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Comentário à Atividade 6

A “lição teórica” das discussões sobre a natureza e as ações da boa vontade é extraída
por Kant na forma de 3 proposições que articulam de maneira técnica o que ele quis nos
mostrar até então na 1ª Seção. Essa lição exige alta dose de interpretação, pois está em jogo a
compreensão mesma da Filosofia Moral que encontramos na obra. Um ponto diz respeito à
relação entre as proposições, pois Kant afirma que a 3ª é “consequência” das duas primeiras.
Isso fez com que muitos pensassem se tratar de um silogismo no qual as 3 proposições são
duas premissas e a conclusão. Mas, é possível considerarmos o encadeamento delas como um
entimema em que premissas cruciais estão subentendidas e assim a “consequência” não
depende unicamente dos termos utilizados nas verba das proposições. Mas, com a 3ª temos,
de qualquer maneira, que o objetivo principal é determinar a natureza do dever, assim a
mensagem das 3 em conjunto diria respeito a essa matéria: o que é o dever moral. Como a
“lição” é extraída principalmente das discussões dos 3 exemplos, será necessário voltar a eles,
mas agora deveríamos poder ver mais claramente com ajuda de termos técnicos do que de fato
se tratou anteriormente.

A) Comecemos pelo que Kant afirma que “ficou claro a partir do que foi dito acima”,
presumivelmente na discussão dos 3 exemplos, e que parece ser o que deveria constar na 1ª
proposição, que não é explicitamente articulada, nem mencionada. O texto relevante é: “que
os intuitos que possamos ter por ocasião de <nossas> ações, e os seus efeitos, enquanto fins e
molas propulsoras da vontade, não [podem] conferir às ações qualquer valor incondicionado e
moral (...)” (p.125). Como compreendê-lo?

i) Ações são realizadas com ou envolvem intenções (“intuitos”, Absichten: propósitos),


que tipicamente se voltam para os objetivos das ações (“fins”, Zwecke: objetivos) num
empenho de alcançá-los ou realizá-los (são os “efeitos” das ações: normalmente agimos com
essa expectativa, e não nos surpreendemos com nosso êxito nas ações comuns [“Vou à
geladeira pegar a manteiga e… - Nossa, consigo”. Não!]). Esses objetivos (fins) são estados
ou objetos cuja efetividade (a ser produzida ou, no caso de objetos já existentes, que seja
propiciada sua presença para a “fruição” deles) procuramos produzir pela nossa ação
(causar), e por isso pode se dizer que os desejamos e que eles – representados na vontade
como o que será efetivado – são responsáveis por termos “molas propulsoras da vontade”

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(Triebfedern), ou seja, aquilo que põe em atividade a faculdade de desejar (“faculdade
apetitiva”, Begehrungsvermögens), o que nos move à ação.

Então, nas ações em geral temos intenções em função das quais fazemos algo (numa
ação física: um movimento corporal) buscando alcançar um objetivo que desejamos porque
ele impactará (assim esperamos) nossa faculdade de desejar (vontade) de uma determinada
maneira: nos satisfará. Mais adiante no texto (p.129), Kant fala do “efeito” que “se aguarda”
de uma ação e de “um princípio da ação que [precisa] tomar seu motivo do efeito que é
aguardado” e considera esse efeito “o estado aprazível em que nos encontramos”.

ii) Aquelas intenções, típicas, voltadas à efetivação de “objetos”, à consecução de


objetivos, não conferem às ações em que estão presentes valor moral. Por quê? O que a
discussão dos 3 exemplos nos disse sobre isso? No mínimo o seguinte.

Em todos os 3 exemplos, no primeiro momento, pessoas faziam o que faziam porque


tinham apego pelo objetivo de suas ações (ele lhes agradava). E então, num segundo
momento, elas deixaram de ter esse apego, e podiam, portanto, não ter feito o que era preciso
que fizessem se isso dependesse desse apego apenas; mas mesmo assim acabaram por
realizar as ações necessárias por uma consideração de outra ordem, que não é esclarecida aqui
para além de que realizaram as ações por dever. Note-se bem, Kant não nos diz que
cumpriram o seu dever por causa de um motivo especial no seguinte sentido: que havia aí a
operação de um motivo destacado único, um tipo de propulsor confiável para aquelas ações
que deveria ser chamado de “o motivo do dever”. Ele implica somente que agiram como
fizeram porque sabiam o que a moralidade do caso exigia, e que havia uma espécie de
autossuficiência nisso. Mas isso não era algo como o dar-se conta de que havia um dever
preestabelecido que se aplicaria exatamente à situação, como um dever pairando no ar à
espera de sua descida à terra na vida dos agentes, talvez listado em algum lugar e do qual, por
fim, eles acabaram por talvez se lembrar, se não vir a saber, o que junto com uma motivação
especial para cumprir deveres os teria levado às ações necessárias nos momentos dois dos
casos.

A ação que é a necessária mas que ocorre em função do apego mencionado ao


objetivo da ação, ou seja, depende disso para que aconteça, dessa ação Kant afirma que se
pode pensar, em geral, que é “por sorte [que] acerta com aquilo que de fato é de proveito geral
e [até mesmo] conforme ao dever” (aqui: a moralidade da ação). Portanto, parece haver uma
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ineliminável contingência nesse tipo de ação, e mais: a dimensão propriamente moral das
ações teria sua importância relativizada se o que importasse exclusivamente fossem os
objetivos alcançáveis através delas quando esses objetivos “também poderiam ser produzidos
por outras causas [outros meios]”. Essas “outras causas” podem também produzir o mesmo
efeito (objetivo) que aquelas ações, mas em todos esses casos (inclusive o do apego pelo
objetivo, e é isso que importa para Kant) via uma espécie de “causação errada” se é a
moralidade da ação que está em questão. Vejamos isso nas seguintes ações (no plural).

Três pessoas podem fazer o mesmo (do ponto de vista da ação física [chamada, às
vezes, de ato] com o mesmo objetivo sem estarem realizando propriamente a mesma ação.
Todas elas levam um velho que precisa de ajuda pro outro lado da rua e o deixam lá em
segurança. Mas, a 1ª o levou porque queria ver o velho em segurança no outro lado da rua,
isso a movia, tinha apego a esse “resultado”, essa situação a agradava, deixava contente (a
angústia do velho com sua dificuldade para atravessar a rua a afetava negativamente). A 2ª,
assim como com escoteiros numa imagem muito comum deles, tinha um fetiche por ações
meritórias: e essa era a oportunidade de realizar uma ação desse tipo, e ela fez a ação por isso.
A 3ª atravessou o velho porque era o que precisava ser feito, o velho precisava de ajuda. Essa
última é a única pessoa que faz o que a moralidade “do caso” envolve (nos apresenta), não
importando o que o agente esteja efetivamente sentindo ou querendo também conseguir com a
ação. Por isso Kant “desautoriza”, quanto a esse ponto (NB), o “pendor da sensação” ou uma
“solidariedade sentimental”.

Qual poderia, então, ser a 1ª proposição? Ora, algo que encapsulasse a mensagem das
considerações acima, que parece ser principalmente negativa: sobre onde o valor moral não
está.

B) O que reza a 2ª proposição?

A sua primeira parte articula a mensagem negativa que parece ser o que deveria estar
explicitado na 1ª, que não temos: o valor moral da ação por dever não está na intenção
(“intuito”) com que realizamos a ação, que é alcançar os objetivos (“fins”) da mesma (seu
“efeito”). A sua 2ª parte procura, então, explicar em termos técnicos o que é indicado na
discussão dos 3 exemplos:

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O valor moral de uma ação depende da máxima segundo a qual é decidida [a razão
para a ação escolhida], logo, não depende da realidade efetiva do objeto da ação [de
alcançarmos o objetivo da ação, que todas têm], mas meramente [exclusivamente, não
“simplesmente”] do princípio do querer segundo o qual a ação ocorreu [NB:
normalmente se faz alguma coisa com um objetivo], abstração feita de todos os
objetos da faculdade apetitiva [de desejar].

Note-se bem 2 pontos: (1) “Máxima” é a base em função da qual nos decidimos por
uma ação, que, se for demais se exigir um “momento” de decisão para cada ação, talvez
devesse ser compreendida como a razão que temos para fazer o que fazemos, da qual
podemos estar conscientes concomitantemente (enquanto agimos) ou que podemos,
tipicamente, declinar ex post facto. Mas parece precisar ser o caso que elas caracterizam a
nossa espécie de agência: a racional. Kant deixa claro que se trata de uma situação em que
agimos (a “ação ocorreu”) em função de um “princípio do querer”, uma máxima, que parece
poder ser compreendida, inicialmente ao menos, como uma razão para fazer o que fazemos
(ou já fizemos).

(2) O que, no entanto, é decisivo para o valor moral de uma ação, sempre realizada
em função de uma máxima (em Kant), é que essa máxima tenha um perfil determinado: ela é
uma razão para a ação em “abstração” das razões típicas associadas a termos intenções que
procuramos realizar alcançando os objetivos de nossas ações (“fins que possam ser efetivados
por tal ação”), casos nos quais se pode dizer que a efetividade do “objeto” da ação é o que
desejamos.

Isso é central à 2ª proposição: a ação ocorreu “abstração feita de todos os objetos da


faculdade de desejar”. O que isso significa? Se há um “princípio do querer” em cena, mas que
opera segundo essa “abstração” (NB: não “ausência”), como ele opera, em função do quê?

A 2ª parte da proposição, então, procura avançar na apresentação desse modo de


operação da vontade em “abstração” dos seus objetivos costumeiros: o “princípio do querer”
nesse caso é a priori, o que para Kant significa formal (mas não no sentido da Lógica Formal,
pois se trata de algo que é material no sentido de que depende do conhecimento segundo o
qual ele é empregado), por oposição aos princípios materiais neste outro sentido: quando são
articuladas razões em função de “molas propulsoras” da vontade (desejos sensíveis
costumeiros que são empíricos) que, afirma Kant, são a posteriori (então “materiais” em
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relação ao desejos: eles pressupõem a experiência de objetos para que a vontade venha a se
encontrar de posse de estados que chamamos de desejos por eles; NB: “material” aqui não
significa que tem um objeto de conhecimento).

O cerne da 2ª proposição, então, é: “valor moral da ação está em que ela tenha
ocorrido por dever”, mas isso agora significa exatamente: em função da determinação da
vontade (do querer da ação) pelo “princípio formal do querer em geral” (e não por um motivo
especial: o encantatório ultra-severo “motivo do dever”).

C) A 3ª proposição Kant, com cuidado, afirma que “exprimiria” assim, simplesmente:


“O dever é a necessidade da ação por respeito à lei”. Uma formulação quase sibilina na sua
concisão.

Três coisas sobressaem nessa formulação: 1. O explanandum é a natureza do dever. 2.


Ocorre nela uma expressão sobre a qual parece que precisa recair todo o peso do explanans:
“a necessidade da ação”. O que confere necessidade (de que natureza) a uma ação? 3. Entrou
em cena o “respeito”, o que é o “respeito pela lei”?

A relação entre esses 3 pontos pode ser assim apresentada. Na medida em que o que
Kant procura explicar é o conceito de dever, a atenção precisa recair sobre o que vai explicá-
lo, a saber, o que é verificar-se “a necessidade de uma ação”, e não o contrário: não é a
“necessidade” da ação, entendida costumeiramente como a sua ocorrência com a
característica de que é exigida (sendo o alvo de uma obrigação, tendo obrigatoriedade, sendo
exigida normativamente), que será explicada pelo dever como uma espécie de motivação em
especial.

Poderia parecer que deveríamos dar um passo além na busca pelo explanans, pois
aquela necessidade parece ser remetida – o que a explicaria – ao respeito, ou seja, pareceria
que a 3ª proposição, no seu texto, faz o central da explicação da natureza do dever depender
desse sentimento. Mas daí surpreende que a discussão da mensagem dessa proposição, na
continuação, – a conclusão quanto à apresentação da lição teórica – torna o sentimento de
respeito se não acessório (não decisivo), no máximo, complementar. Vejamos, e nisso a
distinção entre o “princípio subjetivo” e o “princípio objetivo” da vontade de seres racionais
será central.

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C i) A discussão de Kant começa pelo respeito e pelo objeto desse sentimento, mas o
ponto de chegada é a natureza da determinação da vontade na eventualidade da ação com
valor moral, ou seja, por dever. Podemos aqui construir sobre a base das 2 primeiras
proposições. Primeiramente, o que importa a Kant, então, é articular o ponto principal como
dizendo respeito à superioridade dessa determinação. O tipo de determinação que depende de
uma inclinação pelo “objeto” da ação, do desejo pelo “efeito” da ação, não pode ter valor
moral por ser “meramente um efeito” da mesma. Porque só pode ter valor o que pertence à
“atividade de uma vontade”, ao que “está vinculado à minha vontade como uma mera razão
<para agir>”, e isso porque essa espécie de determinação “não serve” [dient], não está
simplesmente a serviço, de uma inclinação ou até mesmo da concepção da satisfação da soma
delas todas (nossa felicidade). Então, o que é uma determinação devida à atividade da vontade
- presumivelmente, o que só pode existir se for assim engendrado (o que depende dessa
atividade como o que é precípuo da faculdade que ela é, o que não está aí simplesmente para
servir às nossas inclinações), o que tem a natureza sui generis de ser “uma mera razão” [bloss
als Grund: não “simplesmente”, mas razão bona fide] – prevalece (“prepondera”, sie
überwiegt: que tem mais peso, vale mais, é mais significativo) sobre nossas inclinações. E
isso não parece significar “elimina”, “suprime”, mas faz com que não tenham “voz” nem
“vez”, a importância costumeira, num contexto de determinação da vontade com valor moral.
Esse contexto é criado quando “uma mera razão <para agir>” “pelo menos exclui
inteiramente que ela [uma inclinação, presente portanto] tenha um peso decisivo quando da
escolha [“peso” na verdadeira ponderação de cunho moral, embora o termo sugira uma
comensurabilidade quanto à medida, mas isso é afastado com “exclui inteiramente” que
indica que se trata de uma distinção por princípio]”.

Assim se esclarece a natureza de [NB] uma ação por dever. Negativamente, nela
temos posto “à parte toda influência da inclinação e com ela todo objeto da vontade”. Note-se
bem: “toda influência”, é “tirar de combate”. Por quê? Como? Porque a “inclinação” e o
“objeto” da vontade só podem colaborar para constituir uma determinação da vontade que é a
de um desejo sensível pelo objeto, ou seja, eles precisam, para serem a base dessa
determinação, fazer parte do que é um desejo sensível pelo objeto que seja existente no
sujeito. E não ser a determinação precípua dessa faculdade em função de sua natureza. Qual
exatamente? Como se dá essa espécie de determinação como “mera razão” que depende
essencialmente da “atividade da vontade” (dela mesma em função da faculdade que é, e não
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ser um seu estado apetitivo sensível)? Kant, nessa primeira articulação, dá destaque ao
“respeito”, mas recorre a uma distinção técnica. Eis o que ele nos diz quanto à determinação
que importa:

(…) Nada resta para a vontade que possa determiná-la senão, objetivamente, a lei e,
subjetivamente, puro respeito por essa lei prática, por conseguinte a máxima de dar
cumprimento a uma tal lei mesmo com derrogação [Abbruch: abandono, demolição]
de todas as nossas inclinações.

Na primeira parte dessa passagem decisiva (mas difícil), Kant parece sugerir aquele
quadro que muitas vezes se atribui a ele. Determinar a vontade “objetivamente” através da lei
seria reconhecer que há uma lei que “se aplica” ao nosso caso e que devemos seguir. E, então,
seríamos capazes de segui-la quando e porque nos “move”, “subjetivamente”, o “puro
respeito” pela lei, um estado motivacional no sujeito. Ou seja, o “motivo do dever”,
equiparado ou identificado com esse estado, de natureza sentimental, é o que seria
responsável pela “determinação” da nossa vontade para a ação que de qualquer maneira é
ordenada pela lei “objetivamente”, como o que é exigido “normativamente”. Mas isso não
parece correto pelo que se segue.

Na segunda parte da passagem, Kant identifica (esta é uma interpretação) a “máxima”


com ambos os aspectos da determinação da vontade, esses que importam, em conjunto (outra
interpretação seria que a “máxima” referida após “por conseguinte” deveria ser identificada
somente com o aspecto subjetivo, ou seja, com o que acontece no sujeito motivacionalmente:
a ocorrência do respeito). A Nota de pé de página se bem compreendida nos dá uma luz sobre
qual interpretação seguir.

A Nota em questão é aposta ao termo “máxima”, do qual ela diz que está por
“princípio subjetivo do querer”. Note-se bem: (1) Trata-se de um “princípio” de fato e de um
princípio do “querer”. A máxima não parece ser um sentimento, uma motivação como estado
sentimental do sujeito. (2) A distinção então introduzida na nota, entre princípios “subjetivos”
e “objetivos”, ou seja, “máximas” e “leis”, como princípios práticos do querer (ambos), não é
tão simples como pode parecer. Vejamos.

A distinção parece depender de uma diferença que tocaria às determinações possíveis


para a nossa vontade: uma “subjetiva” e outra “objetiva”. Isto é, uma via a “máxima” e a outra

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via a “lei prática”. A primeira quando nós queremos algo (que simplesmente importa só a nós)
e a segunda quando nos submetemos no nosso agir à lei. Mas, a referência, note-se bem, ao
que “serviria” de princípio prático “para todos os seres racionais” (e é porque efetivamente
serviria que Kant diz: “subjetivamente”) numa condição especialíssima – “se a razão tivesse
pleno poder sobre a faculdade apetitiva [de escolher]” - a saber, a lei prática, isso cria um
contexto de determinação da vontade que não possível aos seres humanos. Nossa não é, por
princípio, uma faculdade sobre a qual a razão tem “pleno poder” (NB: Kant usa “tivesse”).
Nossa é de uma espécie distinta daquela em que – a razão operando com “pleno poder”
também subjetivamente [causalmente como tal, na faculdade apetitiva do ser racional] - se
verificaria, simplesmente, que a lei prática, ela mesma, realiza a determinação dessa
faculdade. Por isso, para essa espécie de vontade (perfeita, não a nossa vontade, que é sempre
imperfeita), e só para ela, a lei prática, ela mesma (o “princípio objetivo”), é também,
subjetivamente (na causalidade da determinação do querer), um princípio prático. Para nós,
no entanto, com a espécie de vontade que temos de fato, é inescapável que ajamos sempre em
função de “máximas”, “princípios subjetivos”, que, portanto, não podem ser simplesmente
“razões subjetivas” ordinárias que dizem respeito às nossas preferências. Pois não somos
suscetíveis (não é uma possibilidade para nós) de uma determinação quanto ao querer que
ocorreria em nós pela própria lei prática como “princípio prático”, embora essa lei também
para nós seja “o princípio objetivo”, porque ela é válida para “todos os seres racionais”.

A impossibilidade dessa espécie de “determinação direta” da vontade pela razão é


decisiva, na continuação, para a caracterização kantiana da natureza da determinação da nossa
vontade quando a ação tem valor moral. Vejamos.

C ii) O valor moral da ação não está no “objeto” da ação, no efeito almejado dela,
porque isso envolve o “entretenimento” desse “objeto” (ele precisa nos afetar) num estado
aprazível, nem está no tipo de “princípio da ação” que se assenta num motivo constituído
através desses estados: desejos sensíveis (“inclinações”). Ele depende do que, então, quanto à
determinação da vontade?

O máximo que Kant nos diz aqui, que é pouco, é o seguinte. A determinação da
vontade que tem valor moral tem que se dar exclusivamente em função da própria “vontade
de um ser racional” (antes tínhamos: da sua atividade, do que é, em relação a essa atividade,
“uma mera razão <para agir>”). É dessa determinação que dependemos para encontrarmos na

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vontade “o bem supremo e incondicionado”. Isso parece querer dizer que a “vontade de um
ser racional” que é exigida para aquele (NB) bem (o conceito precípuo de valor) é
precisamente o seu querer racional. Então, esse bem, do qual Kant diz que é “tão excelente” e
que “chamamos moral” (NB: é o que, em função da análise, Kant sustenta que se deve de fato
“chamar” de “bem moral”), é o bem constituído exclusivamente pelo querer (a atividade da
vontade por excelência) que a exige como tal e é próprio a ela como faculdade: o querer
racional. Ou seja, trata-se de um desejar da razão, por oposição a um mero “desejo
racionalizado” ou submetido a certos critérios de racionalidade.

Duas perguntas se impõem agora: (1) Por que esse querer “constitui” o bem moral?
Como ele o faz especificamente? (2) Qual é a natureza desse querer, caracterizada de modo
geral? É somente a última pergunta que Kant responderá aqui, porque é esta resposta que
permitirá a ele alcançar o objetivo principal da Seção.

Na ação com valor moral precisamos da determinação da vontade que “constituirá” o


bem moral realizado pela ação. Essa determinação não se dará numa vontade imperfeita como
a nossa através do “trânsito” do próprio “princípio objetivo do querer”, como princípio
prático (como lei prática que é), na nossa vontade (no seu “interior”). Ou seja, não pode ser
ele próprio que “comparecerá” na nossa vontade servindo aí (nesse “local”) “subjetivamente
como princípio prático”. A determinação moral da vontade que importa às ações para que elas
tenham feição moral precisará se dar representacionalmente, seres como nós precisam fazer a
lei prática “falar” para eles via a representação dela.

Ora, como essa representação só pode se dar via a atividade (de representação) de um
ser racional (“só tem lugar no ser racional”), ela precisará ser a “representação da lei” (a
representação do “princípio objetivo” que é a lei prática para ele), e assim – por
representação desse princípio – será ela mesma (“em si mesma”: a representação) que
fornecerá “a razão determinante da vontade” quando essa determinação “constitui” o “bem
tão excelente que chamamos moral”, ou seja, quanto estamos ante uma ação com valor moral.

Quando da ação em função dessa espécie de determinação da vontade, o que temos,


então, é a pessoa que “age segundo a representação dessa lei” simpliciter, isto é, ela não age
em função do que ela pode “esperar <que provenha> antes de tudo do efeito”. E nessa espécie
de ação, o bem moral da ação pode ser visto “migrar” para a “pessoa mesma” capaz dela (o
que parece constitui um status: o moral). Trata-se, portanto, de uma “determinação imediata
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da vontade pela lei” via a representação dela (e “imediata” aqui não diz respeito a ela própria
“estar” atuando “diretamente” na mentalidade da pessoa, mas faz referência indireta a um
objetivo, um “efeito”, para o qual a ação seria um meio: esse não é o caso nessa determinação,
a moral). Disso a nossa vontade, imperfeita, é capaz, mas precisará então inescapavelmente
representar a lei, e nisso “se determinar” racionalmente. Essa é a caracterização de como, de
modo geral, esse processo se dá.

Deixaremos o respeito para mais adiante.

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