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Os reflexos da Alquimia Hermética de Paracelso no novo

modelo de Ciência de Francis Bacon: Tendo a noção de


‘espirito’ como exemplo.

Nicolas Schneider Blanco

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Resumo:
O objetivo desse trabalho é fazer uma comparação entre a ciência hermética
de Paracelso, contrastada a proposta do novo modelo de ciência proposto por
Francis Bacon em seu Novum Organum. Tendo como referência o projeto de
edificação de uma ciência de Francis Bacon e uma necessidade de
explicação dos efeitos através da experimentação química, e buscando
encontrar em ambas as ciências pontos comuns no entendimento da
natureza, tendo como culminação o princípio motor das formas nomeado
espirito em ambos sistemas.

Palavras-chave: Quimica. Interpretação da Natureza. Forma. Espirito.

1-Introdução a Ciência Hermética de Paracelso


Para iniciar o debate sobre os possíveis reflexos de uma filosofia hermética
no experimentalismo baconiano, se faz necessário que primeiramente seja
caracterizado o que está sendo tratado como alquimia na presente discussão.
Philippus Aureolus Theophrastus Bombastus von Hohenheim foi um médico,
alquimista, astrólogo e físico, conhecido como expoente da revolução do
tratamento médico usando dos conhecimentos ditos alquímicos e mágicos
para efetuar a cura de seus pacientes, vale notar que o método utilizado até
então era o Galeno, que apesar das expressivas contribuições, como a
identificação do sistema vascular, estava limitado ao postulado de que a cura
se dá apenas pelos contrários. Aqui mesmo já se encontra a primeira quebra
do paradigma cientifico estabelecido e contribuição cabal de Paracelso para a
medicina: a cura pelos semelhantes, sendo esses a forma do órgão e a
essência do remédio que carregava as qualidades curativas necessárias para
o equilíbrio do órgão individualmente. Essa primeira identificação de uma
especificidade no funcionamento individual de cada órgão dava a liberdade
para estudar cada funcionamento em seu devido parâmetro e por outro lado
postulava um tratamento das partes para o equilíbrio do todo,
substancialmente diferente do método vigente, Paracelso traz uma nova
necessidade do conhecimento de causas, para isso ele introduz um sistema
filosófico pratico e de natureza experimental.
Baseando-se nos axiomas astrológicos da influência dos astros, e nas
características químicas essenciais dos reinos mineral, vegetal e animal,
Paracelso demonstrava ser capaz de fabricar através de operações
alquímicas, como a destilação, a separação e a fixação, os remédios que
continham analogamente as qualidades essenciais necessárias para a cura
dos órgãos, que se encontra em desequilíbrio, a chave para isso é que na
doutrina astrológica e na magia natural, o microcosmo (o Homem) está
diretamente relacionado ao macrocosmo (Universo) e através das leis
naturais e do conhecimento íntimo das formas e dos elementos filosóficos
introduzirem a cura e restaurar o equilíbrio na saúde do paciente:

Uma vez demonstradas as possíveis aplicações médicas das quintessências e destilados, a


Alquimia “médica’, mais tarde chamada de Iatroquimica, ganhou muito destaque. Sua figura
mais importante foi Paracelso, que defendia a alquímica como um conjunto de técnicas e
procedimentos que alteram uma substancia, tornando a apta a servir a um novo propósito.
(WAGNER 2019, pg.24)

O objetivo do presente trabalho é localizar no modelo de ciência de Francis


Bacon possíveis heranças e reflexos da filosofia hermética de Paracelso, para
isso se faz necessária uma explanação mais detalhada de como interagem os
principais conceitos dentro da prática da medicina alquímica, para assim,
identificar na medida do possível às marcas dentro da doutrina experimental
de Bacon e nos conceitos que apresentam suma importância em ambas as
filosofias, como por exemplo, forma, matéria, e finalmente o espirito, cuja
corrente apresentação se focara em atribuir o papel de princípio de causa de
movimento dentro da forma e dos arranjos.
A filosofia hermética de Paracelso como já se pode inferir lidava com uma
metafisica de notável inspiração Platônica, onde as formas são engendradas
na matéria pela virtude dos astros e sua influência pura até a esfera sublunar,
onde estão localizados os quatro elementos filosóficos, sendo esses
diferentes dos elementos clássicos de Aristóteles, dotados apenas de uma
qualidade, sendo o fogo apenas quente e não quente e seco, esses
elementos apresentam qualidades metafisica que estão para além dos
elementos materiais corriqueiros, mas que partilham com esses uma
semelhança em sua atuação, e que se combinam em diferentes
configurações para moldar as estruturas físicas manifestas nesse plano
sublunar do macrocosmo, Paracelso apresenta também três princípios que
atuam como forças principais na cadeia de causalidade de sua teoria, o
enxofre, o mercúrio, e o sal, nas palavras de Paracelso:

Entre todas as substancias do mundo existem três cujos corpos sempre vemos reunidos em
cada um dos seres. Estas três substancias – enxofre, mercúrio e sal – ao se unirem
(componuntur), compõe os corpos, aos quais nada poderá ser acrescentado, exceto o sopro
de vida e o que com ele se relacione. (PARACELSO 1983, pg.165)

Esses princípios então fazem parte da chave para a transmutação alquímica


e também estão em um primeiro plano em relação a cura do corpo, pois
estando presente os três no corpo garantem o equilíbrio da saúde, esses são
os três modos que a natureza das qualidades nos elementos são orientados,
a adotarem uma certa configuração em sua forma, não tendo uma relação
maior com o enxofre, mercúrio e sal quem conhecemos corriqueiramente, do
que seu comportamento metafisico e as maneiras que modulam as
substancias materiais:

De fato, cada um dos três princípios explicaria como vimos às propriedades presentes nos
corpos. O enxofre traria estrutura e combustibilidade aos corpos, o mercúrio daria elasticidade
e fluidez, e o sal, por fim, seria o responsável pela cor, solidez e pela imutabilidade da matéria.
Pela relação constituinte entre o macro/ microcosmos, o pensador suíço defendia que a tríade
estava presente tanto no universo, como no corpo humano. (ZATERKA 2012, pg.14)

No capítulo VIII do tratado A Chave da Alquimia é postulado uma teoria sobre


a circulação do espírito na matéria, sendo esse o modo o movimento dos
espíritos corporais sobre a forma dos astros que são projetadas no corpo,
onde cada órgão ou parte está expressamente delimitado pela sua função e
limitado a um raio de interação especifico no corpo. Cada planeta rege pelas
suas próprias qualidades essenciais os movimentos inferiores na matéria e
suas respectivas formas substanciais, Paracelso atribui a cada órgão uma
forma provinda de certo planeta, que a partir de suas qualidades podem ser
tratados com certos elementos extraídos dos reinos naturais que são
complementares para a saúde do órgão em questão:

É preciso que conheçam isto: o movimento dos espíritos dos astros corporais vai desde a
origem ou princípio dos membros até a extremidade de tais membros, voltando logo a sua
origem, como um reflexo de onde ela partiu. Eis aqui um exemplo: o coração envia o seu
espírito (diffundit) para todo o corpo, exatamente como faz o Sol sobre a Terra e os outros
astros. Tal espírito (do coração) serve para o sustento do corpo, mas não para o dos outros
sete membros. (PARACELSO CDA 1983, pq. 110)

Esse princípio ou origem de onde parte o espírito parece indicar uma


natureza invisível e diminuta do mesmo, justamente por estar além da matéria
física, o método para se identificar os seus movimentos e tratar das formas
seria a partir dos sintomas encontrados em dado corpo, rastreando seus
processos de forma a identificar qualquer mazela que o espírito possa haver
sofrido, o espirito atuaria então como um poder formativo que a partir das
formas astrais dos planetas engendrasse na matéria a vida e o movimento.
Esse agente formativo parece ocupar um lugar de destaque no sistema
alquímico de Paracelso. Podendo ser separado em um âmbito mais formal é
denominado Archeus, e uma noção mais material caracterizado pelos
espíritos e princípios, mais ligados a química e suas operações, esse parece
também ser o lócus culminante do princípio organizador por trás de toda a
teoria física e sua contraparte metafísica, em última análise funcionando
como elo entre as formas metafísicas e os princípios físicos dos elementos e
seus modos, dando ao corpo a sua forma toda e apetites que correspondem
as essências das formas substanciais. Tornando-se o espírito o principal
agente torna capaz uma inteligibilidade dentro dos processos alquímicos
guiados pelos axiomas alquímicos e que explicam a capacidade de
transformação dos movimentos das formas engendrados na matéria.

2-Apresentação do Novo Modelo de Ciência de Francis Bacon

O projeto de uma nova ciência era o objetivo predominante entre os filósofos


da modernidade, norteados pela febre de um possível progresso cientifico,
principalmente a filosofia mecanicista de Francis Bacon, que dirigia suas
concepções filosóficas atentando a um sistema de explicação do mundo
ancorado nas descobertas no âmbito da física, matemática e química.

Sendo esse o seu objetivo ultimo no tratado que funcionaria como um manual
para as novas ciências, o Novum Organum, que situa o homem no exercício
da função de interprete da natureza por meio da química como forma de
analisar e manipular os processos internos. A metodologia ali proposta se dá
por meio de certas etapas: primeiro ocorre uma catalogação dos fenômenos
naturais em suas diferentes ocorrências particulares, apresentadas como
tabulações, em âmbitos diferentes como por exemplo no calor, são
analisadas as numerosas ocorrências onde se observa a ocorrência de tal
fenômeno, como os vulcões, o sol, etc. Em seguida são separadas em suas
características extrínsecas de modo a isolar o fenômeno, ou seja, os seus
efeitos, o calor ocorrendo com ausência de luz, como acontece com a agua
fervendo, ou apresentando positivamente essas qualidades nas chamas. Isso
apenas para exemplificar o compendio colossal que será necessário para o
início desse novo modelo de ciência.

Após essa etapa, onde os fenômenos em seus processos naturais de


ocorrência passarão a serem isolados de modo a induzi-los a revelarem seus
modos em ambiente controlado, acreditando que as sensações não são
capazes de extrair do fenômeno todos dados necessários para compreensão
das causas de seus processos, Bacon propõe a sua filosofia experimental
calcada na Química justamente por sua natureza a priori e operativa, onde a
construção dos postulados teóricos andam ao lado da execução do
experimento propriamente dito. Ao escravizar a natureza como é dito no
Novum Organum, ele pretende que estando o fenômeno delimitado e o
cientista minudo de ferramentas auxiliares de modo a captar todas possíveis
evidencias de alteração prevista ou imprevista ali, para assim extrair alguma
noção mais abrangente que explique a natureza dos efeitos ali presentes no
fenômeno, como Bacon aqui parece referir:

Só há e só pode haver duas vias para investigação e para a descoberta da verdade. Umas que
consiste no saltar-se das sensações e das coisas particulares aos axiomas mais gerais e, a
seguir, descobrirem-se os axiomas intermediários a partir desses princípios e de sua
inamovível verdade. Esta é a que hora se segue. A outra, que recolhe os axiomas dos dados
dos sentidos e particulares, ascendendo continua e gradualmente até alcançar, em último
lugar, os princípios de máxima generalidade. Este é o verdadeiro caminho, porem ainda não
instaurado. (Bacon NO, XIX pg.16)

É preciso ter em mente que o objetivo dessa dissecação das evidencias que
nos são apresentado em um primeiro momento apenas a sensações e em
seguida delimitado pelo ambiente do experimento, é de revelar os processos
internos que se encontram ocultos de outro modo as impressões dos sentidos
normalmente, assim com o auxílio dos instrumentos e da indução, a razão
tem as condições para inferir axiomas ou leis mais gerais no funcionamento
desses processos e nas relações dos fenômenos entre si, a partir daí se pode
extrair dos processos os seus esquematismos, suas particularidades e as
instancias que desempenham na constituição de fenômenos compostos, a
interação de suas naturezas dadas a certas condições e influencias, de modo
a entender esses processos e manipular corretamente os mesmos, essas
operações podem ser separadas em experimentos lucíferos e frutíferos, e
diferenciadas pelo caráter de seus resultados: os lucíferos lançando
entendimento aos padrões de interação que ocorrem nos fenômenos
formando novos axiomas que possibilitam novas aplicações dentro do avanço
dos experimentos, e os frutíferos são os que na sua própria descoberta se
encerra contribuições no âmbito prático e pontual para a melhora da
qualidade de vida de modo expressamente concreto.

3-O Espirito

Para abordar o objetivo central desta presente argumentação, introduzimos


então a partir do que foi visto o conceito de forma e arranjo, como já foi visto
a partir de uma contemplação ativa se forma a história natural, e a partir da
análise do conteúdo organizado e secionado, se identificam os processos
latentes, o que não ficou exatamente explicitado é do que estes são
processos, ora não poderiam ser senão os processos das formas. O conceito
de forma para Bacon deve ser interpretado diferentemente da noção de
causa formal presente em Aristóteles, em Bacon a causa material e a causa
formal culminam em uma mesma noção de forma latente, onde as
configurações adotadas pelo movimento dos arranjos ou partículas de
naturezas simples, estão vinculadas diretamente aos fenômenos materiais
observáveis, ou seja, a organização da forma e o comportamento da matéria
são uma e a mesma coisa. No postulado LI do Novum Organum Bacon deixa
claro que está tratando por forma ‘’as próprias leis do ato’’. (Bacon NO, LI
pg.26). Justamente por isso o conhecimento das formas ocupa o cerne do
modelo de ciência proposto por Bacon, a partir desse entendimento das
configurações que a matéria é capaz de adotar se multiplicam as
possibilidades de novas descobertas e contribuições para a totalidade do
progresso:

Mas o que conhece as formas abarca a unidade da natureza nas suas mais decimeis matérias
e, em vista disso, pode descobrir e provocar o que até agora não se produziu, nem pelas
vicissitudes naturais, nem pela atividade experimental, nem pelo próprio acaso e nem sequer
chegou a ser cogitado pela mente humana. Assim é que da descoberta das formas resultam a
verdade na investigação e a liberdade na operação. (Bacon NO Livro II, III pg.111)

Finalmente aproximando nos ao proposito dessa apresentação, chegamos


na extrapolação da teoria mecanicista de Bacon. Fica a dúvida ou pelo menos
uma notável lacuna de onde se originam os processos das formas, ou ainda,
o que dá a coesão em relação ao movimento das formas preservando a
totalidade de sua funcionalidade, ora esse é não outro que o espirito:
Por exemplo, tome-se para investigação a natureza da ação e do movimento do espírito
encerrado nos corpos tangíveis. Pois não há corpo tangível sobre a terra que não cubra um
espírito invisível, como uma veste. Aí tem origem a tríplice fonte tão admirável e poderosa do
processo do espírito em um corpo tangível: se o espírito se desprende, o corpo se contrai e
seca; se permanece dentro dos corpos, abranda-os e os torna fluidos; se não se desprende
nem nele permanece por completo, empresta forma, cria membros, assimila, digere, etc.
tornando-se um organismo. Todas essas coisas se manifestam aos sentidos por seus efeitos
aparentes. (Bacon NO Livro II, XL. Pg.221)
4-Conclusão

A partir do que foi mostrado na corrente comparação podemos chegar a


certas conclusões a respeito da relação do espirito com o sistema de Bacon:
Em primeiro lugar parece evidente que em uma teoria mecanicista pautada
na causalidade se faz necessária uma explicação geral para todo o
movimento presente nos processos das formas, sendo esse o espirito, noção
empregada em Paracelso para a mesma função, porem de ordens diferentes.
Em Bacon o espirito é a substancia invisível e material que vitaliza as formas
em sua totalidade, esse emprego parece oferecer uma pista para um objetivo
mais crucial: a necessidade de um sistema estruturado de ciência que
oferece uma explicação entre causa e efeito sem apelar a generalização dos
particulares em categorias metafisicas, ou no caso de Bacon, axiomas
intermediários e seus efeitos, tendo assim como fim ultimo o fundamento de
teorias mais abrangentes mas que ao mesmo tempo seja capaz de desvelar a
natureza dos fenômenos e transformá-los em axiomas mais gerais.

Bibliografia.

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