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A “lição teórica” das discussões sobre a natureza e as ações da boa vontade é extraída
por Kant na forma de 3 proposições que articulam de maneira técnica o que ele quis nos
mostrar até então na 1ª Seção. Essa lição exige alta dose de interpretação, pois está em jogo a
compreensão mesma da Filosofia Moral que encontramos na obra. Um ponto diz respeito à
relação entre as proposições, pois Kant afirma que a 3ª é “consequência” das duas primeiras.
Isso fez com que muitos pensassem se tratar de um silogismo no qual as 3 proposições são
duas premissas e a conclusão. Mas, é possível considerarmos o encadeamento delas como um
entimema em que premissas cruciais estão subentendidas e assim a “consequência” não
depende unicamente dos termos utilizados nas verba das proposições. Mas, com a 3ª temos,
de qualquer maneira, que o objetivo principal é determinar a natureza do dever, assim a
mensagem das 3 em conjunto diria respeito a essa matéria: o que é o dever moral. Como a
“lição” é extraída principalmente das discussões dos 3 exemplos, será necessário voltar a eles,
mas agora deveríamos poder ver mais claramente com ajuda de termos técnicos do que de fato
se tratou anteriormente.
A) Comecemos pelo que Kant afirma que “ficou claro a partir do que foi dito acima”,
presumivelmente na discussão dos 3 exemplos, e que parece ser o que deveria constar na 1ª
proposição, que não é explicitamente articulada, nem mencionada. O texto relevante é: “que
os intuitos que possamos ter por ocasião de <nossas> ações, e os seus efeitos, enquanto fins e
molas propulsoras da vontade, não [podem] conferir às ações qualquer valor incondicionado e
moral (...)” (p.125). Como compreendê-lo?
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(Triebfedern), ou seja, aquilo que põe em atividade a faculdade de desejar (“faculdade
apetitiva”, Begehrungsvermögens), o que nos move à ação.
Então, nas ações em geral temos intenções em função das quais fazemos algo (numa
ação física: um movimento corporal) buscando alcançar um objetivo que desejamos porque
ele impactará (assim esperamos) nossa faculdade de desejar (vontade) de uma determinada
maneira: nos satisfará. Mais adiante no texto (p.129), Kant fala do “efeito” que “se aguarda”
de uma ação e de “um princípio da ação que [precisa] tomar seu motivo do efeito que é
aguardado” e considera esse efeito “o estado aprazível em que nos encontramos”.
Três pessoas podem fazer o mesmo (do ponto de vista da ação física [chamada, às
vezes, de ato] com o mesmo objetivo sem estarem realizando propriamente a mesma ação.
Todas elas levam um velho que precisa de ajuda pro outro lado da rua e o deixam lá em
segurança. Mas, a 1ª o levou porque queria ver o velho em segurança no outro lado da rua,
isso a movia, tinha apego a esse “resultado”, essa situação a agradava, deixava contente (a
angústia do velho com sua dificuldade para atravessar a rua a afetava negativamente). A 2ª,
assim como com escoteiros numa imagem muito comum deles, tinha um fetiche por ações
meritórias: e essa era a oportunidade de realizar uma ação desse tipo, e ela fez a ação por isso.
A 3ª atravessou o velho porque era o que precisava ser feito, o velho precisava de ajuda. Essa
última é a única pessoa que faz o que a moralidade “do caso” envolve (nos apresenta), não
importando o que o agente esteja efetivamente sentindo ou querendo também conseguir com a
ação. Por isso Kant “desautoriza”, quanto a esse ponto (NB), o “pendor da sensação” ou uma
“solidariedade sentimental”.
Qual poderia, então, ser a 1ª proposição? Ora, algo que encapsulasse a mensagem das
considerações acima, que parece ser principalmente negativa: sobre onde o valor moral não
está.
A sua primeira parte articula a mensagem negativa que parece ser o que deveria estar
explicitado na 1ª, que não temos: o valor moral da ação por dever não está na intenção
(“intuito”) com que realizamos a ação, que é alcançar os objetivos (“fins”) da mesma (seu
“efeito”). A sua 2ª parte procura, então, explicar em termos técnicos o que é indicado na
discussão dos 3 exemplos:
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O valor moral de uma ação depende da máxima segundo a qual é decidida [a razão
para a ação escolhida], logo, não depende da realidade efetiva do objeto da ação [de
alcançarmos o objetivo da ação, que todas têm], mas meramente [exclusivamente, não
“simplesmente”] do princípio do querer segundo o qual a ação ocorreu [NB:
normalmente se faz alguma coisa com um objetivo], abstração feita de todos os
objetos da faculdade apetitiva [de desejar].
Note-se bem 2 pontos: (1) “Máxima” é a base em função da qual nos decidimos por
uma ação, que, se for demais se exigir um “momento” de decisão para cada ação, talvez
devesse ser compreendida como a razão que temos para fazer o que fazemos, da qual
podemos estar conscientes concomitantemente (enquanto agimos) ou que podemos,
tipicamente, declinar ex post facto. Mas parece precisar ser o caso que elas caracterizam a
nossa espécie de agência: a racional. Kant deixa claro que se trata de uma situação em que
agimos (a “ação ocorreu”) em função de um “princípio do querer”, uma máxima, que parece
poder ser compreendida, inicialmente ao menos, como uma razão para fazer o que fazemos
(ou já fizemos).
(2) O que, no entanto, é decisivo para o valor moral de uma ação, sempre realizada
em função de uma máxima (em Kant), é que essa máxima tenha um perfil determinado: ela é
uma razão para a ação em “abstração” das razões típicas associadas a termos intenções que
procuramos realizar alcançando os objetivos de nossas ações (“fins que possam ser efetivados
por tal ação”), casos nos quais se pode dizer que a efetividade do “objeto” da ação é o que
desejamos.
O cerne da 2ª proposição, então, é: “valor moral da ação está em que ela tenha
ocorrido por dever”, mas isso agora significa exatamente: em função da determinação da
vontade (do querer da ação) pelo “princípio formal do querer em geral” (e não por um motivo
especial: o encantatório ultra-severo “motivo do dever”).
A relação entre esses 3 pontos pode ser assim apresentada. Na medida em que o que
Kant procura explicar é o conceito de dever, a atenção precisa recair sobre o que vai explicá-
lo, a saber, o que é verificar-se “a necessidade de uma ação”, e não o contrário: não é a
“necessidade” da ação, entendida costumeiramente como a sua ocorrência com a
característica de que é exigida (sendo o alvo de uma obrigação, tendo obrigatoriedade, sendo
exigida normativamente), que será explicada pelo dever como uma espécie de motivação em
especial.
Poderia parecer que deveríamos dar um passo além na busca pelo explanans, pois
aquela necessidade parece ser remetida – o que a explicaria – ao respeito, ou seja, pareceria
que a 3ª proposição, no seu texto, faz o central da explicação da natureza do dever depender
desse sentimento. Mas daí surpreende que a discussão da mensagem dessa proposição, na
continuação, – a conclusão quanto à apresentação da lição teórica – torna o sentimento de
respeito se não acessório (não decisivo), no máximo, complementar. Vejamos, e nisso a
distinção entre o “princípio subjetivo” e o “princípio objetivo” da vontade de seres racionais
será central.
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C i) A discussão de Kant começa pelo respeito e pelo objeto desse sentimento, mas o
ponto de chegada é a natureza da determinação da vontade na eventualidade da ação com
valor moral, ou seja, por dever. Podemos aqui construir sobre a base das 2 primeiras
proposições. Primeiramente, o que importa a Kant, então, é articular o ponto principal como
dizendo respeito à superioridade dessa determinação. O tipo de determinação que depende de
uma inclinação pelo “objeto” da ação, do desejo pelo “efeito” da ação, não pode ter valor
moral por ser “meramente um efeito” da mesma. Porque só pode ter valor o que pertence à
“atividade de uma vontade”, ao que “está vinculado à minha vontade como uma mera razão
<para agir>”, e isso porque essa espécie de determinação “não serve” [dient], não está
simplesmente a serviço, de uma inclinação ou até mesmo da concepção da satisfação da soma
delas todas (nossa felicidade). Então, o que é uma determinação devida à atividade da vontade
- presumivelmente, o que só pode existir se for assim engendrado (o que depende dessa
atividade como o que é precípuo da faculdade que ela é, o que não está aí simplesmente para
servir às nossas inclinações), o que tem a natureza sui generis de ser “uma mera razão” [bloss
als Grund: não “simplesmente”, mas razão bona fide] – prevalece (“prepondera”, sie
überwiegt: que tem mais peso, vale mais, é mais significativo) sobre nossas inclinações. E
isso não parece significar “elimina”, “suprime”, mas faz com que não tenham “voz” nem
“vez”, a importância costumeira, num contexto de determinação da vontade com valor moral.
Esse contexto é criado quando “uma mera razão <para agir>” “pelo menos exclui
inteiramente que ela [uma inclinação, presente portanto] tenha um peso decisivo quando da
escolha [“peso” na verdadeira ponderação de cunho moral, embora o termo sugira uma
comensurabilidade quanto à medida, mas isso é afastado com “exclui inteiramente” que
indica que se trata de uma distinção por princípio]”.
Assim se esclarece a natureza de [NB] uma ação por dever. Negativamente, nela
temos posto “à parte toda influência da inclinação e com ela todo objeto da vontade”. Note-se
bem: “toda influência”, é “tirar de combate”. Por quê? Como? Porque a “inclinação” e o
“objeto” da vontade só podem colaborar para constituir uma determinação da vontade que é a
de um desejo sensível pelo objeto, ou seja, eles precisam, para serem a base dessa
determinação, fazer parte do que é um desejo sensível pelo objeto que seja existente no
sujeito. E não ser a determinação precípua dessa faculdade em função de sua natureza. Qual
exatamente? Como se dá essa espécie de determinação como “mera razão” que depende
essencialmente da “atividade da vontade” (dela mesma em função da faculdade que é, e não
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ser um seu estado apetitivo sensível)? Kant, nessa primeira articulação, dá destaque ao
“respeito”, mas recorre a uma distinção técnica. Eis o que ele nos diz quanto à determinação
que importa:
(…) Nada resta para a vontade que possa determiná-la senão, objetivamente, a lei e,
subjetivamente, puro respeito por essa lei prática, por conseguinte a máxima de dar
cumprimento a uma tal lei mesmo com derrogação [Abbruch: abandono, demolição]
de todas as nossas inclinações.
Na primeira parte dessa passagem decisiva (mas difícil), Kant parece sugerir aquele
quadro que muitas vezes se atribui a ele. Determinar a vontade “objetivamente” através da lei
seria reconhecer que há uma lei que “se aplica” ao nosso caso e que devemos seguir. E, então,
seríamos capazes de segui-la quando e porque nos “move”, “subjetivamente”, o “puro
respeito” pela lei, um estado motivacional no sujeito. Ou seja, o “motivo do dever”,
equiparado ou identificado com esse estado, de natureza sentimental, é o que seria
responsável pela “determinação” da nossa vontade para a ação que de qualquer maneira é
ordenada pela lei “objetivamente”, como o que é exigido “normativamente”. Mas isso não
parece correto pelo que se segue.
A Nota em questão é aposta ao termo “máxima”, do qual ela diz que está por
“princípio subjetivo do querer”. Note-se bem: (1) Trata-se de um “princípio” de fato e de um
princípio do “querer”. A máxima não parece ser um sentimento, uma motivação como estado
sentimental do sujeito. (2) A distinção então introduzida na nota, entre princípios “subjetivos”
e “objetivos”, ou seja, “máximas” e “leis”, como princípios práticos do querer (ambos), não é
tão simples como pode parecer. Vejamos.
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via a “lei prática”. A primeira quando nós queremos algo (que simplesmente importa só a nós)
e a segunda quando nos submetemos no nosso agir à lei. Mas, a referência, note-se bem, ao
que “serviria” de princípio prático “para todos os seres racionais” (e é porque efetivamente
serviria que Kant diz: “subjetivamente”) numa condição especialíssima – “se a razão tivesse
pleno poder sobre a faculdade apetitiva [de escolher]” - a saber, a lei prática, isso cria um
contexto de determinação da vontade que não possível aos seres humanos. Nossa não é, por
princípio, uma faculdade sobre a qual a razão tem “pleno poder” (NB: Kant usa “tivesse”).
Nossa é de uma espécie distinta daquela em que – a razão operando com “pleno poder”
também subjetivamente [causalmente como tal, na faculdade apetitiva do ser racional] - se
verificaria, simplesmente, que a lei prática, ela mesma, realiza a determinação dessa
faculdade. Por isso, para essa espécie de vontade (perfeita, não a nossa vontade, que é sempre
imperfeita), e só para ela, a lei prática, ela mesma (o “princípio objetivo”), é também,
subjetivamente (na causalidade da determinação do querer), um princípio prático. Para nós,
no entanto, com a espécie de vontade que temos de fato, é inescapável que ajamos sempre em
função de “máximas”, “princípios subjetivos”, que, portanto, não podem ser simplesmente
“razões subjetivas” ordinárias que dizem respeito às nossas preferências. Pois não somos
suscetíveis (não é uma possibilidade para nós) de uma determinação quanto ao querer que
ocorreria em nós pela própria lei prática como “princípio prático”, embora essa lei também
para nós seja “o princípio objetivo”, porque ela é válida para “todos os seres racionais”.
C ii) O valor moral da ação não está no “objeto” da ação, no efeito almejado dela,
porque isso envolve o “entretenimento” desse “objeto” (ele precisa nos afetar) num estado
aprazível, nem está no tipo de “princípio da ação” que se assenta num motivo constituído
através desses estados: desejos sensíveis (“inclinações”). Ele depende do que, então, quanto à
determinação da vontade?
O máximo que Kant nos diz aqui, que é pouco, é o seguinte. A determinação da
vontade que tem valor moral tem que se dar exclusivamente em função da própria “vontade
de um ser racional” (antes tínhamos: da sua atividade, do que é, em relação a essa atividade,
“uma mera razão <para agir>”). É dessa determinação que dependemos para encontrarmos na
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vontade “o bem supremo e incondicionado”. Isso parece querer dizer que a “vontade de um
ser racional” que é exigida para aquele (NB) bem (o conceito precípuo de valor) é
precisamente o seu querer racional. Então, esse bem, do qual Kant diz que é “tão excelente” e
que “chamamos moral” (NB: é o que, em função da análise, Kant sustenta que se deve de fato
“chamar” de “bem moral”), é o bem constituído exclusivamente pelo querer (a atividade da
vontade por excelência) que a exige como tal e é próprio a ela como faculdade: o querer
racional. Ou seja, trata-se de um desejar da razão, por oposição a um mero “desejo
racionalizado” ou submetido a certos critérios de racionalidade.
Duas perguntas se impõem agora: (1) Por que esse querer “constitui” o bem moral?
Como ele o faz especificamente? (2) Qual é a natureza desse querer, caracterizada de modo
geral? É somente a última pergunta que Kant responderá aqui, porque é esta resposta que
permitirá a ele alcançar o objetivo principal da Seção.
Ora, como essa representação só pode se dar via a atividade (de representação) de um
ser racional (“só tem lugar no ser racional”), ela precisará ser a “representação da lei” (a
representação do “princípio objetivo” que é a lei prática para ele), e assim – por
representação desse princípio – será ela mesma (“em si mesma”: a representação) que
fornecerá “a razão determinante da vontade” quando essa determinação “constitui” o “bem
tão excelente que chamamos moral”, ou seja, quanto estamos ante uma ação com valor moral.
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