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Sistema Acusatorio A Conformidade Consti PDF
Sistema Acusatorio A Conformidade Consti PDF
A Conformidade Constitucional
das Leis Processuais Penais
EDITORA LUMEN JURIS
EDITORES
João de Almeida
João Luiz da Silva Almeida
CONSELHO EDITORIAL
Alexandre Freitas Câmara
Antonio Becker
Augusto Zimmermann
Eugênio Rosa
Firly Nascimento Filho
Geraldo L. M. Prado
J. M. Leoni Lopes de Oliveira
Letácio Jansen
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Sergio Demoro Hamilton
GERALDO PRADO
Sistema Acusatório
A Conformidade Constitucional
das Leis Processuais Penais
3a Edição
SUPERVISÃO EDITORIAL
Antonio Becker
EDITORAÇÃO ELETRÔNICA
Maanaim Informática Ltda.
Telefone: (21) 2242-4017
CAPA
Márcia Campos
ISBN 85-7387-029-X
Impresso no Brasil
Printed in Brazil
―O teu silêncio é uma nau com todas as velas pandas
Brandas, as brisas brincam nas flâmulas, teu sorriso
E o teu sorriso no teu silêncio é as escadas e as andas
Com que me finjo mais alto e ao pé de qualquer
paraíso‖.
APRESENTAÇÃO .......................................................................
PREFÁCIO..................................................................................
NOTA DO AUTOR À 1ª EDIÇÃO ................................................
NOTA DO AUTOR À 2ª EDIÇÃO ...............................................
NOTA DO AUTOR À 3ª EDIÇÃO ...............................................
1. INTRODUÇÃO ........................................................................
7. CONCLUSÃO .........................................................................
Nilo Batista
Prefácio
geraldoprado@terra.com.br
www.direitosfundamentais.com.br
1. Introdução
4
ARNAUD, André-Jean e DULCE, María José Farinas, in Introdução à análise
sociológica dos sistemas jurídicos, Rio de Janeiro, Renovar, 2000, p. 141-2.
5
BATISTA, Nilo, ZAFFARONI, Eugenio Raúl, ALAGIA, Alejandro e SLOKAR,
Alejandro in Direito Penal Brasileiro – I, Rio de Janeiro, Revan, 2003, p. 622.
maior parte das pessoas, parece óbvio que há de se rechaçar
esta ideologia.
Esta última é a posição adotada no Sistema Acusatório.
Em nenhum momento o livro toma partido da ideologia
funcionalista. Sistema Acusatório serve-se, tão-só, da análise
funcional para entender o Sistema de Justiça Penal.
É preciso, pois, distinguir análise funcional de ideologia
funcionalista.
Recorrendo outra vez a Arnaud, entende-se por análise
funcional: ―uma forma ou método de conhecimento
científico que, concretamente – e para o que aqui nos
interessa -, analisa e explica o direito – assim como outros
fenômenos normativos -, estudando as ‗funções‘ ou as tarefas
que o direito realiza para a sociedade, as que ele deveria
realizar, e como ele as realiza ou deveria realizá-las‖6.
Assim, nem toda análise funcional é devedora da
ideologia funcionalista. Pelo contrário, é possível trabalhar
com esta ferramenta para negar a validade da ideologia
funcionalista e revelar como, porque e para quem funciona o
Sistema de Justiça Criminal. Novamente Nilo Batista e
Zaffaroni irão nos lembrar que até certos textos marxistas
podem corresponder a este tipo de análise. Assinalam os
mencionados autores que ―disso resulta que, embora toda
concepção orgânica de sociedade tenda a ser antidemocrática
e reacionária, não é possível dizer a mesma coisa das análises
funcionais, que representam apenas um método paralelo às
explicações causais e intencionais nas ciências sociais‖7.
Nesse sentido, eleita a realidade dos fatos como o pano
de fundo da investigação normativa, a força desta
investigação deve residir na disposição de elaborá-la
criticamente, ou seja, livre dos conceitos que, difundidos
doutrinariamente, denunciam posições apriorísticas nem
sempre compatíveis com o modelo real da base de
sustentação institucional do processo penal vigente. A
6
Op. cit., p. 141.
7
BATISTA, ZAFFARONI et alli. Op. cit., p. 622.
incoerência de determinadas explicações acerca do Direito
Processual Penal, no Brasil, decorre da tentativa de conciliar
o inconciliável, de conferir às práticas processuais penais, ao
menos no âmbito do discurso, foro de legitimidade
constitucional quando algumas não o têm, escondendo-se
desse modo a verdadeira tensão estabelecida em razão da
discrepância entre o preceito jurídico e a sua implementação.
Com efeito, cumpre fazer da crítica o predominante
método deste trabalho, assim entendida a expressão, na
concepção de Michel Miaille, como sendo a possibilidade de
fazer aparecer o ―invisível‖.8
Significa dizer não apenas que o objeto do nosso estudo,
tal seja, o sistema acusatório, conforme posto pela
Constituição9 e a estrutura processual estabelecida nas
principais leis que se seguiram à promulgação da Carta, deve
ser visto na perspectiva do seu dever ser mas,
12
Idem, p. 43.
13 Eugenio Raul Zaffaroni, apud Nilo Batista, Introdução Crítica ao Direito
Penal Brasileiro, Rio de Janeiro: Revan, 1990, p. 25.
14 Idem.
15 Ferrajoli, Luigi. Derecho y Razón: Teoria del Garantismo Penal, p. 104.
sobre Direito Penal, Estado e Constituição,16 assinala com
razão que a estipulação das categorias jurídicas submetidas
ao trabalho de classificação do jurista não deve desvincular-
se por completo dos parâmetros normativos instituídos
especialmente pela Constituição. Assim é que, salienta o
doutrinador, se reconhecemos que não há consenso
classificatório na doutrina e precisão terminológica dentro
da própria Constituição, também é verdade que pelo menos
cinco categorias jurídicas básicas são identificáveis à luz do
texto maior: direitos, garantias, normas, princípios e
remédios.17
É necessário debater a questão delicada da afirmação da
existência de uma outra categoria,18 isto é, daquela definida
como sistema, com todas as conseqüências derivadas desta
positivação, sem olvidar que em diversas hipóteses é possível
enquadrar o mesmo instituto jurídico em modelos
diferentes.
Além disso, releva destacar a premissa de uma eleição
constitucional de valores, pesquisando-se os aspectos que
resultam predominantes ou devem predominar no contraste
entre a Constituição jurídica e a Constituição real,19 uma vez
2.1. Introdução
34 Habermas, ob. cit., p. 113. Vale destacar que, apesar da propalada idéia
pertinente ao conceito e alcance do direito subjetivo, visto antes, trata-se de
dogma da tradição liberal a crença dos direitos de primeira geração ser
exercitados contra o Estado, como muito bem salientou Comparato (ob.
cit., p. 47).
forma dos pleitos eleitorais).
Assim, o direito positivo que resultava da ação da
instância legislativa, referido ao direito privado, não podia
satisfazer as exigências das sociedades complexas e sequer
atendia satisfatoriamente ao suposto da legitimidade,
incapaz que era de integrar socialmente as grandes massas
que acorreram às cidades, como conseqüência do processo
de industrialização.
Haveria de acontecer alguma reação, até porque,
reconhece Habermas, ―a fonte de toda legitimidade está no
processo democrático da legiferação; e esta apela, por seu
turno, para a soberania do povo‖,35 muito mais presente nos
discursos do que na realidade.
Os séculos XIX e XX, portanto, por força da ascendência
social e econômica da burguesia e o incremento tantas vezes
desumano das condições de trabalho da massa operária,
classe social conseqüente às mudanças derivadas da
Revolução Industrial e do modo capitalista de produção e
divisão dos bens, testemunhou conflitos intestinais que
colocaram frente a frente a burguesia e o proletariado, dando
origem a conquistas que se refletiram em uma nova ordem
de direitos fundamentais, a partir da universalização, ainda
que lenta, do sufrágio político e da liberdade de associação,
precursora dos sindicalismos.36
63 Idem.
64 Campilongo (ob. cit., p. 53) adverte que é ridículo submeter os direitos
fundamentais ao escrutínio do maior número. A regra da maioria tem um
limite claro: não é legítima — nem ela nem nenhuma outra —, para
condicionar, suprimir ou reduzir os direitos essenciais da pessoa humana.
A autêntica democracia realiza-se com a atribuição do poder soberano à
maioria, por meio do respeito aos direitos essenciais da pessoa humana
(Comparato, ob. cit., p. 79).
contínua revisão e mantém a sociedade unida‖65.
Alertar para isso é não perder de vista e não alienar a
importância de definir a democracia usando bitolas largas,
potencializada que está a alienação em razão das opções
políticas do Estado contemporâneo.
Em tempo de globalização, vale dizer que o
encaminhamento das demandas democráticas vicejadas no
plano dos direitos fundamentais de segunda e terceira
gerações, especialmente nos países denominados periféricos
ou do Terceiro Mundo, deixa aos poucos as pautas políticas,
diminuindo conseqüentemente o intervencionismo e
dirigismo estatal — retorna-se à era do Estado mínimo —, de
sorte a reduzir o direito público praticamente ao direito
penal, com o restabelecimento inevitável de um tipo de
Estado semelhante ao conhecido estado gendarme.
Sem, por enquanto, vincular diretamente os novos
tempos e a cultura que os inspira à estrutura processual
penal em concreto, vale insistir em sublinhar a tendência
política da sociedade atual, porque a adoção de uma cultura
de Estado mínimo, de Estado penal ou simplesmente
punitivo, tendo como sua única responsabilidade o
monopólio legítimo do emprego da força, produz um tipo
específico de política criminal, ilumina um movimento penal
e acaba incidindo sobre o modelo de sistema processual
acatado e interpretado, ainda que à luz de uma constituição
democrática.
Salienta Bobbio que a idéia de que o único dever do
Estado consiste em impedir que os indivíduos provoquem
danos uns aos outros, deriva de uma arbitrária redução de
todo direito público a direito penal.66
A noção de democracia que orienta este trabalho parte
da premissa de que se trata de sistema político
convencionado institucionalmente, cujo propósito está em
promover decisões políticas, legislativas e administrativas,
72 Ver, a respeito, Weffort, Francisco. Qual Democracia?, São Paulo: Cia. das
Letras, 1996.
73 Renato Janine Ribeiro, a propósito da política, antecipa considerações
sobre o sentido de público, aplicáveis sem dúvida ao âmbito da estrutura
processual e relevantes, no que concerne à vinculação entre direito e
democracia, ou, mais propriamente, entre direito e processo, na medida em
que ambos os sentidos pressupõem um nível de educação que favorece, se
presente, a otimização instrumental da democracia. Assim, público se opõe
a privado, ressalta o autor, e se faz sinônimo de bem comum, algo que não
pode ser alvo de apreciação egoísta ou particular. Trasladando-se o
conceito para o processo penal, teremos que a instrumentalidade do
mencionado meio não comporta visões particularistas do direito que
pretende efetivar e não admite o próprio direito penal como um fim em si
mesmo, porém apenas como mecanismo de tutela adequada e razoável
para determinados tipos de conflitos. Por outro lado, público se opõe a
palco e revela não mais o dado da participação ativa, mas da passiva
assistência, cujo único sentido positivo consiste na possibilidade de
controlar a ação dos atores políticos, inclusive do juiz. Nestes derradeiros
termos, os princípios da publicidade e do duplo grau de jurisdição
aparecem como naturais consectários da idéia de participação democrática
no processo, prevendo a um só tempo a idéia de que todo poder deve ter
algum tipo de controle, visível socialmente (―A Política como Espetáculo‖,
in Anos 90: Política e Sociedade no Brasil, Evelina Dagnino [org.]. São
Paulo: Brasiliense, 1994, pp. 31-40).
legitimidade necessária à enunciação das decisões.
Piero Calamandrei, em obra clássica, acentuava, na
década de 1950, a relação científica e política entre processo
e democracia, assinalando, em uma postura enfática a
respeito da natureza jurídica do primeiro, que, por processo,
em um Estado democrático, há de se entender o conjunto de
relações jurídicas entre pelo menos três sujeitos — processus
est actum trium personarum — sem subordinação entre
eles, mas sim com vinculações recíprocas em termos de
direitos e deveres.
Além disso, naquilo que diretamente se vincula ao
objeto do nosso trabalho, por processo se deve aceitar apenas
o processo de partes contrapostas, dialético,74 asseverando o
mestre peninsular:
83 Idem, p. 69.
84 Ferrajoli, ob. cit., p. 50.
provavelmente ao que a parte quis demonstrar pelo poder de
explicação das evidências ajuizadas.
A legitimidade da atividade jurisdicional está
condicionada ao emprego de técnicas que imunizem o
processo do decisionismo judicial (em outras palavras, da
decisão arbitrária) e não iludam quanto à conquista de uma
verdade real, o que só ocorrerá na medida em que sejam
assegurados os direitos e garantias fundamentais,
permitindo que acusação e defesa demonstrem a
correspondência entre as teses esposadas e as provas
produzidas, com a redução do subjetivismo inerente a todo
julgamento.
Desta forma, será legítima a atividade jurisdicional
penal, porque terá sido possível conferir à sentença a
qualidade de haver apreendido o tipo de verdade que pode
ser constatada de modo mais ou menos controlável por
todos, mas isso só acontecerá se forem satisfeitas as
garantias do juízo contraditório, oral e público, isto é, na
vigência do sistema acusatório. A legitimidade do exercício
do poder, cujo berço é a soberania popular, é a fonte da
democracia.
Naturalmente por isso a perspectiva democrática do
processo estabelece um tipo privilegiado de relação entre
direito e democracia, mas não se pode olvidar das influências
culturais determinantes, presentes na sociedade civil, a um
tempo condicionadas e condicionantes da maneira pela qual
a batalha sem concessões por um modelo de estrutura
democrática do processo penal, compatível com a vontade
igualmente democrática expressada na Constituição, ecoa
concretamente no meio judiciário e social, portanto, no
microcosmo e no cosmo sociais.
Os estudiosos da ciência política, preocupados com a
análise dos diversos modelos de transições políticas, têm
dedicado especial atenção ao papel da consolidação cultural
dos valores que alicerçam o regime democrático.
Não se trata de aceitar simplesmente a prevalência da
escolha constitucional e, portanto, jurídica, da democracia,
como fator suficiente para a estabilização democrática. É
preciso que a democracia se faça presente como um valor
decisivo na vida das pessoas, pragmaticamente
imprescindível para alcançarem a vida digna. Moisés
assinala que a cultura política é condição sine qua non para a
orientação de comportamentos e ações envolvendo a
generalização de um conjunto de valores elementares ao
processo de democratização,85 esclarecendo que a
desconsideração da dimensão político-cultural afeta
gravemente o suporte democrático da sociedade. Não basta
um Estado democrático, é necessário que a sociedade
também o seja.
Eis, por isso, a razão pela qual Enrique Peruzzotti
destacou que a consolidação institucional da democracia está
sujeita também ao importante papel jogado pelas variáveis
culturais,86 que não podem ser desprezadas.
A institucionalização da democracia não depende
exclusivamente de processos de engenharia institucional
elaborados de cima para baixo, na perspectiva das elites, mas
ainda de ―práticas e identidades políticas da sociedade civil
e sua relação histórica com a democracia e o
constitucionalismo‖.87 Do mesmo modo, a estruturação
democrática do processo penal não se impõe simplesmente
de cima para baixo, ainda que se parta da Constituição, pelo
menos não sem que se vençam fortes adversários culturais,
credores inabaláveis da fé na verdade real, absoluta,
conquistável através de um procedimento penal de defesa
social, como o inquisitório, que, embora esteja em crise,
ainda se manifesta enquanto estrutura procedimental na
maior parte da América Latina, conforme salientou Alberto
M. Binder.88
131 Ferrajoli, Luigi. ―O direito como Sistema de Garantias‖, p. 41. Otto Bachof
acentuava que no exercício da função judicial de vigilância da
constitucionalidade das leis, o juiz só deve admitir uma lei como válida e
vinculante quando esta não só tenha sido formalmente promulgada de
acordo com a Constituição mas também se o seu conteúdo estiver de
acordo com os preceitos constitucionais (Jueces y Constitución, Madrid:
Civitas, 1987, p. 32).
132 Canotilho, pp. 235-236.
sempre citada doutrina alemã (verfassungswandlungen).133
A relevância do processo hermenêutico para a
imposição predominante dos direitos fundamentais na esfera
penal é tão significativa, que vale recordar que o intérprete,
este mediador, principalmente se for o juiz penal,134 sempre
contribuirá decisivamente na escolha dos valores que o
guiarão, por meio da assunção de significados concernentes
a uma determinada concepção de Direito. Interpretar deriva
de interpres, isto é, mediador, intermediário, de sorte a
estabelecer-se no processo de interpretação a mediação entre
o texto e a realidade para, de acordo com Baracho,135
desenvolver-se o processo intelectivo através do qual,
partindo da forma lingüística contida no ato normativo,
chegar-se ao seu conteúdo ou significado.
Caso contrário, o juiz estaria reduzido a mero
instrumento de aplicação mecânica de um texto legal,
suscetível de ser substituído com muitas vantagens por um
133 Ver, sobre o assunto, Ada Grinover (As Garantias Constitucionais, p. 15).
Por oportuno é conveniente destacar que tal fenômeno é denominado, na
Espanha e em Portugal, mutação constitucional, entendendo-se, tal como
na Alemanha (Tribunal Alemão de Karlsruhe), tratar-se de uma mudança
de conteúdo das normas que, conservando a mesma redação, adquirem um
significado diferente (Vadillo, Enrique Ruiz. El Principio Acusatorio y su
Proyeccion en la Doctrina Jurisprudencial del Tribunal Constitucional y
Tribunal Supremo, Madrid: Actualidad Editorial, 1994, p. 19), ou, nas
palavras de Canotilho (ob. cit. pp. 236-239), operam a transição do sentido
sem mudar o texto, o que a difere da alteração constitucional, consistente
na reforma formal do compromisso político, acompanhada da alteração do
próprio texto da Constituição.
134 Não se despreza, por oportuno, a tese de que a hermenêutica constitucional
é campo aberto a todos que, no processo democrático de convivência social,
observam o direito, atuando conforme o significado que pessoalmente
atribuem à conformidade constitucional. A interpretação constitucional é,
pois, neste sentido, obra aberta, do ponto de vista dos sujeitos aptos a
realizá-la, consoante salientou Peter Häberle (Hermenêutica
Constitucional — A Sociedade Aberta dos Intérpretes da Constituição:
Contribuição para a Interpretação Pluralista e ‗Procedimental‘ da
Constituição, tradução de Gilmar Ferreira Mendes, Porto Alegre: Sergio
Antonio Fabris, 1997). No entanto, a vinculatividade da atuação
interpretativa do juiz é que, neste aspecto particular do problema, colocado
no trabalho, deve ser priorizada.
135 Baracho, ob. cit., p. 49.
computador.136 Eis a razão de Couture ter dito que:137
―Interpretar é, ainda que inconscientemente,
tomar partido por uma concepção do Direito, o que
significa dizer, por uma concepção do mundo e da
vida. Interpretar é dar vida a uma norma. Esta é
uma simples proposição hipotética de uma conduta
futura. Assim sendo, é um objeto ideal, invisível... e
suscetível de ser percebido pelo raciocínio e pela
intuição. O raciocínio e a intuição, todavia,
pertencem a um determinado homem e, por isso,
estão prenhes de subjetivismo.‖
136 Assim, com razão, leciona Zaffaroni, para quem, en rigor, en el actual
estado del saber jurídico, es casi imposible que, sea por vía explícita o bien
implícitamente, el juez no lleve a cabo un control constitucional de las
leyes, siempre que, naturalmente, opere conforme a esas pautas de saber
jurídico (Estructuras Judiciales, Buenos Aires: Ediar, 1994, p. 60).
137 Couture, Eduardo J. Interpretação das Leis Processuais, 3ª ed. Rio de
Janeiro: Forense, 1993, p. 11.
138 Baracho, ob. cit., p. 53.
superior, em consideração às supostas demandas de
estabilidade governamental.
Assim, a recusa à chancela de constitucionalidade pode
ocorrer dentro da própria Constituição, se os movimentos
derivados de alteração da sua ordem não respeitarem os
pilares intangíveis dos direitos fundamentais e da soberania
popular, com a legitimidade e separação dos poderes.
Movimentos de transformação da ordem constitucional
são freqüentes e se desenrolam fundados em demandas de
maior fluidez e flexibilidade dos instrumentos de soluções
dos conflitos sociais.
A redução de complexidade do direito processual pela
deformalização aparece na nossa Constituição, para ilustrar,
na disciplina do procedimento dos juizados especiais
criminais, que na sua regulação por lei ordinária não se
limitou a obedecer ao perímetro traçado no plano
constitucional — procedimento oral e sumaríssimo, com a
possibilidade de transação — para incorporar a
informalidade, celeridade e economia processual (Lei no
9.099/95, artigo 62).
A filosofia da deformalização dos procedimentos, antes
de ser uma rebelião ao formalismo exagerado e imotivado,
em busca dessa maior fluidez e flexibilidade na hermenêutica
constitucional, pode ensejar a redução da eficácia das
garantias que dependem, justamente, da observação de
procedimentos.
Comparato sublinha, acertadamente, que todo direito é
formal, isto é, ―que ele nada mais deve ser que a realização
formal da justiça, a sua realização segundo certos meios e
regras conhecidos da comunidade‖ e acrescenta que ―a
regularidade formal é sempre uma garantia diante do
poder, uma limitação do arbítrio‖.139 É interessante
observar que, na década de 90, o sucessor aparente do
movimento do direito alternativo dos anos 70 é o modelo
150 Ataliba, Geraldo apud Celso Antônio Bandeira de Mello. Curso de Direito
Administrativo, 9ª ed. São Paulo: Malheiros, 1997, p. 51.
151 Bobbio, Norberto. Teoria do Ordenamento Jurídico, Brasília: Polis, 1989,
p. 75.
152 Rocha, Cármem Lúcia Antunes. O Princípio Constitucional da Igualdade,
Belo Horizonte: Lê, 1990.
153 Idem.
que se associam e permitem o movimento
harmônico permanente do regramento pela
interpretação e na aplicação de suas disposições.‖
157 Campilongo (ob. cit., p. 74), a propósito do termo autopoiesis, salienta que
o neologismo, tão esotérico quanto as idéias de Luhmann, traslada para os
sistemas sociais o conceito desenvolvido por Maturana e Varela, para
exame dos sistemas biológicos. De se salientar, por isso e por outras
evidências captadas na extensa obra de Luhmann, que tanto a generalidade
como a interdisciplinariedade se impõem no seu pensamento, a partir do
reconhecimento da complexidade social e da constatação de que toda teoria
deve ser uma arma para reduzi-la. A complexidade da sociedade
contemporânea se estabelece, para o sociólogo, em razão do aumento da
diferenciação de uma dada sociedade. O paradoxo da teoria do mestre
fundamenta-se no sentido de que somente com o incremento da
complexidade é possível reduzir-se a própria complexidade do dado ou
relação social em estudo, cumprindo a teoria este papel, que lhe defere o
pensador. Sendo assim, alcança Luhmann o projeto de concepção de uma
teoria sistêmica, como forma de compreensão da sociedade complexa, de
tal sorte que sua obra pode ser qualificada como ―sociologia sistêmica‖.
158 Izuzquiza, Ignacio. Sociedad y Sistema: La Ambición de la Teoria. Buenos
Aires, Barcelona e México: Ediciones Paidos, 1990, p. 19.
159 Fechado naturalmente do ponto de vista normativo, pois que somente o
direito pode mudar o direito, mas aberto cognitivamente, porque requer
trocas de informações entre os sistemas e seus ambientes, como ressaltou
Campilongo (ob. cit., p. 75).
básica,160 sem embargo do direito processual penal perfilar-
se como um sistema normativo próprio, auto-referente.161
Além dos fins de descrição e de compreensão da inter-
relação de seus elementos, a categoria sistema processual
reveste-se ainda de especial magnitude por possibilitar a
delimitação do espaço jurídico-processual destes elementos,
em razão da função do sistema, vinculada à necessidade vital
que procura satisfazer.162
Dir-se-á que o elemento avaliado isoladamente,
pertence ao sistema processual na razão direta da sua
funcionalidade, que não poderá, todavia, desprezar para a
sua caracterização o que mais atrás se registrou como
tendência de uma funcionalidade de matiz garantista e não
meramente utilitarista.
Uma lei que proponha a iniciativa do juiz para o
processo penal de cunho condenatório não pode pertencer ao
sistema processual acusatório, embasado em uma
Constituição que o consagre e, portanto, tal lei não será
válida, ainda que funcional no sentido utilitarista, de mera
adjudicação de uma solução ao conflito de interesses penal.
A possibilidade de uma avaliação desse nível denuncia a
viabilidade e mesmo necessidade da categoria proposta, sem
embargo da concreta observação de que a função primordial
da estrutura processual há de ser aquela de garantia,
166 Silva, José Afonso. Aplicabilidade das Normas Constitucionais, 2ª ed. São
Paulo: RT, 1982. Barroso, Luís Roberto. O Direito Constitucional e a
Efetividade de suas Normas: Limites e Possibilidades da Constituição
Brasileira, 3ª ed. Rio de Janeiro: Renovar, 1996.
167 Silva, José Afonso. Ob. cit., pp. 35 e 40.
168 Barroso, Luís Roberto. Ob. cit., pp. 89-118.
169 Mello, Celso Antonio Bandeira de. Elementos de Direito Administrativo,
São Paulo: RT, 1980, pp. 230-231.
Constituição preocupou-se com a estruturação do processo
penal, o que é natural, na medida mesma em que dispôs
inúmeros direitos e garantias fundamentais referidos à
persecução penal, cabe indagar de que modo se tratou na
Carta desses princípios estruturantes. Afinal, Direito
Constitucional e o Direito Processual Penal são legatários de
uma vocação comum, como salientou Bettiol,
A verdade é que na tipologia dos princípios
constitucionais, conforme estudada por Canotilho,170 eleita
como a que preenche mais fielmente os objetivos deste
trabalho, destacam-se aqueles denominados fundamentais,
―historicamente objetivados e progressivamente
introduzidos na consciência jurídica‖, os princípios políticos
constitucionalmente conformadores, dado que ―explicitam
as valorações políticas fundamentais do legislador
constituinte‖, os constitucionais impositivos, derivados de
uma Constituição dirigente, que ―impõe aos órgãos do
Estado, sobretudo ao legislador, a realização de fins e a
execução de tarefas‖, e, finalmente, os princípios-garantia,
traduzindo-se em garantias diretas para todas as pessoas.
Parece evidente que, se é possível encontrar na
Constituição da República as diretrizes da estrutura
processual, tais diretrizes concebem-se certamente como
decorrentes dos princípios fundamentais do Estado de
Direito e da Democracia, com a divisão e controle de
poderes, ao lado da publicidade, e dos princípios-garantia,
vinculados à exigência de juiz imparcial, do exercício
privativo da ação penal pública pelo Ministério Público, da
garantia da ampla defesa (autodefesa e defesa profissional ou
técnica) e da prescrição da atividade de polícia judiciária a
determinados órgãos, consistindo estas diretrizes em
subprincípio derivado daqueles estruturantes, relacionados
aos dois citados, como, indiscutivelmente, o princípio da
separação de poderes.
Canotilho, em sua obra tantas vezes mencionada,
denuncia este fenômeno como a densificação dos princípios
7
CORDERO, Franco. Procedimiento Penal, Colômbia: Temis, 2000.
8 COUTINHO, Jacinto Nelson de Miranda. A Lide e o Conteúdo do Processo
Penal, Curitiba, Juruá, 1989 e O Papel do Novo Juiz no Processo Penal, in:
Crítica à Teoria Geral do Processo Penal, Rio de Janeiro: Renovar, 2001.
9 FOUCAULT, Michel. A Verdade e as Formas Jurídicas, Rio de Janeiro: Nau,
1999, p. 11.
de saber se alguém praticara determinado fato, desde que o
conflito inaugurado pela notícia do fato viesse a ser resolvido
de forma satisfatória de acordo com a concepção do grupo
social.
O que para a doutrina tradicional exalava cheiro de
irracionalidade hoje deve merecer outra consideração de
nossa parte. Quer se trate das ordálias, quer surja aos nossos
olhos como mitos fundantes de uma determinada maneira
de viver e de ver as coisas, como na passagem da Ilíada,
capturada por Foucault10, tais práticas tinham um ponto em
comum: eram dirigidas à resolução de um conflito. Somente
dessa maneira é possível entender a ―racionalidade‖ que
definia a ação dos povos germânicos primitivos, quando
estes se deparavam com conflitos episódicos.
Nilo Batista nos lembra da dificuldade de recomposição
de uma época caracterizada pela tradição oral e pelos
desafios naturais cuja capacidade de compreensão fugia
àquelas comunidades11. Apesar disso, hoje estamos em
condições de saber que aqueles povos, tanto quanto os
antigos gregos, ―lutavam‖ incessantemente para alcançar a
paz na tribo. Isso importava considerar a integração do
sujeito ao grupo (à tribo) como condição para a
sobrevivência material e psíquica, como ainda implicava no
fortalecimento do grupo a partir da convergência de fatores
internos (práticas dos indivíduos) e externos (condições
climáticas, vitalidade dos rebanhos etc.), que poderiam ser
afetados de diversas maneiras. Era a quebra da paz a que se
fará referência nos próximos subitens.
10
FOUCAULT, op. cit., p. 31. A história reproduzida pelo mestre francês fala da
contestação entre Antíloco e Menelau durante jogos realizados na ocasião da
morte de Pátroclo. Houve uma corrida de carros em um circuito de ida e volta e
Menelau contesta o resultado, afirmando que Antíloco não fizera a volta no
ponto apropriado. Embora houvesse um ―fiscal‖ neste trecho do circuito, a
testemunha não é chamada a contar o que viu. Há um desafio, em forma de
juramento, diante do qual Antíloco recua, resolvendo a controvérsia em favor de
Menelau.
11 BATISTA, Nilo. Matrizes Ibéricas do Sistema Penal Brasileiro – I, Rio de
13
BINDER, Alberto. O descumprimento das formas processuais: elementos
para uma crítica da teoria unitária das nulidades no Processo Penal, Rio de
Janeiro: Lumen Juris, 2003, p. 44.
14
TARUFFO, Michele. La prueba de los hechos, Madrid: Trotta, 2002, p. 37.
do paradigma do Garantismo e sublinhando que um poder
que se expressa por meio de castigos deve ser controlado e
deve deixar claro porque em determinados casos pune, a
investigação teórica orienta-se pela idéia de processo que
pretende estabelecer se determinados fatos foram praticados
ou não, fixando-se o modo como se chega a esta conclusão.
Este é, pois, o específico olhar (viés) histórico que será
desenvolvido.
Portanto, para os limites do presente trabalho duas
idéias vigoram: a) na atualidade, por conta de uma série de
fatores, e em consideração a princípios republicanos que
reclamam a fundamentação do exercício do poder de punir, a
manifestação desse poder deve ser precedida da apuração do
caso, através de provas que o juiz imparcialmente apreciará;
b) o olhar lançado ao passado estará dirigido por esse viés,
tal seja, estará condicionado para enxergar nas práticas
precedentes as pistas sobre como os fatos eram apurados e
que papel, afinal, exerciam o juiz e as partes neste
―processo‖. Neste contexto serão investigados historicamente
os sistemas processuais.
40 Manzini salienta que em algumas situações, uma vez exercida a ação penal,
o magistrado ficava investido dela (de poderes em relação a ela), ao ponto
de não poder despojar-se sem um motivo jurídico. Assim, mesmo que o
acusador abandonasse o processo, descreve Manzini, nem por isso caía a
acusação, devendo seguir-se as investigações públicas (Tratado de Derecho
Procesal Penal, tomo I, pp. 6-7).
41 Maier, Julio B. J. Derecho Procesal Penal Argentino, p. 46.
42 Tucci, Rogério Lauria. Lineamentos do Processo Penal Romano, p. 159.
43 Fato percucientemente notado por Julio Maier. Derecho Procesal Penal
Argentino, p. 47.
44 Manzini, Vincenzo. Tratado de Derecho Procesal Penal, tomo I, p. 7.
em tese vigorava um modelo procedimental que carecia do
acusador privado, mas, na prática, alguns agentes públicos
(curiosi, nunciatores etc) passaram a desenvolver verdadeira
atividade de polícia judiciária, transmitindo aos juízes os
resultados das suas pesquisas, a princípio sempre que
alguém deixava de apresentar a accusatio.
Por sua vez, os magistrados foram ampliando cada vez
mais a sua esfera de atribuições, alcançando aquelas antes
reservadas aos particulares, até chegar-se ao extremo, como
salientou Manzini, de se reunirem em um mesmo órgão do
Estado as funções que atualmente competem ao Ministério
Público e ao juiz,45 com a máxima disposição dos
magistrados de descobrirem a verdade, não deixar ao
desamparo os fracos e evitar o non liquet, tal seja, o
pronunciamento da não-decisão, a impossibilidade de um
veredicto decisivamente solucionador do concreto conflito de
interesses. Hélio Tornaghi advertiu para o fato de que o
sistema acusatório na Antigüidade, principalmente tal como
se desenvolveu na fase republicana de Roma, ter oferecido
graves inconvenientes, anotando, com especial destaque, os
seguintes:46
• a impunidade do criminoso;
• a facilitação da acusação falsa;
• o desamparo dos fracos;
• a deturpação da verdade;
• a impossibilidade de julgamento, em muitos casos;
• a inexeqüibilidade da sentença, em outros.
45 Idem.
46 Tornaghi, Hélio. Instituições de Processo Penal, vol. II, p. 5.
amplos poderes ao magistrado, não somente para investigar
as infrações penais, recolhendo provas, como, ainda, para
julgar a causa,47 podendo valer-se mesmo da tortura.48
De se destacar que, ao contrário do que viria a ocorrer
posteriormente, na Idade Média, sob a égide do
inquisitorialismo, se em Roma ainda predominava a forma
pública e oral, mesmo no procedimento extra ordinem,
como momento culminante dessa estrutura processual, em
realidade a instrução escrita e secreta, derivada do poderoso
aparato estatal, aos poucos foi sucedendo a anterior, até
constituir-se em sua parte ou forma principal, surgindo, pois,
como semente da Inquisição que mais tarde dominaria a
Europa Continental.49
Sobre essa passagem histórica vale registrar a seguinte
observação de Julio Maier:50
51 Ver, sobretudo, Piero Fiorelli (ob. cit., p. 332), que remarcou o fato das
municipalidades italianas terem estatuído, a princípio, nessa época, um
processo do tipo acusatório. Porém, a consolidação dos organismos
comunitários ensejou a atribuição aos magistrados de funções mais
amplas, aproximando-se até transformar-se normalmente em um modelo
inquisitório.
52 Jescheck, Hans-Heinrich. Tratado de Derecho Penal - Parte General, 4ª
edição, Granada: Comares, 1993, p. 80.
53 Maier, Julio B. J. La Ordenanza Procesal Penal Alemana: Su Comentario
y Comparación com los Sistemas de Enjuiciamiento Argentinos, Buenos
Aires: Depalma, 1978, p. 24. Sippe, segundo Nilo Batista, é a designação do
clã a que a pessoa pertencia (BATISTA, Nilo. Matrizes Ibéricas..., p. 32).
causas cíveis.54
Ocorre, todavia, que em uma fase posterior toda
infração passou a ser considerada como rompimento da paz
(Friedensbruch), autorizando, conseqüentemente, a guerra e
a vingança familiar (Blutrache e Fehde ou Faida), de tal
sorte que perdia o ofensor e sua família a proteção
comunitária.
Tal sistema progrediu até que fosse permitido o
pagamento do preço da paz à comunidade (Friedensgeld),
por meio de convênios reparatórios, e uma indenização ao
ofendido ou sua família (Busse), o que era possível em se
tratando de infrações menores.55 Nilo Batista ressalta a
existência da capitular de Carlos Magno, de 802, que
recomendava às famílias evitar acrescentar uma inimizade
ao mal já feito, destacando, porém, que durante extenso
período ―a anuência a uma composição ultrajava o
sentimento coletivo da honra familiar e só mais tarde o
ressarcimento assumiria um papel central na superação de
tais litígios‖.56
A partir de um determinado momento o entendimento
privado constitui-se no método predominante de solução dos
conflitos de interesses de natureza penal, o que não impedia
o ofendido de se socorrer dos Conselhos (Placita),
assembléias populares que ministravam justiça, começando
aí o verdadeiro processo judicial de corte acusatório.57
Tal processo peculiarizou-se pelo direito privado de
iniciativa da persecução (nemo iudex sine actore),
começando diante do fracasso da composição entre as partes
sobre a emenda ou indenização ou por reclamação unilateral
do ofendido ou sua família ao tribunal (Hundertschaft),
composto por pessoas capazes para guerra (Thing). As
63
FOUCAULT, Michel. A Verdade e as..., p. 23.
64 Maier, Julio B. J. La Ordenanza Procesal Penal Alemana, p. 28, e Fiorelli,
Piero, ob. cit., p. 333.
65 Alcala-Zamora y Castillo, Niceto e Levene, Ricardo, Hijo. Derecho Procesal
Penal, p. 218.
66 Almeida Junior, João Mendes de. O Processo Criminal Brasileiro, pp. 80-
81.
satisfará exigências comuns aos dois mundos: o eclesiástico,
assombrado por heresias, e o civil, que via na expansão
econômica a origem da criminalidade exasperada em face do
paradigma anterior. Fixa o autor italiano que os interesses
que têm de ser protegidos exigem o automatismo repressivo
incompatível com as acusações privadas, enquanto a cultura
romana, sofisticada para os padrões bárbaros, estava a exigir
decisões ―técnicas‖.67
Muito embora os séculos XIII e XIV marquem o início
da predominância do modelo inquisitorial, transplantado
para a justiça laica com o fortalecimento das monarquias e,
conseqüentemente, com a formação do conhecido Estado-
Nação e a centralização do poder secular, ainda nas cidades
italianas conviviam formas inquisitórias com formas
acusatórias. Isso é vislumbrado em registros de Bolonha e
Florença, sendo a inquisição, subsidiária do modelo
acusatório, implementada apenas quando uma acusação não
era exercitada.68
A remanescente estrutura acusatória, no entanto,
começa a render-se a aspectos quase sempre identificados no
procedimento inquisitório, tais como a forma escrita da
dedução da acusação e o segredo que envolvia a produção da
prova testemunhal, chegando, pois, ao emprego da tortura, a
culminância das presunções e da confissão.
Será Foucault novamente a nos lembrar que a técnica de
―reunir pessoas que podem, sob juramento, garantir que
viram, que sabem, que estão a par‖, como mecanismo de
prorrogação da atualidade do delito, sugere a maior
racionalidade do procedimento da inquisição em oposição à
aparente brutalidade e ao caráter arbitrário dos duelos, jogos
e desafios (provas) dos povos bárbaros. O mestre francês, no
entanto, lança luz sobre o passado. Destaca que os objetivos
das ―provas‖ e juízos de Deus era um: superação do conflito
instaurado pela notícia ou prática do delito; enquanto o fim
perseguido pelo sistema da inquisição era outro: colocar um
67
CORDERO, Franco. Procedimiento..., vol. 1, p. 16.
68 Fiorelli, Piero. Ob. cit., p. 333.
eficaz instrumento de gestão à disposição da nova estrutura
de poder que se formara na Europa Continental. ―O
inquérito na Europa Medieval é sobretudo um processo de
governo, uma técnica de administração, uma modalidade
de gestão; em outras palavras, o inquérito é uma
determinada maneira do poder se exercer‖.69
Por fim, o equilíbrio entre os dois modelos se rompe e o
sistema inquisitório vive seu apogeu no continente europeu,
até ser descartado, ao menos na Europa Ocidental
(Continental), no século XIX.
Pode-se afirmar que a herança da cultura hegemônica e
estilizada do Direito Romano, cultivada nas prestigiosas
universidades italianas pelos glosadores (1100 a 1250) e pós-
glosadores (de 1250 a 1450), superou o Direito Germânico,
de tradição popular. A Igreja, indiscutivelmente, contribuiu
para o sucesso da difusão do modelo de inspiração
romanística, cujo último paradigma havia sido, como visto, a
cognitio extra ordinem, difundindo universalmente o
modelo inquisitorial à base de uma universalidade cristã,
tendente a se impor a todos os povos.
Maier giza que o Direito Romano, ao contrário do
Império dentro do qual nasceu, não sucumbiu à invasão
bárbara e não tardou a impor suas idéias, mais desenvolvidas
e elaboradas.70
Embora hoje a Inquisição seja vista com todas as
reservas, cumpre remarcar que na sua época o discurso
dominante a apresentava como produto da racionalidade,
confrontada com a suposta irracionalidade das ordálias ou
juízos de Deus, que substituiu, enquanto sistema de
perseguição da verdade, pela busca da reconstituição
histórica, procurando, tanto quanto possível, reduzir os
privilégios que frutificavam na justiça feudal, fundada quase
exclusivamente na força e no poder de opressão dos senhores
69
FOUCAULT, Michel. A Verdade e as..., p. 72 e 73.
70 Maier, Julio B. J. Derecho Procesal Penal Argentino, p. 54.
feudais sobre os demais,71 pessoas que a rigor estavam
sujeitas a medidas punitivas discricionárias, impostas pelos
mencionados senhores feudais.
Vale deixar consignado que a Inquisição começa
propriamente quando se admite a denúncia72, inclusive
anônima, como forma de principiar uma investigação,
prescindindo-se dela, mais tarde, ao se permitir o início do
processo de ofício, bastando para tanto o rumor público,
revelador da ocorrência de uma infração. Franco Cordero
relembra que nessa hora o juiz passa da posição de
expectador impassível para converter-se em protagonista do
sistema.73
A jurisdição eclesiástica a princípio destinava-se ao
julgamento de membros da Igreja, porém conforme o poder
temporal desta última foi se expandindo, resvalou para a sua
competência uma enorme gama de infrações penais
consideradas contrárias, mesmo que distantemente, aos
interesses da Igreja.74
Principalmente a partir do momento em que as
autoridades judiciárias eclesiásticas passaram a ser
exercitadas por monges designados pelo Papa, as
características marcantes da Inquisição foram a forma
75 Idem, p. 57.
76 João Bernardino Gonzaga, ob. cit., p. 60.
predominância da forma escrita, derivada da necessidade de
documentação do que era apurado em segredo, cumpria
garantir-se a regularidade dos procedimentos.
O controle do poder político, inerente ao processo
judicial por crimes, assegura no período áureo do
inquisitorialismo a delegação a determinadas categorias de
funcionários, os procuradores do rei, da atribuição de
oficialmente investigar as infrações penais, ainda que delas
só haja rumores. Faustin Hélie vê na instituição a semente
do Ministério Público.77
É bem verdade que, mesmo como meros delegados, os
juízes tinham de ser controlados na medida em que eles
dispunham do poder de iniciar uma investigação
independentemente de qualquer denúncia, e menos também
de acusação. A acusação até poderia existir. O juiz além do
mais estava habilitado a infligir ao acusado tormentos, disso
ao final não se escusando nem mesmo os nobres. O controle
do poder dos juízes era exercido não somente pela
possibilidade de se recorrer da decisão, cujo êxito estava
condicionado a fatores de ordem material, mas ainda por
meio da disciplina legal rigorosa de avaliação e crítica do
material probatório.
Assim é que o sistema introduziu um mecanismo de
valoração legal da prova, que estabelecia, em abstrato, as
exigências ou condições para o juiz decidir sobre a
persecução. Acentuou Maier o seguinte:78
106 Roxin, Claus. El Ministerio Público En El Proceso Penal, Buenos Aires: Ad-
Hoc, 1993, p. 39.
107 Fredas, Pietro, na introdução à 3ª edição de De las Pruebas Penales, de
Eugenio Florian, p. 10.
108 Vale acentuar que, transplantado da Inglaterra para o continente europeu
pela Revolução Francesa, exceto para Holanda e Dinamarca, o júri não se
adaptou aos costumes dos povos continentais, sendo abolido ou tendo sua
Cumpre explicitar que a instituição do júri, no
continente europeu, obedeceu à lógica da identidade entre o
direito e a lei, pela qual a verdade política por esta
expressada, de forma genérica e abstrata, haveria de ser
meramente proclamada pelo juiz profissional a quem não se
permitia interpretar a lei com maior liberdade, no seu
processo de aplicação.
Tratava-se, portanto, de mais uma reação ao Antigo
Regime, desenvolvendo os jurados — juízes leigos — o papel
de guardiões dessa presumida verdade política da lei, em um
clima de abstrata homogeneidade de uma sociedade,
marcada, naturalmente, por uma nova categoria de conflitos
que, ao longo dos séculos XIX e XX, poriam a nu o dogma da
universalidade dos interesses burgueses.
Conforme Alcala-Zamora e Ricardo Levene, na própria
França, e antes na Áustria e na Espanha (respectivamente,
1897, 1873 e 1882), acentuou-se a tendência acusatória do
processo penal, sem prejuízo da manutenção das
características basicamente inquisitórias da sua primeira
etapa (o segredo, a escrituração e a iniciativa judicial),
combinando, de acordo com os renomados autores, as
vantagens de ambos os sistemas de que derivou,109 de sorte
que passa a ser conhecido, também, como sistema acusatório
formal.110
114 Desde 4 de dezembro de 1978, por força da Lei nº 53/1978, que modificou
o artigo 302 da LEC, os sujeitos pessoalmente envolvidos com as
investigações sumariais podem tomar conhecimento das diligências e
intervir em todas elas, sendo, portanto, consoante interpretação do
tribunal constitucional espanhol, uma exceção para as partes (Lorca
Navarrete, Antonio María. El Proceso Penal de La Ley de Enjuiciamiento
Criminal, p. 87).
dezembro de 1988.115
Como sintoma da incongruência da estrutura acusatória
formal ou mista em vigor, ressalta Navarrete a possibilidade
de funcionarem, lado a lado, o juiz inquisidor, o Ministério
Público e o ofendido, alcançando-se, pelas dificuldades de
salvaguarda de um processo garantista, algo como a
quadratura do círculo.
A Alemanha, por sua vez, recepcionou novamente a
experiência jurídica estrangeira, por conta da expansão
napoleônica, introduzindo entre os povos germânicos a
declaração de direitos fundamentais do povo alemão, em
1848, pela qual se optava, decisivamente, pela publicidade e
oralidade do processo penal, pela inclusão do elemento
popular na tarefa de julgar, condicionando-se a atuação da
jurisdição a uma provocação de parte, com a conseqüente
descentralização das funções principais do processo: acusar,
defender e julgar.116
Em realidade, muito embora haja, entre os estudiosos
do processo penal alemão, quem lhe recuse a qualificação de
deduzido conforme o sistema acusatório, justamente porque
não seria um processo de partes, substancialmente
falando,117 o certo é que o princípio acusatório, caracterizado
pela divisão de funções — acusar, defender e julgar — está
efetivamente preservado.118
A persecução penal, de um modo geral, começa com o
procedimento preparatório, previsto no § 160 e seguintes do
StPO, dirigido pelo Ministério Público, sendo essencialmente
124 Assinala, sobre a nova postura dos juízes, Paolo Ferrua, que ciò non
significa che il giudice debba restare costantemente passivo, immerso sino
alla decisione in uno stato di indifferenza, quasi di ozio. Acrescenta o
citado autor que, ao contrário, se l‘imparzialità è sicuramente
compromessa dall‘esercizio di funzioni investigative, non lo è né
dall‘esercizio di poteri direttivi che non implicano alcuna preminenza se
non quella, essenzialmente pratica, di regolare gli interventi delle parti
nel corso del processo (Studi sul Processo Penale, Torino: Giappichelli,
1990, p. 17).
parcela da doutrina que hoje se vive a estranha situação de se
ter passado de um GARANTISMO INQUISITÓRIO, criado a
partir das decisões da corte constitucional, adaptando o
velho código Rocco, ao accusatorio non garantito.125
Vale dizer que em virtude da reação de diversos setores
da sociedade foi editada a lei n. 479, de 16 de dezembro de
1999, que modificou bastante o procedimento abreviado. A
própria Constituição da República Italiana sofreu alteração.
Em 23 de novembro de 1999 foi promulgada a lei n. 2, que
modificou o artigo 111 (que trata do ―devido processo legal‖),
expressamente referindo-se aos meios de prova para excluir
a possibilidade de condenação de alguém com base em
declarações prestadas por quem, por decisão livre, se
subtraiu voluntariamente ao interrogatório por parte do réu
e de seu defensor.
Em Portugal, após a Revolução dos Cravos e
estabelecimento da democracia, editou-se, em 2 de abril de
1976, uma nova Constituição, cinco vezes revista, inclusive
em 12 de dezembro de 2001, porém sem modificação
sensível no tratamento dispensado à estrutura processual.
Com efeito, dispõe o no 5, do artigo 32o, da mencionada
Carta, que o processo criminal terá estrutura acusatória,
estando a audiência de julgamento e os actos instrutórios
que a lei determinar subordinados ao princípio do
contraditório.
Assim é, portanto, que, especialmente a partir da
entrada em vigor do novo Código de Processo Penal
português (Lei no 43/86, de 26 de setembro de 1986 e
Decreto-lei 78/87), instituiu-se nesse país um modelo
126 Silva, Germano Marques da. Curso de Processo Penal, vol. I, Lisboa: Verbo,
1996, pp. 54-83.
127 PEREIRA, Rui. A crise do Processo Penal in: Revista do Ministério Público ,
131
DUCE, Maurício e RIEGO, Cristián. Introducción al nuevo sistema procesal
penal, Chile: Universidad Diego Portales, 2002.
132
Tradução livre, p. 18.
Common Law, no que se relaciona ao seu desenvolvimento
até o século XVIII, convindo, pois, deduzir derradeiras
considerações, na medida em que se concebem modelos
estruturalmente diferentes, nos Estados Unidos da América
e na Inglaterra.
Sobre a Inglaterra, pátria do Commom Law, averbe-se
que até hoje predomina o sistema de acusação privada,
deflagrada por qualquer cidadão, e julgada, a rigor, pelo Júri,
imparcial e inerte. Embora não conheça um mecanismo
absolutamente profissional de acusação, desde o século XIX
propugna-se por uma instituição que desenvolva a
persecução oficial, culminando, em 1879, com a criação do
Escritório do Diretor de Persecução Penal Pública (Office of
Director of Public Prosecution).
Diferentemente do conhecido Ministério Público tanto
dos países da órbita de influência européia continental, como
dos Estados Unidos da América, tal funcionário encarrega-se
da responsabilidade de deduzir ação penal em um número
bastante limitado de casos, sem exclusividade, circunstância
que expressa a vontade legislativa de deixar ao Estado a
persecução penal apenas daqueles crimes de considerável
gravidade.
Apesar de algumas agências atuarem na persecução
penal, em casos de seu interesse, na maioria das vezes, é a
polícia quem deflagra a ação penal, atuando aí, cada policial,
na condição particular de súdito. De um modo geral, os
policiais são assistidos por advogados (prosecuting
solicitors) e têm amplos poderes dispositivos que, em
restritas hipóteses, podem ser legalmente limitados. No
sistema inglês alcança-se, certamente, o maior nível de
acusatoriedade, pela implementação de um processo de
partes, com preocupação de parificá-las, assegurando-se
ampla defesa, contraditório, publicidade, oralidade e
absoluta imparcialidade do juiz, sem desprezar os aspectos
atinentes à disponibilidade da ação penal.133
Nos Estados Unidos da América, que respeitam uma
forma federalista, o processo penal é essencialmente
acusatório,134 com o Promotor de Justiça assumindo o papel
principal,135 que exercita de modo equilibrado com a reserva
de direitos fundamentais atribuída à defesa pela Constituição
Federal. A prova, em processo oral e público, é produzida
exclusivamente pelas partes, quer perante o júri, onde existe,
funciona ou o réu o aceita, quer perante o magistrado
singular, havendo, ainda, ampla disponibilidade sobre o
conteúdo da pretensão deduzida.
A respeito do sistema processual penal vigente no
Brasil, empreenderemos a abordagem, por questão de ordem
metodológica, no último item deste capítulo.
145
Cordero, Franco. Op. cit., p. 88.
objetivo de realizar o direito penal material, enquanto no
processo acusatório é a defesa dos direitos fundamentais do
acusado contra a possibilidade de arbítrio do poder de punir
que define o horizonte do mencionado processo.
Assim, como as ―regras do jogo‖ não se concretizam sem
a interferência dos sujeitos que participam do processo, não
há dúvida de que são os atos que estes sujeitos praticam que
hão de diferenciar os vários modelos processuais.
É preciso ter em mente que a análise puramente
objetiva, que visualiza os atos sem entender quem são os
sujeitos que os praticam, descarna o processo. Gestão da
prova e acusação são atividades que não dizem nada se não
olharmos quem – que sujeitos (históricos) – realiza estes
atos. Até porque com a identificação dos sujeitos será
possível compreender os porquês das coisas.
Quando focalizamos estes atos – que expressam a
obediência dos sujeitos às regras do jogo -, temos de
classificá-los, identificando o que há de comum, por
exemplo, entre os diversos atos que o juiz pratica ao longo do
processo. O ponto de convergência destes atos é aqui
denominado ―tarefa‖, porque defendemos que os atos
processuais atendem a funções, não são desinteressados,
ainda que muitas vezes estas funções não sejam percebidas
com clareza ou imediatamente.
Como nas linhas antecedentes ficou registrado, a função
predominante do processo inquisitório consiste na realização
do direito penal material. O poder de punir do Estado (ou de
quem exerça o poder concretamente) é o dado central, o
objetivo primordial.
No sistema inquisitório, portanto, os atos atribuídos ao
juiz devem ser compatíveis com o citado objetivo. Em
linguagem contemporânea equivale a dizer que o juiz cumpre
função de segurança pública no exercício do magistério
penal.
Essa linha de raciocínio permite abarcar todos os atos
judiciais inquisitórios em um só plano. Exercer a ação penal
no lugar de terceiro, quer originalmente como previa o artigo
531 do Código de Processo Penal brasileiro, quer de modo
superveniente, interferindo na delimitação do objeto do
processo (como ocorre com a mutatio libelli), significa
prestigiar a idéia de que a punição não pode depender de um
autor de ação penal independente e livre para apreciar se
deve ou não acusar e o que deve (ou não) incluir na acusação.
Da mesma maneira, atribuir ao juiz o poder de produzir
provas de ofício deforma o ―duelo intelectual‖ a que se refere
Cordero. Supor que a atividade probatória está desvinculada
do exercício dos ―direitos processuais― (James Goldschmidt)
e imaginar, por outro lado, que juiz exerce ―direitos‖ no
processo importa controlar o material da decisão para
reduzir as brechas da impunidade.
É também o que acontece com o denominado recurso de
ofício. O juiz que ―recorre‖ da própria sentença para
submetê-la obrigatoriamente a exame por tribunal de
segundo grau, em hipóteses em que a decisão originária é
favorável ao réu, suspeito ou investigado, concorre para a
política de segurança pública de que se torna protagonista.
O elemento comum entre o exercício da ação penal pelo
juiz, a produção de provas de ofício e o recurso igualmente
de ofício está na consecução de tarefas que a moderna
doutrina do processo assevera que compõem o chamado
direito de ação (e o co-respectivo direito de defesa).146 Como
todas estas tarefas apontam para a prevalência do interesse
em punir sobre o de tutelar os direitos fundamentais do réu,
elas podem ser reunidas sob a rubrica de tarefas de acusação.
A acusação consiste na imputação a alguém da prática de um
crime com ―pedido‖ de condenação.
A construção teórica do princípio acusatório há de
consumar-se mediante oposição ao princípio inquisitivo. São
antagônicas as funções que os sujeitos exercem nos dois
modelos de processo. É desse antagonismo, portanto, que as
146
Historicamente, o discurso inquisitório atribui o acúmulo de funções em
mãos do juiz ao generoso propósito de evitar a punição de inocentes. Não é
preciso recorrer às inquisições eclesiásticas para compreender a falsidade do
argumento. Basta ver que é este modelo, fundado na busca da verdade real, que
mesmo nos subterrâneos da persecução penal contemporânea facilita a
aceitação da tortura.
diferenças devem ser extraídas.
Assim, se na estrutura inquisitória o juiz ―acusa‖, na
acusatória a existência de parte autônoma, encarregada da
tarefa de acusar, funciona para deslocar o juiz para o centro
do processo, cuidando de preservar a nota de imparcialidade
que deve marcar a sua atuação.
Nisso consiste a base teórica em cima da qual
procederemos à análise do princípio acusatório.
Ao aludirmos ao princípio acusatório falamos, pois, de
um processo de partes, visto, quer do ponto de vista estático,
por intermédio da análise das funções significativamente
designadas aos três principais sujeitos, quer do ponto de
vista dinâmico, ou seja, pela observação do modo como se
relacionam juridicamente autor, réu, e seu defensor, e juiz,
no exercício das mencionadas funções.
I. DO JUIZ
154
Na tentativa de salvar a ―constitucionalidade‖ do inquérito judicial da
falência autores chegaram a defender a existência de contraditório neste
inquérito. Sustentou-se que o artigo 106 da antiga Lei de Falências previa a
resposta do falido, em cinco dias, e que isso equivalia ao contraditório. Parece
evidente que a noção de contraditório aí é bastante lmitada, comparável à idéia
de contraditório no inquérito policial, no artigo 14 do Código de Processo Penal,
que estabelece a possibilidade de o Delegado de Polícia realizar diligências
requeridas pelo investigado. Em verdade, o procedimento do inquérito judicial
era inquisitorial, conduzido pelo síndico da falência e pelo perito, com apoio do
Ministério Público e na prática sob as ordens dos funcionários do cartório onde
era processada a falência. Tudo, praticamente, sem intervenção do falido.
Recomenda-se a leitura de Lei de Falências Comentada, 2ª ed., de Manoel
Justino Bezerra Filho, São Paulo, RT, 2003, p. 346-7.
atrás.155
A Lei n. 11.101, de 09 de fevereiro de 2005, que passou a
regular a recuperação judicial, a extrajudicial e a falência do
empresário e da sociedade empresária estabelece o inquérito
policial como método de investigação, a ser instaurado por
ordem do Ministério Público, nos termos do artigo 187, e fixa
a competência do juiz criminal da jurisdição onde tenha sido
decretada a falência, concedida a recuperação judicial ou
homologado o plano de recuperação extrajudicial para
processar e julgar o caso.
Com isso, a Nova Lei de Falências aproxima-se do
modelo constitucional, pois que de forma intencional cria as
condições necessárias ao julgamento do caso com
imparcialidade.156
Voltando à regra fundamental é preciso destacar, no
entanto, que nas hipóteses de impedimento e suspeição a
filosofia que orienta a preservação da imparcialidade deve
cuidar de restringir os casos de recusa do juiz, desde que não
prevaleça o pensamento autoritário que dedica ao
magistrado função punitiva, em substituição àquela que as
constituições lhe impõem juridicamente, tal seja, a de
apreciar e resolver de forma isenta a questão levada a juízo.
A questão da imparcialidade do juiz, conforme o
princípio acusatório, contudo, não fica limitada aos termos
postos anteriormente. O exercício da jurisdição, em um
Estado Constitucional Democrático, está, tanto quanto o
exercício de qualquer outro poder no âmbito deste Estado,
condicionado a regras de impessoalidade.
Não basta somente assegurar a aparência de isenção dos
juízes que julgam as causas penais. Mais do que isso, é
155
Pelo artigo 109 do citado decreto, o juiz da falência era competente para
receber ou rejeitar a denúncia. Somente depois de proferir essa decisão é que
deveria transferir o processo para o juiz criminal (§2º).
156
Objeções acerca do conhecimento técnico de que deve estar dotado o juiz
criminal, nestes casos, devem ser superadas pela idéia de que nos dias atuais os
magistrados deverão estar continuamente se aprimorando e se preparando para
as sofisticadas causas criminais com que se deparam. Isso, é evidente, sem
prejuízo da prova técnica que caracteriza a maioria destes processos.
necessário garantir que, independentemente da integridade
pessoal e intelectual do magistrado, sua apreciação não
esteja em concreto comprometida em virtude de algum juízo
apriorístico.
Trata-se aqui, talvez, de uma compreensão invertida da
máxima pela qual não basta à mulher de César ser honesta.
No caso, ao juiz não é suficiente parecer honesto; terá de sê-
lo verdadeiramente, inclusive do ponto de vista intelectual.
Exemplo claro de causa de impedimento, derivada desta
ordem de coisas, reside na impossibilidade de o juiz que
tenha requisitado a instauração de inquérito policial vir a
processar e julgar acusado em processo penal iniciado em
razão desta investigação.
Observe-se que nesta hipótese o juiz poderá se sentir
habilitado a apreciar com isenção as teses que a Defesa
venha a apresentar. Todavia, o réu não poderá confiar em
um juiz que, independentemente de qualquer causa penal, já
se manifestou a princípio pela existência de uma infração
penal, ainda que ao nível de um juízo sumário, provisório e
superficial.
De fato, nestas circunstâncias, poderá haver inversão do
ônus da prova, com o réu se sentindo impelido a demonstrar
que o juiz inicialmente não tinha razão. A confiabilidade das
partes na isenção do juiz emerge como condição de validade
jurídica dos atos jurisdicionais. Ausente tal requisito
estaremos diante de atos absolutamente nulos.157
Também por esse motivo o antigo inquérito judicial da
falência, citado neste tópico, violava o princípio acusatório e
era inconstitucional.
II. DA ACUSAÇÃO
168
Badaró, ob. cit., p. 97-98.
169 Asencio Mellado, José Maria. Principio Acusatorio y derecho de defensa en
el proceso penal, Madrid: Trivium, 1991, p. 22. É a posição de Paulo
Rangel, em Direito Processual Penal, 8ª edição, Rio de Janeiro, Lumen
Juris, p. 63-65.
pública do conflito de interesses penal, que se transforma em
caso penal, sendo a sanção penal170 pública e portanto
resultante de uma atribuição estatal, a vedação cada vez
menos rigorosa à disponibilidade do conteúdo do processo
penal está guiada pela assunção do interesse público
subjacente.
Diferente seria se inseríssemos a ação penal
condenatória em um contexto meramente formal, em virtude
do qual pudéssemos confundi-la exclusivamente com o
poder de iniciativa, quando então todos os demais atos, dos
quais os de instrução são talvez o principal exemplo,
ficassem à mercê dos poderes de investigação do juiz. Não
haveria aí disponibilidade do conteúdo do processo não
porque a natureza jurídica do direito material levado à pugna
a interditasse, mas por força de ser o juiz e não o dominus
litis, isto é, o Ministério Público, a personificação do Estado
como titular do direito material em questão.
E a rigor quem não é o titular do direito dele não pode
abdicar. Também seria diferente se admitíssemos a retirada
da própria acusação e, apesar disso, a emissão de sentença
de mérito pelo juiz. Neste outro caso, teríamos de concordar
com Mellado e assinalar que a decisão judicial importaria em
verdadeiro exercício de acusação de ofício, pelo tribunal.171
Mas como o critério de disponibilidade deve ser ditado
pelo direito positivo, levando em conta a natureza do direito
de punir (aspecto material e não processual), vinculando
obrigatoriamente o Ministério Público naqueles casos
reputados de prevalecente interesse público pelo legislador,
o princípio dispositivo em si, relacionado com a disposição
sobre o objeto do processo, não integra ou se opõe ao
princípio acusatório, sendo importante, porém acidental. A
prevalência do interesse público tem a ver com a inibição da
iniciativa particular a remarcar o caráter não vingativo mas
de composição do processo penal.
170
A sanção penal é tomada como conseqüência jurídica da infração penal
perseguida pela atividade processual do autor da ação penal.
171 Asencio Mellado, José Maria. Ob. cit., p. 23.
Isso não significa dizer que o juiz está autorizado a
condenar naqueles processos em que o Ministério Público
haja requerido a absolvição do réu, como pretende o artigo
385 do Código de Processo Penal brasileiro172.
Pelo contrário. Como o contraditório é imperativo para
a validade da sentença que o juiz venha a proferir, ou, dito de
outra maneira, como o juiz não pode fundamentar sua
decisão condenatória em provas ou argumentos que não
tenham sido objeto de contraditório, é nula a sentença
condenatória proferida quando a acusação opina pela
absolvição.173
O fundamento da nulidade é a violação do contraditório
(artigo 5º, inciso LV, da Constituição da República).
Como destaca Badaró, ―a regra da correlação entre
acusação e sentença é uma decorrência do princípio do
contraditório‖.174 Avançando sobre o tema, o culto professor
paulista sublinha que, na atualidade, não é correto limitar a
idéia – e o alcance – do contraditório apenas ao debate sobre
questões de fato.175 Também as questões de direito estão
afetas ao contraditório, pois que podem estar marcadas pela
controvérsia a ser esclarecida mediante escolha entre duas
ou mais teses pertinentes ao mesmo tema.176
172
O texto no corpo do livro, seguinte à nota, foi incluído na terceira
edição para sanar qualquer dúvida acerca da posição do autor sobre
o tema.
173
Não é este o entendimento do Supremo Tribunal Federal. No acórdão
proferido em HC 82.844/RJ, 2ª Turma, Relator Min. Nelson Jobim, publicado
em 28/05/04, fixou-se que é significativo o fato de o Ministério Público ter
sugerido a absolvição do réu, sugestão acatada pelo juiz de primeiro grau, para
determinar a absolvção. No caso o Assistente do Ministério Público recorreu da
sentença absolutória e obteve a condenação em segundo grau. Esta condenação
foi atacada por Habeas Corpus.
174
BADARÓ, Gustavo Henrique R. Ivahy. Correlação entre acusação e
sentença, São Paulo, RT, 2000, p. 27.
175
Idem, p. 32.
176
Exemplo disso é a questão sobre a insignificância de determinada ação não
negada pelo réu. O único debate no processo pode ser acerca da qualificação de
comportanto insignificante – e atípico – ou não. Negar o contraditório sobre
este ponto é esvaziar o princípio constitucional e retornar ao tempo do
Assim, quando em alegações finais o Ministério Público
opina pela absolvição do acusado o que ocorre em concreto,
no processo, é que o acusador subtrai do debate
contraditório a matéria referente à análise das provas que
foram produzidas na etapa anterior e que possam ser
consideradas desfavoráveis ao réu. Como a defesa poderá
reagir a argumentos que não lhe foram apresentados? Esta é,
em resumo, a posição de Santiago Martínez, ao avaliar a
posição dos tribunais argentinos sobre o assunto.177
É interessante notar certa peculiariade do processo
penal brasileiro: a figura do Assistente de Acusação. Com
previsão no artigo 268 do Código de Processo Penal, o
Assistente poderá habilitar-se ao processo e participar dos
atos processuais. Em alegações finais o Assistente se
pronunciará antes da Defesa.
Nestes termos, se o Assistente do Ministério Público,
devidamente habilitado, se pronunciar em alegações finais
pela condenação, opondo argumentos que poderão ser
respondidos pela Defesa, a exigência do contraditório terá
sido atendida.
No caso do direito brasileiro o ofendido fiscaliza a
obrigatoriedade do exercício da ação penal pública (artigo
5º, inciso LIX, da Constituição da República). Essa
fiscalização é realizada, via de regra, por meio da ação penal
privada subsidiária da pública (artigo 29 do Código de
Processo Penal). Todavia, se a ação pública foi
oportunamente proposta, fica para o ofendido apenas a
possibilidade de acompanhar o processo, habilitando-se
como assistente178. Caso não o faça, creio que estará
III. DA DEFESA
185
A violação da presunção neste caso ocorre quando o juiz ou o Ministério
Público advertem o autor do fato (artigo 76 da Lei n. 9.099/95) para os riscos de
recusar a proposta de aplicação direta de pena e partir para o processo
tradicional. Essa ―advertência‖ embute consideração prévia da ―culpa‖ do
investigado, pessoa que segundo a Constituição da República deve ser tratada
como inocente (artigo 5º, inciso LVII).
186 De algum modo, todas estas formas eram conhecidas ao tempo em que
predominava, na Europa Ocidental, o processo inquisitorial de influência
eclesiástica. O e. Supremo Tribunal Federal tem enfrentado com freqüência a
questão e decidido pela inoponibilidade do sigilo do inquérito policial ao
advogado do indiciado. HC 82354 / PR – PARANÁ HC - Relator: Ministro
Sepúlveda Pertence. 1ª Turma. Julgamento em 10 de agosto de 2004.
Publicação: DJ DATA-24-09-2004 PP-00042 EMENT VOL-02165-01 PP-
00029.
busca de suporte probatório, pelo acusador, para
posteriormente deduzir sua acusação, e as atuações durante
a fase preliminar, voltadas à limitação ao exercício de
direitos fundamentais do imputado.
Há atos de investigação que precisam permanecer sob
sigilo, durante algum tempo, sob pena de fracassarem os fins
da própria investigação. Entre eles não se inclui, certamente,
a produção antecipada de provas, que somente estará
justificada diante do risco de perda da prova em virtude da
natural demora do processo, e as ações que visam restringir
o exercício de direitos fundamentais do imputado — tais
como a prisão processual e a interceptação das comunicações
telefônicas —, que só poderão ter validade jurídica se
submetidas ao contraditório pelos menos diferido, isto é,
realizado em um momento posterior ao da adoção da
providência187.
Com isso, a compatibilidade com o princípio acusatório
dependerá de a Defesa concretamente estar em condições de
participar em contraditório do processo com as
características acima mencionadas.
Os atos de natureza cautelar que são levados a cabo sem
audiência prévia da parte contrária - inaudita altera pars -,
dependerão do contraditório a posteriori para estarem
revestidos de validade jurídica.
De todo modo, quando as condições de participação da
Defesa são canceladas, os atos eventualmente realizados
podem estar entre dois extremos: são simplesmente
informativos, e o juiz não poderá considerá-los no processo.
Quando muito os levará em conta para ajuizar a presença de
justa causa para a ação penal; ou não valerão de modo
algum. Nesta categoria será possível inscrevermos a
187
O procedimento das interceptações é autuado em apartado, nos termos da
Lei n. 9.296/96. Permanece em sigilo durante o período de captação das
conversas telefônicas (prazo de quinze dias, prorrogável por mais quinze) e
depois deve ser objeto de controle dos interessados. Ver do autor o livro Limites
às Interceptações Telefônicas e a Jurisprudência do Superior Tribunal de
Justiça, Rio de Janeiro, Lumen Juris, 2005.
denominada delação premiada188, isoladamente insuscetível
de ser alcançada pelo contraditório, pois contrapõe com
exclusividade versões apresentadas por interessados, sendo
meramente uma questão de fé o convencimento dela
derivado.
Também neste âmbito se enquadra a infiltração,
medida que consiste, do ponto de vista filosófico, no fato de o
Estado permitir aos seus agentes que participem pelo menos
do crime de formação de quadrilha a pretexto de controlar e
combater a criminalidade. A par da grave concessão de
ordem ética, haverá sempre a possibilidade de se atribuir a
priori valor superior às informações adquiridas desta
maneira em oposição aos demais elementos de convicção
introduzidos no processo pelas partes, reconduzindo o
sistema das provas tarifadas ao ambiente processual,
dissimuladamente189
Por fim, ressalte-se que a atuação do imputado e de seu
Defensor deverá se projetar no processo de execução penal,
porque nele o comando contido na sentença poderá tornar-
se realidade.
Da participação efetiva da Defesa na execução penal
dependerá a natureza processual, ou apenas administrativa,
desta modalidade de procedimento.
188
Há vários dispositivos legais que cuidam da delação premiada. O mais
abrangente está definido no artigo 14 da Lei nº 9.807, de 13 de julho de 1999,
pelo qual é possível reduzir a pena em até dois terços, desde que o acusado haja
colaborado voluntariamente com a investigação policial e o processo criminal,
visando a identificação de co-autores e partícipes, a localização da vítima com
vida e a recuperação total ou parcial do produto do crime. O artigo 13 da citada
Lei chega a prever o perdão judicial para o agente colaborador, desde que a
personalidade do beneficiado, a natureza, circunstâncias, gravidade e
repercussão social do fato criminoso indiquem a conveniência da medida.
189
O texto Da Lei de Controle do Crime Organizado: Crítica às Técnicas de
Infiltração e Escuta Ambiental, publicado originalmente no Livro Escritos de
Direito e Processo Penal em Homenagem ao prof. Paulo Cláudio Tovo (Rio de
Janeiro, Lumen Juris, 2002), sob coordenação de Alexandre Wunderlich, está
ao fim, como Anexo I. Trata da matéria e o autor acredita que será útil
complemento ao que está sendo examinado neste trabalo.
3.2.2.2. Da Perspectiva Dinâmica do Processo: Da Atuação
dos Sujeitos Processuais
190
WACQUANT, Loïc. Punir os pobres: a nova gestão da miséria nos Estados
Unidos, Rio de Janeiro, Ed. Freitas Bastos, 2001.
191
A abordagem de Aury Lopes Jr. sobre o papel do tempo no processo, levada
a termo no livro Introdução Crítica ao Processo Penal: Fundamentos da
Instrumentalidade Garantista), (Rio de Janeiro, Lumen Juris, 2004), é
sugestiva.
não objtivam apurar fatos para com base nisso arbitrar
responsabilidades.
Há de se pensar uma dogmática apropriada para elas,
tarefa-desafio segundo Alberto Binder192.
As decisões pessoais do acusado são relevantes no
processo penal acusatório (confessar ou não, recorrer ou
não, falar por si mesmo em audiência, não apenas no ato
formal de interrogatório, indicar provas), mas não devem ser
confundidas com aquelas outras, do processo consensual,
que podem ser oportunas e talvez funcionem como estratégia
de abrandamento do rigor punitivo, todavia sistematizadas e
difundidas levam paulatinamente ao retorno do modelo
inquisitorial que mira a pessoa, o corpo do acusado, como
alvo da ação estatal.
Em que pesem as oposições existentes,193 o estatuto do
defensor no processo penal, por sua vez, coaduna-se com
propósitos de resolução justa do caso penal, observada a
adequada tutela jurídica dos direitos e interesses do acusado.
Assim, é lícito acentuar que o advogado ou defensor
exerce um munus público (contribuindo em grande parte
para a resolução da causa conforme o direito) equilibrado
por tudo quanto, no exercício da sua atividade, imponha a
atuação ou omissão, ambas necessárias à preservação ou
conquista de posições jurídicas de vantagem para o acusado,
conforme o direito.
Essa é a razão pela qual se concebe, em um processo
acusatório, a positivação de poderes do advogado do acusado
para se opor à vontade deste último, sempre que divise, nas
conseqüências da manifestação dela, a operação de grave
prejuízo jurídico. Daí porque se constata uma dualidade de
estatutos — defensor/acusado —, apta a ensejar a
juridicidade do recurso da defesa contra a vontade do réu.
192
BINDER, Alberto. O descumprimento das formas processuais: elementos
para uma crítica da teoria unitária das nulidades no Processo Penal, Rio de
Janeiro: Lumen Juris, 2003, p. 44, citado anteriormente.
193 Referidas e analisadas por José Narciso da Cunha Rodrigues (―Sobre o
Princípio da Igualdade de Armas‖, in Revista Portuguesa de Ciência Criminal,
ano 1, nº 1, Lisboa: Aequitas, jan-mar/1991, pp. 77-103).
II. -O ESTATUTO DA ACUSAÇÃO EM MOVIMENTO: A
OPORTUNIDADE REGULADA NA AÇÃO PÚBLICA E A VEDAÇÃO
ORDINÁRIA À INVESTIGAÇÃO DIRETA
197 A Constituição da República estabelece, em seu artigo 5º, inciso LVI, que
são inadimissíveis, no processo, as provas obtidas por meios ilícitos.
198 Evidentemente, se o juiz for testemunha da infração penal, não
poderá julgar. Artigo 252, inciso II, do Código de Processo Penal.
Neste sentido convém recordar que os pesquisadores a
princípio definem o que se pretende pesquisar. Em termos
de Processo Penal, o objeto da pesquisa é um fato com
coloração diferenciada, dada pelo Direito Penal.
A pesquisa só será possível se o pesquisador tiver em
mente um fato da realidade, hipoteticamente ocorrido, a que
terá de somar os elementos peculiares à adequação típica,
pois apenas a infração penal lhe interessará.
Duas notas distintas passam a ser objeto da atividade
mencionada: a existência de um fato, propriamente dito; e a
presença das características que poderão atribuir a este fato
relevância jurídico-penal. Em outras palavras e a título de
exemplo, no processo penal interessa saber se houve morte
de alguém e se esta morte pode ser derivada de conduta
dolosa ou culposa prevista como crime. O processo penal não
deve perseguir a prova de fatos atípicos!
Verifica-se, agora sim, que a atividade probatória não se
limita a um debate no processo, com introdução de provas, a
não ser que entendamos que a produção de provas é sempre
produção de provas direcionada a determinação da
existência e da vinculação subjetiva de um fato típico, ilícito
e culpável, ou seja, de uma infração penal.
Mesmo quando, aparentemente, a lei é clara na
definição da infração penal, sempre se exigirá um mínimo
processo de interpretação que passa tanto pela
reconstituição do fato no plano das idéias, o que dependerá,
é certo, da qualidade dos elementos que serão oferecidos ao
juiz, como pela compreensão do significado das palavras
empregadas na Lei para indicar o crime ou contravenção.
Saber se a interrupção voluntária da gravidez de feto
anencéfalo configura aborto ou fato atípico é algo que impõe
antes estabelecer consenso sobre o que significa a expressão
―provocar aborto‖, prevista no artigo 124 do Código Penal
brasileiro.
Como não há verdade absoluta, verdade real, a maneira
mais segura de se alcançar o melhor resultado certamente
não justificará o desrespeito aos valores fundamentais da
pessoa humana.
Por essa razão, até mesmo de acordo com a lógica
imperante em determinado modelo de funcionalismo, se a
verdade é sempre contingente e histórica, o uso da tortura e
o emprego de recursos que historicamente foram criados e
ditados para produzir uma verdade real não têm peso
algum. Neste caso, o resultado da atividade probatória
objetivamente estará sujeito ao mesmo tipo de crítica cabível
em todas as pesquisas e eticamente representará a opção por
mecanismos tão censuráveis quanto a infração penal que se
pretende apurar.
A restrição relativa aos meios de prova, no processo
penal, tem a ver com o conjunto de valores sociais
considerados conforme o estatuto ético da sociedade.
Do ponto de vista objetivo, a proibição de provas
exprime as hipóteses de violação a este estatuto ético,
previsto principalmente na Constituição. Desse modo, são
inadmissíveis no processo as provas obtidas por meios
ilícitos conforme a idéia de que o meio utilizado para
obtenção da prova viola valores éticos mínimos considerados
essenciais para a existência de uma sociedade civilizada, ou,
usando a expressão de Schmidt-Leichner,199 o Estado não
pode se tornar receptador de material probatório.
Do ponto de vista objetivo há um limite,
tradicionalmente investigado: a prova ilícita não pode ser
introduzida no processo. Caso seja introduzida, não poderá
ser avaliada pelo juiz porque o Estado não pode atuar
criminosamente para investigar o crime.
Do ponto de vista subjetivo, ninguém, nem mesmo o
juiz, pode ter a pretensão de dominar toda a realidade, de
enunciar a verdade real. A atividade de busca da verdade
processual deve se desenvolver de acordo com princípios
republicanos e democráticos.
O processo penal não pode fugir, na essência, à
estrutura do Estado e da sociedade onde está fadado a atuar.
É necessário que seja assim, porque a consolidação da forma
203
As objeções opostas ao extinto inquérito judicial, na falência (ver item I, em
3.2.2.1) são igualmente válidas quando se trata da investigação de magistrados.
Com efeito, a Lei Complementar 35, de 14 de março de 1979, ainda em vigor até
a edição do Estatuto da Magistratura, em seu artigo 33, parágrafo único, prevê
que a investigação da prática de crime atribuído a magistrado deverá ser
realizada pelo Tribunal ou Órgão Especial competente. Além do óbvio
desrespeito ao princípio da igualdade de tratamento, que exigiria outro livro
para ser explicado e contestado à luz da Constituição da República de 1988, há a
questão prévia de se atribuir à autoridade encarregada do julgamento a
atribuição para apurar o fato.
204 A intervenção do juiz, nesta fase, só se explica, conforme o princípio
acusatório, quando necessária para, conforme a Constituição, preservar ou
comprimir, legitimamente, o exercício de direitos fundamentais, porquanto o
julgador não tem interesse jurídico na propositura da mencionada ação.
Comecemos, portanto, pela análise da tarefa de
avaliação das provas. A primeira e mais importante
observação deriva da necessária distinção entre as ações de
introduzir e avaliar as provas no processo penal
condenatório.
A propósito, salienta Gomes Filho que, em um modelo
processual duelístico, como o adversary, existente na
Inglaterra, por exemplo, a iniciativa da atividade probatória
incumbe preponderantemente aos próprios litigantes, daí
decorrendo o papel de mero moderador e mediador,
desempenhado pelo juiz que preside o julgamento, o qual
raramente intervém, como os jurados.205
Nessa direção, fundamenta-se uma estrutura processual
preocupada em evitar injustificadas e errôneas privações de
direitos e em garantir a participação e o diálogo dos
interessados no processo de decisão.206
Por outro lado, convém assinalar que, no modelo
inquisitório, o princípio é justamente o oposto, refletindo a
proeminência da figura do juiz e a subalternidade das
partes na tarefa de obtenção do material probatório, o
dogma da verdade real, a preocupação com a economia
processual e, sobretudo, uma concepção peculiar de livre
convencimento, visto, consoante precisamente remarca
Gomes Filho, como liberdade absoluta na própria condução
do procedimento probatório, e não na sua real e histórica
dimensão de valoração desvinculada de regras legais, mas
incidente sobre um material constituído por provas
admissíveis e regularmente incorporadas ao processo.207
Ora, se estamos convencidos, o que é certo, da
vinculação entre direito de ação (e, naturalmente, também
de defesa) e direito à prova, é razoável supor que haja mais
do que uma simples relação jurídica, pela qual o segundo
212
Processo e Garanzie Della Persona, pp. 27-28.
213 Grinover, O Processo Constitucional em Marcha, pp. 8-9, 14-15 e 19-21.
reciprocamente.
A estrutura de cooperação busca o resultado prático da
conversão das garantias das partes em garantias da própria
jurisdição.
Daí porque a doutrinadora, consolidando seu
pensamento, assevera que existe um perfil objetivo de defesa
a condicionar a validade do processo penal e legitimar a
própria jurisdição, cumprindo ao juiz zelar para que a
desigualdade real não desemboque em desigualdade
processual comprometedora da verdade que deve alicerçar a
sentença penal.
No fundamento desta desigualdade, cuja constatação
nos dias de hoje dispensa comentários, é possível identificar
na estrutura de cooperação citada certa semelhança com o
processo trabalhista, no qual a inferioridade econômica do
trabalhador, numa estrutura capitalista, cria novos hábitos
assistenciais ao juiz.214
De toda sorte, a intervenção judicial na atividade
probatória a favor do acusado há de ser moderada, como
antes frisamos, enquanto estará interditada em relação à
acusação, que nos dias de hoje dispõe de aparato
suficientemente bem constituído para pelejar em juízo.
A supressão ou redução dos poderes de investigação
judicial esbarra, contudo, na cultura desenvolvida
secularmente com base nos ordenamentos jurídicos de
inspiração européia continental, acostumados, pela
experiência haurida na ordem jurídica romano-canônica, à
busca da verdade real, de sorte que a máxima
acusatoriedade postulada pelo princípio em questão, na
equação juiz penal versus prova, quase sempre é bastante
limitada.
E é com inspiração nestes modelos que configuram um
processo acusatório mitigado ou temperado pelo princípio da
investigação judicial, segundo Manuel da Costa Andrade, que
vem tomando corpo no Direito Brasileiro a tese da distinção
entre o sistema acusatório de estrutura adversarial e outro,
215
BADARÓ, Gustavo. Ônus da prova, op. cit., p. 137.
216
ZILLI, Marcos Alexandre Coelho. A iniciativa instrutória do juiz no
processo penal, São Paulo, RT, 2003, p. 44-45.
217
Artigo 156 do Código de Processo Penal: ―A prova da alegação incumbirá a
quem a fizer; mas o juiz poderá, no curso da instrução ou antes de proferir
sentença, determinar, de ofício, diligências para dirimir dúvida sobre ponto
relevante‖ e artigo 209: ―O juiz, quando julgar necessário, poderá ouvir outras
testemunhas, além das indicadas pelas partes‖.
Supor generosidade, espírito científico ou público em
regimes ditatoriais significa desconhecer a lógica que domina
o manejo, a manipulação do Sistema de Justiça Penal em tais
circunstâncias.
No caso brasileiro, a regra de produção de provas pelo
juiz, de ofício, tão-só consolida aquilo que desde as
Ordenações, passando pelo Código de Processo Criminal do
Império, de 29 de novembro de 1832 e pelas Reformas
Prcessuais de 3 de dezembro de 1841 e 20 de setembro de
1871, tornara-se regra em um ambiente em que a
Intendência, espécie de Secretaria de Segurança Pública, fora
desde o início entregue a um Desembargadior, juiz de corte
superior.
Hoje, a volta a esse estado de coisas não pode ser
compreendida como evolução. A artificial designação de
sistema adversarial, para definir o acusatório em que a
inércia probatória do juiz é regra, para distingui-lo de outro
sistema acusatório em que o juiz tem poderes instrutórios, só
atende ao propósito de tentar prolongar a vida do Código de
Processo Penal de 1941, da era autoritária, naquilo que nele é
central, tal seja, a filosofia de que se trata de instrumento da
política de segurança pública do Estado e não de previsão
das regras do devido processo legal, conforme a Constituição
da República de 1988.
O alegado caráter público do caso penal, para justificar
a ação probatória do juiz, conforme Badaró, merece reflexão
histórica e técnica. Em termos de Justiça Penal a palavra
―público‖ será tomada no sentido de algo derivado do
exercício do poder político. Não havia nada mais ―público‖,
no sentido de expressão de poder político, que o processo
penal da Inquisição.218 Tampouco havia algo mais sigiloso
que este mesmo processo.
O público na citada acepção deve ser compreendido
como em oposição ao privado. Para o processo da Inquisição
os interesses privados eram secundários. Importava a
218
MAIER, Julio. Derecho Procesal Penal. I. Fundamentos., Buenos Aires,
Editores del Puerto, 2002, p.151.
repressão aos hereges e a manutenção da ordem. E essa
repressão era feita em sigilo. Talvez seja possível encontrar
neste sigilo a simetria com as motivações do juiz na
determinação da prova de ofício, uma vez que a declaração
dos reais motivos da produção da prova pode implicar pré-
julgamento.
A simetria entre processo inquisitório e regimes
autoritários não é gratuita e não se fixa exclusivamente nos
regimes políticos, inscrevendo-se na cultura dos povos. Não
por acaso o Brasil resiste como um dos poucos Estados da
América do Sul a ter ultrapassado a fase de transição
democrática sem ter editado um novo Código de Processo
Penal em seguida à sua Constituição.
Por essa razão é importante insistir no ponto delicado
da dogmática do processo. O estudo das formas de
conhecimento dos fatos não é próprio à disciplina do Direito.
O Direito se apropria ―politicamente‖ do discurso sobre a
―verdade real‖, mas o próprio Direito não está dotado de
instrumentos científicos para investigar a possibilidade de
ser estabelecida uma verdade real.
Johannes Hessen recordará que é a epistemologia que
se dedica a investigar as possibilidades de conhecimento219 e
Juan Antonio Nicolás e Maria José Frápolli resenharão as
sete principais correntes de pensamento sobre a Verdade no
Século XX, com seus desdobramentos, a enterrar
definitivamente o conceito de verdade real e a retirar o
sujeito do conhecimento da posição de aparente neutralidade
que a filosofia positivista do século XIX entronizara.220
O juiz é o destinário da prova e, sem dúvida alguma,
sujeito do conhecimento. Quando, porém, se dedica a
produzir provas de ofício se coloca como ativo sujeito do
conhecimento a empreender tarefa que não é neutra, pois
sempre deduzirá a hipótese que pela prova pretenderá ver
219
HESSEN, Johannes. Teoria do Conhecimento, São Paulo, Martins Fontes,
2000.
220
NICOLÁS, Juan Antonio e FRÁPOLLI, María José. Teorías de la verdad en
el siglo XX, Madrid, Tecnos, 1997.
confirmada. Como as hipóteses do processo penal são duas:
há crime e o réu é responsável ou isso não é verdade, a prova
produzida de ofício visará confirmar uma das duas hipóteses
e colocará o juiz, antecipadamente, ligado à hipótese que
pretende comprovar.
Assim, por exemplo, se uma testemunha X afirma sem
muita convicção que viu o réu subtrair o carro da vítima e
que estava ao lado de outra testemunha Z, não arrolada, a
decisão do juiz, de ofício, de ouvir a mencionada testemunha
Z só pode ser determinada pela convicção honesta de que a
testemunha Z confirmará o fato. É evidente que se a
testemunha Z negar o fato, o juiz tenderá a levar isso em
consideração. Caso, porém, a testemunha confirme as
declarações da outra, dificilmente o réu poderá acreditar que
o juiz dará crédito a testemunhas que vier a arrolar para
desmentirem as duas primeiras. Com isso estará quebrado o
frágil equilíbrio em que se sustenta a imparcialidade do juiz
no processo penal.
No exemplo anterior o juiz não pesquisou fontes de
prova, ressalva feita por Badaró para tentar fixar algum
limite à atividade probatório de ofício do juiz.221
De todo modo, aceita a tese da inércia judicial,
prosseguimos no plano específico da avaliação do material
probatório recolhido pelas partes, para averbarmos que a
plena liberdade de avaliação cede hoje, fora do Sistema
Acusatório, perante duas distintas situações: o valor de
compromisso da confissão do acusado, como assunção de
um princípio de autonomia da vontade, nos casos de justiça
penal consensual para os quais a resposta penal implique em
uma solução mais favorável ao réu; e a admissão de um
conjunto mínimo de provas legais negativas.
221
De acordo com Gustavo Badaró (Ônus da prova..., p. 119) a busca da prova
pelo juiz não fere a imparcialidade desde que tais poderes de instrução sejam
exercitados dentro de determinados limites. Para Badaró o juiz não está
autorizado a buscar ―fontes de prova‖, atividade propriamente investigativa,
mas poderá agir diante da notícia de uma prova, ―como a informação de que
certa pessoa presenciou os fatos‖.
A.1. -Do Livre Convencimento e a Confissão do Acusado —
Soluções Consensuais
228 Sobre o tema, além dos textos adiante referidos, cumpre examinar duas
obras de inequívoco valor: Contributo alla Teoria della Sentenza Istrutoria
Penale, de Pietro Nuvolone, Padova: Cedam, 1969; e ―La Correlazione fra
Accusa e Sentenza nel Processo Penale‖, de Giuseppe Bettiol, in Scritti
Giuridici, tomo I, Padova: Cedam, 1966. No direito brasileiro há também
os extraordinários trabalhos: A Sentença incongruente no processo penal,
de Diogo Malan (Rio de Janeiro, Lumen Juris, 2003) e Correlação entre
acusação e sentença, de Gustavo Badaró (São Paulo, RT, 2000).
229 Vadillo, Enrique Ruiz. El Principio Acusatorio y su Proyeccion en la
Doctrina Jurisprudencial del Tribunal Constitucional y Tribunal
Supremo, p. 27.
alguien es acusado de hurto y de este delito se
defiende, si se encuentra, después, com una
condena por coacciones, aunque la pena sea
inferior y hasta le pueda producir satisfacción
espiritual el cambio del título de imputación, por
tener este último una menor carga de reproche
social, no cabe duda de que há quedado indefenso
porque frente a esse delito de coacciones no se há
podido defender de una manera eficaz.
232
Pela atual redação o artigo 383 do Código de Processo Penal brasileiro
permite que o juiz atribua nova qualificação jurídica ao fato imputado ao réu,
para corrigir erro de qualificação, ainda que em razão disso venha a aplicar pena
mais grave. É a denominada emendatio libelli, descrita nestes termos: Art. 383.
O juiz poderá dar ao fato definição jurídica diversa da que constar da queixa ou
da denúncia, ainda que, em conseqüência, tenha de aplicar pena mais grave.
Com essa redação e a pretexto de corrigir erro de qualificação da denúncia, o
juiz poderá, por exemplo, reconhecer o concurso material entre o crime de falso
e o de estelionato, quando o Ministério Público imputou somente o de
estelionato em virtude de entender que este crime absorveu o falso (crime fim
absorvendo o crime meio). E tudo isso sem a audiência prévia do réu.
repudiamos, conferirão suporte a atitudes do tipo que
autoriza o juiz, de ofício, a proceder à modificação da causa
de pedir.
Em percuciente análise acerca da correlação entre
acusação e sentença, no direito brasileiro, Diogo Malan
talvez seja hoje o único autor a chamar atenção para a
permanência inquisitorial embutida no Código de Processo
Penal de 1941, nesta área específica e para a política de
segurança pública que ela expressa.
Assinala Malan:
―O golpe de Estado de 1937 foi justificado pela
necessidade de se reforçar a autoridade governamental,
garantindo-se a ordem pública, a legalidade e as
instituições sociais – em meio a uma conjuntura de
crise de autoridade, causada pelas tensões sociais: a
autoridade nacional pressupõe uma ordem una e
orgânica, e o princípio da autoridade é reforçado como
um pilar em torno do qual se constrói a
nacionalidade‖.233
Acrescenta Malan:
―As ferramentas que serviram a essa restauração
da autoridade estatal foram o estado de guerra, o
Tribunal de Segurança Nacional, a reforma da Lei de
Segurança Nacional e o próprio Digesto Processual
Penal: o terreno da lei surge, assim, como um espaço
privilegiado para a racionalização da autoridade e
para a ocultação do discurso da violência, uma vez que
este utiliza a linguagem da ordem e da lei‖.234
233
MALAN, Diogo Rudge. A Sentença..., op. cit., p. 4.
234
Idem.
acusatório, pelo qual responsavelmente o autor avalia e
ajuíza a sua pretensão, consoante a compreensão que detém
da qualificação jurídica dos fatos provados.
Supor que o Ministério Público não saiba qualificar
juridicamente os fatos apurados no inquérito policial é estar
em rota de colisão com a realidade. Eventuais erros materiais
podem ser corrigidos pelo juiz, ouvido o acusador e o réu.
Pontos de vista diferentes sobre a qualificação jurídica,
porém, não podem ser impostos ao acusador, sob pena de o
juiz tomar o lugar dele.
É razoável que se possibilite ao acusador modificar, em
face das provas surgidas durante a audiência, a qualificação
jurídica do fato, quer reconhecendo outro mais grave, quer
reconhecendo outro de igual ou menor gravidade que o
original. Porém, admitir que o juiz o faça afronta o princípio
acusatório, o que não é aceitável, mas se admite, quando
muito, em uma medida de preservação das garantias do
acusado, modificando-se a qualificação jurídica do fato para
outra, que corresponda à infração de igual ou menor
gravidade.
São, contudo, condições sine qua non de validade da
alteração que o fato novo esteja descrito na acusação inicial
(ou no chamado aditamento), portanto deve estar contido
nela com todas as suas circunstâncias, e à defesa deve ser
oferecida oportunidade de debater e, eventualmente, se
entender o defensor necessário, produzir provas, para que
somente então seja proferido decreto condenatório. A
desclassificação de roubo para furto, por exemplo, será
possível porque o fato furto está contido no roubo. Não será
possível, porém, reconhecer uma qualificadora do furto não
descrita de forma expressa na denúncia por roubo.
O ideal, conforme o princípio acusatório, é que apenas
ao autor seja permitido alterar a qualificação jurídica do
fato, em qualquer hipótese. Se o acusador persistir na
posição original, com a qual o juiz não concorda, cabe a este
absolver o acusado, o que não impediria o processo pelo fato
realmente verificado, já que este não foi objeto de
deliberação, com força de coisa julgada.
Aqui, entretanto, mudamos nossa opinião em relação às
duas edições antecedentes do Sistema Acusatório. No início
defendíamos que não afetava a hipótese o princípio da
proibição de bis in idem235 porque o fato julgado,
independentemente da qualificação jurídica que as partes lhe
atribuam, é diferente do fato real, revelado ao longo do
processo.
Não é bem assim, A regra é que ninguém será
processado duas vezes pelo mesmo fato. A exceção em
termos de garantia em prol do acusado só pode favorecer o
acusado. Assim, independentemente de o fato real ser
reconduzido de alguma forma ao tipo de crime expressado
na causa de pedir da ação penal deduzida no processo
concluído, numa relação qualquer de continente a conteúdo
(como no exemplo de furto e roubo, em que o furto está
contido no roubo), o segundo processo está proibido.
A oportunidade de a acusação demonstrar o fato sobre o
qual funda a sua pretensão é única. De acordo com a
Convenção Americana de Direitos Humanos (Decreto n.
678/92) ou o acusador demostra a correção da sua pretensão
ou não poderá mais processar o réu.
Assim ocorre, segundo defendemos, como conseqüência
das implicações políticas e jurídicas do princípio do favor
rei, atuando como obstáculo aos abusos que inevitavelmente
poderiam advir da divergência de juízos entre o acusador e o
julgador.
Em conclusão, diga-se também que mesmo o simples
ajustamento da qualificação jurídica da infração penal, em
obediência ao princípio jura novit curia, ainda quando a
petição inicial acusatória descreva minuciosamente o fato,
haverá de ser promovido antes da emissão da sentença,
assim como as partes têm de ser provocadas para se
manifestarem sobre circunstâncias que agravam ou
diminuem a pena, tornando a matéria alvo do debate
contraditório, que é o núcleo fundamental da máxima
236
O artigo 385 do Código de Processo Penal brasileiro dispensa a audiência
prévia da defesa e da acusação nos casos em que o juiz reconhece agravantes
não alegadas pelo autor da ação penal. Isso também viola o princípio acusatório.
237 Grau, Joan Vergé. La Defensa del Imputado, p. 121. Enrique Ruiz Vadillo
também, por sua vez, traz à luz decisão do Tribunal Superior Espanhol,
proferida em 28 de setembro de 1989, cujos termos são, literalmente, os
seguintes: No se puede penar un delito más grave que el que haya sido
objeto de acusación; No se puedem castigar infracciones que no hayan
sido objeto de acusación; No se puede considerar un delito distinto del que
fue objeto de acusación, aunque las penas sean iguales o incluso cuando la
correspondiente al delito innovado sea inferior a la del delito objeto de
acusación a menos que reine entre ellos una patente y acusada
homogeneidad; No puedem apreciarse circunstancias agravantes o
subtipos penales que no hayam sido invocados por la acusación... (El
Principio Acusatorio y su Proyeccion en la Doctrina Jurisprudencial del
Tribunal Constitucional y Tribunal Supremo, pp. 33-34). Acrescenta este
último que o processo penal é um tríptico, sendo imprescindível que exista
um acusador, um acusado e um juiz, o qual não pode ocupar outra posição
que não seja a de julgar, porque, de outro modo, estará sendo, ao mesmo
tempo, acusador e juiz.
238 Isasca, Frederico. Alteração Substancial dos Factos e sua Relevância no
Processo Penal Português, Coimbra: Almedina, 1992, p. 54.
o juiz limitação temática, traçando-se as fronteiras da
pesquisa das provas. A ampliação da acusação, como
registramos, demanda a iniciativa do acusador e, a partir de
determinada etapa do processo, consentimento do próprio
réu em se ver processado conforme a alteração, dando
origem ao chamado caso julgado de consenso.239
O foco no poder de definição do crime imputado ao réu
e o tratamento dispensado à matéria pelo Código de Processo
Penal brasileiro de 1941, inspirado no Código Rocco,
demonstram que a manipulação das funções processuais
para atribuir ao juiz atividade de parte autora, com
independência da gestão da prova, encarna a política
criminal da inquisitorialidade.
A gestão das provas nas mãos do juiz também
caracteriza a inquisitorialidade. E é assim porque deduzir
provas e deduzir a acusação são comportamentos
processuais das partes que se movem no processo motivadas
por interesses distintos do interesse do juiz. Este é ditado
pela imparcialidade e a presunção de inocência atua como
princípio constitucional de controle dessa imparcialidade.
Modificar o teor da acusação e produzir provas de ofício são
atividades que, em suma, atentam contra a presunção de
inocência.240
3.2.3.1. Da Oralidade
249 Lage, Nilson. Controle da Opinião Pública, Petrópolis: Vozes, 1998, p. 103.
250 López Ortega, ob. cit., p. 87.
tradição burocrática do Estado moderno.251
A admissão de que a forma oral faz diferença – e não é
mero capricho da moderna doutrina do processo penal -, está
ditada pela compreensão da ideologia que orientou a
escrituração no início do Séc. XX.
Com efeito, como bem ressaltou Josefina Martinez, a
forma escrita foi implementada como resultado do
reconhecimento da superioridade da razão. A suprema
capacidade humana de compreender a sua existência e
perceber as leis da natureza que a regem refletia a postura
científica positivista dominante no início do século passado.
Quebrar as amarras com o divino (com suposta ordem
natural emanada de Deus) e descobrir fórmulas racionais de
regulação de todos os fenômenos passou a ser a obsessão
daqueles tempos.
O governo dos homens também haveria de ser
orientado pela racionalidade e as burocracias deveriam
exprimir esse domínio da razão em todas as etapas da gestão
pública dos conflitos.
Paradoxalmente, a realidade é que em termos de
processo penal a burocracia da Inquisição fora a primeira a
se instalar na Europa, muito antes do sucesso do positivismo
e do direito natural fundado na razão. E a funcionalidade da
burocracia do Sistema de Justiça Criminal da inquisição,
com a previsão de seus recursos de ofício e a forma escrita
dos atos processuais, revelara-se eficiente mecanismo de
controle social.252
Assim, apesar de um primeiro momento de Reformas
Processuais ter-se voltado à oralidade,253 o século XIX e o XX
251
JOSEFINA MARTÍNEZ, María. Expedientes, in: Sistemas Judiciales, Ano 4,
n. 7, Buenos Aires, Centro de Estudios de Justicia de las Americas – CEJA,
2004, p. 4.
252
MAIER, Julio. Derecho Procesal Penal. I. Fundamentos., Buenos Aires,
Editores del Puerto, 2002, p.261.
253
Vale a pena acompanhar a resenha de Franco Cordero acerca do
desaparecimento e da reencarnação da Ordenação Criminal francesa de 26 de
agosto de 1670, eliminada entre 1790 e 1800 e ressurgida dos debates
viram florescer os processos penais da matriz européia
continental (de que o nosso Código de Processo Penal de
1941 é herdeiro direto) construídos em cima de estruturas
burocráticas da inquisição.
Como foi dito, a forma escrita subtrai o contato do juiz
com acusado e testemunhas. Incensada pelo culto à razão,
faz supor que este contato é desnecessário: afinal, o que a
visão direta da audiência pode ministrar que já não esteja
nos autos?! O que não está nos autos não está no mundo!
O mesmo poder de dominação que a Justiça Eclesiástica
exercia por meio da Inquisição, em um mundo de poucos
letrados e multidões de analfabetos, passou a ser exercido
pelos órgãos do Estado, que manejavam (manejam) a
linguagem técnica do Direito (e ainda mais técnica dos
autos) para impor o Poder do Estado ao ditar decisões
penais.
Novo paradoxo: ninguém poderá escusar-se de cumprir
a lei por alegar ignorância, desconhecimento da lei! Ainda
que seja analfabeto. Todavia, as fórmulas escritas dos
procedimentos penais estão acessíveis a poucos! Como
controlar o conteúdo de justiça da sentença penal se não se
compreende os termos da sentença fora do linguajar técnico-
jurídico? E, também e mais importante, como participar do
―diálogo‖ processual se a maioria das intervenções no
processo é escrita e, por isso, essas intervenções exigem
habilidade especial de que só advogados, Ministério Público
e juízes são dotados?
A oralidade converte-se em condição de participação
efetiva no processo. Sem a mediação da forma escrita o
acusado poderá se fazer ouvir, a vítima e as testemunhas
também, e as decisões não terão como se ocultar em
linguagens estranhas à vida cotidiana.
Neste ponto percebe-se que oralidade não é mera
questão de forma. A matriz acusatória depende dela para
definir os papéis concretos exercitados pelos sujeitos
3.2.3.2. Da Publicidade
I. DA PUBLICIDADE TRADICIONAL
254
JOSEFINA MARTÍNEZ, María. Expedientes, op. cit., p. 6.
necessidade de participação do público na gestão da coisa
pública, inclusive, evidentemente, na gestão das decisões
judiciais sobre os casos penais, como pode ser vista na
condição de dar ao público, na qualidade de espectador,
satisfação a respeito da maneira como os agentes do Estado
exercem as suas funções.
Neste último caso, frisa com seguro fundamento Vicente
Greco Filho, atende a publicidade à função de garantia das
outras garantias, inclusive da reta aplicação da lei,255 por
cujo meio podem os cidadãos controlar, de forma adequada,
o cumprimento da exigência de respeito aos direitos básicos,
além da moralidade e impessoalidade da ação estatal. Sem
perigo inaceitável para o sistema, a publicidade fica limitada
somente nas situações pertinentes à preservação de outros
direitos fundamentais, por meio da coordenação do exercício
de tais direitos, de acordo com o princípio da
proporcionalidade.
Justamente em virtude das restrições designadas
expressamente na Constituição da República de 1988,
classifica-se em publicidade para as partes e em geral e, sob
outro aspecto, em imediata e mediata, definindo-se a
publicidade interna como orientada com exclusividade às
partes.256
A eleição da publicidade como elemento comum e
permanente do processo permite-nos chegar à conclusão de
que, contemporaneamente, o próprio processo pode ser
definido como procedimento público em contraditório.
Reduzida a publicidade, fora dos casos expressamente
previstos nas Constituições e nas leis (no Brasil, na
Constituição da República), os atos processuais não estarão
aptos a produzir efeitos jurídicos, sendo, por isso, inválidos.
De acordo com o magistério de López Ortega, a
publicidade para as partes, ou interna, significa que todos os
255 Greco Filho, Vicente. Tutela Constitucional das Liberdades, São Paulo:
Saraiva, 1989, p. 113.
256 Marques, José Frederico. Elementos de Direito Processual Penal, vol. 1, p.
75.
atos processuais das partes, do juiz e dos demais sujeitos
deverão ser conhecidos na totalidade e tempestivamente pela
parte adversa,257 razão por que defende que este modelo de
publicidade está ligado ao princípio do contraditório.
É evidente que os atos de investigação criminal
(inquérito policial e outros) dependerão, na maioria das
vezes, da preservação do sigilo para que conduzam a
resultados positivos. Pode-se dizer, então, que estes atos,
embora procedimentais e sujeitos ao princípio da legalidade,
não têm valor processual, não são atos processuais, e,
independentemente de passarem pelo filtro do contraditório,
nunca estarão dotados da aptidão para produzir efeitos
jurídicos. Todavia, no curso da investigação preliminar, atos
processuais de natureza cautelar poderão ser necessários e
deverão ser praticados. Neste caso, a publicidade interna
funciona como referimos anteriormente, ao tratarmos da
Defesa, de forma diferida, muito embora não se possa
recusar à Defesa acesso às informações porventura obtidas e
aos procedimentos adotados por ordem judicial.
Em perspectiva parecida colocam-se as questões dos
procedimentos híbridos, que não são exclusivamente
investigação criminal (etapa de preparação para o exercício
da ação penal) e também não são processos penais em sua
inteireza, pois nem sempre estão munidos de eficácia
jurídica para dar ensejo a soluções de mérito definitivas,
capazes de submeter decisões à qualidade de coisa julgada
material.
No Brasil, temos o termo circunstanciado, previsto no
artigo 69 da Lei no 9.099/95, que substitui o inquérito
policial em relação às chamadas infrações penais de menor
potencial ofensivo. Trata-se, sem dúvida, de modalidade de
investigação criminal cuja instauração define a priori quem é
o investigado e quem é o suposto ofendido, de sorte a
estabelecer posições processuais que serão importantes
conforme o desenrolar do procedimento.
A rigor, como procedimento de investigação, o termo
260 Garapon, Antoine. Juez y Democracia, Espanha: Flor del Viento, 1997, pp.
90-110.
261 Bourdieu, Pierre. Sobre a Televisão, Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1997, p.
81.
262 Prado, Geraldo. ―Opinião Pública e Processo Penal‖, in Ensaios Críticos
sobre Direito Penal e Direito Processual Penal, Rio de Janeiro: Lumen
Juris, 1995.
tratada como cobertura isenta e lisa do meio de
comunicação, que procura acentuar sua liberdade em face
dos investigados quando porventura estes integram ou são
vistos como parte das elites políticas, econômicas ou
intelectuais, na verdade está a descobrir um fato e produzir
algumas danosas conseqüências: a presunção de inocência
sofre drástica violação, pois a imagem do investigado é
difundida como da pessoa responsável pela infração penal; e
em vista disso, o desequilíbrio de posições que os sujeitos
têm de suportar durante o período de exposição do caso pela
mídia transfigura os procedimentos seculares de apuração e
punição, passando subliminarmente a idéia do caráter
obsoleto e ineficiente das garantias processuais, a que se
soma a percepção do processo penal como meio demorado
de se fazer justiça em comparação com a ―célere‖ e ―perfeita‖
investigação da mídia.
É indiscutível que em semelhante situação o devido
processo legal e a liberdade de imprensa sofrem e assim esta
última, que se apresenta como direito civil elementar em
uma sociedade democrática, pode terminar produzindo em
seu extremo aquilo que deveria evitar: um modelo
autoritário de exercício de poder, em virtude de que os
procedimentos acabam tendo valor exclusivamente formal.
Convém aprofundar um pouco mais a análise para
trazer à tona a questão dos procedimentos ilegais de
apuração dos fatos, de que os meios de comunicação se
socorrem em muitas oportunidades, e que transmitem a
imagem do crime flagrado enquanto ocorre (a antiga
verdade real, agora com nova roupagem), amplamente
documentado e provado, supostamente cabendo à Justiça
tão-só sacramentar o veredicto de condenação e punir o
culpado.263
Como consignado na primeira parte deste trabalho, a
263
Renovo aqui a sugestão da leitura do texto de Aury Lopes Jr. sobre
evidência, prova, tempo e processo penal. Introdução Crítica ao Processo Penal:
Fundamentos da Instrumentalidade Garantista, Rio de Janeiro, Lumen Juris,
2004.
organização do sistema de direitos fundamentais em sua
etapa inicial considerou a necessidade histórica de conter o
poder do Estado, opondo-lhe barreiras consistentes nas
liberdades públicas.
Era e de alguma maneira ainda é assim porque ao
Estado são conferidos poderes cujo exercício implica em
virtual interferência na esfera privada das pessoas,
ameaçando o status de dignidade de que devem ser
portadores todos os seres humanos, independentemente de
quaisquer outras considerações.
No plano do processo penal, a proibição do emprego da
tortura, a garantia da inviolabilidade física, do domicílio, das
comunicações e do patrimônio, conjugam-se como regras
destinadas a proteger a honra, a liberdade e a vida dos
indivíduos, sendo que a crônica do exercício arbitrário do
poder registra o emprego do processo penal como forma de
exclusão e controle dos grupos sociais indesejáveis,
naturalmente ao mesmo tempo em que se procurava
controlar as ações que realmente atentavam contra
interesses expressivos das comunidades.
Ter tudo em um mesmo conjunto sempre facilitou o
poder no instante de encontrar um pretexto para
excepcionar o emprego de meios processuais racionais e
éticos de apuração das infrações penais, de sorte que a defesa
social fundamentou discurso de compressão de exercício de
direitos fundamentais em condições de justificar o processo
penal dos regimes autoritários de meados do século XX, na
Europa Ocidental.
Apesar disso, o movimento de internacionalização dos
direitos fundamentais, iniciado após o fim da Segunda
Guerra Mundial, ocupou espaços e detonou irreversível
conscientização do caráter inalienável e irrenunciável destes
direitos, obrigando o Estado a perseguir o delito e punir o
delinqüente com as armas dispostas em um regime de estrita
legalidade e eticidade.
Ocorre que o desenvolvimento da comunicação de
massas, em um contexto de sociedade capitalista e tomando
a forma cada vez mais acentuada de empresas transnacionais
de comunicação (as grandes corporações, que monopolizam
estes meios), edificou novo tipo de poder, neste caso fora do
Estado.
A lógica de freios e contra-pesos não funciona em
relação a eles, que preconizam auferir legitimidade em
virtude do consumo massivo das informações que veiculam.
O emprego da censura não é aceitável, pois no lugar de
eliminar a doença mata o paciente, abrindo caminho para o
extermínio da liberdade de informação e expressão.264
Embora se saiba que, no tocante ao funcionamento
geral das corporações do ramo, a liberdade de imprensa é
ditada por interesses mercadológicos, sobrevive em
importante medida a liberdade de informação de que fazem
uso os operadores da imprensa e que tem sido fundamental
para esclarecer as pessoas (detentoras do direito a serem
informadas) a respeitos de fatos relevantes da vida pública e
social.
Com base nisto, parece que o controle das situações de
conflito entre liberdade de imprensa e devido processo legal
está em se proibir à imprensa aquilo que é igualmente
proibido ao Estado, isto é, fazer uso de informações obtidas
criminosamente.
Como a censura prévia é impossível,265 duas alternativas
podem ser consideradas: o recurso aos mecanismos de
responsabilidade tradicional, de natureza reparatória; e a
intransigente proibição de que as partes do processo lancem
mão das provas obtidas dessa maneira, a qualquer título.
Ademais, a fidelidade ao sistema acusatório implica em
estipular que a sede para a solução dos conflitos de
264
Sobre censura é indicada a leitura de Liberdade de Informação e o Direito
Difuso à Informação Verdadeira, de Luis Gustavo Grandinetti Castanho de
Carvalho, Rio de Janeiro, Renovar, 2003, p. 129-135, que no mesmo trabalho
pesquisa o projeto da chamada ―Lei da Mordaça‖.
265 López Ortega refere a experiência do direito inglês, com as limitações
prévias à liberdade de informar asseguradas pelo emprego da medida
denominada contempt of court, prevista no Contempt of Court Act, de 1981.
Assinala que na Grã-Bretanha o interesse do público na liberdade de expressão
deve ceder ante o interesse do público de não impedir ou ameaçar gravemente
o curso da justiça. Ob. cit., p. 70.
interesses de natureza penal é — e sempre deverá ser — o
processo judicial. Portanto, o ponto de vista defendido em
―Opinião Pública e Processo Penal‖, em 1995, continua
válido. Nos casos de intensa exploração pela mídia, é
conveniente que se proceda ao desaforamento temporal,
suspendendo o curso do procedimento enquanto durar o
estado de excitação social.
Finalmente, visando resguardar a coerência interna
entre os diversos elementos constitutivos do sistema
acusatório, quando confrontados com a publicidade pós-
moderna, convém seguir e ampliar o exemplo espanhol, pelo
qual, em virtude da ordem ministerial de 27 de novembro de
1959, completada pelo ofício circular de 22 de abril de 1985,
o Ministério Público está autorizado a emitir comunicados
escritos, destinados à imprensa, a fim de evitar informações
errôneas.266 A propósito destes comunicados, deve a lei
garantir à parte que se sentir prejudicada o direito de fazer
uso de igual expediente, assegurando-se, assim, não só a
liberdade de informação como também o exercício desta
liberdade verdadeiramente como função social.
É sempre bom lembrar que as portas fechadas aos
esclarecimentos públicos — que devem ocorrer
excepcionalmente, em casos de repercussão, quando
flagrantemente uma informação tida como errônea ganha
curso livre e é capaz de conformar a opinião pública — são
ultrapassadas por conta de práticas clandestinas,
insuscetíveis de serem controladas.
O processo penal democrático necessita da publicidade
dos seus procedimentos e assegurá-la pode impedir que se
coloque no seu lugar a publicidade espetacular dos atores
que deles tomam parte, além de facilitar o controle e coibir
os excessos.
1 Ribeiro, Darcy. Diários Índios, São Paulo: Cia. das Letras, 1996, p. 12.
2 Monteiro, John Manuel. Negros da Terra: Índios e Bandeirantes nas Origens
de São Paulo, São Paulo: Cia das Letras, 1995, p. 8.
3 Batista, Nilo. ―Práticas Penais no Direito Indígena‖, in Revista de Direito
Penal, vol. XXXI, Rio de Janeiro: Forense, 1982, pp. 75-86.
constatação que os nativos organizavam-se em conjuntos
tribais, com lideranças bélicas mas responsáveis pelo
provimento de decisões da vida material e social, que
estavam sempre sujeitas ao consentimento de seus
seguidores.
Ao lado dos rituais místicos e das guerras entre tribos,
decisivamente influentes na ordem social, dada a
fragmentação política existente, havia a propriedade comum
dos meios de produção, despreocupada do sentido de
circulação de bens e acumulação de riquezas que está na base
da organização produtiva capitalista.4
Com tal conformação social, não é de estranhar que as
situações de conflito segundo a nossa percepção não
merecessem dos indígenas a atenção que lhes dispensamos,
salvo quando derivadas da ação de pessoas de outros grupos
sociais, gerando aí confrontos e guerras.
Ainda assim, pelo que disso resultou, o conjunto destas
práticas pode ser interessante quando visto no contexto da
convivência com costumes europeus. Se o processo de
expansão cultural dos portugueses, difundido no Brasil em
virtude da dominação político-econômica e da subjugação
das populações nativas, determinou o desenrolar histórico
adiante analisado, não é inviável do ponto de vista da
antropologia lançar mão da idéia de sistemas de adaptação,
desenvolvida entre outros por Darcy Ribeiro,5 para
considerarmos a experiência da chamada República dos
Guaranis (1610 — 1768).
20
Em realidade, a investigação criminal não é obrigatória, desde que o autor da
ação penal apresente ao juiz indícios de autoria e da infração penal, o que
poderá ser feito por meio de documentos particulares, nos casos de ação penal
privada. Todavia, a forma mais comum de pesquisar o suporte probatório
mínimo e demontrar a existência de justa causa tende a ser a investigação
criminal e entre as suas espécies predomina o inquérito policial.
das investigações, que, embora a ação penal só possa ser
proposta pelo Ministério Público ou pelo ofendido (ou seu
representante legal), conforme o caso, além deles está o juiz
autorizado a ordenar a instauração de inquérito, em crime de
ação pública incondicionada.
Verberando contra a previsão, salientou Sérgio Demoro
Hamilton, nos idos de 1974, que a ortodoxia acusatória do
processo penal brasileiro exigia mais do que simplesmente
afastar do juiz a possibilidade de iniciá-lo, mediante o
procedimento aventado no artigo 531 do Código de Processo
Penal, sendo caso, também, de proibir-lhe a requisição da
instauração de inquérito, como, aliás, previa o artigo 249 do
denominado Anteprojeto Frederico Marques (artigo 221 do
Anteprojeto relacionado à Portaria no 320, de 26 de maio de
1981, do Ministério da Justiça),21 recomendando noticiasse o
magistrado o fato delituoso do qual tomasse conhecimento
ao Ministério Público.
Cremos, todavia, em que pesem o prestígio intelectual e
a cultura do ilustre processualista, que a permissão para o
juiz requisitar a instauração de inquérito não difere,
substancialmente, da autorização legal para noticiar crime de
ação pública, diretamente ao Ministério Público, como, é
certo, já estatui o código em vigor, por meio da disciplina
contida em seu artigo 40. Em ambos os casos,
independentemente de quem seja o destinatário da
informação sobre a infração penal, o juiz, ao noticiá-la,
elabora, ainda que provisoriamente, um juízo de valor a
respeito da existência do crime e, eventualmente, da
positivação de indícios de autoria, dando origem a
procedimentos oficiais, que não poderão ser desprezados.
A base de sustentação da autorização legal parece
situar-se na compreensão da necessidade de repressão penal,
na grande maioria dos casos, em vista do interesse
predominantemente público na tutela penal dos bens
22
Ver item 3.2.2.1 – II – Da Acusação.
23 Respectivamente, ADIN 1605-9-DF, Relator Ministro Sydney Sanches, e
ADIN 1579-6-DF, Relator Ministro Sepúlveda Pertence.
Tribunal Federal, sem notícia de deferimento de medida
liminar ou julgamento da causa até a presente data.
Vale, pois, reproduzir aqui o texto do Provimento no 07,
acima referido, pelo que tem de bem ilustrativo a respeito do
tema:
Considerando que o Ministério Público é
instituição essencial à função jurisdicional do
Estado;
Considerando que a Constituição Federal de
1988 conferiu ao Ministério Público relevantes
funções na defesa da ordem jurídica e dos direitos
individuais e coletivos, redefinindo sua
competência e atribuições;
Considerando que pela atual Constituição são
funções institucionais do Ministério Público, entre
outras, promover privativamente a ação penal
pública; exercer o controle externo da atividade
policial; requisitar diligências investigatórias e a
instauração de inquérito policial;
Considerando as medidas adotadas pelo
Tribunal Regional Federal da 1a Região, Estados
do Rio de Janeiro e Bahia, no sentido de adequar
os procedimentos investigatórios aos atuais
mandamentos constitucionais;
Considerando que a remessa, distribuição e
exame de inquéritos policiais, e ordenação de
diligências pelo Juiz, antes da remessa ao
Ministério Público, ensejam a demora nas
investigações em detrimento da rápida apuração
da verdade real;
Considerando a decisão proferida pela 2a
Turma Criminal do Tribunal de Justiça do Distrito
Federal e dos Territórios na Reclamação no
1.068/96;
Considerando o requerimento encaminhado
pelo Procurador-Geral de Justiça do Ministério
Público do Distrito Federal e dos Territórios, que
originou o P. A. nº 03.912/97;
RESOLVE:
Artigo 1o Somente serão admitidos para
distribuição às Varas Criminais da Justiça do
Distrito Federal os inquéritos policiais e outras
peças de informação, nos casos de intervenção
obrigatória do Ministério Público, quando houver:
a) denúncia ou queixa;
b) pedido de arquivamento;
c) inquérito instaurado, a requerimento da
parte, para instruir ação penal privada e que deve
aguardar, em juízo, sua iniciativa (Código de
Processo Penal, artigo 19);
d) pedidos de prisão preventiva, busca e
apreensão, prisão temporária e outras medidas
cautelares;
e) comunicação de prisão em flagrante ou
qualquer outra forma de constrangimento aos
direitos fundamentais previstos na Constituição;
Parágrafo único. Independentemente de
distribuição, o Juiz encarregado de supervisionar
o Serviço de Distribuição encaminhará ao
Ministério Público do Distrito Federal e Territórios
o inquérito policial, peças de informação ou
procedimento em que não couber distribuição
(Código de Processo Penal, artigos 5o e 40).
Artigo 2o A devolução do inquérito pelo
Ministério Público à autoridade investigante, para
novas diligências, far-se-á independentemente de
sua tramitação pelo Judiciário, mesmo nos casos
anteriores à vigência deste provimento onde o
inquérito policial tenha sido distribuído a uma das
varas criminais.
Artigo 3o Este provimento entrará em vigor
30 (trinta) dias após a sua publicação, revogadas
as disposições em contrário.
Publique-se, registre-se e cumpra-se.
Na mesma direção estão o anteprojeto de código de
processo mencionado e o projeto de lei no 31, de 1995, de
iniciativa do Senador Pedro Simon, sendo certo que, se o
segundo postula a tramitação direta dos autos de inquérito,
entre o membro do Ministério Público e a autoridade
policial, retirando do juiz também a possibilidade de
requisitar a instauração da investigação, o primeiro, ainda
mais completo e sistemático, acrescenta que o controle da
obrigatoriedade, no (não) exercício da ação penal pública,
fica entregue ao próprio Ministério Público, por meio do seu
Conselho Superior, notificando-se o indiciado e o ofendido.24
Em idêntico sentido dispõe o Projeto de Lei n. 4.209/01,
preparado por Comissão presidida pela jurista Ada Pellegrini
Grinover, nos termos da Portaria 61 do Ministério da Justiça,
editada em 20 de janeiro de 2000.
Este projeto traz a seguinte redação para o artigo 28 do
Código de Processo Penal:
Art. 28. Se o órgão do Ministério Público, após a
realização de todas as diligências cabíveis, convencer-se da
inexistência de base razoável para o oferecimento de
25
Ao apreciar requerimento de medida liminar para sustar a aplicação do artigo
3º da Lei nº 9.034/95, em ação direta de inconstitucionalidade promovida pela
Associação dos Delegados de Polícia do Brasil – ADEPOL – (ADI 1517 MC/UF),
o Ministro relator, Maurício Corrêa, entendeu que as atividades de investigação
do juiz, na fase de inquérito, não violavam regras constitucionais. Ocorre que,
por maioria de votos, o Tribunal Pleno do Supremo Tribunal Federal decidiu
julgar procedente pedido em ação direta de inconstitucionalidade promovida
pelo Procurador-Geral da República, com o mesmo objeto, e declarar a
inconstitucionalidade do artigo 3º da Lei nº 9.034/95, que instituiu a figura do
juiz investigador (ADI 1570/UF, rel. Ministro Maurício Corrêa, julgamento em
12 de fevereiro de 2004, com voto vencido do Ministro Carlos Velloso).
26 Artigo 5º, inciso XXXV, da CR: A lei não excluirá da apreciação do Poder
Judiciário lesão ou ameaça a direito; inciso LIII: ninguém será processado
nem sentenciado senão pela autoridade competente; inciso LIV: ninguém será
privado da liberdade ou de seus bens sem o devido processo legal; inciso LV:
Assim, objetivada, pelo virtual autor, providência
preparatória que implique em restrição a direito
fundamental (liberdade, disponibilidade sobre o patrimônio,
intimidade), a medida só poderá concretizar-se depois de
ponderado exame, pelo juiz, da presença dos pressupostos
característicos das cautelares, além, é claro, da subsunção do
caso concreto às hipóteses de cabimento legalmente
previstas, com a ressalva constitucional da prisão em
flagrante, sujeita, por sua própria natureza, a exame
posterior de legalidade e necessidade.27
Cabe ao juiz decidir pela decretação da prisão
preventiva, no curso do inquérito policial, ou ainda pelo
deferimento da interceptação das comunicações telefônicas e
busca e apreensão de bens ou pessoas. Estas medidas estão
incluídas na chamada reserva jurisdicional de função.
Sabe-se que, se não há, à semelhança do Processo Civil,
disposições específicas sobre um processo penal cautelar, em
livro próprio, no Código de Processo Penal, de fato é inegável
a existência de medidas cautelares no processo penal,
destinadas à proteção dos processos de conhecimento e
execução penais.28
Como sublinhado linhas atrás, na fase preparatória há
um número significativo de providências que inauguram
relações jurídicas de natureza cautelar, predispostas à tutela
da liberdade do investigado, virtual acusado, ou da aquisição
das provas, tais como a autorização para busca domiciliar,
32
Ver item 3.2.2.2 – III – A Mutatio Libelli.
33 Artigo 383. O juiz poderá dar ao fato definição jurídica diversa da que
constar da denúncia ou queixa, ainda que, em conseqüência, tenha de aplicar
pena mais grave.
34 Muito embora preconizemos aqui, para validade do processo, que a
emendatio libelli em nenhuma hipótese surpreenda a defesa, instituindo-se o
debate contraditório em consideração ao reconhecimento daquela que é,
segundo o juiz, a acertada qualificação jurídica da infração, o eg. Supremo
Tribunal Federal decidiu diferentemente, como se pode observar no habeas
corpus nº 73.389-SP, julgado pela 2ª Turma, cujo relator foi o Exmo. Ministro
Maurício Correa, publicada a decisão em 6 de setembro de 1996, no Diário de
Justiça da União: ―Habeas Corpus‖. ―Emendatio libelli‖. Réu denunciado pelos
crimes de estelionato e de apropriação indébita e condenado pelo crime de
falsidade ideológica. Falta de intimação do acusado em face da
desclassificação: cerceamento de defesa não configurado. 1. Ocorre emendatio
libelli (CPP, art. 383) e não mutatio libelli (CPP, art. 384) quando o réu é
denunciado pelos crimes de estelionato e de apropriação indébita, porém
resulta condenado por falsidade ideológica, uma vez que a denúncia descreve
perfeitamente o fato delituoso mas nela consta qualificação penal diversa. 2. A
nova tipificação emprestada pelo juízo, em face da instrução processual, não
Em 1989, no exercício das funções judicantes,
recebemos denúncia do Ministério Público, por crime de
desacato à autoridade judiciária, cometido por advogado, no
curso de um processo civil, com atribuição ao juiz da prática
de fato definido como crime, isso por petição.
No despacho inicial, na verdade, decisão, haja vista a
conduta efetivamente descrita, a denúncia foi recebida,
emendando-a para classificar o crime na moldura penal da
calúnia, detalhada na vestibular com todos os seus elementos
e circunstâncias.
A alteração pareceu apropriada, tendo em conta a
diversidade de procedimento, um dos quais, acertado, com a
possibilidade de oferecer ao acusado a exceção da verdade.35
Justamente este tipo de controle, deduzido, a princípio
ou no decorrer do processo, até a sentença, permitirá que o
acusado não fique refém da classificação jurídica emanada
da acusação, em virtude da qual poderá, ou não, incidir um
modelo de processo consensual, poderá, ou não, ser cabível a
prisão preventiva ou a liberdade provisória, com ou sem
fiança.
Os critérios de classificação das infrações penais são,
pois, na exata medida em que se respeita o princípio
constitucional da reserva legal,36 na edição de leis
incriminadoras, determinados por modos de apreciação
dogmaticamente objetivados e, assim, passíveis de serem
controlados pelo juiz sem ferimento ao direito de iniciativa
das partes.
Da mutatio libelli
Segunda Turma
Recebimento da Denúncia e Desclassificação
Considerando que não cabe ao juiz, ao receber
a denúncia, desclassificar o crime nela narrado —
hipótese distinta da prevista do art. 383 do CPP
(―O juiz poderá dar ao fato definição jurídica
diversa da que constar da queixa ou da denúncia,
ainda que, em conseqüência, tenha de aplicar pena
mais grave.‖), que faculta ao magistrado tal
possibilidade no momento de prolatar a sentença
— a Turma deferiu, em parte, habeas corpus
interposto contra decisão do Tribunal de Justiça
do Estado do Rio de Janeiro que recebera queixa-
crime oferecida contra o paciente pelo crime de
injúria e não de calúnia contra autoridade pública,
tal como descrito na queixa (arts. 20, combinado
com o art. 23, III, da Lei 5.250/67, Lei de
Imprensa). No mesmo julgamento, ponderou-se, à
Do recurso de ofício
Da compreensão cênica
53
Marcellus Polastri Lima igualmente salienta a inconstitucionalidade do
recurso de ofício, com precisa fundamentação, com a qual concordamos. Curso
de Processo Penal, vol. 1, Rio de Janeiro, Lumen Juris, 2002, p. 151.
cautela, porém, não devemos nos esquecer da advertência do
escritor: cuidado com o que só existe no Brasil e não é
jaboticaba!
A razão dessas linhas é comentar que a combinação de
princípios e regras que compõem o Sistema Acusatório,
definindo seus elementos, deve ultrapassar o umbral das
coisas teóricas e chegar à cultura. Sem a vivência cotidiana a
nos revelar as contradições entre o dever ser de respeito às
igualdades e o ser concreto de frustração deste objetivo, nós
brasileiros em determinado momento chegamos a achar
natural e perfeita a instituição da escravidão.
Muitas vezes somente a ruptura tem capacidade de
transformar a realidade. Persuadir as forças dominantes a
abrir mão da situação de conforto gerada pela dominação é
acreditar em uma inocência do poder desmentida no dia-a-
dia.
Para a ruptura, porém, é preciso antes a posição de
estranhamento. São os antropólogos que nos lembram disso.
Quando todos os conviventes de uma determinada sala
diariamente se encontram e estão de terno e gravata, há a
tendência a aceitar que os demais seres viventes também
usam terno e gravata o dia todo! É preciso, pois, estranhar,
duvidar da normalidade das coisas e fixar o espírito
questionador para buscar na história a razão de ser das
categorias e instituições do direito e, sendo o caso,
transformá-las.
A se acreditar na ―normalidade‖ da escravidão,
estaríamos ainda hoje sob a égide do estado anterior à Lei
Áurea, que libertou os escravos no Brasil em 13 de maio de
1888. A tradição que nos orienta é aquela que condiz com os
propósitos democráticos de expansão da liberdade que, no
passado, era bem de posse de poucos, mas hoje é promessa
constitucional para a fruição de todos.
Feita a digressão necessária é o caso de registrar que em
nenhum outro país o Ministério Público com atuação na área
criminal se senta no lugar destinado ao tribunal, isto é, ao
lado do juiz. Não se trata de um problema na Europa ou nos
Estados Unidos da América, pois quando o Ministério
Público conquistou autonomia em face do juiz, com o fim da
inquisição, conquistou, conseqüentemente, o direito de não
ser confundido com o tribunal. Trata-se de direito do
Ministério Público.
Por que no Brasil, hoje, ainda é diferente e na sala de
audiências criminais o Ministério Público se senta ao lado do
juiz?
O antropólogo Roberto DaMatta, na explêndida análise
do dilema brasileiro e no tópico dedicado à igualdade,
formula uma tentativa de explicar outra genuína criação
brasileira: o argumento de autoridade expresso na máxima
―você sabe com quem está falando!‖
De acordo com Roberto DaMatta, a definição de traços
hierarquizantes na sociedade brasileira, percebida por
Machado de Assis, explica a reinvenção do princípio da
igualdade, por meio da qual a posição social assegura a
validade do argumento que é empregado não para
convencer, mas para dissuadir.54
Na realidade, segundo nossa ótica, a diferença do estado
da matéria no Brasil, em comparação com outros países, é
ditada pelo fato de não ter se completado o processo de
autonomia do Ministério Público.
Com efeito, o Ministério Público é instituição
permanente, essencial à função jurisdicional do Estado. Isso
é indiscutível. Também merece ser colocado em relevo que
em sociedades com baixa densidade de organização social,
como é o nosso caso, instituições como o Ministério Público
são fundamentais para a consolidação da democracia, pois
que postulam a tutela efetiva de direitos difusos e coletivos
que beneficiam grandes setores da população que, de outra
maneira, estariam fora do circuito de gozo desses direitos.
De 1988 para cá o Ministério Público deu passos largos
para ocupar espaço condizente com as funções
constitucionais e hoje, no horizonte das vitórias que a
democracia brasileira computa é inegável a parcela de
54
DAMATTA, Roberto. Carnaval, malandros e heróis: para uma sociologia do
dilema brasileiro, 6ª ed., Rio de Janeiro, Rocco, 1997, p. 203.
responsabilidade dessa instituição.55
A autonomia administrativa, econômica e financeira do
Ministério Público também foi alcançada em boa medida, da
mesma forma que o poder de gestão da própria instituição
com independência do poder de origem político-partidária.
A questão examinada neste tópico se coloca, pois, com
exclusividade na seara penal. E o campo penal, no Brasil,
como demonstrado ao longo do trabalho, que tem ficado
impermeável à cultura da acusatoriedade.
Foi visto como ainda hoje se defende a existência de
poderes probatórios do juiz. Ligou-se o fato à idéia de que a
jurisdição penal está inserida no programa de segurança
pública do Estado e não dirigida à defesa das garantias
processuais, entre as quais há de ser ressaltado o direito ao
julgamento por juiz imparcial. Salientou-se que o mesmo
ocorre quando se trata de deferir ao juiz o poder de modificar
o conteúdo da acusação (mutatio libelli). Em ambas as
situações a ordem jurídica infraconstitucional procura
enquadrar as funções do Ministério Público, que é olhado
com desconfiança, como se seus membros não pudessem ser
dotados de liberdade para agir em defesa da sociedade. É
preciso, segundo a lógica inquisitorial que preside estes
institutos (artigos 156, parte final, e 384 do Código de
Processo Penal), transformar o juiz em fiscal do Ministério
Público. E isso é feito desde antes do processo (artigo 28 do
Código de Processo Penal), com a atribuição ao juiz do
controle da obrigatoriedade da ação pública.
Como sabem os sociológos56 as práticas sociais têm
55
Basta ver neste ano de 2005 as ações efetivas do Ministério Público contra a
remanescência do trabalho escravo e a negação de efetividade aos direitos à
saúde e educação. Com base em ações coletivas promovidas pelo Ministério
Público, vários grupos de pessoas foram libertados da cndição análoga a de
escravo e outros tantos tiveram acesso a remédios e escolas que, de outro modo,
não ficariam acessíveis.
56
Convém examinar a pesquisa coordenada por Sérgio Adorno, na USP,
intitulada Dossiê Judiciário.: Crime, Justiça Penal e Desigualdade Jurídica: as
mortes que se contam no Tribunal do Júri (Revista USP, 21, março-abril-maio
de 1994, p. 132).
mais força que as ordens do direito emanadas
abstratamente. Não fossem suficientes as amarras jurídicas
mencionadas, a enlaçar o Ministério Público ao juiz, coloca-
se o próprio Promotor de Justiça fisicamente ao lado do juiz.
É claro que além da óbvia mensagem subliminar
endereçada ao réu, de que a justiça penal tem função
repressiva, motivo pelo qual juiz e Ministério Público estão
aliados na tarefa de punir, há outra igualmente sutil, dirigida
ao próprio Ministério Público. Segundo esta interpretação, a
posição do Ministério Público ao lado do juiz é justificada
por discurso que ressalta a importância da instituição,
todavia deixa abaixo da superfície a intenção de controle
judicial das funções de persecução.
Não há dúvida de que os objetivos latentes podem não
se realizar por conta da autonomia com que cada membro do
Ministério Público se comporta. Isso, também, é aplicável ao
instituto da mutatio libelli, à produção de provas de ofício
pelo juiz e à posição do Procurador-Geral de Justiça, que no
exercício da atividade posta pelo artigo 28 do Código de
Processo Penal poderá manter o ponto de vista (decisão) do
Ministério Público que oficiou pelo arquivamento da
investigação criminal.
A questão está naquilo que foi objeto de advertência no
início do trabalho. Em uma democracia privilegia-se o
governo sob a égide das leis e não de acordo com a
arbitrariedade incontrolável do ser humano.
Assim, não basta ao juiz a confiança na própria
imparcialidade. É necessário que se afaste do processo se
antes funcionou como perito (artigo 252 do Código de
Processo Penal). Assim, não basta para as partes (Ministério
Público e Defesa) confiança na autonomia do Ministério
Público e na não intervenção do juiz na atuação do
Ministério Público. É necessário que o Ministério Público
ocupe o seu lugar de parte, na sala de audiências, mantendo
o juiz eqüidistante do Ministério Público e da Defesa.
Essas são considerações sobre o tema que, em
realidade, não deixam de levar em conta os argumentos
apresentados pelos juzes criminais do Rio de Janeiro,
Rubens Casara e André Nicolitt, nas decisões pioneiras
proferidas na 2ª Vara Criminal de Itaperuna (MS/proc.
2004.078.00039) e em Arraial do Cabo (proc.
2003.005.000056-7), objeto de mandado de segurança, com
base em conceitos defendidos por Hassemer e Habermas.
Também foram considerados os argumentos do voto
condutor do acórdão proferido na Sétima Câmara Criminal
do Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro, pelo
Desembargador Eduardo Mayr, Relator do Mandado de
Segurança n. 035/04, que manteve a decisão de deslocar o
Ministério Público da posição ao lado do juiz para outra
simétrica a da Defesa e a tese exposta pelo jurista e
Desembargador do Rio de Janeiro, Silvio Teixeira, citado por
Rubens Casara nas informações do mandado de segurança.
Por igual foram considerados os argumentos de Lênio
Luiz Streck, em artigo denominado A CONCEPÇÃO CÊNICA
DA SALA DE AUDIÊNCIA E O PROBLEMA DOS
PARADOXOS, recebido com carinho e que em breve será
publicado no site www.leniostreck.com.br.
Conclusão do capítulo 4
13 Idem.
14
Ver mudança de posição do Supremo Tribunal Federal, noticiada no início
deste item O Tribunal Pleno do Supremo Tribunal Federal decidiu julgar
procedente pedido em ação direta de inconstitucionalidade promovida pelo
Procurador-Geral da República, para declarar a inconstitucionalidade do artigo
3º da Lei nº 9.034/95, que instituiu a figura do juiz investigador (ADI 1570/UF,
rel. Ministro Maurício Corrêa, julgamento em 12 de fevereiro de 2004, com voto
vencido do Ministro Carlos Velloso).
9.034/95, que — dispondo sobre o acesso a dados,
documentos e informações fiscais, bancárias,
financeiras e eleitorais durante a persecução
criminal que verse sobre ação praticada por
organizações criminosas — estabelece que,
―ocorrendo possibilidade de violação de sigilo
preservado pela Constituição ou por lei, a diligência
será realizada pessoalmente pelo juiz‘ o qual ‗fará
lavrar auto circunstanciado da diligência, relatando
as informações colhidas oralmente e anexando
cópias autênticas dos documentos que tiverem
relevância probatória...‖. A referida lei determina,
ainda, que ―o auto de diligência será conservado
fora dos autos do processo, em lugar seguro, sem
intervenção de cartório ou servidor, somente
podendo a ele ter acesso, na presença do juiz, as
partes legítimas na causa, que não poderão dele
servir-se para fins estranhos à mesma, e estão
sujeitas às sanções previstas pelo Código Penal, em
caso de divulgação‖.
Diligências realizadas por juiz - II
O Tribunal, por maioria de votos, entendeu
que os argumentos sustentados pela autora da
ação — usurpação da função de polícia judiciária
(CF, art. 144, § 1o, IV, e § 4o), ofensa ao devido
processo legal (art. 5o, LIV) devido ao
comprometimento da imparcialidade do juiz na
apreciação de provas por ele próprio colhidas e
ofensa ao princípio da publicidade (CF, art. 5o, LX)
— não possuíam a relevância jurídica necessária
para o deferimento da liminar. À vista dessas
alegações, considerou-se: a) que o magistrado tem
poderes instrutórios e a investigação criminal não
é monopólio da polícia judiciária; b) que a coleta
de provas não antecipa a formação de juízo
condenatório; c) que a CF autoriza restrições ao
princípio da publicidade (CF, art. 5o, LX). Vencido
o Min. Sepúlveda Pertence, que deferia a liminar
por violação ao princípio do devido processo legal
por entender que a coleta de provas desvirtua a
função do juiz de modo a comprometer a
imparcialidade deste no exercício da prestação
jurisdicional. ADIN 1.517-DF, Rel. Min. Maurício
Corrêa, publicada em 30 de abril de 1997.15
17
Hoje a matéria pertinente ao sigilo bancário está tratada na Lei
Complementar n. 105, de 10 de janeiro de 2001. Recomenda-se a leitura do
excelente livro de Juliana Garcia Belloque, Sigilo Bancário (São Paulo, RT,
2003).
requisitar informações e documentos para instruir
procedimentos administrativos de sua
competência.
O pressuposto é a existência de procedimentos
administrativos de competência do Ministério
Público.
Além disso, o dispositivo carece de
regulamentação por lei complementar (art. 129,
VI). Quanto ao artigo 29 da Lei no 7.492/86,
permite ele a requisição pelo Ministério Público de
documento ou diligência a ―qualquer autoridade‖.
A autoridade, no caso, seria dirigente do
Banco Central e não o gerente do banco, que não é
titular de cargo ou função pública. Em suma,
mesmo em se admitindo a legitimidade do
Ministério Público para requisitar a quebra do
sigilo bancário em caso de crime econômico, tal
requisição deveria ter sido dirigida ao Banco
Central, ao qual poderiam as impetrantes fornecer
os dados sem incidir nas penas cominadas ao
crime de quebra de sigilo bancário.
II — Ordem de habeas corpus concedida.18
42 Cintra, Antonio Carlos de Araújo, et al. Teoria Geral do Processo. 10ª ed.
São Paulo: Malheiros, 1994, p. 304.
novidade, adverte com razão Alberto Silva Franco, que
provoca a meditação quando, por oportuno, acrescenta:
48
Essa é hoje a posição dominante, contra a qual nos manifestamos em
Elementos, op. cit.
49 Prado, Geraldo. ―Da Natureza Jurídica da Sentença Homologatória de
Acordo sobre a Pena — Lei nº 9.099/95‖, in Caderno Científico do Mestrado e
Doutorado em Direito da Universidade Gama Filho, nº 4, ano III, Rio de
Janeiro, 1996, pp. 31-46.
50 Deu, Teresa Armenta. Principio Acusatorio y Derecho Penal, pp. 38-39.
princípio algum de oportunidade. A segunda oposição refere-
se à possibilidade do acusado deixar de fruir um benefício
acessório, embora importante, ao tipo específico de
condenação, em consideração à opinião do Promotor de
Justiça. Figueiredo Dias, tantas vezes citado, assevera que
deferir ao Ministério Público alguma discricionariedade não
significa criar um espaço onde possam frutificar tratamentos
privilegiados ou discriminatórios, mas, sim, reconhecer a
importância que a instituição merece no contexto da
construção democrática da política criminal.
Aos abusos que podem decorrer do fato do Promotor de
Justiça indevidamente, na visão do juiz, não oferecer a
proposta de pena, opõe-se a possibilidade de controlar-se a
ação, no âmbito interno do Ministério Público, velando-se
por sua moralidade e impessoalidade. Basta, para isso,
recorrer-se à aplicação analógica do controle pelo
Procurador-Geral, regulado no artigo 28 do Código de
Processo Penal.
Mesmo se no lugar da proposta o representante do
Ministério Público opte pelo oferecimento direto da
denúncia, o procedimento deverá ser sustado para que o juiz
remeta ao Procurador-Geral os autos, alertando quanto à
desatenção sobre a obrigatoriedade da solução consensual.
Caso o Procurador-Geral concorde com o Promotor de
Justiça, não haverá o necessário consenso a conferir base à
transação e, em vista disso o processo retomará seu curso
natural. Se for o contrário, caberá ao próprio Procurador-
Geral formular a proposta de pena ou delegar a formulação a
outro Promotor de Justiça, homologando o juiz o acordo, se
este for concretizado, e deixando de receber a denúncia já
oferecida porque o conflito haverá sido resolvido
definitivamente.
O ideal, todavia, para a completa aproximação ao
princípio acusatório, estaria em a lei prever que antes de
oferecer a denúncia oral e à semelhança do que propomos
sobre o arquivamento, o Promotor de Justiça comunicasse
ao Conselho Superior do Ministério Público as razões do não
oferecimento da proposta, disso dando ciência ao ofendido e
ao investigado. Chancelada a solução, em instância superior,
teríamos o controle da atuação do Promotor de Justiça sem
incluir o juiz em uma etapa ainda precoce e preparatória da
ação penal tradicional.
A objeção de ordem prática derivada quer da
dificuldade que o acervo de autos de investigação pudesse
opor ao eficiente funcionamento do Conselho Superior do
Ministério Público, ou ainda em virtude da perda de
celeridade que a implantação da providência poderia
acarretar, teria de ser arrostada pela adequada estruturação
pessoal e material da instituição, de modo a torná-la apta a
apresentar respostas rápidas e eficazes às demandas que
dizem respeito à persecução penal.
A garantia da preservação do princípio acusatório, com
o inegável reconhecimento das graves funções atribuídas aos
membros do Ministério Público, justificaria com sobra o
aperfeiçoamento da instituição.
A objeção de ordem jurídica dos defensores da
transação penal como direito público subjetivo do acusado,
quanto ao exercício deste direito ser controlado não pelo
Judiciário, do qual não se pode excluir a apreciação de lesão
ou ameaça de lesão a direito, mas pelo titular da ação
condenatória, estará superada à vista da natureza jurídica da
proposta de transação — ação penal condenatória especial
não tradicional e não direito público subjetivo do réu — em
razão do que se pode afirmar que ninguém pode invocar o
direito de sofrer sanção penal.
Quando se assevera que, em determinadas condições, o
condenado tem direito público subjetivo ao sursis se está
afirmando que, com a sua responsabilidade determinada
legalmente, em um processo penal com ampla defesa e
contraditório, reconhece-se que entre as alternativas de pena
a correta e adequada é aquela representada pelo sursis.
Entretanto, na ausência de proposta de pena não temos
como argumento as alternativas de sanção consideradas
concretamente, porque sequer se concluiu sobre a existência
da infração penal e a responsabilidade do agente. Há um
processo condenatório, com requisitos de validade e eficácia,
a ser percorrido e superado antes das alternativas penais
emergirem.
52
O Supremo Tribunal Federal resolveu em definitivo a questão por meio do
verbete 696 da Súmula, cujo teor é o seguinte: Reunidos os pressupostos legais
permissivos da suspensão condicional do processo, mas se recusando o
Promotor de Justiça a propô-la, o juiz, dissentindo, remeterá a questão ao
Procurador-Geral, aplicando-se por analogia o art. 28 do Código de Processo
Penal.
digladiam no direito brasileiro. De um lado, estão os
defensores de que se trata de direito público subjetivo do
acusado; do outro, estão os que postulam sua qualidade de
parte integrante do direito de ação.
A nosso juízo, a definição da natureza jurídica da
proposta de suspensão do processo está condicionada à
verificação do que acontece quando a proposta é aceita pelo
réu e homologada pelo juiz.
É fácil verificar que a suspensão condicional do
processo efetivamente nada suspende. Ao contrário da
suspensão do processo, prevista no artigo 366 do Código de
Processo Penal, que paralisa o curso do processo de
conhecimento em relação à atividade de instrução,
impedindo dessa maneira que o pedido de condenação seja
apreciado pelo juiz, e das demais situações de suspensão
processual derivadas da necessidade de aguardar decisão de
questão prejudicial pertinente ao estado de pessoa (artigo 92
do Código de Processo Penal), e eventualmente nos
incidentes de falsidade (artigo 145 do Código de Processo
Penal) e de insanidade (artigo 149 do Código de Processo
Penal), a suspensão condicional do processo paralisa apenas
a marcha processual destinada à produção das provas pelas
partes.
O autor da ação penal e o réu poderão encontrar uma
forma de composição do conflito de interesses penal que não
dependa de ficar demonstrada a existência da infração penal
e a responsabilidade do processado.
No lugar das provas dos fatos que sustentam as
pretensões das partes, figuram as atitudes que o réu se
compromete a adotar e o autor entende suficiente. Com isso,
vencido o período de prova, se a suspensão condicional do
processo não for revogada, considera-se definitivamente
solucionada a questão penal, isto é, com força de coisa
julgada material.
Note-se que se tratará de decisão de mérito, sujeita a
consolidar coisa julgada material tanto quanto as sentenças
absolutórias. À semelhança do que acontece no processo
civil, as soluções de mérito no âmbito penal não ficam
restritas aos casos de julgamento do pedido do autor, com a
condenação ou absolvição do réu. Também no âmbito penal
as soluções consensuais impõem definitiva resolução do
conflito (vide a transação penal), ao tempo em que o
reconhecimento da prescrição ou de qualquer causa de
extinção da punibilidade cumpre o mesmo papel da
declaração da prescrição e da decadência, no processo civil,
levando à extinção do processo com julgamento do mérito.
Diante deste quadro, é válido assinalar que a suspensão
condicional do processo imporá às partes outro percurso
processual distinto da caminhada probatória, mas orientado
pelo mesmo fim desta última, tal seja, oferecer definitiva
solução ao conflito de interesses penal. Só haverá paralisação
da atividade de instrução mediante produção de provas,
estando o juiz, por isso mesmo, impedido de julgar o pedido
do autor. No mais, o processo seguirá em busca da solução
que, de acordo com a legislação, é eficaz para recompor o
tecido social supostamente afetado pelo delito. Não há
suspensão propriamente dita.
As condições da proposta e da suspensão não são pena
criminal e a sentença homologatória não tem natureza de
condenação. Antes, a suspensão representa justamente a
opção legislativa pela não condenação como forma de
composição do conflito, em situação bastante semelhante,
por exemplo, à prescrição.
Como as condições da suspensão do processo não têm
caráter de sanção, nunca poderão equivaler às sanções
principais ou alternativas previstas na legislação penal. A
solução realmente exclui a aplicação de qualquer pena e por
essa razão é inviável socorrer-se o juiz das medidas
prescritas como sanções criminais, ainda que ao argumento
de que não poderão ser implementadas compulsoriamente. A
implementação compulsória das penas configura mera
possibilidade das penas derivadas de condenação criminal
transitada em julgado, que poderão ser executadas sem
oposição do condenado (pagamento de multa, prestação
pecuniária etc.) e não considera os efeitos psicológicos das
providências.
Com tudo isso, o que se constata é que a suspensão
condicional do processo atua como meio de composição do
conflito de interesses penal, pelo qual veicula-se causa de
extinção da punibilidade. A decisão de suspensão é
homologatória e a suspensão tem natureza jurídica de
procedimento penal de conhecimento. Em si mesma, não é
direito do réu ou do autor. É tão-só o devido processo legal
de uma forma especial de composição do conflito.
Habeas Corpus.
Improcedência da alegação de não ter sido o
defensor do ora paciente intimado para a
apresentação das razões de apelação.
No caso, por não haver o Ministério Público,
quando do oferecimento da denúncia, proposto a
suspensão do processo, não há razão para
decretar-se a nulidade deste a partir desse
oferecimento.
Habeas corpus indeferido, determinando-se a
restituição dos autos da ação penal à origem.57
8 Mirabete, Júlio Fabrini. Execução Penal, 5ª ed. São Paulo: Atlas, 1992, p.
319.
9 Hassemer, Winfried. Fundamentos del Derecho Penal, Barcelona: Bosch,
1984.
procedimento de execução deve ser a oral, ao contrário do
que está preconizado no artigo 196 da lei de execução. Hoje o
procedimento na execução penal é tudo, menos
predominantemente oral.
O Projeto de Lei no 2.687-96, em tramitação no
Congresso, prevê a modificação dos artigos 195 a 197 da LEP
e introduz o procedimento oral e a audiência como regra. É
limitado quanto à possibilidade das partes provarem, o que
deve ser melhorado, contudo, avança ao incorporar a
audiência, que tende a reduzir as distâncias entre o juiz e o
condenado, seu jurisdicionado na execução.
Um procedimento oral, no qual, ainda conforme
Hassemer, o juiz desça do seu pedestal e encare as partes
como pessoas portadoras de direitos e deveres, ônus e
faculdades, e que esteja inserido em um contexto de
distribuição rigorosa das funções na execução, entre juiz,
Ministério Público e condenado, assistido por Defensor,
pode oferecer soluções equânimes, justas, para situações
diferenciadas no transcurso do processo, em virtude das
quais mesmo ao condenado por tráfico não se negue,
sistematicamente e sem motivação jurídica, quando for o
caso, a substituição da prisão por outra medida.
A oralidade envolverá aí, por outro lado, cuidados
especiais com o emprego da tecnologia no procedimento de
execução. Enquanto é indiscutível que a era da informática e
da telemática pode oferecer vantagens indiscutíveis, em
termos de controle do tempo de duração das penas e
medidas e da celeridade na produção dos atos jurídicos
necessários, um dos pressupostos elementares do processo
oral está em permitir o contato direto entre o juiz e a parte,
contato que não deve ser mediado por sofisticados recursos
de transmissão de voz e imagem, distanciando fisicamente os
protagonistas do processo e deixando um deles isolado em
ambiente que lhe pode ser hostil, justamente aquele sujeito
mais necessitado da segurança que o contato direto
proporciona.
A cultura pós-moderna implicada em determinadas
atitudes, louváveis sob inúmeros aspectos, porque visam
agilizar e melhorar a prestação jurisdicional, tem de se
render à realidade instrumental da tecnologia. Ela não vale
por si, como o processo igualmente não é um fim em si
mesmo!
A tecnologia é importante pelos resultados que a sua
aplicação prática proporciona, de modo que, se estes
resultados não atendem aos objetivos de propiciar uma
adequada tutela jurídica, devem justificar o abandono, ainda
que provisório, do recurso mais sofisticado. No caso, o
contato pessoal, na velha conhecida audiência, se causa
transtornos de locomoção, segurança etc., é um aparente
atraso que, em termos de processo jurisdicional, humaniza e,
neste sentido, acaba sendo um atraso progressista, algo
como DE VOLTA PARA O FUTURO. Seguindo este caminho,
creio que não necessitaremos temer pela advertência de
Boaventura de Sousa Santos, de que um dia teremos
pateticamente de inventar, sempre com atraso, o que já
tivemos quando éramos atrasados.10
Às vantagens da audiência devemos somar a
conveniência, no caso de presos, tendo em vista a sempre
alegada dificuldade de transporte e segurança, do ato
realizar-se nas unidades prisionais. Um dos pontos mais
sensíveis e de mais delicada solução jurídica está relacionado
aos desvios e excessos de execução, medida que não exclui a
audiência no tribunal, mas a complementa.
Quantas vezes o indivíduo devia estar cumprindo pena
em regime semi-aberto ou aberto e, apesar da penitenciária
ter essa qualificação, na prática, o sistema é fechado.
Quantas vezes a única progressão se dá exclusivamente de
sistemas mais fechados para outros apenas menos fechados!
Pior, todos sabemos que o artigo 88 da LEP, que trata das
mínimas condições físicas dos cárceres, é sistematicamente
desrespeitado pelos governos estaduais. São excessos na
execução das penas, conforme a tipologia desenhada no
artigo 185 da LEP, que o juiz poderá perceber in loco,
10 Santos, Boaventura de Sousa. Pelas Mãos de Alice, São Paulo: Cortez, 1995,
p. 67.
reforçando o seu dever de fiscalizar ao mesmo tempo em que
o jurisdicionado tem certeza, porque está em audiência com
o juiz, no próprio ambiente carcerário, que o magistrado
haverá de leva-los em consideração na hora de decidir sobre
os pleitos deduzidos. Se as partes tradicionalmente têm o
direito de serem ouvidas pelo juiz — é dito que têm direito ao
seu dia na corte — o juiz passa a ter o direito ao seu dia na
prisão: one day in jail.
Para os presos, é benéfica a configuração procedimental
com essas características, aproximando o juiz da realidade de
vida do condenado, se houver a pretensão de convencê-los da
justiça intrínseca da ordem jurídica.
No plano processual, algumas conseqüências podem ser
desde logo percebidas:
a) quanto ao excesso de execução, além da providência
jurídica óbvia de eliminação da medida excessiva ou
desviada — por exemplo, transferindo-se o preso para
unidade compatível com as exigências da fase de execução —
caberá imaginar a viabilidade de pretensões jurídicas que
não se restrinjam à indenização preceituada no artigo 5o,
inciso LXXV, da Constituição da República, mas que,
aplicando o princípio da proporcionalidade, importem na
compensação quantitativa de sanção pela violência
qualitativa constatada. Verdadeira e jurídica redução da
pena. De lembrar que se outro preso, condenado ao mesmo
tempo de reclusão em regime idêntico, vai sofrer uma
limitação da sua liberdade na mesma porção de tempo a ser
suportada por este, em visível excesso, há quebra do
princípio constitucional da isonomia, que o Poder Judiciário
não pode deixar de coibir;
b) QUANTO AOS ADOLESCENTES, rompe-se muitas
vezes a ideologia do senso comum, que pode inspirar alguns
juízes, levando-os a crer na eficácia da internação como
medida estacionária da situação de conflito. Muitas vezes, o
caráter banal da internação está fundamentado na crença em
uma eficácia corretiva dela, absolutamente distante da
realidade, como demonstra a criminologia. O juiz, ao ter
contato direto com o cárcere e com o adolescente em
cumprimento de medida em condições concretas, estará
melhor instruído para pesar o que realmente pretende
internando o jovem e não se deixará iludir pela denominação
comum de ―Escolas‖ ou ―Educandários‖ que muitas destas
unidades ostentam.
Muitas outras questões mereceriam ser enfocadas, mas
a limitação de tempo permite tão-só citá-las, para orientar a
meditação dos interessados: o cabimento da execução penal
provisória, idealizada tendo em vista interesses reais do
condenado; a possibilidade jurídica do Ministério Público
recorrer a favor do processado, durante a execução; o não
cabimento do mandado de segurança para impedir a
imediata execução de decisão favorável ao condenado; o
procedimento do recurso de agravo (semelhante na execução
penal ao do recurso em sentido estrito); o caráter
jurisdicional pleno da execução, para englobar a questão das
faltas graves e suas conseqüências; a impossibilidade da
regressão de regime cautelar (objeto de recente decisão do
Des. Valmir da Silva, do Rio de Janeiro); e, finalmente, o
debate sobre se o preso tem direito a não progredir de
regime (por conveniência, segurança ou conforto, por
exemplo).
A teoria jurídica pode e deve fornecer os elementos
indispensáveis à construção de um processo de execução
penal mais humanizado e comprometido com os fins da
sanção, reformulando em linhas gerais o atual. Já se disse
que, embora disponha de duzentos e quatro artigos, a lei de
execuções penais dedica apenas dezoito ao processo,
demonstrando, em linhas gerais, como há muito salientou
Ada Grinover, uma certa falta de atenção da lei para com as
garantias processuais das partes e da jurisdição.11
Temos certeza que a elaboração de um novo processo de
execução, no entanto, não é suficiente para remodelar as
relações sociais penetradas pelo problema do crime.
ANEXO
1
Este artigo sintetiza as idéias apresentadas em 21 de abril de 2001,
no Hotel Glória, no Rio de Janeiro, no Simpósio Novos Rumos, Novas
Idéias, promovido pelo Instituto de Direito – ID.
1. Introdução
Organizado2.
organizações.
informação.
de sua privacidade.
basicamente retórica5.
delito.
prevalecentes.
equiparados8.
8 Lei n. 8.072/90.
comportamentos penalmente proibidos, assegurando-lhes a
penal.
constitucional.
9 JUAREZ CIRINO.
O nullum crimen nulla poena sine legem, deduzido
suas circunstâncias10.
para a grave situação deflagrada por seu artigo 1o., uma vez
proporcionalidade.
humana.
comunidade.
(dos sujeitos que devem ser protegidos das ações contra seus
desigualdade15.
ESTADOS UNIDOS16.
PANÓPTICO.
mercado18.
qualquer meio!
INFORMATIVA?
1990, p. 67.
infiltrado ingresse nos mais variados domicílios, suspeitos
oportunidade!
4. A título de conclusão
fundamentais.
Na minha opinião, o controle repressivo da
do sistema repressivo.
judiciário criminal.
GERALDO PRADO