produzirem textos espontâneos e eles escreveram textos à moda das cartilhas, com todos os problemas
que já tinham antes, usando o método das cartilhas. Em outras palavras, o professor quer dizer que, mesmo
deixando seus alunos produzirem textos espontâneos, eles acabam reproduzindo os erros e tendo dificuldades
semelhantes às que ele encontra com aqueles alunos com os quais não costuma aplicar esse tipo de atividade.
Portanto, tanto faz agir de um jeito ou de outro.
Na verdade, não é bem assim. A produção de textos espontâneos variados aparece aqui dentro de um
contexto, no qual os alunos são alfabetizados sem o método do bá-bé-bi-bó-bu. E isso faz muita diferença. Um
aluno que produz textos espontâneos dentro do contexto de ensino das cartilhas não escapará dos malefícios
do ba- bé-bi-bó-bu, pelo menos em parte e em certas ocasiões.
O fato de redigir textos espontâneos é uma janela para um mundo novo, mas o acesso a ele ainda depende
de cortar certas amarras. Se o professor analisar o
<218>
que seus alunos fazem seguindo as instruções dos exercícios estruturais, dos ditados, e comparar com o que
fazem nos textos espontâneos vai começar também a ver as diferenças entre esses dois tipos de abordagem do
ensino da escrita. A grande incidência de erros nos textos espontâneos mostra mais claramente como o aluno
pensa, como faz para escrever, que tipo de solução dá para suas dúvidas. Conseqüentemente, permite ao
professor conhecer melhor seus alunos e ensinar o que for preciso de maneira objetiva.
Por outro lado, certos erros vão evidenciar que, apesar de o aluno acertar tudo no ditado, ele erra ao
escrever espontaneamente, o que denuncia que o ditado não é uma boa forma de avaliação (e pior ainda de
ensino), O professor pode constatar que o aluno levou para o texto espontâneo frases ou expressões
estereotipadas, que aprendeu na cartilha. Começou escrevendo um texto interessante e foi até certo ponto.
Depois, escreveu frases soltas para completar o texto. Como se vê, uma simples abertura no método das
cartilhas já é muito interessante para fazer uma crítica dessa prática educativa e possibilitar uma melhor
compreensão do processo de aprendizagem do aluno, de como ele está construindo os conhecimentos a
respeito da escrita, da leitura e da fala.
Para ilustrar os comentários expostos acima, será apresentada, a seguir, uma série de textos dos mais
variados tipos e origens. Será feito um comentário geral sobre cada texto e, depois, os erros serão analisados,
em busca de uma explicação. Haverá também sugestões de como ensinar o aluno a melhorar, errando cada vez
menos no futuro, até dominar a produção de textos escritos.

EXEMPLOS DE TEXTOS DE
CARTILHAS E OUTROS

As cartilhas antigas em geral dispunham abaixo da lição das letras algumas frases para serem lidas, estudadas
e copiadas. Essas frases não pretendiam formar um texto, eram apenas exemplos para leitura, cópia e ditado.
Os textos vinham ao final da cartilha, quando o aluno já sabia ler e podia fazê-lo sem se apegar apenas às
palavras já dominadas de cada lição (todas de uma só vez).
<219>
Vejamos o que acompanha o estudo de uma letra e um texto da Cartilha do povo: para ensinar a ler
rapidamente, de Manuel B. Lourenço Filho.

LOURENÇO FILHO, 1951.


33ª lição — A zebra
1. O rapaz estudou a lição do exame.
2. Devemos seguir os bons exemplos.
3. O besouro zumbe; o sapo coaxa; o burro zurra.
4. Ponha o vidro de xarope debaixo da luz.
5. Tio Xerxes comprou uma caixa de charutos.
6. Zezé não zela de suas coisas.
A-le-xan-dre A-ta-xer-xes Zu-lei-ca

Nota-se que o autor está preocupado não só com as relações entre letras e sons, mas também com as
relações entre sons e letras, ou seja, não só com a leitura que as letras têm, mas com o trabalho que a criança
tem de passar da fala para a escrita. Por isso, aparecem exemplos de palavras com a letra Z e exemplos em que
há o som de “zê”, porém, escritos com outras letras, como o X e o S.
Não há excesso de palavras que têm o mesmo som, como em outras cartilhas, em que se encontram
exemplos como “Ivo viu a uva”. Para o autor, uma ou duas ocorrências de um fato sob estudo numa frase
bastam.
Da lição 37 em diante, aparecem cinco textos no final da cartilha: “Já sei ler”, “A galinha esperta” (fábula), ”A
nossa bandeira”, “Minha Terra” (com os nomes dos estados) e a letra do Hino Nacional. O primeiro texto é
este:
1. Já sei ler!
2. Já sei ler nos livros, nas cartas e nos jornais.
3. Que bom! Posso agora aprender lindas histórias.
4. Posso conhecer minha terra, o meu querido Brasil lendo histórias de viagens.
5. Posso saber o que outros homens fizeram e pensaram há muito tempo.
6. Posso escrever cartas aos meus amigos e parentes.
7. Como é bom saber ler!
8. Todos os brasileiros precisam saber ler.
9. O brasileiro que não sabe ler não é bom brasileiro.
10. Devemos ensinar a ler aos que não sabem.
Como é bom saber ler!

O grande problema desses textos dados como exemplos nas cartilhas é que o aluno acaba concluindo que é
desse modo que se produz um bom texto.
<220>
Nota-se que o autor escreveu algumas frases a res peito de um assunto, mas não redigiu um texto. Até
mesmo a disposição das frases, com números e paragrafação, denota isso. Como o texto vem ao final da
cartilha, o autor tomou a liberdade de escrever sem se preocupar com o ensino de determinada letra, nem
com as noções já dominadas, uma vez que ele supõe que o aluno, nessa altura, seja capaz de ler qualquer
coisa. Apesar disso, achou conveniente, por bom senso, escrever um texto “fácil”. Na verdade, nada prova que
esse tipo de texto seja “mais fácil” do que uma poesia do livro Ou isso ou aquilo, de Cecília Meireles. Como
falantes nativos de uma língua, os alunos são capazes de enfrentar uma variedade enorme de textos. A
restrição com relação à escrita reside apenas nos casos em que os alunos não sabem decifrar determinadas
letras ou conjuntos de letras, dificultando ou impossibilitando a leitura. Depois que eles decifraram a escrita, o
texto pode ser qualquer um desde que a criança tenha condições de entender. Ou se tem um texto
incompreensível para a criança (como um texto científico especializado) ou se tem um texto que elas podem
entender (como qualquer texto destinado às crianças). Não é possível, cientificamente falando, dizer se o texto
da cartilha, apresentado acima, é mais fácil ou mais difícil do que o poema de Cecília Meireles citado a seguir:

O Menino azul
O menino quer um [burrinho] para passear. Um burrinho manso, que não corra nem pule, mas que saiba
conversar.
O menino quer um [burrinho]
que saiba dizer o nome dos rios, das montanhas, das flores
— de tudo o que aparecer.
O menino quer um [burrinho]
que saiba inventar histórias bonitas com pessoas e bichos
e com barquinhos no mar.
E os dois irão pelo mundo
que é como um jardim
apenas mais largoe talvez mais comprido e que não tenha fim.
(Quem souber de um [ burrinho desses, pode escrever para a Rua das Casas, Número das Portas, ao Menino
Azul que não [sabe ler.)

Intencionalmente, a poetisa faz versos de poucas palavras para facilitar a leitura e, assim, não precisou
escrever números antes das frases. Esse poema é um
<221>
dos que não se prendem, de maneira típica, ao ensino de determinada letra ou som, como ocorre com outros
poemas do livro. Por exemplo, o poema a seguir salienta o uso da letra C com o som de “kê”:

Colar de Carolina
Com seu colar de coral, Carolina corre por entre as colunas da colina.
O calor de Carolina cobre o colo de cal, torna corada a menina. E o sol, vendo aquela cor do colar de Carolina,
põe coroas de coral nas colunas da colina.

O poema de Cecília Meireles assemelha-se à idéia das cartilhas de ficar repetindo um determinado som ou
letra, mas sua arte acaba produzindo um texto bem-acabado e sugestivo, bem diferente dos exemplos da
cartilha, como se pode ver, comparando o texto anterior com este outro:

< BRAZ 1967, p. 10.


A casa é de Lalá.
É uma casa bonita.
A casa tem copa.
A copa tem caco.

O texto acima é típico das cartilhas modernas: o autor escreve frases soltas, utilizando-se apenas de palavras
já estudadas ou formadas com sílabas geradoras já dominadas. É óbvio que o autor da cartilha sabe que seu
objetivo é apenas ensinar o aluno a usar os conhecimentos já estudados para ler e escrever e, como o método
está organizado de modo hierárquico, rigorosamente estabelecido e controlado na sua progressão, o autor
intui que fazendo textos apenas juntando sílabas geradoras para formar palavras, e juntando palavras para
formar frases, acabará tendo uma “espécie” de texto ao escrever algumas frases.
Diante desse material apresentado pelas cartilhas e ouvindo o professor propor atividades de escrita com
essa história, ou esse conjunto de frases, o aluno passa a entender que, para as finalidades da escola, é assim
que se faz um texto. E assim continuará fazendo, até que encontre um professor que chame sua atenção,
dizendo que ele não pode escrever desse modo ou simplesmente
<222>
dando-lhe uma nota baixa. Como se vê, é desastroso apresentar esse tipo de material aos alunos, justamente
quando eles estão querendo saber como a escola lida com a linguagem oral e escrita. Atividades iguais a essa
significam a transmissão de uma concepção errônea do que seja um texto e até mesmo do que seja a
linguagem oral e escrita. Como o método obriga o aluno a não sair do esquema e a repetir o modelo, ele acaba
entendendo que, além de se alfabetizar, precisa produzir textos como os da cartilha e lidar com a linguagem à
semelhança dos exercícios a que está habituado a fazer dentro da escola.
Para poder comparar os textos dos alunos com os textos das cartilhas, começaremos apresentando alguns
outros textos típicos, produzidos dentro do método do bá-bé-bi-bó-bu, extraídos da cartilha Coração infantil.
cartilha de alfabetização rápida, de Vicente Peixoto.
(Passamos a numerar os textos para facilitar os comentários.)

PEIXOTO, 1950,p. 8. >


Texto 1 — 1ª Lição
1. O boi bebe.
2. O boi baba.
3. O boi bebe e baba.
4. O boi bebeu e babou.

PEIXOTO, 1950,p. 14. >


Texto 2 — 4ª Lição
1. O boi de Fábio fugiu.
2. Fábio foi cedo à cidade.
3. A geada “caiu” cedo.
4. Fábio fugiu da geada.

PEIXOTO, 1950, p. 30. >


Texto 3 — 1ºª Lição
1. O sapo pula na rua.
2. A rua é de subida.
3. O sapo sobe a rua.
4. Romeu ri do sapo.

PEIXOTO, 1950, p. 46. >


Texto 4— 4ª Lição da Segunda Parte
1. Oh! que bonita blusa!
2. É a blusa de Carlos.
3. A blusa de Carlos não é de brim.
4. A blusa de Carlos é de seda.
5. É de seda branca.
6. Como cai bem no ombro!
7. Que bom alfaiate é o pai de Joel!

PEIXOTO, 1950, p. 70. >


Texto 5— 14ª Lição da Segunda Parte (última lição)
1. Os exames estão próximos.
2. Xerxes estuda dia e noite.
<223>
3. Ele fixa a atenção nas lições.
4. Por isso explica bem o que estuda.
5. No último exame fez provas exatas.

Não adianta alguém dizer que o autor não queria fazer textos, apenas frases para treinar os alunos. Quando
se analisam esses textos, percebe-se logo que o autor quis, na verdade, escrever frases, mas procurou uma
ligação semântica entre elas, discorrendo sobre um certo tema e, por isso, o aluno acaba entendendo que se
trata de um texto, e não simplesmente de frases soltas. Esse é um mau exemplo que o livro didático dá ao
aluno. Se as frases fossem totalmente desligadas semanticamente, seria mais inofensivo.
No texto 4, o autor usa uma informação dada anteriormente — de que o pai de Joel é alfaiate — para tirar a
conclusão do texto. Para quem lê esse texto sem ter lido os anteriores, a frase 7, QUE BOM ALFAIATE E O PAI
DE JOEL!, é interpretada como algo que não faz sentido no texto, uma vez que se falava da blusa e acabou-se
tirando uma conclusão a respeito do pai de joel. Aqui, como no método do bá-bé-bi-bó-bu, só se trabalha com
coisas já vistas e já dominadas, mesmo que de maneira desconexa (falta de coerência). O autor pressupõe que
o aluno esteja a todo instante remetendo suas idéias a tudo o que já foi visto antes. Esse conjunto de
informações das coisas já vistas é, na verdade, um contexto lingüístico que cresce à medida que o estudo
progride, e com referência ao qual tudo é construído, devendo todo significado ser entendido a partir desse
quadro semântico e discursivo compartilhado pelo livro e pelos alunos. Quem lê o texto sem saber dessas
informações, fica surpreso com a falta de coerência entre as idéias.
Alguns autores têm uma preocupação excessiva em usar a linguagem escrita de maneira lógica, do ponto de
vista semântico. É por essa razão que o autor usa aspas na palavra CAIU, no texto 2, uma vez que a geada não
cai, por exemplo, como a neve, mas se forma com a umidade. Entretanto, a linguagem é freqüentemente
usada de maneira metafórica, e não lógica (veja, por exemplo, a expressão “pé de mesa”). Dentro das
preocupações subjacentes do autor, ele também deveria colocar entre aspas a expressão FUGIR DA GEADA,
logo abaixo, porque ninguém, logicamente, foge de geada. Esse texto tem, ainda, outro problema de lógica: se
Fá bio foi cedo à cidade, e se a geada caiu cedo, como foi possível Fábio fugir da geada? No texto 4, frase 6, o
<224>
autor usa o verbo cair na expressão “cai bem”, sem colocar aspas. Por que num caso foi preciso o uso das
aspas e no outro não?
Finalmente, lendo esses textos, percebe-se logo o mau gosto literário, a falta de originalidade, a chatice com
que é tratado qualquer tema, e a falta de imaginação para lidar com as palavras. São textos sem graça,
insípidos e, até certo ponto, idiotas, quando apresentados por um livro didático ou por um professor, de quem
o aluno esperaria coisa bem melhor.

TEXTOS ESPONTÂNEOS
DE CRIANÇAS
Quando as crianças se põem a redigir textos espontâneos, mesmo que não saibam quase nada sobre o
funcionamento do sistema da escrita, e, menos ainda, a respeito da ortografia das palavras, nota-se que
escrevem com uma grafia muito idiossincrática (individual). Apesar disso, os textos têm um certo sabor
interessante e, do ponto de vista do valor, são no mínimo razoáveis. Compare os textos da cartilha com alguns
textos espontâneos produzidos por alunos de primeira série, apresentados a seguir.

Texto 6—Alvaro L. E
estálio = história.
Estálio umdia Eu fui nacazada minha Vovó.
Os meus dio nadaro debecireta.
Eu imeoto dio su Bimo eicima da arvore

Texto 7—José Roberto


(a) Eu fui no cinema
Oca chorro mimodeu a celina
Eu edeucaeixada no caxorro
Eu viu aminina no são

(b) O coelho e do juão


brite = presente da. o rerudo = orelhudo.
O coelho resebeu o brite na abelha
O coelho é o rerudo
O coelho foe no boque
O coelho é bonida

(c) O cavalo coremotobe


O cavalo moreo
O cavalo coria
O cavalo e tavacofomi
<225>

Os textos 6 e 7 são de alunos de uma professora que costumava alfabetizar pela cartilha e nunca tinha
pedido para seus alunos tentarem escrever uma história. Depois de uma discussão sobre o assunto, ela
resolveu experimentar. O resultado foi surpreendente: embora escrevendo com dificuldade, as crianças
fizeram textos e não frases desconectadas. Esse resultado abriu os olhos da professora para esse tipo de
abordagem de ensino e, daí para a frente, ela não parou mais de trabalhar com textos espontâneos. No final do
ano, seus alunos não só estavam escrevendo com facilidade, mas passaram a se interessar muito por leitura, o
que veio a ajudar no domínio das formas ortográficas na escrita.

Texto 8 — Ronaldo
Oleão andando comumta presa derepete eli caiu numa almadilia e pasou dois coelio naalmadilia e falaro asin
nãovamo s sauva o leao pogue sinos sauvavoce, coando voce tivé a aiinsima voce vai comenois

O texto 8 é de um aluno que tinha sido reprovado duas vezes na 1ª série. Segundo a professora, ele confundia
todas as coisas, não fazendo direito as lições da cartilha. Apesar do esforço da professora, ele não dominava o
que era ensinado. Em outras palavras, segundo a expectativa da escola, ele não escrevia de acordo com a
ortografia das palavras. Quando a professora passava um trabalho de cópia ou de produção de frases (minhas
primeiras frases), o aluno escrevia páginas, no tempo em que os demais apenas completavam a lição. Quando
a professora começou a passar textos espontâneos, percebeu que o aluno era pior ainda, inventando um modo
estranho de grafar as palavras, embora escrevesse histórias interessantes.
Foi aí que a professora percebeu que o problema do aluno, a causa de sua reprovação na 1ª série (numa
época antes do GB) era o fato de ele não saber como lidar com a ortografia. Seguindo a cartilha, a professora
supunha que o aluno tinha um caminho seguro para escrever corretamente as palavras. Todavia, este aluno
não seguia as regras da cartilha de fazer somente o já dominado, seguindo o modelo. Ele queria
<226>
escrever com liberdade e não entendia por que nunca dava certo.
Com a produção dos textos espontâneos, professora e aluno puderam perceber claramente que era preciso
ensinar como lidar com a ortografia, ou seja, que a ortografia não vinha automaticamente com as lições já
dominadas da cartilha, nem podia ser obtida com a simples observação da fala para escrever. Ortografia não
era questão de sorte, como uma loteria. Era preciso tomar consciência de que todas as palavras têm apenas
uma forma de escrita, e que essa forma deve ser usada por todos. Quem não souber ou tiver dúvidas precisa
perguntar a quem sabe ou olhar no dicionário.

Texto 9— Elizângela
Era uma vez uma bela adormecida tava ormindo na calçada é o princepe chegou e deu um beijo na boca e ela
acordou.

Texto 10— Gislaine


(a) Era uma vez um macaco caiu no lago e gritou para a macaca socorro macaca meu amor, a macaca escutou
e foi la na onde ele caiu e falou: meu querido voce esta vendo voce voi fica de molho na basia até tirar estê
fedo teu
(b) O menino que chama carlos ele estava na rua ele tava bricando de bola ai apareu a menina que ele queria
(c) Era uma vez a galinha estava na Rua e falou para o galo oi qui vida margurada o galo falou é memo eu já to
velho e voce ta nova, esta noiva.
(d) Era uma vez minha professora tia é boa e ela chega atrasada e a jente escomde im baixo da cartera e o
menino fala que a gente não feio

Texto 11 — Edilson
Era num dia Lulú esta bricano comdo 2 minino desconensido aparesero (desenho) chamaro o Lulú e levou o
Lulú para longe.
Lulú des confiou que Ele érão trãobadinha aí Lulú dis cubriu que estava virano trãobadinha.
<227>
Ai condo deu um dia Eles alsaltaro banco deu no radio
mamãe e papai (desenho) ficarão sabeno que Lulú estava preso mamãe e papai ficarão triste.

Epa a policea vemvino.


duca o trãobadinha vemos elboraduca o chefe falou vemos afalta um banco vemos
foram alsantar
Entrarão no banco pegemo grana e ia saino na porte e a bulicia parou e viu a grana
E predemo o duca e Lulú e dodu.

Texto 12— Dirceu L.


Eu gosto de niais Dedeus e domeu Papai e da minha mãe e doquisto e da nosasinhora e de santo
daminhavída mamai
e de mais comer coiza de mais Ede a leguia dema daconta.
Condo eu fico alegui eu fico alegui tamen demais daconta

Texto 13— Zilda


Estória
Um dia uma mulher falava capeta. ai Ela falou tiabo Otro dia Ela falou inferno Ela ficou falano espalavão ai
Ela encrotou uma valinha na arvores e Ela falou purque aciora está xorrado vocé não xamou o capeta e inferno
e tiabo fim

O texto 9 enquadra-se no mesmo caso dos textos 6 e 7. O texto 10 é também de uma aluna repetente.
Enquanto os colegas fizeram apenas um texto, ela fez quatro.
Os textos de 11 a 13 pertencem ao mesmo caso dos
textos 6 e 7.

Texto 14 — Regiane
texto espontâeo
A casa é da macaca
A macaca é a tata.
<228>
A macaca é baoneta
A macaca pita a casa
A macaca gota de nada
A macaca gota da casa
A macaca upa a casa

Uma forte influência das cartilhas aparece no texto 14. Ao solicitar que a aluna fizesse um texto espontâneo,
o resultado foi um amontoado de palavras, numa tentativa de compor frases soltas. A aluna escreve sobre a
casa e a macaca ao estilo dos textos das cartilhas. Comete erros causados pelo não-domínio de certas palavras
que viu na lição da cartilha e que ainda não conseguiu fixar. Assim, ao invés de BONITA escreve “baoneta”,
GOSTA DE NADAR fica “gota de nada”, PINTA E LIMPA são escritos sem a nasal: “pita” e “lipa”. Além disso, em
vez de dizer que A MACACA SE CHAMA TATA, escreve, a seu modo: “A macaca é a tata”.
Como se vê, mesmo com todo o esforço das cartilhas, do professor e do aluno, produzir textos com esse
método nem sequer ajuda a não errar a grafia das palavras. Basta o aluno ter alguma dúvida ortográfica para
perceber que não sabe como resolver a sua dúvida, arriscando, então, qualquer forma de escrita. Como seu
referencial não é a busca da forma ortográfica através da consulta, mas o esforço para descobrir como se
escrevem as palavras apenas pensando, observando a fala, essa aluna tem grandes chances de errar. Pior de
tudo é a estrutura do texto. Os outros alunos, pelo menos tentaram passar para a escrita um texto que
qualquer falante nativo poderia dizer normalmente. Mas o texto 14 é algo que uma criança jamais diria para
outra, sendo apenas um jogo de palavras, produto do método do bá-bé-bi-bó-bu.

Texto 15— Samuel


(a) A cachorra é o dono da casa.
A dona da casa e o pai e a mãe.
O menino é de bagunsa drento da casa
A menina e de rua.
O giigante gebrevu daliom. (?)
Amanha é dia pascua.
Vôvo foi na cidade compra um gato
A menina que um cachorro de pele.
O pelo da duensa nas criansas.
O bone e da menina.
O feio e o leão (?)
A menina e a jogadora.
O dia comeu nublado.
<229>
(b) O chapeu.
Era uma vez um chapeu que nao pode sair de casa
[porque Ele que chamar casa que Eu não poso brincar de pega-pega
— É bom isso e brincadeira de criansa. logo apos que Eu chegar do cerviso meu filho.
— É como Eu vou sair de casa sem minha mae assim eles viveram feliz para sempre. fim
Altor Samuel J. M.
(c) O aniversario.
Era uma vez uma titia que ia vazer anivesario
Ninguem lebrou que hoje ia ser o anivesario da titia.
Mas a titia não estava legal por que estava com dor
[ de dente.
Então Ela foi para o médico
Chegando no medico a dor passou e foi para casa.
E disse:
— Eu acho que vou dormir?
e Ela dormiu.
A titia chamou a sua visinha para fazer o bolo.
A visinha fez o bolo e a titia ficou muito contente.
quando a titia ia chamar suas visinhas a subrinha veio e cantaram parabens.
FIM
(d) Reelaborasão da Estoria O aniversario
Era uma vez uma titia que ia fazer aniversario. Ninguem lembrou que era o aniversario da titia. Mas a titia não
estava legal por que ela estava com dor de dente. Então ela foi ate o medico.
Chegando aõ medico a dor passou e foi para sua casa e falou:
— “Acho que vou dormir!” E dormiu.
quando ela acordou ela foi chamar sua amiga pa ra fazer o bolo.
a amiga fez o bolo e a titia ficou muito contem te.
E a titia foi chamar suas amigas e sua sobrinha chegou e todos cantaram parabens.

Texto 16— Graziela P S.


Um dia a mulher maravilha foi ver se tinha algum
[vigiante.
Uma menina estava chorando a mulher maravilha falou:
<230>
porque você está chorando? porque um ladrão pegou o meu cachorro.
Como ele se chama Buberman eu prometo que eu vou encontra-lo.
O esconderijo é ali.
Vou aproveitar que ele saiu. Ali está o cachorro.
Bom já estou chegando pronto menina o seu cachorro obrigada Mulher maravilha ali está ele tenho um prano.
Agora vou lassar meu laço mágico proto já peguei.

Os textos 15 e 16 são de alunos que foram alfabetizados sem a cartilha e sem o bá-bé-bi-bó-bu. O primeiro
aluno (texto 15 — a, b, e, d) demonstra dificuldade inicial para acertar a ortografia, mas aos poucos foi
aprendendo, chegando ao ponto de fazer autocorreção ou reelaboração de um de seus textos (texto d), no
segundo semestre.
Apesar das dificuldades ortográficas, nota-se claramente que o aluno já tem uma preocupação séria com a
ortografia e busca acertar. Por outro lado, sabe que as dificuldades vão ser resolvidas na atividade de
reelaboração, o que lhe dá tranqüilidade para passar da oralidade para a escrita, de maneira integral, o texto
que produz. Convém ainda notar que os textos de alunos que são alfabetizados dessa maneira são mais ricos
em detalhes, mais semelhantes à espontaneidade com que os falantes dizem o que querem dizer e, justamente
por essas razões, geralmente mais longos.
O texto 16 mostra como um aluno pode escrever certo (ou quase tudo certo), sem precisar passar pelo
processo de aprendizagem das cartilhas. Em pouco tempo e beneficiado pela leitura assídua, o aluno passa a
escrever com naturalidade, sem medo, com precisão mesmo com relação à ortografia das palavras. Note que o
aluno, nesse caso, escreve qualquer história, qualquer palavra que deseja, porque não tem de se preocupar
com o já dominado, já estudado. Ele sabe como buscar a informação correta em caso de dúvida. Tem
consciência de que deve resolver todas as suas dúvidas ortográficas e não ficar simplesmente tentando acertar.
Quando os alunos aprendem a ler primeiro e a escrever como uma decorrência disso, interessam-se muito
pela leitura. Esse interesse ajuda enormemente a resolver os problemas de escrita. Além disso, os alunos vão
aprendendo a distinguir o estilo falado do estilo escrito.
<231>
Eles observam nos livros que às vezes apare cem construções sintáticas ou certas palavras que eles não ouvem
nas conversas do dia-a-dia, mas que aparecem na escrita, como uma forma sofisticada de uso da linguagem. É
por isso que um aluno acaba transportando para seus textos expressões como “eu vou encontra-lo”, vide texto
16 (repare que essa aluna é daquelas que falam “prano” em vez de “plano”, como também se vê no mesmo
texto).
Outra coisa que se nota no texto 16 é o fato de a aluna não ficar repetindo o mesmo tipo de frase nem certas
palavras. Na fala, raramente usamos um mesmo esquema de frase repetidas vezes, a saber: “O menino foi no
cinema. O menino assistiu um belo filme. O filme era de mocinho. O mocinho matou o bandido. O bandido
roubou o banco”. A elisão do sujeito da oração é outra característica do estilo de textos escritos, mais do que
orais, que a aluna já percebeu, ao ler, e está tentando empregar na redação. Já aparecem frases como VOU
APROVEITAR QUE ELE SAIU; BOM; JÁ ESTOU CHEGANDO; TENHO UM PRANO; AGORA VOU LASSAR; JÁ PEGUEI.
É preciso dizer, ainda, que num enunciado como COMO ELE SE CHAMA BUBERMAN EU PROMETO QUE EU
VOU ENCONTRALO, exceto o último “eu”, os outros pronomes sujeitos são usados para dar uma ênfase exigida
pelo contexto semântico do texto. Os pronomes ELE e EU, nesses casos, prosodicamente marcam a sílaba
tônica saliente do grupo tonal e sinalizam um foco, isto é, um elemento semântico que precisa ser realçado.

Texto 17- Reinaldo C. Extraído de Relatos de Experiências premiados 1989, II Concurso, MEC, p. 32.

a samanta e o escube
quando eu venho pra escola
meu cachorro está souto
ele vem comigo ele fica olhando pra ela ela olha pra ele não sei quiqui vai dar isso

Texto 18 — Wagner S. S. Extraído de Relatos de Experiências Premiados 1989, II Concurso, MEC, p. 45.
Responder: O que é melhor, ser criança ou ser adulto?)
Eu não gosto de ser criança porque a criança não trabalha para ajudar em casa mas posso estudar na escola
E.E.PG. Professora Aurea de Godoi. O adulto não tem paciência comigo porque eu sou arteiro e maligno.
Fim
<232>
Os textos 17 e 18 são exemplos de como uma professora trabalha com seus alunos a produção de textos
espontâneos, indicando um tema para que cada aluno escreva o que quiser a respeito. Como se pode observar,
as dificuldades ortográficas dos alunos são muito menores do que alguns professores imaginam. O que choca,
às vezes, não é a quantidade de erros que as crianças cometem, mas certos tipos de erros, como analisaremos,
em detalhe, mais adiante. Veja, por exemplo, no texto 17: NAO SEI QUIQUI VAI DAR ISSO: onde foi que o aluno
descobriu uma palavra como QUIQUI em português? Essa é uma das tantas “palavras” que se diz na linguagem
oral de um jeito, mas que se escreve de outro. As pessoas falam “eu num fui”, “eu sinto ni mim”, mas têm de
escrever EU NÃO FUI, EU SINTO EM MIM, etc.
Há muitas outras palavras com as quais acontece a mesma coisa. Quando escrevem textos espontâneos, os
alfabetizandos são peritos em descobrir essas coisas. Um professor esperto aproveita a oportunidade e faz
uma discussão com seus alunos, organizando um levantamento de casos semelhantes e explicando por que
isso ocorre.
Cartas escritas pelas crianças
na atividade de correio, extraídas de Relatos de Experiências Premiados 1989, II Concurso, MEC, p. 108-9.

Texto 19
(a) VOCE
E O MEU
MELHOR
AMIGO
MUITO
OBRIGADO
POR
ISSO
AMIGÃO

(b)OI
AMIGUINHO
ATÉ QUE
VOSE É
BONITINHO
QUÉ UM
BEIJO

(c) oi marila
eu ciria
coece a sua
caza
FIM

Os textos a, b, c do número 19 são cartas escritas por


crianças da pré-escola, que estão começando a aprender a ler e a escrever. As crianças se saem bastante bem,
<233>
procurando descobrir como escrever o que querem: olham, perguntam ou mesmo tentam escrever por si para
ver o que resulta. Note que os erros ortográficos que ocorrem nessa fase São diferentes dos que ocorrem em
fases mais adiantadas.
Nesse primeiro momento, freqüentemente ocorrem erros que demonstram um desconhecimento do uso
das letras nas suas relações com a fala, levando-se em conta o contexto de escrita. Mais para a frente, ocorrem
mais erros de ortografia propriamente ditos. Veja no texto 19c, como o aluno escreveu QUERIA (ciria) e
CONHECER (coece). Ele ainda não aprendeu que a letra C diante de I e de E tem o som de “çê” e nunca de “kê”.
Para se obter o som de “kê”, a única saída, neste caso, é usar as letras QU. Por outro lado, COECE é uma
excelente transcrição fonética, sem a marca da nasalidade.

Texto 20— Fábio E G. (2ª série)


“Balão”
Eu sou um balão, Um balão de São João. E vim dizer para você:
Eu fui feito pra subir pelo céu e me perder. Agora, se eu cair, veja o que faço:
Incêndios provocar e pessoas machucar. Muitas pessoas ainda me soltam Isso me entristece tanto! Vou pedir
um favor: por favor, não me solte mais!

Texto 21 — Marina E E (2ª série)


“A BORBOLETA”
Já está de manhã.
E o galo diz có-có-ri-có!
E a borboleta se levanta e sai para passear
Lá no meio do caminho ela encontra a abelha e diz:
— Dona abelha, se eu fosse você eu não conseguiria fazer tudo isso.
E lá mais adiante ela encontrou as formigas.
Só que elas estão andando e a borboleta estava voando. Então ela pôde falar — bom dia!
Mas ela ficou pensando:
— Cada trabalho difícil que elas têm! Só que estava na hora de comer.
Então ela foi para casa e comeu.
<234>
Só que ela comeu muita comida e não pode sair. Então ela ficou na cama.

Os textos 20 e 21 são da 2ª série, de uma classe que trabalha muito com textos espontâneos, desde a 1ª
série. Note como os textos amadureceram. Não só
sumiram quase todos os erros de ortografia como, sobretudo, os alunos passaram a produzir textos com certo
estilo literário. Se esses alunos continuarem a produzir textos espontâneos nas demais séries e se continuarem
lendo assiduamente, jamais terão problemas de redação. Podem se ver diante de qualquer desafio de escrita,
que, certamente, resolverão muito bem todos os seus problemas de redação pelo resto da vida.

Texto 22 —Jurandyr V
(a) Descrição do cão
O cão e um animal inteligente
O cão sempre persegue o
patrão quando ve alguem
homem que não é da casa
ele começa a latir
Quando e noite que tudo
estão dormindo ele esta guardando a casa. Quando o patrão bate nele elle sai e depois vem outra vez perto do
patrão.
Quando o patrão perde alquoma cousa elle fica hai até
que não vem buscar elle
não sahi dahi

(b) Descrição — A colheita de café


Aproxima-se o mez de maio. Todos estão se preparão para a colheita de cafe Arruumando
todo os objectos nessesarios
para apanha e depois de colher
O cafe esta pronto para
se lavar no tanque. Depois
de lavado vae para enxugar se
no terreiro Se over broca antes
de ir para o tanque vae para a
estufa depois para matar os bixinhos vae ao benficio Quando esta limpo tora-o bem e com o pó obtem-se uma
bebida deliciosa.
<235>
Os textos 22a e b são de um aluno da 4ª série de 1937. Naquela época, a ortografia adotada pela escola era
diferente. Vê-se que o aluno tinha algumas dificuldades, como traçar corretamente a letra “g”, distinguindo-a
do “q”. Escreve TUDO em lugar de TODOS. Escreve sem segmentar OUTRAVEZ, acrescenta um “o” (sem
corrigir) ao escrever ALQUOMA. O uso dos sinais de pontuação é praticamente ignorado. O texto tenta
reproduzir aquelas histórias de cunho moral típicas dos livros didáticos da época. O aluno não produz um texto
espontâneo, mas induzido pelo método de ensino usado na escola e nos livros didáticos. Além disso, tem de
fazer um texto do tipo padrão, ensinado pelo professor, ou seja, que segue um modelo. Começou com
palavras; agora, escreve textos seguindo o modelo.
No texto b, apesar de ter cometido mais erros de ortografia (e mais graves), sua nota foi maior. Certamente,
o professor achou que o aluno, no texto a, não descreveu exatamente o cão, mas falou de seus hábitos... Já no
texto b, ele achou que a descrição era melhor. O que interessa, na verdade, é constatar que o professor dava
menos importância à ortografia. No texto b, ocorrem os seguintes erros de ortografia: PREPARÃO, ou seja,
PREPARANDO; ARRUUMANDO, ou seja ARRUMANDO; TODO, ou seja, TODOS; NESSESARIOS, ou seja,
NECESSÁRIOS; APANHA, ou seja, APANHAR; OVER, ou seja, HOUVER; BIXINHOS, ou seja, BICHINHOS; TORA O,
ou seja, TORRA-O. Há de se notar, ainda, a construção: QUANDO ESTÁ LIMPO TORA-O BEM.
Ao comparar esses textos da 4ª série (de 1937) com os da 2ª série (de 1989), percebemos que os alunos da
2ª série não só lidam melhor com a ortografia, como produzem textos mais interessantes, do ponto de vista
literário. Ambos mostram que o estilo da linguagem escrita é tido como modelo e ideal, mas antigamente os
alunos estavam muito mais presos a modelos, fazendo textos menos criativos, nos quais a marca da
individualidade era de certo modo negada.
Muitas pessoas costumam dizer que antigamente OS alunos aprendiam melhor. Como se vê, as coisas não
eram bem assim. Na 4ª série, havia aluno escrevendo OVER (HOUVER BIXINHOS (BICHINHOS), etc. Convém
lembrar que um aluno que chegava à 4ª série em 1937 era um privilegiado em termos de chance de estudo,
pois a maioria estudava até a 2ª série.
Apesar de seguir a cartilha (era uma cartilha diferente das atuais), o professor daquela época valorizava mais
<236>
o esforço do aluno em obter um texto mais bem redigido do que sem erros de grafia. A meta a ser atingida
era outra. Hoje, muitos professores só sabem avaliar em função dos erros de grafia. Certamente, as notas das
duas redações de 1937 estariam invertidas para esses professores de hoje. Não só mudaram as cartilhas como
mudou também a atitude dos professores ao longo dos anos. A escola tornou-se muito mais rígida e até
mesmo intransigente com relação à ortografia.

QUESTÕES PERTURBADORAS
Ao discutir a produção de textos espontâneos com professores que usam o método do bá-bé-bi-bó-bu, tem-
se notado que eles ficam muito chocados com os erros de ortografia. Consideram que tudo deve ser feito sob
seu absoluto controle, para que o aluno aprenda em ordem, indo do mais fácil para o mais difícil, reproduzindo
o modelo do já dominado.
Essa crença relaciona-se a uma outra (mais equivocada ainda), segundo a qual o aluno só deve visualizar o
que é certo. O que está errado deve ser evitado. Se ocorrer, deve ser eliminado o mais rápido possível, para
que o aluno não fixe o erro e depois não consiga mais se livrar dele. Por essas razões, esses professores acham
que não devem deixar seus alunos escreverem errado, o que é comum, principalmente no início da
alfabetização. Produção de textos livres será feita como última atividade, depois que o aluno aprendeu a ler e a
escrever com perfeição.
Os efeitos nefastos dessa atitude já foram comentados anteriormente e não é preciso voltar a falar do
mesmo assunto. Porém, como esse tipo de argumentação é freqüente, inclusive para impedir que as crianças
façam textos espontâneos, é bom lembrar aqui, especialmente para comparar o que significa, através de
exemplos, escrever segundo o modelo das cartilhas e o que representa escrever produzindo textos
espontâneos. Os resultados imediatos são mascarados pela metodologia, mas, com o tempo, são claramente
reveladores, mostrando que o aluno que nunca fez textos espontâneos irá encontrar dificuldades enormes (e
muitas vezes insuperáveis) nas séries mais adiantadas, ao passo que os alunos que produzem textos
espontâneos, desde a primeira série, irão saber como resolver suas dificuldades pelo resto da vida.
<237>
Uma outra questão, que perturba demais certos professores, não é tanto o erro ortográfico (eles acham até
natural que os alunos errem de vez em quando), mas o tipo de erro cometido. Para eles, é até aceitável que um
aluno escreva CASA com Z (CAZA), ou LIXO com CH (LICHO), porque essas dificuldades não têm solução
(segundo eles...). Por outro lado, não aceitam que um aluno escreva COMUMTA (COM MUITA — texto 8),
NAALMADILIA (NA ARMADILHA — texto 8), A JENTE ESCOMDE IM BAIXO DA CARTERA (A GENTE SE ESCONDE
EMBAIXO DA CARTEIRA — texto 10 d), ALSANTAR (ASSALTAR texto 11), EDE A LEGUIA DEMA DACONTA (E DE
ALEGRIA DEMAIS DA CONTA
— texto 12), EU CIRIA COECE A SUA CAZA (EU QUE RIA CONHECER A SUA CASA texto 19 c), etc.

JULGAR PELOS ERROS


E PELOS ACERTOS
Essas concepções estão ligadas a uma outra, que leva o professor a julgar seus alunos apenas pelos erros que
cometem, e nunca pelos acertos. É a avaliação punitiva. É a correção que visa a amedrontar o aluno diante do
erro e da ignorância, e não a incentivá-lo a superar suas dificuldades, apoiando-se naquilo que já aprendeu.
Parece que o processo escolar tornou-se algo que vai cortando, derrubando, destruindo coisas que o aluno faz
(o errado), e não um processo de construção, progresso, aumento, que também terá seus momentos de
revisão e de reorganização dos conhecimentos que o aluno possui.
Alguns professores se esquivam desse tipo de argumento, dizendo que são justos; consideram o certo e o
errado objetivamente. Em resumo, acham por exemplo, que um aluno que acertou 70% das palavras ou das
dificuldades ortográficas (o que é isso?), foi bem na escola e merece ser aprovado. Até hoje não encontrei
nenhum professor que aceitasse apenas 50%: eles acham que 50% é muito pouco, porque a maioria das
palavras são muito fáceis (ou seja, pertencem ao conjunto de palavras especiais já dominadas!?...).
Quando, porém, pergunta-se a esses professores se aprovariam um aluno como o Ronaldo (texto 8), eles
dizem que não, porque o aluno não tem condições, já que
<238>
não aprendeu o mínimo necessário. Então pergunto dos 70% de acertos e eles acham que o aluno errou muito
mais, ou seja, acertou muito menos do que os 70% esperados, sendo essa mais uma razão para a reprovação.
Esses professores têm uma noção de cálculo estatístico baseada não em números reais, mas numa certa
desconfiança imprecisa. Jamais chegam a fazer os cálculos realmente. E acabam simplesmente guiando-se pela
qualidade do erro: se o erro ortográfico é chocante, o aluno tem índice baixo de acerto, precisando, portanto,
ser reprovado.
Vamos analisar com mais cuidado o texto número 8 e ver nos seus detalhes, o que ele representa em termos
de erros e acertos.
Contaremos, em primeiro lugar, os erros de ortografia considerando uma letra errada ou uma letra a mais ou
a menos. Por exemplo, na primeira linha: O LEÃO ANDANDO COMUMTA, o aluno acertou as letras 0,1, e, ã, o
(5), a, n, d, a, n, d, o (7), c, o (2), m, u, t, a (4); e errou: m (falta em COM, que ele escreveu CO) (I), o m (de
MUMTA, na verdade um “i”: MUITA) (I). Portanto, na primeira linha, o aluno acertou 17 ocorrências de letras e
errou apenas 2. Procedendo assim, temos o seguinte resultado:

Acertos erros
Linha 1 17 2
linha 2 19 5
linha 3 17 3
linha 4 19 3
linha 5 17 4
linha 6 13 5
linha 7 12 5
linha 8 12 7
linha 9 12 6
linha 10 7 4
total: 146 41 187 letras
Porcentagem (%) 78,07 21,93 100

Outro item que poderia ser investigado é a segmentação correta das palavras. Vamos transcrever o texto,
assinalando com uma barra inclinada — / — o lugar onde ocorreu erro de segmentação e com o sinal de igual,
o lugar onde o aluno acertou:
<239>
Testos acertos erros

1 O/leão = andando co/mumta =3 2


2. presa = de/repete = eli = caiu =4 1
3. numa = almadilia = e = pasou = 4 —
4. dois = coelio = na/almadilia = 3 1
5. e = falaro = asm = não/vamo 3 1
6. s=sauva=o=leao=pogue = 5 —
7. si/nos = sauva/você = 2 2
8. coando = voce = tive = 3 —
9. a/ai/in/sima voce = vai 3 3
10 come/nois 1 1
Total 31 11 42
Porcentagem (%) 7380 2620 100

Como se vê, um professor que tivesse como critério de aprovação pelo menos 70% de ocorrências certas de
letras e segmentação, deveria aprovar Ronaldo. Porém, quando os professores vêem somente o texto, acham
que o aluno não aprendeu quase nada, que escreve tudo errado, e que, conseqüentemente, não tem
condições mínimas de ir adiante.
A análise feita acima atesta que alguns professores usam uma forma desonesta de fazer a avaliação do
aluno, dizendo as regras de um jeito e agindo de outro. Mostra, ainda, o preconceito contra certos erros de
ortografia, que ele, professor, considera gravíssimos, não percebendo que para o aluno alfabetizando as
dificuldades ortográficas residem praticamente em cada letra das palavras, a cada segmentação que faz ou
deixa de fazer.
Se o professor fizesse um cálculo estatístico real, ambos poderiam ver, pelo lado positivo, que muita coisa já
foi aprendida, e o que falta precisa ser dado através de atividades específicas.
O texto 8, comparado com outros, apresenta muitos problemas, o que significa, por outro lado, que os
outros textos têm um índice muito mais alto de acertos.
A produção de textos espontâneos pelos alunos, desde o início da prática de escrita, apresenta resultados
aparentemente caóticos e estranhos, mas, analisados com mais cuidado, constata-se que, no fundo, são muito
mais certos do que errados. Essa constatação é um bom argumento para convencer qualquer professor de que
vale a pena incentivar os alunos a produzirem textos espontâneos.
<240>

10
AS hipóteses por trás dos erros
O HOMEM É UM ANIMAL RACIONAL

Uma criança usa sua capacidade de refletir sobre


tudo o que faz. Nenhuma criança é capaz de fazer o menor gesto ou tomar a menor iniciativa, ou ainda ficar
sem fazer nada, sem que isso seja o resultado de uma decisão, fruto de uma reflexão. Nisso, não há nenhuma
novidade. Desde os mais antigos filósofos, a humanidade sabe que o homem é um animal especial, dotado de
uma faculdade chamada racionalidade; em outras palavras, o homem é um animal racional. O homem não
pode se ver livre da racionalidade, em nenhum momento, sob nenhum pretexto, caso contrário, simplesmente
deixaria de ser homem. O homem é escravo de sua racionalidade. É por essa razão que todo ser humano tem
suas ações comandadas pela racionalidade, sempre e em todas as circunstâncias, mesmo quando comete
barbaridades.
Tudo o que o ser humano faz é movido por um ato de reflexão qualquer, como uso da faculdade da
racionalidade. Nem toda reflexão é consciente ou ponderada em todos os seus aspectos. Quando andamos,
mal sabemos como fazemos isso, mas o andar requer uma tomada de decisão, caso contrário, não andaríamos.
A participação da reflexão na vida das pessoas torna-se bastante evidente quando alguém se propõe a fazer
algo diferente do habitual. Se em vez de andar alternando os pés, alguém resolvesse andar dando um passo e
um salto, logo perceberia que precisaria tornar consciente e constante a decisão de agir dessa maneira, ou
seja, precisaria acompanhar essa prática pensando a cada instante como realiza-la. A reflexão e a decisão sobre
como andar, que antes eram inconscientes, passam a ser conscientes para que a pessoa seja capaz de realizar
corretamente o que quer.
É evidente que a estrutura de nosso corpo, pelas suas características físicas, pode agir sob influência de
fatores externos, por exemplo, a força da gravidade pode derrubar um corpo em desequilíbrio, uma alfinetada
num músculo pode fazê-lo contrair-se automaticamente, etc. Os próprios animais fazem muitas das coisas que
fazemos. A diferença entre o animal e o homem é justamente o fato de o animal nunca poder tomar uma
decisão refletida, mesmo que ele tome uma decisão mais inteligente entre algumas alternativas, por exemplo,
usando sua estratégia de ataque ou defesa. Esse conhecimento sobre a vida é considerado, nos animais, um
instinto.
<242>
A interação dele com o mundo criou formas biológicas de agir mas não de refletir. No homem o “instinto” é
criado através de uma interpretação da interação com o mundo, e isso já é refletir.
A reflexão só é possível com a presença da linguagem e vice-versa. É por essa razão que, para muitos
filósofos, linguagem e racionalidade, ou linguagem e pensamento, são duas maneiras diferentes de falar da
mesma realidade. São dois lados da mesma folha de papel: não se pode ter um lado, sem ter o outro.

A CRIANÇA E A RACIONALIDADE
Uma criança é um ser humano, portanto, um animal racional. Isso significa que toda criança também é um
explorador do mundo, uma pessoa interessada em interpretar a realidade e o imaginário, como fruto de uma
necessidade essencial, senão não seria gente. Ler o mundo é a sina de todos nós na vida e não há como
escapar.
Ao interpretar a realidade, a criança (o homem) processa seu pensamento e tira suas conclusões sobre ela.
Isso acontece em todos os níveis e em todas as circunstâncias. Por isso, quando uma criança entra para a
escola, já percorreu um longo caminho de exploração do homem, da vida e do mundo. Além disso, através da
linguagem e da cultura, a criança pode refletir sobre sua reflexão e interpretar a realidade sob diferentes
perspectivas. Nesse âmbito, é fácil concluir que as crianças não adquirem a capacidade de linguagem através
da simples interação com pessoas falantes, porque a linguagem — entendida como racionalidade — é sua
própria essência — sua diferença específica, diria Aristóteles. Por essas razões, alguns filósofos e lingüistas
chegaram à conclusão de que a essência da linguagem, ou a faculdade da linguagem, é inata. Através da
interação social, uma pessoa adquire apenas a forma material da linguagem de outras pessoas que são falantes
dentro de uma sociedade; em outras palavras, aprende a falar português deste jeito ou daquele, aprende
chinês de um jeito ou de outro, ou aprende qualquer variedade de qualquer outra língua.
Já vimos antes que uma criança aprende a falar a língua do adulto numa idade muito tenra (de 1,5 a 3 anos).
Durante vários anos — em geral 7 —, vive interpretando a realidade, acumulando uma bagagem de
pensamento,
<243>
que é a marca de sua personalidade. Nessa aventura humana pela vida, ela já teve inúmeras oportunidades
para interpretar o que seja a linguagem humana, a fala, a gramática da língua, os usos da linguagem, a escrita,
a leitura, as formas de comunicação verbal e não-verbal e muito mais.
Portanto, toda criança que entra para a escola já pensou sobre várias questões e já acumulou informações
em sua mente. Esse acúmulo de informações é o referencial de que se serve para proceder a novas
interpretações e construir, assim, novos conhecimentos. Nada é totalmente estranho para uma criança:
sempre há algo de conhecido. Ao longo da vida, as novidades tornam-se cada vez mais raras, razão pela qual se
começa a buscar sutilezas. É por essa razão que as ciências, por exemplo, se desenvolvem.
Conhecer a realidade da criança no processo educativo escolar significa entre outras coisas reconhecer que
toda criança entra para a escola com uma bagagem intelectual que ajuntou ao longo de sua vida. Nessa
bagagem, há muitas idéias a respeito de fatos que serão tratados na escola. Nem sempre as crianças têm as
mesmas idéias que a escola, os livros didáticos ou os professores transmitem. Para aprender, elas precisam
descobrir o que a escola, os livros didáticos e os professores pensam. Para ensinar, por outro lado, a escola, os
livros didáticos e os professores precisam saber o que pensam os alunos. E isso deve acontecer não apenas no
primeiro dia de aula, mas em todos os dias, em todas as séries, caso contrário, alunos e escola não entrarão
num acordo.

CONHECER OS ALUNOS
Na alfabetização, é fundamental que o professor saiba o que pensam seus alunos a respeito da leitura, da
escrita e da fala. Essa é uma preocupação dos primeiros dias de aula, ocasião em que o professor irá conversar
com seus alunos. Ao longo do ano escolar, essa deverá ser uma preocupação decorrente da atividade de
avaliação por parte do professor, de tudo o que o aluno faz ou deixa de fazer.
A experiência tem mostrado que há algumas formas de interpretação recorrentes no processo de
alfabetização. Há muitas idéias em comum e, nessa lista, estão
<244>
sobretudo as idéias corretas a respeito da realidade. As idéias estranhas, erradas e incompletas também
podem ser agrupadas em categorias e refletem características de grupos específicos de crianças, de tal modo
que, na prática, a tarefa do professor é muito mais simples do que poderia parecer na teoria.
Seria útil que o professor fizesse um levantamento das interpretações mais comuns que os alunos novos e
velhos têm a respeito: 1) da escola, do ensino, do aprender, das noções de certo e errado, da avaliação, da
promoção, em suma, da vida escolar; 2) do professor, de suas idéias e atitudes; 3) da realidade: do homem, da
vida e do mundo; 4) da sociedade e da cultura; 5) da ciência, da superstição, da fé, da ilusão, do real e do
imaginário; e, sobretudo, 6) da linguagem e, em particular, da leitura, da escrita e da fala em seus mais varia
dos aspectos.
Como não é o caso de discutir aqui todos esses tópicos em detalhe, prossegue-se com o estudo minucioso
das questões relativas à linguagem. Apresenta-se a seguir uma série de fatos que demonstram formas de
interpretar a realidade comuns a crianças antes e no início de se submeterem ao processo de alfabetização. Em
resumo, trata-se de hipóteses das crianças a respeito de fatos da fala, escrita e leitura, isto é, comentários
sobre o que pensam as crianças quando cometem certos erros, principalmente de leitura e escrita.

EXPLICAÇÕES PARA OS ERROS


Freqüentemente, a análise dos erros conduz logo a uma explicação clara e correta. Outras vezes, há
dificuldades mais ou menos sérias em saber exatamente as razões pelas quais um aluno fez tal coisa e não
outra. Nesses casos, há a possibilidade de explicações alternativas, que serão mencionadas oportunamente.
Uma explicação não exclui a possibilidade de outras. Porém, as causas mais evidentes serão as escolhidas. Por
outro lado, não existe nada para o qual não seja sequer possível levantar uma hipótese de interpretação. Tudo
o que um aluno faz ou deixa de fazer tem uma razão de ser para ele, e o professor precisa descobri-la para
poder ensinar adequadamente.
<245>
- PATTO, 1997.
Pesquisar o que os alunos pensam e as hipóteses que levantam ao estudar requer um conhecimento
profundo e especializado do assunto sob investigação, caso contrário, acabam aparecendo interpretações
equivocadas, como aquelas que sugeriram o período preparatório, baseadas numa noção errônea de
“prontidão” no método das cartilhas. Também dizer que o aluno é burro, lento, preguiçoso, incapaz, relaxado,
etc. não esclarece, de fato, a razão do erro do aluno. Nem sempre um comportamento errado está associado a
uma interpretação errada da realidade. São coisas diferentes. Há alunos relaxados que acompanham muito
bem o progresso escolar, e há alunos bem-comportados que apresentam sérias dificuldades de aprendizagem
e vice-versa.
Todo erro de matemática pressupõe uma explicação matemática. Todo erro de português suscita uma
explicação gramatical (no sentido mais amplo). Interpretar erros de ortografia, por exemplo, como distúrbios
da fala, como problema emocional do aluno ou de sua família, como problema neurológico ou como uma
doença psicológica é fugir das verdadeiras causas, é enganar ao aluno e a si. Erro de ortografia relaciona-se
com as hipóteses que o aluno levanta sobre a escrita, apenas isso. Problemas de outra natureza (físico,
emocional), quando de fato ocorrem, afetam não apenas a resolução de problemas de matemática ou de
ortografia, mas toda a vida da pessoa. Os erros escolares são sempre muito localizados e circunstanciais.
Ocorrem em determinados contextos, e não em outros (ocasiões em que o aluno acerta). Por isso, são
facilmente identificados e podem ser corretamente interpretados por um bom especialista.
Hipóteses estranhas (não esperadas pelo professor) ocorrem não só quando os alunos erram (sempre), mas
também quando eles acertam (às vezes). Por exemplo, um aluno pode multiplicar 420 por 32, escrevendo 40,
800, 840, 60 0, 1 440, 1 200 - O = 13 440. O aluno chegou ao resultado certo, seguindo um caminho diferente
daquele que o professor ensinou para fazer as contas de multiplicação. Um bom professor procura descobrir
que raciocínio levou o aluno a escrever aqueles números estranhos e depois colocar o resultado certo. Será
que ele colou? Copiou do colega? Ou será que o aluno fez de outro jeito? Vejamos: multiplicar 420 por 32
significa somar 32 vezes o número 420, ou somar o resultado de 2 X 20 + 2 X 400, ou seja, 40 + 800, resultando
em 840; depois somar ainda 30>< 20 (que o
<246>
aluno fez 3 X 20, acrescentando um zero ao resulta do), o que dá 600, que somado aos 840 anteriores dá 1
440. Em seguida, multiplica-se 30 por 400 (que o aluno fez 3 X 400, acrescentando um zero ao resultado), o que
dá 12 000, que por sua vez, somado ao resultado anterior (1 440), dá o total de 13 440, que é a resposta. Sem
dúvida alguma, esse aluno não copiou o resultado e muito menos colou. Mas um professor despreparado pode
não acreditar na versão do aluno, achando que ele escreveu um monte de números aleatórios e depois colou o
resultado do caderno de algum colega. O final da história pode ser uma nota baixa que poderá, eventualmente,
causar uma repetição de ano. Fatos como esses aparecem freqüentemente na escola.
Descobrir as idéias dos alunos é entrar num mundo fascinante e surpreendente. Talvez seja esse o motivo
pelo qual, apesar dos baixos salários, muitas pessoas insistem em continuar sendo professores: é uma
experiência intelectual e humana maravilhosa.

A REFLEXÃO DO ALUNO NA ESCOLA


Para entender a realidade dos alunos, é preciso, ainda, estar convicto de que as crianças não vivem
passivamente no mundo, mas estão a todo instante atentas para aprender tudo o que lhes interessa, em todas
as circunstâncias.
A leitura do mundo é algo que todo ser humano faz a todo instante, graças à racionalidade. Todo ser
humano, por mais simples, mais rico ou pobre que seja, é escravo da própria racionalidade. Por isso, tudo o
que faz é fruto de um pensamento, de uma reflexão, de uma decisão pensada. Conseqüentemente, toda
pessoa precisa estar constantemente lendo o mundo e procurando entendê-lo. Cada um faz isso segundo seu
próprio modo de ser, segundo as características da sua personalidade. Isso explica por que as pessoas chegam
a conclusões diferentes, tentando interpretar fatos iguais. O que é importante para uma pessoa pode não ter
valor para outra e vice-versa.
Alguns educadores parecem ter descoberto só agora que as crianças pensam, que tudo o que fazem reflete
uma decisão pessoal, resultante de uma reflexão. Em
<247>
outras palavras, todos os acertos e erros das crianças trazem por trás de si hipóteses que levaram a criança a
tomar determinada decisão e fazer algo de um certo modo e não de outro.

- Ver debate sobre o assunto promovido por Maria Helena


PATTO (1985) em vários números da revista Cadernos de Pesquisas.

A nossa escola foi desviada desse caminho no momento em que alguns piagetianos brasileiros começaram a
dizer que as crianças não aprendiam porque apresentavam uma síndrome da dificuldade de aprendizagem,
resultando dai os trabalhos de prontidão e todas as atividades do período preparatório.
Recuperar o aluno como ser pensante passou a ser algo imperativo para que a escola pudesse retomar seus
trabalhos com decência e, curiosamente, foi uma piagetiana (Emília Ferreiro) quem chamou fortemente a
atenção dos educadores deste país para essa realidade. Nessas circunstâncias, o trabalho de Emília Ferreiro
apareceu com um certo tom de novidade.
Já em métodos antigos de alfabetização, encontramos um esforço dos autores para interpretar a razão pela
qual um aluno chegou a uma conclusão errada. Trata-se de uma tentativa de descobrir quais as hipóteses que
as crianças levantam quando cometem certos erros de escrita ou de leitura. Por exemplo, no Manual
explicativo

< CASTILHO, 1859, p. 45-7. do método de leitura denominado escola brasileira, de Francisco Alves da Silva
Castilho, o autor faz um levantamento de alguns tipos de erro que os alunos cometiam nas suas aulas. Apontou
os seguintes fatos: aluno que escreve como fala, segundo um dialeto que não respeita a norma culta, acaba
escrevendo errado. Por exemplo: quem escreve ORDENCIA em lugar de PRUDÊNCIA, ou TIVE por ESTIVE; quem
troca -NHO por NIO; L por R, como ARMA por ALMA, CARDO por CALDO; quem inverte a ordem de letras em
palavras, como em CRAVÃO; aluno que mistura letras, fazendo um uso indevido de certas letras: FEIO ou FELO
em vez de FERRO, NAVA em vez de LAVA, XUA em vez de SUA, AJA em vez de ASA (que no tempo do autor se
escrevia AZA).
O MÉTODO, O PROFESSOR,
O ALUNO E A ESCOLA
Mesmo quando o ensino é impositivo, obrigando o aluno a seguir o modelo a todo instante, os alunos
continuam sendo indivíduos com direito às suas próprias
<248>
idéias e interpretações. Nenhum método de alfabetização controla tudo, sempre, o que obriga o aluno a
tomar algumas decisões por conta própria, interpretando até mesmo o que o método ensina.
É por isso que, apesar do esforço do professor e da exatidão da explicação do método das cartilhas, alguns
alunos cometem erros, aparentemente incompreensíveis (ou aceitos somente se associados a problemas
mentais). O aluno não deixa de lado sua racionalidade, nem seu direito de refletir, porque está sendo
submetido a um método ou a outro. Quando o método é muito rigoroso, os alunos que se submeterem mais
facilmente e mais plenamente acabam acertando mais; porém, aqueles que começarem a questionar os
resultados ou mesmo os procedimentos, acabam, quase sempre, tomando um caminho que não leva aos
resultados esperados pelo método. Por exemplo, o aluno que aprendeu pelo bá-bé-bi-bó-bu, escreve no ditado
LT para LATA, CP para CAPA, etc. Ele entendeu que a vogal já vem com a consoante, sendo dispensável na
escrita. No fundo, volta-se à velha distinção entre ensino e aprendizagem: não é porque o professor ensina que
o aluno aprende; não é porque o professor ensina de um determinado modo, que o aluno se convence de que
esse é o único modo de interpretar; como também é verdade que não é por que o professor não ensina que o
aluno não pode aprender.
O importante é o fato de que, seja em que método for, os alunos estão sempre pensando quando fazem suas
tarefas, isto é, para tudo o que fazem, têm uma hipótese que representa a conclusão de um processo de
argumentação, que revela ao aluno que ele deve fazer algo de determinado modo e não de outro.
Um professor que conhece profundamente como a escrita, a leitura e a fala funcionam e o que acontece
durante o processo de alfabetização, é capaz de analisar qualquer coisa que aconteça ou deixe de acontecer
com os alunos, quando eles vão ler ou escrever. Por outro lado, um professor que não for capaz disso, não tem
condições de lidar com certos fatos que encontra, principalmente quando os alunos fazem coisas estranhas ou
têm comportamentos inesperados.
Um professor terá condições de analisar e entender seja lá o que for somente se se dispuser de uma
competência técnica bem-adquirida. Nem sempre o bom senso funciona. Às vezes, é preciso saber muito bem
<249>
como a linguagem oral e escrita funcionam. Isso demanda do professor alfabetizador conhecimentos sóli dos
de lingüística e dos sistemas de escrita. Como as escolas de formação têm negligenciado sistematicamente
esses aspectos, os professores precisam sanar essa deficiência procurando estudar por conta. É
particularmente importante fazer um trabalho de reflexão, análise e interpretação de tudo o que acontece no
dia-a-dia em sala de aula, a fim de não ter apenas a visão do método e da cartilha na prática escolar.
Quando um aluno começa a errar sistematicamente, seguindo o método do bá-bé-bi-bó-bu, a cartilha tem
como única alternativa obrigar o aluno a rever as lições anteriores, até compreender o que ficou faltando ou o
que foi entendido errado. Se, apesar disso, não superar suas dificuldades e continuar fazendo do mesmo modo,
o aluno é remanejado, submetido a processos de recuperação, reprovado, até que chegue à conclusão de que
não serve para os estudos.
Essa situação extremamente constrangedora precisa ser abolida da escola. Mas, para isso, o professor
precisa entender realmente o que significa o que o aluno faz. As explicações mais tradicionais que os
professores usam têm a ver com as deficiências dos alunos, com seus déficits. A escola usa de rótulos já
prontos, sem saber se são verdadeiros ou não, do mesmo modo que opta por um método como o das cartilhas,
sem medir as conseqüências. Faz isso simplesmente para resolver dificuldades circunstanciais, porque tem
medo de enfrentá-las, considerando mais fácil ignorá-las ou afasta-las para outro lugar, criando a falsa
aparência de que, eliminando os erros a qualquer preço, tudo está em ordem. Raramente se lembram de que o
método também pode ser o culpado e quase nunca chegam à conclusão de que os erros, sejam eles quais
forem, podem ser entendidos como hipóteses ou raciocínios lingüísticos dos alunos que não correspondem às
expectativas da escola.
Atribuir os erros das crianças à falta de capacidade de observação, de inteligência, a fatores
socioeconômicos, médicos, fonoaudiológicos, de desnutrição, etc. são formas equivocadas de interpretação de
fatos lingüísticos e que têm levado a educação por péssimos caminhos. Essas explicações foram levantadas
para inocentar os métodos de sua incompetência. A escola precisa ser mais honesta e parar de ficar
interpretando os
erros das crianças de uma maneira preconceituosa.
< MASSINI CAGLIARI, 1996i
<250>

O CERTO, O ERRADO E O DIFERENTE


Há um interesse particular em estudar os erros que os alunos cometem quando estão aprendendo a ler e a
escrever. A partir da correta análise desses erros, o professor poderá ajudar o aluno a se superar e a progredir
na aprendizagem escolar. Alguns erros são tão sérios que, se não forem sanados, o aluno acaba não
aprendendo a ler e, conseqüentemente, não se alfabetiza.
Tradicionalmente, os livros didáticos e, sobretudo, o método das cartilhas não gostam de erros. O método é
feito de modo a prevenir o aluno de cometer qualquer erro, mesmo que ele não saiba muito bem o por quê
das coisas que faz. De modo geral, a escola detesta o erro no processo de aprendizagem, razão pela qual a nota
goza de tão grande prestígio. A nota é o castigo do erro. Obviamente, a escola, os métodos e os professores só
pensam nos erros dos alunos, jamais nos seus próprios.
Em se tratando de linguagem, é preciso distinguir o certo, o errado e o diferente. Uma língua vive em função
de seus falantes. Como a linguagem oral é um fato social, vamos sempre encontrar um grupo de pessoas que
usam a mesma linguagem oral. Por exemplo, no Japão, as pessoas falam o japonês, na Coréia falam coreano,
na França falam francês, no Brasil falam português. Para estudar essas línguas, o lingüista vai pesquisar como
as pessoas desses lugares falam. Ao fazer isso, descobre que, apesar de essas pessoas usarem a mesma língua,
falam com diferenças regionais e até pessoais. Para organizar a gramática de uma língua, que é o conjunto de
regras desse sistema lingüístico, o lingüista precisa descrever, por um lado, as igualdades e, por outro, as
diferenças.
Essa descrição é feita sobre fatos da linguagem oral. A escrita nada mais é do que uma representação da
linguagem oral. Porém, nosso sistema de escrita, por ter um uso social muito abrangente, está acima dessas
diferenças entre os dialetos, sendo um só para todos. Isso, obviamente, trouxe uma grande vantagem no uso,
mas também uma grande complicação na descrição das relações entre linguagem oral e escrita. Nosso sistema
de escrita ortográfico não está mais preocupado em saber como o usuário fala. Este simplesmente deve seguir
o que foi estabelecido para todos nas convenções da escrita.
<251>
Essa visão de linguagem oral e de escrita tem muito a ver com o que comumente se chama erro de
linguagem. Como a escola tradicional trabalha com a linguagem somente do ponto de vista da escrita, fica
muito difícil entender os mecanismos da fala e quais os seus usos. Tudo o que foge ao padrão da escrita passa a
ser considerado erro. É preciso acabar com esse equívoco.
Entendendo essa diferença entre linguagem oral e linguagem escrita, podemos voltar à discussão do que é
certo, errado e diferente em cada um dos casos.
Do ponto de vista da escrita, está errado tudo o que vai contra a ortografia e as normas gerais do nosso
sistema de escrita. A escrita também tem um estilo próprio, exigido de acordo com as circunstâncias pela
tradição cultural. As pessoas têm muita liberdade dentro dessas regras: um tem letra mais bonita, outro não;
um escreve mais elegantemente, outro menos; um escreve de forma mais clara, Outro de forma mais confusa.
São diferenças aceitáveis. Porém, escrever sem seguir a ortografia está errado (a não ser em casos muito
especiais, como em propaganda, por exemplo). Escrever sem levar em conta certas exigências culturais
também constitui erro. Por exemplo, escrever uma carta comercial em gíria é certamente um erro, e não
apenas uma manifestação de estilo individual.
Passemos agora à linguagem falada. Às vezes, uma pessoa vai dizer uma coisa e troca de palavra, ou gagueja,
ou se atrapalha na pronúncia, na sintaxe ou na semântica. Esses erros ocasionais são logo percebidos pelos
falantes e em geral corrigidos em seguida. Não são erros propriamente ditos, mas acidentes lingüísticos.
O diferente na fala aparece na comparação de um dialeto com outro. Essas diferenças não constituem erros
lingüísticos. Assim, se alguém falar “borboleta” e as outras pessoas disserem “barbuleta”, estamos diante de
diferenças dialetais, e não de erros. Se algumas pessoas dizem “nózvãmuçtrabalhar” e outras pessoas dizem
“nóízvaitrabaiá”, estamos diante de dialetos com regras diferentes e não diante de uma fala certa e de outra
errada. Se uma pessoa chama “biscoito” de “bolacha”, ou vice-versa, trata-se de diferenças dialetais e não de
erros. Isso ocorre porque cada um fala seu dialeto. Portanto, a gramática de cada dialeto terá suas regras
próprias. Não se podem misturar as regras de
<252>
um dialeto (gramática ou sistema) com as regras de outro, quando há diferenças entre elas. Assim, ao dialeto
que admite a forma “nózfomuçtrabalhar” não se aplicam as regras do dialeto que admite “nóizfumu trabaiá”.
Isso seria um erro, e o contrário também. Cada dialeto tem seu modo de ser, de acordo com o uso que as
pessoas fazem da linguagem oral. Está tudo certo nos seus devidos lugares, sem misturas de regras.
Os falantes nativos não cometem erros, a não ser por acidente, como foi mencionado anteriormente. Assim,
nenhum falante de qualquer dialeto do português diz que “mesa” é “cachorro” ou “Mesa o está de baixo
cachorro da”. Mas poderia dizer: “O cachorro está debaixo da mesa” ou “Debaixo da mesa está o cachorro” ou
até “O cachorro debaixo da mesa está”. Vemos claramente por esses exemplos o que é um erro lingüístico e o
que constitui uma diferença lingüística.

PATOLOGIAS DA FALA
Há problemas lingüísticos oriundos de patologias? A resposta é sim, mas exige cuidados ao dimensionar tal
realidade. Uma pessoa que sofre uma lesão cerebral pode tornar-se afásica. O traumatismo físico afeta o uso
da linguagem de várias maneiras. Uma pessoa com fissura palatina tem dificuldades no controle aerodinâmico
da fala e, conseqüentemente, na pronúncia das palavras. Alguém com grande retardamento mental fará um
uso especial da linguagem, em grande parte diferente do uso comum das pessoas. Uma pessoa que nasce
surda terá enormes dificuldades para lidar com a linguagem oral. Esses são problemas sérios porque envolvem
questões da integridade física dos indivíduos. Tais pessoas manifestam suas dificuldades constantemente,
enquanto perdurar a patologia. Uma educação especial poderá ajudá-las.
Não é raro, sobretudo na escola, encontrar professores que confundem casos patológicos com outros em que
simplesmente se usa a linguagem de uma maneira diferente. Não existe uma patologia da linguagem sem uma
patologia física. O inverso precisa ser analisado com todo cuidado. Não é porque uma pessoa fala de modo
estranho que ela traz consigo uma patologia física, por exemplo, neurológica.
<253>
Na prática, uma pessoa que faz tudo normalmente, mas apenas “fala errado”, não apresenta um caso
patológico. Por aí, a família e a escola já poderiam fazer um diagnóstico bastante confiável. As patologias físicas
são perenes, e sua manifestação estará presente em todos os casos ligados à deficiência. Se a pessoa é
deficiente auditiva, não irá ter dificuldades apenas com as consoantes sonoras, mas com os sons em geral, e
sempre. Se a pessoa tem problemas de lateralidade, não irá simplesmente escrever em forma espelhada ou
trocando letras, mas irá também esbarrar nas paredes e não conseguirá passar pelas portas. Se uma pessoa
fala com os colegas, brinca discutindo o que acontece e, depois, escreve: “O cavalo é Edu vavevivovu”, não é
um afásico. Uma pessoa que copia da lousa a palavra “pato”, escrita de forma cursiva pelo professor,
escrevendo ISATO não faz isso porque tem problema de discriminação visual, mas simplesmente porque
interpretou errado a escrita.
Perturba muito a alguns professores (e pais) as crianças com dislexia ou dislalia. Esses termos já são
complicados por si. Uma forma de defini-los é dizer que a dislexia refere-se a dificuldades mentais e patológicas
de leitura, e dislalia refere-se a dificuldades de articulação, causadas por lesão dos órgãos da fala. Na prática,
diferenças dialetais, idiossincrasias, equívocos de aprendizagem são facilmente classificados por algumas
pessoas como casos de dislexia ou dislalia. Para erros semelhantes de ortografia, inventaram um termo
chamado “disortografismo”. É uma forma de inserir os erros de ortografia nos casos patológicos. A escola
precisa parar de concluir que as crianças são deficientes por que falam ou escrevem errado.
Apesar de nascerem num ambiente onde se fala um determinado dialeto, algumas crianças acabam falando
de modo estranho. Essas idiossincrasias acontecem porque as pessoas tomam caminhos diferentes ao adquirir
a linguagem oral. Somos falantes de um dialeto, mas somos ouvintes de todos os dialetos. Resumindo, na
aquisição da linguagem, aprendemos antes a ouvir e a entender do que a falar. Entender parece, então, ser o
ponto principal na aquisição da linguagem. Por outro lado, concebemos a variação lingüística como sendo um
fato marcante da linguagem: há pessoas que dizem “tchia” e há outras que dizem “tia”, pessoas que dizem
“baudji” e outras que dizem “bardi”.
Algumas crianças têm a marca da própria individualidade tão forte, que começam a testar usos diferentes
<254>
da linguagem para falar (não para entender...). Acabam produzindo regras muito consistentes e de aplicação
geral, modificando alguns aspectos do dialeto que estão aprendendo. E curioso notar que as modificações são
de cunho morfofonológico, agindo especialmente sobre o aspecto sonoro. Por exemplo, criam uma regra que
ensurdece todas as consoantes oclusivas e fricativas, mas não outros segmentos fonéticos, que continuam
sonoros. Essas crianças aca bam falando coisas como: “patata” (BATATA), “póla” (130- LA), “katu” (GATO),
“faka?’ (VACA), “foçefaipuçkautiçku?” (VOCÊ VAI BUSCAR O DISCO?). Outra criança substitui todas as fricativas
e oclusivas sonoras pelas oclusivas surdas correspondentes: “totêtaitutátumatólataraminh?” VOCÊ VAI BUSCAR
UMA BOLA PARA MIM?).
Essas crianças se fazem entender e, se a família entra neste jogo, continuam falando desse jeito até saírem
de casa e começarem a perceber que as outras pessoas as ridicularizam. Com o tempo, por causa da pressão
social, essas crianças deixam de falar assim. Mas pode acontecer de alguma criança chegar até à escola falando
desse modo. Por outro lado, quando a pressão familiar é muito forte, algumas crianças ficam tão preocupadas
com a fala que acabam cristalizando esse modo de falar, com medo de aprender algo diferente e com outros
erros. É o caso típico de pessoas gagas. A criança começa gaguejando para passar da fala silabada que usa no
início para uma fala num ritmo acentual, típico da fala do adulto. Os erros ocasionais produzem uma certa
gagueira, que desaparece normalmente. Mas, sob pressão psicológica muito forte, a criança pode cristalizar a
gagueira, em vez de eliminá-la.
Em todos esses casos, com muito tato, as famílias deveriam forçar as crianças a imitar os adultos, evitando,
assim, esses modos de falar estranhos. Todavia, não se deve criar um problema maior do que existe. O tempo
ajuda mais do que os conselhos. Por isso, em vez de esconder a criança, o melhor é expô-la à comunidade,
deixá-la interagir com outras crianças, receber críticas e até zombarias, porque, no convívio, esses problemas
se resolvem melhor e muito mais cedo. Se o professor tiver alunos que se encaixam nesse caso, precisará agir
com muito cuidado, sabendo que o melhor remédio é a pressão social. É por isso que as atividades sociais na
escola, como os recreios e as festas, são tão importantes, principalmente para as primeiras séries. Convém
observar também que alguns dos “defeitos” de fala de
<255>
crianças não são encontrados em fala de adultos, como é o caso de quem fala somente com oclusivas: “totê
tétitáti?” (VOCÊ QUER FICAR AQUI?).
Os fonoaudiólogos deveriam se dedicar apenas aos casos em que há patologia física, ajudando as pessoas a
melhorar o desempenho verbal. Os problemas da escola, ela própria deveria resolver. Se fôssemos usar os
mesmos critérios de certas pessoas para classificar algumas crianças como portadoras de patologia, a partir da
observação de como usam a fala e a escrita, deveríamos considerar muitos adultos, que estão aprendendo
línguas estrangeiras, como deficientes, porque falam tudo errado, não conseguem aprender direito, etc.
Estariam no mesmo caso adultos que não conseguem “entender direito” como lidar com computadores e com
máquinas em geral, ou não conseguem se virar direito em certos jogos de vídeo-game. Os erros que cometem
são tão primários quanto os das crianças que estão aprendendo a ler e a escrever. Numa aula de chinês para
adultos falantes de português, iríamos encontrar inúmeros adultos disortográficos e até com dificuldades de
controle mecânico fino, com problemas de lateralidade ao traçar os caracteres, e assim por diante. Então,
somos todos portadores de patologias? Se não nos consideramos deficientes nessas situações, por que achar
que as crianças em situações idênticas são deficientes? Não será um preconceito contra elas?
Isso não significa que as crianças não tenham mais nada a aprender. Pelo contrário, a escola existe
justamente para ensiná-las o que ainda não sabem. O problema está em avaliar o que a criança sabe e que
precisa ser melhorado, o que precisa ser incorporado como conhecimento novo, e o que precisa ser deixado de
lado, por ser um erro. Sua fala não precisa ser melhorada porque o aluno já é falante de um dialeto do
português. Mas ele pode incorporar ao seu uso o de outros dialetos, principalmente se não for falante da
norma culta. E inevitável que uma pessoa cometa erros quando está aprendendo a ler e a escrever, como
também é certo que esses erros precisam ser corrigidos com o tempo. O professor não deve falar apenas dos
erros, mas também do processo de aprendizagem, salientando que os alunos podem se aventurar com os
conhecimentos que têm, sabendo, contudo, que nem tudo sairá correto. Daí a necessidade de educar as
dúvidas a respeito do que se faz, para checar constantemente se o resultado obtido está certo ou não.
<256>

O ERRO E A REFLEXÃO DO ALUNO


Os erros que as crianças cometem são fruto de uma decisão errada que tomaram. Uma decisão é o resulta
do prático de um processo de reflexão sobre um determinado assunto. Assim, ao tomar uma decisão, uma
pessoa tem de optar entre várias possibilidades. Através de um processo de reflexão, ela chega a uma das
alternativas, considerada a mais adequada. A decisão tomada nem sempre corresponde a uma “verdade”
esperada. Quanto menos informações tiver o indivíduo, mais dificuldades terá para acertar.
Em casos de dúvida, as pessoas começam a agir através de tentativa-e-erro, fazendo o processo de reflexão
funcionar mais efetivamente na avaliação dos resultados, julgando a adequação através de comparações e
tomando decisões mais eficientes, que levam a um resultado já sabidamente conhecido como correto.
O método das cartilhas costuma avaliar apenas por comparação. Confere-se com o original, e logo se vê se
houve acerto ou erro. Outro tipo de procedimento procura interpretar o processo de reflexão individual que
levou a pessoa a tomar determinada decisão. No caso da cartilha, se o aluno errou, pede-se a ele que faça uma
nova tentativa. Talvez acerte. No segundo caso, analisando o que o aluno pensou, pode-se fornecer a ele novas
informações para completar as que já tem e, assim, ter melhores chances de tomar as decisões corretas. Deve
ser assim até que o aluno saiba tomar as decisões corretas por si.
PROBLEMAS DE APRENDIZAGEM DE LEITURA E ESCRITA
Vamos fazer algumas observações a respeito de certos problemas de interpretação da escrita e da leitura
que a escola enfrenta no processo de alfabetização. Iremos estudar especialmente os problemas de
aprendizagem de leitura e de escrita, através da produção de escrita espontânea pelas crianças.
Apresentaremos uma série de casos que ilustram diferentes tipos de erro relativos à escrita e à leitura,
juntamente com os comentários necessários para esclarecer as hipóteses que levaram os alunos a cometer
esses erros.
<257>
Quando a própria explicação das hipóteses das crianças não deixar claro o caminho a seguir, serão
apresentadas sugestões para o professor ensinar o aluno a não errar e a melhorar seu desempenho na
alfabetização.

Os testes revelam o que as crianças pensam da escrita?


1. Interpretação semântica da palavra
Alguns psicólogos costumam fazer o seguinte teste:
mostram um litro de um líquido e o despejam numa jarra estreita; depois, pegam um outro litro do mesmo
líquido (ou o conteúdo da jarra estreita) e despejam numa jarra larga. Então, perguntam às pessoas se há a
mesma quantidade de líquido na jarra estreita e na jarra larga. Algumas pessoas, principalmente as crianças,
acham que há mais líquido na jarra estreita do que na jarra larga, partindo da idéia de que quanto mais alto o
volume da água, mais água contém a jarra. Para a criança, a jarra que está mais cheia na vertical é a que
contém mais líquido. Medir volume por outros meios não parece ser fácil.
Usando a idéia do realismo nominal, oriunda de experimentos como o mencionado acima, segundo Emilia
Ferreiro, alguns psicólogos fizeram testes, mostrando as palavras FORMIGA e BOI, na forma escrita, e pedindo
para que a criança indicasse qual delas era a palavra BOI e qual a palavra FORMIGA. Verificaram que as crianças
costumam indicar a palavra FORMIGA como sendo BOI e vice-versa. Concluíram, então, que as crianças têm
uma tendência a julgar pelas aparências e não pelo valor simbólico da representação lingüística.
Provavelmente, as crianças pensariam que o tamanho das palavras devesse ser proporcional ao tamanho dos
objetos que elas representam.
Tenho minhas dúvidas a respeito dessa interpretação. Se, em vez de mostrar as palavras escritas, pedíssemos
para a criança analisar sua fala, pronunciando as palavras BOI e FORMIGA, para então dizer em que caso a
palavra é maior, ou seja, leva mais tempo para falar, certamente a resposta seria diferente. Quem faz uma
pergunta como: “Que palavra é maior: BOI ou FORMIGA?” costuma pensar na forma escrita e se esquecer de
que a palavra tem também um significado. Aliás, as pessoas, inclusive as crianças, guiam-se muito mais pela
semântica do que pela fonética, quando falam. Portanto,
<258>
do ponto de vista semântico, a palavra BOI pode perfeitamente ser interpretada como sendo “maior” do que a
palavra FORMIGA, porque, no primeiro caso, o animal representado é maior.
Os dois tipos de experimento são armadilhas para as crianças e, na verdade, nada provam. Poderíamos fazer
outras perguntas e descobrir que as crianças, de fato, sabem distinguir quantidades ou sabem responder
corretamente. Por exemplo, com relação à linguagem, se o experimento fosse conduzido da seguinte maneira:
pegam-se os dois cartões com as palavras BOI e BORBOLETA, diz-se o que está escrito, mostram-se as letras, e
pergunta-se qual é a palavra que está escrita com mais letras. As crianças, neste caso, respondem
corretamente.
Se for perguntado apenas: “Qual é a palavra maior”,
a criança julga pelo valor semântico que as palavras
têm e, nesse caso, tem toda a razão de dizer que a palavra BOI é maior do que a palavra FORMIGA. O
pesquisador está preocupado com a escrita, e a criança, com a semântica.
Portanto, é falso dizer que as crianças não-alfabetizadas fazem hipóteses erradas a respeito do tamanho das
palavras. É o psicólogo quem faz uma interpretação equivocada do fenômeno, confundindo fala com escrita.

2. A figura como interpretador de texto escrito


Outro experimento, oriundo do trabalho de psicólogos, consiste em pedir para uma criança não-alfabetizada
ler um livrinho de história e mostrar com o dedo o que está lendo. A criança corre com o dedo o texto escrito,
olha as figuras da página e vai contando a história a seu modo. Depois, apresenta-se à mesma criança um texto
sem figura e pede-se para ela ler. Ela diz que é impossível ler, porque não tem desenho. Daí, o psicólogo
seguidor das idéias de Emília Ferreiro conclui que a criança pensa que não se pode ler um texto sem figura, que
a figura é o interpretador de qualquer texto escrito.
Como se trata de uma criança que não sabe ler, o que ela pode fazer numa situação como essa? Ela sabe que
os textos escritos, quando acompanhados de fotos ou desenhos, referem-se a essas figuras. Como ela não sabe
ler o texto, a única alternativa é tentar dizer algo a respeito do texto, interpretando as figuras e os desenhos. É
uma saída inteligente, usada comumente pelos especialistas em decifração.
<259>
Curiosamente, a prova de que a criança sabe muito bem que escrita é diferente de figura, está justamente no
fato de que ela confessa não ser capaz de ler um texto sem desenho. Isto é, sabe que ELA não pode ler porque
é analfabeta. Mas isso não impede que OUTRA PESSOA o faça. Se o pesquisador tornasse o texto sem desenho
e lesse, e perguntasse à criança se é possível ALGUÉM ler um texto sem desenho, a criança certamente iria
concluir que é perfeitamente possível. Aliás, escreve-se justamente para que alguém possa ler, e desenho não
é letra, caso contrário, porque se imprimiriam tantos livros sem figuras?
Na história da escrita há inúmeros casos de decifração de escrita antiga que foram interpretados a partir de
desenhos que acompanhavam o texto. Nem por isso, os pesquisadores acreditavam que fosse preciso uma
figura para ler o texto, embora reconhecessem que isso poderia ajudar. A decifração das inscrições do rochedo
de Behistun é um exemplo. A escrita maia é outro exemplo. Champollion sabia que no obelisco de Cleópatra
devia estar escrita a palavra Cleópatra.

3. Adivinhando palavras na leitura


Num outro tipo de experimento para testar o que as crianças pensam da escrita e da leitura, mostra-se uma
foto, por exemplo, de um trator com dois homens conversando, e uma legenda: “João emprestou o trator a
José”. O teste consiste em fazer com que uma criança, que não sabe ler, indique onde está escrita a palavra
TRATOR, sem dar nenhuma pista para a criança: ela deve descobrir por si e explicar a razão de sua escolha
(sic!). A criança tem, em geral, duas atitudes em casos dessa natureza: diz que TRATOR é a primeira palavra
escrita ou aponta para a que tiver mais letras (nesse caso, a palavra EMPRESTOU).
Obviamente, essa é uma brincadeira de adivinhar de muito mau gosto: gostaria de fazer o mesmo com
aquele pesquisador, usando, porém, um texto em chinês ou mesmo em árabe, para ver sua reação. A criança é
constrangida pela obrigação de responder e, para se ver livre do pesquisador, responde qualquer coisa. A prova
disso é que se o pesquisador disser que ela está errada, ela continua mostrando outras palavras, até satisfazer
a curiosidade do pesquisador. Ela tem consciência de que não sabe ler, então, porque obrigá-la a fazer algo
impossível?
DOBLHOFFER, 1957 e MELLA 1981.
<260>
As crianças não-alfabetizadas não ficam procurando associar fatos da escrita, como tamanho e forma de
palavras, baseando-se em analogias com o mundo real. Se ela não faz isso quando fala, por que deveria fazer
com a escrita? Seu comportamento é induzido pelo pesquisador para produzir determinado tipo de resposta e,
portanto, não serve de evidência para mostrar o que de fato uma criança que não sabe ler pensa a respeito da
escrita e da leitura.
Por outro lado, esses equívocos experimentais propiciam atividades pedagógicas nocivas ao processo de
aprendizagem, induzindo a criança a pensar coisas estranhas a respeito do mundo da escrita e da leitura.
Depois disso, algumas delas começam a dar retorno, fazendo tudo segundo as expectativas do pesquisador ou
do professor, confundindo seu próprio raciocínio.

4. Quantas letras formam uma palavra?


Algumas pessoas elaboraram testes perguntando quantas letras seriam necessárias para se ler algo e
descobriram que as crianças diziam que uma escrita deve ter no mínimo três letras, que não podiam ser iguais.
Essa afirmação contradiz o fato de haver muitas crianças que simulam espontaneamente a escrita de um
texto e apresentam, às vezes, uma enorme repetição da mesma letra. Por Outro lado, sem dúvida alguma,
parece muito razoável que as crianças pensem que ler apenas uma letra não faz sentido, e ler letras iguais não
tem graça, mesmo porque na fala ninguém fica repetindo o mesmo som três vezes seguidas.

5. Identificação de palavras
Algumas pessoas têm mostrado que as crianças se apegam mais a nomes (substantivos e adjetivos) do que a
verbos — e menos ainda a outras categorias da morfologia —, quando tentam identificar palavras ouvidas,
apontando onde elas ocorrem na escrita. Se a frase é: O TRATOR QUEBROU, as crianças julgam mais
importante achar primeiro a palavra TRATOR e não QUEBROU, por exemplo. Se a frase é MARIA COMPROU UM
BOLO PARA A FESTA DE ANIVERSÁRIO, as crianças vão procurar as palavras FESTA, BOLO, MARIA, e não
COMPROU.
Essa escolha não depende de um comportamento
psicológico, mas lingüístico. O que a criança faz nada mais é do que privilegiar o foco do enunciado, a idéia
principal,
<261>
aquilo do que se fala, que mais interessa ao interlocutor. Nesses casos, a escolha é um substantivo e não um
verbo. Atrás da resposta da criança há um uso pragmático da linguagem, não uma análise gramatical.

6. Inventando palavras onde elas não existem


Diferente do teste anterior é aquele em que as crianças inventam palavras para modificar o texto original
apresentado, nas primeiras tentativas de leitura. Diante de um enunciado como MARIA COMPROU UM BOLO
DE CHOCOLATE, a criança conta uma história: “No aniversário da Maria tinha um bolo muito gostoso”.
Isso não significa que a criança ainda não seja capaz de juntar as palavras para ler corretamente a frase. Pelo
contrário, tal leitura revela um leitor que já sabe ler e interpretar o que lê, apropriando-se do texto e
modificando-o de acordo com o próprio desejo. Se o aluno tivesse lido algo corno: ONTEM CHOVEU E
INUNDOU A CIDADE, isso mostraria que ele não sabe ler e está inventando.
O esforço de descoberta possibilitou a produção do texto enunciado pela criança. As modificações
representam sua interpretação do texto original. A criança colocou-o num contexto seu e disse o essencial
dentro desse novo quadro. Esse tipo de leitura é o que nós adultos fazemos. Quando lemos um romance,
por exemplo, ou uma poesia, ficamos vagando no nosso mundo de fantasia, inventando mil coisas paralelas ao
texto escrito. Como fomos educados pela escola, sabemos que não podemos expressar nossos sentimentos
nessas ocasiões, porque nossa cultura exige que respeitemos o princípio da literalidade na leitura. Assim, ao
lermos em voz alta, devemos pronunciar apenas as palavras escritas no texto, deixando dentro de nós toda e
qualquer interpretação que não seja a reprodução do que a escrita representa literalmente.

Outras formas de descobrir o que as crianças acham da escrita

7. “Cachorro começa com FU”


Com muita razão, as crianças pensam que as palavras têm sons e significados e que são usadas para se
referirem ao mundo interpretando a realidade... Se não soubessem disso, não aprenderiam a falar. Segundo os
lingüistas,
<262>
as pessoas, quando falam ou ouvem, guiam-se pelas idéias que a linguagem transmite e só secundariamente
analisam os sons e as estruturas gramaticais. Na escola, porém, a atividade de estudo da linguagem consiste
basicamente em analisar os sons e as estruturas gramaticais, deixando de lado por vezes o conteúdo semântico
das palavras.
Uma professora me contou, certa vez, que na época em que estava sendo alfabetizada sua professora
perguntou: “Cachorro começa com quê?” Ela prontamente respondeu: “Com FU”. Todos riram e a professora a
mandou sentar, sem nenhuma explicação.
Como diz o ditado popular: “Quem pergunta o que quer, ouve o que não quer”. A forma de perguntar é
muito importante. Muitos alunos, de todos os níveis escolares, são reprovados não porque não saibam, mas
porque não conseguem perceber que a pergunta do professor é capciosa e precisa ser respondida segundo as
expectativas do professor, e não literalmente. Quando a aluna disse que CACHORRO começava com FU, estava
pensando no animal cachorro, em suas partes e, para ela, era natural que um cachorro começasse pelo
FOCINHO. Porém, a professora não disse, mas queria que os alunos entendessem a sua pergunta da seguinte
forma: ‘A palavra cachorro começa com que letra?”
Se uma professora perguntar: “Quem sabe uma palavrinha que começa com o som de GATO?”, muito
provavelmente vai ouvir de algum aluno, como resposta, a palavra MIAU. O professor diz que está errado (sic!)
e corrige falando, por exemplo, GARFO (sic!). A professora está pensando na forma escrita das palavras, e o
aluno, nas idéias que o enunciado transmite, mesmo porque ainda não sabe ou não pensa com rapidez a forma
escrita das palavras.
Atividades conduzidas dessa maneira podem levar alguns alunos a não entenderem o que se faz na escola,
criando embaraços sérios para continuar acompanhando o que o professor ensina e o que deve aprender. É um
absurdo pensar que o aluno que respondeu FU ou MIAU, nos casos discutidos anteriormente, não consegue
perceber sons semelhantes em início de palavras.
Os professores alfabetizadores se deparam com uma quantidade enorme de fatos curiosos a respeito do
comportamento das crianças, ao aprender a ler e a escrever. Esse anedotário constitui um excelente material
para uma pesquisa interpretativa das hipóteses que as crianças levantam ao adquirir a linguagem escrita. Em
vez
<263>
de aplicar testes idiotas, com perguntas capciosas, por que não interpretar diretamente o que acontece nas
salas de aula durante o processo de alfabetização?

8. Aprendendo sozinho por níveis ou por incorporação de ensinamentos?


Alguns pesquisadores acreditam que, deixando a criança exposta a atividades de escrita, elas vão por si
mesmas fazendo uma mudança conceitual cada vez mais avançada, passando por níveis cada vez mais
sofisticados de interpretação da escrita. Para jsso, por exemplo, o professor fica durante um certo tempo
pedindo para os alunos escreverem nomes próprios ou dando ditados de palavras isoladas (ou até pequenas
histórias). Os alunos escrevem como quiserem, orienta o professor.
Na prática, tem-se constatado que, nesse tipo de atividade, aparece de tudo um pouco, não só com relação à
classe como um todo, mas também para um mesmo indivíduo. Não existe um caminho certo e único para
aprender. Mas é verdade que, ao longo do tempo, pode-se perceber muito bem como os alunos (apesar de
estarem aparentemente livres e sozinhos) vão incorporando pequenas informações a respeito da escrita e da
leitura. Isso acaba produzindo alguns fatos semelhantes entre os alunos, razão pela qual alguns
pesquisadores começaram a atribuir a essas modificações uma classificação por níveis. Por exemplo, Emília
Ferreiro e Ana Teberosky propõem níveis como: pré-silábico, silábico e alfabético. Não se pretende discutir
aqui a classificação científica, mas os fatos.
Quando um professor pede aos alunos, que não sabem ler, que escrevam qualquer coisa, como os nomes
dos colegas, alguns põem-se a copiar o que vêem escrito. Copiam fazendo rabiscos, imitando a escrita cursiva,
tentando desenhar letras, etc. Os alunos têm grande convicção de que se aprende copiando. Mesmo agindo
assim, os alunos estão pensando e, quando não têm um modelo para copiar, apóiam-se em conhecimentos
que podem extrair da realidade mais próxima ou simplesmente usam os conhecimentos prévios que já
adquiriram. Além de copiar, as crianças esperam que alguém — o professor — explique o que precisam saber
para que a cópia não se torne uma atividade puramente mecânica.
Nenhuma criança (ou pessoa) aprende como funciona o sistema de escrita simplesmente copiando ou
imitando. É preciso muito mais. A razão disso é que, ainda hoje,
<264>
há vários sistemas de escrita que ainda não foram decifrados. Aliás, uma das tentativas mais antigas de
decifração de escrita continua frustrada até hoje: a escrita maia. Outras escritas que despertaram o interesse
muito tempo depois, como a escrita egípcia e a cuneiforme, foram decifradas com certa facilidade. O que leva
um sábio a decifrar uma escrita é a descoberta de como ela representa a fala de uma determinada língua.
Sabendo a língua, fica mais fácil; do contrário, torna-se praticamente impossível. A decifração exige
comparações e a formulação de regras com coerência e generalização. E esta é, sem dúvida, uma boa maneira
de alfabetizar alguém. Quando o sistema de escrita é conhecido, isso pode ser feito em pouco tempo e com
bons resultados. É o que o professor deveria fazer em sala de aula. Como o aluno conhece a língua, poderá
facilmente entender as regras de decifração. A partir de umas poucas idéias de como funcionam as relações
entre letras e sons, poderá generalizar o processo de entendimento e aprender por si. Porém, se não tiver
algumas explicações iniciais, ficará perdido durante um tempo longo demais para as exigências da escola e da
vida. Mina!, a escola existe para ensinar e não como um lugar onde as crianças descobrem tudo sozinhas.

Nota
Recentemente, têm aparecido tentativas de decifração da escrita maia, cuja aceitação ainda não foi
confirmada.
Portanto, deixar as crianças fazerem isso por si é perder tempo e paciência. Por isso, induzir os alunos a
percorrer um caminho que passa pelos níveis de construção da escrita, propostos pela psicogênese da língua
escrita de Emilia Ferreiro, não faz sentido. Por que uma criança passa do nível pré-silábico para o silábico?
Essa é uma pergunta fundamental. Ela não faz isso porque a natureza humana a leva de um nível a outro
automaticamente, pelo simples fato de ter diante de si lápis e papel. A criança começa a escrever rabiscando
porque nem sequer lhe dão algo que possa copiar, então só lhe resta pressupor que a escrita é uma
representação gráfica da fala, que pode ser feita de inúmeras maneiras. Assim, apega-se à única idéia que tem:
a escrita é uma forma gráfica de representação da fala. Logo, faz seus rabiscos, representando a fala. Como é
que as formas gráficas representam a fala é algo que sobretudo ela gostaria de saber, mas não sabe. A segunda
idéia é a do caos do mundo da escrita: escreve-se de muitas formas, portanto, nada mais natural do que
acrescentar mais uma...
A criança sente-se tão frustrada quanto o adulto e sabe que escrever em todos os sentidos não pode ser o
que ela fez. A criança tem consciência de que não sabe
<265>
escrever, porque tem consciência de que não sabe ler... Então, como ninguém a ensina a ler e a escrever,
acaba procurando as letras, porque sabe da sua existência; ela já as viu de muitas formas. Com isso, passa a
escrever grafando as letras que consegue descobrir em algum lugar: alguns tentam imitar a escrita cursiva e
logo percebem que é uma forma muito complicada de produção gráfica. Então, começam a usar letras de
fôrma maiúsculas (às vezes misturadas com minúsculas) para escrever: agora, pelo menos, a produção gráfica
da escrita é mais fácil. O resultado é bem mais semelhante ao modelo.
Depois dessas tentativas de escrita aleatórias, a criança ouve alguém dizendo que as letras representam os
sons das palavras. Isso parece algo muito interessante, pensa o aluno. Resta, agora, descobrir como as letras
representam os sons. Então, surgem as famosas perguntas: “Que letra é esta? É a letra U de URUBU”, “Que
letra é esta? É a letra B de BOLO”, e assim por diante. Descoberta a técnica, o aluno põe-se a investigar os
casos que se lhe apresentam, ao tentar escrever uma palavra. Por exemplo, quer escrever BOLO. Como fazer?
Falar é fácil. E preciso descobrir as letras, agora. A palavra BOLO pode ser analisada em partes, observando-se a
qualidade das vogais ou a articulação das consoantes. Então, o aluno começa a analisar sua fala, dizendo:
B0000-LUUUU. E chega à conclusão de que BOLO se escreve O U. Por outro lado, analisa os movimentos
articulatórios das consoantes: bobobobo lulululu, e escreve: B L. Esse aluno não chegou a esses resultados por
si, mas porque alguém lhe deu uma informação preciosa: as letras representam sons da fala, como U de
URUBU, B de BOLO. Ora, se o aluno aprende pelas informações que vai incorporando, e não por simples e
espontânea reflexão, por que, em vez de dar uma informação tão reduzida, o professor já não vai ensinando de
maneira mais inteligente?
É incrível como algumas crianças com tão poucas informações acabam escrevendo coisas como: C V L ou AA
O para CAVALO, B B LT ou O O EA para BORBOLETA. Essas escritas não são fruto de uma interpretação por
parte da criança, segundo a qual a escrita representa sílabas por letras. A explicação é a que foi dada acima. O
curioso é que esses alunos já sabem a forma gráfica das letras, o valor fonético que representam e até a forma
ortográfica das palavras. Eles escrevem letras corretas, de acordo com a ortografia. Falam “u” e escrevem O...
<266>
Em geral, escrevem apenas as vogais ou apenas as consoantes, mas pode-se encontrar uma mistura, numa
tentativa de escrever o que foi identificado, de um modo ou de outro. Por exemplo, é o caso do aluno que
escreve: C M U para CAMELO. Ele conhece o C (“kê”), o M (“mê”), mas não conhece o L (o “lê” de LU). Porém,
conhece o U do LU, e escreve C M U.
É evidente que o procedimento de descoberta usado pelo aluno envolve uma relação entre letra e sílaba na
fala. A hipótese dele, porém, não é de que uma letra represente uma sílaba, mas de que basta representar a
sílaba por uma vogal ou por uma consoante, ou seja, pela qualidade vocálica ou pela articulação consonantal e,
dessa forma, a escrita tem uma chave de leitura bastante razoável. Essa hipótese, na verdade, é uma das
razões pelas quais a escrita semítica (egípcia, fenícia, árabe clássico, hebraico clássico) representa apenas as
consoantes e não as vogais. As crianças fazem da mesma maneira e pelas mesmas razões. Gelb tentou
interpretar a escrita egípcia como sendo silábica, mas seus argumentos não convenceram os especialistas em
sistemas de escrita. Uma escrita silábica típica é a japonesa (katakaná, por exemplo), em que, para cada grupo
silábico composto de uma consoante mais uma vogal, corresponde uma letra na escrita. Por exemplo, existe
uma letra diferente para cada sílaba do tipo bá-bé-bi-bó-bu, o que as crianças fazem quando escrevem
CAVALO, usando apenas as letras C V L ou A A O. Esse raciocínio não tem nada de semelhante com o
funcionamento de uma escrita como a japonesa.

9. Explicitação da decifração na leitura


As crianças constroem hipóteses baseadas em dois pontos de vista distintos: um é o do método a que são
submetidas, outro é o da decisão pessoal, baseada nos conhecimentos que possuem e na argumentação para
chegar ao resultado ou conclusão pessoal.
O primeiro tipo de hipótese predomina quando o aluno é alfabetizado pelo método das cartilhas. Embora ele
venha observando os fatos de leitura e de escrita há muito tempo e tenha opiniões pessoais a respeito, na
escola, prefere usar, como referência principal para sua argumentação, os conhecimentos relacionados ao
processo de ensino que recebe. E o caso típico do aluno que aprende seguindo o bá-bé-bi-bó-bu e, quando
vai ler, explicita em voz alta essa técnica, lendo, por
<267>
exemplo: ‘A lê-a-lá, tê-a-tá, la-ta: a lata”. Concluindo, lê analisando as letras em famílias de sílabas, depois
compondo as partes da sílaba que descobriu e, finalmente, juntando as sílabas e formando a palavra.
Esse tipo de aluno encontrará enorme dificuldade em ler corretamente grupos de consoantes ou quando
encontrar as chamadas “consoantes surdas”. Assim, ao tentar ler uma palavra como BRASIL, o aluno percorre o
seguinte caminho: bê de barriga, do bá-bé-bi bó-bu, rê de rato e do rá-ré--ri-ró-ru, A, o esse do sá-sé si-só-su, o
1 e o lê do lá-lé-ii-ló-lu. Agora, juntando: bê rê-a-çê.-i-lê = “berreaçeilê” (sic!?). Quando o professor diz que está
errado, o aluno logo percebe que não juntou direito as letras e lê: “bê-rra-çi-lê” (sic!?). O professor insiste em
que está errado, e o aluno faz nova tentativa: “berraçil” (sic!?). O professor perde a paciência, diz que está
escrito “Brasil”. O aluno faz uma cara de derrotado e diz baixinho “Brasil”.
Quem quiser entender por que um aluno lê desse jeito, precisa descobrir que idéias ele usa para ler. Nesse
caso, é evidente que o aluno segue o método do bá bé-bi-bó-bu, que o ajuda a ler corretamente sílabas do tipo
consoante mais vogal, mas se atrapalha muito para descobrir como se lêem sílabas de outra natureza.
Ao ler uma palavra como APTO, alguns alunos só conseguem dizer “apítu” e não “á-pi-tu” ou “ap-tu”. Isso
acontece porque, no método do bá-bé-bi-bó-bu, as famílias de letras (sílabas) são sempre constituídas de uma
consoante seguida de uma vogal. Para resolver parte das dificuldades apresentadas pelo método, as cartilhas
passaram a apresentar também famílias com grupos consonantais, como: brá-bré-bri-bró--bru. Essa lição
pode ajudar o aluno a ler mais facilmente uma palavra como BRASIL. Mas as cartilhas não apresentam
“famílias” de letras com sílabas contendo consoantes mudas: ap-ep ip-op-up. Para um aluno ler segundo o
modelo, de acordo com o método do bá-bé-bi-bó-bu, as cartilhas precisariam apresentar todas as combinações
possíveis de letras que representam uma sílaba. Isso, por outro lado, tornaria a cartilha um livro extremamente
longo e complicado para as finalidades a que se propõe.
Quando se lê, é preciso usar os conhecimentos de decifração. O que o aluno não está sabendo é que não se
podem enunciar em voz alta os procedimentos usados para se chegar à leitura, os quais devem ser processados
na cabeça, em silêncio. Depois de descoberto o que está escrito, procede-se à leitura, em voz alta,
<268>
respeitando o princípio da literalidade. Criança que lê a palavra HORA dizendo “agora”, está claramente
revelando a interpretação da decifração do primeiro som pelo nome da letra: “agá + ora agora”. Às vezes, as
crianças dizem “kê” lendo palavras que começam com C + E ou I, e o professor não percebe o porquê do erro
do aluno, corrigindo-o sem explicar.
Esse procedimento muitas vezes cria impasses insuperáveis para alguns alunos, que acabam desistindo de
ler. Tentam ler uma palavra como CASA ou BOLA e não conseguem chegar a uma conclusão sobre o que está
escrito, porque interpretam errado as primeiras letras e chegam a uma palavra que não existe, o que os faz
desanimar. A criança pensa: “çê-á esse-a çeaéça”. Ou então: “bê-ô-lê-á beôlêa”. Se o professor corrige
dizendo “beôleá”, é pior ainda.
Diante de casos como esses, o professor precisa analisar a conduta do aluno e descobrir quais são as hipó
teses que ele está levantando para decifrar a leitura, a fim de indicar ao aluno o que ele deve fazer para mudar.
Não basta dizer o certo e mandar a criança repetir: isso não a ajuda em nada. Ela quer e precisa de uma
explicação técnica adequada. É impressionante como os professores de alfabetização, em geral, não sabem
sequer perceber a real situação de alguns alunos que apresentam essas dificuldades de leitura. Em vez de
ajudar o aluno, alguns professores já mandam estas pobres crianças para classes especiais, quando não para
psicólogos, dizendo (injustamente) que estão cansados de ensinar e nem assim esses alunos aprendem (sic!).
Mesmo um aluno que lê corretamente e com certa fluência, na alfabetização, pode estar pensando do
mesmo modo que o aluno do caso acima. O aluno que lê bem também passa por um longo e tortuoso processo
de decifração da escrita, mas faz isso com certa rapidez. Por outro lado, o aluno que se apegar demais ao
processo de decifração nunca conseguirá a fluência necessária na leitura. Acabará sendo um leitor lento, quer
com relação à quantidade de material que lê, quer com relação à assimilação dos conteúdos. Isso é fruto do
método com que lhe ensinaram a ler.

10. Leitura silenciosa acompanhada de articulações


Alunos que ficam mimicando as articulações dos sons enquanto lêem em silêncio; que têm de ler em voz alta
<269>
para entender; ou que só entendem o que lêem em silêncio; alunos que demoram demais para ler apresentam
problemas de leitura, com os quais o professor deve se preocupar.
A leitura fluente pode também ser ensinada e treinada e não ficar somente a cargo dos alunos. O professor
pode mostrar como se lê, ler em grupos, reduzir o número de participantes desses grupos até chegar a um
aluno. Depois de muitas repetições, os alunos se sentem mais familiarizados com o texto e acabam lendo
melhor. A leitura de improviso, por outro lado, é sempre problemática e deve ser evitada.

11. Velocidade de leitura


A velocidade ideal de leitura é a aquela com que as pessoas falam normalmente. Como alguns falam mais
depressa do que outros, existe uma certa variação. Quanto mais se acelera a leitura, mais difícil a reflexão
sobre o que se está lendo, tendendo-se para uma leitura mais literal. Não faz sentido ler um romance ou um
livro de poesia a todo vapor (as chamadas leituras dinâmicas), porque o objetivo de uma obra literária não é
apenas saber o que o autor diz literalmente, mas saborear a arte dessas obras.

PROBLEMAS DE ESCRITA ORIUNDOS DE DIFICULDADES COM AS LETRAS


Quando repete um modelo, a criança está testando sua capacidade de responder ao que lhe foi perguntado
simplesmente imitando. Quando procura fazer uma atividade de leitura ou de escrita por iniciativa própria, a
criança usa de sua reflexão, baseada em seus conhecimentos, para tomar as decisões que julgar melhor.
No primeiro caso, típico do método das cartilhas, é difícil saber exatamente as razões daquilo que as crianças
fazem ou deixam de fazer, pois as exigências do modelo são mais fortes do que a reflexão pessoal da criança.
Por isso, é costumeiro que os alunos variem muito: um dia escrevem certo uma palavra, já no outro dia,
errado, depois voltam a escrever certo e mais uma vez, errado. Conseqüentemente, torna-se difícil para o
método das cartilhas trabalhar com alunos que não se
<270>
mantêm integralmente dentro do modelo, cometendo erros, porque o método não considera as razões do
erro da criança para poder corrigi-los.
No segundo caso, através da produção de escrita espontânea, é possível saber com bastante segurança as
razões (hipóteses) que levaram o aluno a tomar as decisões acerca da sua escrita e leitura. Conhecendo essas
razões, o professor pode mostrar e discutir isso com ele, indicando a saída, ou o passo seguinte, para não errar
e levar adiante, de maneira cada vez mais sólida, o processo de aprendizagem.
Apresentam-se, a seguir, alguns casos de erros de escrita, com os comentários a respeito das hipóteses que
levaram os alunos a esses resultados.

1. Escrever é fazer uma forma gráfica para ser lida


Algumas crianças tentam escrever pela primeira vez quando ainda estão brincando em casa. Outras vão ter
essa chance somente quando entrarem na escola. Crianças muito novas fazem rabiscos e dizem que
escreveram uma história. Depois, transformam os rabiscos caóticos em rabiscos senados (mostrando a
linearidade da linguagem oral e escrita). Finalmente, misturam rabiscos com algumas letras ou tentativas mais
próximas a traçados de letras.
Essas crianças produzem esses textos e durante um certo tempo são capazes de ler. Ao fazerem isso, estão
reconhecendo que a finalidade da escrita é permitir a leitura, ou seja, o texto gráfico representa a linguagem
oral que pode ser recuperada através da leitura. Enquanto estão conscientes do que fizeram, são capazes de
ler, mas em pouco tempo já não se lembram mais do que fizeram, e aquela forma de escrita já não permite
mais a leitura. Isso pode trazer uma certa frustração, que deve ser compensada com o ensino de que
escrevemos de outra forma, permitindo uma leitura permanente para quem souber como o sistema funciona.

2. Assinatura e escrita
Um caso um pouco diferente do anterior é o daquela criança que faz um rabisco parar escrever o próprio
nome. Na vida, é muito comum as pessoas assinarem o próprio nome fazendo rabiscos. Essa também é uma
forma de escrita e funciona bem para o caso das assinaturas
<271>
porque, além de ser uma marca individual, pode dificultar a decifração das letras do nome do assinante. Em
vez de se assustar quando algum aluno faz coisas semelhantes, o professor deveria brincar de fazer assinaturas.
Esse tipo de atividade pode ser dada logo no início do ano. Os alunos podem entender que, para assinar
documentos e cheques, as pessoas nem precisam saber ler e escrever. Isso quer dizer, ainda, que o sistema de
escrita que a escola ensina tem outra função.

3. Letras em vez de rabiscos


A partir de uma discussão a respeito do modo como o aluno escreveu seu nome, fazendo rabiscos, um
professor pode convencê-lo a escrever com letras. A explicação insiste no fato de o nosso sistema de escrita ser
constituído de letras, ou seja, escrevemos com letras e não fazendo rabiscos. Diante de tal explicação, um
aluno pode escrever NEAPTASMLA em vez de ANTÔNIO. Dessa maneira, o aluno está seguindo a explicação do
professor, escrevendo com letras, uma vez que ainda não se deu conta de que estas são empregadas seguindo
regras específicas e não aleatoriamente.
Diante disso, o professor constata o que o aluno fez, diz que o uso aleatório das letras não permite a leitura
por outras pessoas (atentar para a convencionalidade da escrita e seu uso social). Alguns alunos não
conseguem se livrar facilmente da idéia de que “escrever com letras significa escrever com qualquer letra..:’
Para resolver isso, um bom exercício é trabalhar com pares mínimos (exemplos:
MATA/PATA/NATA/BATA/CATA/ LATA, etc.).

4. A forma gráfica das letras


Um problema comum encontrado especialmente entre alunos alfabetizados pelo método das cartilhas
relaciona-se à interpretação da forma gráfica das letras cursivas. Como o método concentra-se na escrita,
deixando a decifração da leitura de lado, alguns alunos têm dificuldades em reconhecer na escrita cursiva as
letras que, de fato, ocorrem na grafia das palavras. Por exemplo, o aluno pode até saber que a cartilha
apresenta a palavra OBA e oba, com as letras B e b (que estranhamente, para ele, aparecem traçadas de
formas diferentes). Agora, quando o professor escreve com letras cursivas, a coisa piora, porque o aluno vê
escrito ( e pensa que, nessa forma de escrita, as letras são:
<272>
O + i + v + a, o que vai levá-lo a separar as sílabas da palavra da seguinte maneira: Oi-va. Algumas letras se
prestam mais do que outras a esse tipo de confusão, como se mostra a seguir:
Modelo apresentado pelo professor:
Pato Arca Objeto
Interpretação do aluno:
JSATO CERCA OGETO
Letras problemáticas:
P a j
Como o aluno interpretou:

p=i+s
A=C+e
bj = G

Esse tipo de engano é muito comum. Algumas das coisas aparentemente sem sentido que alguns alunos
escrevem devem-se a esse tipo de dificuldade. Uma palavra como Antonio escrito em letra cursiva só com o “a”
maiúsculo, pode ser interpretada pelo aluno da seguinte forma: CENTIERRIUE. Uma das razões pelas quais se
deve começar pela leitura e usar apenas as letras de fôrma maiúsculas é evitar que o aluno cometa enganos
dessa natureza. Um bom exercício, nesses casos, é fazer transliteração, ou seja, pedir ao aluno que escreva um
mesmo texto ou palavra em diferentes tipos de letra, como letras cursivas e de fôrma, para se familiarizarem
com a categorização gráfica das letras.
5. Escrita espelhada
Alunos que se põem a escrever antes de aprender as noções básicas de leitura começam copiando. Como não
entendem bem como a categorização gráfica e funcional operam no sistema de escrita, podem cometer vários
enganos. Um deles é o da escrita espelhada, a que já tivemos oportunidade de nos referir em outros capítulos
deste livro. O professor ensina que se deve escrever da esquerda para a direita, assim o aluno começa a copiar
a palavra SAPO, escrevendo primeiro a letra S e não a letra 0. Com isso, o professor pensa que deu uma boa
regrinha para seus alunos. Porém nem todos os alunos estão atentos à seqüência das letras,
<273>
mas ao modo com que se deve escrevê-las. Então, quando um aluno vai escrever a letra S, lembra-se da
regrinha e escreve o S da esquerda para a direita; o resto acompanha, resultando na palavra espelhada.
Algumas letras arredondadas prestam-se mais a esse tipo de erro, como C e S e outras letras como Z e N. O
professor precisa dar uma explicação mais detalhada sobre a direção da escrita e sua distribuição espacial.

6. Segmentação
Outra regrinha muito comum que os professores dão para seus alunos é a de que observem a própria fala
para escrever. Uma das primeiras dificuldades que o aluno encontra, levando em conta essa regrinha, é como
segmentar o fluxo da fala em palavras, como a escrita exige.
No início, parece haver uma tendência para as crianças segmentarem a fala principalmente a partir de uma
análise dos elementos prosódicos, como entoação e ritmo, e menos a partir de uma análise semântica dos
itens lexicais. Por essa razão, surgem escritas como:
ERAUMAVEZ UMABELAPISESA CEMORAVA NUCAS TELO. Aos poucos, os alunos vão descobrindo os itens
lexicais, a partir da análise semântica. Mas ainda restam muitos casos que só se aprendem através da
ortografia, sobretudo quando ocorrem palavras gramaticais, como preposições, conjunções e expressões
adverbiais.
Na prática, os alunos têm dificuldades reais em situações em que são solicitados a separar ACASA em A
CASA. Quando encontram a palavra ABACAXI, separam A BACAXI, pensando que é algo semelhante a A CASA. A
leitura individual e freqüente é uma boa solução para ajudar os alunos a segmentarem as palavras na escrita.
Às vezes, os alunos se apegam a algum elemento semântico, segmentando erroneamente palavras, como no
caso de VISITA, que o aluno escreveu VI SITA (verbo ver), ou NEI COM PARASÃO em vez de NEM
COMPARAÇÃO. Veja, ainda, o exemplo: SER MANO em vez de SER HUMANO: como o R e o U formam uma
sílaba só na fala, “çe-ru-mã-nu”, o aluno supôs que não podia dividir a sílaba ao meio, colocando uma parte em
cada palavra.

7. A letra representa o som de seu próprio nome


Outra regrinha que os alunos costumam ouvir é que, no próprio nome das letras, encontra-se o som básico
que a letra representa (princípio acrofônico). Invertendo
<274>
os alunos formulam a regrinha: para escrever um som, basta achar a letra em cujo nome ocorre aquele som
que se quer escrever. Ao aplicar isso, acabam escrevendo o seguinte: HRA em vez de AGORA, CAMLO em vez
de CAMELO, APARECU em vez de APARECEU, LFATE em vez de ELEFANTE, LC em vez de HELICE, TAPTE em vez
de TAPETE, etc. O professor deverá chamar a atenção para o fato de as sílabas serem constituídas de
consoantes e vogais, O princípio acrofônico refere-se apenas ao primeiro elemento da sílaba e não à sílaba
toda.

8. Escrevendo só vogais ou consoantes


Um caso um pouco diferente do anterior ocorre quando o aluno escreve apenas as vogais ou as consoantes
das palavras, como em AAO ou CVL para CAVALO, PTC ou EEA para PETECA, etc. Aqui o aluno escreve apenas
um dos elementos da sílaba, de acordo com a maneira como analisa a fala. Se prolonga as sílabas, como em
“caaaa-vaaaa-loooo”, acaba salientando e escrevendo as vogais. Se repete as sílabas, como em “cacacaca-
vavavava-lolololo”, identifica como mais notável os movimentos articulatórios, o que é representado na escrita
pelas consoantes.
É muito curioso o fato de alguns alunos escreverem as letras certas, como se conhecessem a ortografia das
palavras. Obviamente, não estão produzindo uma escrita silábica para as letras. Simplesmente escrevem
observando na própria fala o que é mais evidente.
Mais raramente, encontram-se alunos que escrevem apenas a primeira letra ou a primeira sílaba das
palavras. O aluno faz isso porque aprendeu o modelo do bá-bé-bi-bó-bu como forma de escrita das palavras-
chave. Se BAR RIGA tem o “bê”, LATA tem o “lê”, então, registra OPAFNOLA, querendo dizer O PATO FOI NO
LAGO

9.0 bá-bé-bi-bó-bu nos ditados


O fato de alguns alunos escreverem no ditado palavras como CP para CAPA, LT para LATA, MCC para
MACACO, e ao mesmo tempo escreverem no caderno as lições corretamente, demonstra que eles escrevem
seguindo as famílias de letras, que são interpretadas a partir da observação da fala. Por exemplo: la-ta; la-le-li
lo-lu; ta, ta-te-ti-to-tu. Ele se lembra da letra da palavra chave: lá-lé-li-ló-lu = letra L de LARANJA (palavra-
chave). Então acaba concluindo que basta escrever a letra
<275>
da lição referente à família de letras da sílaba que ele observou na fala. Em outras palavras, observando a
palavra LATA, ele encontrou a primeira sílaba la e a família de letras a que essa sílaba pertence, que é o lá-lé-li
ló-lu. Então, lembrou-se da lição da laranja e chegou à letra L, que era o objeto de estudo dessa lição. Note
que no método do bá-bé-bi-bó-bu, apresenta-se uma letra que vem explicada através da palavra-chave e,
dessa forma, introduz-se o estudo da família de letras, que será usada para ensinar o aluno a decifrar a escrita
para ler e montar palavras para escrever. Portanto, quando o aluno, no ditado, escreve LT, está simplesmente
seguindo o modelo que lhe foi ensinado.

10. Formas morfológicas diferentes


Os alunos que falam dialetos muito diferentes da norma culta lidam com dificuldades extras para acertar a
grafia das palavras, porque podem encontrar na própria fala formas morfológicas diferentes para algumas
palavras. É o caso de alunos que escrevem TRABESSEIRO em vez de TRAVESSEIRO, BARBOLETA em vez de
BORBOLETA, DRENTO em vez de DENTRO, PRANTA em vez de PLANTA, TONEAI em vez de ESTOU NEM AÍ, etc.
Aqui também a leitura individual e assídua irá ajudar mais do que qualquer explicação do professor. Para ser
objetivo, basta dizer ao aluno a forma ortográfica dessas palavras.

11. Resultados pela metade


Ao escreverem, além das dificuldades para encontrar, a partir de seu dialeto, a forma escrita das palavras,
algumas crianças defrontam-se, principalmente no início, com a dificuldade de isolar e caracterizar
foneticamente as palavras. Isso se torna ainda mais complicado quando, analisando a própria fala, têm de fazer
isso aos pedaços, o que resulta em palavras como BRIZA em vez de PRINCESA, PIONHO em vez de PIOLHO,
PISICRE em vez de BICICLETA.
Esses alunos sabem algumas coisas importantes a respeito da leitura e escrita, mas não sabem colocar em
prática seus conhecimentos. Eles precisam fazer exercícios de comparação entre o que escrevem e o que
deveriam escrever, com uma análise detalhada, passo a passo, do começo ao fim. Outro exercício importante é
analisar a decifração de leitura, ou seja, o aluno deve
<276>
explicitar todos os mecanismos envolvidos no processo de decifração de palavras escritas. Aqui não basta que
o aluno simplesmente leia o que está escrito; ele precisa ter claros os mecanismos envolvidos nessa tarefa.
Esse procedimento deveria abranger quer as palavras escritas corretamente, quer as que ele costuma escrever.
CAGLIARI, 1985b. L

12. Escrevendo foneticamente


Talvez os erros mais comuns dos textos espontâneos dos alunos na alfabetização refiram-se ao uso da
escrita como se fosse uma transcrição fonética. Os seguintes exemplos ilustram bem como os alunos são
hábeis na transcrição fonética, valendo-se dos recursos da escrita alfabética:
PATIO PATINHO
IGO = ÍNDIO
RAPAIS = RAPAZ
BARDJE = BALDE
MECADIO MERCADINHO
CIEASIORA = QUEM É A SENHORA
JALICOTEI JÁ LHE CONTEI
CAMANH COM A MÃE

Esse tipo de erro corrige-se com o tempo e muita leitura. Aos poucos, o professor chama a atenção dos
alunos, sem insistir muito. Se alguma forma errada tornar-se recorrente, o professor deverá voltar a explicar o
que é ortografia e transcrição fonética.

13. Troca de letras


Outro tipo de erro freqüente é o uso indevido de letras. Como uma letra pode representar muitos sons, e
um som pode ser representado por letras diferentes, isso obriga o aluno a fazer escolhas a todo instante.
Acertará algumas e errará outras, até que, confrontando o que fez com o estabelecido pela ortografia, comece
a grafar as palavras corretamente. A sua dificuldade é maior no início. Com o tempo restam apenas aquelas
dúvidas ortográficas mais comuns. Alguns exemplos:
SEBOLA = CEBOLA
CANORO = CACHORRO
QAXA = CASA
OGE = HOJE
EXTENDER = ESTENDER
ESTENÇÃO = EXTENSÃO
DICI = DISSE
LICHO LIXO
<277>
Um bom procedimento é fazer uma lista das palavras de uso comum que os alunos estão errando mais, para
que eles decorem a ortografia ou consultem a lista enquanto não memorizam.

14. Hipercorreção
Os casos de hipercorreção ocorrem quando o aluno exagera na aplicação de uma regra, usando-a para
contextos não permitidos. Esses fatos são menos comuns, mas existem. Por exemplo, o professor diz para o
aluno que escreveu DICI que, às vezes, o que se fala com “i” será escrito com E. Então, o aluno escreve
MEDECO em vez de MÉDICO. Outro exemplo: o aluno quer escrever TATU mas registra TATO, em analogia com
BATO/”batu” (o professor havia explicado que se falava “u”, mas se escrevia O).

15. Surdas ou sonoras?


Um caso que perturba os professores é o de alunos que trocam consoantes oclusivas ou fricativas sonoras
pelas correspondentes surdas, na escrita. Assim, escrevem FACA, PATATA, POLA, CORILA em vez de VACA,
BATATA, BOLA, GORILA.
Se o aluno fala como escreve, a saída mais imediata é ensinar que a escrita que respeita a ortografia não é
uma transcrição fonética. Assim como há pessoas que falam “tchia” e escrevem TIA, do mesmo modo quem
fala “póla” pode aprender a escrever BOLA. Em casos em que ocorrem ambigüidades na fala, como no exemplo
de “faka”, além da explicação acima, o aluno pode, ainda, guiar-se pela semântica: quando está pensando no
animal, a escrita é VACA; e quando está pensando na ferramenta, utensílio, a escrita é FACA.
Se o aluno fala certo, mas escreve errado, pode ser um reflexo de estar agindo de acordo com a orientação
do professor: escrever observando atentamente os sons da fala. Como escreve sussurrando as palavras,
percebe que, na sua fala (sussurrada), o som que pretende escrever é surdo e não sonoro. Nesse caso, o
professor pode mostrar ao aluno que o que ele escreveu não corresponde ao que ele fala e que as variações
fonéticas das palavras são neutralizadas pela ortografia.
Esses casos não revelam que o aluno tem deficiência
auditiva nem de atenção: é uma questão de como ele lida com as informações lingüísticas. Tanto isso é
verdade
<278>
que esses alunos não têm problemas de confusão entre sons surdos e sonoros por razões de déficit nem
ensurdecem todos os sons das palavras que escrevem. A confusão se estabelece apenas com as consoantes
oclusivas e fricativas. Elas se prestam mais a esse tipo de erro porque dispõem de pares mínimos cujo traço
distintivo é a sonoridade. Lembrar, porém, que outros segmentos fonéticos são sonoros na fala, como as
vogais, as nasais, as laterais. Os RR podem ocorrer na fala de maneira sonora ou surda, e ninguém erra a escrita
dos RR por causa da sonoridade. Essa oposição de sonoridade não cria pares mínimos, mas apenas variantes.
A confusão que alguns alunos fazem envolve o sistema de escrita e sua forma de representação, e não falha
de discriminação auditiva. Quando dou exemplos de palavras que se falam com RR surdos e sonoros em
português, solicitando dos professores que identifiquem em quais delas ocorre RR sonoro ou surdo, eles ficam
perplexos porque nunca souberam que podia haver RR surdos e sonoros. Mas, nem por isso, se consideram
portadores de deficiências auditivas, incapazes de discriminar sons surdos de sonoros. (Na pronúncia comum
de muitas pessoas, numa palavra como BARRIGA, encontramos RR sonoro, e numa palavra como RATO,
encontramos RR surdo...)

16. Um pouco por vez


Os alunos costumam levar à risca o que o professor diz. Na alfabetização, por se tratar de crianças, é muito
comum o professor “enfeitar” o que diz, ou dizer por partes, dando uma determinada informação técnica. Isso
ajuda o aluno a progredir, um pouco, mas pode levá-lo a cometer erros. O professor deve levar em conta o
progresso do aluno e não se desesperar quando não escreve tudo correto da primeira vez. Por exemplo, o
professor explica que a letra H é um coringa que, no meio de palavras, serve para modificar o valor fonético da
letra que vem imediatamente antes. Assim C com H dá “chê”, L com H dá “lhê”, N com H dá “nhê”. Por um
lapso, o professor esqueceu-se de dizer que o H ocorre somente com as letras C, L e N. Então, o aluno, que já
tinha errado, escrevendo ÍNDIO com IGO, porque não tinha encontrado no alfabeto a letra que representa o
som “djê”, passa a escrever com H depois do D: IDHO, seguindo a última regra dada pelo professor.
<279>

17. Mistura de informações


Nos primeiros ditados, alguns alunos se perdem entre o que o professor fala, o que ouvem e o que
conseguem escrever no tempo devido, produzindo às vezes resultados surpreendentes. Por exemplo, o
professor diz: “Todos quietos? Pronto? Vou ditar. Pa-paaaiii. Pa... Joãozinho, fique quieto no seu lugar! Pap...
Se vocês não ficarem quietos, vão errar. Assim. Papai. Paaa-iii. Vamos lá, minha gente! Mais rápido! Papai...
etc:’ Um aluno muito atento procura repetir o que o professor dita e tenta escrever o que lhe parece mais fácil
primeiro. Assim, escreve AAI, depois acrescenta mais um pedaço — AAIPA. Em seguida, para escrever a palavra
ASSIM registra ACM. Volta à palavra anterior repetida pelo professor e acrescenta: AAIPAI ACM. Com a
identificação de mais alguns sons, seu texto fica: AAIPAIPAPA ACM e, após o último esforço, temos o seguinte:
AAIPAIPAPAI ACM. Como o aluno não tem tempo de rever o que fez, precisando escrever logo a palavra
seguinte que o professor passou a ditar, o que sobra no seu trabalho é algo surpreendente, não por causa do
erro, mas em conseqüência do método sob o qual ele trabalha.
Tais erros são tão mal aceitos pelos professores, que os alunos que os cometem sofrem discriminação e não
raramente acabam em classes especiais ou em clínicas de fonoaudiólogos.

18. Só o esforço não adianta


Quando algumas crianças estão escrevendo, nem sempre sabem solucionar dúvidas e, como não podem
resolvê-las com o professor ou consultando livros ou outros recursos, acabam escrevendo palavras somente
com as letras que descobriram. Assim, encontramos produções de escrita como as que se seguem: SCOR, por
SOCORRO, SATUX por SANDUÍCHE, DONAIMEA por DONA ESMERALDA, etc. Esses alunos escrevem o que
conseguem no momento. Com o tempo e com um trabalho assíduo de escrita e de leitura, acabam escrevendo
tudo corretamente.

19. Erros não corrigidos


Algumas crianças não corrigem uma letra escrita errada e escrevem logo em seguida a letra certa,
resultando daí uma grafia estranha. Por exemplo, ao escrever IDADE, tendo feito o “d”, notou que ficou
parecido
<280>
com “a” (cursivo). Então, faz um outro “d” com o traço vertical bem longo e continua escrevendo, sem tirar o
lápis do papel (porque é uma escrita cursiva), resultando algo como i Outro exemplo, o aluno quer escrever
CASTELO e começa por CAT Em vez de apagar o T para escrever antes o S, ele emenda tudo sem correção,
resultando: CATSELO. Inversões desse tipo são muito comuns. Por distração, até adultos cometem, às vezes,
erros de supressão ou de acréscimo de letras.

20. Medo de escrever


Mais raramente algum aluno, que sabe escrever umas poucas palavras, de repente, tomado por um pânico
muito grande, começa a escrever coisas muito estranhas. O medo de errar faz o aluno errar mais ainda e,
nesses casos, seus erros têm pouca lógica. Exemplificando: A TIA DO FABIO FIO UM APTAPTAMAM P
XJOQ E de estranhar que um aluno que escreva “A TIA DO FÁBIO” registre ARANHA CARANGUEJEIRA usando as
letras APTAPTAMAM P XJOO. O que ele fez foi apenas preencher o espaço com letras para mostrar que
escreveu algo, que depois leria corretamente para o professor, explicando que se tratava de uma aranha preta.

21. Letras maiúsculas


O aparecimento de letras maiúsculas no meio de palavras às vezes tem a ver com o conhecimento da grafia
das letras que os alunos têm. Como têm certeza do traçado da letra na forma maiúscula, e têm dúvidas sobre
como deve ser o traçado na forma minúscula ou cursiva, acabam escrevendo: “cachorro”, “apachonada”, etc.

22. Sinais de pontuação


Além das letras, a escrita tem marcas e sinais de pontuação. No começo, o professor não deve enfoca-los,
chamando a atenção dos alunos somente depois que tiverem uma certa habilidade para ler e escrever e já
estiverem produzindo textos espontâneos. Erros dessa natureza não devem preocupar um professor
alfabetizador.

23. Letra feia


Alunos que têm uma letra muito feia, principalmente aqueles que traçam de maneira a tornar a decifração
extremamente difícil, podem até achar que escreveram
<281>
corretamente certas palavras, mas quem lê (o professor) acaba concluindo que o aluno escreveu errado.
Cuidar da letra evita muitos aborrecimentos aos usuários da escrita, e a escola precisa ver na letra feia também
um erro a ser corrigido.

ERROS NA ESTRUTURAÇÃO
DOS TEXTOS
1. Variação lingüística
Como as pessoas usam a linguagem oral todos os dias, estão acostumadas a ouvir pessoas falando dos mais
variados modos. Por isso, os professores são mais complacentes com a linguagem oral de seus alunos do que
com a linguagem escrita. Na alfabetização, costuma ser mais evidente a presença de dialetos regionais e
estigmatizados pela sociedade, na fala de muitos alunos, obrigando o professor a tratar com mais atenção da
linguagem oral do que professores de outras séries.
De modo geral, o que mais chama a atenção na fala desses alunos são exatamente as marcas estigmatizadas
dos seus dialetos. Nesse caso, incluem-se três tipos de erros mais comuns. Erro causado pela forma lexical
diferente que certas palavras têm nesses dialetos, como:
“drentu”, “fumu”, “arriba”, “pobrema”, etc. Erro causa do pela pronúncia estabelecida para certos elementos
fonéticos, como: “bardji”, “çértu” (com R retroflexo), e erros oriundos da má formação de concordância, como:
“nóis vai”, “uzómíveiu”, “askazakaiu”.
É sempre necessária uma boa explicação sobre a questão da variação lingüística e da norma culta.

2. Uso de pronomes
Um tipo de erro que muitos professores corrigem é o uso dos pronomes retos em lugar dos oblíquos na
função de objeto direto. Assim: “eu vi ele”, “ela viu eu”, “Maria achou nós”, etc. A norma culta do português
procura evitar esse tipo de construção. Alguns escritores chegaram a usá-la em algumas circunstâncias muito
específicas, para dar um tom coloquial à fala de personagens ou obter efeitos estilísticos, O professor
alfabetizador deve explicar o caso aos seus alunos e não se preocupar se eles continuarem com esse modo de
falar. De vez em quando, entretanto, convém que o
<282>
professor volte a chamar a atenção dos alunos, fazendo ver que na linguagem escrita, de modo especial, esse
tipo de construção precisa ser evitado.

3. Sintaxe
Do ponto de vista da norma culta, há alguns erros de construção sintática muito comuns na fala de algumas
crianças, especialmente de falantes de dialetos estigmatizados. Por exemplo, é freqüente o uso indevido do
sujeito expresso por pronome pessoal em repetição ao indicado já por um pronome relativo, sujeito da oração,
como em: “Era uma vez um gato que ele saiu de casa e foi caçar ratos”, “Eu fui na casa da minha vó que ela
mora em Cascadura”.
Outra construção inadequada de acordo com a norma culta é o uso de “onde”, sobretudo em lugar de
pronomes e de conjunções, como por exemplo “que”, “em que”, etc., em frases como: ‘A notícia onde
apareceu o crime”, “Ele falou uma piada onde o papagaio morreu afogado”, “Tudo estava perdido, onde eu
deduzo que havia muita corrupção”. O professor alfabetizador deve mostrar o certo, mas não insistir. Esse tipo
de erro só se corrige depois de muita leitura de bons autores. Por tanto, ele deixará de se preocupar tanto com
isso, esperando que os professores das séries mais adiantadas tratem do problema de maneira mais especifica.

4. Repetição
Alguns problemas aparecem tipicamente em textos orais e escritos e devem ser objeto da atenção do
professor, no sentido de ajudar seus alunos, desde cedo, a melhorarem seus textos. Mais uma vez, é preciso
insistir em que alguns erros não serão corrigidos na alfabetização e, por isso mesmo, o professor não precisará
se preocupar muito com eles. Mas é bom ir sempre chamando a atenção do aluno quando o professor achar
conveniente.
Alguns alunos dizem “né?!” ao final de cada enunciado ou apresentam cacoetes lingüísticos, como “ééé..:’,
marcando todas as pausas que fazem. Os alunos em geral não transportam esse tipo de problema para a
escrita. Todavia, há algumas repetições exageradas e desnecessárias que aparecem tanto nos textos orais
quanto nos escritos. Por exemplo, o aluno que escreve a todo instante palavras como: “daí”, “aí”, “depois”. O
professor pode pedir para o aluno melhorar seu texto, evitando a repetição dessas palavras.
<283>
Alguns professores, sobretudo de séries mais adiantadas, têm a mania de considerar errada toda repetição
de palavras (geralmente substantivos ou pronomes pessoais) que ocorra proximamente. A repetição, às vezes,
deixa o texto mais claro e de mais fácil compreensão. A repetição pode também ser desnecessária e, nesses
casos, cabe ao professor analisar e discutir a questão com seus alunos. Num texto em que aparece: “O policial
pegou o carro e ele saiu correndo na avenida”, o uso do pronome “ele” pode trazer mais ênfase à narrativa, e
sua supressão pode deixar o texto mais pasteurizado ou com menos vida. Note que quem usa “ele”, em frases
como essa, costuma colocar nessa palavra o foco semântico, representado pelo acento frasal. Por outro lado,
um texto como: “O mecânico chegou em casa. O mecânico chama-se Toninho. Ele viu o carro. Ele falou: o carro
está com a bomba quebrada. O carro assim não pega.. mostra que o aluno faz seu texto preocupado demais
com a boa formação da frase que a escola ensina, ou seja, que o aluno deve começar sempre com o sujeito da
oração. O professor pode mostrar que há outros recursos para deixar o texto melhor, variando a estratégia de
construção das frases.

5. Frases soltas — coerência


Alunos que aprendem que um texto é um conjunto de frases, acabam produzindo textos semelhantes aos
das cartilhas. Veja este exemplo:
O xale é de Xaxá.
O pato nada no lago.
O pato é belo.
Xaxá é a vovó.

Esse tipo de texto precisa ser evitado, pedindo-se para o aluno escrever histórias espontâneas. Desse modo,
ele se vê preso à necessidade de seguir uma idéia através de várias frases, acabando por compor um texto mais
próximo do seu modo de falar com as pessoas. O texto acima só aparece como exercício na escola, não na vida
real, e reflete um modelo muito típico de cartilha, no qual o aluno foi alfabetizado.
Os lingüistas dizem que um texto precisa ter “coerência”, ou seja, cada assunto precisa ser tratado de maneira
“lógica” e numa seqüência que acrescenta a cada instante uma informação a mais, completando o que foi dito
antes, como quem monta um quebra-cabeça,
<284>
no qual todas as peças vão se encaixando naturalmente. No exemplo acima, nem se sabe por que alguém diria
aquele texto daquele jeito. Não tem propósito aparente. Explicar por que esse tipo de texto não está correto
requer um estudo maior da coerência textual. Se o professor adotar outra estratégia, levando seus alunos a
produzirem textos espontâneos, esse tipo de
problema quase não aparece e, quando vem, não requer explicações mais detalhadas.

6. Coesão
Outro problema típico de textos é a coesão, que pode ser exemplificada pelo uso de elementos anafóricos e
dêiticos. Elementos anafóricos são palavras que se referem a outras já mencionadas antes num texto. Por
exemplo, os pronomes servem para fazer uma referência a um nome dito antes, por isso não se pode come çar
um texto dizendo: ELE COMPROU UM CACHORRO. PEDRO FICOU FELIZ. Porém, se o texto fosse:
PEDRO COMPROU UM CACHORRO. ELE FICOU FELIZ, o elemento anafórico ELE, agora, tem um antecedente
claro e bem-definido no texto. Alguns alunos fazem, às vezes, confusão com os elementos anafóricos,
desestruturando o texto. Veja o exemplo, a seguir: O padeiro queria fazer um pão gigante e foi pedir ajuda ao
João Pão Doce Ele pegou um saco de farinha e fermento que ele tinha e jogou água depois foi mostrar para o
dono que a massa estava pronta para fazer o pão gigante.
Na segunda linha, o sujeito de FOI é o PADEIRO. O pronome ELE na terceira linha fica sem antecedente claro,
podendo se referir ao PADEIRO ou a JOÃO PÃO DOCE. Esse é um típico problema de coesão. O pronome ELE da
linha 4 continua com o problema de indefinição, causado em parte pela indefinição do ELE anterior e, assim,
todos os verbos, cujos sujeitos estão ocultos, como JOGOU e FOI MOSTRAR.

7. Caligrafia
Finalmente, o professor deve avaliar nos textos dos alunos a caligrafia, o layout, a forma de apresentação
estética, a limpeza e o uso apropriado das letras maiúsculas e minúsculas. Esse cuidado com os aspectos
externos do texto devem ser apontados logo no início.
<285>
Todavia, não se deve supervalorizar por se tratar de um texto de um principiante. É importante que o
professor deixe os alunos produzirem seus primeiros textos sem essa preocupação. Portanto, o professor não
irá questionar esses aspectos, embora fale sobre eles com os alunos. Depois, quando os alunos já estiverem
escrevendo com certa fluência, por exemplo, no início do segundo semestre, esses aspectos do texto deverão
começar a ser exigidos pelo professor. Na maioria das vezes, tais problemas se resolvem quando o aluno passa
a limpo seu trabalho. Textos que vão ser expostos, enviados para alguém ler ou integrar livrinhos precisam
necessariamente de um cuidado especial com a forma externa de apresentação.
No início do processo de alfabetização, as crianças vão apresentar problemas de “clareza” na escrita por
causa da dificuldade em escrever traçando bem as letras. O professor deve ficar muito atento aos possíveis
obstáculos à aprendizagem devidos ao fato de algumas crianças interpretarem erroneamente o que elas
próprias escreveram. Tem-se notado que algumas crianças que não progridem apresentam um traçado das
letras muito “desfigurado”. Treinar uma produção gráfica melhorando o traçado das letras é importante para
que alguns desses alunos voltem a pensar corretamente a respeito do processo de letramento.
<286>

11 – Ditado e copia

UMA ESTRATÉGIA LINGÜÍSTICA


CHAMADA DITADO
< CAGLIARI, 1990.
O ditado, na verdade, é uma atividade lingüística muito comum em certas situações sociais, razão talvez pela
qual se tornou do agrado especial dos professores alfabetizadores. Tudo o que é ouvido é memorizado por
certo tempo e depois esquecido. Quando se quer guardar uma informação, escreve-se. Quando se quer que
outra pessoa guarde uma informação nossa, ditamos o que ela precisa escrever. Quando se tomam notas
numa conversa de telefone, por exemplo, em grande parte trata-se de um ditado: alguém passa informações
que são ditadas, às vezes, até à moda da escola, com a pessoa silabando o que diz ou usando referências
acrofônicas. Em algumas profissões, obviamente, a prática do ditado é intensa, como nos escritórios.
Nessa prática, constata-se também que é muito comum as pessoas se encontrarem em situações nas quais
não sabem como escrever determinadas palavras, ou até mesmo entender o que foi dito, fazendo confusões
fonéticas e semânticas. Nessas circunstâncias, as pessoas checam seus conhecimentos e suas habilidades
lingüísticas, especialmente perceptivo-auditivas, controlando o que escrevem.
Na escola, certas aulas expositivas são espécies de ditado, e as anotações que os alunos fazem são uma
espécie de cópia. Ditado e cópia são atividades interdependentes. O ditado leva quem escreve a fazer uma
espécie de cópia do que ouve, e a cópia exige que o copista faça um ditado para si próprio, antes de escrever.
O professor fala como quem dita aos alunos, e quem não faz anotações dificilmente se lembra, no final do ano,
do conteúdo da matéria de todas as aulas.
Pela experiência de cada um, podemos ver que há vários tipos de ditado: alguns apegam-se mais ao literal,
como as informações passadas por telefone, outros reproduzem apenas as idéias principais, como as
anotações feitas numa aula.
A apresentação de modelos de fala e a reprodução desses modelos no processo de aquisição da linguagem
também são estratégias lingüísticas à semelhança de ditado e cópia, realizados apenas no plano da oralidade. A
mãe ou o adulto dita palavras, expressões ou frases para a criança repetir, e à medida que o resultado
<288>
se torna mais satisfatório, a mãe vai constatando que a criança está aprendendo a falar cada vez mais e
melhor.
Esse quadro geral, certamente, é o que tem levado muitos professores alfabetizadores a apostar no ditado
como forma de aprendizagem. Os professores acreditam que o ditado serve para transmitir informações úteis,
testar as dificuldades de realização de escrita, avaliar o desempenho, revelando os conhecimentos já
dominados a respeito da escrita, além de ser uma prática que constrange os alunos, obrigando-os a estudar.
Nesse último sentido, o ditado é uma prática que envolve mistério — não se sabe o que o professor vai ditar —
, gerando ansiedade. Embora pouco recomendado, esse sentimento é, de fato, largamente manipulado pela
escola. Portanto, vê-se que o ditado é uma prática que possui todos os ingredientes de que a escola gosta.

Tipos de ditado
Quanto aos objetivos que se pretende alcançar, os ditados podem servir para avaliar o aluno ou para que
seja cumprida uma tarefa de cópia de anotações ou de informações úteis.
Do ponto de vista da maneira como são feitos, os ditados podem ser fonéticos ou semânticos, se a
preocupação de quem dita é fazer com que seu interlocutor anote as letras das palavras ou simplesmente as
idéias.
Muitas vezes, algumas formas de ditado servem apenas para avaliar se o aluno sabe ou não escrever certas
palavras. Quando o ditado envolve o conhecimento ortográfico, em geral, enquadra-se nesse caso. Esse é o
tipo mais comum de ditado na alfabetização. O professor ensina uma lição do bá-bé-bi-bó-bu, na qual o aluno
aprende a desmontar e a montar palavras e, depois, o professor vai testar se o aluno já dominou o que foi
ensinado, ditando-lhe as palavras já vistas. Se o aluno já estudou o tá-té-ti-tó-tu e o lá-lé-li-ló-lu, certamente
deverá saber escrever palavras como LATA, LOTA, LUTO, TOLO, TELA, etc.
Esse método não leva em conta que o aluno pode ter outras estratégias para escrever e lidar com a
ortografia. Para esse método, os alunos simplesmente seguem o modelo apresentado, desmontando e
montando palavras em sílabas (estudadas como famílias de letras). Se o aluno erra, é porque não se concentra,
não presta
<289>
atenção no que o professor diz, não estuda, não aprende ou, até mesmo, porque tem dificuldades mentais,
neurológicas ou fonoaudiológicas.
Entretanto, as crianças estão acostumadas a usar a linguagem priorizando a semântica das palavras e a usar
palavras em frases e não a segmentar a fala em sílabas e a representar as palavras por letras (sem nenhum
sentido lexical). Essa é uma das razões pelas quais alguns alunos estranham enormemente a prática de ditados
(e de ensino através do bá-bé-bi-bó-bu). O fato de o professor avaliar justamente essas letrinhas das palavras
incomoda ainda mais algumas crianças.
Quando se comparam os resultados obtidos na escrita livre das crianças com os dos ditados tradicionais,
percebem-se logo as diferentes atitudes que as crianças têm diante da linguagem nessas duas atividades. Os
próprios erros são outros. Nos ditados, não é raro encontrar erros absurdos sem razão aparente; ao passo que,
nos textos livres, quase todos os erros têm explicações muito convincentes relacionadas ao processo de
reflexão que levou o aluno a escrever de determinado jeito.

Ditados para acertar a ortografia


A maioria dos professores está muito convencida da eficácia dos ditados. Acham que além de avaliar, servem
de reforço para a aprendizagem. Curiosamente, esses mesmos professores consideram que o aluno não deve
escrever nada errado, para não fixar o erro (sic!).
Para conciliar a avaliação com o ensino no ditado, esses professores desenvolveram técnicas especiais de ditar,
de modo a dar todas as pistas fonéticas para o aluno saber que letra deve escrever. É o caso do professor que
dita a palavra BALDE pronunciando o L como se fosse o som L de LATA, quando deveria pronunciar U,
pensando que se ele pronunciasse naturalmente o U, o aluno não escreveria da maneira correta. Ora, se o
objetivo do professor é esse, seria melhor que ensinasse os nomes das letras e fizesse os ditados dizendo os
nomes das letras. Mas, nesse caso, onde ficariam a ansiedade e o mistério? Os alunos precisam acertar, mas
precisam dar margem para o professor não dar sempre e para todos unicamente a nota máxima...
Tais ditados são realizados foneticamente, ou seja, o
professor fala e o aluno escreve. O modo como o professor fala, como vimos, pode variar. Uns falam um
dialeto
<290>
que a escola inventou para essa ocasião: o professor ensina aos alunos como associar certas letras a certas
articulações e “mímicas fonéticas” e, na hora do ditado, serve-se dessas regras para ditar. Outros professores
procuram ditar as palavras falando mais naturalmente, embora quase silabando as palavras.
Quando os alunos estão escrevendo, não é raro o professor ficar repetindo palavras ou mesmo pedaços de
palavras, supondo que assim facilita o trabalho dos alunos. Em alguns casos, dado o esforço de concentração
do aluno para analisar o que ouve e associar ao que já sabe, como o ditado ocorre com bases fonéticas, certos
alunos se confundem e escrevem coisas absurdas. Por exemplo, o professor quer ditar a palavra CASINHA.
Começa falando-a normalmente. Depois, dita pronunciando as sílabas isoladas. O aluno escreve CASI e pára,
porque fica pensando: CASA se escreve com S. FLORZINHA se escreve com Z. E CASINHA... é com S ou Z? Nesse
momento, o professor já está repetindo sílabas: CA, CA. O aluno pensa que está atrasado e escreve de novo CA.
Quando presta atenção de novo no professor, este já está silabando NHA, NHA, e o aluno escreve o NHA junto
com o CA. O resultado é: CASIZICANHA. Finalmente, o professor volta a ditar a palavra inteira CASINHA e o
aluno constata que fez tudo errado e começa a apagar. Porém, o professor passa para a palavra seguinte, e o
aluno já não sabe se corrige a palavra anterior ou se começa a escrever a palavra nova.

Ditados no dia-a-dia
A sociedade reflete em sua cultura procedimentos escolares. Assim, nota-se hoje que, quando alguém fala
algo que o interlocutor não entendeu, é comum as pessoas ditarem as palavras silabando. Por exemplo:
MARECHAL DE-O-DO-RO, com DÊ, para que o interlocutor não confunda com TEODORO. Esse procedimento,
sem dúvida, vem do método do bá-bé-bi-bó-bu, próprio das cartilhas.
Outro modo ainda vigente na sociedade é dizer as letras acompanhadas de palavras-chave, aplicando-se,
nesses casos, o princípio acrofônico (melhor seria dizer acrográfico). Resumindo, a primeira letra da palavra-
chave, que se supõe de conhecimento fácil, é a letra que se pretende salientar na palavra em dúvida. Assim:
DEODORO com D de DADO, e não TEODORO com T de TATU. Outros procedimentos podem ser observados,
<291>
provenientes de outras estratégias de alfabetização, como: DEODORO com DEEDÊ, Ó, DEODÓ, REORU. No
Brasil, é raro as pessoas soletrarem, dizendo o nome das letras das palavras. Na cultura inglesa, isso é muito
comum, e os falantes de inglês estranham que estrangeiros encontrem dificuldade em saber de que palavra se
trata, quando eles os ajudam, soletrando. Todas essas estratégias para lidar com as palavras vêm dos métodos
de alfabetização e, sobretudo, da maneira como as escolas fazem ditados.

Ditado mudo
Alguns professores chamam de ditado mudo uma atividade que consiste em pedir para o aluno escrever o
nome do que vê numa figura ou desenho. Por exemplo, desenha-se um pato, uma galinha, uma laranja, etc. e o
aluno tem de escrever os respectivos nomes. Na verdade, essa atividade não é um ditado, mas uma forma de
induzir o aluno a escrever determinada palavra (daí a semelhança com os ditados fonéticos). Poder-se já,
talvez, chamar esses ditados de ditados semânticos, uma vez que se apresenta ao aluno uma idéia para que ele
encontre a palavra correspondente.
O tipo de erro que costuma ocorrer aqui também é diferente. Além dos tradicionais erros de ortografia,
podem ocorrer erros de interpretação das figuras. O professor desenhou uma laranja, e o aluno escreve BOLA.
O professor diz que é fruta e o aluno escreve MELÃO. O professor desenha uma unha (com dedo cortado) e o
aluno escreve MAXUQATO, com uma caligrafia que leva o professor a achar que ele escreve qualquer letra para
qualquer palavra.

Anotações
Finalmente, existe toda uma arte na maneira de fazer anotações quando se ouve alguém falando, por
exemplo, numa aula ou numa palestra. A escola deixa que cada um se vire como pode, e é o que os alunos
acabam fazendo. Seria interessante que a escola orientasse os alunos nesse sentido também. O professor pode
passar sua experiência aos alunos, discutindo com eles como se fazem essas anotações, que são na verdade
tipos de ditado sem o compromisso da cópia literal de tudo o que se ouve. Alguns alunos chegam à
universidade e não sabem tomar notas: uns escrevem demais, outros de menos; uns copiam só questões
secundárias,
<292>
outros anotam modificando o que ouvem e interpretando erroneamente o que foi dito. Esses alunos ainda
têm a coragem de dizer que o professor ditou a matéria errada. Seria interessante que o professor, desde a
alfabetização, fosse ensinando como fazer anotações. O professor pode fazer uma breve palestra que os alunos
deverão acompanhar e anotar. Feito isso, passa-se a discutir o que cada um anotou, o que está a mais ou está
faltando, o que é mais importante, o que é secundário, etc. A escola precisa cuidar não só do conteúdo, como
da maneira como se estuda, das coisas que os alunos precisam fazer para estudar na escola e sozinhos em
casa. Alguns alunos têm como único modelo da tarefa de estudar o que acontece nas salas de aula, e o que
encontram aí, algumas vezes, não é um bom exemplo.

Ditado e ortografia
Existe uma falsa idéia segundo a qual as letras das palavras representam uma transcrição fonética e que a
ortografia estabelecida representa a pronúncia do dialeto padrão (ou norma culta). Assim, quando o aluno
escreve certo, o professor pensa que ele está dominando a norma culta e aprendendo corretamente as
relações entre letras e sons. Como se viu anteriormente, esse tipo de asserção é um equivoco. A complexidade
das relações entre letras e sons advém do fato de as palavras terem uma forma gráfica fixa e os falantes terem
pronúncias diferentes nos diferentes dialetos. Escrever respeitando a ortografia pode ser uma maneira de o
aluno ficar atento a formas típicas do dialeto padrão, mas não é uma garantia disso. Pode servir para o aluno
desconfiar que sua pronúncia com R retroflexo em palavras como BALDE está longe da pronúncia da norma
culta, uma vez que se escreve com L. Mas o que dizer de uma palavra como PORTA? O uso do R retroflexo aqui
não é detectado pela ortografia. A confusão aumenta quando o aluno percebe que BALDE fica “baudji”, mas
PORTA não pode ser dita “póuta”. A partir daí, ele não sabe mais quando escrever L e quando escrever R.
É muito difícil sustentar a afirmação de que os alunos aprendem a escrever fazendo ditados. Os ditados
tradicionais fonéticos não ensinam nada e servem simplesmente como uma brincadeira (de mau gosto). Esses
ditados exigem que o aluno escreva corretamente as palavras. Ora, se o aluno não souber a ortografia de uma
palavra, ou tiver dúvidas, como irá resolver isso
<293>
num ditado? O aluno que tem dúvida se CASA se escreve com S ou com Z está num beco sem saída. Ele pode
tentar escrever e ver qual das formas lhe agrada mais... Todavia, será que essa é a melhor maneira de resolver
uma dúvida ortográfica? Isso faz com que os alunos “chutem” a resposta, escrevendo do jeito que acham mais
provável. Em questão de ortografia, ou se está certo ou errado. Não há o que discutir. A maneira correta de
resolver é perguntando a quem sabe ou procurando num dicionário ou livro.

Ditado e transcrição fonética


Os foneticistas costumam fazer ditados para treinar as pessoas nas transcrições fonéticas. Esses ditados são,
de fato, formas de ensinar a fazer transcrição fonética, porque o aprendiz precisa pôr em prática o exercício de
análise perceptual do que ouve. Servem, ainda, para aplicação das normas dos alfabetos fonéticos de
transcrição de pronúncias. Não envolvem nada de ortografia; são formas predeterminadas para pronúncia e
grafia das palavras. Os foneticistas gostam de trabalhar com palavras inventadas ou com palavras de línguas
desconhecidas do aprendiz, para tirar toda influência da escrita (leia-se ortografia) sobre o exercício. Quando
se faz esse tipo de exercício com dados da língua materna, as dificuldades geralmente crescem, porque os
alunos estão acostumados a lidar somente com a ortografia tradicionalmente ensinada na escola.
Uma utilidade interessante dos ditados fonéticos na escola seria ensinar a transcrição fonética. Os alunos
poderiam estabelecer um valor fonético único para as letras (e dígrafos) e passariam a escrever ditados para
registrar o mais fielmente possível a fala do professor ou a dos colegas escolhidos para ditar, usando diferentes
dialetos. Nesse caso, todo som de “i” seria representado por i e somente por i, todo som de “çê” seria
representado por Ç e somente por Ç — em vez de S ou SS. Seriam escritos somente os sons realmente falados,
do modo como fossem pronunciados, sem qualquer preocupação com a ortografia. Feito esse tipo de exercício,
o professor pode pedir para os alunos escreverem logo abaixo uma versão do ditado, agora passando todas as
palavras para suas formas ortográficas correspondentes. Exercícios assim têm a vantagem de ensinar ao aluno
que transcrição fonética não é ortografia, que ele pode observar os sons da fala independentemente da forma
ortográfica das palavras. Essa consciência ajuda
<294>
o aluno a lidar melhor com as dúvidas ortográficas e mostra que não adianta a simples observação da fala, por
mais cuidadosa que seja, para saber ortografia.

Ditado e avaliação
Na escola, algumas vezes, são feitos ditados apenas para controlar a disciplina, castigar a classe ou
simplesmente ocupar um tempo ocioso, que o professor não sabe como aproveitar. Tal atitude é tão absurda
que nem merece comentários.
Na alfabetização, a prática comum de ditados tem como finalidade real avaliar o desempenho dos alunos
para constatar se já dominaram o que foi ensinado. Dados os problemas e as dificuldades apresentados acima,
fica claro que o ditado não é uma boa forma de avaliação, mesmo para alunos que são alfabetizados através do
bá-bé-bi-b&bu. Na verdade, os ditados são usados para dar notas. É sempre um item indispensável nas provas
e testes. Alguns professores contam os erros e calculam a nota ou o conceito. Como a escola não consegue se
livrar da nota, tampouco consegue se livrar dos ditados.
Um professor mais bem-humorado pode usar os ditados como uma forma de jogo: os meninos ditam para as
meninas e vice-versa, para saber quem escreve mais palavras corretamente. Pode-se até fazer um
campeonato. Nesses casos, como o enfoque muda, o significado da atividade também muda. Aquele ditado
fonético que só serve para avaliar se o aluno já dominou a lição é lamentável, inútil e deveria ser totalmente
abolido da prática escolar. Entretanto, brincar de fazer ditado pode ser uma atividade interessante. Nesse caso,
o objetivo não é ensinar ortografia, nem avaliar a lição anterior, ou dar uma nota num teste, mas despertar nos
alunos o interesse pelas atividades da escola, pelos estudos e tornar a aula mais alegre e animada.

O ditado e o método das cartilhas


Como vimos anteriormente, o ditado não é necessariamente uma estratégia do método das cartilhas, mas
sem dúvida representa bem como funciona na prática o ensino do bá-bé-bi-bó-bu.
Não é preciso lembrar aqui como acontece um ditado numa sala de alfabetização. O mínimo que se pode
dizer é que se trata de uma cena patética e em grande parte ridícula. Pelas razões expostas, conclui-se que o
<295>
melhor a fazer com relação aos ditados fonéticos na alfabetização é aboli-los. Não só não fazem falta, como
isso ajudaria a eliminar vícios pedagógicos e comportamentos inadequados perante a linguagem.
Na prática, alguns professores acham que conseguem, através dos ditados, saber se um aluno aprendeu ou
não, se está progredindo ou não. Por exemplo, se um aluno escreve LT, CPA, MACC, em vez de LATA, CAPA,
MACACO, isso mostra que ele não aprendeu direito a lição, que não sabe desmontar e montar palavras com as
famílias das letras, guiando-se pela palavra-chave. Ora, pode estar acontecendo justamente o contrário: o
aluno entendeu do seu jeito o que o professor ensinou do jeito dele. Essa questão é tão óbvia que o professor,
diante desses casos, não sabe como tirar o aluno do impasse. Volta a explicar tudo de novo, direitinho, e o
aluno volta a fazer tudo de novo, do mesmo jeito.
O resultado do ditado demonstra o que o método produz: o aluno acha que a escrita, em vez de ter um
alfabeto (que se esqueceram de lhe ensinar), é composta de famílias de letras, cujos chefes são as letras
comandadas pela explicação da palavra-chave (ou seja, o B de BARRIGA ou BEBÊ). Pega-se uma palavra, que é
analisada em seus componentes (sílabas), e acha-se a letra correspondente. Assim, “lata” se decompõe em LA
+ TA; LA pertence ao lá-lé-li-ló-lu da família do L e TA pertence ao tá-té-ti-tó-tu da família do T. E agora, como
se escreve “lata”? Conhecendo as famílias de letras, o aluno pensa que está aí o contexto onde vai achar a letra
para escrever. E escreve LT Mas, então, por que o aluno escreve MACC para MACACO e não apenas MCC? Isso
mostra como o aluno, de fato, não está interessado (não é uma hipótese guia) em escrever só pelas consoantes
ou pelas vogais. Ele escreve as consoantes porque o método do bá-bé-bi-bó-bu, como vimos, o induz a isso. Por
outro lado, através de exercícios de montar e desmontar palavras, já viu que, além das consoantes, existem as
vogais, sobretudo sílabas terminadas com a vogal A e, aos poucos, vai arriscando escrever também as vogais,
principalmente o A.
Os professores acostumados com ditados detectam os erros dos alunos, porém raramente sabem interpretá-
los. Quando o fazem, comumente atêm-se a receitas preestabelecidas. Não são capazes de fazer um trabalho
atento de análise de todos os fatores envolvidos. Para o método das cartilhas, o ditado é uma das poucas
ocasiões em que o aluno pode revelar seu erro... Outros processos
<296>
de alfabetização deixam o aluno agir mais livremente e lidar mais conscientemente com o erro, para se
autocorrigir. Nesses casos, o ditado não faz sentido, e o acompanhamento do desenvolvimento do aluno é
feito através de outras atividades, especialmente da produção de textos espontâneos e livres.

Conseqüências dos ditados na alfabetização


Os ditados a que nos referimos anteriormente ocorrem como atividades quase exclusivas da alfabetização.
Outras formas de ditado acompanham a vida lingüística das pessoas, mas infelizmente têm recebido pouca
atenção da escola. Entretanto, o ditado tradicional é uma prática que deixa marcas dentro e fora da escola, não
só do ponto de vista do que se faz na escola, como das conseqüências da avaliação. Alunos que erram nos
ditados são considerados menos inteligentes, mais levianos, e classificados como deficientes mentais,
neurológicos, psicológicos, auditivos e articulatórios, recebendo a conseqüente reprovação no final do ano pelo
acúmulo de notas baixas obtidas nos ditados. Isso mostra que, na prática, os professores não lidam com os
ditados apenas para avaliar se os alunos já dominaram ou não a lição em estudo, mas também para reprova-
los, fazer remanejamentos, punir com cópias alunos indisciplinados, etc.
Alguns alunos se acostumam tanto com ditados que estranham quando o professor deixa de fazê-los em
séries mais adiantadas. Outros não suportam de jeito nenhum que um professor dite alguma coisa para eles
copiarem, porque pensam que ditado é sempre uma forma de puni-los. De todas as atividades da escola na
alfabetização, o ditado é a mais problemática e de conseqüências indesejáveis, porque realizada de maneira
inadequada e inconveniente.
Além dos aspectos negativos já apontados, pedagogicamente falando, os ditados, juntamente com outras
atividades muito do gosto do método das cartilhas, induzem os alunos a concepções estranhas a respeito do
funcionamento da linguagem oral e escrita. O dialeto inventado pelo professor na esperança (vã) de tornar a
ortografia um espelho do dialeto padrão, a fala silabada, a destruição da semântica das palavras, a redução da
linguagem a listas de palavras desconexas, etc. são algumas das conseqüências indesejáveis dos ditados. A
linguagem vive nos textos, e os ditados vão justamente
<297>
contra essa noção básica da linguagem. É claro que seria possível fazer ditados de textos. Mesmo assim, a
maneira como o ditado lida com a linguagem reduz o texto a um amontoado de palavras.

Quando e como fazer ditados


Os comentários anteriores já provaram que de modo geral é preferível abolir os ditados da prática da
alfabetização. Vimos também que se pode fazer um campeonato com ditados, quer com equipes de alunos,
quer com indivíduos. Alguns professores fazem ditados dizendo palavras que querem ver escritas e, então, eles
mesmos as escrevem na lousa. Os alunos, nesse caso, apenas copiam do quadro-negro.
Escrever o que se dita com a intenção de avaliar o desempenho dos alunos é sempre indesejável, mas fazer
ditados de textos interessantes para os alunos guardarem pode ser uma prática saudável. Na alfabetização,
essa prática tem o inconveniente de apresentar muitas dificuldades com relação à ortografia. Os alunos
acabam errando demais, e o professor e o aluno terão um trabalho a mais corrigindo. Nesses casos, a melhor
solução é a simples cópia.
Os ditados mudos e outras formas semelhantes de induzir os alunos a escreverem são aconselháveis.
Devem ser apenas ocasionais para não limitar a escrita a palavras ou frases extraídas de figuras apenas.
Uma prática que deve começar desde a alfabetização é o ensino de formas de anotar o que se ouve. O
professor pode brincar de jornalista: alguns alunos irão dar entrevistas e outros vão tomar nota. Depois,
invertem-se os papéis. Feita a atividade, procede-se a uma discussão geral e, depois, à análise com
comentários sobre cada caso.
Além das finalidades, o professor deve ficar atento à forma como devem ser realizados os ditados. Se o
ditado se insere num contexto natural de uso da linguagem, como no ato de fazer anotações ou cópia de
informações, as pessoas que falam e que escrevem devem usar a linguagem oral e escrita de maneira natural.
Modificar a pronúncia para ditar é justamente o que não se deve fazer. Para esclarecer como se escreve uma
palavra, o melhor é dizer quais as letras corretas que devem aparecer no contexto que gerou a dúvida ou, se
for uma simples falta de compreensão, repetir o que se disse de maneira mais lenta. Ditar
<298>
silabando todas as palavras é ridículo e, de certo modo, um procedimento que ofende a quem escreve.
Em suma, nem toda atividade de ditado é ruim: depende de como é feita, sobretudo das finalidades de sua
realização e de um uso natural da linguagem.

CÓPIA
A cópia na Antiguidade
A cópia é o método mais antigo de aprendizagem da escrita e da leitura. Inúmeros documentos mostram
que, na Antiguidade, as pessoas aprendiam a ler e a escrever fazendo cópias de textos de obras famosas.
Assim, além de aprender como o sistema de escrita funcionava, os aprendizes tomavam contato direto com os
textos mais importantes. No Museu do Louvre, no Museu Britânico e em outros, encontram-se trabalhos de
cópia, como exercícios típicos para aprendizes da atividade de escriba, quer na Mesopotâmia, quer no Egito ou
mesmo na Grécia e em Roma. Essa prática permaneceu por muito tempo até que, com o advento dos estudos
de alfabetização nas escolas, a aprendizagem da leitura e da escrita tomou novos rumos.
Já dizia um provérbio latino: “Quem escreve lê duas vezes”. O aprendiz que faz uma cópia precisa refletir
sobre o texto escrito que ele reproduz, precisa tomar algumas decisões sobre como vai proceder para copiar e,
finalmente, comparar o que fez com o original.
A cópia funciona como uma estratégia da aprendizagem da leitura e da escrita, mas não é a única nem a
principal. A cópia é útil quando associada às demais explicações que o aprendiz precisa receber de quem
conhece como o sistema de escrita funciona. Na Antiguidade, o aprendiz recebia a tarefa de copiar uma frase
de Homero, por exemplo. Ele tinha diante de si, numa tábua, o alfabeto grego. Sabia que as letras tinham
nomes que permitiam decifrar a leitura. Como falante de grego, ia copiando letra por letra e procurando os
sons correspondentes até montar as palavras, que podia reconhecer quer a partir das relações entre letras e
sons, quer pelo contexto, ou simplesmente porque tinha memorizado a frase que lhe fora dada como exercício.
<299>
À medida que ia fazendo mais e mais exercícios, aprendia como decifrar o que copiava e, portanto,
desenvolvia a habilidade da leitura, objetivo principal da tarefa de cópia. O ato mecânico de reprodução do
texto do exercício era considerado secundário, ou seja, não se copiava, nesses casos, para guardar um
documento, como iria acontecer mais tarde com muita freqüência com os escribas.

Cópia e aprendizagem do sistema de escrita


Pelo envolvimento com a escrita que a cópia promove, muitos professores pensam que é um bom começo
deixar as crianças copiarem as palavras que encontram nas situações cotidianas. Ao proceder assim, a criança
toma iniciativas, faz perguntas para si própria e propõe soluções para seus problemas.
Os resultados alcançados são evidências muito preciosas para indicar ao professor o que o aluno sabe e o que
não sabe a respeito da leitura e escrita. Esse tipo de atividade, usada logo no início, induz o aluno a comparar
coisas iguais e coisas diferentes, a juntar informações, a deduzir, pelo contexto, porque ocorre uma letra assim
ou de outro modo. Embora a criança, por si só, não consiga decifrar o sistema de escrita, pode aprender a
refletir sobre ele e certamente aprenderá coisas. Portanto, o simples ato de se copiar um rótulo, uma palavra
que encontrou escrita em objetos, paredes, livros, etc. traz informações sobre o sistema de escrita e obriga a
criança a refletir e a levantar hipóteses enquanto vê, copia e avalia o resultado obtido. Isso é importante, e o
professor deve aproveitar esse tipo de atividade como estratégia de ensino.
Alguns professores consideram que a cópia é um simples exercício mecânico e que o aluno pode ficar
copiando durante muito tempo sem se alfabetizar. Isso é verdade e pode acontecer, se o professor transformar
a cópia numa tarefa que se realiza mecanicamente. Escrever uma palavra ou frases, e mandar o aluno copiar
pura e simplesmente, ocasiona esse tipo de problema. O professor precisa conversar com os alunos e dizer a
eles que, na tarefa de copiar, vão procurar descobrir que letras copiaram, vão precisar saber o que está escrito,
com que letra começa a palavra, que letra vem depois, que som tem determinada letra naquela palavra, etc.,
ou seja, a cópia precisará despertar a curiosidade do aluno e predispô-lo a uma análise de como as letras são e
de quais sons existem nas palavras copiadas.
<300>
Se o professor começar dando oportunidade para os seus alunos copiarem palavras que encontram nos
ambientes onde vivem e perguntarem tudo o que quiserem saber sobre o que estão fazendo, a cópia é uma
ótima estratégia de ensino. Se o professor manda o aluno copiar algo como tarefa de escola para reproduzir
um modelo, poderá ter como reação um ato mecânico, que não ajuda em nada no processo de alfabetização.
Por isso, é preciso compreender bem a natureza da atividade de cópia e tomar cuidados especiais na sua
realização.
A cópia e a descoberta do mundo da escrita
Algumas crianças, muito antes de se encontrarem em situação de aprendizagem na sala de aula, brincam
não só de imitar os adultos que escrevem, como também de copiar material escrito. Ao fazer isso, explicitam as
idéias que têm a respeito do mundo da escrita, apesar de suas limitações para usar o lápis. Em geral, fazem o
que chamamos de rabiscos. Algumas crianças vão mais longe e reproduzem com bastante semelhança formas
gráficas da escrita, letras e até palavras. Seria bom que essas crianças recebessem, desde então, algumas
explicações básicas sobre o sistema de escrita. Uma das tarefas iniciais da alfabetização pode ser esta: pedir
aos alunos que tentem escrever (mesmo sem saber), copiando ou não, para sentir um pouco o que é escrever e
ler.
O professor pode solicitar aos alunos que tragam para a aula embalagens pequenas nas quais apareçam
coisas escritas. Numa folha de papel, irão colocar apenas material escrito, separando assim desenhos de letras,
e constatando como se dá a escrita acompanhada de figura e feita apenas de letras. Copiar a embalagem toda
é outra atividade possível.
O professor irá falar sobre o mundo da escrita que existe no meio em que o aluno vive e irá pedir para que
eles observem, fazendo comentários orais, e copiem algumas coisas para mostrar aos colegas.
Ainda bem no início, os alunos podem copiar, juntamente com os desenhos, nomes de colegas, animais e
objetos, usados, por exemplo, para compor etiquetas e formas de identificação de pessoas e lugares na escola.
Essa atividade pode ser feita não só com lápis e papel, como também através de letras soltas, que são
escolhidas e montadas em lugares próprios, acompanhadas
<301>
da colagem de figuras. Essa também é uma forma de identificação entre um modelo e o resultado de uma
tarefa, sendo, pois, uma espécie de cópia.
No mundo da escrita em que vivemos, além de letras, há muitos pictogramas, sinais, marcas, etc., que
constituem excelente material para os alunos refletirem sobre o sistema de escrita. Copiar, recortar e
colecionar esse tipo de material é um exercício interessante, útil e mesmo necessário no início da
alfabetização.

Colecionando letras e palavras


Depois que os alunos já souberem que se escreve com letras e que o alfabeto é um conjunto limitado de
caracteres que podem ter formas gráficas diferentes, eles podem confeccionar um álbum de letras. O
professor irá solicitar que usem, por exemplo, uma folha para cada alfabeto (conjunto completo de letras de
um determinado tipo). Cada página pode ter um título: letras de fôrma maiúsculas, letras cursivas, minúsculas,
etc. Os títulos podem ser obtidos de outro modo, usando a imaginação: letra do jornal X, letra da propaganda
Y, letra florida, listrada.
Às vezes, não se encontram todas as letras do alfabeto para copiar, porque elas não aparecem no texto
consultado. Nesse caso, o professor pode pedir para os alunos copiarem só o que acharem e, mais tarde,
quando estiverem mais adiantados, voltarão a essa atividade e tentarão completar os alfabetos, seguindo o
padrão gráfico das letras já feitas. O professor pode desenhar um quadro na folha de papel para os alunos
fazerem as letras nos respectivos quadradinhos, os quais, por sua vez, podem estar marcados sempre com
letras de fôrma maiúsculas num dos cantos, para mostrar onde deverá ser colocada cada letra. Esse tipo de
atividade pode se estender para as séries posteriores, de tal forma que os alunos passem a ter uma espécie de
manual de letras ou álbum de alfabetos. Em vez de copiar graficamente, os alunos podem também recortar
letras e colar nos respectivos quadradinhos do álbum, como se fossem figurinhas. O professor deve ficar atento
para ajudar os alunos a não misturarem alfabetos diferentes, baseando-se nas características gráficas das
inúmeras formas que as letras podem tomar.
Quando os alunos já estiverem lendo e escrevendo palavras isoladas, o professor pode propor o dicionário
da classe. Cada aluno irá enriquecer o dicionário
<302>
preparando uma ficha, na qual irá escrever uma palavra, seguindo as instruções do professor quanto a layout,
ilustração, etc. Podem-se fazer duas caixas: uma com fichas de palavras escritas pelos alunos e outra com
fichas de palavras recortadas por eles.
Ligado às atividades de ensino, o professor pode pedir para os alunos copiarem em colunas cinco palavras
que comecem ou acabem com determinadas letras. Essas palavras servirão para esclarecer aos alunos as
relações entre letras e sons. Às vezes é preciso dar uma orientação mais detalhada. Por exemplo, se o
professor estiver estudando a letra C, certamente irá pedir para os alunos copiarem palavras que comecem
com a letra C acompanhada de E ou de I, numa coluna, e acompanhada de A, O ou U, em outra coluna, para
deixar claro o valor fonético da letra C nesses dois contextos. Esse trabalho de cópia exige do aluno muita
concentração, e, ao mesmo tempo, propicia as primeiras reflexões sobre o funcionamento do sistema de
escrita e de leitura.
Além dessas coleções que podem ser sempre aumentadas, o professor pode formar com os alunos conjuntos
fechados de palavras. As crianças fazem uma lista com os nomes dos colegas, colocando-os em quadradinhos
que correspondam aos lugares próprios de cada um na sala de aula, quando todos estão sentados. Esse tipo de
trabalho pode ser feito de forma coletiva sob o comando do professor, que confecciona um pôster que os
alunos copiarão depois em uma folha de papel. Atividades como essa, que misturam escrita com desenho
(quadradinhos), apresentam desafios e são excelentes para ensinar os alunos a se organizarem nos estudos.
Copiar não é apenas repetir um modelo
Os professores que seguem o método das cartilhas usam a cópia como reforço da aprendizagem e como um
exercício típico de tarefa para ser feita em casa. Cópia não é um reforço da aprendizagem, a não ser num
processo de alfabetização no qual o aluno decora e repete um modelo, como faz o método das cartilhas.
Melhor seria, então, dizer que a cópia é uma técnica para decorar algo escrito, e que, uma vez realizada,
pode servir como reforço da aprendizagem. Nesse caso, o aluno pode aparentemente apresentar um resultado
correto na sua cópia, memorizar informações sobre o que fez e, na hora do ditado, recuperá-las e escrever
<303>
palavras corretamente, dando a impressão de que as aprendeu. Esse aluno, porém, pode esconder o fato de
não saber ler. Chegará o dia em que terá de ler ou escrever algo que não foi dominado, e ele não saberá o que
fazer.
Essa constatação tem levado vários professores a abandonar a cópia por considerar que ela não passa de um
exercício mecânico, e a manter o ditado como um exercício revelador dos conhecimentos adquiridos ou não
pelos alunos. O problema apresentado aqui, na verdade, não está nas atividades em si, mas no método das
cartilhas. Simplesmente não se fixa a aprendizagem de algo que não se aprendeu. Por outro lado, o ditado
pode ser muito enganador como instrumento para verificar se o aluno aprendeu ou não, principalmente se ele
fizer muitas cópias como reforço da aprendizagem. O método das cartilhas tira a chance de o aluno refletir,
sendo ele obrigado a fazer tudo segundo o modelo apresentado pelo professor e, desse modo, apenas decora
o que lhe apresentam, sem entender verdadeiramente.

Copiar para memorizar


Copiar para decorar algo escrito pode ser uma armadilha para o aluno que não sabe decifrar a escrita,
transformando-a em leitura. No entanto, esse tipo de cópia é útil para ensinar os alunos a decorarem textos.
Muitas pessoas acham equivocadamente que decorar é algo indesejável no processo de aprendizagem,
quando, na verdade, é essencial. Já dizia Dante que depois de entender é preciso decorar para que haja
conhecimento e ciência. Algumas pessoas dizem que não são capazes de decorar uma poesia longa, um texto
em prosa, um diálogo, ou mesmo uma peça literária para um jogral ou um teatrinho. Essas pessoas estão
acostumadas a ler somente textos literários. Decorar é uma atividade diferente: exige outro tipo de análise do
texto, o que se consegue melhor fazendo cópias mecânicas. Copia-se um pequeno trecho umas duas ou três
vezes e, depois, procura-se reproduzir o que se quer decorar, escrevendo. Faz- se isso em círculos cada vez
maiores, até que um texto relativamente longo esteja sob domínio da memória. Decorar apenas com a
repetição do texto é uma estratégia que exige mais tempo, mas é muito usada por artistas.
Desde a alfabetização, a escola deveria cultivar a memorização, incluindo não apenas obras literárias, mas
também científicas. Citar um autor ipsis litteris,
<304>
de cabeça, faz parte de uma certa erudição que a escola deve cultivar em seus alunos, desde as primeiras
séries. Infelizmente, esse é um aspecto muito mal compreendido por vários profissionais ligados à educação, o
que acarreta sérias deficiências na formação dos alunos. Como acontece com muitos fatos escolares, a escola
usa uma estratégia de maneira inadequada num determinado momento e, depois, quando deveria empregá-la,
por ser seu contexto correto, não o faz, concluindo que não serve aos seus propósitos.

A cópia como punição


A escola tem consciência de que alguns exercícios de cópia não passam de pura repetição mecânica. Por essa
razão, utiliza-se dela, às vezes, para punir alunos indisciplinados. A punição consiste em copiar inúmeras vezes
uma frase de cunho moral, se o problema for de indisciplina, ou algo específico de uma lição, se o aluno não
presta atenção às explicações do professor. Um professor deve ser também um educador e há maneiras mais
inteligentes e eficazes de educar uma criança que não punindo.
Na escola, uma das atividades mais comuns de escrita consiste em copiar informações do quadro-negro, de
livros, de apontamentos, etc. Copiar informações, textos, passar a limpo acaba parecendo para alguns alunos
uma forma de punição e, por isso, eles demonstram relutância em executar esse tipo de tarefa, prejudicando-
se muito nos estudos. A própria escola tem muito pouco senso crítico para sair de sua incompetência e ver o
mal que causa aos alunos com certos comportamentos punitivos.

A cópia interpretativa com transliteração


Como vimos acima, fazer cópia pode ser uma boa atividade de iniciação ao mundo da leitura e escrita,
quando a criança, além de copiar, põe em jogo uma análise do sistema de escrita e usa de sua reflexão para
descobrir os mecanismos da escrita e leitura.
Há outros usos da cópia que ajudam os alunos a progredir nos estudos. Um aluno pode copiar para
aprender a forma gráfica das letras, o traçado das letras maiúsculas, minúsculas, das letras cursivas ou mesmo
de letras enfeitadas. O uso de gabaritos ou grades para orientação do traçado das letras é sempre uma técnica
aconselhável, seguindo o exemplo dos desenhistas e artistas.
<305>
Outra atividade importante na alfabetização, ligada à cópia, é a transliteração, que consiste em copiar um
texto escrito com um tipo de alfabeto, passando-o para outro tipo de alfabeto. Assim, o texto vem com letras
de fôrma e o aluno o passa para letra cursiva ou vice- versa. Para os professores que obrigam os alunos a
escreverem em letra cursiva desde o início, é importante que peçam cópias, passando da letra cursiva para a
de fôrma. Esse tipo de exercício costuma revelar surpresas, mostrando que alguns alunos podem interpretar a
forma gráfica das letras de maneira curiosa. Por exemplo, um aluno pode supor que a letra de fôrma maiúscula
M, por ter somente “dois morrinhos”, corresponde à letra n cursiva.
Erros de cópia, nesses exemplos, não são apenas casos de distração: o aluno pode estar usando um
raciocínio errado, fornecido pelo próprio professor. Por outro lado, um aluno pode achar que a letra cursiva
maiúscula A é formada de traços semelhantes aos das letras C + e, que a letra P minúscula tem traçado igual a j
+ s, etc.
Exercícios de cópia com transliteração ajudam a evidenciar esse tipo de problema. Para isso, é claro que o
professor precisa estar atento ao que o aluno faz, analisar cuidadosamente os erros e interpretar corretamente
as razões que levaram esses alunos a cometê-los. Quando aparecem erros como os apontados acima, isso
mostra que o aluno está com sérias dificuldades de leitura e que não aprendeu corretamente a decifrar a
escrita. Se o erro for apenas circunstancial (um caso apenas), revela unicamente uma interpretação
idiossincrática por parte daquele aluno, como aconteceu com uma criança que sabia ler e escrever, mas que
achava que a letra B cursiva minúscula era uma “letra dupla” (como o lh, o nh, o sc, etc.), composta de i + v.
Essa idéia estranha a respeito da letra só foi detectada quando o aluno fez cópia passando da cursiva para a
escrita de fôrma.
Um exercício muito salutar para explicar aos alunos as dificuldades que a escrita cursiva oferece para a
leitura é apresentar a eles um texto manuscrito em outra língua. Como eles não sabem que palavras estão
escritas, deverão passar da escrita cursiva para a escrita de fôrma, interpretando apenas os aspectos gráficos
das letras e os modismos de quem escreveu. Depois, podem comparar com o modelo feito pelo professor e ver
que tipos de dificuldade encontraram. Uma variação dessa atividade consiste em usar como material
<306>
texto manuscrito feito em português arcaico. Outra maneira de realizar essa atividade é usar letras de alunos
da segunda série (textos espontâneos) escritos cursivamente, para os alunos da primeira série passarem para a
versão com letras de fôrma.
De acordo com a tradição educacional de cada país, as pessoas costumam usar diferentes formas gráficas
para traçar as letras. Os franceses e os americanos, por exemplo, escrevem algumas letras ou juntam letras na
escrita cursiva diferentemente dos brasileiros. Essas coisas não passam despercebidas a um bom professor e,
ao encontrar material que exemplifique, ele deve guardar para enriquecer seu arquivo de material pedagógico
e sua atividade profissional. Depender só de livros didáticos não é uma boa estratégia. Alguns professores
vivem tão fechados dentro dos métodos que aprenderam nas escolas de formação e nos livros que usam que
nem sequer se dão conta de outras questões.
Exercícios de transliteração não devem ser feitos e guardados. O professor deve promover uma discussão
com seus alunos para analisar os erros e as dificuldades encontradas. A reflexão coletiva motivada por essa
atividade é tão importante quanto a realização da própria transliteração. A escola precisa aproveitar mais o
que faz, para discutir com seus alunos o processo de execução e os resultados obtidos.

Reescrevendo com cópia


Outro tipo de cópia interpretativa que ocorre mais adiante nos estudos é a que propicia ler um texto e
escrevê-lo com suas palavras sem se afastar do modo como o autor fez seu texto. O aluno troca palavras, usa
outra construção sintática, mas seu texto permanece um reflexo próximo do texto original. Esse tipo de cópia é
muito bom para o aluno refletir sobre a maneira como o texto original foi feito, sua organização e
desenvolvimento. Ajuda a observar estilos e formas culturalmente marcados de tratar certos textos ou
assuntos. É claro que a escola vai tratar desse assunto delicado com cuidado, para que o aluno não se torne
apenas um simples imitador. O objetivo aqui é experimentar, andando junto com o autor na elaboração de um
texto. Por isso mesmo, exercícios dessa natureza precisam ter como modelo um autor excelente e um texto
exemplar, caso contrário, em vez de ensinar o melhor, passa-se ao aluno um exemplo menos interessante.
<307>
Um exercício semelhante ao mencionado anteriormente pode ser feito no início da alfabetização, dando ao
aluno uma frase para ele copiar, substituindo uma ou mais palavras que ele queira, ou substituindo
progressivamente todas as palavras, até ele constatar que a sintaxe de base é a mesma, mas a semântica é
outra.

Interpretação de texto através de cópia


Uma forma sutil de cópia interpretativa é, às vezes, praticada em atividades de interpretação de texto.
Existe um tipo de interpretação de texto que é muito útil para analisar o conteúdo de certos textos, como
problemas (de matemática, de fïsica), enigmas, textos de reflexão filosófica, religiosa, etc. Éo que se chama de
exegese de um texto. Toma-se uma frase do texto e procura-se fazer o comentário mais apropriado para
explicar em detalhes o que o trecho do texto original significa, agregando à interpretação todas as informações
que o explicam e que são decorrentes dele. Professores de matemática que ensinam seus alunos a fazerem
uma “exegese” dos problemas, conseguem que seus alunos lidem com mais naturalidade e competência com a
solução dos casos apresentados. Em geral, é mais difícil entender o problema em toda a sua extensão e
complexidade do que saber fazer as contas para chegar ao resultado correto. Através do exercício de exegese,
as várias etapas que o problema exige vão se apresentando mais claramente, inclusive a ligação de uma parte
com outra.

A cópia como forma de colecionar informações


O tipo de cópia mais freqüente na vida escolar é a que serve para colecionar informações. Copia-se o que se
ouve do professor, uma idéia de um livro, um conteúdo qualquer, um texto e, até mesmo, um pensamento,
uma piada ou um simples nome, por razões sentimentais. Às vezes, copiar reproduzindo a forma gráfica
original tem um poder mágico que a simples escrita não tem. Copia-se a linguagem pelo conteúdo e pela forma
gráfica. Só isso basta para mostrar que a cópia é uma atividade muito importante na escola e que não deve ser
tratada de maneira equivocada pelos professores e pelos educadores em geral.
Copiar grande quantidade de material exige uma atividade de catalogação e de organização de arquivos que
a escola deve desenvolver nos alunos desde a
<308>
alfabetização. A organização da informação é essencial para que ela seja usada quando necessário. Hoje, com
o uso comum de computadores, aprender a organizar arquivos de informação é algo muito importante. Isso se
aprende também na escola.
Essas atividades de cópia estão ligadas à organização da informação em arquivos. O professor deve, em
primeiro lugar, aprender ele próprio a manter organizado seu arquivo de material e, também, ensinar seus
alunos a realizar essa tarefa de modo eficiente. A prática, nesses casos, sempre ensina mais e melhor do que a
teoria.
Através de cópias, podem-se montar coleções de tudo o que existe de escrito, desde formas gráficas de
letras e alfabetos, até poesias, crônicas e informações curiosas ou úteis a respeito de qualquer assunto. A
escola deveria incentivar seus alunos a formar esses arquivos e a manter um banco de dados pessoal ao longo
de seus estudos. A medida que o tempo passa, esse banco de dados vai se enriquecendo, e os alunos vão
tendo melhores condições de estudo em casa, dependendo menos da escola. As crianças adoram colecionar, e
se a escola souber aproveitar isso, além de colecionar objetos, as crianças colecionarão material útil aos seus
estudos e até à vida profissional futura. Assim como um aluno coleciona selos, pode colecionar informações
sobre passarinhos, árvores, flores, mantendo um arquivo com recortes, fichas com anotações, fotos, desenhos,
etc. A escola muitas vezes não sabe ensinar os alunos a utilizar os conhecimentos escolares para fazerem coisas
úteis para a vida. Há estudantes que infelizmente acham que tudo o que está relacionado à cultura é tarefa
escolar e que não faz sentido além das quatro paredes da sala de aula.
Classificar, rotular, dispor em espaço adequado são aspectos importantes da organização dos arquivos, das
coleções e dos álbuns. A distribuição espacial do material nas fichas, folhas, caixas, etc. também merece
cuidado especial. Como se vê, por trás da atividade de estudar, há muito trabalho de cópia e, envolvendo isso
tudo, além do conteúdo das matérias, há um trabalho de organização que é essencial no processo educativo. A
educação não germina em meio à desorganização mental e material. A organização material é prova da
organização mental. Essa é uma atitude que ajuda os alunos a entenderem a disciplina como uma forma de
organização social.
<309>
Uma atividade especial de cópia é a tarefa de passar a limpo a lição. A escola deve cultuar o hábito de o
aluno fazer um planejamento do trabalho que vai escrever, executar uma versão preliminar num rascunho,
corrigir e melhorar e, finalmente, passar a limpo. Muitos alunos detestam passar a limpo uma lição, porque
associam essa tarefa à de cópia punitiva.
Como se viu neste capítulo, uma atividade como a cópia pode ser bem aproveitada na escola ou pode ser
usada como uma forma equivocada de ensino ou mesmo de punição. Depende do professor fazer um tipo de
uso ou outro.
<310>

12
LEITURA E INTERPRETAÇÃO DE TEXTO
LEITURA
Ler é decifrar e buscar informações
Já se sabe que o segredo da alfabetização é a leitura. Alfabetizar é, na sua essência, ensinar alguém a ler, ou
seja, a decifrar a escrita. Escrever é uma decorrência desse conhecimento, e não o inverso. Na prática escolar,
parte-se sempre do pressuposto de que o aluno já sabe decifrar a escrita, por isso o termo “leitura” adquire
outro sentido. Trata-se, então, da leitura para conhecer um texto escrito. Na alfabetização, a leitura como
decifração é o objetivo maior a ser atingido. Os próprios textos escritos são, na maioria das vezes, pretexto
para trabalhar a leitura como decifração. O uso da leitura como forma de pesquisar adquire uma importância
secundária. Depois que o aluno se tornou fluente na leitura, ou seja, sabe decifrar a escrita com facilidade, o
uso da leitura como busca de informação torna-se o objetivo mais importante na escola, e a simples decifração
deixa de ser uma preocupação constante nos estudos.
É preciso distinguir bem esses dois usos da leitura, a partir da compreensão da própria natureza e funçãoda
leitura, vista sob esses dois aspectos.
Ao longo deste livro, muito se disse para mostrar o que uma pessoa precisa saber para ler a diversidade do
nosso mundo de escrita. Para quem já sabe ler, parece muito fácil e natural. Entretanto, para chegar a esse
ponto, é preciso adquirir certos conhecimentos. Uma simples reflexão sobre isso nos leva a concluir, entre
outras coisas, que essa pessoa precisa saber a língua portuguesa, a diferença entre desenho e escrita, o que
são letras e como as diferentes formas de letra dão origem aos diferentes alfabetos que usamos. Deve saber
por que uma forma gráfica pode ser interpretada como a letra A, e não de outra maneira, e até que ponto
pode variar a forma gráfica de um caractere e, apesar disso, continuar reconhecendo nele a mesma letra — em
poucas palavras, ser capaz de identificar a categorização gráfica e funcional das letras, o que se consegue
somente com o reconhecimento da natureza, função e usos da ortografia.
Além da decifração
Quando lê, uma pessoa precisa, em primeiro lugar, arranjar as idéias na mente para montar a estrutura
lingüística do que vai dizer em voz alta ou simplesmente
<312>
passar para sua reflexão pessoal ou pensamento. Em ambos os casos, a passagem pela estrutura lingüística é
essencial. Sem isso, não existe linguagem e, portanto, não pode existir fala nem leitura de nenhum tipo.
A decifração, porém, pode ser feita por etapas. Os conhecimentos da escrita podem ser poucos, permitindo
ao leitor descobrir inicialmente apenas os nomes dos caracteres. Outros conhecimentos podem ajudá-lo a
pronunciar as letras e talvez até as palavras, sem contudo revelar o significado do que está sendo dito. Este
último caso acontece, por exemplo, quando um lingüista lê a transcrição fonética de uma língua totalmente
desconhecida para ele.
Somente o conhecimento pleno da língua que a escrita representa é capaz de dar ao leitor condições
adequadas para uma leitura que englobe a decifração e a compreensão. As vezes, a isto é preciso acrescentar
conhecimentos mais amplos exigidos pelo próprio texto.
Para que um leitor leia um texto e compreenda o que está escrito, não basta decifrar os sons da escrita nem
é suficiente descobrir os significados individuais das palavras. Um texto vive das relações entre as palavras e as
frases em todos os níveis lingüísticos. Quando uma pessoa fala espontaneamente, constrói o que vai dizer
integrando todos esses elementos de tal modo que seu pensamento seja expresso numa determinada língua,
segundo as regras dessa língua, e de forma coesa e coerente.
Tudo isso é processado antes de o falante abrir a boca para pronunciar as palavras. Portanto, não basta a
simples articulação de sons da fala para que uma pessoa entenda o que está sendo dito. Contudo, toda pessoa,
além de falante, é também ouvinte — ouvinte não só das outras pessoas, mas também de si próprio. Assim,
uma pessoa pode falar e ouvir a si própria e, a partir dessa audição, processar a compreensão da linguagem.
Isso, obviamente, acontece apenas como um processo de feedback, ou seja, do controle sobre aquilo que se
diz. O processo de produção da fala tem sua origem muito antes de o falante dizer algo.
No entanto, como a linguagem tem todos esses aspectos, é possível uma pessoa decifrar os sons das letras,
pronunciá-los em forma de palavras, uma depois da outra e chegar ao conhecimento do conteúdo semântico
do texto escrito. Essa maneira de ler é freqüentemente encontrada nas aulas de alfabetização, devido ao modo
como os professores obrigam seus alunos a ler.
<313>
Perdurando essa prática, o aluno acaba entendendo que é desse jeito que se deve ler, e acaba sendo um mau
leitor, um leitor que acompanha o que se lê unicamente como ouvinte de si próprio.
O correto é uma leitura na qual o leitor decifra o que está escrito, se apropria das idéias que descobriu no
texto, elabora todos esses conhecimentos como se fossem seus e, seguindo a lei da fidelidade ao literal do
texto, passa a dizer o que leu, numa fala que traduz o texto e revela seu modo de interpretá-lo.
Nas explicações dadas acima, nota-se como se pode ler de várias maneiras, dependendo do que se encontra
pela frente. Se o leitor encontrar uma letra escrita de forma não-usual, pode enfrentar uma tarefa de
decifração gráfica. Se encontrar uma palavra escrita numa grafia errada, terá de avaliar o que lê em função das
possibilidades de escrita que a própria ortografia da língua gerou no sistema de escrita. Se se deparar com uma
palavra desconhecida, pode ter dúvidas sobre o valor fonético de alguma letra (por exemplo, X), e lerá essa
palavra sem detectar o seu significado. Talvez isso seja irrelevante, talvez não. Talvez ele descubra o significado
ou o campo semântico dessa palavra em função do contexto em que essa palavra se insere. Além disso, o leitor
pode conhecer todas as palavras, saber como pronunciá-las e não entender o texto, porque é de certa forma
hermético ou incompreensível para o leitor, tendo em vista a história dos conhecimentos que possui e o que o
texto revela.
Esse tipo de leitura todos nós fazemos no dia-a-dia. Dependendo do texto e do leitor, algumas dessas
dificuldades aparecem com maior ou menor freqüência. Quanto mais se lê, mais fácil torna-se ler novos textos.
Por outro lado, uma criança que está aprendendo a ler encontrará grandes dificuldades logo de saída, a
começar pelo simples reconhecimento das letras.

Leitura e planejamento lingüístico


A leitura em voz alta ou a leitura em silêncio tem de passar por todas as etapas descritas acima. A única
diferença entre elas acontece no momento em que, depois de processada a produção da fala com os
elementos extraídos da decifração e complementados com o que a língua exige, o leitor decide se irá dizer em
voz alta o que leu ou simplesmente passar aquela estrutura lingüística para seu intelecto. Em ambos os casos, o
planejamento lingüístico deve ser completo, inclusive
<314>
com relação à escolha da variedade dialetal e à determinação fonológica e fonética do que está para ser dito.
É por essas razões que se pode afirmar que a melhor velocidade de leitura é a velocidade normal de fala, que
varia de falante para falante. Querer ler mais depressa ou mais devagar do que a velocidade com que se fala
pode trazer dificuldades para a compreensão do que se diz e mesmo para a própria pronúncia, quando a leitura
se realiza em voz alta.
Muitas pessoas nunca se deram conta de que, quando lêem para si próprias, não estranham em nada o fato
de dizerem o que lêem no próprio dialeto, mesmo que seja uma variedade da língua estigmatizada pela
sociedade. Certamente, as leituras feitas em silêncio são assim, pois, mesmo em silêncio, pode-se ler em outros
dialetos.
Uma pessoa que estuda uma língua estrangeira e que passa a ter certa fluência facilmente lê textos (em
silêncio) nessa língua, recuperando uma pronúncia padrão cujo conhecimento lhe é familiar. Assim, essa
pessoa acelera seus conhecimentos e aumenta sua habilidade de falar a língua estrangeira, através da leitura.
Por outro lado, se não dispõe de conhecimentos adequados da língua estrangeira e se põe a ler com forte
sotaque ou de maneira errada, acaba tendo, futuramente, dificuldades para falar a língua estrangeira
corretamente. Isso se dá ao ler, não ocorre apenas uma decifração fonética e uma identificação semântica, mas
todo um processo de produção de fala. É por essa razão que se costuma dizer também que os alunos
aprendem mais e melhor a norma culta à medida que se tornam leitores assíduos.
Assim como se diz que na alfabetização o professor deve ajudar os alunos a passarem da habilidade de
produzir textos falados para a produção de textos escritos, do mesmo modo, ao aprender a ler, o aluno tem de
produzir uma fala que esteja plenamente de acordo com o processo que usa para falar espontaneamente.
Um texto escrito não corresponde exatamente a um texto oral que queira dizer mais ou menos a mesma
coisa, mas a base dos dois é a língua, que, na sua essência, é oral. Assim sendo, ler não é falar, mas deve chegar
o mais próximo possível disso. Esses são dois pontos de suma importância na escola e, dependendo de como o
professor lida com eles, revela concepções diferentes de linguagem e de ensino, tornando seu trabalho algo
fascinante ou desastroso.
<315>
Foi dito acima que um leitor pode escolher o dialeto em que quiser ler. A escrita tem como objetivo essencial
permitir a leitura. Somente as transcrições fonéticas obrigam os leitores a fazerem uma leitura, reproduzindo
fielmente os sons representados, na língua e no dialeto retratado. Nosso sistema de escrita permite que um
texto qualquer em português possa ser igualmente lido por falantes de dialetos diferentes. Assim, leio um
texto escrito por um autor português como se tivesse sido escrito por mim, no meu dialeto. E os portugueses
lerão meus textos com sotaque português. Quando leio Vinicius de Moraes, Castro Alves ou Érico Veríssimo,
não me esforço para dar uma pronúncia carioca, baiana ou gaúcha ao texto. Leio no dialeto que desejo. Ler
num dialeto diferente do habitual requer prática e atenção especial.
Quanto mais se distancia do controle semântico do texto em direção ao fonético, tanto mais difícil fica
acompanhar na leitura a mensagem que o texto traz. Ao contrário, quanto menos alguém se preocupar com a
parte fonética, mais fácil fica acompanhar a parte semântica e, dessa forma, entender o que se lê. Esse fato
encontra um paralelo na fala: as pessoas que se preocupam com a fonética acabam produzindo uma fala
artificial, truncada e, muitas vezes, perdem o fio do raciocínio. A fala deve ser monitorada pela semântica. A
leitura, também.

O leitor interfere no literal do texto


Na leitura, como o leitor está diante de um texto pensado e produzido por outra pessoa, é preciso respeitar
os elementos básicos desse texto. Como vimos acima, a variação de pronúncia não afeta a estrutura do texto.
Não é porque não leio um texto de Vinicius de Moraes com sotaque carioca que o texto perde sua razão de ser.
Continua sendo o texto de Vinicius de Moraes — como se diz, ipsis litteris. Por outro lado, vimos que o leitor
não interpreta apenas a parte fonética de um texto, mas também a semântica. Aqui também o leitor pode
apropriar-se das idéias que descobriu, ao decifrar o texto, e acrescentar suas próprias idéias às do autor.
Quando se lê uma poesia ou um romance, o pensamento não se atém apenas às idéias expressas pelo autor,
mas o leitor fica divagando, voando nas asas da imaginação e da fantasia. Afinal de contas, a literatura
sobrevive por causa desse mundo imaginário que cria na cabeça das pessoas e no qual os leitores podem viver
a aventura do fantástico.
<316>
A leitura em voz alta, todavia, implica algumas restrições. Na nossa cultura, existe a lei da fidelidade ao literal
do texto, que consiste em exigir do leitor que diga todas e somente as palavras que o texto transcreve. Outras
idéias que o leitor tenha ao ler um texto devem ficar guardadas para si e não podem ser reveladas numa leitura
em voz alta.
No início da alfabetização, as crianças ainda não sabem disso e, por essa razão, ao lerem os primeiros textos,
ficam misturando o literal do texto com a interpretação que fazem dele, dizendo tudo em palavras e em voz
alta. Por exemplo, o professor mostra uma frase como: “Maria comeu o bolo”. A criança lê: “Era uma vez uma
menina que fazia aniversário e queria comer um bolo. Ela se chamava Maria e o bolo estava muito gostoso”.
Um aluno que lê desse modo é um excelente leitor: sabe decifrar o que está escrito, sabe se apropriar da
mensagem do texto e acrescentar o seu mundo mental ao que o texto representa para ele.
Diante de tais fatos, alguns professores pensam que esses alunos estão “chutando”, que não sabem ler
porque ficam inventando coisas que não estão escritas. Esse tipo de interpretação está equivocado, como se
pode perceber pelos comentários feitos anteriormente. O único problema desse aluno relaciona-se à lei da
fidelidade ao literal do texto, conforme exigência da nossa cultura. Em vez de a escola explicar aos alunos o que
fizeram e o que devem fazer, ela em geral pune esse tipo de leitor, obrigando-o a ler apenas o literal, sem se
preocupar com os outros aspectos da leitura. O aluno passa a incorporar esse tipo de concepção de leitura e
torna-se um leitor literal, para quem um texto tem de ser lido literalmente. É preciso que o professor
alfabetizador, desde o início, trate de maneira muito cuidadosa da produção de leitura em silêncio e em voz
alta. Os alunos devem seguir a lei da fidelidade ao literal do texto sem deixar de lado a própria reflexão que
corre em paralelo à mensagem do autor no texto.
Foi mencionado acima que os leitores podem ler em qualquer dialeto. Porém, a leitura em voz alta sofre das
mesmas pressões sociais que a faia. Assim, diante de um público, nossa cultura não aceita que um texto seja
lido num dialeto estigmatizado, mas no dialeto padrão, pelas mesmas razões segundo as quais a sociedade não
aceitaria que alguém falasse daquele modo, naquelas circunstâncias.
<317>
Alguns alunos perdem-se nessa floresta e acabam tomando caminhos errados. Sobretudo em casos de
leitura silenciosa (para estudo), alguns alunos querem refletir tanto sobre o texto que lêem que acabam
misturando a própria opinião com a do autor e atribuindo a ele idéias que não são dele. A lei da fidelidade ao
literal do texto obriga também o aluno que lê em silêncio a distinguir o que faz parte do texto escrito e o que
faz parte de sua interpretação.
Esse problema é semelhante ao de quem ouve, O falante diz um enunciado a seu modo, mas o ouvinte lida
não apenas com o que ouve, mas também com a sua própria interpretação. Contudo, deve ficar bem claro que
o texto do falante precisa ser interpretado de acordo com o que o autor quis dizer e não pode ser misturado
com fantasias e imaginações que todo ouvinte sempre acrescenta ao que ouve. A sociedade impõe restrições
culturais para que quem fala e quem ouve consigam usar a linguagem adequadamente e, da mesma forma,
para quem escreve e quem lê. Sem o princípio da literalidade, a linguagem se perderia num mundo de
fantasias. Porém, esse princípio não destrói nem impede a existência do mundo interpretativo do ouvinte ou
do leitor. Simplesmente pede para que esse mundo fique guardado dentro das pessoas. Somente quando isso
passa a ser verbalizado num contexto específico, tornando-se por sua vez uma realização literal, pode-se usá-lo
fora do sujeito que ouve ou lê.

Leitura silenciosa e em voz alta


Como vimos a leitura pode ser feita sem que o leitor pronuncie o texto foneticamente (leitura silenciosa) ou
através da fala do leitor (leitura em voz alta).
A leitura silenciosa tem um valor enorme na escola, desde os primeiros contatos das crianças com a escrita e
a leitura. Os professores devem incentivá-la o mais possível. Na nossa cultura, muito raramente os leitores são
obrigados a ler um texto em voz alta. Ler em voz alta para um público é tarefa comum da escola, mas não em
outras situações. Na vida real, a leitura em voz alta está restrita a umas poucas profissões, como por exemplo
locutores de rádio e de televisão. Note que os atores costumam ler em silêncio os textos que apresentam, mas
depois ensaiam como declamá-los ou representá-los foneticamente, através de uma leitura especial em voz
alta. Algumas vezes,
<318>
chegam mesmo a memorizar o texto ou partes dele, para um melhor desempenho. A escola deveria seguir
esse procedimento.
Muitas crianças gostam de ler em voz alta e até de misturar leitura com fala. O professor não deve se
preocupar com isso, porque, se a leitura estiver sendo feita individualmente, esta poderia até mesmo ser
considerada um tipo de leitura silenciosa especial.
O que se costuma chamar de leitura em voz alta na verdade deveria chamar-se, mais propriamente, de
leitura para um público ouvinte. O objetivo é que ele participe do literal do texto como ouvinte da fala de um
leitor.
As leituras em voz alta têm sido uma grande preocupação da escola, embora na verdade não haja motivo
para se dar tanta importância a essa atividade nem mesmo com relação ao que os alunos precisam fazer na
vida escolar em geral. Da mesma forma que o ditado e as notas, alguns professores gostam que os alunos leiam
em voz alta porque a escola sempre fez isso... e nunca pararam para pensar nas reais vantagens e
desvantagens dessas atividades. Os alunos podem passar perfeitamente sem ditados, como podem passar
perfeitamente sem ter de ler em voz alta, mesmo na alfabetização. Os professores gostam do ditado e da
leitura em voz alta por que, através do desempenho dos alunos, podem avaliar melhor se eles já dominaram o
que foi ensinado ou não. Consideram importante saber através da leitura em voz alta se os alunos aprenderam
a decifrar a escrita. Por outro lado, esse tipo de leitura é uma atividade muito solicitada pelos alunos que
trazem para a sala de aula uma expectativa que a própria escola criou em gerações anteriores. Nesses casos, o
professor precisa tomar cuidados especiais para que seus alunos não se tomem maus leitores, simplesmente
porque querem se exibir lendo de qualquer jeito.

Decorar antes de ler


Um procedimento aconselhável logo no início é usar textos que os alunos já sabem de cor para que eles
leiam, por exemplo, letras de música ou poesias. Nesse caso, como em qualquer atividade de leitura em voz
alta, o professor deverá insistir para que seus alunos leiam o texto como se estivessem falando, para não criar
uma pronúncia artificial. Já que eles sabem o texto de cor, basta estudar um pouco e, depois, ler
acompanhando as palavras (não as letras). Alguns professores
<319>
antigos recomendavam que, durante a leitura de um texto, se percorresse com a vista algumas palavras à
frente daquelas que a boca estava pronunciando... o que era um bom exercício para quem já tinha certa
fluência na leitura. Isso ajuda a lidar melhor com os elementos supra-segmentais e prosódicos.
Os exercícios de leitura podem continuar aplicando a mesma estratégia: pede-se para o aluno decifrar um
pequeno texto, depois decorá-lo e, somente então, lê-lo em voz alta. Decorar um texto de poucas frases é uma
atividade banal para qualquer criança. Se eu disser a uma criança “Maria fez uma festa muito bonita e todos
comeram um bolo delicioso”, ela repete sem dificuldade. O mesmo pode ser feito com relação à decifração de
um texto escrito.

Preparar a leitura
Com o desenvolvimento dos estudos, já não será mais possível que os alunos decorem todos os textos que
irão ler em público. Mas, ao chegar nesse ponto, procedendo daquela forma, já adquiriram tudo o que
precisam saber para se tornarem bons leitores, dominando inclusive certa fluência na leitura. A medida que os
estudos avançam, em vez de decorar o texto, o aluno deverá preparar a sua leitura. Isso requer um certo
estudo prévio. Depois que o aluno estiver seguro de que irá ler sem dificuldades, o professor permitirá que ele
leia para a classe. Se o aluno não ler o texto pronunciando-o naturalmente, o professor deverá solicitar que
volte a preparar seu texto para uma leitura posterior, explicando que ler como se deve é também uma forma
de respeitar os ouvintes.
Um aluno que é solicitado a ler individualmente e em silêncio, num primeiro momento, e somente depois
que adquiriu certa fluência lê em voz alta, não apresenta problemas de leitura. Simplesmente precisa rá
praticá-la e, com o tempo, tudo estará em ordem. A escola, porém, tem alunos que aprendem a ler de outras
formas e, se não estiverem lendo de maneira correta, o professor precisará analisar as dificuldades desses
alunos, explicar-lhes o que fazer e treiná-los a se tornarem bons leitores.

Tipos de leitura
No fundo, todos os tipos de leitura são da mesma natureza, embora, externamente, assumam
características diferentes em diversas circunstâncias. Já foram
<320>
mencionados dois tipos de leitura: a leitura em voz alta e a silenciosa. Um terceiro tipo de leitura, que também
já foi apresentado anteriormente, refere-se ao fato de um texto provocar nos leitores diferentes reflexões,
segundo o modo como cada um o interpreta. Temos, pois, uma leitura literal e outra na qual ao literal vem
associada a reflexão do leitor, ou seja, uma leitura interpretativa.
A leitura pode ter uma tipologia ramificada a partir de outros parâmetros, como a natureza dos textos e a
finalidade do próprio ato de ler. Neste último caso, a leitura pode ser informativa, para divertir, etc. Com
relação à natureza dos textos, uma leitura pode ser do tipo a ser declamado, representado, estudado, etc. Um
estudo mais aprofundado levaria, ainda, a outros tipos de leitura. De interesse particular é o tipo de leitura que
se tem, dependendo do tipo de sistema de escrita que se lê.
Cada sistema de escrita tem um tipo próprio de leitura. Quando se lê num sistema ideográfico, parte-se do
significado e procuram-se depois os valores fonéticos associados. Quando se lê num sistema fonográfico,
parte-se da identificação dos sons das letras e procura-se a palavra associada a esses sons para se chegar ao
significado. Como vivemos num mundo caótico de escrita, onde esses dois sistemas básicos estão
representados de muitas maneiras, os leitores comumente passam de um tipo de leitura para outro. Os
números e os pictogramas pertencem ao sistema ideográfico; as letras, ao sistema fonográfico; a ortografia, ao
sistema ideográfico; o uso de rébus, ao sistema fonográfico. Um passar de olhos num jornal ou numa revista
mostra logo como nosso mundo de escrita exige dos leitores habilidades muito diferentes a todo instante. Ler
apenas letras é uma tarefa típica da escola. No mundo fora da sala de aula, a escrita apresenta-se de muitas
formas. Os símbolos, os sinais, as grifes, as marcas e até os sinais de trânsito e informações gerais que se
encontram nas ruas mostram bem que as letras representam apenas um tipo de escrita e de leitura. Para muita
gente, até mesmo os números (os algarismos) são o tipo de escrita com o qual lidam mais no dia-a-dia.
Infelizmente, com freqüência, a escola treina seus alunos apenas para lerem letras e, não raramente, somente
para o aspecto literal do texto. É preciso abrir os horizontes e incorporar às atividades escolares todas as
formas de leitura que o mundo moderno da escrita põe diante dos olhos de todos.
<321>

A leitura e o mundo
A palavra “leitura” tem sido
usada para representar metaforicamente toda atividade que envolve produzir fala ou pensamento, refletindo-
se sobre um determinado objeto. Assim, ouve-se que alguém precisa “ler o mundo”, “ler as mãos”, “ler as
estrelas”, etc. Isso tudo é um uso da linguagem, e não de um processo de leitura, no sentido técnico. Esse uso
metafórico da leitura, no entanto, tem propiciado uma certa confusão com relação ao próprio processo de
alfabetização. Para um aluno ler o que está escrito, por exemplo, a palavra POTE, não precisa pegar um pote,
apalpá-lo, estudá-lo fisicamente, para entender melhor o que a atividade lingüistica de ler representa. Basta
que ele conheça a palavra POTE e tenha os conhecimentos lingüísticos de um usuário da língua portuguesa.
Em decorrência de idéias como essa, algumas pessoas pensam que não podem usar palavras que não são do
mundo do alfabetizando. Assim, um professor não poderia usar a palavra ZEBRA, a não ser no Quênia e em
outros países africanos... Esse professor se pergunta: “Como pode uma criança entender a palavra ELEFANTE
de maneira completa, se ele nunca viu um elefante na vida?” Ora, a linguagem representa o mundo no
pensamento e, por essa razão, saber o que uma palavra significa não é uma abstração derivada do objeto no
processo de aquisição da linguagem para cada falante. Alguém, um dia, fez isto: viu um elefante e trocou a
expressão “aquela coisa” por “elefante”. A partir da incorporação dessa nova palavra à língua, os usuários
dessa língua não precisam mais “daquela coisa para aprender a palavra “elefante”. Basta alguém explicar o que
significa. A literatura, a ficção e até a ciência vivem lingüisticamente assim. O testemunho é algo de
importância essencial na vida humana. Não é preciso ir ao Japão para acreditar e saber que tal país existe e vive
de um determinado modo.
A leitura tem outros aspectos interessantes e importantes. Dissemos que o leitor precisa começar
decifrando a escrita e descobrindo que palavras estão escritas (descoberta do significado literal). Porém, como
a palavra geralmente está inserida num contexto de uso da linguagem, ou, mais tipicamente, a leitura abrange
um texto em que há muitas palavras e frases, a questão da descoberta do significado torna-se mais
complicada. Isso se deve à própria natureza da linguagem e não da escrita. Num texto, as palavras estabelecem
uma relação
<322>
umas com as outras, tanto quanto as frases. Por isso, geralmente, não basta detectar apenas os significados
literais das palavras. Será preciso ir além e buscar as relações entre palavras, frases e demais elementos
envolvidos na produção daquele texto, OS quais permitam ao leitor reconhecer os subentendidos, os
pressupostos, as conotações e tudo o mais que popularmente se costuma dizer que está nas entrelinhas de um
texto escrito (na verdade, seria nas entrelinhas da própria fala... e não apenas da escrita).

Dificuldades na aprendizagem da leitura


As dificuldades mais comuns que os alunos apresentam referem-se a problemas de decifração, de
concatenação ou de compreensão.
O problema mais sério de decifração é o daquele aluno que, não sabendo decifrar a escrita, põe-se a ler
imitando os adultos e inventando uma fala. Alguns alunos chegam mesmo a escrever várias palavras seguin do
a cartilha, mas, como não sabem exatamente o que estão fazendo, quando são solicitados a ler, não con
seguem ou lêem apenas as palavras já dominadas, O professor deve, portanto, ensinar esses alunos a
decifrarem a escrita.
Uma dificuldade comum no princípio ocorre com os alunos que acabam lendo palavras que não existem ou
que não se encaixam no contexto. Por exemplo, ao ver a palavra CASA, o aluno diz “kaça” ou “çeaça”. Seu
esforço para decifrar ainda não foi suficiente para reconhecer outros valores fonéticos das letras. Uma boa
estratégia é o professor dizer para o aluno que, quando ele for ler e descobrir uma palavra que não conhece,
deve procurar observar se alguma das letras não pode ter outro som e formar, desse modo, outra palavra.
Esse caso é semelhante à leitura incidental. Assim como atribuímos palavras às coisas, de modo semelhante
pode-se aprender a reconhecer certas palavras atra vés de formas gráficas específicas, como logotipos ou
marcas de produtos, linhas de ônibus, etc. Mesmo uma pessoa analfabeta pode fazer esse tipo de leitura.
Porém, como ela não sabe decifrar a escrita, a leitura incidental não vai além da identificação do próprio
objeto, não sendo um conhecimento produtivo.
Um problema um pouco diferente é o caso dos alunos que no início da alfabetização têm dificuldade para
decifrar. Isso é natural e o tempo necessário para cada
<323>
um resolver as suas dúvidas varia de aluno para aluno e de contexto para contexto. O professor deve ter
paciência e dar todo o tempo necessário para que os alunos realizem a tarefa. Ajudá-los é sempre uma boa
estratégia, mas não se deve resolver todas as suas dificuldades, do contrário eles se acomodam.
Alunos que aprendem a ler pelo bá-bé-bi-bó-bu, às vezes costumam enunciar em voz alta os mecanismos de
decifração que usam para ler, o que resulta, por exemplo, no seguinte: “lê-a-lá, tê-a-tá, la-ta Esse aluno sabe
ler, mas precisa aprender que deve guardar para si os procedimentos de decifração, pronunciando em voz alta
apenas o resultado final daquilo que descobriu.

O ensino da leitura
Alunos que foram incentivados a ler acompanhando com os olhos letra por letra e sem fluência têm enorme
dificuldade para desvendar o conteúdo semântico do texto. Antes de o aluno reconhecer pelo menos uma
palavra inteira, não pode sequer começar a dizer o que está lendo. Como no texto escrito já está evidente em
grande parte uma estrutura lingüística definida, é possível passar da simples constatação do valor fonético das
letras para uma emissão oral dos sons. Isso se faz sem problemas com as transcrições fonéticas de línguas
desconhecidas. O mesmo pode acontecer para um falante nativo com sua própria língua. O leitor é, então, um
simples decodificador fonético da escrita. Alguns alunos lêem desse jeito e chegam até a ter certa fluência, o
que impressiona bem o professor, porém, tal aluno não aproveita o que lê, porque sua leitura não lhe traz
significados, apenas sons da fala. Corrigir esses alunos já é uma tarefa mais complicada, porque incorporaram
esse tipo de leitura como a forma correta escolar. O professor, nesses casos, precisa discutir com esses alunos
os mecanismos de produção da leitura e fazer com que leiam através da memorização de textos, mesmo
curtos.
Alunos que apresentam problemas de naturalidade, de fluência, de concatenação, enfim, dificuldades com a
realização fonética dos elementos prosódicos, precisam de uma comparação entre o que seria uma leitura
exemplar e o que eles fazem.
Ler textos com muita, pouca ou nenhuma ilustração é irrelevante para a leitura, desde que os alunos saibam
exatamente o que têm diante de si. Criança gosta de ler textos com ilustrações. Os desenhos não atrapalham
<324>
a leitura, pelo contrário, podem ajudá-la. Porém, ficar ensinando a criança somente com listas de palavras
acompanhadas de desenhos, de tal modo que o aluno possa ler as letras ou simplesmente adivinhar o que os
desenhos representam, não é uma boa estratégia. Pode-se fazer isso de vez em quando, mas não se deve
propor somente esse tipo de exercício de leitura.
Alguns professores gostam de promover leituras coletivas. Isso ajuda a afastar o medo da leitura individual.
Essa prática é muito interessante, especialmente quando a classe não gosta de ler.
Outra atividade atraente de leitura é fazer jogral, ou seja, a leitura de um texto por várias pessoas, sendo
que, em alguns trechos, há apenas um leitor e, em outros, vários leitores em coro. Algumas poesias se prestam
bem a esse tipo de atividade, como certos poemas de Manuel Bandeira — “Evocação ao Recife”, “Sinos de
Belém”.

INTERPRETAÇÃO DE TEXTO
Três práticas escolares tradicionais
Ao lado do ditado e da cópia, a interpretação de texto tem sido uma das atividades mais tradicionais da
alfabetização com cartilhas. Muitos professores pensam que se trata de uma atividade fundamental e
imprescindível. Assim como o ditado e a cópia, a interpretação de texto passou a ser feita de inúmeras formas,
e os professores raramente param para refletir mais profundamente sobre sua natureza. Há vários pontos
importantes que é preciso considerar, inclusive uma revisão histórica, para entender a atividade de
interpretação de texto como um exercício de alfabetização.
A visão histórica apresentada a seguir tem como objetivo introduzir uma reflexão geral sobre o assunto, sem
entrar em considerações específicas.

Ideografia e leitura
Pela própria natureza, os sistemas de escrita ideográfica propiciam os leitores a refletir mais detalhadamente
sobre os valores semânticos das mensagens escritas. Isso é mais óbvio quando se levam em conta os símbolos
religiosos e os usados para ajudar as pessoas a pensar, meditar, reviver sentimentos fortes de patriotismo, etc.
<325>
Esse tipo de escrita, dos mais antigos, persiste até hoje. Poder-se-ia dizer mesmo que sua finalidade é
despertar a meditação e a emoção (religiosa ou não). Portanto, a leitura que se faz desse tipo de texto é
basicamente interpretativa: quando, por exemplo, uma pessoa apanha uma fotografia e tenta se lembrar,
falando ou simplesmente pensando a respeito de pessoas, coisas ou fatos que a fotografia evoca. Uma leitura
literal, nesse caso, seria algo fora de propósito ou pertinente apenas em caso de uma investigação científica.
Desde os tempos mais antigos, as pessoas cultas discutem o significado das palavras, procurando recuperar
formas e significados antigos. Assim, podem compreender melhor o uso das palavras na sua época. Por
exemplo, para explicar a palavra “pluviométrico”, lembram que, em latim, “chuva” se dizia pluvia e, portanto,
“pluviométrico” tem a ver com “chuva”. Outros exemplos: “televisão” e “telefone” contêm a palavra grega
tele, que significa “longe”. Portanto, “televisão” significa “algo que se vê longe”. “Telefone”, que inclui outra
palavra grega - fone, que significa “som” -, tem o significado de “som longe”. Logo se vê que, no caso da
palavra “pluviométrico”, a referência etimológica ajuda a entender o significado atual da palavra, embora, em
“televisão” e “telefone”, a revelação etimológica ensina mais grego do que português, porque “televisão” e
“telefone” são coisas que não podem ser descritas apenas com o critério dos significados etimológicos, embora
façam parte do significado total dessas palavras as idéias de “algo que se vê longe” e “som longe”.
Essa prática de querer explicar o significado das palavras pela origem histórica tem valor para pesquisas de
lingüística histórica, mas não ajuda muito, nem é conveniente, para estudar o uso atual das palavras na língua.
A própria ciência é vítima do fascínio das palavras e, muitas vezes, fica divagando e sonhando nesse caminho
etimológico.
Esse tipo de procedimento é extremamente comum nas escolas, mesmo quando faz pouco sentido, como no
caso de “televisão” e “telefone”. Porém, estamos tão acostumados a isso que nem sequer questionamos o que
fazemos. Fora do mundo escolar, esse jogo interpretativo faz menos sentido ainda. Explicar para uma pessoa
sem vivência escolar o que é “televisão” ou “telefone”, dizendo a origem das palavras que as compõem, parece
realmente ridículo. Se alguém, por um lapso de memória, esquecesse a palavra exata “televisão”
<326>
e tivesse de comprar uma por telefone, e dissesse apenas “algo que se vê longe”, dificilmente se faria
entender. Imaginar situações como essa é um bom exercício para testar o que hoje definimos como “televisão”
ou qualquer outra palavra da língua.
O que se disse acima não significa que os estudos de lingüística histórica não têm valor. Pelo contrário, são
muito importantes, mas devem ser entendidos corretamente. A língua que falamos hoje é resultado de uma
evolução histórica, mas não deve ser confundida com o que existia antes: português não é latim, menos ainda
grego. O português tem vínculos com essas línguas, mas existe de maneira própria.

A exegese em textos literários


Outra atividade ligada de certa forma ao que se disse antes é a exegese, ou seja, comentários sobre o
significado de palavras para esclarecer com precisão como devem ser interpretadas. A exegese se faz com base
em etimologia e numa tradição ou conjunto de normas (no caso das leis). Uma pessoa pode cometer um
acidente de trânsito doloso, mas não culposo. No primeiro caso, não há crime, mas no segundo sim. Isso é
assim porque a lei distingue “doloso” de “culposo”. Essas palavras devem ser entendidas, portanto, dentro do
contexto legal em que se inserem. Obras antigas são estudadas através de minuciosas pesquisas para as quais a
exegese é fundamental.
O trabalho de exegese dos textos antigos gerou a interpretação de texto, que passou a ser feita,
posteriormente, não mais com textos necessariamente antigos. Qualquer texto passou a servir para um
trabalho de análise exegética. No caso das obras literárias, os comentários (exegese) abrangem. não só a
especificação de palavras, como também de formas de produção de diferentes textos literários (gêneros e
estilos). Posteriormente, algumas ciências orientaram a própria interpretação literária, sobretudo a filosofia, a
sociologia e a psicologia.
Quando a exegese contribui para esclarecer significados que já não são mais transparentes para o leitor
numa dada época, a interpretação de texto enriquece-se. Porém, mesmo na interpretação literária moderna,
encontram-se, por vezes, pessoas que nada mais fazem do que dizer com as próprias palavras o que o autor
disse com as palavras dele. Aqui já não há mais exegese,
<327>
mas simplesmente uma reprodução individualizada de uma obra escrita, uma espécie de reescritura (sem a
arte do autor). Essa atividade é tão comum nas aulas de português, envolvendo textos literários, que até
algumas editoras fazem acompanhar os livros de literatura escolar de formulários e questionários para o aluno
dizer com as próprias palavras o que o autor escreveu, ou preencher as lacunas dizendo do que trata
determinada obra literária.

Interpretação de base filosófica


Os comentários oriundos de estudos filosóficos são muito diferentes porque envolvem não só um trabalho
de exegese, como também costumam vir acompanha dos de reflexões pessoais de quem faz os comentários.
Nota-se, necessariamente, a comparação entre idéias de diferentes correntes filosóficas ou filósofos. Um
filósofo pode escrever um livro sobre as idéias de Aristóteles, por exemplo, dizendo com as próprias palavras o
que o autor disse de mais importante e de interesse para o livro. Porém, escrever um comentário sobre
Aristóteles é totalmente diferente. Exige um longo e árduo trabalho de pesquisa e de estudo. No primeiro caso,
dizemos que houve apenas uma reprodução das idéias de Aristóteles; mas, no segundo caso, houve de fato
uma interpretação. A interpretação de texto deve ser, sempre, necessariamente criativa e individualizada.

Questionário para interpretação de texto


Matérias como matemática, física, química, geografia, bem como história e português, passaram a ter a partir
da década de 60 um esquema diferente de tratamento de compreensão de texto. Naquela época, a escola
começou a pedir que os alunos respondessem a questionários, cujos objetivos eram reproduzir algo segundo as
expectativas do professor ou do livro didático. As respostas, portanto, podiam até vir dadas de antemão no
Manual do Professor, e todos os alunos acertariam se conseguissem dar a mesma resposta. Nada de
interpretação, nada de pesquisa individual sobre o assunto, e, principalmente, nada de opinião pessoal, fruto
de pesquisas sérias ou não. Bastava reproduzir o modelo dado pelo professor ou pelo livro didático.
Esse tipo de tratamento também passou a ser dado a obras literárias, nos livros didáticos e nas aulas de
português. Obviamente, tal atividade deveria ser abolida
<328>
da escola, em todas as matérias. Simplesmente reproduzir um modelo não é um procedimento pedagógico
recomendável quando os alunos podem e devem usar da reflexão para aprenderem.

Análise do discurso
Há, ainda, um tipo de interpretação de texto com o qual as pessoas são levadas a deduzir do texto
implicações de diversas ordens, como reflexões filosóficas, psicológicas, ideológicas, etc., que são explicitadas
pelo leitor que interpreta, mas que não foram objeto de preocupação direta do escritor. Certas análises do
discurso, por exemplo, desenvolvem todo o seu trabalho nessa linha. Já não se pode dizer que esse tipo de
trabalho seja uma interpretação de texto propriamente dita, mas uma análise do conteúdo lingüístico,
psicológico, filosófico, ideológico, psicanalítico, etc., inerente a alguns aspectos do conteúdo do próprio texto.
É por essa razão que os lingüistas chamam essa tarefa de análise do discurso.
Outro tipo de análise do discurso está voltado para o estudo dos mecanismos lingüísticos que possibilitam a
um texto ter determinadas características e não outras. Aqui a base do estudo são as estruturas lingüísticas,
não as noções filosóficas, psicológicas, ideológicas, etc.
Mais semelhante ao estilo apresentado logo acima são os estudos de lingüística textual e de análise da
conversação. A lingüística textual está mais preocupada com os mecanismos de coerência e coesão, que fazem
com que o texto seja uma unidade e tenha uma
estrutura bem montada. A análise da conversação preocupa-se especialmente com o estudo dos mecanismos
lingüísticos que permitem que duas ou mais pessoas construam conjuntamente um texto, como acontece nos
diálogos, conversas, debates, etc.
Lingüisticamente, estudar as estruturas que dão forma a um texto é a melhor maneira de fazer uma
interpretação de texto. Um texto tem estruturas semânticas e gramaticais (sintaxe, morfologia, fonologia, etc.),
além de estar inserido num contexto (pragmática,
sociolingüística, etc.).

Os pretextos da interpretação de texto


Pode-se, pois, ver que o que se chama interpretação de texto apresenta diversas formas e significados. Em
resumo, podemos juntar tudo nos seguintes tipos: análise
<329>
literal de palavras, frases, temas ou assuntos tratados; estudos etimológicos; análise exegética; comentários
pessoais dos mais diversos tipos, extrapolações de natureza filosófica, psicológica, ideológica, etc.; análise do
discurso de base ideológica, argumentativa ou simplesmente estrutural, envolvendo apenas os elementos
lingüísticos determinados pela gramática; lingüística textual e análise da conversação.
Essas diferentes abordagens de um texto são interessantes e têm seu valor. Porém, quando uma delas
predomina, isso revela uma concepção de linguagem fortemente marcada. Por exemplo, quem estuda apenas
o significado literal de palavras de um texto, ou procura entendê-lo pela etimologia das palavras-chave, revela
uma concepção de linguagem muito ingênua, desconsiderando as complexas relações que as unidades
lingüísticas estabelecem entre si e com o mundo em que se inserem. Por outro lado, uma pessoa que só sabe
ver interpretações psicanalíticas, ideológicas, etc. mostra uma concepção de linguagem em que os elementos
lingüísticos são apenas pretextos para considerações de outra ordem.

Lingüística e interpretação de texto


Lidar com o texto, portanto, tem envolvido tradicionalmente a própria maneira de ser da linguagem, dos
lingüistas, da gramática de uma determinada língua e de elementos não-lingüísticos, formando um contexto no
qual o texto assume seu valor e significado pleno. Em outras palavras, para se ter uma compreensão ampla de
um texto (oral ou escrito), é preciso saber tudo sobre a linguagem e sobre o mundo a que essa linguagem se
refere. Estudar essa questão e explicitar todos os fatos e fenômenos envolvidos, em última análise é tarefa da
lingüística. Esse estudo é tão complexo que leva os lingüistas a acharem que estão apenas no começo de uma
compreensão da linguagem humana no seu todo. Mais difícil ainda é formular em palavras os resultados das
pesquisas sobre a linguagem. Por essa razão, a lingüística tem se mostrado uma ciência um tanto enigmática
para quem estava acostumado apenas com a gramática normativa tradicional.
Se, por um lado, é difícil entender e descrever a linguagem na sua globalidade, por outro lado, o uso da
linguagem no dia-a-dia é algo muito familiar e até banal para os falantes. No mundo todo, as pessoas falam e
ouvem como se isso fosse algo tão familiar, fácil e óbvio
<330>
como andar e comer. Isso traz uma nova dimensão ao assunto. Os falantes dizem seus textos ou escrevem-
nos. Os ouvintes ouvem textos e os leitores lêem textos escritos e fazem isso com perfeição, sem precisar
enunciar explicitamente todas as regras de tudo o que está envolvido nessas atividades. Somente quando
surge uma dúvida específica, por exemplo, com relação a uma palavra desconhecida ou usada de modo
incomum, ou quando surge uma curiosidade a respeito dos conhecimentos relacionados com o texto, os
usuários da língua necessitam de uma reflexão particular para ajuda-los a entender melhor um texto. Caso
contrário, os textos são assumidos e consumidos como auto-suficientes. Aliás, essa é uma das funções da
linguagem: achar que o interlocutor é capaz de entender o que ouve ou lê. Sem esse pressuposto, não faz
sentido sequer abrir a boca para falar ou se pôr a escrever. O simples ato de pensar é falar consigo próprio,
supondo que o indivíduo é capaz de entender o que ele formula lingüisticamente. Na verdade, toda descoberta
feita pelo homem nas ciências, nas artes e na tecnologia só passou a existir no momento em que foi possível
pensar aquilo que se fez, isto é, colocar as idéias em palavras, e essa é uma atividade tipicamente lingüística.
Na Bíblia, se lê que o próprio Deus usou a palavra para criar o mundo...

É preciso interpretar um texto?


Ao observar os usos da linguagem, notamos que uma pessoa conversa com outra e, agindo assim, não
precisa ficar fazendo perguntas de vez em quando para saber se seu interlocutor está entendendo ou não.
Quando o interlocutor não entende algo, ou pensa que está entendendo errado, ele simplesmente faz
perguntas para resolver suas dúvidas. Porém, certo tipo de pergunta, ou mesmo uma quantidade grande delas,
denota que está acontecendo algo de errado. Perguntas que procuram interpretar o texto são diferentes
daquelas que aparecem naturalmente numa conversa, conduzindo um assunto. Nesse último caso, as
perguntas têm uma função de construção do próprio texto que está sendo produzido; no caso anterior, não.
Em outras situações da vida, como, por exemplo, quando alguém está assistindo a um filme, a um programa
de televisão, ou visitando um museu, seria ridículo entregar aos telespectadores ou visitantes um questionário
de interpretação de texto para saber se eles entenderam corretamente o que viram. Isso não se faz
<331>
nem com os programas infantis. Seria interpretado como uma forma de aviltamento do espectador, um modo
de dizer que ele não é capaz de entender as coisas e que sua capacidade intelectual precisa ser monitorada. No
fundo, seria uma forma de negar a racionalidade do homem. Por mais pobre, miserável e estúpido que alguém
seja, ainda assim é um ser dotado de racionalidade e infinitamente mais complexo do que qualquer outro
animal ou máquina. É justamente porque o homem possui a racionalidade que ele pode ofender, desprezar,
menosprezar e humilhar seu semelhante. Por isso, perguntar às vezes pode ofender. Se alguém leu ou ouviu
um texto em que está dito “Maria comeu bolo de aniversário” e encontra um exercício de interpretação de
texto, que pede para ela dizer quem comeu o bolo, que tipo de bolo ela comeu, se comeu o bolo inteiro ou
apenas um pedaço, isso pode até ser respondido, mas o fato de se apresentar tais perguntas é, sem dúvida,
uma ofensa. O objetivo de perguntar é a busca de uma informação nova, e, nesse caso, as perguntas servem
simplesmente para averiguar se o leitor é capaz de responder, e nenhuma informação nova é solicitada.
Mudando um pouco o contexto, isso seria semelhante a um professor de ginástica que perguntasse aos seus
alunos se eles sabem o que é andar, se movimentar, parar, ou ainda, depois dos exercícios, perguntar a eles se
estiveram parados ou se movimentando.

Entender o texto no seu contexto


Chegamos, assim, a um ponto importante: como se entende um texto e o que se entende dele? Há
diferenças, se o texto for oral ou escrito?
Pelas considerações feitas acima, vimos que a resposta a essas perguntas implica um conhecimento global da
linguagem e do mundo. Vimos também que, apesar disso, as pessoas utilizam perfeitamente a linguagem,
inserida no mundo, sem saber explicitar as regras que a regem. Portanto, cada um entende um texto, seja ele
oral ou escrito, pelo simples fato de ser um usuário de uma determinada língua. Se alguém diz para um falante
de português “Maria comeu bolo de aniversário”, a comunicação ocorre porque o falante sabe dizer dessa
forma e sabe que, agindo assim, seu ouvinte, um falante de português como ele, entende o que foi dito, e esse
conhecimento é da dimensão exata que os falantes atribuem ao que se disse e ao que foi ouvido.
<332>
Questionar o processo de produção da fala ou de recepção da mesma é questionar a própria capacidade de
quem fala ou de quem escuta.
No entanto, alguém pode observar que também se constata que há casos em que pessoas (até muito
inteligentes), que entendem errado o que ouvem, come tem enganos com a linguagem, e assim por diante. Na
verdade, esse tipo de objeção nada tem a ver com o que foi dito acima; refere-se ao fato de a linguagem se
prestar não só a comunicar de forma correta, mas também a carrear informações que têm por objetivo induzir
o interlocutor a erro ou desafiá-lo a escolher a interpretação necessária em meio a várias opções. Em outras
palavras, a linguagem pode trazer consigo muitas armadilhas para quem fala e para quem ouve, porque isso
também faz parte das funções da linguagem. A linguagem não é apenas lógica, inequívoca e completa, como
alguns gostariam que fosse. Seu emprego é um jogo que põe em desafio constante a natureza racional de seus
usuários.

O princípio da literalidade
Como a linguagem não é um exercício lógico e completo de informações, falantes e ouvintes têm sempre
mil opções de dizer o que pretendem e de tirar de um texto toda sorte de interpretações. Os usos sociais da
linguagem, todavia, encarregam-se de estabelecer certos limites, para que esta seja um instrumento útil aos
homens. Um desses limites é a interpretação literal. O princípio da literalidade exige que todo falante e ouvinte
tenham, no sentido literal do que dizem ou ouvem, o ponto de partida e a referência básica para toda e
qualquer interpretação complementar que se queira atribuir ao texto. Por interpretação literal, entenda-se o
uso comum que se faz das palavras. Portanto, se alguém disser: “O pé da cadeira quebrou”, a palavra “pé”,
aqui, tem como sentido literal “o pé da cadeira” e não o significado de uma parte do corpo humano. Tanto
assim é verdade que ninguém pensa em parte do corpo humano quando encontra a expressão “pé da cadeira”.
Somente as pessoas interessadas nos estudos etimológicos pensam nessas hipóteses. Literal, portanto, significa
o que está dito, do jeito que está dito. Pensar em parte do corpo, nesse caso, é levar em conta algo que não foi
dito, nem pensado, mas simplesmente associado à palavra “pé”, uma vez que ela possui esse significa do, mas
em contexto muito diferente.
<333>
Quando ocorrem interpretações diferentes sobre um mesmo fato ou enunciado é porque todo texto precisa
ser entendido dentro de um contexto lingüístico, de coesão, coerência e, depois, referencial, ou seja, do
mundo em que o texto se insere.
Quando o contexto lingüístico não é favorável, ou quando não se dispõem das informações referenciais
adequadas, interpretar um texto pode ser uma tarefa inútil ou, no máximo, de solução duvidosa, sem a
possibilidade de se chegar a um resultado seguro.
Para entender o que se lê, o que se ouve ou, mesmo, para produzir um texto que está sendo lido ou ouvido,
o falante e o ouvinte/leitor utilizam-se de todos os conhecimentos já adquiridos, quer com relação aos usos da
linguagem, quer com relação à interpretação de uma cosmovisão que cada um tem para si. Em outras palavras,
cada um usa a linguagem segundo seu próprio metabolismo intelectual. Ora, se isso é assim, por que se
preocupar com o que as pessoas dizem ou entendem? É por essa razão que a sociedade não faz roteiro para as
pessoas falarem nem questionários de interpretação de texto após uma conversa qualquer. Essas atividades de
produção e de compreensão da linguagem são totalmente individuais e cada um responde por si. Se fosse
diferente, a linguagem seria algo inconcebível na sociedade. Do jeito que ela se apresenta, é algo fascinante,
desafiador e maravilhoso.

Interpretação de texto e estudo escolar


Como a escola é um lugar onde as pessoas aprendem, é natural que os professores se preocupem com o
progresso dos alunos. Isso inclui, entre outras coisas, avaliar a aprendizagem. É por essa razão que os
professores acham que precisam fazer interpretação de texto, para checar se os alunos entendem o que lêem.
Essa avaliação, sem dúvida alguma, faz parte das preocupações da escola. Porém, é preciso entendê-la
corretamente. Não só faz sentido, como é necessário que o professor faça interpretação de texto, quando se
trata de textos científicos, como os de matemática, geografia, história, etc. Até mesmo uma interpretação
literária pode e deve ser feita. Pode-se e deve-se fazer análise lingüística dos textos.
Porém, não é isso o que se encontra nos exercícios tradicionais de interpretação de texto. Perguntar qual é o
tema de um romance não é fazer análise literária. Mandar o aluno preencher as lacunas com palavras ou
<334>
citações de um texto não tem nada a ver com o tipo de interpretação de texto mencionada acima; é
simplesmente um exercício idiota ou, quando muito, um passatempo. Um aluno pode e deve memorizar os
procedimentos científicos, a cronologia histórica, as características geográficas, mas não são os exercícios de
preencher lacunas que vão lhe dar as condições para isso:
estudar envolve estratégias mais inteligentes.
Uma delas é fazer com que uma leitura puxe outra, e um texto puxe outro, um trabalho leve a outro e assim
por diante. Um aluno que interpreta bem um texto deve ser capaz de aplicar o que estudou, e o fato de fazer
corretamente algo relacionado com o conteúdo do texto é prova mais do que suficiente de que ele leu e
entendeu corretamente. Se errar, pode-se voltar ao texto e ver qual ponto não ficou claro, razão pela qual o
aluno não conseguiu fazer o que lhe foi pedido.
Por trás dessa discussão, mais uma vez, está a idéia de que a escola não deve ensinar apenas um
determinado conteúdo aos seus alunos, mas deve, principalmente, ensinar como estudar esse conteúdo. Em
outras palavras, ela precisa cuidar muito atentamente do modo como os alunos estudam. Fazer interpretação
de texto pode ser uma catástrofe para a vida escolar do aluno se ele chegar à conclusão de que só pode
aprender algo respondendo a perguntas ou, pior ainda, se passar de ano pensando que aprendeu, ao ver que
respondeu corretamente às perguntas que lhe foram feitas, de acordo com o livro ou com a matéria que o
professor passou na lousa.
Nesse tipo de atividade, falta a reflexão criadora do aluno, falta a iniciativa para construir a própria
aprendizagem, falta a imaginação dedutiva que o leva a propor para si coisas novas, a partir de coisas velhas
que aprende. Isso tudo mostra que o professor que estimula seus alunos a trabalhar tem todas as condições de
que precisa para avaliá-los. Por isso, não necessita fazer uma lista de perguntas, no fundo geralmente
descabidas.
A mania de a escola querer controlar a vida intelectual das pessoas cria raízes na sociedade e dá frutos na
nossa cultura. Muitos intelectuais ficam cheios de pruridos quando falam, porque estão sempre supondo que
serão mal entendidos e, conseqüentemente, outras pessoas irão achar que eles são imbecis. Quando se fala e
se ouve, há sempre a possibilidade de enganos. Isso faz parte dos usos da linguagem, bem como discutir e
rever o que foi dito ou entendido. Esse é o jogo da linguagem, e nenhum texto ou falante está imune a esse
risco.
<335>
O tormento em que vivem certas pessoas tem sua origem nesse medo de serem mal entendidas quando usam
a linguagem porque a escola sempre teve essa atitude com elas.
Portanto, como vimos, fazer interpretação de texto faz sentido quando se procede a uma análise científica do
mesmo, quer para aprender conteúdos específicos das ciências e das artes, quer para aprender sua natureza
lingüística. Não faz sentido fazer interpretação de texto com o simples pretexto de ver se o aluno entendeu ou
não o que leu, através de perguntas de identificação de palavras ou de idéias.

Vale a pena fazer interpretação de texto?


A escola precisa se perguntar se vale ou não a pena fazer interpretação de texto. O que acontece se não
fizer? A resposta a essas perguntas fica mais clara quando se leva em conta que uma verdadeira interpretação
de texto tem mais a ver com as estruturas lingüísticas textuais do que com seu conteúdo. Discutir o conteúdo
de um texto é discutir as idéias do autor. Nesse caso, é imperativo que outros conhecimentos, além dos
detectados no texto, sejam evocados para que a discussão seja bem feita.
Além disso, a escola precisa se questionar sobre os textos que ela usa para fazer interpretação de texto. Os
professores fazem interpretação somente de textos literários (ou presumivelmente). Ora, esse tipo de texto é o
menos recomendável, uma vez que os exercícios de interpretação visam apenas a detectar a identificação de
palavras e idéias. Pior ainda, os textos usados nas primeiras séries são escritos de tal modo que permitem às
crianças uma leitura tranqüila. Textos científicos, que eu saiba, não são usados para fazer interpretação de
texto e são justamente os mais indicados para isso. A formulação de problemas de matemática tem
características próprias, como a poesia, o conto, a piada, etc. Estudar as características estruturais que fazem
com que esses textos sejam do jeito que são consiste num exercício de interpretação de texto que a escola
precisaria fazer.
A outra afirmação clássica apresentada pelos professores para o uso das tradicionais interpretações de texto
é o fato de alguns alunos virem de famílias pouco acostumadas com textos escritos e com o uso escolar desse
material nos estudos. Resumindo, os professores acham que passando os tradicionais exercícios de
<336>
interpretação de texto, esses alunos irão aprender a fazer o que a escola espera deles ou seja, resolver seus
problemas escolares. Alguns professores estão profundamente convencidos disso uma vez que sempre fizeram
assim e obtiveram resultados muito satisfatórios. Mais uma vez, deve se dizer que esses professores estão
satisfeitos com esse tipo de trabalho e resultado por que não conhecem outro modo de trabalhar nem os
resultados que poderiam ter, se optassem por um tipo de trabalho diferente Em segundo lugar, exercícios de
interpretação de texto não dão a base cultural necessária para o que alegam. As crianças pobres conseguem
isso à medida que tomam cada vez mais contato com a leitura e se põem a ler mais e mais. Então, é a leitura
que propicia os bons resultados apontados pelos professores e não os exercícios de interpretação. Esses
professores devem ver as coisas também a longo prazo e levar em consideração o mal que os exercícios
tradicionais de interpretação de texto trazem para os alunos, fazendo deles pessoas que não cortam o cordão
umbilical da alfabetização e, conseqüentemente, não adquirem a liberdade de ler um texto e refletir sobre ele
com autonomia.
Quando uma pessoa está lendo um texto e encontra uma palavra cujo significado desconhece, é natural que
pergunte. O mesmo acontece quando o conteúdo do que está lendo não é compreendido. Por essa razão, o
professor deve dizer para os alunos que busquem a solução para essas dúvidas perguntando, procurando no
dicionário ou de outras formas. Como o professor não pode saber de antemão quais são as dúvidas de seus
alunos, não pode tomar a iniciativa antes deles. Isso não tem nada a ver com interpretação de texto
propriamente dita. E uma prática saudável que deve acompanhar toda leitura.
Estamos, pois, diante da seguinte situação: deixar de lado os exercícios tradicionais de interpretação de
texto, que procuram apenas a identificação de palavras ou de idéias. Em lugar disso, o professor irá promover
estudos específicos sobre os mais variados textos, levando em consideração os diversos interesses suscitados
pelos textos. Assim, um texto literário pode servir para discutir literatura; uma poesia pode servir para estudar
o que é poesia.
Obviamente, um professor não vai estudar o que é poesia após a leitura de cada poesia. Interpretação de
texto como essa se faz quando é necessário ou conveniente,
<337>
e não com todo texto que se lê. O professor pode estudar a estrutura de uma piada, de um problema de
matemática ou de qualquer tipo de texto. Pode comparar um texto de jornal com um texto de livro e ver as
diferenças. Determinados assuntos podem ser analisados, observando-se como vêm expressos em tipos
diferentes de textos, como cartas, notícias de jornal, estudo técnico sobre o assunto, etc.

Interpretar um texto ou debater uma idéia?


Uma atividade importante, que a escola deve cultivar com carinho, é o debate. Nesse caso, o texto
representa apenas uma das idéias em discussão. Os alunos não vão simplesmente responder a perguntas de
identificação, mas irão, pelo contrário, apoiar ou rejeitar o que o autor disse, tendo em vista os argumentos
que entram na discussão que estão fazendo. Essa é uma das melhores maneiras de avaliar se os alunos
aproveitaram muito ou pouco do que leram. Assuntos mais técnicos permitem discussões mais fáceis, assuntos
mais polêmicos suscitam opiniões diferentes, e histórias de fantasia permitem reelaborações críticas da
história e de sua forma de apresentação que também representam atividades muito úteis na escola.
A grande vantagem do debate sobre a interpretação de texto é que permite que as pessoas possam
responder, levando em conta o que ouvem e, dessa forma, elaborar por etapas um comentário mais completo
a respeito do que pensam. Um grande problema das interpretações de texto é a falta de possibilidade de
estender a exposição de uma idéia, o que causa freqüentemente confusões, estranhas conceituações e
conclusões falsas.

Atividades alternativas à interpretação de texto


A atividade de leitura não deve implicar necessariamente a interpretação de texto. A leitura deve servir para
o aluno buscar informações, instruções, para estudar, como também, para se distrair, se divertir, descansar,
etc. A melhor maneira de perder um leitor é pedir para ele preencher uma ficha de avaliação ou de
interpretação de texto. Essas fichas de leitura só servem para destruir o prazer de ler. Em lugar disso, a escola
deve ensinar os alunos a tomarem notas de coisas bonitas e interessantes que leram, colecionando
<338>
esses excertos, versos, pensamentos, etc. em cadernos de anotações pessoais. É claro que cada um vai
escolher a atividade que achar mais interessante. Seria ridículo obrigar uma classe a colecionar as mesmas
coisas.
Fazer resumos de lições é uma boa prática escolar. Aqui também, cada um faz de seu modo. Esses esquemas
devem ser personalizados, e, portanto, o professor promove a atividade, pode discutir o que cada um fez e
ensinar o que for necessário. Esse tipo de trabalho com texto deveria ser a grande preocupação dos
professores de todas as matérias, e não só dos de português e de alfabetização.
Uma prática muito usada por alguns professores, e que pode substituir com vantagens os exercícios
tradicionais de interpretação de texto, é partir de um texto para fazer outro, seja recontando uma história, seja
adaptando o conteúdo a outra forma de texto. Um aluno lê uma história sobre o trânsito ou a vida de alguém
famoso e, depois, escreve com as próprias palavras o que se lembrar do que leu. Ou então, o aluno lê uma
poesia e transforma-a numa carta ou vice-versa. Esse tipo de trabalho é muito recomendável, pois ensina as
características dos textos.
Muito do que foi dito acima serve para a prática do professor em séries mais adiantadas. Na alfabetização, o
mais importante é dar chance aos alunos de ler e escrever o máximo possível, como atividade individual. Um
professor alfabetizador não precisa, na verdade, se preocupar em trabalhar os textos de maneira mais técnica:
o melhor é produzi-los e ler.
Outra questão vinculada à interpretação de texto é o ensino da gramática. Reduzir o ensino de português à
análise de textos é absurdo. Querer tirar todo o ensino gramatical de textos é catastrófico. Se os textos forem
os de leitura comum, há ainda o inconveniente de despertar nos alunos aversão à leitura e aos estudos em
geral, porque acham que texto só serve como pretexto para o estudo da gramática.

Os textos da interpretação de texto


Finalmente, e preciso dizer alguma coisa a respeito dos textos que os professores dão para seus alunos
lerem. De modo geral, especialmente na alfabetização, a impressão que se tem é que a grande maioria dos
professores usa os piores textos como exemplo para os alunos. Alguns escolhem os textos semelhantes aos
<339>
encontrados nas cartilhas, que são os piores textos já produzidos por alguém. Outros adaptam letras a canções
conhecidas para ensinar determinados conteúdos, e o resultado literário apresentado é simplesmente
horroroso. As escolas têm recebido um grande número de livros de história de fantasia, à moda dos contos de
fada modernos. Destes, uns poucos livrinhos são bem-feitos e têm valor. Não é raro encontrar livrinhos com
histórias sem pé nem cabeça, ridículas ou, quando muito, histórias para boi dormir, como se costuma dizer.
Alguns autores pensam que o conteúdo de livros infantis deve ser inverossímil, porque as crianças vivem no
mundo da fantasia. Todo o mundo, mesmo os adultos, vive no mundo da fantasia. Todo o mundo, mesmo as
crianças, tem senso da realidade. Um excesso de leitura que navega em fantasias absurdas não pode ser uma
boa prática escolar.
Além desse tipo de livros, a escola deve incentivar os alunos a lerem livros sérios, que tratem de coisas
sérias. Tudo o que se diz para um adulto pode ser dito para uma criança, bastando escrever de maneira
adequada para um ou para outro. Alunos que só lêem livros de histórias de fantasia dificilmente depois vão ler
um livro de matemática ou de história diferente do livro-texto adotado pelo professor nas séries mais
adiantadas.
A partir de 1964, com a falsa alegação de proteger o mercado editorial nacional, os editores praticamente
pararam de publicar traduções das grandes obras literárias estrangeiras. Nos últimos anos, porém, essas obras
voltaram às prateleiras das livrarias. Felizmente, hoje é possível comprar muitas obras-primas da literatura
universal até em bancas de jornal. Apesar dessas facilidades atuais, ainda raramente se vê um grande escritor
entre os textos que os alunos lêem, sobretudo nas primeiras séries, porque os professores acham que seus
alunos são incapazes de entender. Com isso, ficam privados do que existe de melhor em termos de texto e de
leitura, simplesmente porque seus professores são preconceituosos com relação à capacidade de entender de
seus alunos.
A salvação não é fazer interpretação de textos, mas dar aos alunos o que há de melhor: a leitura dos grandes
escritores. Os frutos que cada um vai colher irão depender do modo como cada um vai cultivar a própria vida
como leitor. Para a escola, já seria muito se convencesse os alunos a se tornarem leitores.
<340>

13
Ortografia da língua portuguesa

BREVE HISTÓRIA DA ORTOGRAFIA DA LÍNGUA PORTUGUESA


A influência do sistema latino
A língua portuguesa veio do latim. Os romanos estabeleceram colônias na península Ibérica, implantando a
cultura latina entre os povos da região. Os árabes vieram depois e dominaram a península do século V ao
século IX. Durante essa época, Portugal não passava de uma província dominada pela Espanha. Logo depois da
expulsão dos árabes, Portugal tornou-se um país independente da Espanha.
Não se sabe quais línguas eram faladas ali, antes da chegada dos romanos. Em Portugal, certamente era
falada alguma língua celta e, na Espanha, uma ou mais línguas iberas, além do basco. O latim foi se fixando
nessa colônia, adquirindo seu sotaque próprio, firmando-se inicialmente como dialeto e, depois, como língua.
No século X já se podia distinguir claramente o espanhol do português. Havia também o galego, falado na
Galícia, ao norte de Portugal, hoje território espanhol. O basco e o catalão sobreviveram como línguas de
minorias no território espanhol.
Em Portugal, no final da Idade Média, o latim era usado nos documentos oficiais, entre as pessoas cultas,
nas escolas, nos livros e nos documentos religiosos. O povo, sempre pobre e ignorante, compreendia cada vez
menos o latim e usava quase exclusivamente o português, no dia-a-dia. As pessoas que sabiam latim escreviam
de acordo com as normas estabelecidas, embora se possa encontrar nessa época um latim bem diferente do
latim clássico. A ortografia, como sempre, resiste mais às variações dialetais, dando a impressão de que a fala
não mudou muito. Erros de grafia têm sido usados por estudiosos para levantar hipóteses a respeito das
variações da fala do latim em diferentes regiões. Esse é um método não muito seguro, mas que permite um
começo de pesquisa, que demonstrará depois se as hipóteses se sustentam ou se são mero fruto de erros de
escrita.
Por outro lado, as pessoas sabiam que, se o latim podia ser escrito, por que não usar o mesmo sistema com
adaptações para escrever também o português, o espanhol, o francês? A primeira resistência à escrita veio do
fato, que se tornava notório na escrita, de que essas línguas ainda pareciam dialetos do latim, uma espécie
<342>
de latim estropiado. Com o aumento do sentimento de nacionalismo e de independência desses povos, a
língua vernácula passou a ocupar o lugar da norma culta, que antes era o latim clássico. Por volta do século X o
latim era usado apenas em livros e em circunstâncias muito específicas e não mais no dia-a-dia. Naquela época,
o latim já não era mais a língua do povo nem mesmo em Roma; lá falava-se o romanesco.
Com o surgimento das primeiras obras literárias nas línguas vernáculas, tornou-se imperativo que a literatura
continuasse a ser escrita nessas línguas, deixando o latim para algumas obras científicas.
Como as pessoas estavam acostumadas com o alfabeto latino, passaram a usar esse sistema para escrever.
No princípio, a adaptação das línguas apresentou muitas variações, revelando uma espécie de transcrição
fonética, misturada com representações ortográficas próprias do latim. Esbarrando na variação dialetal, as
palavras foram adquirindo uma forma padronizada pelo uso mais constante, fixando-se a ortografia que
deveria valer para todos os usuários e ser um modelo para o ensino.
No nosso caso, como o português não era latim, algumas modificações no sistema de escrita eram
inevitáveis, sobretudo nas relações entre letras e sons. Somente a ortografia iria, depois, definir com precisão o
valor das letras no sistema de escrita da nova língua. A influência árabe deixaria sua marca com o uso dos
acentos gráficos para marcar diferentes qualidades vocálicas. A escrita em Portugal também sofreu influência
da escrita praticada na Itália, na França e sobretudo na Espanha, onde havia centros culturais de grande
importância na época.

Documentos antigos
Um grande estudioso da língua portuguesa, José Lei te de Vasconcellos, tem dito que o documento mais
antigo em língua portuguesa, misturada com o latim da época, data de 1161. Trata-se de um título de venda.
Nesse documento, que é bem curto, lê-se: “deslo rriuolo ate no rego que uai por a uila”... (a letra u é igual à
letra V). O segundo documento mais antigo data de 1193 e é o seguinte:
IN NOMINE CHRISTI NOMINE. AMEN. Eu Eluira Sanchiz offeyro o meu corpo áás virtudes de Sam Salvador do
moensteyro de Vayram, e offeyro co’ no meu
<343>
corpo todo o herdamento que eu ey en Centegãus e as três quartas do padroadigo d’essa eygleyga e todo hu
herdamento de Crexemil, assi us das sestas como todo u outro herdamento: que u aia u moensteyro de
Vayram por en SAECULA SAECULORUM. ÁMEN.

Fecta karta mense Septembri era MCCXXIX!.


Menendus Sanchiz testes. Stephanus Suariz testes. Vermúú Ordoniz testes. Sancho Diaz testes. Gonsaluus Diaz
testes.

Ego Gonsaluus Petri presbyter notauit.

Um documento interessante sob vários pontos de vista é a famosa carta de Pero Vaz de Caminha, contando
o descobrimento do Brasil. A ortografia que se vê no texto pode ser sentida no pequeno trecho abaixo:

afeiçam deles he seerem pardos maneira dauerme lhados de boõs rrostros e boos narizes bem feitos. amdam
nuus sem nhuua cubertura. nem estimam n huua coussa cobrir nem mostrar suas vergonhas, e estam açerqua
disso com tamta jnocençia como teem em mostrar orrostro. traziam ambos os beiços de baixo furados e
metidos por eles senhos osos doso bramcos de compridam dhuua maão travessa e de grosura dhuu fuso
dalgodam e agudo na põta coma furador, mete nos pela parte de dentro do bei ço e oque lhe fica antre obeiço
eos demtes he feito como rroque denxadrez e em tal maneira o trazem aly emcaxado que lhes nom da paixã
nem lhes tor ua afala nem comer nem beber, os cabelos seus sam coredios e andauã trosqujados de trosquya
alta mais que de sobre pemtem deboa gramdura e rrapados ataa per cima das orelhas...

Observe, entre outras coisas, a palavra “cubertura” escrita com U, “coussa” escrita com SS, “grosura” e ‘
escritas com apenas um S. Perceba o uso do Ç em “açerqua” e “jnocemçia” e o uso de M em vez de N em
muitas palavras como “tamta”, “bramcos”. Compare “demtes” com “dentro”. Veja ainda o não-registro do
ditongo AI em “emcaxado”. Há ainda fatos de segmentação, como “os beiços” e “obeiço”. A questão da carta
não se refere apenas à ortografia em uso na época, mas é evidente que o autor variava bastante a forma de
grafar por iniciativa própria.
<344>

Tentativas de reforma e unificação


O que não tem faltado, na história da língua portuguesa, é gente interessada em mudar a ortografia.
Quanto mais se fazia nesse sentido, percebia-se logo que piorava, até que chegamos ao final do século passado
com uma situação tão caótica que se tornava imperativo tomar uma providência drástica. Certamente, veio
agravar em muito a enorme quantidade de livros e de material impresso que começava a ser produzida. Ainda
hoje, é fácil entrar numa biblioteca e encontrar livros antigos, nos quais podem ser vistas as mais diversas
formas de grafar as palavras.

Primeira unificação das ortografias


Começou em Portugal, no final do século passado, um movimento de reforma ortográfica que passou a
contar com o apoio da Academia das Ciências de Lisboa e do governo. Gonçalves Viana publicou sua famosa
Ortografia Nacional em 1904, com o subtítulo: Simplificação e un sistemática das ortografias portuguesas. Uma
comissão foi formada com a presença de Cândido de Figueiredo, Gonçalves Viana, Carolina de Michaelis, Leite
de VasconceLlos e Adolfo Coelho. A comissão encontrou dificuldades para contentar a todos e o projeto de
reforma foi se arrastando no tempo.
A proposta de Gonçalves Viana procurava aproximar a ortografia da fonética no que fosse possível,
sugerindo formas “mais simples” e “seguindo regras”. Sua proposta foi em grande parte incorporada à
Ortografia que usamos hoje. Mas ele propunha coisas mais audaciosas, como escrever FICSO (fixo), PROSSIMO
(próximo), ELEJER (eleger), PAJINA (página), ou ainda: TAM (tão), EMQUANTO (enquanto), ÇAPATO (sapato),
etc.

Primeira reforma ortográfica oficial no Brasil


No Brasil, a recém-criada Academia Brasileira de Letras, sob a presidência de Machado de Assis, recebeu em
25 de abril de 1907 um projeto de reforma ortográfica proposto pelo acadêmico Medeiros e Albuquerque. O
projeto objetivava simplificar ao máximo a grafia das palavras, aproximando-se do modelo de Gonçalves Viana
e de Cândido de Figueiredo. A discussão foi calorosa e mesmo naquela sessão já apareceu quem quisesse
reformar a reforma. Carlos de Laet manifestou-se revoltado
345
contra a reforma, declarando em seu discurso:
“Assim — vou concluir — sou infenso à miseranda reforma, julgando-a, como tenho demonstrado, —
contraproducente, selvagem, anti-patriotaa, inoportuna, descriteriosa, anti-philosophica, mal-fundamentada e
ridícula:” Apesar da discussão, a reforma acabou aprovada com emendas. A regulamentação do disposto em
1907 aconteceu somente em 1912.
As reformas da reforma ortográfica
Em 1915, Silva Ramos, da Academia Brasileira de Letras, propôs ajustar o sistema ortográfico brasileiro ao
português de 1911. A proposta chegou até o Congresso Nacional e foi rejeitada. Em 1919, por iniciativa do
acadêmico Estrada, a Academia Brasileira de Letras rompe as negociações com a Academia das Ciências de
Lisboa, no sentido de procurar uma unificação das ortografias oficiais. Em 1929, a Academia Brasileira de Letras
propõe um novo sistema ortográfico.
Um novo esforço de unificação dá-se em 1931, com a participação das duas Academias, chegando-se a um
acordo em 30/04, e ficando como base (regras) o estabelecido na ortografia portuguesa de 1911. O governo
brasileiro aprova o acordo com o decreto 20/08 de 05/06.
O decreto 20 028 de 02/08 de Getúlio Vargas torna obrigatório o uso da ortografia oficial em documentos e
nas escolas. Curiosamente, apesar de tudo estabelecido, o ministro Gustavo Capanema solicitou de uma
comissão especial um novo projeto de reforma ortográfica, entregue em 21/12/1937, que foi, porém, ar
quivado. Em 1938, no entanto, Capanema faz aprovar o decreto-lei 292, de 23/02, introduzindo novas nor mas
de acentuação extraídas do projeto de 1937, e forma uma comissão presidida por José de Sá Nunes, soli
citando da Academia Brasileira de Letras um novo Vocabulário ortográfico.
Portugal lançou outro Vocabulário ortográfico em 1940, elaborado pela Academia das Ciências de Lisboa,
que, curiosamente, também foi adotado pelo governo brasileiro em 1940. Em 29/01 de 1942, a própria Aca
demia Brasileira de Letras sugere o uso do Vocabulário ortográfico português.
Dada a nova situação, nada mais previsível do que fazer um novo acordo de unificação das ortografias
oficiais. Em 29 de dezembro de 1943, a Convenção Ortográfica Luso-Brasileira, reunid em Lisboa, fez o Acordo
<346>
de Unificação das Ortografias. Aprovadas as Instruções (bases ou regras), recomeçaram as discussões nos dois
países, mostrando que a situação não era tranqüila fora da comissão e das Academias.
O ano de 1945 foi de muita luta pela reforma ortográfica. Uma nova Conferência Interacadêmica para a
Unificação da Ortografia Luso-Brasileira reuniu-se em Lisboa. O decreto 35228 de 08/12 do governo português
ratificou as decisões da conferência. O decreto-lei 8 286 do governo brasileiro aprovou a conferência e seus
resultados. O decreto 35 228 de 08/12 determinou um novo Vocabulário ortográfico. Portugal também se
propôs a fazer um novo Vocabulário ortográfico, em comum acordo com a Academia Brasileira de Letras. Os
portugueses publicaram logo seu Vocabulário, mas o Brasil somente em 1947
O Acordo de 1943 tinha incorporado mais “o jeito de escrever” do Brasil, modificando bastante o de
Portugal. A Conferência Interacadêmica voltou ao “jeito de escrever” mais típico de Portugal, modificando o
uso mais comum no Brasil. A briga continuava forte fora das Academias, com muitos intelectuais brasileiros
inconformados com as decisões tomadas. Por isso, em 1955, a lei 2 623 de 21/10 restabeleceu para o Brasil o
sistema ortográfico do Pequeno vocabulário ortográfico da língua portuguesa, publicado pela Academia
Brasileira de Letras em 1943, revogando o decreto-lei 8 285.
O desentendimento entre Portugal e Brasil era evidente e intenso. Desse modo, Portugal ficou com o
sistema ortográfico de 1945 e o Brasil, com o de 1943.
Em 1971 um parecer conjunto das duas Academias introduziu pequenas modificações na ortografia de
ambos os países, como a queda do acento diferencial (mêdo/medo). No Brasil tal modificação tornou-se oficial
com a lei 5 765 de 18/12.
Em i986 começou uma nova tentativa de unificação das ortografias vigentes por proposta do acadêmico
Antonio Houaiss. Depois de tantas reformas, sobraram poucos detalhes para unificar as duas ortografias. A
questão mais problemática continuou sendo aquela que caracteriza de modo mais significativo o ‘jeito de
escrever” de Portugal e do Brasil, ou seja, as “consoantes mudas”. Em Portugal, escrevem-se algumas
consoantes que não são pronunciadas, como em FACTO, ACTO, RECEPÇÃO ou que são pronunciadas em outras
palavras como CARÁCTER, APTO, não ocorrendo uma correspondência no Brasil.
<347>
Como vimos, a grafia dos vocábulos da língua portuguesa foi fixada através de regras estabelecidas no projeto
de reforma ortográfica, que recebeu aprovação do governo e acabou se transformando numa lei ou decreto.
Dessa forma, a ortografia tornou-se oficial e obrigatória. Infelizmente esse assunto não deveria ser objeto de
lei, pelo menos do jeito como aconteceu. Deveria ser objeto da educação, mas como, num país como o Brasil, a
cultura e os assuntos culturais não têm vez e estão ausentes da vida das pessoas, mesmo dos políticos, a única
saída que as pessoas têm para implantar a ortografia reformada é através das leis. E quem escreve errado,
como fica perante a lei? Comete uma contravenção?
As regras referem-se também aos nomes das pessoas. Na prática, cada pessoa recebe um nome com a grafia
que os pais decidiram (ou que o cartório registrou). Assim, em muitos nomes, aparecem as letras K, Y e que, de
acordo com as normas vigentes, não deveriam ser usadas. Nomes próprios de lugares, cidades, etc. também
têm problemas ortográficos: será MOGI ou MOJI, PIRASSUNUNGA ou PIRAÇUNUNGA? Quem decide, nesses
casos, são os decretos que atribuíram um nome a esses logradouros públicos.

REFORMA ORTOGRÁFICA E ALFABETIZAÇÃO


Alguns professores acham que uma reforma ortográfica iria facilitar a vida das crianças que estão se
alfabetizando. Muitas pessoas na sociedade e até nas universidades pensam assim. Elas acham que seria mais
fácil escrever MEZA como BELEZA, por exemplo. Argumenta-se que seria bom que se escrevesse Z quando
tivéssemos o som de “zê” e que o S fosse usado apenas para representar o som de “çê”. Do mesmo modo,
haveria outras regras semelhantes.
Fazer reforma ortográfica não resolve problemas de alfabetização. Na verdade, as reformas ortográficas
atrapalham mais do que ajudam. Uma vez feita uma mudança, as novas gerações aprenderão do mesmo jeito
que as gerações anteriores aprenderam a velha ortografia, de tal modo que na prática nada muda. Todavia, os
que já aprenderam de um jeito terão de mudar seus hábitos.
Indo contra a tradição da língua portuguesa, os estudiosos das culturas indígenas brasileiras passaram a
chamar os índios das diversas tribos sem acrescentar o s de plural, dizendo, por exemplo, ‘bs bororó’ ‘
tupinambá’ etc. Na história das escritas (e sobretudo das ortografias), os nomes oriundos de outras línguas
sempre criaram grandes problemas.
<348>
Voltando à regra anterior, analisemos o seguinte exemplo: CASAS AMARELAS. Como deveria ser a grafia
reformada? Se a regra fosse escrever Z onde se fala “zê”, para um paulista a nova grafia seria CAZAZ
AMARELAS. Porém, se tiver de escrever CASAS FEIAS, a nova grafia ficaria: CAZAS FEIAS, mostrando que, agora,
em vez de se escrever apenas CASAS, teremos de escrever CAZAS ou CAZAZ, dependendo do contexto. Se fosse
um carioca, as coisas seriam diferentes. Teríamos CAZAZ AMARELAIX e CAZAIX FEIAIX. Os adeptos da reforma
respondem dizendo que basta escrever CAZAS com Z. Ora, se for para mudar uma letra simplesmente sem
mexer com a pronúncia, é muito mais vantajoso deixar tudo como está. Se for para seguir a pronúncia.., as
coisas são diferentes. Na verdade, quem quer mudar o S pelo Z expressa apenas uma dificuldade individual,
não um problema geral da língua.
Pequenas reformas poderiam ser feitas e de fato acontecem em espaços de tempo longos em todas as
línguas. Porém, não há vantagens nas modificações, em geral, o que equivale a dizer que a melhor atitude é
sempre não alterar a ortografia.
Os professores que acreditam que reformas ortográficas ajudariam as crianças precisam analisar a questão
mais profundamente. Para quem não sabe, a dificuldade não está em grafar CAZA ou CASA, mas em escrever
QAXA, QUAZA, etc. como alguns fazem. Como alguém pode sugerir uma reforma ortográfica se o aluno fala:
“Nóis fumu dispoiz andá dj psicréta”? Ensinar a norma culta para o aluno acertar a ortografia é um equívoco
muito grande. O melhor é explicar todos esses problemas de maneira clara, de tal modo que ele vá
aprendendo as diferenças entre fala e escrita, e as formas de escrever as palavras, seguindo ou não a
ortografia. Como ela foi inventada para neutralizar a variação lingüística, voltar a usar o alfabeto como um
código para fazer transcrição fonética é destruir a essência da ortografia.

ORTOGRAFIA E ESCOLA
CAGLIARI, 1994b. > Nas aulas de português, a ortografia tem sempre um papel muito importante. Algumas
pessoas acham que e na alfabetização que os alunos devem aprender a ortografia de todas as palavras Alias, o
critério mais comum de aprovação ou reprovação na alfabetização é estudiosos
<349>
um julgamento sobre o conhecimento que o aluno tem da ortografia das palavras. Alguns professores chegam
mesmo a estabelecer uma porcentagem para essa decisão. Obviamente, esse critério estatístico não faz
sentido dentro de uma pedagogia saudável, mas infelizmente existe em muitas escolas. Às vezes, a decisão do
professor baseia-se na aversão que tem a certos erros. Se o aluno escrever PEÇOA (pessoa) ou BRICPZA
(princesa) deverá ser reprovado sem mais discussão. São erros insuportáveis, que denotam um analfabeto
(sic!).
Essa questão tem muito a ver com o que dizem os professores das séries mais avançadas. Se o aluno errar a
grafia de uma palavra de uso mais comum, logo se ouve comentário de que foi mal alfabetizado, que a culpa
daquele erro foi descuido do professor alfabetizador. Alguns professores e até diretores de escola chegam a
reclamar dos professores alfabetizadores, por causa dos transtornos que esses alunos causam no
desenvolvimento das atividades das séries mais avançadas. Em situação pior estão os próprios alunos, uma vez
que não encontram nas séries avançadas o auxílio necessário para superar as dificuldades que têm com a grafia
das palavras. Os colegas zombam, o professor se irrita e eles não sabem como sair da armadilha em que
caíram.
A escola e as pessoas devem se perguntar um dia se, de fato, vale a pena reprovar um aluno simplesmente
porque escreveu PEÇOA ou BRICPZA. Responder a essa pergunta de maneira negativa não significa diminuir a
importância da ortografia. A questão é outra: qual o peso das coisas na vida escolar? Além disso, é mais do que
certo que se um aluno souber escrever é porque sabe ler e, se souber essas duas coisas, pode muito bem
pesquisar num dicionário e corrigir o texto que escreveu. Por que os alunos não podem fazer suas redações
com um dicionário ao lado? Sem dúvida alguma é conveniente que os alunos decorem a ortografia da maioria
das palavras mais comuns, mas isso se consegue muito mais facilmente quando eles têm a chance de consultar
freqüentemente o dicionário, o que deveria acontecer sempre, em todas as aulas, quando tivessem urna
dúvida ortográfica.
As pessoas gostam de dar pontos para a ortografia porque é uma questão que exige memorização, e é do
gosto delas exigir dos alunos que mostrem que decoraram o que foi ensinado. Seria mais lógico e natural que
as pessoas tivessem sempre à mão um dicionário para
<350>
poderem escrever melhor, inclusive para resolver dúvidas ortográficas. Porém, o dicionário até parece um livro
proibido, sobretudo nas provas. Na verdade, a ortografia nunca deveria ser objeto de avaliação, uma vez que é
natural que mesmo pessoas acostumadas a escrever por vezes tenham dúvidas a respeito de palavras que já
escreveram antes sem titubear.
Essas atitudes da escola com relação à ortografia têm provocado nas pessoas uma reação muito negativa
com relação a quem escreve errado. Assim como a sociedade cultiva um desprezo preconceituoso contra quem
fala uma variedade da língua muito diferente da norma culta, do mesmo modo trata quem escreve sem seguir
a ortografia. Nesses casos, é mais comum as pessoas estranharem uma grafia errada de uma palavra do que
um texto mal-estruturado ou uma idéia mal-apresentada.
A situação de algumas escolas tem piorado recentemente por causa da ação de alguns professores e
pedagogos que passaram de um extremo a outro. Antigamente exigiam a ortografia com todo o rigor: se o
aluno não soubesse tudo o que a cartilha apresentava, não saía da primeira série. Depois, com as novas idéias
pedagógicas, passaram a entender que a ortografia não era mais tão importante assim, ou melhor, que o aluno
podia escrever do jeito que quisesse, desde que escrevesse. A ortografia seria aprendida depois, como parte do
desenvolvimento escolar.
Certamente, era preciso rever a maneira como a antiga escola encarava a ortografia na alfabetização. Mas
abandonar os alunos à sua sorte futura, sem nenhuma explicação e, sobretudo, sem que os professores das
séries avançadas assumissem a tarefa de cuidar da ortografia, criou uma situação de frustração para muitos
alunos, que passaram a não entender mais o que a escola queria deles.
Explicar aos alunos o que é ortografia e como resolver dúvidas ortográficas é uma atividade imprescindível na
alfabetização. Tendo ouvido todas essas explicações, um aluno pode desenvolver tranqüilamente seu processo
de alfabetização, sabendo o que e como está aprendendo, de onde saiu e aonde vai chegar. Sabe que está
aprendendo a decifrar a escrita nos seus aspectos fonéticos, sintáticos, semânticos e textuais. Sabe que seus
conhecimentos básicos de leitura já lhe permitem tentar escrever, tendo plena consciência de que essa escrita
é uma tentativa de expressar a fala por escrito, de forma a permitir a leitura dentro do sistema alfabético
<351>
que usamos, mas sabendo também que nossa escrita se preocupa com a ortografia. Para aprender a escrever
certo é preciso checar a grafia de cada palavra.
No inicio, o objetivo é apenas escrever. Então, o professor não precisa preocupar-se com a ortografia (nem o
aluno). Depois que o aluno conseguir escrever com certa fluência, está na hora de começar a preocupar-se com
o segundo aspecto do nosso sistema de escrita, que é a grafia das palavras de acordo com o modelo
ortográfico estabelecido. Assim, um aluno pode apren der a ler e a escrever tranqüilamente sem o tormento da
ortografia, e o professor não precisa se preocupar, imaginando se determinado aluno vai ou não aprender a
escrever certo. Superada a primeira fase, que é decisiva, ou seja, o aprendizado da leitura, aprender a
ortografia vem como conseqüência do trabalho de autocorreção dos textos.
Esse procedimento mostra que não é preciso começar com a ortografia, mas também não se pode
abandoná-la. O aluno tem um tempo inicial para aprender a ler e a escrever, e um tempo posterior para cuidar
da ortografia e de outros aspectos da escrita. Procedendo assim, é fácil ver como, no primeiro ano escolar, o
aluno não só aprende a escrever livremente, produzindo textos espontâneos dos mais variados tipos, como
também corrige a ortografia desses textos e começa a decorar a grafia das palavras mais comuns. Por outro
lado, isso não significa que um aluno irá sair da primeira série dominando perfeitamente a ortografia de todas
as palavras. Ele precisa saber como se virar. Dominar a ortografia é algo que vem com o tempo. Às vezes, vai
esquecer o que já sabia e irá precisar perguntar coisas banais e, se tiver respostas respeitosas para suas
dúvidas, acabará lidando muito bem com a ortografia no futuro.
O que fazer, porém, com os alunos que infelizmente não tiveram a chance de se alfabetizar dessa forma? O
que fazer com os alunos que não escrevem as palavras seguindo a ortografia nas séries mais avançadas?
Em primeiro lugar, é preciso relembrar que não é só o professor alfabetizador que deve partir da realidade
de seus alunos para estabelecer um processo de ensino e de aprendizagem adequados; os professores das
demais séries têm a mesma obrigação. Portanto, se um professor da quinta série percebe que um aluno tem
dificuldades sérias com a ortografia, cometendo erros intoleráveis, sua obrigação é ensinar a esse aluno tudo
aquilo que ele precisa saber. Entre outras coisas, o professor
<352>
deverá falar, como se mencionou acima, a respeito do processo de aquisição da linguagem, da variação
lingüística, da natureza, função e usos dos sistemas de escrita, em particular do nosso. Deve explicar
detalhadamente o que é ortografia e quais as regras. Precisa ensinar o aluno a ter dúvidas ortográficas e como
resolvê-las. Precisa comparar a escrita ortográfica com outros usos da escrita alfabética (por exemplo, para
fazer transcrição fonética), O professor deve apresentar uma lista de palavras escritas erroneamente e analisar
as hipóteses que o aluno levantou para escreve-las. Será preciso discutir a necessidade de escrever respeitando
a ortografia e em que circunstâncias isso tem uma importância maior, exigindo um trabalho preliminar de
revisão do aluno. Finalmente, pode-se pedir para o aluno procurar no dicionário todas as palavras de seus
textos, para descobrir quais estão com a grafia errada. Como é óbvio em educação, em qualquer momento da
escolarização, o professor precisa ensinar aos alunos (que ainda não aprenderam) todas aquelas informações
que deveriam ter sido aprendidas antes. Lamentar o fato não resolve o problema do aluno nem deve
tranqüilizar o professor. Quando um aluno não sabe alguma coisa, a obrigação dc) professor é ensiná-lo, seja o
que for, em que série da escola isso estiver acontecendo.
No caso de alunos preguiçosos, o professor pode analisar o texto e dizer a ele que apresenta determinado
número de erros de grafia, por exemplo, 38. O aluno corrige e o professor vê se sobraram erros. Por exemplo,
podem ter sobrado três erros. O aluno deverá procurar no dicionário todas as palavras de seu texto até que
não haja mais erros de grafia. Esse tipo de atividade obriga os alunos a prestar mais atenção à ortografia. Com
o tempo vão achar mais fácil decorar a grafia das palavras mais comuns do que ficar consultando o dicionário a
cada novo texto que escreverem.

IDÉIAS ERRADAS A RESPEITO


DA ORTOGRAFIA
Contribui muito para a dificuldade que alguns alunos têm para escrever as palavras na forma ortográfica
correta uma série de informações erradas que recebem desde a alfabetização a respeito da ortografia.
<353>
Desde os primeiros contatos com a escrita, o aluno ouve o professor dizer que o nosso sistema de escrita é
alfabético e que isso significa que escrevemos uma letra para cada som falado nas palavras. Nosso sistema usa
letras, às quais são atribuídos valores fonéticos. Mas o uso prático desse sistema não se reduz a uma
transcrição fonética. Portanto, o professor não pode dizer simplesmente para o aluno observar os sons da fala,
as vogais e consoantes, e representá-los na escrita por letras. Esse é o primeiro passo, mas não é tudo. Feito
isso, o aluno precisa aprender que, se cada um escrevesse do jeito que fala, seria o caos. Para neutralizar a
variação dialetal, a escrita inventou a ortografia, fazendo com que todas as palavras tenham apenas uma forma
escrita. Assim, perdeu-se em grande parte o caráter alfabético da escrita, que passou a ter um caráter
ideográfico muito forte. Por essa razão, podemos dizer que o objetivo funcional da escrita é a leitura. A partir
da ortografia, cada leitor irá decifrar uma palavra escrita na forma ortográfica, dizendo-a de acordo com seu
dialeto. Portanto, cada um lê conforme fala. Fazendo o caminho inverso, percebe-se logo que, dado o fato de
as pessoas falarem dialetos diferentes, as palavras terão pronúncias diferentes. Como a ortografia decidiu que
apenas uma forma é a estabelecida, as pessoas precisam saber qual foi a forma escolhida, independentemente
da maneira como pronunciam as palavras. Como se vê, muitas das explicações que são dadas aos alunos, desde
a alfabetização, não correspondem a essas idéias básicas a respeito da natureza da ortografia.
O uso de ditados passa aos alunos a idéia de que podem escrever corretamente as palavras desde que
pensem para escrever. A verdade, porém, é outra. Somente pensando ninguém pode ter certeza a respeito da
ortografia de nenhuma palavra. Às vezes, é possível elaborar algumas regrinhas, como a que diz que as
palavras abstratas terminadas em -EZA são escritas com Z (BELEZA, POBREZA) e as que formam um plural
feminino, com S (FRANCESA, PORTUGUESA). Mas essas regrinhas são poucas e resolvem uma porcentagem
muito pequena de casos. Não é uma boa estratégia pedagógica mandar o aluno simplesmente pensar para
escrever. Isso se faz quando não se quer levar em conta a ortografia, caso das primeiras atividades de escrita
das crianças. Depois, é preciso ensinar o aluno a ter dúvidas ortográficas e a resolvê-las.
<354>
A prática de muitos professores de apagar uma palavra escrita errada pelo aluno e de colocar o certo acaba
gerando a famosa preguiça intelectual. Depois de certo tempo, ele já não se preocupa com a ortografia, porque
o professor corrige mesmo. O ideal seria desenvolver nos alunos o hábito de rever o que escrevem, passar a
limpo, fazendo uma autocorreção da ortografia dos seus textos, seja em que matéria for, não só nas redações
escolares da aula de português.
Alguns professores costumam passar muitas e longas cópias para que certos alunos decorem a ortografia.
Para que essa prática desse certo, seria preciso que o aluno fizesse cópias não só de meia dúzia de palavras,
mas de todas as palavras, o que tomaria todo o seu tempo de escola durante décadas. Esse tipo de cópia serve
apenas para castigar. Então, como eles irão aprender a ortografia de todas as palavras? Na verdade, isso não
deve ser um objetivo a ser alcançado. O objetivo real é que o aluno aprenda a ortografia das palavras mais
importantes e de uso mais freqüente e que tenha o hábito de resolver suas dúvidas ortográficas, quando
necessário. Fazer cópias para decorar a ortografia auxilia pouco e não garante que o aluno não esqueça no
futuro. A melhor estratégia para se conseguir que os alunos estejam sempre em dia com a ortografia é a
prática constante da escrita (com dicionário) e muita leitura. Esse contato com a escrita e com a leitura é que
faz com que os alunos resolvam seus problemas de ortografia, decorando a grafia das palavras.

A DÚVIDA ORTOGRÁFICA
FERREIRA, 1963. >
Um ponto importante que os professores, principalmente de alfabetização, precisam tratar com seus alunos
é a dúvida ortográfica. Tão importante quanto ensinar o que é ortografia e quais os mecanismos de nosso
sistema de escrita, em geral, é ensinar como ter uma dúvida ortográfica e como resolvê-la.
Dúvidas ortográficas todas as pessoas têm. Na introdução do Pequeno dicionário da língua portuguesa,
Aurélio Buarque de Holanda apresenta uma lista de palavras com relação às quais ele tem dúvidas a respeito
de qual seria a melhor forma de grafá-las. Além disso, analisando seu dicionário, percebemos que algumas
<355>
vezes ele traz uma forma arcaica de escrita ou uma forma retratando regionalismo (pronúncia dialetal),
criando, desse modo, formas ortográficas paralelas de algumas palavras. Por exemplo, ele acha que deveria ser
DESINTUMESCER e não DESENTUMESCER, como manda a Academia Brasileira de Letras (Vocabulário
ortográfico), uma vez que é INTUMESCER e não ENTUMESCER. Traz pares de palavras como CAMINHÃO e
CAMIÃO, FLECHA e FRECHA, BALSA e BALÇA, ENGOLIMOS e ENGULIMOS, SOLUÇO e SALUÇO, SEMANA e
SOMANA (forma arcaica), etc.
Qualquer usuário do nosso sistema de escrita tem dúvidas ortográficas ocasionais. Às vezes, diante de uma
palavra comum, surge a dúvida: é DANÇA ou DANSA, TIGELA ou TIJELA? Quem aprendeu a lidar com esse tipo
de problema não se envergonha de perguntar ou de consultar o dicionário.
A dúvida ortográfica surge de maneira típica em alguns casos, sendo praticamente inexistente em outros.
Um levantamento desse tipo de dificuldades vai mostrar que, quando uma letra representa vários sons ou um
som é representado por várias letras, a dúvida ortográfica tem mais chance de se instalar e será sempre uma
dificuldade para quem se alfabetiza. À medida que uma palavra se torna mais familiar, menos dúvida causará.
Assim, para uma criança que se alfabetiza é um problema difícil saber se deve escrever MESA ou MEZA, mas
não para um aluno já alfabetizado. Para um aluno nas primeiras séries, pode ser difícil saber se deverá escrever
BELEZA ou BELESA, PRINCESA ou PRINCEZA. Para um professor alfabetizador, as dúvidas são de outro tipo: será
CONSTITUI ou CONSTITUE? Será ESTENDER ou EXTENDER, EXTENSÃO ou ESTENSÃO ou ainda EXTENÇÃO ou
ESTENÇÃO? A memória visual adquirida através de muita leitura, às vezes ajuda a decidir, mostrando que
algumas grafias são realmente estranhas e provavelmente inexistentes. Aliás, muitas pessoas quando têm
dúvidas ortográficas, escrevem as formas alternadas para decidir depois qual a correta, a partir da memória
visual.
As cartilhas costumam colocar as lições em graus de dificuldade crescente, tendo em vista as possíveis
dúvidas ortográficas. É por essa razão que a letra X vem por último. Entretanto, nem sempre é difícil ler a letra
X. Saber se uma palavra se escreve com a letra X ou não é que é o problema. A ortografia, pois, causa
problemas diferentes para a leitura e para a escrita.
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Para muitos alunos, a grande dificuldade com a ortografia das palavras não está no uso do X ou se a palavra
BELEZA se escreve com Z ou S. Para quem é falante de dialetos muito diferentes da norma culta, o uso da
ortografia e apresenta com dificuldades muito maiores do que essas. Para um aluno que fala “bardji” (balde),
“brabuleta” (borboleta), “psicreta” (bicicleta), “nóis fumo dispois” (nós fomos depois), ter uma dúvida
ortográfica não é simplesmente uma questão de saber se uma palavra se escreve com S ou com Z ou ainda com
X. Para ele, é preciso ter bem clara, antes de tudo, a questão da variação dialetal e, sobretudo, como
funcionam, no seu caso, as relações entre linguagem oral e linguagem escrita.
O professor deve incentivar seus alunos a terem dúvidas ortográficas, explicando os vários tipos de
dificuldade que nosso sistema de escrita apresenta com relação a isso e levando em conta também as
dificuldades próprias de cada aluno.
Como já se disse, ter dúvidas ortográficas é muito natural e comum. Por essa razão, o professor deve fazer
ver aos seus alunos que vale mais a pena resolver direito essas dúvidas do que ficar imaginando como seria a
forma ortográfica das palavras ou escrever de qualquer jeito. Para que o aluno aprenda a lidar direito com isso,
é preciso que o professor tenha uma atitude saudável, respeitando as dificuldades e dúvidas dos alunos, não
dando maior importância do que esse assunto merece e, principalmente, deixando sempre à disposição do
aluno dicionários, vocabulários ou outros meios para que o aluno possa resolver suas dúvidas ortográficas.
Toda sala de aula deveria ter um dicionário e todos os alunos deveriam ter acesso a ele em todas as aulas,
quando tivessem de escrever. Esse exemplo da escola deveria ser levado para a vida. Todo aluno deveria ter
um dicionário em casa. Consultar o dicionário é uma questão de hábito, que deve começar desde a
alfabetização.
Outra prática importante é a autocorreção dos trabalhos. Todo trabalho escrito deveria ser feito primeiro
numa forma de rascunho e depois passado a limpo. E antes de passar a limpo, o aluno deveria, entre outras
coisas, checar a forma ortográfica das palavras, fazer um levantamento das dúvidas e resolver caso por caso. A
escola não deve apenas ensinar conteúdos programáticos, mas também bons hábitos nos estudos, como se
tem enfatizado ao longo deste livro.
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Apêndice
A categorização gráfica das letras
Apresenta-se neste apêndice um estudo detalhado das relações entre letras e sons — que permitem a
decifração da escrita e a leitura —, bem como das relações entre sons e letras — que fazem com que o aluno
parta da observação de sua fala e chegue a escrever de acordo com a ortografia.
Este estudo serve também para o professor refletir sobre a categorização funcional das letras, ou seja, sobre
como o alfabeto e a ortografia comandam as relações entre letras e sons em nosso sistema de escrita. Um
exercício exaustivo nesse sentido revela também como o processo de alfabetização é complexo e exige uma
quantidade considerável de conhecimentos. Por outro lado, este material pode servir de subsídio para o
professor organizar aulas específicas em que irá tratar de aspectos da categorização funcional das letras, por
exemplo, explicando como o conhecimento necessário à leitura pode se fundamentar em regras, através da
descoberta das relações entre letras e sons (ou das relações entre sons e letras).
As considerações a seguir estão organizadas, sempre que possível, segundo a ordem do abecedário. O
professor, entretanto, não precisa seguir essa ordem. Talvez, na maioria das vezes, terá de se deixar levar pelas
sugestões dos alunos e pelo desenvolvimento natural das aulas. Nos quadros aparecem o nome das letras, seu
valor fonético no alfabeto (princípio acrofônico) e algumas explicações que serão desenvolvidas adiante. Em
seguida, são apresentados sucintamente os comentários mais relevantes sobre como ler e traçar a letra,
mostrando como levantar dados e formular regras.
ESTUDO DA LETRA A
O nome da letra A é a e representa o som básico de “a”. Como qualquer letra, pode ter outros sons, que se
verão a seguir Portanto, quando urna palavra tiver o som de “a”, esse som será escrito com a letra A. E vice-
versa: se for encontrada a letra A na escrita, ela representa o som de “a”.
O professor poderá escrever algumas palavras na lousa, dizer o que está escrito e mostrar aos alunos onde
ocorre a letra A, identificando-a com o som “a” na fala. Como exemplo, pode escrever AMIGA. Essa palavra
começa e acaba com a letra A tanto na escrita como na fala. A seguir, um exemplo de palavra que começa com
o som de “a” e que se escreve, portanto, com a letra A, no início e no meio: ASSADO. Depois, uma palavra que
só tem o som de “a” no final:
MINHOCA.
O professor poderá pedir para os alunos irem ditando palavras para ele escrever na lousa,
• fazendo colunas de acordo com os casos apresentados (início, final, início-e-final, outros casos). Se por acaso
algum aluno ditar uma palavra que comece por H, o professor a escreve numa outra coluna e explica por que
aquela palavra tem H (razões ortográficas), e como se lê o H em início de palavras: começando pela letra
seguinte, ou seja, pela vogal, como se pode ver em palavras como HABITAÇÃO, HOJE, HINO, HUMILDE, HELICE,
etc.
Quase todas as letras têm outros sons, além do som básico, dependendo das letras que a antecedem ou a
sucedem (contexto). São os casos particulares. Por exemplo, a letra A, em sílaba final de palavra oxítona,
seguida de S ou Z (ou dos sons “s” ou “ch”, na fala, de acordo com o dialeto), tem o som de “ai” ou apenas “a”:
no primeiro caso, tem-se uma fala mais “natural” e no segundo, uma fala mais “artificial” (dependendo sempre
do dialeto). Exemplos: RAPAZ, PAZ, ATRÁS, TOMÁS, etc.
A mesma regra vale para as vogais U, E e O (com os sons de “ê”, “é”, “ô” e “ó”), como mostram os
seguintes exemplos: LUZ (“lúis” ou “lúich”), VEZ (“vêis”), PÉS (“péis”), ARROZ (“arrôis”) e NÓS ( “nóis”).
Outro caso particular da letra A ocorre quando, na fala, ela vem antes do som da vogal “u” (representada na
escrita por U ou por L no final da sílaba). Neste caso, a letra A tem um som “posterior” (de “garganta”).
Compare o som da letra A nas palavras MAIS e MAUS e anote a diferença. Outros exemplos: SAL, MAL, CALDO,
BALDE, ALTO e AUTO, LAURA, etc. Note que o som do “a” precisa formar ditongo com o som do “u”. Se não
houver a formação de ditongo, a letra A possui o som básico de “a”, como se pode observar em palavras como
SAÚDE (compare com SAUDADE), BAÚ, RAUI SAUL, etc.
Às vezes, é preciso escrever uma letra A que não aparece comumente na fala. Repare nos seguintes
exemplos: CASA AMARELA — numa fala fluente, o A final da palavra CASA não é pronunciado: “kazamaréla”.
Para testar e conferir qual a vogal que cai, se o A final de CASA ou o A inicial de AMARELA, podemos ver outros
exemplos, variando a vogal: CASA ESQUISITA, que se torna “kaziskizita”, ou ainda MURO AMARELO, que é dito
“muramarélu”. Esses exemplos mostram que foi a vogal final da primeira palavra que deixou de ser
pronunciada e não a vogal inicial da palavra seguinte.
Por razões semelhantes, às vezes é necessário escrever A ou O que não ocorrem na fala ou “separar”
palavras. Veja, por exemplo: TODA A FAMILIA (“todafamília”), TODO O MUNDO (“todumúndu”), É O CASO DE
ELE DIZER A VERDADE (“éukazudelidizeraverdadi”), ELA FOI PARA A CIDADE (“élafoiprasidadi”), etc.
A vogal A pode ser nasalizada, ficando com uma qualidade vocálica diferente, caso da palavra ANA — compare
com ASA, cujo som do primeiro A é oral. Portanto, quando se tiver de escrever o som nasalizado igual ao do
início da palavra ANA, sabe-se que deverá ser escrito com a letra A.
Na leitura, a letra A tem o som de A nasalizado (“ã”) quando ocorre antes das consoantes nasais M e N, e a
vogal é tônica. Se for átona, a letra A pode ter o som nasalizado ou não, como mostram os seguintes exemplos.
Som nasalizado: ANA, AMA, CANA, CAMA. Som nasalizado ou não: ANÃO, AMADEU, AMOR, CANAVIAL,
CAMADA. Se depois das nasais M ou N houver uma outra consoante, a letra A será sempre nasalizada, como
em: ANTÔNIO, CAMPO, CANTIGA, CÂNFORA, etc.
Quando a letra A vem antes de NH, tem sempre um som nasalizado, embora nesse caso possa variar com o
ditongo nasalizado “ãi”, como se vê em: BANHA (“bãnha” ou “bãinha”). Na verdade, toda vogal que vier antes
de NH pode variar com um ditongo nasalizado terminado em “i”; por exemplo: UNHA (“ünha” ou “üinha”),
SONHO (“sõnhu” ou “sõinhu”), TENHO (“tenhu” ou “teinhu”) e até VINHO pode ser pronunciado “vinhu” ou
“viinhu”.
Quando uma palavra termina em -RAM, caso dos verbos, a pronúncia é “rãu”, no dialeto padrão, mas, em
muitos dialetos, ou numa fala bem informal, a pronúncia pode ser “ru”: FIZERAM (“fizérãu” ou “fizéru”),
ACHARAM (“acharãu” ou “acham”), VIERAM (“viérãu” ou “viéru”). Note que, na escrita, há uma distinção entre
palavras que acabam em -RAM e palavras que acabam em -RÃO. No primeiro caso, a sílaba final é átona (a
palavra é paroxítona), e, no segundo caso, a sílaba final é tônica (a palavra é oxítona). Compare: ACHARAM e
ACHARÃO, ENCONTRARAM e ENCONTRARÃO; ou, ainda, VIRAM e VIRÃO, SABÃO, LIMÃO, IRMÃO, etc.
Os exemplos apresentados anteriormente revelam, em grande parte, os valores fonéticos letra A, nos casos
em que existe uma espécie de regrinha que orienta a interpretação. Essas regras podem ser feitas porque os
valores fonéticos da letra estão ligados a determinados contextos.
Esses casos podem ser explicados e, uma vez aprendidos, são de grande utilidade no ,trabalho de decifração.
Porém, há ocorrências em que o valor fonético da letra A só pode ser ;derminado pelo conhecimento da
variação lingüística e da ortografia das palavras. Quando um aluno é falante de um dialeto muito diferente da
norma culta, diz muitas palavras com uma pronúncia peculiar, estabelecendo relações novas e particulares
entre as letras e os sons. Geralmente, nesses casos, ele fala de um jeito e precisa aprender que a escrita é bem
diferente. Além disso, tem de saber a ortografia de palavra por palavra, pois não é possível estabelecer regras
dependentes de contextos. Por exemplo, um aluno que fale um tipo de variação lingüística que tenha palavras
como: BARBOLETA (borboleta), SEJE (seja),
;CANFUSO (confuso), ADESPOIS (depois), terá de fazer um uso mais ideográfico do que
fonográfico, ao buscar as formas ortográficas. Para esses casos, não basta ensinar as regras que relacionam
letras e sons, mas também como são formadas as palavras e como rege a ortografia.
No próprio dicionário, encontramos registro desse tipo de dificuldade, como em: BÊBEDO e BÊBADO, ou
LEMBRAR-SE e ALEMBRAR-SE, ILUMINAR e ALUMIAR, etc. Saber que existe a dificuldade é introduzir uma
dúvida ortográfica, e isso é muito importante para que o aluno escreva sempre “desconfiando” da grafia.
Entre as considerações a respeito de como se lê a letra A, foram vistos também alguns
casos de como partir da fala para escrever a letra A. Todos os exemplos anteriores podem ser estudados a
partir da fala, chegando-se às mesmas regras. Quando o problema se resolve com uma regrinha contextual, fica
tudo mais fácil; quando se trata de variação dialetal,único jeito é o aluno desconfiar e perguntar pelo certo a
quem sabe ou consultar o
dicionário.
Partindo da observação da fala das pessoas e tendo em mira o que se escreve com a letra i, podemos
estabelecer relações entre sons e a letra A, fazendo as seguintes afirmações:
1. Para representar o som de “a” ou de “ã”, deve-se escrever a letra A. Exemplos: “batata”
BATATA; “kãneta” = CANETA; “ãmbulãçia”’ = AMBULÂNCIA.
2. Se ocorrer “ã” e a letra A não for seguida de M ou N, recebe til.
3. Se a última sílaba de urna palavra terminar em “a”, é possível que a seguinte também comece por “a”. Para
saber como escrever, é preciso analisar as palavras isoladamente, por exemplo, intercalando outra palavra
entre essas duas. Assim: em “minhamiga”, a primeira palavra é “minha” e termina em “a”. Posso dizer
também: “minhacõnténtiamiga”, o que mos a que a segunda palavra também começa com “a”. então, sei que
devo escrever um A a mais: MINHA AMIGA. Às vezes, há dificuldades em saber se deve ou não escrever o
artigo definido A, em exemplos como: “élalavôtodakaza”. Nesses casos, é preciso fazer uma averiguação para
saber se, numa faia pausada, pronunciando as palavras isoladamente, cabe ou tão o artigo: ELA LAVOU TODA
CASA ou ELA LAVOU TODA A CASA. Embora haja significa ‘:5 diferentes com ou sem o artigo, esse é um
problema para quem escreve em português.
o significado é “lavou a casa inteira”, na escrita haverá o artigo. Se o significado for “lavou casas que existem”,
não haverá artigo. Num outro caso, como: “istuçérvipratodacriãça”, a forma escrita não registra o A (porque
não ocorre o artigo): ISTO SERVE PARA TODA CRIANÇA. Se essa frase não se referisse às crianças em geral, mas
a uma criança em particular (cada criança), a frase teria artigo: ISTO SERVE PARA TODA A CRIANÇA.
Com já foi dito, neste livro o som (s) da fricativa alveodental surda vem transcrito com o cê-cedilha, “çê” Note
que no caso de consoante, sua representação oral aparece transcrita com a vogal “ê”, a qual, porém, precisa
ser ignora da na fala contínua em que aparece a consoante. Assim “çê”, zê”, “kê”, etc, são, de fato, apenas “ç”,
“a”, “k”, etc.
<361>
4. Em algumas palavras, mas não em todas, quando se encontra o som de “a” diante do som de “chê”, deve-se
escrever AI e não apenas A. Nas outras palavras, escreve-se apenas A. Facilita um pouco mais saber que o som
de “chê” se escreve com X, porque nesse caso o “a” vai ser escrito com Ai e não apenas com A. Há raras
exceções, como MAXIXE (que na verdade é palavra de origem estrangeira, introduzida na língua portuguesa).
Palavras como “machu” (MA CHO), “kachu” (CACHO), etc. não são escritas com AI, mas, para saber isso, é
preciso saber antes se o som de “chê” vai ser escrito com CH ou com X.
5. O som “ãu” só ocorre na sílaba final de uma palavra (exceto em casos de diminutivos, como CÃOZINHO,
etc.). Há duas formas de escrever esse ditongo: com AM, como acontece em terminações verbais (exceto as do
futuro do presente e algumas formas de verbos irregulares como ESTÃO, SÃO); ou com ÃO, nos demais casos,
sobretudo se a palavra não for verbo:
ENTÃO, LATÃO, CORAÇÃO, etc.
6. Encontrando a escrita NH, é preciso verificar se ocorre o som de “ã” ou de “ãi” imediatamente antes. Em
qualquer dos dois casos, escreve-se apenas a letra A. Não confundir o díagrafo NH com o som de “nh”. Em
palavras como “mãinh “alemãinhs”, a escrita assinala o ditongo com A + E: MÃE, ALEMÃES, etc.
7. Diante do som de “u”, ocorre um “a” posterior e não anterior — como acontece nos demais casos. Essas
diferentes pronúncias (MAIS — MAUS) não são notadas na escrita, mas representadas apenas pela letra A.
8. Nas formas verbais do tempo passado, podemos encontrar as seguintes pronúncias:
“fizérãõ”, “fizérú” e “fizéru”. Estudando essas variações, pode-se saber que na escrita teremos
-RAM. Essa regra aplica-se só a verbos e não a nomes. Portanto, “zéru” não vai ser escrito ZERAM, mas apenas
ZERO, porque não existe variação de pronúncia como “zérãu” e “zéru” (nasal).
9. Algumas palavras têm uma pronúncia num determinado dialeto (BARBULETA, ADISPOIS, MECADTO, BÃÜ,
CHEGUEMO) e outra, em outros dialetos (BORBOLETA, DEPOIS, MERCADJNHO, BOM, CHEGAMOS). Às vezes, o
conhecimento de que uma determinada forma pertence à norma culta pode ajudar na escrita, mas nem
sempre. Pior ainda é o fato de as crianças, no início da alfabetização, ainda não terem condições de saber se
uma forma pertence à norma culta ou não. Nesses casos, somente através da questão ortográfica os alunos
podem desconfiar e resolver suas dúvidas.
A análise acima mostra como a letra A, que as cartilhas e os professores em geral consideram fácil de
aprender, envolve várias dificuldades, quando se levam em conta seus usos nos diferentes contextos e dialetos.
Esse tipo de análise revela, ainda, parte dos conhecimentos que uma pessoa precisa ter para saber decifrar
nossa escrita e escrever. Exemplifica como o uso de uma escrita ortográfica neutraliza a variação lingüística na
escrita. Mostra, ainda, que o preço pago por essa medida traz, como conseqüência, uma enorme complexidade
nas relações entre letras e sons e vice-versa.
O que dissemos deixa claro que a questão das relações entre letras e sons — ou seja, a categorização
funcional das letras — é muito mais complexa e difícil do que pode parecer numa análise superficial do
fenômeno. Os alunos, quando estão aprendendo, estão defrontando todas essas dificuldades, e o professor
precisa saber disso.
Insistindo mais uma vez num ponto delicado, é preciso esclarecer que o exposto sobre a letra A serve de guia
para o professor. Certamente, ele não irá ensinar tudo isso, ponto por ponto, um depois de outro e exigir que o
aluno repita a lição de cor ou resolva questões em prova. O professor irá abordar essas questões à medida que
for necessário e quando tiver oportunidade. Na verdade, ele pode ensinar a seus alunos como ler, decifrar a
escrita e analisar a fala, para achar a letra correspondente à escrita. Essa é uma maneira de alfabetizar sem
precisar das cartilhas e sobretudo do método do bá-bé-bi-bó-bu.
<362>
ESTUDO DA LETRA B
A letra B tem o nome de bê, e o primeiro som do “bê” é o som básico que a letra representa. Exemplos:
BOLA, CABELO, BARCO, etc.
Quando a letra B vem escrita antes de uma letra que representa uma consoante que não seja
nem R nem L, ela é pronunciada “bi”, na fala comum e informal, como em: OBJETO (“obijétu”), ABSOLUTO
(“abiçolutu”), SUBMARINO (“çubimarinu”), etc.
Esse fenômeno acontece também com outras consoantes como P T, D, F, C, G, M, como se vê nos seguintes
exemplos: OPTEI (“opitei”), RITMO (“ritimu”), ADVOGADO (“adivo gadu”), AFTA (“áfita”), TÉCNICA (“tékinica”),
IGNORAR (“iguinorar”) MNEMÔNICO (“minemônicu”). Esse fato mostra como a leitura pode ser feita. Escrever
a partir da fala torna as coisas muito complicadas, e o aluno precisa aprender palavra por palavra. Por exemplo,
escreve-se RÁPIDO e não RAPDO, MENINO e não MNINO, ADIVINHAR e não ADVINHAR, etc.
Em certos dialetos, fala-se “trabeçêru”, “pçicréta”, mas a forma ortográfica dessas palavras é:
TRAVESSEIRO e BICICLETA. Só se sabe quando colocar B ou não, quando se aprende a ortografia dessas
palavras. Nos dicionários, encontram-se exemplos — ASSOBIAR e ASSOVIAR — de variantes também na
ortografia oficial.
Alguns alunos sussurram as palavras quando escrevem, pronunciando somente sons surdos (vogais e
consoantes). Por essa razão, têm dificuldades em achar a letra certa na escrita quando se têm pares de
consoantes que se distinguem pelo traço de sonoridade (P/B, T/D, C/G, F/\ S/Z, CH/J). Nesses casos, o aluno é
levado a escrever POLA (bola), CAPELO (cabelo), PATATA (batata), etc. Exercícios com pares mínimos (tais
como, BULA/PULA, FACA! VACA), como vimos antes, podem ser úteis para mostrar aos alunos essas distinções.
Quando um aluno lê a letra B pronunciando “p”, o professor precisa descobrir se se trata de um problema de
decifração (o aluno fala a palavra corretamente, mas lê errado) ou de uma pronúncia diferente, própria do
dialeto do aluno (diz-se “patata”, “faca” e não “batata”, “vaca”, etc.). No primeiro caso, é preciso estudar como
se decifra a letra B. No segundo, discutir a questão da variação lingüística dos dialetos e como a ortografia
registra as palavras. Note que o aluno pode continuar falando segundo seu dialeto e não ter problemas para
escrever, bastando para isso que esteja bem-informado a respeito do assunto: ele fala de um jeito, mas deve
escrever de outro. O aluno que ouve essas explicações freqüentemente, acaba aprendendo ou pelo menos
desconfiando, e isso o ajuda em muito a aprender, de fato, com o tempo.
ESTUDO DA LETRA C
O nome da letra C é cê, e o seu som básico é “çê’ Essa letra participa de um esquema complicado de relações
entre letras e sons, como se verá a seguir
No trabalho em sala de aula, o professor pode partir de uma lista de palavras que ele escreve na lousa e
estudar os casos, formulando as regras com os alunos, ou pode partir de exemplos
2 exceção é a palavra PNEU, que admite ‘pineu” ou “peneu”.
3 O som da consoante oclusiva velar sonora [g] vem representado pelo dígrafo “gu”, quando precede I ou E, e
por “g” nos demais casos.
<363>
dados pelos próprios alunos, com base em sugestões orientadas por ele. O que vale é a bagagem de
informação que se revela através do raciocínio que a classe faz juntamente com o professor. Os
procedimentos a seguir mostram essas duas maneiras de organizar o ensine a aprendizagem em sala de aula.
O professor pode começar dando algumas informações a respeito de como se lê a letra C, observando o que
acontece no início de palavra. Nota-se que a letra C tem o som de “çê” quando ocorre diante das vogais E e I,
como em CEBOLA, CÉLEBRE e CIDADE. Diante das outras três vogais, A, O e U, a letra C tem o som de “kê”, caso
de CARA, COLAR e CUIDADO. Portanto, dependendo da vogal que vier depois, a letra C terá o som de “cê” ou
“kê”.
Para explicar o que são vogais e consoantes, o professor poderá mostrar um cartaz do 1 alfabeto, com as
letras dispostas de tal modo que a primeira delas em cada linha seja uma vogal.
Quando o professor ensina uma coisa, um aluno pode estar pensando em outra. Assim, algum aluno poderá
lembrar (dando exemplos) que na fala também existe o som de “kê’ com vogais E e 1. Se a letra C só tem o som
de “kê” diante de A, O e U, que letra se usa para escrever o som de “kê” diante de E e de 1? Respondendo a
essa pergunta, o professor explicará que usamos as letras QU. Exemplos: QUERO, QUILO, AQUELE, etc.
Resumindo, pode-se formar uma coluna com todas as vogais e a respectiva escrita com o som de “kê”.
A
o
U
E
I
Som “kê”
CASA
COISA
CUECA
Escrita C
QUE
AQUI
Escrita QU
Ocasiões como essa são boas para que os alunos percebam que ler é mais fácil do que escrever, uma vez que,
partindo da escrita, é fácil ler essas letras. Se alguém, no entanto, tiver de escrever uma palavra que tem o som
de “kê” mais uma vogal como A, O ou U, terá duas opções: usar a letra C ou as letras QU (lembrando que QU
nunca aparece diante de U).
Como uma coisa puxa outra, algum aluno poderá querer saber como se escrevem palavras que começam
com os sons de “ça”, “ço” e “çu”, como SAPO, SOBRADO e SUBIDA. A resposta do professor irá introduzir a
discussão da letra S. Essa letra, que aparece diante de qualquer vogal, quando em início de palavras, tem
sempre o som de “çê” (mais vogal).
A seguir, apresenta-se uma lista de palavras para orientar os comentários sobre o assunto.
Ortografia
CIDADE
CEBOLA
CABELO
COLA
CUECA
NASCER
MÁSCARA
EXCEÇÃO
EXCURSÃO
Pronúncia
“çidadi”
“çebola”
“kabelu”
“kola”
“kuéka”
“naçer”
“máskara”
“eçeçau”
“eçkurçãu”
Letra/Som
C = “çê”
C = “çê”
C = “kê”
C = “kê”
C = “kê”
SC = “çê”
SC = “çê” + “kê”
XC = “çê”
XC = “çê” + “kê”
364
Ortografia Pronúncia Letra/Som
COMPACT “kõumpaktu” ou C = “kê”
“koumpakitu” C = “ke” + “i” ACNE “akni” ou C = “kê”
“akini” C = “kê” + “i”
CLARO “klaru” C = “kê”
CRAVO “kravu” C = “kê”
CHAVE “chavi” C = “chê”
TOC-TOC “tók-tók” ou C “kê”
“tóki-tóki” C = “kê” + “i”
Como se pode notar, a letra C tem basicamente os seguintes sons: “çê”, “kê”, “kê” + “i” ou
“chê”. Analisando detalhadamente os dados apresentados acima, chegamos às seguintes regras:
1. A letra C tem o som de “çê” quando ocorre diante de E ou de 1, independentemente da letra que vier antes.
2. A letra C tem o som de “kê” quando diante de A, O ou U, de uma outra consoante ou no final de palavra.
3. Quando a letra C tem o som de “kê”, pode também ter o som de “kê” + “i”, ou seja, “ki”, quando não seguida
por vogal na escrita, desde que a consoante não seja R ou L. No último caso, só pode ocorrer o som de “kê”
(sem o “ê”) e nunca de “ki” (com o “i”): “cravo” e “claro”.
4. A função da letra H no meio de palavras é modificar o som da letra anterior. No caso de C, passa a ter o som
de “chê”.
5. Em alguns dialetos, se diz “naiç-çer” ou mesmo “naich-çer”. A razão disso pode ter vindo do processo de
alfabetização em que as pessoas ficam silabando para aprender a ler. A leitura de NAS-, em final de enunciado
diante de pausa, pode ser “naç”, “naiç” ou “naich”. Isso acabou gerando uma nova pronúncia para palavras
como NASCER. O SC tinha apenas o som de “çê”, no inicio da sílaba seguinte: “na-çer”. Com a nova pronúncia,
o SC passou a ter dois sons fricativos “ch” + “ç” —, além de influenciar na leitura da vogal anterior, que se
tornou um ditongo (“ai”, em vez de “a”). O mesmo tipo de fenômeno ocorre com seqüências com XC (ou XÇ).
Esses grupos de letras representam apenas o som de “çê” em alguns dialetos e, em outros, os sons de “çê+çê”
ou “chê+çê”, com ou sem a ditongação da vogal anterior: “e-çe çãu”, “eç-çe-çãu”, “eich-çe-çãu”.
Os sons da fala representados pela letra C
O estudo acima demonstra que é relativamente simples ler a letra C. A questão da escrita, no entanto,
apresenta dificuldades, principalmente porque há outras letras que têm os mesmos sons do C, obrigando o
escritor a procurar a forma ortográfica estabelecida. Por essa razão, além da letra C, deveremos mostrar as
outras letras que geram confusão em contextos específicos. A seguir as regras que podem ser estabelecidas
sobre isso:
1. Tendo em vista os conhecimentos sobre a leitura da letra C, podemos dizer que o som de “çê” pode ser
escrito com C, desde que venha antes das letras E ou I. Desse modo, palavras como “çebola” e “çidadi” se
escrevem CEBOLA e CIDADE.
Uma palavra como “çapu”, “çopa”, “çubir”, que começa com o som de “çê” seguido da vogal
“a “o” ou “u” (que serão escritas com as letras A, O ou U), não pode ser escrita com a letra C. Nesses casos,’ o
sistema manda usar a letra 5. Portanto, a letra S também representa o som, de
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“çê”. Isso pode gerar confusões. Na verdade, palavras como CEBOLA e CIDADE, em princípio também
poderiam ser escritas com S: SEBOLA e SIDADE, porque a letra S também pode ser usada diante da vogal I e E,
como em SINO e SELO. Somente conhecendo ortografia, uma pessoa pode saber que diante de 1 ou de E
vamos ter a letra C ou S em início de palavras.
2. Ocorre também o som de “çê” no meio da palavra, em início ou final de sílaba. Veja as seguintes palavras:
“na-çer” NASCER, “e-çe-çãu” EXCEÇÃO, “pa-çu” PASSO ou PAÇO, “pró-çi mu” PRÓXIMO, “na-ça” NASÇA.
Constatamos que o som de “çê” em início de sílaba não-inicial de palavra pode ser representado pelas
seguintes letras: SC, XC, SS, Ç, X, SÇ e XÇ. Saber quando usar uma letra e quando usar outra depende do
conhecimento da ortografia.
A única vantagem que ocorre aqui é saber que as palavras derivadas são escritas com as mesmas letras.
Assim, se NASCER é com SC, NASCIMENTO também será com SC. Em NASÇA, como não pode ocorrer a letra C
com som de “çê” diante de “a”, a opção foi usar a letra cê cedilha (Ç). Esse é um procedimento comum. Se
existe a grafia EXCEÇÃO, pode-se desconfiar que EXCETO se escreve do mesmo jeito. Se escrevemos PRÓXIMO
com X, iremos escrever PROXIMIDADE também com X.
Às vezes temos uma palavra homófona, mas que tem ortografias diferentes para cada significado. I o caso
de “paçu”, que se escreve com SS quando significa ‘o movimento dos pés ao andar’ (PASSO), e com Ç quando
significa ‘palácio’ (PAÇO). O critério semântico, em casos semelhantes, pode ajudar a encontrar mais
facilmente a grafia estabelecida.
3. O som de “çê” ainda é encontrado em final de sílabas, podendo ocorrer também em final de palavras, como
se pode ver nos seguintes exemplos: “baç-ta” BASTA, “biç-pu” BISPO, “atraiç” ATRÁS, “rrapaiç” RAPAZ, “fiç” FIZ,
“tauveiç” TALVEZ. Nesses exemplos, o som de “çê” aparece representado pelas letras 5 no meio de palavra e
por 5 ou Z, em final de palavra.
4. Como a letra C também pode ter o som de “kê”, vamos estudar esse caso agora. Como vimos antes, o som
de “kê” pode ser escrito com a letra C, quando vem antes de A, O ou U, ou seja, diante de vogais que não sejam
1 nem E. Exemplos: “kãma” CAMA, “koiza” COISA, “kuçtumi” COSTUME.
Outra letra que pode representar o som de “kê” é a letra Q. A letra Q tem o som de “kê” sempre, em
qualquer caso. Porém, para escrever os sons de “ki”, “kê” e “ké”, como não se pode usar a letra C, a única saída
é o Q. Ela tem duas particularidades: vem sempre seguida da letra U e não ocorre QUU. Essa letra U não é
pronunciada, como nos exemplos: “kis” QUIS, “kê” QUE e “kéru” QUERO. Nas seqüências de sons “kê” + “u” +
“i” (“é” ou “ê”), quando se pronuncia o U, podem-se ter duas formas de escrita: com C ou com Q, como nas
palavras:
“kuidado” CUIDADO, “kuéka” CUECA, “likuidifikador” LIQÜIDIFICADOR “çekuêçia” SEQÜÊN CIA, “çekuéla”
SEQÜELA, etc. Aqui também, só o conhecimento da ortografia pode dizer se ocorre uma letra ou outra.
5. O som de “kê” ocorre também em final de sílaba, caso em que pode haver uma variação, e no qual o “kê”
forma uma sílaba nova com o acréscimo de “i”, como em: “akni” ou “akini” ACNE, “kõumpaktu” ou
“kõumpakitu” COMPACTO, etc. Nesses exemplos, só se pode escre ver a letra C, nunca a letra Q. Essa variação
entre “k” (sem a vogal) e “ki” (com a vogal) pode ocorrer também em final de palavras, como em: “tik-tak” ou
“tiki-taki”, que pode ser escrita TIQUE-TAQUE ou TIC-TAC Note as duas formas de escrita, usando C sem a vogal
e QU com a vogal E (que se pronuncia “i” ou “é”).
6. O som de “kê” ocorre também conjugado com o de “lê” ou de “rê”. Nesse caso, há uma vogal em seguida,
completando assim a estrutura silábica (que pode ter alguma consoante no final da sílaba). Essas formas só
podem ser escritas com a letra C e nunca com a letra Q. Exemplos: “klareza” CLAREZA, “krônika” CRÔNICA, etc.
Nas formas QUE e QUI, quando a letra U deve ser pronunciada, ela é escrita com trema (Ü).
Nas histórias em quadrinhos, algumas palavras que denotam ruído são representadas de forma especial,
dependendo do artista, mesmo quando existe uma grafia já dicionarizada. É o caso de tic-tac e tique-taque. Ver
CAGLIARI, 1993ª.
<366>
7. O som de “kê” pode ser representado pela letra K. Essa letra não tem outro som a não ser esse. A letra K
tem uso muito restrito na língua portuguesa, servindo apenas para os nomes próprios, algumas palavras de
origem estrangeira e abreviaturas. De modo geral, não se deve pensar que uma palavra se escreve com K,
sobretudo se não for nome próprio.
8. O som de “chê” pode estar ligado tanto à letra C, como à letra X. A decisão aqui vai depender de consulta ao
dicionário. Uma pequena regra dentro dessa regra maior é aquela segundo a qual, quando se tem a variação
“ai» ou “a” antes do “chê”, este último será escrito com X (exceto em alguns casos de uns poucos dialetos
como o carioca, em que se pode ouvir pronúncias como “kaichorru” ou “kachorru” para CACHORRO).
9. Uma palavra pode ter o som de “çê” quando pronunciada isoladamente ou em final de enunciado, diante de
pausa ou silêncio. Porém, junto com outra palavra que começa com o som de vogal, esse som de “çê”
desprende-se da sílaba anterior e passa a formar uma sílaba nova com a vogal do início da palavra seguinte,
ficando com o valor fonético de “zê”. Veja os exemplos: “ka-zaç a-ma-ré-las” e “ka-za-za-ma-ré-las” (CASAS
AMARELAS); “treiç i-ni-mi-gus” e “trei-zi-ni-mi-gus” (TRÊS INIMIGOS)
10. Como vimos no estudo da letra A, aqui também os problemas de variação lingüística podem complicar
enormemente a escolha das letras que deverão ser usadas na escrita, quando se parte da observa ç cia fala.
Quem não fala o “çê” do plural de algumas palavras, vai ter de aprender primeiro as regras de concordância da
norma culta, para depois descobrir onde devem ocorrer esses “çês”, que serão indicados por S na escrita. Mas
não há apenas problemas de concordância. Quem fala “kalidadji” tem menos chances de acertar a ortografia,
observando a própria fala, do que quem fala “kualidadji”
11. Uma das dificuldades do aluno antes de conhecer a forma ortográfica certa ocorrerá com palavras que têm
o som de “kê” em final de sílaba, mas podem formar uma sílaba própria, sendo seguido de “i”. Como esta
última é mais comum na fala, e a outra é mais própria da leitura, o aluno muitas vezes escolhe escrever com
QU, como nos seguintes exemplos: TEQUINICA (em vez de TECNICA — “té-ki-ni-ka”), COMPAQUITO (em vez de
COMPACTO — “kõum-pa-ki-tu”), etc. Outra dificuldade é a troca de QU por C, quando o aluno ainda não
aprendeu que diante de E e de 1, a letra C não tem o som de “kê”. Aparecem, então, estas grafias: ACELI
(AQUELE), CERIDO (QUERIDO), CI (QUE). Mais raras de encontrar são palavras que deveriam ser escritas com C
e o aluno escreve com QU, como, por exemplo: QUOMANDANTI (COMANDANTE),
QUOCISTA (CONQUISTA) e assim por diante. O próprio dicionário registra umas poucas formas variantes desse
tipo, como QUATORZE e CATORZE, QUOTA e COTA.
12. Uma questão relacionada com os últimos exemplos, mas um pouco diferente, é a ocorrência de formas
alternadas de C e QU na escrita, em palavras derivadas, quando se acrescentam sufixos que começam por 1 ou
E. Nesses casos, se a escrita mantivesse a letra C, a palavra perderia o som de “kê” e passaria a ter o som de
“çê”. Para manter o som de “kê”, a única alternativa do sistema ortográfico é usar QU. Veja os seguintes
exemplos: VACA, VAQUEIRO; COLOCO, COLOCA, mas COLOQUEMOS, COLOQUEM; FICAR, mas FIQUEM; TOCO,
mas TOQUINHO, etc.
13. A partir da observação da fala, ainda há uma dificuldade envolvendo a escrita do som “kê”, em palavras
como: “ta-kçi” ou “ta;ki-çi”, “fi-.kçi” ou “fi-ki-çi”, “tó-ra-kçi” ou “tó-ra-ki-çi”, etc. Nesses casos, escreve-se com
X: TAXI, FIXE, TORAX. Mas, no caso da segunda palavra, seria igualmente possível a forma FIQUE-SE e, no caso
da primeira, TAQUE-SE, embora pouco usuais. Nesses dois exemplos, o usuário da escrita pode aprender a
guiar-se pela semântica para distinguir uma forma de escrita de outra. Todavia, isso é para quem já tem muita
fluência na escrita, o que não é o caso na alfabetização. Por isso, muitos alunos são levados a escrever:
TAQUESE em vez de TÁXI, FIQUEÇO em vez de FIXO, etc.
Pronúncias como “pró-kçi-mu” (PRÓXIMO), “çin-ta-kçi” (SINTAXE), etc., em vez de “pró-çi mu”, “çin-ta-çi”, etc.,
revelam uma tendência escolar de ensinar a identificar a letra X com o som de “kçi”, em vez de outras
alternativas.
<367>
Resumindo os principais pontos, nota-se que é relativamente fácil ler a letra C; basta ver que vogal vem
depois, se é do grupo do E e I ou se é do grupo do A, O e U. Mas, quando se trata de passar da fala para a
escrita, a questão é bem complicada. O som de “çê”, em início de palavras, pode ser escrito com a letra C (se
em seguida vier a letra E ou 1) ou, então, com a letra S (seguida de qualquer vogal). Quem decide se vai ser C
ou 5, nesses casos, é a ortografia. Não adianta ficar observando a fala.
No meio de palavra, o som “çê” pode ser escrito com as letras SS, como em PASSO, com Ç, como em MOÇA,
com X, como em PRÓXIMO, EXTRA, com S, como em BASTA. Note que se usa SS somente quando as letras
precedente e seguinte são vogais, e se usa S somente quando a letra precedente é uma vogal e a seguinte é
uma consoante.
Em final de palavras, o som “çê” (ou “chê” — dependendo do dialeto) pode ser escrito com 5 ou com Z, como
atestam os seguintes exemplos: CASAS, MÊS, FEZ, RAPAZ. Sempre que o som representar o plural de uma
palavra, a escrita será com 5 e não Z. Além disso, quando a palavra não for oxítona, não poderá ocorrer a
escrita da letra Z. Portanto, a dificuldade real fica restrita às palavras oxítonas e singulares. Nos demais casos, a
escrita será sempre com S.
Com relação ao som de “kê” da letra C, o caso é menos complicado: se na fala ocorrerem os sons “ka”, “ko” e
“ku”, tem-se na escrita a letra C (ca, co, cu). Se na fala aparecerem os sons “ki” e “kê”, a escrita usará as letras
QU (que, qui). Quando aparecer, na escrita, QU seguido de A ou O, a letra U se pronuncia (nesses casos, não
tem trema), como se nota nos seguintes exem plos: QUATRO ( “cuatru”), LONGÍNQUO (“lõjirjkuo”) etc. E vice-
versa, quando na fala ocorrer o som de “kê”, seguido do som “u” e depois o som “a”, “ô”, “ó”, a escrita quase
sempre será feita com QU.
Vê-se que ler a letra C é muito mais simples do que perceber como será escrito o som ou mesmo “kê”. A
confusão mais comum ocorre em início de palavras com C e S (diante de E e I) ou com C e SS ou mais
raramente com Ç, em meio de palavras. Alguns alunos, no início,
escrevem CE em vez de QUE. A confusão é esperada e, com o tempo, a criança vai assimilando a ortografia. É
preciso ter um pouco de paciência: não é possível aprender tudo num dia só.
ESTUDO DA LETRA Ç
A letra Ç tem o nome de cê-cedilha. É a letra C com uma curvinha voltada para a esquerdae colocada embaixo
da letra. A letra Ç representa apenas o som de ‘çê’, e ocorre diante do grupo das vogais A, O e U e nunca diante
de E e I.
A letra Ç ocorre somente no meio de palavras, nunca no início ou no fim. Poucas palavras, na língua
portuguesa, são escritas com essa letra, mas algumas delas têm uso muito freqüente. Portanto, a melhor
estratégia para aprender a empregar a letra ç é aprendendo caso por caso. Por exemplo, as seguintes palavras
se escrevem com Ç: MOÇA, MOÇO, CALÇADA, CAÇA, MAÇÃ, ONÇA, AÇO, AÇUCAR, AÇUDE, FAÇO, PEÇO, POÇO,
etc.
Note a variação ortográfica em palavras como: NASCER, NASCIMENTO e NASÇO; ACONTE CE e ACONTEÇA. Isso
mostra que a letra Ç é usada quando uma palavra com C + E ou C + I adquire a terminação A, O ou U. Nesse
caso, como não se pode escrever C e manter o valor fonético de “çê”, a ortografia recorreu à letra Ç. Observe,
ainda, o seguinte exemplo: FAZER, FAZEMOS, FAÇO, FAÇA.
6 nasal velar vem representada pelo símbolo fonético Fiji. Corresponde à nasal da língua inglesa empregada no
final de palavras tais como shopping, king, song, etc. Em português aparece entre uma vogal nasalizada e uma
oclusiva velar, ou em final de sílabas, depois das vogais “u”, “õ” e ‘à”, sobretudo em final de palavras: “bãnku”
(BANCO), “lãn” (LÃ), “oünça” (ONÇA), etc.
<368>
ESTUDO DA LETRA D
A letra D tem o nome de dê, e o som básico que representa é o som inicial de seu nome. Exemplos: DATA,
DEDO, DIZER, DOCE, DÚZIA.
Os dialetos da língua portuguesa podem ser divididos em dois grupos: aqueles que dizem “ti” e “di” e
aqueles que dizem “tchi” e “dji”. Portanto, sempre que se encontrar a letra D, em alguns dialetos, o aluno lerá
com o som de “dê”: DIA ( “dia”), PODE ( “pódi”), DEDO ( “dêdu”), DOCE ( “dôci”) e assim por diante. Em outros
dialetos, há uma regrinha que diz que diante do som de “i”, a letra D passa a ter o som de “dj”. Diante de
outras vogais, a letra D permanece com o som de “dê”. Confira os exemplos: DIA (“djia”), PODE (“pódji”); mas
DEDO (“dêdu”), DOCE (“dôçi”), DIJVIDA (“dúvida”), etc.
Fato semelhante ocorre com a letra T, que, num tipo de dialeto, sempre é dito como “tê” — TIA (“tia”), POTE
(“póti”), PATO (“patu”) POÇO (“pôçu”), etc. — e, em outro tipo, representa o som de “tchi”, quando ocorre
antes da vogal “i”, continuando com o som de “tê”, nos demais casos — TIA (“tchia”), POTE (“pótchi”); mas
PATO (“patu”), POÇO (“pôçu”), etc. Note que o que vale é sempre a pronúncia e não a escrita: ADVOGADO
(“adjivogadu”), RITMO (“ritchimu”), POTE (“pótchi”), etc.
Apesar da aparência complicada, esse caso na verdade é muito simples, e não causa problemas aos alunos.
Para ler o D, tanto faz o aluno dizer “d” ou “dj”, porque essa variação dialetal não é estigmatizada pela
sociedade.
A passagem da fala para a escrita também não costuma causar maiores embaraços do que aqueles típicos
do comecinho da aprendizagem. E o caso daquele aluno que queria escrever a palavra “índio”, que
pronunciava “idjo”, e não achava, no alfabeto, a letra “djê”. Pensou bastante qual seria a letra mais apropriada
e acabou escrevendo IGO, uma vez que a letra G era a que apresentava o som foneticamente mais próximo de
“djê”.

ESTUDO DA LETRA E
A letra E tem dois nomes: quando se dizem as letras do alfabeto, tem o nome de ê e, quando se dizem os
nomes das vogais, tem o nome de é. Esses dois nomes mostram os dois sons básicos dessa letra. “ê” e “é”.
Exemplos: DELE (”dêli”), DELA (“dela”), MESA (“mesa”), PERTO (“pértu”).
Para saber quando a letra E tem o som de “ê” ou “é”, é preciso conhecer a palavra. Quando se decifra uma
palavra, descobre-se aos poucos sua pronúncia, e o resultado final é dado pelos conhecimentos que a pessoa
tem da língua, como falante nativo. Assim, se o aluno estiver decifrando a palavra MESA, tem duas
possibilidades: uma é ler “mêza” e outra é ler “méza”. Como falante nativo, ele sabe que “mêza” existe e tem
um determinado significado, mas ele nunca ouviu falar em “méza” e, portanto, desconfia que essa palavra não
existe na língua portuguesa.
Às vezes, o problema requer um exame mais detalhado do contexto em que a palavra vem inserida. Por
exemplo, quando a palavra ERRO vem escrita isoladamente, não se sabe se é “êrru” ou “érru”. Mas, dentro de
uma frase, é sempre fácil saber: O ERRO FOI CORRIGIDO (“êrru”); EU ERRO NOS ACENTOS (“érru”).
Quando se escreve, tanto o som de “ê” quanto o de “é” será registrado com a letra E. Às vezes, para facilitar
a leitura, a ortografia coloca os acentos agudo e circunflexo para indicar uma
<369>
pronúncia ou outra. Por exemplo: VÊ, ACADÊMICO (“ê”); ATÉ, INTRÉPIDO (“ê”), etc. Nesses casos, o aluno tem
uma vantagem para decifrar o valor fonético da letra E. Ao escrever, porém, precisará saber quando colocar os
acentos.
O professor deverá tratar desse assunto como fala dos assuntos gerais de ortografia: o aluno precisa
aprender que algumas palavras têm acento e outras não. No primeiro semestre, o professor pode ignorar o
assunto. Explicará o que for necessário, se algum aluno perguntar, ou por alguma razão especial que surja
durante o trabalho de leitura ou de escrita.
Na verdade, a língua portuguesa poderia não ter nenhuma marca de acento na escrita, que as coisas
ficariam exatamente da mesma maneira. Hoje, as marcas de acento complicam a escrita e quase não trazem
vantagens para a leitura.
A distinção mais notável entre “ê” e “é” ocorre nas sílabas tônicas. Em sílabas átonas, encontramos “é”
somente em palavras derivadas (por exemplo: PÉ — PEZINHO). Todavia, em alguns dialetos (por exemplo, no
baiano), é muito freqüente a distinção entre a vogal aberta “é” e a fechada “ê”, também em sílabas átonas.
Eles dizem, por exemplo, “méninu” (MENINO), ao passo que, em outros dialetos, a pronúncia é “mêninu”.
Nas sílabas átonas, em geral, há uma tendência para a letra E assumir o som de 1. Veja os exemplos:
SEGUINTES EXEMPLOS (“siguintizizêmplus”), ENFEITE (“ifeiti”), etc. Porém, diz- se “êrói” e não “irói” para
HERÓI.
De modo geral, na fala, em posição pós-tônica, encontram-se apenas as vogais orais “i”, “u” e “a”. Pronúncias
com os sons de “ê” e de “ô” representam variantes dialetais que tendem a ser excluídas da norma culta da
língua. Em posição pré-tônica, aparecem as vogais orais “i”, “ê”, “a”, “ô” e “u”, exceto em alguns dialetos do
Nordeste em que se encontram ainda os sons de “é” e de “ó”. Como não há uma regra que defina em que
ambiente de palavras ocorrerá uma vogal aberta (“é”, “ó”), fechada (“ê”, “ô”) ou reduzida (“i”, “u”), a única
saída é conhecer a palavra e as diferenças dialetais de pronúncia. Para a leitura, essa questão traz pouca
dificuldade, mas, para a escrita, o problema é sério.
Essa última questão torna-se mais clara quando constatamos, por exemplo, que o som de “i” (fora de
ditongo) pode ser representado por I ou E. Compare EMPRESTAR (“imprêstar”) com IMPOSTO (“impôstu”);
ENFERRUJAR (“iferrujar”) com INFELIZ (“ifelis”), etc. Veja ain da PARÊNTESES ou PARÊNTESIS. Nesses casos,
somente a ortografia pode dizer se a palavra se escreve com E ou I.
Saber como proceder pode significar errar de vez em quando. Por exemplo, um aluno escreve DICI e o
professor explica que, às vezes, a gente fala “i”, mas deve escrever E: DISSE. Em seguida, o aluno, que aprendeu
a lição (até aí), escreve MÉDECO em vez de MÉDICO. O professor não precisa ficar preocupado: é assim mesmo
que se aprende. O aluno não está aprendendo errado, ele simplesmente não tem condições de operar com
todas as informações a todo instante. O importante é refletir sobre o funcionamento do sistema de escrita. E
isso ele fez muito bem.
Quando a letra E antecede a consoante nasal M ou N (sobretudo se em seguida vier outra consoante ou o
final da palavra), ela adquire um som nasalizado, como se pode constatar nos seguintes exemplos: VEM, TEM,
EMBORA, ENCONTRO, ENTRA, ENTRADA, TENHO, HÍFEN, etc. Conforme as regras vistas anteriormente, mesmo
nasalizada, a letra E terá o som de “e” ou de “i” (se estiver em sílaba átona). Exemplo: EMBORA (“êmbóra” ou
“imbóra”). Poderá também ter o som de um ditongo nasalizado “êi”, como em ITEM (“itêi”), DESDÉM
(“dezdêi”), EMBORA (“êimbóra”), PENTE (“pêinti”). A ocorrência da forma com ditongo nasalizado é mais
comum em final de palavras.
Tal qual a letra A, seguida de I, também a letra E, quando seguida de I, pode ser pronunciada sem o I, quando
essas letras estão diante de R ou de X (representando o som de “chê”). Exemplos: CADEIRA (“kadeira” ou
“kadêra”), PEIXE (“peichi” ou “pêchi”).
370

ESTUDO DA LETRA F
A letra F tem o nome de efe e representa o som que existe entre o “é” e o “i” de seu nome. Em certos dialetos,
algumas letras como o F têm o som básico da letra no início do nome (fê mê, nê, etc.), o que facilita a aplicação
do princípio acrofônico visto antes. Exemplos: FACA, FIQUE, FOCA, FUMAÇA, FEITO, CONFIAR, etc.
Encontrando-se esse som na fala, usa-se a letra E
A dificuldade de alguns alunos não está em reconhecer o som “fé», ou mesmo em distingui-lo do “vê”, mas em
saber em que palavra escreve-se F ou V porque às vezes falam “fê” e, às
zes, “vê”. Quando sussurram, em vez de falar em voz alta, o resultado fonético é um som do tipo fê e não vê
Por isso ao escrever o aluno pode chegar aos seguintes resultados A
FACA CHIFROU O CACHORRO, MARIA COMPROU UMA VIFELA, ELE FEIO AQUI, ANDRE MORA NA FAFELA; (FACA
= VACA; VIFELA = FIVELA; FEIO = VEIO; FAFELA = FAVELA). Essas
confusões se corrigem com a prática, prestando atenção no significado das palavras (faca:
ferramenta; vaca: animal) e na ortografia e não com inúteis exercícios fonéticos de discriminação auditiva e
intermináveis repetições da pronúncia certa. A questão não é fonética, mas dialetal e ortográfica.
ESTUDO DA LETRA G
O nome da letra G é gê e representa tipicamente o som inicial de seu nome. A letra G, contudo,
tem também outro som muito comum, que é o de “guê” Existe um paralelismo entre a letra C
e a letra G (a letra G foi derivada da letra C com um traço na parte final inferior para
distinguir o som de “kê” do som de”guê”,no latim).
A letra G, quando diante do grupo de vogais E e I,tem o som de “jê” e,quando diante do grupo de vogais A, O e
U, tem o som de “guê”, como se constata nos seguintes exemplos:
GENTE (‘jênti”), GIRASSOL (“jiraçóu”); mas, GATO, GOTA, GULA (com som de “guê”).
Para escrever o som de “guê”, seguido de E ou de I, basta acrescentar um U entre o G e a vogal. A letra U,
nesses casos, não é pronunciada. Ela simplesmente modifica o valor da letra G. Exemplos: GUERRA, GUIAR,
FOGUEIRA, ÁGUIA, etc. (todos com som de “guê” ou de “gui”).
Porém, se depois do G + U ocorrerem as letras A ou O, pronuncia-se também oU, como se percebe nos
seguintes exemplos: GUARANA, AGUA, CONTIGUO, EXÍGUO. Note que há casos em que ocorre G + U, seguidos
das vogais E ou I, e a letra G tem o valor fonético de “guê” e o U também é pronunciado, como em SAGÜI
(“sagui”), AGÜENTAR (“aguéntar”). Compare CONTÍGUO com CONTIGO
Como se pode ver, o caso acima é semelhante ao da letra Q, visto no estudo da letra C.
Também já foi mencionado antes numa regra mais abrangente, que, quando se têm duas consoantes
diferentes em seqüência, ou no final de palavra (exceto com S, Z, R, M e X em alguns casos em meio de
palavra), a primeira consoante poderá ser pronunciada com um “i”. No caso da letra G, veja os seguintes
exemplos: GNOMO (“guinomu” ou “gnomu”), IGNORAR (“iguinorar” ou “ignorar”). Quando se pronuncia o “i”,
tem-se uma sílaba a mais na palavra. Quando não se pronuncia o “i”, o som “g” fica no final da sílaba que o
precede.

7Ouso do trema na escrita facilita a leitura, mostrando ao aluno que o U deve ser pronunciado. Se não
aparecer trema nas escritas GUE, GUI (ou QUE, QUI), o U não será pronunciado.
371
Quando se passa dos sons da fala para a escrita, descobrimos que o som de ‘lê” tanto pode ser escrito com a
letra G (somente seguido de E ou de I), como pela letra J (diante de qualquer vogal): GELO, GIRAR, JANELA,
HOJE, JILÓ, JOVEM, JUIZ. Isso traz uma dificuldade ortográfica que só se resolve com a prática constante da
escrita.
“Como é que se escreve tal palavra, com G ou com J?” é uma pergunta que os usuários da
escrita do português freqüentemente fazem.
Uma dificuldade mais fácil de resolver (semelhante ao caso da letra C) acontece quando, por causa das regras
estabelecidas em palavras derivadas, ora se tem G, ora GU, para manter o valor fonético original da palavra
(“guê”), como nos exemplos a seguir: CEGO/CEGUEIRA, FOGO/FOGUEIRA, AFOGO/AFOGUEI e assim por diante.
Alguns alunos trocam GU por QU (ou vice-versa), não por dificuldades auditivas, mas pela dificuldade gráfica
que essas escritas apresentam. Mais raramente, cometem esses enganos por dificuldades de reconhecimento
fonético, sobretudo em certos contextos (no meio de palavras), e acabam escrevendo, por exemplo:
FREGÜENTE em vez de FREQÜENTE, AQÜENTAR em vez de AGÜENTAR, ou mesmo ANTIQUO em vez de
ANTIGO. Outro tipo de confusão muito comum é a troca de G por C, como em AMICO em vez de AMIGO. Esses
são erros que se corrigem pela ortografia e não através de exercícios de contraste de sonoridade.
Quase sempre, o professor deverá ensinar aos alunos não só o que se pode fazer, como também o que não se
pode fazer, já que desse modo os limites ficam mais bem determinados e os alunos aprendem melhor e mais
rapidamente. Por exemplo, há uma regrinha que diz que em palavras derivadas mantém-se a letra usada na
grafia da palavra primitiva, como mostram os exemplos: LARANJA e LARANJEIRA, MANGA e MANGUEIRA.
ESTUDO DA LETRA H
A letra H tem o nome de agá. Na língua portuguesa, essa letra não representa nenhum som particular
Portanto, seu nome não tem serventia para a decifração da escrita. Exemplos: HOMEM, HERA, HORA No
entanto, essa letra serve para formar dígrafos. Nesses casos, a letra H modifica o som da letra anterior
Exemplos. CHAVE, UNHA, ILHA.
A letra H, no nosso sistema de escrita, funciona como uma espécie de curinga, servindo para modificar o valor
fonético da letra que a precede. Na escrita da língua portuguesa, a letra H pode vir precedida por C, N e L,
produzindo os dígrafos (duas letras com um único som), como CH, NH e LH.
O alfabeto latino não tinha letras para representar esses sons palatais porque não havia esse tipo de som em
latim. Como o português escolheu o alfabeto latino para sua escrita e como não podia inventar letras, a solução
encontrada foi criar dígrafos. A letra H, e mais raramente a letra X, são usadas para modificar o valor do som
anterior, como uma estratégia para não inventar letras novas. Esse emprego do curinga H, formando dígrafos,
alterou o princípio acrofônico de uma maneira inteligente, abrindo possibilidades de novos empregos para as
letras, sem alterar o alfabeto.
O professor pode mostrar o valor dos dígrafos, comparando-os com os das letras simples, através de pares
mínimos: MALA/MALHA, SONO/SONHO, FICA/FICHA, etc.
Quando a letra H vem no início de palavras, não forma dígrafos e não apresenta, pois, som algum. Em
conseqüência, a leitura começará na letra imediatamente seguinte, como se vê em:
HABITAÇÃO, HELENA, HINO, HORA, HUMILDE, etc. Repare que a letra seguinte é sempre uma vogal.
372

Em palavras de origem estrangeira, sobretudo em nomes próprios, a letra H tem o som de “R inicial de
palavras”, como se observa nos nomes HONDA (“rõnda”), YAMAHA (“iamarra”), HOTEL HILTON (“otéurriutõu”),
etc.
Como não é possível estabelecer regras para a ocorrência ou não da letra H (a não ser no caso dos dígrafos), é
muito difícil saber se uma palavra começa com a letra H ou não. Somente o conhecimento prévio da ortografia
pode dizer. Em alguns poucos casos, dá até para saber se haverá H ou não, dependendo do significado da
palavra, como ocorre em HORA e ORA, HAJA e AJA. Note, por exemplo, que escrevemos ESPANHA, mas temos
de escrever HISPÂNICO, ou, ainda, escrevemos ERVA e HERBICIDA, etc. Esta é uma grande dificuldade para o
usuário do sistema: por que HUMILDE se escreve com H e UMIDO não? O professor não deve se preocupar
com essas dificuldades, mas deve explicá-las aos alunos. Com o tempo, irão fixando a grafia das palavras mais
comuns.
Alguns alunos, que aprenderam a decifrar usando o nome das letras e o princípio acrofônico, pensam que a
letra H funciona como as demais e, quando vão escrever (e mais raramente ler), fazem coisas como: HRA
(AGORA), HLÏA (GALINHA), etc.
Outro tipo de dificuldade maior e mais comum vamos encontrar na forma lexical de certas palavras que
apresentam pronúncias diferentes em alguns dialetos. Para ilustrar esse fato, encontramos um aluno que fala
por exemplo miu (MILHO) fia (FILHA) bãia (BANHA) e sim por diante. Há, ainda, aqueles falantes (mesmo da
norma culta) que variam a pronúncia de “Ih” com a de “li”, como em BATALHA (“batalha” ou “batalia”),
FAMÍLIA (“família” ou “familha”), etc.
O aluno precisará aprender não só a reconhecer os sons da sua própria fala, mas saber ainda que na norma
culta há uma forma lexical diferente, na qual a ortografia se baseia. Nesses casos, saber escrever respeitando a
ortografia exige uma longa aprendizagem, e o professor não pode cobrar esse conhecimento muito cedo. Pode
e deve despertar a dúvida ortográfica nos seus alunos, e pedir a eles que corrijam o material que escreverem.
Ler os dígrafos com H é tarefa fácil: o H está presente para alertar o leitor. Escrever o NH e o LH não apresenta
grande dificuldade. As maiores encontram-se nos casos de variação dialetal.
Com relação ao CH, existe uma dificuldade extra na escrita, criada pelo uso da letra X com o valor de “chê”.
Portanto, partindo da fala, o aluno terá duas formas de representar um mesmo som, e a escolha de uma ou de
outra não é facultativa, mas controlada pela ortografia. Esse tipo de dificuldade os alunos superam à medida
que forem praticando a leitura e produzindo textos. Trata-se de um conhecimento que não se adquire em
pouco tempo. O professor deverá, pois, ter paciência com os erros dos alunos.
Nos dialetos em que o S se palatiza em final de sílaba ou diante de outra consoante, o som de “chê” será
escrito com S ou Z: “ichkóla” (ESCOLA), “rrapaich” (RAPAZ), “pichta” (PISTA), etc. Esse problema, na verdade,
representa pouco para os alunos. Eles o resolvem facilmente, da mesma maneira como resolvem as pronúncias
de “ti” e “tchi”, escrevendo T e não TX ou TCH.
ESTUDO DA LETRA I
A letra 1 tem o nome dei e “i” é o som que ela representa. Como acontece com as demais vogais, quando a
letra I vem diante de uma consoante nasal M ou I podera apresentar som nasalizado ou não. Veja os exemplos:
VI, CIDADE, CINTO, VINHO, VIM, CINEMA.
A letra I não apresenta dificuldades para leitura, mas o mesmo não acontece com a escrita. Essa variação pode,
às vezes, atrapalhar o aluno e criar problemas sérios de escrita e até de leitura, por causa do medo de errar.
373

Nem todo som de “i” será escrito com a letra I, podendo, por exemplo, ser escrito com a letra E, como nas
palavras: “iskóla” ESCOLA, “ifiar” ENFIAR. Como a língua portuguesa tem muitas palavras com o som de “i”, que
ora se escrevem com E, ora com I, fica difícil saber a ortografia, e os usuários têm comumente dúvidas
ortográficas a respeito dessas grafias. Não há como ensinar a resolver esse problema a não ser criando o bom
hábito de ter dúvidas ortográficas e de buscar resolvê-las, procurando num dicionário ou perguntando a quem
sabe.
Como já foi visto, em palavras como “opitei” OPTEI, “obijétu” OBJETO, etc., pode existir
uma vogal “i” na fala, porém não na escrita. O mesmo acontece em palavras como “üinha”
UNHA, “bãinha” BANHA, etc.
Algumas palavras apresentam uma variação entre 01 e OU, como LOIRO e LOURO, COISA e
COUSA, DOURADO e DOIRADO. Essa variação acontece tanto na fala quanto na escrita e não
traz, portanto, nenhum problema.
Vimos anteriormente que algumas palavras têm duas pronúncias, uma com um ditongo (M,
• El) e outra sem o ditongo (A, E), quando esses sons se encontram diante de R ou X (com o som de “chê”),
como em: CAIXA (“kaicha” ou “kacha”), BANDEIRA (“bãndeira” ou “bãndera”). Essas diferenças de pronúncia
costumam atrapalhar o aluno na hora de escrever. Além da dificuldade específica dessas palavras, o fenômeno
pode criar dificuldades com outras palavras que apresentem contextos semelhantes, fazendo com que o aluno
use uma forma com hipercorreção. Por exemplo, em vez de escrever PÊRA, o aluno escreve PEIRA, etc.
ESTUDO DA LETRA J
A letra J tem o nome de jota e seu som básico é o que aparece no início de seu próprio nome.
Sempre que a letra J aparecei; o som correspondente na decifração será o
Exemplos: JAMAIS, JEITO, JIBÓIA, JOGADOR, JUVENTUDE, etc.
Note que o som de “jê” pode ocorrer diante de todas as vogais. A letra J pode ser usada diante de qualquer
vogal, mas a letra G tem o som de “jê” apenas diante das vogais E e I. Portanto, para escrever o som de “jê”
seguido de “a”, “ó”, “ô” e “u”, o único jeito permitido pelo sistema é o uso do J. Saber isso, ajuda muito o aluno
na hora de escrever.
Diante dos sons de “ê”, “é” e “i”, pode-se ter a letra J ou G, dependendo da ortografia. Esse
fato, aparentemente simples, na verdade causa grandes confusões e é uma permanente fonte de dúvidas
ortográficas.
O aluno deve aprender ainda que o som de “jê” seguido do de “dê”, formando o “djê”, deve rá ser escrito com
a letra D apenas, como em DIA (“djia”), BODE (“bódji”), etc.
ESTUDO DA LETRA K
A letra K tem o nome de cá e representa o som inicial de seu nome: “kê”. Essa letra caiu em desuso já no latim.
Como algumas línguas usam essa letra, palavras de origem estrangeira, sobretudo nomes próprios, podem ser
escritas com ela. Pode aparecer também em abreviaturas cientificas. Alguns exemplos: Kwait, km, kg.
A letra K mantém seu valor fonético diante de qualquer vogal. O ensino, do K deve restringir-se à grafia de
nomes próprios.
374
ESTUDO DA LETRA L
O nome da letra L é ele e o seu som básico é o que se encontra no meio do nome entre o som ‘ e o “i’ Em final
de sílabas, tem também o som de “u’ Exemplos: LATA, LIVRO, MAL, SOL, CLARO.
Há três casos típicos de ocorrência da letra L: a) em início de sílaba, sempre antes de vogal; ) entre uma
consoante e uma vogal na sílaba; e c) em final de sílaba, sempre entre uma vogal e uma consoante ou em final
de palavra. No primeiro caso, a letra L tem o som básico de “lê», como, por exemplo: LATA (“lata”), LETRA
(“letra”), LOGO (“lógu”), LIGA (“liga”). No segundo caso, tem o mesmo tipo de articulação e o mesmo tipo de
som como em BLUSA (“bluza”), PIANO (“plãnu”), CLASSE (“klaçi”). A letra L (juntamente com a letra R) pode
formar um grupo consonantal com P, B, T, D, C (com o som de “kê”), G (com o som de “guê”),F e V .Nesses
casos, a letra L vem em segundo lugar e tem o som de “lê” (segundo o caso menciona do acima). Veja os
exemplos: PLANTA, PROBLEMA, ATLÂNTICO, CLARO, GLORIA, FLECHA (na língua portuguesa poderiam ocorrer
D e V seguidos de L, seguindo o mesmo padrão das outras consoantes, porém, não existem palavras com essas
ocorrências, a não ser DLIN-DLON, VLADIMIR e pouquíssimas outras).
No terceiro caso, tem o som de “u”, como parte final de um ditongo formado com a vogal precedente, como
mostram os exemplos: SALTO (“çautu”), SAL (“çau”), FUNIL (“funiu”), MEL (“méu”), SUL (“çuu”). Em alguns
dialetos do Sul do Brasil, o L em final de sílaba mantém o valor fonético que apresentanos outros contextos,
não ocorrendo, pois, a formação de ditongo. Nesses dialetos, as pronúncias são: “çaltu” (SALTO), “çal” (SAL
),“funil” (FUNIL) “mél” (MEL), “çul” (SUL)
A letra L apresenta pouca dificuldade de leitura. Uma vez que o aluno identificou as letras e formou sílabas, as
palavras emergem automaticamente, e assim o aluno consegue dizer o que está escrito.
Partindo da fala para a escrita, encontramos um problema sério para os alunos. Pelo valor fonético de “u” que
a letra L tem, e como, no mesmo contexto do L, pode ocorrer a letra U, também com o som de “u”, é fácil ler,
mas é difícil saber quando escrever uma ou outra letra. Compare as seguintes palavras: CALDA, CAUSA, MEL,
CÉU, VÉU, TERRÍVEL, PAPEL, CHAPÉU, SAL, SAUDADE, POUPA, POLPA.
A ortografia distingue poucas palavras pelo significado e com grafias diferentes, usando L ou U São palavras
homófonas, como ALTO (que diz respeito à altura) e AUTO (que significa ‘por si próprio’). O que permite saber
que PLANALTO se escreve com L e não com U e AUTOMÓVEL se escreve com U e não com L é a composição
dessas palavras, uma formada por ALTO e outra, por AUTO
A dificuldade maior com relação ao uso correto da letra L, como em outros casos, reside no fato de alguns
alunos falarem um dialeto em que as palavras têm pronúncias diferentes, acrescentando novos valores
fonéticos à letra L e dificultando em muito o acerto da grafia das palavras a partir da observação da fala. Por
exemplo, alguns alunos falam: “prãnta” (PLANTA), “bardji” (BALDE), “pobrema” (PROBLEMA), etc., ao lado de
palavras como “prato” (PRATO), “barcu” (BARCO), “pobri” (POBRE) e assim por diante. Só a ortografia pode
resolver esse tipo de problema, o que mostra que ela tem um poder enorme no nosso sistema de escrita.
O professor não deve incentivar esses alunos a observarem detalhadamente a própria fala para escrever. É
melhor ir pensando com quais letras se escrevem as palavras, fazendo, aliás, o mesmo que fazem os usuários
veteranos da escrita. Ao escrever, estes se guiam mais pelo significado do que por uma análise detalhada dos
sons da fala. Os alunos, na alfabetização, podem ir escrevendo do mesmo modo, sobretudo quando são
falantes de dialetos que têm

375

uma pronúncia muito diferente da pronúncia da norma culta ou, como dizem alguns professo. res, quando
“falam errado”
ESTUDO DA LETRAM
A letra M tem o nome de eme. O som que aparece no meio, entre “e” e “i”, representa o som básico da letra.
Nos dialetos em que o nome da letra é mê, o princípio acrofônico fica mais evidente.
1
A letra M tem duas funções distintas, uma quando ocorre em início de sílaba e outra quando ocorre em final de
sílaba (ou de palavra). No primeiro caso, a letra M tem o som básico de “mê”, como, por exemplo, em: MAR,
MURO, CAMELO, MORAR, COMIDA, etc. No segundo caso, a letra M representa a nasalização da vogal
precedente, e pode ter ainda um som consonantal palatal (“nh”), depois da vogal nasalizada “i”, ou um som
consonantal velar (“13 »)8, depois da vogal nasalizada “ii”. Veja os exemplos, a seguir: VEM (“vêi” ou “vêinh”),
EMBORA (“ibóra” ou “ïnhbóra”), BOM (“bõu” ou “bõuij”), ALGUM (“augú” ou “augürJ”). Além disso, observe o
fenômeno de juntura intervocabular, em que essas consoantes nasais ficam mais evidentes, uma vez que
passam de final de sílaba para início de sílaba, como se mostra nos seguintes exemplos: VEM AQUI (“véi-nha-
qui”), ALGUM AMIGO (“au-gü-rja-mi-gu”).
Quando a nasal M ocorre no interior de palavras, em fmal de sílaba, diante de consoante no início da sílaba
seguinte, além dos casos contemplados acima, a letra M pode ter o som de “mê”. Nesse caso, quando ocorre o
som do “mê”, a vogal precedente pode ser nasalizada ou não (se for a vogal A, haverá sempre a mudança de
qualidade, com ou sem a sobreposição da nasalização). Outra possibilidade é a pronúncia da vogal nasalizada,
sem a ocorrência da con soante nasal M. Exemplos: CAMPO (“kãmpu” ou “kãpu”), TEMPO (“témpu” ou
“têpu”), LIMPO (“limpu” ou “lipu”), etc. As consoantes nasais apresentam dificuldades de leitura e de escrita,
diante das quais os alunos costumam se atrapalhar. Às vezes, algumas considerações gerais ajudam a resolver
pequenas dificuldades. Nos verbos, as terminações nasalizadas são escritas com M: FIZERAM, CONTAM — com
exceção do futuro em -ÃO: ACHARÃO, VENDERÃO e de alguns verbos irregulares, como SÃO e ESTÃQ
Nos substantivos e adjetivos, as terminações nasais costumam acabar em vogal com til e
não em vogal com nasal: CORAÇÃO, ÓRFÃ, ANÕES. Os aumentativos e os plurais também não têm consoante
nasal: LIVRÃO, CORAÇÕES, etc.
Raras palavras serão escritas com N em vez de M, como HÍFEN, PÓLEN, SÊMEN, etc.
Estudar a estrutura de contextos, ou seja, os sons ou letras que vêm antes e depois de uma determinada
unidade fonética ou caractere, é importante para ajudar o aluno a refletir sobre os segmentos. Um bom motivo
para tratar desse assunto é ensinar quando se usa M ou N em final de sílaba, antes de consoante, no meio de
palavras. A regra é fácil: usa-se M diante de P e B, e N diante das demais consoantes. Como não se escreve til
no meio de palavras (com raríssimas exceções, como CÃIBRA e os aumentativos e diminutivos), toda vogal com
som nasalizado que ocorre diante de consoante seguirá essa regra. Exemplos: CAMPO, BOMBA, CANTO,
INFELIZ, ENVELOPE, CONSUMIR, etc.
Ler a letra M é muito mais fácil do que usá-la na escrita. Quando aparecer o som de “mê”, usa-
se a letra M. Isso é evidente no início de sílaba — mais ainda no início de palavra. As regrinhas de decifração
apresentadas acima também ajudam, em muitos casos, o aluno a decidir sobre a escrita.
8 o som Fiji, ver explicaçáo na página 368.
1
376
Quando a letra M (ou a letra N) indica a nasalização da vogal precedente, o que se sabe distinguindo se a sílaba
acaba em som nasal, seguido ou não do S do plural, a vogal nasalizada pode ser pronunciada com um ditongo
formado por 1” ou “ti”. Essa pronúncia é muito evidente, mas a escrita não registra a vogal 1 nem o U. Mostrar
esse fato aos alunos com exemplos ajuda a esclarecer um tipo de dúvida ortográfica freqüente. Exemplos:
“ómëinh” (HOMEM), “tãmbëinh” (TAMBÉM), “sõurj” (SOM), etc. Note, porém, que essa regra serve apenas
para algumas palavras, não para todas. Veja, por exemplo, as grafias de MÃE, PÕE, ANÕES, etc.
Deve ficar claro para o aluno que, sempre que houver uma vogal nasalizada, deverá ocorrer uma consoante
nasal depois (M, N, NH) ou a vogal deverá vir com o diacrítico da nasalização, que é o til. O til ocorre somente
sobre a vogal A (“ã”) ou sobre a vogal O (“õ”). O segundo caso acontece somente nas terminações de plural ou
no caso do verbo PÔR. Exem plos: IRMÃ, IRMÃS, BALÃO, BALÕES, MÃE, MAES, CIDADÃO, CIDADÃOS, PÕES,
PÕEM.
Por fim, lembre que a palavra “muitu”, apesar da nasalização do ditongo “ui”, é escrita sem consoante nasal ou
til, porque assim foi fixada sua grafia.
ESTUDO DA LETRA N
A letra N tem o nome de ene. Seu som básico é o que está intercalado, no seu nome, entre o “é” e o “i”, como
acontece com algumas letras no nosso alfabeto. Nos dialetos em que o nome da letra é nê, aplica-se mais
facilmente o princípio acrofônico..
A letra N tem uma distribuição na fala e na escrita semelhante à da letra M, ocorrendo um paralelismo entre as
duas letras.
Sua ocorrência com o valor fonético básico encontra-se tipicamente em início de sílaba, como em: NIVEL,
NADA, NETO, NOTA, NUCA. Esse som básico pode ocorrer também diante da consoante oclusiva T ou D, no
interior de palavra, em final de sílaba, como nos seguintes exemplos: CANTO, REDONDO, SINTO, ANDO, etc.
Diante das consoantes oclusivas velares, representadas pelas letras C (com o som de “kê”), G (com o som de
“guê”) ou QU, a letra N pode representar, na fala, uma consoante nasal velar (rj) como, por exemplo, em:
BANCO (“bãrjku”), MANGA (“mãrjga”), ENQUADRAR (“irjkuadrar”). Diante de outras consoantes, como F, V S, Z,
Ç, R, L, só ocorre a nasalização da vogal precedente, sem a presença da consoante nasal. Em falas muito
enfáticas, vale a regra segundo a qual, depois de “i” ou de “e” nasalizados, pode ocorrer uma consoante nasal
palatal do tipo “nh”; e depois de “ã”, “õ”
e “á “, pode ocorrer uma consoante nasal velar do tipo “ij “. Exemplos: ENLATADO (“éilatadu”
ou “êinhlatadu”), ENFORCAR (“iforcar” ou “inhforcar”), ONÇA (“õuça” ou “ourJça”), JUNTA (“jüta” ou “j€írjta”),
etc.
Lembre que, no interior de palavra, no final de sílaba, a letra N pode representar apenas a nasalização da vogal
precedente, não tendo outro som, como mostram os últimos exemplos.
Quando se parte da fala para a escrita, sempre que for detectado o som de “nê”, será usada a letra N. A letra N
será raramente usada em final de palavra. No meio de palavra, quando ocorrerem vogais nasalizadas
(monotongos ou ditongos), o aluno vai ter de decidir entre o uso da letra M ou da letra N, para colocar no final
da sílaba (em início de sílaba, a decisão é fácil, bastando observar se na fala ocorre o som de “mê” ou de “nê”).
Como já foi visto, a letra M só será escrita diante das letras P e B, e a letra N diante de qualquer outra letra
(representando uma consoante), ou seja, diante de T, D, C, Q, G, F, \‘ 5, Z, Ç, R, L, X. Exemplos: SANTO, INDO,
CINCO, CONQUISTA, FRANGO, CONFIAR, ENVIAR, TRANSPORTAR, ENZIMA, TRANÇA, HON RA, ENLAMEAR,
ENXADA.
377

A letra N será escrita na forma do dígrafo NH quando tiver esse som palatal em início de sílaba. Tal som não
ocorre em início de palavra, exceto em palavras estrangeiras (NHOQUE), em nomes próprios oriundos de
línguas indígenas (NHEENGATU) e na palavra NHÔ, uma forma abreviada antiga para SENHOR (SINHÔ).
ESTUDO DA LETRA O
A letra O tem dois nomes: chama-se ô quando está entre as demais letras do alfabeto, e tem
o nome de ó quando faz parte da série das vogais: A, E, I, O, U Existe um paralelismo entre
as funções da letra O e da letra E no sistema de escrita e na fala.
Às vezes, a escrita exige o acento circunflexo ou agudo para indicar se a qualidade fonética da letra O será
fechada “ô” ou aberta “ó”. Exemplos: AVÔ, AVÓ, ANTÔNIO, CÓLICA, etc. Entretanto, nem sempre a escrita faz
uso desses diacríticos. Quando eles não estão marcados, se for a sílaba tônica da palavra, pode ocorrer o som
“ó” ou “ô”, e o aluno precisará descobrir que palavra está escrita, para, depois, saber se se trata de um som ou
de outro. Como se disse acima, trata-se de um problema semelhante ao encontrado no estudo da letra E. Veja
os seguintes exemplos: BOLO (“bôlu”), BOLA (“bóla”), PORTO (“pôrtu”), PORTA (“pórta”). Somente o
conhecimento que o aluno tem da língua portuguesa, como falante nativo, pode mostrar a ele como se
pronuncia.
Em alguns casos particulares, pode-se saber um pouco mais. Por exemplo, algumas palavras têm o som “ô” no
masculino singular, mas no plural ou no feminino (singular ou plural) têm o som “ó”, como em: PORCO
(“pôrku”), mas PORCOS (“pórkuç), PORCA (“pórka”), PORCAS (“pórkaç”) e assim por diante. Às vezes, a
semântica ou a sintaxe (o significado ou a função das palavras na frase) podem ajudar a mostrar as diferenças,
como em ROLA (“rôla” passarinho e “róla” do verbo ‘rolar’). Veja ainda, como exemplos, SOCO (“çôku” e
“çóku”) e CONFORTO (“kõfôrtu” e “kõfórtu”).
A letra O, em sílaba átona, tende a ser pronunciada “u”, ficando a pronúncia do O fechado para uma fala mais
formal ou própria de certos dialetos (do Sul do país e no dialeto caipira). Exemplos: TODO (“todu”), MUNDO
(“múndu”), CAPÍTULO (“kapítulu”) e assim por diante. Quando a vogal é nasalizada (diante de M ou N seguidos
de consoante), a tendência é mais para “õ” do que para “u” nasalizados: CONFIANÇA (“kõfiãça”), COMBATE
(“kõmbati”). Porém, se a nasalização da vogal for optativa (a nasal começa a sílaba), a tendência é a vogal “u”
ser nasalizada, como em COMIDA (“kumida”). Há sempre alguns casos que não se enquadram bem, como
COMPRIDO, que praticamente é homófono de CUMPRIDO, ou COLOCAR, cuja pronúncia com “u” na primeira
sílaba não representa a fala comum da norma culta.
Quando se parte da observação da fala para a escrita, sempre que se encontrar um “ô” ou um “ó”, a letra a ser
usada será o O (em alguns casos cõm a marca do acento agudo ou circun flexo). Entretanto, quando se
encontrar o som de “u” em sílaba átona, é preciso conhecer a ortografia da palavra, para saber se deverá ser
escrita com a letra O ou U.
Algumas vezes, o som de “ô” precisa ser escrito com duàs letras: O e U. Isso ocorre com algumas palavras que
podem ter a pronúncia com “ô” ou com “ou” como, por exemplo, TOU RO (“tôru” ou “tôuru”), POUCO (“pôku”
ou “pôuku”). Ocaso não é tão simples, porque palavras como “poupa” e “çoudádu” serão escritas com L:
POLPA e SOLDADO (confira ainda a palavra POUPA, de ‘poupar’).
A regra apresentada acima mostra por que alguns alunos decidem escrever BOUA em vez
de BOA, ou PROFESSOURA em vez de PROFESSORA, revelando a dificuldade de chegar à ortografia observando
somente a fala e as relações possíveis entre letras e sons.
378
ESTUDO DA LETRA P
A letra P tem o nome de pê e seu som básico é o que se encontra no início de seu nome.
Quando a letra P vem escrita em final de sílaba, ou seja, diante de outra consoante que não seja R nem L, pode
ter o som de “pi”, ou apenas de “p”. No segundo caso, a pronúncia é mais formal do que no primeiro caso.
Exemplos: APTO (“ápitu”), RAPSÓDIA (“rrapiçódia”), ADAP TAR (“adapitar”), OPÇÃO (“opição”), etc.
Somente observando a fala, é impossível saber quando escrever P com ou sem 1. A variação é controlada
apenas pela forma ortográfica e não pela pronúncia ou por alguma regra contextual da escrita. Confira, por
exemplo, “rrápitu” (RAPTO) e “rrápidu” (RÁPIDO).
Uma dificuldade semelhante a essa acontece com os sons de “pç” (representado pelas letras P5, PISI, PIS mais
consoante ou PICI) em início de sílaba. A ortografia tem vários modos de escrever, como se pode constatar nos
seguintes exemplos: “piçikolojia” ou “pçikolojia” PSI COLOGIA; “piçina” ou “pçina” PISCINA.
Essas várias formas ortográficas não causam grandes embaraços na decifração e na leitura, mas são terríveis na
escrita para o aluno que está começando a aprender. O professor não deve dar muita atenção a erros oriundos
desse tipo de dificuldade, porque eles se resolvem com o tempo.
ESTUDO DA LETRA Q
A letra Q tem o nome de quê e seu som básico está logo no início do seu nome: ‘kê’ A letra Q
vem sempre seguida da letra (4 na escrita, porém o Unem sempre é pronunciado.
Como foi dito nos comentários à letra C, o dígrafo QU substitui a letra C para representar o som de “kê”
quando este precisa associar-se aos sons “ê”, “é” ou “i”, como em: QUERIDA (“kerida”), QUERO (“kéru”),
QUINTAL (“kintau”).
Em palavras derivadas, pode ocorrer a troca de C pelo QU quando o sufixo começar pela vogal E ou 1, para
preservar o som original de “kê” da letra C na palavra primitiva. Por exemplo: VACA/VAQUEIRO, FICO/FIQUEI,
TOCARJTOQUE, BARCO/BARQUINHO, etc.
Como em português existem palavras que apresentam os sons “kui”, “kuê”, “kué”, e a ortografia tem dois
modos de escrever esses sons: QUI, QUE ou CUI, CUE, é preciso mostrar como se escrevem as palavras mais
comuns para que o aluno se acostume com a ortografia correta. Observe os seguintes exemplos: LÍQUIDO
(“líkuidu”), FREQÜENTE (“frekuénti”), SEQÜÊNCIA (“çekuéçia”); porém, CUIDAR, CUECA, RECUE, etc. Esse tipo
de problema, o professor resolve à medida que for aparecendo nos textos dos alunos, sem insistir muito.
Essa dificuldade atrapalha a escrita. Quanto à leitura, basta o aluno identificar QU com o som de “kê”, para
descobrir que palavra está escrita (identificação semântica) e assim recuperar a pronúncia completa e correta
da palavra como um todo.
Quando a letra A vem depois das letras QU, a letra U do dígrafo tem o som de “ti”: QUATRO (“kuatru”),
TAQUARA (“takuara”), AQUARELA (“akuaréla”). Observe, todavia, que há duas formas diferentes para o
número 14: QUATORZE (“kuatôrzi”) e CATORZE (“katôrzi”). O mesmo, porém, não acontece com os exemplos
anteriores.
379
Quando as letras QU aparecem diante de O, têm-se duas pronúncias e duas formas ortográficas. A vogal U do
digrafo pode ser pronunciada ou não. Quando não é pronunciada, a ortografia admite a forma com a letra C,
em vez do dígrafo QU, como mostram os seguintes exemplos: QUOTA/COTA, QUOTISTA/COTISTA,
QUOTIDIANO/COTIDIANO.
Dadas as dificuldades de escrita, alguns alunos acabam fazendo opções ortográficas diferentes, mas nem por
isso estranhas. Pelo contrário, revelam usos que poderiam ser empregados pela ortografia (e no passado não é
difícil encontrar exemplos disso, como VACA escrito VAQUA, CINCO escrito CINQUO, etc.). É somente por
razões das regras da ortografia atual que não se pode escrever MAQUA (maca), QUIDADO (cuidado), QUAXA
(casa), etc.
Quando os alunos cometem esses erros, não revelam distração nem incapacidade para perceber e aprender,
mas estabelecem relações possíveis entre sons e letras, embora descartadas pela ortografia atual. Um bom
exercício para o professor fazer no início, quando está explicando as relações entre letras e sons e a escrita
ortográfica, é escolher palavras e tentar escreve-las de todas as maneiras possíveis e depois mostrar para os
alunos qual é a forma escolhida pela ortografia. Por exemplo, uma palavra como “casa”, em princípio, poderia
ser escrita das seguintes formas: CAZA, CASA, KAZA, KASA, QUAZA, QUASA, CAXA, QUAXA. Entretanto, a for ma
ortográfica atual é apenas CASA.
ESTUDO DA LETRA R
A letra R tem o nome de erre e o som básico que a representa é o que ocorre entre “é” e “i” do seu nome. O
sistema de escrita, porém, distingue o uso de um R do uso de dois RR, formando um dígrafo. Dessa maneira,
em alguns casos é possível distinguir dois sons diferentes, um chamado de R fraco e outro de R forte (ou
vibrante simples e vibrante múltipla
Foneticamente, a vibrante simples representa um tepe’, mas a vibrante múltipla pode representar uma
variedade de sons. Para ilustrar a diferença entre uma vibrante simples e uma múltipla, basta observar os
seguintes pares mínimos: CARO/CARRO, MURO/MURRO, FERA/FERRA. Portanto, entre duas vogais, pode
ocorrer apenas um R ou dois RR, representando dois sons diferentes. A vibrante simples “r” tem apenas um
valor fonético: o tepe (ARARA, SERA, TIRO, FURO, etc.).
A vibrante múltipla “rr”, por sua vez, dependendo do dialeto, pode representar vários valores fonéticos. Um
dos mais comuns é um som fricativo velar surdo, como ocorre tipicamente em CARRO, ROUPA (dialeto paulista
e carioca) e em MAR, CERTO (no dialeto carioca). No dialeto mineiro e em alguns dialetos do Nordeste, a
vibrante múltipla tem o valor fonético de uma fricativa glotal surda (ou seja, uma “aspiração”), como em
CARRO, ROUPA, MAR, CERTO. Em alguns dialetos do Sul do país, a vibrante múltipla pode ter o valor fonético
de uma consoante vibrante (um tepe com vários movimentos rápidos da língua), como em CARRO, ROUPA,
MAR, CERTO. Nos chamados dialetos “caipiras”, quer a vibrante simples, quer a vibrante múltipla podem ter o
valor fonético de uma consoante retroflexa (articulada com a ponta da língua levantada em direção do céu da
boca), produzindo um dos sons mais típicos do dialeto caipira. Exemplos: ROÇA, PORTEIRA, BRASIL, ARARA,
TIRO, MAR, VIR.
Dependendo da palavra, os falantes de todos os dialetos ora dizem as vibrantes surdas, ora sonoras, bastando
observar o comportamento das cordas vocais na produção da fala.
9 Tepe:som alveolodental produzido com um toque rápido da ponta da língua contra os alvéolos dos dentes
incisivos superiores.

380
Por exemplo, é comum que as pessoas digam palavras como CARRO, RODA, MURRO, com uma vibrante surda;
mas também é comum que digam as seguintes palavras com uma vibrante sonora: BARRIGA, TORRADA, TERRA.
Em alguns casos, às vezes, o falante usa a vibrante surda, outras vezes usa a vibrante sonora, como em RITA,
RETA, ERRO, etc.
O mesmo som “r” (vibrante simples), que aparece em CARO, MURO, FERA, ocorre também quando a letra R
vem escrita entre uma consoante e uma vogal, dentro de sílabas. Os grupos consonantais que se podem formar
desse modo são: PR, BR, TR, DR, CR, GR, FR, VR, por exemplo: PRATO, BRASIL, TRABALHO, PADRE, CRIANÇA,
GRATIDÃO, FRACO, LIVRO.
Se, porém, houver uma divisão silábica entre o R e uma consoante anterior (que será S ou N), a letra R terá o
som da vibrante múltipla “rr” (igual ao que há em MURRO, CARRO), como se constata nas palavras HONRA
(“õurra?’), ISRAEL (“izrraéu”).
Quando a letra R ocorre no final de uma sílaba, com a sílaba seguinte começando por consoante, ela pode ter o
som da vibrante simples ou múltipla, dependendo do dialeto: POR TA (“pórta” ou “pórrta”), CARPA (“karpa” ou
“karrpa”).
O mesmo fenômeno ocorre com o R que aparece no final de palavras: MAR (“mar” ou “marr”), FINGIR (“fijir”
ou “fijirr”). Porém, quando na fala corrente, uma palavra terminada por R junta-se a outra, que começa por
vogal, a letra R só apresenta o som da vibrante simples “r”. Além disso, forma o início da sílaba da palavra
seguinte, como se pode ver nos exemplos a seguir: CALAR A BOCA (“ka-la-ra-bo-ka”), VIR AQUI (“vi-ra-ki”).
Em início de palavra, a letra R representa somente o som da vibrante múltipla “rr”, como
em RATO, RITA, RODA, ROLO, RUA.
A leitura da letra R apresenta dificuldades reais se o aluno perder de vista a palavra como um todo. É mais fácil
decidir que som o R tem descobrindo que palavra está escrita do que ficar lembrando todas as regras
associadas a essa letra. Algumas idéias, porém, ajudam bastante, mesmo quando não são muito elaboradas.
No contexto intervocálico, a escrita distingue a vibrante simples da múltipla, escrevendo um R no primeiro caso
e dois RR no segundo. O dígrafo só será usado para fazer a distinção exigida nesse contexto.
Em início de palavras, a escrita usa apenas um R e nunca dois, e o som será sempre de uma vibrante múltipla.
Nos demais contextos, sabemos com segurança que haverá sempre uma vibrante simples se o R vier entre uma
consoante e uma vogal, no meio de sílaba, Sabe-se, ainda, com segurança, que se o R vier depois de uma
consoante N ou S, no meio de palavra, terá o som de uma vibrante múltipla. Em final de sílaba, pode ter o som
de uma vibrante múltipla ou simples, dependendo do dialeto.
A maior dificuldade está na especificação do valor fonético de uma vibrante múltipla. Como vimos,
dependendo do dialeto, tem-se um som diferente, sem contar a dificuldade de ser surdo ou sonoro, conforme
o modo como cada falante pronuncia certas palavras.
Essa dificuldade não é do falante, obviamente, mas depende de como o professor irá tratar a questão. O
melhor é estar atento às diferentes maneiras de falar dos alunos e ajudá-los a ir direto ao reconhecimento da
palavra — falada ou escrita — sem discutir muito as variações de pronúncia.
A complexidade apontada acima explica por que alguns alunos têm tanta dificuldade com a letra R na escrita.
Os professores não se dão conta de que os alunos falam de muitas maneiras diferentes, mas devem usar
apenas a letra R. No começo, como ainda não chegaram a essa conclusão, os alunos têm sérias dúvidas para
escrever certas diferenças fonéticas que eles reconhecem na própria fala, mas que não correspondem aos sons
que o professor costuma ensinar como representados pela letra R. Por isso, é bom discutir o assunto na sua
amplitude com os alunos; assim eles já irão desconfiar que aqueles vários sons fonéticos, vindos de diferentes
dialetos, são todos escritos com R ou RR.
381

Para um aluno que fala uma fricativa glotal surda (como no dialeto mineiro) correspondente à vibrante
múltipla (como no dialeto carioca), a ocorrência de R em final de sílaba pode soar como uma vogal sussurrada,
igual à vogal precedente, isto é, como uma vogal “longa”, ou seja, um som único. É por essa razão que
aparecem formas na escrita desses alunos coisas como:
MECADIO (“mercadinho”), POTA (“porta”), CADENO (“caderno”), etc. Em outras palavras, o aluno escreve E
sem R em MERCADINHO porque pronuncia “mehkadïu” e a seqüência “eh”, como ensinam os foneticistas, é
uma forma diferente de escrever “ê sonoro” + “ê surdo”, já que o som aspirado é sempre uma vogal surda.
Outra dificuldade advém do próprio fato de a criança ter de soletrar às vezes para analisar os sons da fala e
procurar as letras correspondentes para escrever. Nesse caso, quando encontra grupos consonantais como BR,
PR, GR, etc., em que há mais de um som consonantal numa única sílaba, o aluno começa a identificar cada um
através dos movimentos articulatórios e vai atribuindo a cada uma dessas articulações uma sílaba à parte.
Depois, esquece-se do todo e acaba escrevendo coisas como: PARATO (PRATO), AGARADECE (AGRADECE), ou
ainda ATALAS (ATLAS), PICICOLOGIA (PSICOLOGIA) e assim por diante.
Como em muitos outros casos, o mais importante não é chamar a atenção para os erros e tentar corrigi-los a
cada vez que aparecem, mas explicar o que for necessário e possível e indicar a ortografia como mestra para
escrever corretamente as palavras. Muitas formas de escrita serão aprendidas depois de muita leitura e escrita,
de pouco adiantando a precipitação na aprendizagem. Vale lembrar mais uma vez o que já se discutiu antes:
não é porque se deu uma explicação uma vez, que o aluno automaticamente aprende. E também é verdade
que não é porque não se explicou, que o aluno não irá aprender. Equilibrar o ensino e a aprendizagem é o que
compete ao professor.
ESTUDO DA LETRA S
A letra S tem o nome de ESSE e o som básico representado por ela encontra-se entre o “é” e o “i” de seu nome.
Assim como existe uma letra R e um dígrafo, o RR, há uma letra 5 e um dígrafo SS. Do mesmo modo que as
letras R e RR, as letras 5 e SS são usadas no contexto intervocálico para distinguir sons diferentes: a letra S
representa o som de “zê” e as letras SS representam o som de “çê”, como se pode observar nos seguintes
pares mínimos: ASA/ASSA, POSA/POSSA; ou ainda os exemplos: USO, MESA, ROSA, VASO, INGLESA/ESSA,
OSSO, ISSO, POSSÍVEL. O dígrafo SS só aparece entre duas vogais; a letra 5, nos demais casos.
Em início de palavra, a letra 5 tem sempre o som de “çê” e pode ocorrer diante de qualquer vogal, como em
SACOLA, SOCO, SUCO, SINO, SEMANA, etc. Em final de sílaba, a letra S tem o som de “çê” ou de “chê”,
dependendo do dialeto. No dialeto carioca (e em alguns outros) ocorre o som de “chê”. Exemplos: BASTA
(“bachta”), ATRÁS (“atraich”), NÓS (“nóich”). Nos demais dialetos, ocorre o som de “çê”. Exemplos: BASTA
(“basta”), ATRÁS (“atrais”), NÓS (“nóis”).
Ocorre também com a letra S o fenômeno da juntura intervocabular. Quando uma palavra termina em 5 e a
que vem imediatamente depois começa com vogal, a letra 5 tem o som de “zê” e se desloca para o início da
palavra seguinte, como se vê nos exemplos a seguir: CASAS AMARELAS (“ka-za-za-ma-ré-las”), OS HOMENS (“u-
zó-mêis”). Isso vale para todos os dialetos.
Quando a letra 5 vem depois de consoante, no meio de palavra, tem o valor fonético
de “çê”, como em PSICOLOGIA (“pçikolojia” ou “piçikolojia”), ABSOLUTO (“abçolutu” ou “abiçolutu”).
382
No meio de palavra, quando a letra S (em final de sílaba) antecede uma consoante sonora (B, D, G, L, M, R),
tem o som de “zê”. Diante de consoante surda, tem o som de “çê”. Então, há nesses casos uma concordância,
com relação à sonoridade — que os lingüistas chamam de assimilação do traço de sonoridade. Veja os
exemplos: ESBANJAR (“izbãjar”), DESDE (“dezdi”), DESGRAÇA (“dizgraça”), DESLIGAR (“dizligar”), MESMO
(“mezmu”), ISRAEL (“izrraéu”); ou DESTE (“deçti” ou “dechtchi”), CASCO (“kaçku”), CASPA (“kaçpa”), etc.
Algumas letras, como S e R, correspondem a muitos sons diferentes na fala. Isso atrapalha o aluno na hora de
escrever. Saber que há várias possibilidades de escrita não resolve suas dúvidas ortográficas. Apesar disso,
saber que há várias possibilidades de escolha de letras para esses sons ajuda o aluno a ter dúvidas ortográficas,
o que é fundamental para o desenvolvi mento da habilidade de escrever.
O som de “çê” também pode ser representado pelas seguintes letras: Ç, X, SC, SÇ, XC, XÇ. Por outro lado, para
confundir mais as coisas, o aluno depara-se com o fato de a letra 5 ter outros sons além de “çê”, como “zê” e
“chê”. O 5 pode ainda formar ditongo com uma vogal que venha imediatamente antes ou acrescentar um “i”
diante de uma consoante que venha depois. Confira os seguintes exemplos: SAPO, ASSO, AÇO, RAPAZ, ATRÁS,
TRAZ, PROXIMO, NASCER (“naiççêr”), CRESÇO, EXCEÇÃO (“eiççeçãu”), ou ainda em certos dialetos, como o
carioca: CESTA ou SEXTA (“çêchta”), RAPAZ (“rrapaich”), CHUVA (“chuva”), DESDE (“dejdji”), HOJE (“ôji”), etc.
Para quem sabe como se grafa essas palavras, parece fácil e simples, mas se alguém tiver de observar a própria
fala para estabelecer as relações possíveis entre sons e letras envolvendo os casos apresentados acima, fica
muito difícil saber qual será a ortografia da palavra e como se lêem essas letras.
Somando esses dois tipos de informação, os alunos têm diante de si um problema bastante complexo.
Juntando as letras que estão de um certo modo relacionadas, como vimos, temos:
S, SS, Ç, X, SC, SÇ, XC, XÇ, Z, CH, J e G. Mostrar a complexidade do problema aos alunos de verá servir para
chamar a atenção para o fato e alertá-los a ter dúvidas ortográficas e a resolve-las perguntando a quem sabe
ou consultando um dicionário.
Na fala de muitos dialetos diferentes da norma culta, nem todos os elementos fazem a concordância nominal
com a marca do plural. Essa marca aparece apenas no artigo (ou na primeira palavra que aparecer no
sintagma). Esses falantes nem sequer têm na fala uma dica para poder escrever o S de plural que a ortografia
exige. Exemplos: OS HOMEM ALTO FICA AQUI (OS HOMENS ALTOS FICAM AQUI), AQUELAS MENINA NUM
CHEGÔ AINDA (AQUE LAS MENINAS NÃO CHEGARAM AINDA).
Como dissemos, a melhor atitude do professor diante de dificuldades tão grandes como essa é dar tempo ao
tempo, ir ensinando aos poucos e deixar os alunos aprenderem por si quando estiverem lendo e escrevendo
bastante. Na maioria das vezes, as explicações impressionam os alunos, mas eles não conseguem operar com
essas informações de imediato. Então, o melhor conselho é mostrar que, através da ortografia, esses
problemas se resolverão com relativa facilidade.
ESTUDO DA LETRA T
A letra T tem o nome de tê, e o som inicial de seu nome, seguindo o princípio acrofôníco, representa o valor
fonético básico da letra.
A letra T é semelhante à letra D, .só que uma é surda (1) e outra é sonora (D). Em muitos dialetos, diante da
vogal “i” (na fala), a letra T temo som de “tchê”, permanecendo com o som de “tê” nos demais casos. Na grafia
das palavras, o som “i” vem escrito com a letra 1 ou E.
383
O último caso ocorre sempre em sílaba átona. Às vezes, o som “i” não aparece na escrita, mas ocorrem duas
consoantes em fronteira interna de sílaba. Por exemplo: TIA (“tchia”), POTE (“pótchi”), ÓTIMO (“ótchimu”),
RITMO (“rritchimu”); porém: TATU (“tatu”), TESTA (“téchta” ou “téçta”), TERRÍVEL (“terríveu”).
Em alguns dialetos, sobretudo do Sul do país, nunca se fala “tchê”, mas apenas “tê”, mesmo diante de “i”: TIA
(“tia”), POTE (“póti”), etc. Em alguns dialetos do Nordeste, ocorre o som de “tchê”, não antes de “i”, mas
depois dessa vogal, como se pode notar nos seguintes exemplos: MUITO (“míhtchu”), LEITE (“leitchi”), MITO
(“mitchu”); porém: TIA (“tia POTE (“póti”). Algo semelhante ocorre com D: DOIDO (“doidju”), FERIDO
(“feridju”).
Há dialetos do Brasil central que usam o som de “tchê” em contextos de palavras nos quais outros dialetos têm
o som de “chê”, como, por exemplo, em: CHUVA (“tchuva”), XAROPE (“tcharópi”), FECHAR (“fetchar”), etc.
Aqui também ocorre algo semelhante com “jê”: GELO (“djelu”), JOVEM (“djóvêi”).
Como se disse em relação à letra D, apesar das variações encontradas, a letra T também não causa grandes
dificuldades, nem para decifração na leitura, nem para a escrita. Às vezes, alguns alunos fazem confusão entre
o T e o D, na escrita. Escrevem T em vez de D. A causa mais comum desse erro está no fato de os alunos
sussurrarem as palavras ao escrever. Fazendo isso, a sonoridade do D perde-se, e o resultado fonético é um
som mais parecido com T do que com D. É o caso do aluno que escreve: TOTO MUNTO (TODO O MUNDO), ELE
POTEÍ (ELE PODE IR), etc. Esses erros corrigem-se à medida que os alunos forem fazendo mais e mais leitura e
produzindo textos escritos, preocupados com a ortografia.
ESTUDO DA LETRA U
A letra U tem o nome de U, e em seu nome está o som básico que a letra representa.
Como acontece com todas as letras que representam vogais, como o alfabeto dispõe apenas de cinco
caracteres (A, E, 1, O, U), todos os sons vocálicos da fala deverão estar basicamente representados por essas
cinco letras na escrita e vice-versa. Exemplos de palavras com a letra U representando o som de “u”: TU (“tu”),
SUJO (“çuju”), CÉU (“çéu”).
Quando ocorre diante da letra M ou N que, por sua vez, ocorre imediatamente antes de uma consoante, a letra
U representa uma vogal nasalizada “u”, como se pode observar em:
JUNTO ( “jútu”), CHUMBO (“chúbu”), UM (“iirj”), FUNÇÃO (“f€íçãu”). Se depois da letra M ou N ocorrer uma
vogal, a letra U pode ter um som nasalizado ou não, como nos seguintes exemplos: ÚMIDO (“timidu” ou
“umidu”), UNIDO (“tinidu” ou “unidu”).
Porém, se a letra U estiver diante de NH, pode-se ter o som oral ou nasalizado de “u” ou
de “ui”, como em: UNHA (“ünha”, “unha”, “flinha” ou “uinha”), PUNHO (“p “punhu”, “püinhu” ou “puinhu”).
Quando ocorre OU na escrita, pode-se ter uma pronúncia do ditongo “ou” ou uma pronúncia monotongada de
apenas “ô”, como nos exemplos a seguir: TOURO (“touru” ou “tôru”), POUCO (“pouku” ou “pôku”), etc.
Entretanto, quando se parte da fala, nem todo som de “ô” será escrito com OU, podendo ficar apenas com a
grafia de O, como se vê nas seguintes palavras: BOA (“bôa”), PROFESSORA (“profeçôra”), etc. Como os alunos
acabam inevitavelmente comparando com palavras como VASSOURA (“vaçôra”), VOU (“vô”), etc., não
raramente acabam escrevendo também PROFESSOURA, BOUA, SOURO (SORO), CHOURO (CHORO), etc. Na
verdade, na fala atual, há muita variação entre “ô” e “ou”, em um número muito grande de palavras, o que
vem a confundir ainda mais na hora de escrever.
384
Em muitas palavras (não em todas) a letra U que acompanha a letra Q não é pronunciada quando precede a
letra E ou 1. Veja os casos: QUERO (“kéru”), QUILO (“kilu”), LIQUIDO (“likido”); porém: FREQÜENTE
(“frekuênti”), EQÜINO (“ekuinu”), etc.
Quando se escreve partindo da observação da fala, há outra dificuldade grande. Trata-se de saber se o som de
“u” será escrito com a letra U ou com a letra L. Aqui, somente a ortografia pode dizer qual letra deverá ser
usada, uma vez que a pura observação da fala não leva a nenhuma conclusão. Compare os seguintes exemplos
e veja a dificuldade que eles apresen tam: “çuu” SUL, “uutchimu” ULTIMO, “autu” ALTO ou AUTO, “çau” SAL,
“çaudadji” SAUDA DE, “papéu” PAPEL, “chapéu” CHAPÉU, “méu” MEL, “çéu” CEU, e assim por diante.
Há ainda a dificuldade oriunda da maneira como algumas palavras são pronunciadas em certos dialetos,
sobretudo em dialetos estigmatizados pela sociedade (diferentes da norma culta). É o caso do aluno que fala
“tudu miidu” e tem de escrever TODO O MUNDO. Enquanto o aluno não avançar um pouco nos estudos, nem
vale a pena ficar insistindo na correção de erros como esse. O aluno precisa, no começo, ter a chance de
escrever e ler com certa liber dade e tranqüilidade e não ficar apavorado desde o começo, com uma enorme
quantidade de erros que o professor faz questão de corrigir. No final do ano, mesmo sem ter se preocupado
muito com certos erros que os alunos cometiam, o professor irá constatar que eles aprenderam bastante, com
certeza mais do que parecia. Quando os processos de leitura e escrita se aceleram, muitos erros desaparecem.
ESTUDO DA LETRA V
A letra t tem o nome de vê e seu som basico e encontrado no inicio de seu nome Exemplos
VACA (“vaka”), VELHO (“vélhu”), AVULSO (“avuuçu”), VIZINHO (“viztnhu”).
A letra V não apresenta dificuldades de decifração. Alguns alunos, porém, sentem dificuldade em decifrar
grupos consonantais formados por uma consoante seguida de L ou R. Tendem a intercalar o som de uma vogal
“ê”, ou da vogal que ocorre depois do L ou do R, como se estivessem silabando o bá-bé-bi-bó-bu para ler. Por
exemplo, dizem “li-vê-rô” ou “li-vô-rô” para LIVRO Obviamente, esses procedimentos revelam bem o tipo de
ensino a que são submetidos.
É sempre importante lembrar aos alunos que decifrar letras é apenas o começo do trabalho de leitura. Depois
de reconhecer as letras e de atribuir a elas um valor fonético, o aluno precisa necessariamente descobrir que
palavra está escrita (juntando os sons até chegar ao significado) Uma vez descoberta uma palavra (possível,
pelo menos) ele devera pronuncia la como se falasse espontaneamente. Nesse momento, percebe-se
claramente que algo como “li-vô-rô” é artificial e não ocorre na fala, uma vez que a pronúncia comum dessa
palavra é “livru”.
Dentro das dificuldades já comentadas várias vezes anteriormente, a confusão que alguns alunos podem fazer
ao escrever, observando a própria fala, pode levá-los a trocar a escrita de V por F, produzindo formas gráficas
como FELA (VELA), FELHO (VELHO), FERDE (VERDE), etc. Mais uma vez, é preciso lembrar que essas “trocas
de letras” serão corrigidas através da ortografia e não de exercícios de percepção de sonoridade.
ESTUDO DA LETRA W
A letra W tem o nome de dáblio e representa o som “u” ou o som “vê”, dependendo da palavra em que
ocorre. Em Portugal, essa letra tem o nome de duplo vê. Exemplos: WILSON (“uiuçõu’i), WILMA (“viuma”), WC
(‘dabliu-çê’), etc.
385
ESTUDO DA LETRA X
A letra X tem o nome de xis e o som inicial thê” de seu nome mostra o valor fonético básico dessa letra. Esse é
o valor da letra X em início de palavra, como em: XAROPE (“charópi’), XÍCARA ( XERETA (“cheréta’9, XUCRO
(“chukru”).
A letra X pode ocorrer também no meio de palavra, depois de N. Nesse caso, também tem o valor fonético de
“chê”, como em ENXADA (“ichada”), ENXERGAR (“ichergar”), ENXAME (“ichãmi”), etc.
Quando a letra X está no final de uma sílaba e precede uma consoante no início da sílaba seguinte, tem o som
de “çê” ou “zê”, dependendo de a consoante ser surda ou sonora. Em alguns dialetos (por exemplo, o carioca),
o som correspondente, que ocorre nesse contexto, é “chê” ou ‘ Veja os exemplos: EXTRA (“éçtra” ou “échtra”),
SEXTA (“çeçta” ou “çechta”), EX- DIRETOR (“eizdiretor” ou “eijdjiretorr”). Note que praticamente não há
palavras com o X di ante de consoante sonora (exceto diante de N), a não ser quando se tem o sufixo -EX.
Quando o X se encontra diante de uma consoante que representa o som de “çê” (como XC, XÇ, XS), ocorre uma
assimilação, ficando apenas uma ocorrência do som “ç”, como se consta ta em: EXCETO (“eçétu”), NASÇA
(“naça”), EXCELENTE (“eçelêfiti”), EXSURGIR (“eçurjir”), etc.
Quando a letra X aparece no fmal de palavra, tem o som de “ks” ou “kis”. A primeira ocorrên cia é considerada
mais formal e a segunda, maiS informal. Exemplos: TÓRAX (“tórakç” ou “tórakiç”), XEROX (“cherókç” ou
“cherókiç”), SÍLEX (“çilékç” ou “çilékiç”). Em alguns diale tos, como no carioca, em vez do som final “ç” ocorre o
som “ch”: TÓRAX (“tórakch” ou “tórakich”).
Na posição intervocálica, a letra X apresenta várias possibilidades de representação fonéti ca, podendo ter os
seguintes sons: “çê”, “chê”, “zê”, “kç” (ou “kiç”, “kch” e “kich”). Exemplos:
PRÓXIMO (“próçimu”), AUXÍLIO (“auçíliu”), LIXO (“lichu”), BAIXO (“baichu”), EXAME (“izámi”), EXIGIR (“izijir”),
FIXO (“fikçu”), TÁXI (“tákçi”) e assim por diante.
Quando se parte da fala para a escrita, palavras como as mostradas acima não permitem ao aluno saber se
serão escritas com a letra X ou com outra letra possível. Compare os seguintes exemplos: ENXAII)A/INCHADA,
SEXTA/CESTA. O aluno prncipiante tem ainda uma dificuldade a mais, se for falante de um dialeto no qual
ocorre o som de “chê” que precisa ser escrito com S e não com X (ou C como acontece em palavras tais como:
“rapaich” RAPAZ, “néchta” NESTA, etc.
ESTUDO DA LETRA Y
A letra Y tem o nome de ípsiion e representa sempre o som de “i’ Exemplos: YARA (“iara’9,
ESTUDO DA LETRA Z
H;rnmsse
Sempre que a letra Z ocorrerem início de sílaba, terá o som de “zê”. Exemplos: ZEBRA (“ze bra”), ZERO (“zéru”),
ZANGADO (“zãgadu”), ZOMBARIA (“zõubaria?’), ZUMBIDO (“zümbidu”).
386
Note que, quando o som de “zê” ocorre em início de palavra, só pode ser escrito com a letra Z (nunca com S).
Quando uma palavra recebe um sufixo -IZAR ou -EZA, a escrita será com Z e não 5. É por isso que se escreve
INFERNIZAR, BELEZA, RIQUEZA, etc. Note que há diferença entre
StCO o sufixo ..EZA, que se acrescenta a uma palavra para formar um substantivo abstrato a partir de um
adjetivo, caso de BELO/BELEZA, RICO/RIQUEZA, e palavras que terminam com o som de “êza”, mas receberam
apenas um A do feminino, como INGLES/INGLESA, MARQUÊS/MARQUESA, FREGUÊS/FREGUESA. Regrinhas
como essas, os alunos podem ir
tem aprendendo desde a alfabetização.
XAME Quando a letra Z ocorre no final de palavra, tem o som de “çê” (ou “chê”, conforme o dialeto). Veja, por
exemplo: PAZ (“paiç” ou “paich”), FEZ (“feiç” ou “feich”), LUZ (“luiç” ou
k sílaba “luich”), etc. Se a palavra que termina com a letra Z, na fala contínua, vier antes de outra que
1I começa com vogal, ocorre o fenômeno da juntura intervocabular. Isso acontece em todos
itexto, os dialetos. Veja os exemplos: LUZ AMARELA (“lu-za-ma-ré-la”), FEZ A LIÇÃO (“fei-za-li-çãu”).
EX- Para quem parte da observação dos sons da fala para a escrita ortográfica, a dificuldade da
, X di- letra Z acontece em palavras que têm o som de “zê” ou de “chê”, mas que poderiam ser escritas
com S ou X intervocálicos ou com 5 em posição final de palavra, como mostram os
XC exemplos: BELEZA, INGLESA, EXAME, RAPAZ, AZAR, ASA, etc. Porém, em início de palavra, ocor
onsta rerá somente a letra Z, como já se disse acima. Além disso, ainda no meio de palavra, só ocorre
r) etc. a letra S com o som de “zê” quando ele ocupa o final de sílaba, e a sílaba seguinte começa por
consoante sonora como em: MESMO (“mezmu”), VISGO (“vizgu”), DESDE (“dezdi”), etc.
orren Lórakç”
is diale
Jdch”). AS LETRAS K, W E Y
fQnéti mplos: Essas letras só são usadas em palavras estrangeiras, em siglas, abreviaturas, em nomes pró-
EXAME prios e para representar cálculos lógicos e matemáticos. As palavras comuns da língua portu guesa não
as empregam. Como, porém, elas aparecem em alguns casos, o professor de alfabe em ao tização deve levá-las
em consideração e ensiná-las aos alunos. Elas estão nos dicionários e, uirtes portanto, também fazem parte do
nosso alfabeto, embora tenham um uso muito reduzido. ddade a Exemplos de palavras em que se encontram
essas letras: KAREN, KARINA, km, kg, kHz, Senao WILSON, WILMA, WC, YARA, YVONE, YAMAHA. , etc.
ORTOGRAFIA DE NOMES PRÓPRIOS E
DE PALAVRAS ESTRANGEIRAS
É bom lembrar que os nomes próprios não têm uma forma gráfica estabelecida pela orto grafia oficial, a não
ser quando usados como um apelativo comum. A ortografia dos nomes próprios das pessoas é dada pelo
documento de registro de nascimento, conforme consta do cartório. Essa forma ortográfica deve ser usada em
documentos. Fora disso, se a pessoa tem seu nome escrito de maneira diferente da fixada pela ortografia de
uso comum, pode escrevê lo seguindo as normas ortográficas. Assim, alguém assinará em documentos o
próprio nome como: LUIZ, THEREZA, DORACY, KARMEN, JOACHIN, MANOEL, NErFO, VICTOR, mas pode rá
escrever, em outros casos, seguindo a forma ortográfica geral dos apelativos, ficando portanto: LUIS, TERESA,
DORACI, CARMEM, JOAQUIM, MANUEL, NETO, VÍTOR.
O uso de nomes e até de palavras estrangeiras costuma trazer novidades para o sistema de («ze- escrita,
surgindo novas relações entre letras e sons. Por exemplo, a letra H passou a ter tam bidu”). bém o som de RR
em nomes como HONDA, YAMAHA, HOBBY.
387
1
Em geral quando uma palavra estrangeira passa a integrar o sistema acaba recebendo uma forma de escrita à
moda das palavras vernáculas. Por exemplo, a palavra hobby ficaria com a forma ortográfica ROBE (ou talvez
RÓBI), assim como club ficou CLUBE, abat-jour ficou ABAJUR, New York ficou NOVA IORQUE, etc. Veja, ainda, o
caso da palavra PIZZA que conti nua com sua pronúncia italiana “pítça”, embora, em português, seja estranho o
som “tçê”, e mais estranho ainda atribuir esse som ao dígrafo ZZ. Outra palavra italiana de uso muito co mum
foi aportuguesada: TCHAU (do italiano ciao), acompanhando o nome de um país que se escreve REPÚBLICA
TCHECA. O conjunto de letras TCH forma um trígrafo.
Outras vezes, surgem palavras com sons em certos contextos em que normalmente não ocorrem. Por exemplo,
em início de palavra não ocorrem os sons “lhê” e “nhê” (exceto na palavra LHE e na forma abreviada de
senhor: NHÔ), que aparecem em palavras de origem estrangeira, como LHAMA e NHOQUE (que alguns
escrevem INHOQUE ou ENHOQUE). Ou tro exemplo desse fenômeno pode ser visto no nome VLADIMIR, em
que aparece a seqüência de V + L, que é possível no sistema da língua portuguesa, mas não tinha nenhum
exemplo.
388
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• Ditados e ditadores: entendidos e entendentes; algumas consi derações sobre ditados, cópia e interpretação
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Interpretando a interpretação de textos Leitura Teoria & Pra tica. Porto Alegre: ALB/Mercado Aberto, ano 10,
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• A chave da decifração da escrita.Jornal daAlfabetizadora. Porto Alegre: Kuarup/PUC-RS, ano 1V n. 21, p.21-
23, 1992a.
• O acordo de unificação ortográfica. Estudos Lingüísticos: XXI Anais de Seminários do GEL. Jaú: Fundação
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Bauab e GEL, 1, p.5l8-25, 1992b.
• O professor como pesquisador. Anais do II Seminário Multi disciplinar de Alfabetização. Maria Regina Maluf
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• O segredo da alfabetização. Jornal da Alfabetizadora. Porto Alegre: Kuarup/PUC-RS, ano P n. 20, p.9-11,
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• A escrita do barulho. Estudos Lingüísticos: XXII Anais de Semi nários do GEL. Ribeirão Preto: Instituição Moura
Lacerda e GEL,
1, 1993a. p.
• A origem das letras do alfabeto. Ciência Hoje. Rio de Janeiro:
SBPC, v 17, n. 98, p. 1993b.
• Avaliando a avaliação escolar. Idéias: alfabetização: passado, pre sente e fi.ituro. São Paulo: FDE, SE, 19, p.lll-
23, 1993c.
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• Criar problemas futuros sem resolver os do presente. Debate:
Acordo ortográfico. Ciência Hoje. Rio de Janeiro: SBPC, v 16,
n. 92, p. 1993d.
• Resposta a uma professora alfabetizadora ou construtivismo versus constnjtivismo.Jornal da Alfabetizadora.
Porto Alegre:
Kuarup/PUC-RS, ano V n. 25, p.21-2, 1993e. (Com a colabora ção de Gladis Massini-Cagliari.)
• Unificação da ortografia sem reformas. Folha de S.Paulo, São Paulo, 21 jan. 1993f. Caderno Mais, p5.
Ensino ou aprendizagem: eis a questão. Por trás das letras: al fabetização: refletindo sobre a falsa dicotomia
entre ensino e aprendizagem. São Paulo: FDE, 1994a. p.20-36.
• O que é a ortografia. Estudos Lingüísticos: XXIII Anais de Semi nários do GEL. CNPq, USP e GEL, v. 1, p.552-9,
1994b.
• Porque vale o. que está escrito, ou as letras e seus estilos. Ciên cia Hoje. Rio de janeiro: SBPC, 18, n. 101,
p.36-42, 1994c.
• A história das letras. Ciência Hoje das Crianças. Rio de Janeiro:
SBPC, ano 8, n. 48, p.1 1995a.
• Algumas reflexões sobre o início da ortografia da língua portu guesa. Cadernos de Estudos Lingüísticos.
Campinas: Editora da
Unicamp, IEL, DL, p. 103-11, 1995b.
• A escrita no século XXI ou além disto. Comunicação apresenta da no XLIV encontro do Grupo de Estudos
Lingüísticos do Esta do de São Paulo, realizado na Unitau, em maio de 1996a (ms).
• Alfabetização e lingüística. 10 cd. São Paulo: Scipione, 1996b.
• A origem da escrita dos números. Jornal da Alfabetizadora. Porto Alegre: Kuarup/PUC-RS, ano VII, n. 40, p.
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• A origem das letras do alfabeto.Jornal da Alfabetizadora. Por to Alegre: Kuarup/PUC-RS, ano VII, n. 40, p.l 9-
20, 1 996d.
• Avaliação e promoção Jornal da Alfabetizadora. Porto Alegre:
Kuarup/PUC-RS, ano VlII, n. 46, p.lO-2, 1996e.
• Breve história da pontuação. Anais do VI Congresso Brasileiro de Lingüística Aplicada, Campinas: Editora da
Unicamp, DLA, p.l77-83, 1996f.
Como não fazer uma reforma ortográfica: o acordo de unifica ção das ortografias da língua portuguesa, Letras.
Campinas: Ins tituto de Letras, PUCCamp, v. 15, n. 1 e 2, p.8l-98, 199
O alienígena que queria aprender a ler. Jornal da Alfabetizadora. Porto Alegre: Kuarup/PUC-RS, ano VIII, n. 47,
p. 14-6, 1996h. Análisefonológica: introdução à teoria e à prática com especial des taque para o modelo
fonêmico. Campinas: Edição do Autor, 1997a. La comprensión de lo escrito: las letras y sus estilos. Ciencia Hoy.
Buenos Aires: Asociación Ciencia Hoy, v. 7, n. 40, p.25-31, 1997b. O príncipe que virou sapo: Considerações a
respeito da dificul dade de aprendizagem das crianças na alfabetização. In: PATTO, Maria Helena Souza (Org.).
Introdução à psicologia escolar. 3 cd. rev. atual. São Paulo: Casa do Psicólogo, 1997c. p.193-224.
• Alfabetização: O que fazer quando não der certo. Iii: ROJO, Roxane (Org.). Campinas: Mercado de Letras,
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• & MASSINI-CAGLIARI, Gladis. Continuando o debate sobre construtivismo... Jornal da Alfabetizadora. Porto
Alegre:
Kuarup/PUC-RS, ano VI, n. 31, p23, 1994.
396
ÍNDICE DE TÓPICOS POR CAPÍTULO
1. História da alfabetizaçdo
A leitura e a escrita na Antiguidade 13
O aparecimento das cartilhas 19
Cartilhas da língua portuguesa 22
As cartilhas e a alfabetização 26
A cartilha dá ênfase à escrita 26
O manual do professor 27
O período preparatório 28
Alfabetização hoje 31
Alfabetização e escola 32
2 O ensino e a aprendizagenL os dois métodos
O que é ensinar, o que é aprender 36
O professor como educador 38
Dois métodos 40
Duas concepções de linguagem 41
O método 1 — voltado para o ensino 42
A situação inicial 42
A técnica 43
A base: o já dominado 45
O uso da memória 46
A hierarquia: do fácil ao dificil 46
Controle rígido e avaliação 49
A fixação da aprendizagem 50
O que fazer com o erro 50
Aprender pelos efeitos 51
Um bom método de adestramento 51
O método 2 — voltado para a aprendizagem 52
A base: a reflexão na aprendizagem 52
A situação inicial 52
A técnica: explicações adequadas 54
O professor como mediador 55
O que fazer com o erro 55
A concepção de aprendizagem 56
Avaliação: tudo serve 57
Caos e caminhos tortos 58
Como fixar a aprendizagem 59
Os dois métodos na alfabetização 59
3. Avaliaçâ promoç planejamento
Notas e conceitos 62
Promoção automática 65
Avaliação e rendimento escolar 65
Qualidade de ensino e motivação 66
Avaliação e castigo escolar 67
O valor dos cálculos na avaliação 68
Avaliação sem nota 69
O trabalho substitui a nota 70
Auto-avaliação e autocorreção 70
O aluno na série seguinte 71
O círculo vicioso de quem não aprende 72
Uma nova visão da avaliação e da promoção 72
O planejamento escolar 74
Avaliação na alfabetização 76
A lição de casa 77
4 O método das cartilhas
A cartilha na escola e na vida 80
A cartilha e a fala 83
A variação lingüística 83
O idioleto do professor 83
A silabação 85
Observando a fala para escrever 85
Confusão entre fala e escrita 86
A cartilha e a escrita 87
A escrita prevalece sobre a fala 87
A palavra 88
Muitos alfabetos 89
A escrita cursiva 89
Equívocos a partir da escrita cursiva 91
Escrita sem sistema 91
Cópias e ditados 92
O que falta no estudo da escrita 92
A cartilha e a leitura 94
Como a cartilha ensina a ler 94
A interpretação de textos segundo a cartilha 95
Outros problemas das cartilhas 96 -
Aprender em ordem 96
O entulho gramatical 96
Metáfora e fantasia 97
Remanejamento para evitar problemas 98
O erro não tem vez 98
O fascínio pelo já pronto 99
Substitutos das cartilhas 99
A cartilha e os professores 101
5. Panorama do processo de alfabetizaØro
Valorizar o que é prioritário 104
Os alunos são falantes nativos 105
A idade para se alfabetizar 106
Querer ser alfabetizado 107
Um método sem métodos 108
Em quanto tempo se alfabetiza? 109
Quem comanda é o professor 111
Remanejamentos são aviltantes 111
Condições materiais 112
Leitura e escrita 113
A reprodução de modelos 114
A descoberta do mundo da escrita 115
6 A dec(fraçJo da escrita
Regras para a decifração da escrita 120
1. Conhecer a língua na qual foram escritas as
palavras 120
2. Conhecer o sistema de escrita 121
3. Conhecer o alfabeto 121
4. Conhecer as letras 121
5. Conhecer a categorização gráfica das letras
121
6. Conhecer a categorização funcional das le tras 122
7. Conhecer a ortografia 123
8. Conhecer o princípio acrofônico 124
9. Conhecer os nomes das letras 125
10. Conhecer as relações entre letras e sons (prin cípios de leitura) 125
11. Conhecer as relações entre sons e letras (prin cípios de escrita) 126
12. Conhecer a ordem das letras na escrita 126
13. Conhecer a linearidade da fala e da escrita 127
397
14. Reconhecer uma palavra 128
15. Nem tudo o que se escreve são letras 128
16. Nem tudo que aparece na fala tem represen tação gráfica na escrita 128
17. O alfabeto não é usado para fazer transcrições fonéticas 129
A competência técnica do professor 130 A autonomia do professor 131
7 Procedimentos para o estudo das letras
1. Fornecer as explicações básicas ao aluno 134
2. Explicar o que é uma letra 135
3. Explicar como segmentar a fala em palavras
136
4. Explicar como descobrir as regras de decifra ção 137
Juntando e generalizando 138
O que é mais fácil de decifrar 139
O que é mais difícil de decifrar 142
O que é mais fácil de escrever 147
O que é mais difícil de escrever 151
A difícil arte de ler e de escrever 155
A ação do professor 157
Aprendendo a estudar 160
& Sugestões de atividades na alfabetiza çdo
O trabalho com a leitura 164
Primeiras leiturâs 164
Inventando um código 165
A palavra como unidade dc escrita 167
Letras e sons 167
O alfabeto 170
Primeiros problemas com a decifração 172
Pares mínimos 173
Rimas 173
Categorização gráfica das letras 174
Primeiras leituras de textos 174
Interpretar ou discutir o que leu 175
O que ler 175
O trabalho com a escrita 176
Primeiras descobertas sobre a escrita 176
Descobrindo que a escrita representa a fala 177
Sistema ideográfico e fonográfico 177
Contar a história da escrita 178
Traçar as letras com gabaritos 179
Localização da escrita no espaço 180
Copiar para aprender 181
Escrita espelhada 181
Explicar o que é ortografia 182
Texto não é só ortografia 183
A correção da escrita 184
Diacríticos, marcas e arte na escrita 185
Letras cursivas 185
Caligrafia 186
Layout e pontuação 187
As primeiras escritas da criança 189
Aprender fazendo 190
Entendendo como se fala 191
Os alunos são falantes nativos 191
A variação lingüística 191
O dialeto padrão na escola 192
Falar sobre corno se fala 193
A aquisição da linguagem oral 193
Linguagem e lógica 195
A discriminação pela linguagem 195 Sobre o trabalho alternativo 196
9. A produçdo de textos espontdneos
Um texto não é um amontoado de palavras 198
Textos ou palavras isoladas? 200
Textos orais e escritos 201
O texto na vida e na escola 202
O professor e o texto do aluno 204
O planejamento dos textos 206
A produção de textos na alfabetização 209
A correção de textos 210
Textos significativos para os alunos 212
A cartilha e a produção de textos 214
A opção pelos textos espontâneos 217
Exemplos de textos de cartilhas e Outros 219
Textos espontâneos de crianças 225
Questões perturbadoras 237
Julgar pelos erros e pelos acertos 238
10. As hipóteses por trés dos erros
O homem é um animal racional 242
A criança e a racionalidade 243
Conhecer os alunos 244
Explicações para os erros 245
A reflexão do aluno na escola 247
O método, o professor, o aluno e a escola 248
O certo, o errado e o diferente 251
Patologiàs da fala 253
O erro e a reflexão do aluno 257
Problemas de aprendizagem de leitura e escrita 257
Os testes revelam o que as crianças pensam da
escrita? 258
1. interpretação semântica da palavra 258
2. a figura como interpretador de texto es crito 259
3. adivinhando palavras na leitura 260
4. quantas letras formam uma palavra? 261
5. identificação de palavras 261
6. inventando palavras onde elas não existem 262
Outras formas de descobrir o que as crianças acham da escrita 262
7. cachorro começa com FU 262
8. aprendendo sozinho por níveis ou por incorporação de ensinamentos? 264
9. explicitação da decifração na leitura 267
10. leitura silenciosa acompanhada de articulações 269
11. velocidade de leitura 270
Problemas de escrita oriundos de dificuldades com as letras 270
1. escrever é fazer uma forma gráfica para ser lida 271
2. assinatura e escrita 271
3. letras em vez de rabiscos 272
4. a forma gráfica das letras 272
5. escrita espelhada 273
6. segmentação 274
7. a letra representa o som de seu próprio nome
274
8. escrevendo só vogais ou consoantes 275
9. o bá-bé-bi-bó-bu nos ditados 275
398
10. formas morfológicas diferentes 276
11. resultados pela metade 276
12. escrevendo foneticamente 277
13. troca de letras 277
14. hipercorreção 278
15. surdas ou sonoras? 278
16. um pouco por vez 279
17. mistura de informações 280
18. só o esforço não adianta
<399>
19. erros não corrigidos 280
20. medo de escrever 281
21. letras maiúsculas 281
22. sinais de pontuação 281
23. letra feia 281
Erros na estruturação dos textos 282
1. variação lingüística 282
2. uso de pronomes 282
3. sintaxe 283
4. repetição 283
5. frases soltas — coerência 284
6. coesão 285
7. caligrafia 285
11. Ditado e cópia
Uma estratégia lingüística chamada ditado 288
Tipos de ditado 289
Ditados para acertar a ortografia 290
Ditados no dia-a-dia 291
Ditado mudo 292
Anotações 292
Ditado e ortografia 293
Ditado e transcrição fonética 294
Ditado e avaliação 295
O ditado e o método das cartilhas 295
Conseqüências dos ditados na alfabetização 297
Quando e como fazer ditados 298
Cópia 299
A cópia na Antiguidade 299
Cópia e aprendizagem do Sistema de escrita 300
A cópia e a descoberta do mundo da escrita 301
Colecionando letras e palavras 302
Copiar não é apenas repetir um modelo 303
Copiar para memorizar 304
A cópia como punição 305
A cópia interpretativa com transliteração 305
Reescrevendo com cópia 307
Interpretação de texto através de cópia 308
A cópia como forma de colecionar informações
308
12 Leitura e interpretação texto
Leitura 312
Ler é decifrar e buscar informações 312
Além da decifração 312
Leitura e planejamento lingüístico 314
O leitor interfere no literal do texto 316
Leitura silenciosa e em voz alta 318
Decorar antes de ler 319
Preparar a leitura 320
Tipos de leitura 320
A leitura e o mundo 322
Dificuldades na aprendizagem da leitura 323
O ensino da leitura 324
Interpretação de texto 325
Três práticas escolares tradicionais 325
Ideografia e leitura 325
A exegese em textos literários 327
Interpretação de base filosófica 328
Questionário para interpretação de texto 328
Análise do discurso 329
Os pretextos da interpretação de texto 329
Lingüística e interpretação de texto 330
É preciso interpretar um texto? 331
Entender o texto no seu contexto 332
O. princípio da literalidade 333
Interpretação de texto e estudo escolar 334
Vaie a pena fazer interpretação de texto? 336
Interpretar um texto ou debater uma idéia? 338
Atividades alternativas à interpretação de texto 338
Os textos da interpretação de texto 339
13. Ortografia da língua portuguesa
Breve história da ortografia da língua portuguesa 342
A influência do sistema latino 342
Documentos antigos 343
Tentativas de reforma e unificação 345
Primeira unificação das ortografias 345
Primeira reforma ortográfica oficial no Bra sil 345
As reformas da reforma ortográfica 346
Reforma ortográfica e alfabetização 348
Ortografia e escola 349
Idéias erradas a respeito da ortografia 353
A dúvida ortográfica 355
Apêndice — A categorização gráfica das letras
Estudo da letra A 359
Estudo da letra B 363
Estudo da letra C 363
Os sons da fala representados pela letra C 365
Estudo da letra Ç 368
Estudo da letra D 369
Estudo da letra E 369
Estudo da letra F 371
Estudo da letra G 371
Estudo da letra H 372
Estudo da letra 1 373
Estudo da letra J 374
Estudo da letra K 374
Estudo da letra L 375
Estudo da letra M 376
Estudo da letra N 377
Estudo da letra O 378
Estudo da letra P 379
Estudo da letra Q 379
Estudo da letra R 380
Estudo da letra S 382
Estudo da letra T 383
Estudo da letra U 384
Estudo da letra V 385
Estudo da letra W 385
Estudo da letra X 386
Estudo da letra Y 386
Estudo da letra Z 386
As letras K, W e Y 387
Ortografia de nomes próprios e de palavras estrangeiras 387

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