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Direitos Humanos, Diversidade e Diálogo, 1999 PDF
Direitos Humanos, Diversidade e Diálogo, 1999 PDF
I. Comentários introdutórios
A. Os direitos humanos
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1999 “Direitos humanos, diversidade cultural e diálogo”, palestra proferida durante a IV
Semana de Antropologia: Cidadania e o (re)conhecimento do outro, Universidade Católica
de Goias, 16-20 de agosto.
Quando um termo como “direitos humanos” vira moda, parece que basta botar
esse rótulo num projeto e está garantida sua eficácia. Estes projetos
conseguem então mobilizar gente com as melhores intenções, pessoas
idealistas, abnegadas que querem bem aos outros. Mas é preciso lembrar que
não bastam as boas intenções. Quantas campanhas foram feitas ao longo da
história em nome do “bem dos outros”? Como esquecer as cruzadas da Idade
Média que, em nome da salvação espiritual dos infiéis, provocaram o
massacre e tortura de centenas de milhares de indivíduos? Como esquecer que
o empreendimento colonialista foi feito em nome do “fardo do homem
branco” - de nações “civilizadas” que queriam compartilhar com povos
“atrasados” os benefícios da civilização...? E, chegando mais perto de casa,
como ignorar a terrível ironia de políticas orquestradas pelas forças do OTAN
no Kosovo que - mais uma vez - em nome dos direitos humanos,
bombardeiam hospitais e fazem boicotes provocando a morte e mutilação de
milhares de civis2?
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Esse texto foi originalmente redigido em 1998, mas os paralelos com a situação do fim de
ano de 2001, o bombardeio de Afganistão, são evidentes.
depois, em 1948, os autores de uma nova Declaração dos Direitos Humanos
das Nações Unidas preocuparam-se em procurar além da burguesia européia
para as bases de uma filosofia universal. No entanto, não houve entre os
autores dessa Declaração nenhum representante das populações indígenas do
mundo, nem dos povos islâmicos do chamado “Terceiro Mundo”, e, como um
todo, a participação de mulheres ainda era pouco expressiva (ver Nader 1999).
O processo de formulação desses princípios deixava margem à acusação que
refletiam, antes de tudo, os valores de homens brancos (e heterossexuais) das
classes dominantes.
Estes casos nos lembram que o lema dos direitos humanos é um discurso
produzido num contexto preciso por determinadas pessoas. Tal fato não tira a
validade das campanhas empenhadas em nome de causas humanitárias, mas
ajuda a colocá-las em perspectiva e lembrar que como qualquer outro slogan
que tem um forte apelo emotivo, o de direitos humanos também se presta a
manipulações mais ou menos conscientes.
B. A diversidade cultural
Mas, temos uma prova ainda mais convincente e certamente mais trágica da
continuada importância da diversidade cultural nas guerras étnicas que não
param de assombrar o planeta (a “guerra santa” entre Bush e Bin Laden sendo
apenas um, mesmo que espetacular, exemplo). O fato é que, mesmo se
porventura as diferenças culturais estivessem diminuindo por causa da
mundialização da cultura, os ódios, preconceitos e formas de discriminação
em nome dessas diferenças parecem crescer com cada novo dia.
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Em outro lugar, cito o caso do índio pataxó, Galdino, assassinado por estudantes que
agiram por engano, imaginando que tratava-se de um "mero" mendigo. A discussão
remete-se ao perigo de classificar as pessoas em categorias de "mais ou menos humanos"
(Fonseca 1999).
convocados para falar sobre a situação de vida das crianças/adolescentes, [...]
a grande maioria preferiu abordar outros temas, como pobreza, políticas
públicas, família" (Souza 2001: 186). Esse paradoxo lembra a experiência de
outra pesquisadora que foi a Tailandia para estudar os jovens envolvidos na
prostituição infantil. Ficou meses dentro das ONGs especializados no
combate a essa atividade sem encontrar uma única criança prostituída
(finalmente, resolveu se aventurar sozinha nos bairros pobres da cidade e só
então fez contato com as crianças). É como se as organizações, não
encontrando casos que correspondessem à sua imagem de criança inocente ou
vitimizada, preferia trabalhar com abstrações (Montgomery 2000).
A diversidade cultural:
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Conforme R. Wilson (1997: 7), o relativista Ronaldo Dworkin seria um exemplo de
alguém que, trabalhando com um conceito reificado de cultura (internamente homogênea,
com fronteiras bem delimitadas), estaria absolutamente alheio aos recentes avanços teóricos
no campo de ciências sociais.
Quando é anunciada uma conferência sobre direitos humanos, parece que a
platéia vem esperando denúncias -- informações que provocam indignação e
que inspiram as pessoas a agir. Esse é o papel, indispensável, dos militantes
dos direitos humanos. Embora muitos cientistas sociais não se enquadrem
neste estilo, ainda são cidadãos sinceramente incomodados pela desigualdade
e injustiça da sociedade em que vivem, e que querem contribuir, com suas
pesquisas, para a melhoria da situação.
Denunciar Compreender
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Essas observações são tirada de pesquisas realizadas pelo NACI (Núcleo de Antropologia
e Cidadania) - UFRGS dentro da rede institucional da FEBEM-RS (tanto com funcionários
e administradores, quanto com internos) entre 1997 e 2001. Sintentizo aqui elementos da
análise do quadro funcional durante o início desse período.
tempo, parecia que anos de história e experiências diversas eram esquecidos,
sendo ressaltados, da época anterior, apenas os malogros - os episódios de
abuso e violência institucional.
Como resultado dessa abordagem, o pessoal que atendia aos jovens internos
acabou sendo percebido como dividido em dois blocos: os “novos”
funcionários - muitos dos quais eram jovens universitários sem experiência
prática mas que incorporavam sem muita dificuldade a retórica da reforma em
andamento - e os “antigos” funcionários. Em vez de pesquisar os
conhecimentos acumulados da instituição para tentar incorporar certos deles
no novo esquema, a administração passou a culpar este grupo de “antigos
funcionários” como obstáculo principal à reforma. Visando sanar
irregularidades e dar prioridade absoluta às necessidades dos adolescentes
internos, a administração passou a suprimir uma série de “privilégios” aos
quais os antigos funcionários tinham se acostumado: horas-extra, refeitório,
creche para os filhos, etc. Numa das instituições criou-se um impasse entre a
administração e alguns dos “funcionários antigos”. Diante da “des-
integração” das partes da equipe funcional, instalou-se um clima de
indisciplina que deu origem a repetidos motins e violências perpetradas entre
jovens. Nesta situação, é irônico que quem mais sofreu era exatamente os
jovens em cujo nome corria a reforma.
O que, me pergunto, deduzir desse diagnóstico? Que nossa realidade não está
à altura da teoria? O problema é que os funcionários - estes funcionários -
fazem parte da realidade concreta. E mais, observou-se num momento
posterior que muitos dos considerados “retrógrados” (que não conseguiam
trocar o termo “menor” por “criança e adolescente”) ostentavam qualidades
(facilidade de estabelecer vínculos com os adolescentes, por exemplo) que os
mais novos e politicamente corretos não possuíam. No entanto, usando o
ECA como um escudo simbólico numa guerra santa contra o « inimigo
interno », os autores da reforma não foram, neste caso, capazes de dialogar
com os “nativos”, isto é com os antigos funcionários. Estes foram
bombardeados de cursos e retórica para convertê-los à nova doutrina, mas não
houve espaço para eles fazerem emendas ou modificações à política nova a
partir de sua própria experiência. A teoria falava dos vícios da “cultura
institucional” que deviam ser extirpados para acontecer uma verdadeira
mudança - vícios sem dúvida muito reais. Mas não abria espaço nenhum
para resgatar as qualidades – fruto de longa experiência neste contexto.
O problema levantado aqui nos remete mais uma vez à questão dos diferentes
papeis – do militante-ativista e do pesquisador universitário -- distintos mas
complementares: um não vai longe sem o diálogo com o outro. Tal
perspectiva é estranha ao pensamento autoritário que invade boa parte do
campo de ação social. Neste tipo de pensamento (que chamo aqui “legalista”),
os teóricos (que sejam oriundos das agências internacionais ou das faculdades
locais) são vistos como seres iluminados, que trazem soluções de cima, na
forma de regras abstratas. A realidade empírica, neste caso, é vista como mera
contingência. Quando uma política social não dá o resultado esperado, a
tendência é voltar a estudar a teoria, com zelo dobrado, para diagnosticar erros
na sua aplicação. Raramente volta-se a questionar a teoria, ou a procurar,
através do estudo do contexto local, elementos capazes de mostrar os limites
da proposta teórica. Sabemos que, no colégio ou na universidade, é mil vezes
mais fácil o professor ensinar uma teoria abstrata do que um método
investigativo voltado para a realidade. De forma semelhante, na área de
políticas públicas, sugiro que é mais fácil o planejador transmitir uma receita
(importada em geral de um contexto diverso), do que levar os agentes locais -
aquelas pessoas que têm longa experiência na prática lidando com problemas
de justiça social – a usar seus conhecimentos de forma criativa, em diálogo
com as novas teorias. Tal diálogo, que implica em dotar os técnicos não
somente do instrumental mas também da autoridade de pesquisador, pode
assustar os planejadores que temem perder controle do processo. No entanto,
ignorar a riqueza da experiência profissional -- esse patrimônio do corpo
técnico -- é entregar-se a uma atitude totalitária, com soluções que vêm “de
paraquedas”, fadadas a naufragar na areia branca da teoria abstrata.
A adoção à brasileira: a legislação e a diversidade cultural
Fui trazida ao tema de adoção pela pesquisa que faço, em grupos populares
brasileiros, sobre a circulação de crianças - uma prática familiar, velha de
muitas gerações, em que crianças transitam entre as casas de avós, madrinhas,
vizinhas, e “pais verdadeiros”. Dessa forma, as crianças podem ter diversas
“mães” sem nunca passar por um tribunal. No decorrer da minha pesquisa
com cerca de 120 famílias em dois bairros diferentes, estabeleci relatos sobre
quase cem crianças que tinham “circulado”; nunca soube uma só criança
legalmente adotada pela família com que vivia (Fonseca 1995).
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Esses depoimentos foram gravados e constam do vídeo “Cirando, Cirandinha”, produção
NAVISUAL-PPGAS-UFRGS.
respeito principalmente à transmissão de patrimônio ou de poder político, mas
- nestas - em geral a criança simplesmente acrescenta a nova filiação (adotiva)
à antiga (biológica). É só nos últimos quarenta anos que vemos surgir a idéia
de uma família adotiva que "imita a natureza" a tal ponto que aniquila os laços
e a identidade da família biológica. A idéia de filiação substitutiva8 pela qual
apaga-se a identidade dos genitores só surgiu depois da Segunda Guerra
Mundial. No Brasil, essa “adoção plena” já esboçada em leis de 1965 e 1979)
passou, com o Estatuto da Criança e do Adolescente (1990), a ser a única
forma de adoção.
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Ver Verdier et Delaisi (1994).
Primeiro Mundo”. Será que a legislação “primeiro mundista” é adequada ao
contexto brasileiro? Será que já ouviram falar de “pais de criação” ou a
circulação de crianças là na Europa ou América do Norte?
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Citação de um entre quase 3.000 sites na internet sobre este assunto: “Values Based Open
Adoption Program - A Statement of Beliefs”.
entre os diferentes setores da população mas também entre as leis inspiradas
em princípios internacionais de direitos humanos e a realidade local?
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A moral da história é que a justiça social não cai de paraquedas do céu, nem
brota espontaneamente dos infindáveis congressos internacionais de juristas. É
evidente que os princípios da justiça social exigem uma codificação abstrata e
que esta codificação implica em amplas discussões teóricas. No entanto, a
teoria desencarnada, isto é desligada de qualquer realidade concreta, nada
garante. Seria um erro fatal imaginar que tudo se resolve com o
aperfeiçoamente de novos estatutos. Se a nova constituição e seus anexos
estatutários mudaram alguma coisa no nosso país, não é por ter produzido um
novo dogma. É, antes, graças ao movimento que acompanhou sua redação:
os incontáveis encontros que mobilizaram - além de teóricos - pessoas com
conhecimentos e experiência práticos, todos engajados na procura de soluções,
o exame da realidade, a valorização da prática, a dúvida, o diálogo.
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“O imperialismo cultural repousa no poder de universalizar os
particularismos associados a uma tradição histórica singular, tornando-os
irreconhecíveis como tais.” (Bourdieu e Wacquant, 1998, p.17)10