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Daiany Ferreira Dantas

Nova onda feminista no cinema Brasileiro:


cartografias de corpo, performance e redes
de criação

Orientadora: Profa. Dra.


Angela Freire Prysthon

Universidade do Estado do Rio Grande do


Mossoró, 2017
TEMA: Nova onda feminista no cinema Brasileiro: cartografias de corpo, performance
e redes de criação

APRESENTAÇÃO DO OBJETO

A relação entre cinema e política está no cerne da práxis cinematográfica desde as


suas origens. Tanto nos primeiros engenhos em teorizar a imagem fílmica, quanto na
consolidação de uma indústria criativa vultosa e capaz de hierarquizar visibilidades.
Para Rancière (2005), que entende que a estética é, por si, política, e a política, em
nosso tempo, desliza cada vez mais para abrigar-se nos espaços de dissenso que a arte
oportuniza, o cinema é a expressão mais radical e grande protagonista do regime estético
contemporâneo, por ser ele o mais evidente condutor da materialidade à técnica. Num
trato com o factual que encontra na tradução fílmica do real não "um efeito a ser
produzido, mas um dado a ser compreendido" (RANCIÈRE, 2005, p.182).
O filme é um documento importante para a percepção dos rótulos, padrões,
contestações e exasperações de determinados momentos históricos. Mas, não é um
documento que termina em si mesmo, ou parte apenas de si. Ele é movido por um curso
de distanciamentos e aproximações, do que buscamos ou furtamos do visível, que ora
aciona, ora amortiza disputas.
Ao investigar um cinema feminista, e, além disso, um cinema feminista feito no
Brasil recente, não só consideramos a arte engajada e a militância crítica que
identificamos como protagonistas dessa releitura epistêmica contemporânea. Mas, a
própria transformação do território político nacional, face a tensionamentos e sujeições
de um campo político minado, em que a estética emerge como arena de transições e
disputas. Esta pesquisa assume, portanto, o cinema como um dos intervalos entre arte e
política. Que direciona e mobiliza a materialidade em sua película, numa dimensão
própria, na qual ergue-se um tempo singular e suas ondas também características.
E que ondas limitam e atiçam o cinema feito no Brasil, hoje? É possível pensar
um cinema feminista? No mundo inteiro, observamos a recente consciência crítica de uma
nova camada geracional acerca do universo político-filosófico do feminismo, fortemente
impulsionada pela coletividade digital que, embora opere num nível caótico - que dificulta
a consolidação de unidades e coalizões políticas -, potencializou fluxos de visibilidade
inesperados a temas comumente obscurecidos.
No Brasil, tivemos também um acirramento na presença política dessa mesma
onda geracional, ocupando espaços públicos nas ruas, em movimentos organizados a
partir de eventos criados em redes sociais, tais como o Facebook.
Foram sintetizadas no recorte de “primavera feminista” (BOGADO, 2018), as
inúmeras marchas de mulheres que tomaram vias das grandes cidades do páis em 2015,
no período posterior ao que ficou conhecido como “jornadas de junho”, quando 1,4
milhão de pessoas foram às ruas de diversas cidades brasileiras protestar contra o aumento
da tarifa de transporte urbano. Marcha contra o PL 5069/2013 de Eduardo Cunha, Marcha
das Mulheres Camponesas, Marcha das Mulheres Negras e as manifestações das
estudantes secundaristas nas ocupações de escolas da rede pública de São Paulo. Estas,
no rastro organizativo de um primeiro evento viral, importado do Canadá: a Marcha das
vadias, partiam da criação de um evento numa rede social. Insurgências que iriam,
posteriormente, somar-se às greves internacionais das mulheres, iniciadas na Polônia, em
2016 e internacionalizadas no 8 de março de 2017 -, e o movimento #Niunaamenos, que
levou um milhão de mulheres às ruas na luta pelo direito ao aborto, em 2016, na
Argentina. Havia uma internacionalização dos instrumentos e efeitos das lutas, e também
uma inflexão coletiva dos temas que afetavam o espírito do tempo.
A subjetividade, em sua rede, mobiliza um dissenso que articula formas de partilha
e ações que excedem as ruas, reverberam em discursos, palcos, palanques e uma
consciência de coesão pouco experimentada pelas gerações mais jovens.
Esse mesmo sentido de coletividade pela autonomia trouxe para o centro do debate
estético questões historicamente secundarizadas, legadas ao relativismo social, e mesmo
crítico, de uma política para as mulheres no cinema.
Exemplos disso são as campanhas de denúncia por hashtags, distinguidas nos
EUA pelos #askhermore #timesup e #metoo, por igualdade no tratamento público,
igualdade salarial e coerção ao assédio sexual e profissional naturalizado pelos estúdios
cinematográficos, ao longo de décadas. As campanhas eram estratégias de visibilização
de um conjunto de denúncias e testemunhos dados em momentos de holofotes, como os
discursos de Patricia Arquette, no Oscar, e Viola Davis, no Emmy, ambos em 2015,
demandando equiparação salarial para as mulheres e combate ao racismo institucional da
indústria. A hashtag #metoo, que remete aos assédios nos bastidores dos sets de
filmagens, a partir das denúncias ao produtor Harvey Weinstein, foi partilhada em 85
países em 2017.
No Brasil, dois episódios ocorridos em Recife, em 2015, num intervalo não muito
distante, geraram um constrangimento político que desencadeou uma série de debates,
dentro e fora das redes: a realização da mostra Cinema de Mulher, em março, cujo debate
suscitou centenas de comentários numa postagem no perfil do facebook do produtor
Thales Junqueira, que consistia apenas da frase “Que porra é cinema de mulher?”. E a
repercussão em torno das interrupções da fala de Anna Muylaert, em debate na Fundação
Joaquim Nabuco, em Pernambuco, por seus colegas Claudio Assis e Lírio Ferreira, em
agosto de 2015. Estes, teriam chegado supostamente embriagados durante a mesa
encabeçada pela cineasta, no lançamento de seu filme Que horas ela volta? (2015).
Sarmet e Tedesco (2018), ao avaliar as recentes transformações políticas e
estéticas no que toca à presença das mulheres no audiovisual brasileiro, nesta década,
também destacam as consequências do debate como uma intervenção que aguçou as
percepções em torno da sub-representação das mulheres nos espaços de fala e visibilidade
pública. Ao mesmo tempo em que afirmam que a autoconsciência de Muylaert
transformou-se após o episódio, tornando-a uma porta-voz da agência política das
realizadoras nacionais, também destacam uma fala sua, feita numa exibição do Cineclube
Quase Catálogo, da Universidade Federal Fluminense, na qual ela pontua que o
feminismo em seu filme não foi uma intenção, mas uma consequência, sublinhada
também pelo contexto:
O Que horas ela volta? eu nunca pensei que seria um filme feminista,
nunca passou pela minha cabeça isso. Apesar de a fotógrafa ser mulher,
eu, as principais atrizes e tudo mais, era natural pra gente, aí depois esse
assunto veio. Eu comecei a sofrer ataques machistas, e aí as pessoas
começaram a falar que o filme era feminista, e eu: “Olha, é sim, é sim,
vamos falar disso”. (MUYLAERT apud SARMET e TEDESCO, 2018,
p.140).

Muylaert passou a apresentar um programa de TV destinado a destacar filmes


dirigidos por mulheres. O episódio vivido por ela também inspirou a criação de grupos
virtuais para o engajamento de ações. Como o criado em Pernambuco, por um conjunto
de realizadoras, críticas e estudiosas do cinema, o Mulheres no audiovisual PE, hoje uma
comunidade. Também inspirou Malu Andrade a criar o Coletivo Mulheres no
Audiovisual Brasileiro, que se organiza a partir de um grupo numa rede social, mas realiza
ações externas e em maio de 2019 já soma mais de 19 mil membros, todas mulheres.
A retomada no debate em torno de um cinema feito por mulheres perpassa
inúmeras iniciativas, que derivam da visibilidade proporcionada pelos aglutinamentos
digitais: uma agenda política, uma agência pelo visível e o testemunho da necessidade de
organização política para ocupação de espaços insalubres e enfrentamento das
desigualdades. Mas, também retoma uma tarefa crítica de pensar e criar um cinema
crítico, no qual estética e política não se dissociem, ainda que esbarrem nos espinhos
concretos de empecilhos técnicos e práticos, como a própria face excludente da indústria.
Inúmeros coletivos saíram das páginas pixelizadas para amotinar-se em espaços
públicos, em ações conjuntas na demanda por editais, na comutação de recursos, no
agendamento da crítica. Grupos como o Coletivo Vermelha e o Elviras passaram a
repensar o papel da roteirista e da crítica de cinema, partindo da releitura de textos
clássicos e do fortalecimento de uma crítica feminista contemporânea para essas
emergentes cinematografias, dentro e fora da academia.
Em Recife, o Coletivo Quebrando vidraças no audiovisual realizou ações que
pleiteavam repensar o recorte dos editais estaduais para o audiovisual e os modelos
excludentes de curadoria. Um desses efeitos foi o festival FINCAR – Festival
Internacional de Realizadoras, em 2016. Organizado por Maria Cardozo, tinha a proposta
inicial de fazer um festival com recorte de gênero e investigar o processo criativo das
mulheres (FINCAR, 2019). Em sua segunda edição, em 2018, recebeu mais de 300 filmes
e exibiu 70 destes, numa programação que contava com três cinemas de ruas da cidade,
oficinas e vivências sobre curadoria.
O cinema feito por mulheres, há bem pouco questionado de sua validade por um
desconcertante palavrão numa postagem de 2015, migrou para as salas de diversas
cidades do país. O Festival de Cinema de Mulheres de Vitória, no Espírito Santo, foi
realizado todos os anos desde 2016 até 2018.
Em 2018, São Paulo realizou o FIM, Festival Internacional de Mulheres no
Cinema, que assevera que a sigla “não surge por acaso. O Festival quer o fim da sub-
representatividade feminina no cinema, estimulando o começo de um novo ciclo com
maior espaço para as mulheres de todas as etnias e de diferentes regiões do Brasil e do
mundo” (FIM, 2019).
Pequenos festivais de recorte feminista também passaram a fazer parte da agenda
de cidades menores, tais como Cachoeira, na Bahia, com o Mar de Realizadoras (sendo
MAR- Mulheres, Ativismo, Realização), organizado pelo Mulher de Bigode Filmes e
Coletivo Gaiola, que também oferece oficinas de audiovisual, inclusive com vagas e
hospedagem custeadas para uma cota de mulheres de outras cidades (MAR DE
REALIZADORAS, 2019).
Embora não seja este o primeiro ciclo de mulheres cineastas no país a ingressar
numa política da arte que envereda pela agenda feminista, as possibilidades de articulação
transformaram o território. E, também, o campo interno do próprio feminismo. Questões
de classe, raça e etnia, a pauta da sexualidade e das identidades trans e os debates
contemporâneos sobre lugar de fala ocasionaram tensões internas que demandam tomadas
de posição.
A ideia de uma subalternidade refratada, aqui parafraseando Spivak (2010),
admitida em contextos como os do cinema da retomada, dá espaço a uma disputa pouco
cerimoniosa pelo visível. A interseccionalidade é chamada a estar presente, não mais do
outro lado das lentes. E as câmeras e salas são falas reivindicadas.
Por isso, nesta pesquisa, buscamos observar os trânsitos estético-políticos de dois
festivais: o Mar de Realizadoras e o FINCAR. A escolha deve-se ao fato de estes serem
festivais que, além de partirem de uma quebra com a confortadora narrativa de
universalização que permeava o audiovisual brasileiro antes da insurgência dos coletivos
digitais, ações e festivais, empenharam-se numa tarefa que não só proporcionasse um
espaço físico para as trocas, mas buscasse mobilizar, estimular e impulsionar processos
criativos. Estando também mais próximos a regiões periféricas que não alcançam os
circuitos de metrópoles tais como São Paulo.
Por meio de uma pesquisa que considere os processos que constituíram estes
lugares, desejamos compreender quem, como e sob quais condições tais articulações
possibilitaram o desenvolvimento de repertórios estéticos e de agenciamento criativo.
Além de compreender quais as redes de criação e filmes são resultantes dessas condições
de dissenso.

OBJETIVOS

OBJETIVO GERAL:
Investigar a trajetória estético-política de articulação e formação dos festivais FINCAR e
Mar de Realizadoras.

OBJETIVOS ESPECÍFICOS:
Revisar a bibliografia em torno da economia política e estética do cinema
nacional, com ênfase nos recortes de raça e gênero;
Realizar observação participante e elaborar um instrumento de coleta de
entrevistas que possibilite a identificação de um perfil social, com ênfase nos aspectos de
raça e gênero, mas também o pertencimento político e trajetória das organizadoras;
Analisar as principais temáticas dos filmes vinculados a estes festivais e seus
coletivos nos últimos anos.

JUSTIFICATIVA E REVISÃO DE LITERATURA


Observamos que são recentes os esforços em se delimitar o lugar das mulheres
enquanto produtoras de conteúdo criativo no cinema nacional. Basta dizer que o primeiro
livro inteiramente dedicado a abordar uma cinematografia brasileira feita por mulheres,
Feminino Plural: mulheres no cinema brasileiro (HOLANDA; TEDESCO, 2017) foi
editado em 2017.
Além das reivindicações pautadas por uma revisão da consciência crítica do lugar
paradigmáticos das realizadoras na sociedade, tal preocupação, podemos supor, surge
também em decorrência da multiplicação dos cursos de cinema e audiovisual no país, pós
anos 2000, e da necessidade impositiva de que estes reflitam criticamente sobre as
omissões do cânone e as invisibilidades históricas e políticas no que diz respeito às
questões de raça e gênero, em investigações e na adoção de títulos e filmografia em que
pesem também estas categorias.
Ao mencionar a trajetória feminina das cineastas brasileiras, Holanda (2016)
destaca que há lacunas não apenas na menção aos títulos, mas, ao se considerar o impacto
político das obras conduzidas por mulheres, e que estas tencionam um debate
contemporâneo do qual os estudos de gênero não podem se furtar, pois nomes como
Helena Solberg, diretora do documentário A entrevista (1962), Vera Figueiredo, diretora
de Feminino Plural (1976) e Tereza Trautman, realizadora do polêmico Os homens que
eu tive (1972) foram não apenas censuradas e embargadas, assim como muitos de seus
pares homens, mas tiveram suas carreiras prejudicadas e sua obra borrada das mostras,
antologias e memória do cinema nacional.
Veiga (2013) que dedicou uma tese ao filme de Trautman, examinou detidamente
os documentos expedidos pela censura que o vetaram, a maioria destes condenava o fato
de que a obra esboçava a liberdade sexual de uma mulher casada. Segundo a autora,
naquele mesmo ano, Arnaldo Jabor teve uma obra também impedida de ser exibida: Toda
nudez será castigada (1972). A diferença entre ambos é que o filme de Jabor foi
comercialmente veiculado no ano posterior, com larga visibilidade nacional. Enquanto
Trautman produziu pouquíssimas obras e seu filme apenas tornou a circular em mostras
dedicadas ao recorte de gênero, já nos anos 2010.
Holanda (2016) destaca que nos anos 1960 e 1970 despontaram no país, grupos e
coletivos cinematográficos que buscavam colocar em pauta as grandes questões da
dinâmica social de seu tempo. No caso das mulheres, estas tocavam também à agenda
feminista pós revolução cultural, com realizadoras engajadas e impactadas por obras
como O Segundo Sexo (1949) e A mística feminina (1964). À exemplo do cinema novo,
da pornochanchada e de ações como o cinema da Boca do Lixo, realizadoras como Helena
Solberg, Ana Carolina, Sandra Werneck, Suzana Amaral, Regina Jehá, Kátia Mesel,
Eliane Bandeira, Inês Cabral, Iole de Freitas, Eunice Gutman, Lygia Pape buscaram
abordar temáticas que envolviam a hierarquia social às quais estavam submetidas também
enquanto mulheres e cidadãs, no entanto, grande parte de seus filmes estão fora de
catálogo e sequer são mencionados em antologias, como se nunca houvessem existido.
Também é curioso perceber as estratégias de divulgação adotadas por algumas
realizadoras em um contexto de franca objetificação. Veiga (2013) diz que Trautman teve
o seu filme avaliado como “pornográfico”, por alguns críticos detratores, o que o levou a
ser procurado por um público que possivelmente iria burlar, do ponto de vista da
espectatorialidade, o debate agendado. Adélia Sampaio (OLIVEIRA, 2016), por sua vez,
primeira mulher negra a realizar e exibir um longa-metragem no país, cuja enfoque
narrativo era um romance lésbico, teve sua obra distribuída sob a insígnia do pornô, a
qual não se opôs para permitir que o filme chegasse, de fato, a uma sala de cinema.
A disparidade numérica nos registros de obras produzidas por homens e por
mulheres pode ser observada, por exemplo, no catálogo Documentário Brasileiro (2016).
Neste, constam que nos anos 1960 oito documentários foram dirigidos por mulheres, já
os homens contariam 225 obras assinadas em seus respectivos nomes. Tal desigualdade
é evidência também sublinhada por Osthoff (2010):
Entre 1930 e 1988, 195 diretoras de cinema produziram 479 filmes, em
sua maioria curtas-metragens e documentários. Em 1982, Elice
Munerato e Maria Helena Darcy de Oliveira analisaram, no livro As
musas da matinê, os longas-metragens de ficção feitos por mulheres
existentes no Brasil até 1979: havia somente vinte filmes! Dentre
aqueles filmes, elas conseguiram projetar somente dezesseis. Quatro
não sobreviveram ao tempo. Suas conclusões, de certo modo
alarmantes, diziam que, embora fosse possível falar de um crescente
número de mulheres diretoras de cinema nos anos 1970, os filmes mais
recentes continuavam a reforçar antigos estereótipos (OSTHOFF, 2010,
p.80)
Apagamentos e discrepâncias à parte, Osthoff (2010) problematiza um pouco a
ausência de uma autoconsciência feminista declarada entre essa onda de realizadoras. A
autora destaca que muitas mulheres que ingressaram no mercado cinematográfico nos
anos 1960 e 1970, mesma geração anteriormente citada por Holanda (2016), tendiam a
colocar o enfrentamento ao regime político que então governava o país como uma
prioridade em seus trabalhos, inviabilizando, por vezes, que, embora fizessem filmes
políticos e (conscientes disso ou não) feministas, assumissem questões como gênero, raça
e classe como elementos estruturantes que tocavam a sua produção, e, portanto, poderiam
também reuni-las em torno de uma postura crítica comum. Para Osthoff, as questões de
classe e raça talvez fossem preponderantes, já que não tocavam à experiência de grande
parte delas.
Sarmet e Tedesco (2018) assinalam que a tônica que mobiliza a geração mais
recente de realizadoras é a da diversidade, pois a responsabilidade pela presença e modo
como esta tem sido enquadrada é algo que se tornou muito mais evidente com os
enfrentamentos que partem das realizadoras negras. Casos como o comunicado enviado
pela diretora Yasmin Thayná, clamando à 7º Semana de realizadores maior presença da
negritude nas telas, quando foi convidada a palestrar no mesmo evento que recusou o seu
filme para a mostra, e o resultado dos debates sobre o curta Peripatético no 50º Festival
de Brasília, mostraram que a insatisfação com a invisibilidade e o estereótipo não seria
mais naturalizados como parte de uma cultura do audiovisual brasileiro.
Na pesquisa A cara do cinema nacional: o perfil de cor e gênero dos atores,
diretores e roteiristas dos filmes de maior bilheteria nacional (2002 e 2012) (CANDIDO
et al, 2018), foi observado que os filmes nacionais são predominantemente assinados por
uma população branca e do sexo masculino.
Em 2016, a ANCINE divulgou relatório em que atualizava estes dados. Nestes,
constam que 85% dos filmes realizados entre os anos de 1970 e 2016 foi dirigido por
homens brancos. Às mulheres brancas cabem apenas 2% dos créditos em direção. Os
demais 13% são atribuídos a homens cuja identidade racial não foi identificada. Mulheres
negras não surgem creditadas como diretoras. No que diz respeito a outros cargos de
criação, como o de roteiristas, 74% dos cargos analisados são ocupados por homens,
mulheres estão em 26%. Isto implica dizer que o modo como o Brasil é representado nas
cinematografias das cinco últimas décadas é reconhecida e majoritariamente masculino.
No que diz respeito à crítica, a autoria feminina é aqui objeto de re-visão e
contestação. Mas não nos mesmos moldes quando do esmaecimento do conceito do autor
– que nunca, de fato, ofuscou uma crítica organicamente estruturada no nome do diretor
e num culto a diretores (homens, pais, patriarcas).
Smelik (1998) destaca que o paradoxo da autoria passa por dois momentos
cruciais nos estudos fílmicos feministas: o primeiro trata do desligamento com o projeto
de autoria centrado no gênio artístico do diretor e o segundo à rejeição ao termo autor
como parte do projeto pós-estruturalista. E no contexto fílmico isso irá coincidir
justamente com a emergência das propostas – largamente repercutidas no interior do
feminismo – de descentramento do sujeito e o despontar de um cinema dirigido por
mulheres, com intensas pretensões de transgressão e visibilidade, como ocorre nos anos
1970.
Mayne (1990) reforça a tese de que a questão da autoria representa um entrave
para os estudos fílmicos feministas. Para ela, este é um nó crítico, pois esbarra num dos
maiores melindres para a área: o essencialismo, uma questão que aterroriza e mina a
credibilidade da crítica, sempre apta a detectar qualquer análise que naturalize a dimensão
de gênero num grau de vigilância que se assemelha a uma censura.
Atualmente, as questões de interseccionalidade e lugar de fala (RIBEIRO, 2017)
nos ajudam a pensar as disfonias no interior do feminismo. Para além de uma crítica que,
em nome do patriarcalismo epistemológico, se esquiva da diferença – muito mais uma
evidência de ausência de força política acadêmica que um recuo ao essencialismo –
precisamos enfrentar os contrastes internos e as validações seletivas no contexto da
própria academia. Para tanto, cabe Re-visar as dicotomias que dissociam um corpo
feminino (e racial, e com classe, como elementos que estruturam o seu lugar no mundo)
do pensar.

METODOLOGIA
Este trabalho parte de uma atitude cartográfica, tomando o sentido de “cartografias
do sentimento” dado por Rolnik (1989). Na cartografia, geografia e história se
aproximam, movidas pela frequência crítica da problemática de pesquisa. O cartógrafo-
pesquisador pensa a subjetividade política em seus distintos lugares – históricos,
humanos, territoriais – e também vê a si mesmo como um corpo afetado e que afeta a
pesquisa.
Para realizar uma pesquisa que reconheça os coletivos políticos que constroem o
campo dos festivais, suas dimensões estético-políticas e os traços de subjetividade que os
aglutinam, é preciso estar com eles. Reconhecer o espaço, as trajetórias e rotinas. Grande
parte desta pesquisa será dedicada à observação participante em debates. Mas também
contará com a realização de entrevistas, análise de documentos e revisão bibliográfica da
literatura da área.
No que diz respeito aos filmes, eles, como dito acima, não surgem como um dado,
ou um apêndice sumarizado. Mas, como uma matéria onde a política também se articula.
Realizaremos um mapeamento dos filmes e análise daqueles mais recorrentes nas etapas
cartográficas anteriores da pesquisa. Relacionando os acontecimentos às imagens e
também os acontecimentos nas imagens, já que entendemos que estas, como afirma
Georges Didi-Huberman (2017), não existem de forma isolada.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

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política e universidade. São Paulo: Companhia das Letras, 2018.
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JÚNIOR, João. A cara do cinema nacional: gênero e cor dos atores, diretores e roteiristas dos
filmes brasileiros (2002-2012). Infográfico. Disponível em http://gemaa.iesp.uerj.br/publicacoes/
infografico/infografico1.html. Acesso: Mar, 2018.
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