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01/11 / O caso português: cinema experimental... / Luís Mendonça arte / reflexão / crítica
11 . 2 0 1 6 – n . º 2

O caso português: cinema


A arte experimental, esse estrangeiro

é séria
LUÍS MENDONÇA

Em memória de Jorge Amaro (1984-2012)

e é silly. GABRIEL ABRANTES NA PONTA DO ICEBERGUE

Não será por acaso que na obra de Gabriel Abrantes o museu aparece como
um décor privilegiado. Abrantes entra no cinema pela porta das artes visuais
e performáticas, principalmente com o seu filme, co-realizado por Benjamin
Crotty, Olympia I/II (2006). A proposta de actualizar numa reencenação cheap
do famoso quadro de Manet os clichés do discurso contemporâneo fez deste
filme um objecto dúbio, na fronteira entre o cinema e a vídeo-arte.
O travestismo do próprio Abrantes enquanto Olympia é parte de
uma atitude geral que será estruturante na obra do realizador e que assenta
raízes no que Parker Tyler, no livro Underground Film, definiu como “Youth
Attitude”. Para Tyler, o cinema experimental norte-americano dos anos 60
está imbuído de um espírito jovial que rompe com o avant-garde precedente,
maioritariamente associado ao surrealismo (Buñuel, Dali, Cocteau e Maya
Deren). Caracterizado como sendo extático, eufórico, universalmente
tolerante e bufão, a vanguarda, defende Tyler 1, passou do horror e da tragédia
para o êxtase e a felicidade. Os temas predominantes são o infantilismo
e a comédia do homem-criança 2. Em Visionary Iraq (2006), o realizador
luso-americano escolhe uma galeria de arte como cenário para um
“dramalhão” – paratelevisivo – que envolve uma relação incestuosa
no seio familiar e o desejo partilhado pelos irmãos enamorados de irem para
o Iraque espalhar a democracia. Abrantes interpreta – apetece dizer antes
que Abrantes se mascara de – a irmã e o pai desta família, no que é apenas
um dos vários jogos de papéis que alimentam – de gozo, ironia, sardónia
– este cinema infantilizado de museu.
A Brief History of Princess X (2016) é paradigmático dessa relação
1. Parker TYLER, Underground
jocosa que Abrantes vai instituir no seu cinema, convocando elementos
Film, Da Capo Press, Nova Iorque, que compõem e decompõem o seu próprio “status artístico”. O narrador – o
1995, p. 99.
próprio Abrantes – conta como a famosa escultura da autoria de Constantin
2. Parker TYLER, op. Cit., p. 100. Brancusi que procurava representar a imagem de Marie Bonaparte foi objecto
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de incompreensão no seu tempo, devido à inusitada semelhança com um


falo. O narrador não contém o riso enquanto desenrola a trama desta história.
A arte é séria e é silly. Não podia haver imagem mais representativa de todo
o gestus do cinema de Abrantes: por um lado, a afirmação crítica, séria,
elevada, até pomposa, de uma qualquer expressão artística mais ou menos
reconhecida, mais ou menos canónica; por outro lado, a contra-afirmação
da sua presença vã, impotente, até ridícula num museu, que nos é dada
através dos olhos de uma criança que – como que surpreendendo um “rei que
vai nu” – vêem um falo onde o artista quis fazer ver a representação de um
corpo feminino.
Em The Hunchback (2016), filme co-realizado com Ben Rivers,
a experiência do museu transforma-se no pretexto para uma narrativa
distópica, high tech, que propõe oferecer a História como uma experiência
de imersão e role playing. O Museu do Côa como cenário para um jogo
de computador pós-fílmico situado na Idade Média? Estamos na era dos
avatares, em que nada é o que parece. As ilusões alimentam o espírito lúdico
do cinema de Abrantes, que não distingue Jack Smith dos irmãos Farrelly,
Carmello Bene de Jerry Lewis, Kenneth Anger de Michael Bay. O vulgar
auteurism 3 nasce, assim, na afirmação pomposa de uma cultura camp, que,
como observou Susan Sontag 4 , (...) vê todas as coisas entre aspas. Não é
um candeeiro, mas sim um “candeeiro”; não uma mulher, mas uma “mulher”.
A “Youth Attitude” de Abrantes leva-o do museu ao “cinema pipoca” tão
rapidamente quanto uma personagem medieval descobre como meio
de locomoção um segway. Não há regras? Elas podem existir, mas estão
todas entre aspas bem visíveis.
Apetece dizer que o cinema heteróclito, “irresponsável” e, por vezes,
primário de Abrantes não obedece a nenhum plano e que se reinventa a cada
novo filme. Mas não, existe uma constante em todos os seus filmes: uma
muito estruturada e pensada vontade de questionar e dinamitar cânones.
Cânones como regras de bem-fazer, de bom gosto e boa disciplina, mas
também como sacralizações históricas e artísticas (por exemplo, Camões
e Manet), lugares-comuns do discurso político e mediático (todos os “ismos”:
imperialismo, capitalismo, ambientalismo, etc.) ou ainda tropos cristalizados
3. Richard BRODY, “A Few Thoughts
nos discursos sociais e mediáticos (acima de tudo, a cultura da trash tv e das
on Vulgar Auteurism” in The New redes sociais).
Yorker, 17/ 06/ 2013 in http://
www.newyorker.com/culture/
O facto de Gabriel Abrantes flirtar com a baixa cultura
richard-brody/a-few-thoughts- – nomeadamente com o mais básico discurso narrativo do cinema – permitiu
-on-vulgar-auteurism [consultado
a 24/ 06/ 2016].
que o seu cinema não ficasse confinado à sala do museu, que é o mesmo
que dizer: evitou que se tornasse solitário e patético como a mulher-falo
4. Susan SONTAG, Contra a
Interpretação e Outros Ensaios,
de Brancusi. Festivais de Veneza, de Berlim, de Roterdão, de Locarno.
Gótica, Lisboa, 2004, p. 321. Em menos de 10 anos o cinema de Gabriel Abrantes passou pelos principais
Gabriel Abrantes, A Brief History of Princess X, 2016
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Herma lms and Les Films du Bélier.
© Gabriel Abrantes

pólos do cinema internacional. Mas há uma casa especial: o IndieLisboa.


Desde o seu primeiríssimo filme, Olímpia I/II, este festival de Lisboa garante
que o cinema de Gabriel Abrantes chega ao público português. A insistência
do IndieLisboa nesta aposta é significativa. Com efeito, há uma dimensão
forasteira em Abrantes que não passa apenas pelo seu percurso académico
e profissional, que se tem vindo a desenrolar algures entre os Estados Unidos
– país onde nasceu –, França e Portugal. Não é fácil de enquadrar o caso
de Gabriel Abrantes na tradição do cinema português, sobretudo se tivermos
em conta quão enraizada esta está numa ideia clássica de narrativa e de mise
en scène.
O discurso do cinema de Abrantes é, na sua base, o anti-discurso
do cinema experimental, mesmo que nos últimos anos se tenha tornado mais
frontal e autenticamente narrativo. O estrangeirismo de Abrantes
é interpelante no sentido em que nos faz questionar o lugar deste campo
aberto do avant-garde nos espaços de formação do cinema português:
do Conservatório à Cinemateca Portuguesa, passando pelos festivais e a
Internet. Perceber o lugar do cinema experimental no contexto do cinema
português passa por constatar um trabalho, muitas vezes solitário, de
resistência a uma escola estética pouco confortável com propostas formais
que estão nos antípodas de uma concepção do cinema de base clássica,
seja sob um ponto de vista estético, seja sob um ponto de vista económico,
técnico ou logístico. Abrantes é o rosto mais visível de um cinema que, como
térmite, procura abrir novos flexuosos caminhos no universo relativamente
hermético do cinema português.
Fora dos holofotes mediáticos, Sílvia das Fadas e Alexandre Alagôa
são dois dos mais brilhantes representantes deste acto de resistência: fazer
um cinema que fala outra língua. Os seus cinemas atestam esse “gestus
forasteiro” do cinema experimental em Portugal, de que Gabriel Abrantes
é apenas a “ponta do icebergue”. Sílvia das Fadas saiu de Portugal para
dar uma casa ao seu cinema que, nem de propósito, se ocupa de um íntimo
questionamento do lugar da memória no tempo e no espaço. Alexandre
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Alagôa busca novos horizontes formais em estudos de som e imagem


inspirados em obras fundamentais do cinema experimental que, tantas
vezes, descobriu no YouTube. Do mesmo modo, por entre as malhas da
cinefilia tradicional ganhou nome o trabalho de Jorge Amaro, “cinéphile
de génie”, como lhe chamou Nicole Brenez nas redes sociais no dia fatídico
do seu desaparecimento, que desempenhou um papel discreto, mas decisivo,
na sofisticação do mais inconformado gosto cinéfilo. Este padeiro da
aldeia alentejana de Lavre ganhou o estatuto de “santo” nos “clubes” mais
exclusivos dedicados à partilha de cinema experimental. Sem o seu alimento,
muitos cineastas – Stan Brakhage, Jordan Belson, Ken Jacobs, Peter
Kubelka, Michael Snow, etc. – ficariam por descobrir num país com uma
cultura ainda escassa no âmbito do cinema avant-garde. Por falar em pão,
de onde vem a fome de cineastas como Sílvia das Fadas e Alexandre Alagôa
por um alimento que não faz parte da dieta dominante do nosso cinema?
A pergunta merece uma resposta que vá à raiz do problema antes
de propiciar o estudo destes casos do cinema português.

O PROBLEMA DA VANGUARDA

O primado da mise en scène no cinema português – que tem expressão


máxima nos filmes de Manoel de Oliveira e Pedro Costa – é apoiado por
uma cultura cinéfila que exalta os grandes autores do cinema clássico e
o modo como privilegiam a posição da câmara no espaço e a sua relação
coreografada com os movimentos e gestos do actor, este que dá expressão
à sua arte interpretativa fundamentalmente enquanto presença e corpo.
Esta gramaticalidade nasce de uma linha reformadora, não revolucionária,
da tradição do grande cinema norte-americano, inextricável das grandes
lições da modernidade por Bertolt Brecht, Siegfried Kracauer, André Bazin
e Pier Paolo Pasolini.
Apoiando esta nova práxis está um habitus cinéfilo fomentado,
em Portugal, por João Bénard da Costa e pelo cinema e lições de António
Reis. Se Bénard da Costa criou uma Cinemateca que evangeliza o clássico
como potência do moderno, António Reis nunca escondeu o seu desprezo
pelo cinema avant-garde, algo que, aliás, me foi transmitido por uma das
5. Luís MENDONÇA, “Harvard
figuras de proa do Conservatório, o cineasta e professor Vítor Gonçalves.
na Gulbenkian 9: Sapinho e A embirração do mestre Reis transferiu-se para este, que é um dos seus
Dorsky ‘churching’ for the sacred”
in http://www.apaladewalsh.
alunos mais influentes, e que assume, por exemplo, não gostar dos filmes
com/2014/11/harvard-na- experimentais de Bergman, como Persona (1966), preferindo os iniciais,
-gulbenkian-9 -sapinho-e-dorsky-
-churching-for-the-sacred/
como Sommarlek (1951) 5. Nos programas lectivos predominam os grandes
[consultado a 27/ 06/ 2016]. nomes do cinema clássico norte-americano, do neo-realismo italiano
Gabriel Abrantes, A Brief History of Princess X, 2016
05/11 / O caso português: cinema experimental... / Luís Mendonça video still, S16mm to HD, 7 Mins. Produced by
Herma lms and Les Films du Bélier.
© Gabriel Abrantes

e da Nouvelle Vague. Raramente os alunos do Conservatório são expostos,


por exemplo, aos filmes do New American Cinema ou aos cineastas
experimentais da escola austríaca.
Trabalhar uma ideia de cinema experimental em Portugal parece
querer dizer trabalhar “por fora” de um sistema de valores dominante que
nos remete para a tradição francófona fundada em Roger Leenhardt
e seguida por André Bazin e os seus Cahiers du cinéma ou para o que apelido
de o problema da vanguarda no debate da modernidade cinematográfica.
No centro desse debate está uma história de inconformidades da geração
Cahiers com o cinema experimental, de vanguarda ou, muito simplesmente,
o chamado cinema puro. Para o entendimento da evolução e dos termos,
ou da evolução dos termos desta querela, importa relermos dois textos:
«Le cinéma impur» de Roger Leenhardt, pensa-se que escrito em 1935
mas que ficou por publicar até ao ano de 1986 na sua antologia de textos
Chroniques de Cinéma, e «Défense du cinéma impur» de André Bazin,
publicado em 1952 no livro Un Oeil Ouvert Sur le Monde e posteriormente
coligido em Qu’est-ce que le cinéma?.
O texto de Leenhardt debruça-se sobre o velho debate acerca da
dimensão estética vis-à-vis a natureza popular do medium. Se nos anos 20
as vanguardas artísticas procuravam afirmar o cinema como uma linguagem
artística pura, o debate reedita-se no final da década com a chegada do som.
Leenhardt posiciona-se a favor do cinema como grande arte popular ou,
o que mais tarde chamará Truffaut 6 repegando numa fórmula de Louis Delluc,
6. François TRUFFAUT,
uma “arte industrial”. Ao contrário das artes puras da pintura, da poesia e
“Le régne du cochon de payant da música, o cinema era uma “linguagem”, como lhe chama, que apela mais
est terminé” in Heni Blondet (ed.),
Arts: La culture de la provocation
ao “homem” do que ao “esteta”. O “poder imediato” do filme está nessa sua
1952-1966, Tallandier, Paris, 2013. capacidade de conciliar a elite com a massa, não de as segregar como nas
Edição Kindle.
chamadas “artes puras”. Critica, por isso, a postura “snobe” de filmes “ditos
7. Roger LEENHARDT, de avant-garde, fundados na falsa e execrável noção de “cinema puro”7.
Chroniques de cinéma, Editions
de L’Etoile com Cahiers du cinéma,
Leenhardt lança um apelo a críticos, historiadores, criadores: É preciso
Paris, 1986, p. 28. acabar definitivamente com o equívoco da imagem, do seu prestígio e da sua
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Abrantes é o rosto
mais visível de um
cinema que, como
térmite, procura
abrir novos flexuosos
caminhos no universo
relativamente
hermético do cinema primazia 8. Leenhardt visa ainda os nostálgicos do mudo e os dogmáticos do

português. primado visual e da “mística naife” do ecrã. Ao cinema não deve corresponder
uma estética, uma lei ou um cânone único. O cinema tem uma virtualidade
que poucos, até então, encontravam com a lucidez de Leenhardt: ele precisa
do seu público. É ele, e não os “fazedores de filmes”, que deve elevar o “nível
artístico” da obra. Cabe sobretudo ao espectador e ao intelectual aprender a
procurar e a encontrar num filme outra coisa que não seja entretenimento 9 .
Muito colado a Leenhardt e ao texto que escreveu mais de quinze
anos antes, Bazin desqualifica os argumentos do chamado cinema puro,
ou “cinema de arte”, que por estar inseguro de si se refugia em visões
dogmáticas do que é o cinema, elevando a Imagem – assim mesmo, com
letra maiúscula – a valor primacial, como um fim em si mesmo. Pelo
contrário, o cinema é, como a arquitectura, uma “arte funcional”, isto é,
quer-se habitável segundo as leis da sua própria evolução. Como chega
a dizer, O cinema não pode existir sem um mínimo (e esse mínimo é imenso)
de audiência imediata 10. Ou, citando Sartre, argumenta que no cinema
a existência precede a essência e que, portanto, a mudança ultrapassa
8. Roger LEENHARDT, op. Cit.,
p. 35.
a realidade e cria já um juízo de valor 11. Acrescenta, logo a seguir, visando
os puristas da Imagem, como os chamaria Leenhardt: É o que não quiseram
9. Roger LEENHARDT, op. Cit., p. 29.
admitir os que amaldiçoaram o cinema sonoro na origem, quando ele já
10. André BAZIN, O que é o possuía sobre a arte muda a incomparável vantagem de a substituir 12.
Cinema?, Livros Horizonte, Lisboa,
1992, p. 110.
Os elogios que Bazin faz ao contexto tecnológico do cinema,
à genialidade inata a um sistema como era Hollywood e a toda esta ideia
11. André BAZIN, op. Cit., p.113.
do cinema como uma forma porosa de escrita, concorrem para o seu
12. Cf, idem, ibidem. desinteresse pelo cinema de vanguarda ou pelos, apelidados por si
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de modo pejorativo, “filmes de arte”. A sua tentativa explícita – dir-se-ia,


explicitamente ideológica – de exaltar a dimensão popular e minimamente
narrativa do cinema merecerá o apoio da globalidade da redacção dos
Cahiers du cinéma. Como escrevia Rohmer em 1979, na sua crítica a Le petit
théatre de Jean Renoir (1970), todo o cinema é impuro a partir do momento em
que conta uma história 13. O mesmo Rohmer afirmava em 1960: Tal como Bazin,
eu penso que a ficção sempre foi, e será, o caminho preferido do cinema e que
os mais belos documentários, como os de Flaherty, são capazes de permitir
– se não pequenas histórias – pelo menos algum drama 14 .
Seja em Hollywood, seja na Itália do pós-guerra, Bazin encontrava
um esforço de ficcionalização: máximo na terra dos sonhos, mínimo na
terra dos sonhos em ruínas. Quando deixada a esse “mínimo”, a realidade
tomava a dianteira e assumia os modos de se fazer história. Para Bazin, a
vanguarda, enquanto promoção de um estetismo alheado da concretude do
real, funcionava como uma prisão para o cinema, talvez não na sua qualidade
de Sétima Arte, mas seguramente enquanto função social ou culturalmente
determinada. Nicole Brenez escalpeliza o conceito de avant-garde no seu
livro Cinémas d’avant-garde, associando às obras e autores que invoca
uma forma muito consciente de intervenção estética e política no mundo.
Escreve: Para as vanguardas do século XX, a arte verdadeira é forçosamente
inapropriável, incompatível com um mercado, revoltada contra a sua própria
fetichização, irredutível a uma prática disciplinada, em insurreição e desvio
permanentes 15. Numa palavra, o permanente estado de provocação e de
ruptura dos movimentos vanguardistas do cinema era pouco compaginável
com o espírito conservador, reformador ou puramente cinéfilo de Bazin e dos
seus cine-filhos.

SER E FAZER NO CAMPO DA EXCEPÇÃO

Sílvia das Fadas, Alexandre Alagôa e Jorge Amaro são exemplos de como
a cultura de cinema experimental em Portugal não impede que se encontre
na história plural do avant-garde, formada por uma plêiade de cineastas
e desafiantes propostas estéticas, uma casa para a sua expressão cinéfila
13. Éric ROHMER, The Taste e artística.
for Beauty, Cambridge University
Press, Cambridge, 1989, p.194.
Alexandre Alagôa é um jovem estudante, em vias de concluir
o mestrado de Arte Multimédia da Faculdade de Belas Artes em Lisboa.
14. Éric ROHMER, op. Cit., p.116.
Assinou, até agora, três obras que revelam um interesse consistente pela
15. Nicole BRENEZ, Cinémas linguagem do cinema de vanguarda. Spectrum (2013-2014) e Cocoon (2014
d’avant-garde, Cahiers du cinéma
com Scérén-CNDP, Farigliano,
-2015) são filmes de quadro único que trabalham, num tempo vertical, uma
2006, pp.54-55 ideia inquietante de “forma disforme”. Estudos de Espaço (2015-) é uma
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série de filmes em construção baseada numa elaborada coreografia de


câmara que tem como fito o esgotamento do espaço do hall de entrada de
um apartamento. A câmara desenha eixos sucessivos que vão preenchendo,
estudo após estudo, o espaço finito do filme, leia-se, o espaço finito do
apartamento. A vertigem deste(s) filme(s) de still frames reside neste gesto
de insinuar um movimento tendencialmente infinito num espaço físico tão
confinado quanto exíguo. Como diz Valéry, a forma faz orgânica a ideia 16.
A variação coreográfica de uma ideia simples aproxima o cinema de Alagôa
dos mais importantes exemplares do cinema estrutural 17.
À entrada da Cinemateca Portuguesa, local onde gravei a nossa
conversa, Alexandre Alagôa espreitou os painéis com as fotografias dos
filmes e cineastas homenageados na programação desse mês. Lá, não
encontrou nenhuma das suas principais referências. Takashi Ito, Michael
Snow, Ernie Gehr, Martin Arnold e Toshio Matsumoto são os cineastas
responsáveis pelo “desvio” que empreendeu no primeiro ano da faculdade:
da admiração unívoca pelo cinema tradicional de Hollywood para um cinema
de mais forte dimensão conceptual. A descoberta do cinema experimental
aconteceu nas salas de aula. Mas tão importante quanto a faculdade foi
aquela que tem sido, para si, uma segunda escola: a Internet. Bastou essa
pequena faísca para ser levado a uma escavação intensiva, procurando ler
tudo sobre todos os cineastas de que gostava nem sempre sabendo
ao certo porquê. Cada Estudo de Espaço é publicado no YouTube 18, porque
lhe interessa mostrar o traço evolutivo e expô-lo, abertamente, à partilha
de impressões com o utilizador/espectador.
Se hoje em dia é fácil encontrar em poucos segundos algumas das
obras mais relevantes do cinema experimental, há poucos anos só certos
fóruns especializados ofereciam o acesso a este género de filmes. Nessa
história – ainda por fazer – da cinefilia digital alternativa, há um nome que
sobressai: o de Jorge Amaro. Como já referi, este jovem padeiro teve uma
16. Paul VALÉRY, Cuadernos
existência virtual sob o pseudónimo Fitz que ganhou fama mundial. No seu
(1894-1945), Galáxia Gutenberg/ perfil do fórum de partilha de filmes Karagarga, pode-se constatar que este
Círculo de Lectores, Barcelona,
2007, p.357.
“santo” do cinema underground terá disponibilizado perto de 200 raridades,
um arquivo valiosíssimo que abrange todos os momentos capitais da história
17. P. Adams SITNEY, “Structural
Film” in P. Adams Sitney (ed.),
do cinema experimental: de Hans Richter e Germaine Dulac a Ken Jacobs
Film Culture Reader, Cooper e Peter Tscherkassky. Um dado significativo: apenas por uma vez pôs em
Square Press, Nova Iorque, 2000,
pp.326-249.
partilha um filme português, O Jardim (2005) de Vasco Araújo.
A crítica de cinema e artista visual Sabrina D. Marques conviveu de
18. Os filmes de Alexandre
Alagôa podem ser vistos
perto com Jorge Amaro, mas, como tanta gente, nunca o chegou a conhecer
– e seguidos – em: https:// fora do online: Em primeiro lugar, aquilo que o movia era partilhar o amor que
www.youtube.com/channel/
UCLu92YqbNev3akgMy7pcK0Q/
ele próprio sentia por este cinema. Ele tinha um verdadeiro entusiasmo em dar
videos a ver e a descobrir coisas como um arqueólogo. As coisas raras, menos vistas,
Alexandra Alagôa, Estudo de Espaço.
09/11 / O caso português: cinema experimental... / Luís Mendonça © Alexandra Alagôa.

mais difíceis de arranjar. Ele guardava-as e arquivava-as. É importante pensar


o Jorge como, ao mesmo tempo, um passador e um arquivador 19 . Se Alexandre
Alagôa fala de uma inclinação muito sua para o isolamento – quebrada pela
escola e, acima de tudo, pela interacção online –, o caso de Jorge Amaro
é mais um exemplo da condição forasteira de quem alimenta e se alimenta
de cinema experimental. Quando estava no liceu, metiam-se com o Jorge por
ele só gostar de Brakhages e isso. As pessoas não percebiam o gosto dele.
Apesar de vítima dessa incompreensão local, Jorge Amaro desempenhou
um papel importante na formação do olhar de uma cinefilia que desejava
transcender os seus hábitos perceptivos 20. Não é fácil de precisar o impacto
que o seu trabalho, de arqueologia, arquivo e divulgação, teve – e continua
a ter – na afirmação do cinema experimental.
Jorge Amaro e Alexandre Alagôa são exemplos de uma cinefilia
formada no digital. Muito diferente é o caso de Sílvia das Fadas, para quem
o cinema é uma experiência do toque. O manejamento da película, suporte
frágil, perecível e imprevisível, é tão importante para si como a descoberta
dos seus cineasta(s) de eleição na sala escura, em sessões que respeitam
as condições originais de projecção de cada obra. É preciso resistir
– e desconfiar – da facilidade de acesso aos filmes em plataformas como
19. A entrevista a Sabrina
D. Marques aqui citada foi
YouTube ou Vimeo, que tantas vezes exibem os filmes com má qualidade
realizada por Skype no dia 22 de imagem ou em montagens truncadas que desfazem a possibilidade de
de Junho de 2016.
contemplação em benefício da imediatez. Seria impensável ver um Michael
20. Nicole BRENEZ, op. Cit., p.45. Snow no YouTube. Não é a minha forma de me relacionar com o cinema.
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Para mim, é muito importante ver filmes com outras pessoas, na sala de
cinema. Essa experiência é insubstituível. Claro que por motivos de trabalho
tenho de ver filmes dessa forma. Mas sei que são substitutos 21.
Apesar de se assumir como uma apreciadora do cinema português,
foi emigrando para a Califórnia e depois para Viena que conseguiu
desenvolver a sua linguagem. Diagnostica: em Portugal ainda há muito por
fazer no sentido de se mostrar e ensinar cinema experimental. Há algo que
falha também ao nível da produção, mas há sempre pessoas a resistir e a fazer
cinema de forma singular, sem recorrer ao ICA e aos avultados apoios para
cinema. (...) Essas estruturas não abarcam um outro tipo de cinema, que não
precisa de grandes equipas, produtoras, distribuidoras, nem de tanto dinheiro.
A excepção tem sido a Fundação Calouste Gulbenkian, que tem prestado um
apoio importante a cineastas como Sílvia das Fadas. Em dois dos principais
pólos do cinema experimental, a CalArts na Califórnia e à data na Academia
de Belas-Artes de Viena, encontrou o contexto certo para desenvolver um
cinema atravessado pela ideia de memória como lugar do íntimo. De um
dos seus primeiros filmes, Imorredoira (2008), a Square Dance, Los Angeles
County, California, 2013 (2013), filme seleccionado para o IndieLisboa 2014,
encontro a mesma atracção – diria quase animista – por objectos que
convocam memórias, vivências e texturas – vivências e memórias como
texturas. O trabalho “físico e material” com a película não é um pormenor
neste processo; é, na realidade, um elemento estruturante.
O que muda desde o filme de escola realizado em Portugal, numa
casa povoada de objectos com memória, até ao filme produzido nos Estados
Unidos que procura acender a potência narrativa das fotografias da Grande
Depressão de Russell Lee? Desde logo, o interesse em juntar o trabalho
háptico sobre a imagem a um trabalho háptico sobre o som. Tudo em película,
sempre. Foi muito importante para mim ter a possibilidade de montar o som de
forma analógica. Interessava-me poder trabalhar o som e a imagem na mesa
de montagem, em película e fita magnética, e a CalArts foi o sítio justo para
fazer esta aprendizagem. Em Viena, cidade de alguns monstros do cinema
experimental, tais como os já citados Martin Arnold e Peter Tscherkassky,
Sílvia das Fadas encontrou o melhor lugar para fazer e ver cinema, inclusive
aquele que mais directamente a interpela. No Austrian Film Museum, quase
todos os dias encontro filmes que quero ver. Tanto a programação como
o acesso aos arquivos pesaram muito na minha decisão de vir para Viena.
Há poucos sítios assim. Não iria para Paris, não iria para Berlim. Em termos
de cultura cinematográfica, esta é uma cidade muito interessante. Ainda há
imensos cinemas de bairro que mostram cinema contemporâneo europeu,
21. A entrevista a Sílvia das Fadas
aqui citada foi realizada por Skype
americano, e de outras partes do mundo, e não só cinema comercial.
no dia 17 de Junho de 2016. Há também a Viennale, a Schule Friedl Kubelka, a Filmkoop...
Sílvia das Fadas, Square Dance, Los Angeles County,
11/11 / O caso português: cinema experimental... / Luís Mendonça California, 2013.
© Sílvia das Fadas.

Não sei ao certo se este “estrangeirismo” é causa ou consequência


de se “ser e fazer” no campo do cinema experimental. Todavia, a falta de
referenciais neste domínio em Portugal só vem acentuar o isolamento destas
propostas de “cinema puro”. A tendência do cineasta experimental ser
puxado para fora das instituições, que por norma não têm estruturas e até
cultura para a formação de um “olhar outro”, traduz-se tanto na emigração
para o online como para países receptivos a este tipo de linguagem. Gabriel
Abrantes, Alexandre Alagôa, Jorge Amaro e Sílvia das Fadas são alguns
desses “forasteiros” que vão abrindo horizontes, trazendo até nós novas

·
maneiras de ver e fazer cinema.

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