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Ciência & Ensino, vol. 1, n.

1, dezembro de 2006

DEBATE

O QUE É DIVULGAÇÃO CIENTÍFICA?

Henrique César da Silva

O uso de textos de divulgação Lewontin intitulado A tripla hélice1, o


científica no ensino de ciências vem sendo testemunho de um cientista sobre
amplamente divulgado já há vários anos e mudança climática no Congresso norte-
parece hoje ser uma prática corrente em americano, um relatório escrito por um
muitas escolas. Mas, quando dizemos: cientista sobre mudança climática a
“isso é um texto de divulgação científica”, pedido de uma organização financiada
de que tipo de texto estamos falando? pela indústria petrolífera ou por uma ONG
Na verdade, pretendo muito menos ambientalista, o sumário para políticos do
dar uma resposta a essa questão do que IPCC2 sobre o estado da arte das pesquisas
mostrar o quanto isso é difícil, o quanto o sobre mudanças climáticas, e ainda, o
que chamamos de divulgação científica filme Gattaca e uma peça de teatro como
compreende um conjunto tão grande e Casca de Noz3 baseada no livro As
diverso de textos, envolvidos em cosmicômicas de Ítalo Calvino.
atividades tão diferentes, que todas as Dificilmente se poderia dizer o que é e o
tentativas de definição e categorização a- que não é divulgação científica nesse
históricas acabam malogradas. A aparente conjunto. Parece que o termo divulgação
obviedade da expressão divulgação científica, longe de designar um tipo
científica faz-nos esquecer sua associação específico de texto, está relacionado à
a todo um conjunto de representações e forma como o conhecimento científico é
valores sobre a própria ciência, os textos produzido, como ele é formulado e como
que lhe são associados e o imaginário que ele circula numa sociedade como a nossa4.
os diferencia em termos de legitimação E isso, também tem a sua história.
com relação ao conhecimento que Para começar nossa conversa,
veiculam os lugares por onde este e não alguém poderia indagar: “a divulgação
aquele texto pode/deve circular. O que científica seria uma atividade recente,
está em jogo é a questão da multiplicidade
1
Lewontin, R. A tripla hélice: gene, organismo e ambiente.
de textualizações do conhecimento São Paulo: Companhia das Letras, 2002.
científico. Coloquem-se lado a lado uma 2
Painel Intergovernamental em Mudanças Climáticas foi
criado em 1988 pela ONU e pela Organização Meteorológica
reportagem da revista Veja sobre Mundial, reúne cientistas do mundo todo para produção de
clonagem ou células tronco embrionárias, relatórios baseados nas pesquisas científicas sobre possíveis
causas antropogências das mudanças climáticas. O terceiro e
textos da Ciência Hoje sobre os mesmos último é de 2001.
assuntos, um da Superinteressante, um 3
Peça teatral do Grupo Armazém Cia. de Teatro, Rio de
Janeiro, 2003.
artigo publicado num jornal pela Mayana 4
O leitor encontrará artigos interessantes sobre o tema em
Zatz, um livro do biólogo Richard Guimarães, E. (org.). Produção e circulação do conhecimento:
Estado, Mídia, Sociedade. Campinas, SP: Pontes, 2001.

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típica da era da comunicação de massa, personagens históricos bem conhecidos de
da era do conhecimento e do 'mass nós, como é o caso de Marat (1743-1793),
media'?”. um dos personagens centrais da
Não há dúvida que no contexto atual, Revolução Francesa, eleito um dos
muitas atividades consideradas como dirigentes da Comuna de Paris e depois
sendo de divulgação científica ganhem assassinado por outros revolucionários.
amplitudes jamais vistas, seja no formato Ele não apenas escreveu inúmeras
escrito, como em jornais, revistas e livros, monografias sobre o calor, óptica e
seja no formato audiovisual, como em eletricidade como proferiu inúmeras
documentários e outros programas da palestras públicas cheias de
8
televisão. No entanto, ela não pode ser demonstrações e experimentos . Alguns
considerada uma atividade recente, palestrantes eram considerados famosos
característica da época atual. Atividades profissionais nessa atividade. Desaguliers,
de divulgação científica surgiram junto curador de experimentos da Royal Society
5
com a própria ciência moderna . de Londres, é considerado por
6
Já no século XVIII anfiteatros historiadores como um dos mais
europeus enchiam-se de um público ávido influentes da Europa9. Várias palestras
por conhecer novas máquinas e eram divulgadas num mesmo e específico
demonstrações de veículo impresso, e
A produção de livros
fenômenos pneumáticos, algumas formavam séries
ditos de divulgação
elétricos e mecânicos, cuja lista de conteúdos
apenas para citar alguns científica escritos por também era impressa e
exemplos. Algumas cientistas percorre todos publicamente
exposições e palestras, os séculos e distribuída.10
relacionadas à física, à praticamente todas as Também já podemos
química ou à medicina, áreas da ciência desde, encontrar no século XVIII
eram itinerantes, pelo menos, o século diversos livros escritos por
percorrendo diversas cientistas e destinados a
XVIII.
cidades e, às vezes, um público que no atual
7
diversos países . discurso da “divulgação científica” seria
Eram verdadeiros shows científicos, chamado de não-especializado ou leigo.
aparentemente bem ao estilo de muitas Também o público infantil já fazia
atividades de divulgação científica atuais. parte dessas atividades. Em 1770, são
Alguns desses divulgadores são publicados os primeiros livros infantis de
ciências.11 A grande quantidade e
5
Sobre a divulgação científica no Brasil confira o livro de variedade de livros e textos “de divulgação
Massarani, L., Moreira, I. e Brito, F. Ciência e Público:
caminhos da divulgação científica no Brasil. Rio de Janeiro: 8
Casa da Ciência; Centro Cultural de Ciência e Tecnologia da Heering, P. “Public experiments and their analysis with the
UFRJ, 2002. Sitio: www.casadaciencia.ufrj.br. replication method”. In: “From the itinerant lectures of the 18th
6
Para melhor situarmo-nos historicamente é preciso lembrar century to popularizing physics in the 21st century – exploring
que Newton morre em 1727; o século XVIII é o século do the relationship between learning and entertainment.
Iluminismo, da queda da Bastilha em 1789 (Revolução Proceedings of Pognana Conference, Itália, junho de 2003.
Francesa); é o século de Bernoulli, Euler, D’Alambert, Disponível em: www.deutsches-
Lagrange, Lavoisier. museum.de/bildung/veroeff/img/pognana.pdf.
9
7
Cf. o sítio do Science Museum (Inglaterra): Science Museum (op.cit.).
10
www.sciencemuseum.org.uk/collections/exhiblets/george3/sta Idem.
11
rt.asp. Idem.

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científica” do século XVIII na Europa surgiram não fazia muito tempo, ainda
incluíam um livro especificamente voltado eram em número reduzido e seu estilo,
para mulheres intitulado A filosofia de Sir embora já novo no século XVII em relação
Isaac Newton explicada para o uso das a outros estilos de textos, estava em
damas, do italiano Francesco Algarotti, desenvolvimento até chegar ao formato
traduzido na Inglaterra em 173912. atual14. Apesar de terem um número
A produção de livros ditos de reduzido de assinantes, esse grupo não era
divulgação científica escritos por claramente delineado como um grupo
cientistas percorre todos os séculos e profissional. A razão da pequena tiragem
praticamente todas as áreas da ciência estaria muito mais relacionada aos custos
desde, pelo menos, o século XVIII. O e à estrutura de mercado para esse novo
matemático Euler publicou entre 1768-72, tipo de literatura do que a uma
em três volumes, o livro Cartas a uma especialização de conteúdos e temas e uma
Princesa da Alemanha, também destinado homogeneização de audiência.15
ao público em geral. O livro Worlds in the Enfim, no século XVIII, a atividade
making13 do químico e prêmio Nobel de produção de conhecimento e de
Svante Arrhenius é publicado em 1908, divulgação, os lugares de produtores e
com o mesmo propósito. divulgadores estavam pouco
No entanto, no século XVIII, a diferenciados. Mas, com a ciência se
ciência moderna estava nascendo e, constituindo aos poucos como um certo
paulatinamente, se institucionalizando. Na tipo de instituição vinculada a uma certa
verdade, esse público “especializado” forma de produção de conhecimento, já
estava, lentamente, começando a se havia uma tensão pela diferenciação.
formar à medida que a atividade científica Filósofos naturais acadêmicos da época do
aos poucos se profissionalizava. As Iluminismo esforçavam-se por parecerem
divisões entre pesquisa científica e diferentes dos chamados “vendedores
popularização, entre pesquisa, formação científicos”, com suas palestras e shows
de profissionais e entretenimento eram itinerantes.16
muitas vezes praticamente inexistentes. ***
Alguns profissionais, como farmacêuticos, Embora a atividade científica, ao
assistiam a aulas privadas, ou seja, longo dos séculos, se profissionalize, se
proferidas em locais não especificamente institucionalize, ganhando uma certa
voltados para o ensino formal, como as autonomia em relação a outras atividades
universidades, com o objetivo de sociais, econômicas e culturais, ela se dá, e
aprimorarem seus conhecimentos sempre se deu, dentro da sociedade, e esta
profissionais em vista da então nascente 14
Cf. Bazerman,C. Shaping Written Knowledge: The Genre
ciência Química. A figura do cientista, do and Activity of the Experimental Article in Science. WAC
expert ou especialista, detentor de um Clearinghouse Landmark Publications in Writing Studies:
http://wac.colostate.edu/aw/books/bazerman_shaping/. 2000.
diploma e de uma pós-graduação que lhe 15
Cf. Broman, T. H. “The literary market and periodical
conferem essa posição ainda não existia tal publishing in the 18th century”. HSS Annual Meeting
Proceedings, 1999. Resumo disponível em <
como hoje. Os periódicos especializados http://depts.washington.edu/hssexec/annual/1999/program99.h
tml >.
12
Idem. 16
Hochadel, O. “Instrument makers and itinerant lectures in
13
Não há tradução para o português dessa obra, mas numa the German Englitenment”. Proceedings of Pognana
versão livre o título poderia ser “Mundos em construção”. Conferece, op. cit.

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autonomia é apenas relativa. Ainda que as transgênicos (já não tão divulgada e cuja
relações entre a esfera científica e outras regulamentação estava embutida na
esferas da sociedade tenham se alterado mesma lei).19
com o passar dos séculos, ainda que Nessas interlocuções entre essas
variem conforme a área de conhecimento, diferentes esferas, política, empresarial e
de tecnologia e do país em questão, o fato industrial, “científica”, “pública”, são
de ela jamais ser totalmente produzidos diferentes textos. Não porque
independente, faz com que as se trata de simplificar a ciência para um
interlocuções envolvidas em sua produção outro público, mas porque diferentes
não se restrinjam exclusivamente ao interlocuções implicam em diferentes
campo dos especialistas. memórias, em diferentes posições e,
A questão do que é “interno” ou portanto, em diferentes textualizações.
“externo” à atividade científica é uma A atividade científica, ou seja, uma
questão complexa se considerarmos que a das atividades de produção de
ciência se produz na sociedade e que sua conhecimento, e, com certeza, a de maior
produção é algo extremamente complexo prestígio e legitimidade atualmente, se dá,
cujos atores envolvidos, direta ou portanto, por uma multiplicidade
indiretamente, jamais são exclusivamente complexa de relações interlocutivas. Essas
os cientistas. relações produzem textos, orais, escritos,
Poderíamos citar inúmeros visuais ou audiovisuais e, como são muitas
exemplos. Um deles está relacionado aos e variadas, assim, como são muitos e
debates em torno da polêmica sobre as variados os interlocutores, os textos são
mudanças climáticas envolvendo diferentes. Na medida em que as
cientistas cujas pesquisas são financiadas comunidades científicas foram se
por empresas petrolíferas17, posições de constituindo e a atividade científica foi se
políticos como G. W. Bush contra o profissionalizando, alguns de seus textos,
protocolo de Kyoto, cientistas buscando envolvidos nesse processo cada vez mais
convencer (o público?) as esferas profissional e cada vez mais circunscrito a
governamentais da necessidade de mais um número limitado de pessoas20,
verbas para esse tipo de pesquisa diante acabaram ganhando, paulatinamente,
das inúmeras incertezas do conhecimento certa estabilidade em termos de gênero e
científico atual sobre a questão. Outro de estilos de escritura, como é o caso dos
exemplo recente está estampado nas chamados papers, ou artigos científicos.
páginas de revistas e jornais com fotos de Outros emprestam para si outros gêneros
cientistas junto de políticos e de ONGs a
favor da aprovação da lei de biossegurança contribuíram para mudanças de conceitos “dentro” da própria
biologia.
nacional diretamente ligada à questão das 19
A Lei de Biossegurança Nacional foi aprovada pelo
pesquisa com células tronco embrionárias Congresso Nacional e sancionada pelo presidente em março
de 2005. As imagens às quais me refiro podem ser encontradas
(cuja polêmica foi amplamente divulgada em Revista Scientific American Brasil, ano 4, n. 39, agosto,
pela mídia)18 e à questão das alimentos 2005, p. 77 e p. 82, por exemplo.
20
Sobre as características desses textos e sua relação com a
produção do conhecimento científico, manutenção e
17
“'Cético' do aquecimento global recebe dinheiro de reprodução da comunidade científica, sugerimos a leitura de
termelétrica”. Folha de São Paulo. Seção Ciência. São Paulo, Bachelard, “A formação do espírito científico”, Kuhn, “A
28 de julho de 2006. estrutura das revoluções científicas” e Comte, “Curso de
18
Os debates sobre o tema envolvendo o parlamento inglês filosofia positivista”.

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textuais ou orais, e às vezes os adaptam21. produção do conhecimento científico.


No entanto, se olharmos a produção Como todo texto, um artigo científico
textual como aspecto da produção, comporta determinados tipos de
formulação e circulação de discursos e, formulações e enunciados e não outros.
estes últimos, como constituintes Questões de cunho filosófico,
simultaneamente de sentidos e de sujeitos, epistemológico, ontológico e, às vezes,
podemos considerar que diferentes ético e moral, envolvidas nessas polêmicas
textualidades produzem diferentes efeitos- têm pouco espaço para serem formuladas
leitores, produzem/reproduzem diferentes num artigo científico. Quando Einstein
relações sociais entre os sujeitos. intitulou seu artigo “Sobre um ponto de
Mas, na medida em que estes textos vista heurístico sobre a produção e
foram excluindo outras A produção científica transformação da luz”, em
possibilidades de dizer e se dá num espaço 1905, a expressão “ponto de
produzindo efeitos-leitores vista heurístico”
polêmico de
específicos e restritivos, representava um ponto de
interlocução.
outros textos foram sendo vista de natureza
produzidos, e provavelmente, também se epistemológica e ontológica sobre a teoria
modificando ao longo do tempo. quântica, nos primórdios de seu
A produção científica se dá num desenvolvimento, envolvido desde então
espaço polêmico de interlocução. Como num debate cujos termos não estavam
diz Bruno Latour, “quando nos formulados no próprio artigo, mesmo que,
aproximamos dos lugares onde são criados ao formular seu título dessa forma, o autor
fatos [científicos] e máquinas, entramos já tomasse uma posição nessa polêmica
22
no meio das controvérsias” . Artigos que iria se arrastar durante décadas. É em
científicos são os principais textos pelos outros textos produzidos também na
quais são travadas essas polêmicas. Ainda interlocução cientista-cientista, como,
segundo Latour, o leitor de um artigo neste caso, nas cartas entre Einstein e
científico pode ser considerado um leitor Bohr, ou nos livros (de divulgação
discordante. Em vista da imagem desse científica?) publicados por Einstein que
leitor, o artigo é construído, o discurso vamos encontrar argumentações mais
científico é nele textualizado, antecipando- detalhadas sobre esses aspectos
se às possíveis críticas desse leitor intimamente relacionados à produção do
23
discordante. Há um efeito-leitor conhecimento científico sobre a física
particular nessa textualidade. Um efeito- quântica. Podemos encontrar algo análogo
leitor construído historicamente com a nos livros (de divulgação científica?) de
institucionalização da ciência. Stephen Jay Gould sobre o darwinismo,
Mas o artigo científico não é o único até hoje envolvido em grandes
espaço em que se travam debates, controvérsias, ou de Lewontin sobre
discordâncias, polêmicas constitutivas da genética.
21
O que chamamos de divulgação
Cf. Mora, A. M. S. A divulgação científica como literatura.
Rio de Janeiro: Casa da Ciência; Editora da UFRJ, 2002. científica é o reflexo de um modo de
22
Latour, B. Ciência em ação. São Paulo: Editora da Unesp, produção de conhecimento restringido e,
2000, p. 53.
23
Sobre a noção de efeito-leitor ver Orlandi, E. Discurso e conseqüentemente da constituição de um
texto. 2ª ed. Campinas SP: Pontes, 2005.

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efeito-leitor específico relacionado à conhecimento sobre ciência. Para
institucionalização, profissionalização e compreender essa questão é preciso
legitimação da ciência moderna, e que pensar sobre que tipo de oposição é essa,
opõe produtores e usuários/consumidores como ela vem se dando ao longo da
e, cria a figura do divulgador, que viria, história e retomar alguns aspectos da
imaginariamente, restabelecer a cisão, e produção do conhecimento científico.
minimizar a tensão instaurada ao longo da ***
história no tecido social da modernidade. Se não há algo que caracteriza
Essa cisão não é mantida sem tensão, sem especificamente um texto de divulgação
a (re)produção tensa de um imaginário científica, seja em relação ao público a que
que a mantém. É nesse imaginário que se destina, seja em relação a outros
trabalha a divulgação científica. critérios, o que faz dessa expressão nos dar
*** a sensação de que designa algo específico e
Alguém ainda poderia perguntar, particular? Enfim, o que é divulgação
“mas a divulgação científica não pode ser científica? Seu efeito não estaria em
considerada uma atividade de participar do imaginário necessário à
disseminação do conhecimento científico circunscrição de espaços de interlocução,
para um público leigo?”. em diferenciar um espaço que seria
Além dos problemas associados ao “interior” e um espaço que seria “exterior”
termo “disseminação”, essa formulação à ciência?
atualiza um imaginário que vê na Vários autores têm apontado sobre o
divulgação científica uma atividade discurso da divulgação científica o fato de
unidirecional produto da interlocução ela produzir o efeito de exterioridade da
exclusiva entre cientista (ou jornalista) e o ciência24. Há um lugar interlocutivo que
não-cientista. Esta formulação não dá não se pode entrar. Pelo menos, não pode
conta de que a divulgação científica entrar qualquer um. Uma exterioridade
também está envolvida na interlocução que nos posiciona diante dela de certas
cientista-cientista. Dado o grau de maneiras, constituindo diversos efeitos-
especialização da atividade científica atual, leitores. O cientista pode sair do seu lugar
um cientista é sempre mais ou menos leigo “próprio” de interlocução legitimada com
em campos que não sejam estritamente outro cientista para produzir interlocuções
vinculados ao seu próprio trabalho. com outros leitores, não cientistas. Esse
Embora cientista, um artigo científico não lugar é preciso não ser confundido, é
é especialmente dirigido a ele. No entanto, preciso ser diferenciado. A expressão
há outro aspecto relacionado à formulação “divulgação científica” cumpre esse papel.
dessa questão. Ela opõe dois sujeitos: de Instaura uma outra cena, como mostra
um lado, o cientista, de outro, o não- Authier-Revuz25. E isso tem a ver com a
cientista. De um lado o sujeito produtor do produção de diferentes textualizações e,
conhecimento científico numa posição de simultaneamente, com o imaginário que
autoridade altamente legitimada e de
outro, o consumidor do conhecimento 24
Cf. Guimarães (2001), op. cit..
25
científico, o sujeito interessado em Authier-Revuz, J. A encenação da comunicação no discurso
de divulgação científica. In: ____. Palavras incertas: as não-
atualização cultural, sem nenhum coincidências do dizer. Campinas, SP: Editora da Unicamp,
1998, p.107-131.

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produz uma diferenciação e diferenciação entre produtores e


hierarquização de status entre esses consumidores de conhecimento. Separar
diferentes textos em relação ao discurso e, encenar o reencontro.
que veiculam. Mas tudo isso não se dá sem falhas,
Trata-se de uma nova versão das sem resistências, sem tensões, sem
relações entre conhecimento, poder, deslocamentos. É nesse espaço que se
circulação e acesso que em relação às que encontra a escola, as leituras da ciência
existiram em outras épocas, como aquela produzidas dentro dela e as diferentes
medieval, representada no livro e no filme textualizações do conhecimento científico
“O nome da rosa”: o acesso aos textos que ali circulam, ou não circulam (e como
(simbolizado por um livro de Aristóteles circulam) como parte dessas tensões, da
sobre o riso) era dificultado pela produção/reprodução desses imaginários,
localização das únicas bibliotecas em dessas posições, desses efeitos-leitores...ou
mosteiros, restringido pelo próprio de outros...
funcionamento institucional dos mosteiros
medieval, pela forma da própria biblioteca
em labirinto, pela função do bibliotecário
que guardava o conhecimento do labirinto
cujos segredos eram passados
exclusivamente a outro bibliotecário, até
ações de interdição que culminavam com a
própria morte daquele que ousasse e
conseguisse atravessar toda essa estrutura ________________________________
de poder e acesso ao conhecimento. E, do Henrique César da Silva é membro do gepCE
lado de fora das muralhas do mosteiro, a e professor do Instituto de Geociências da
Unicamp.
população, faminta e, analfabeta. O fato de E-mail: henriquecsilva@ige.unicamp.br
bibliotecas não ficarem mais em mosteiros
cercados por muralhas não significa que a
circulação do conhecimento não deixou de
ser controlada. E esse controle tem a ver,
simultaneamente, com o modo como o
conhecimento científico é produzido, com
o modo como ele é formulado e com o
modo como ele circula.
O fato que quero apontar é o de que
textos constituem sentidos e
simultaneamente sujeitos, posições de
leitura, posições de interlocuções, posições
que constituem o tecido social. Nossa
sociedade, da forma como os
conhecimentos são produzidos, precisa
constituir reafirmar, produzir, com a
evidência de uma naturalidade, a

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