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O Caso Português: Cinema Experimental, Esse Estrangeiro RE - VIS - TA Arte / Reflexão / Crítica 11. 2016 - N.o2
O Caso Português: Cinema Experimental, Esse Estrangeiro RE - VIS - TA Arte / Reflexão / Crítica 11. 2016 - N.o2
01/11 / O caso português: cinema experimental... / Luís Mendonça arte / reflexão / crítica
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é séria
LUÍS MENDONÇA
Não será por acaso que na obra de Gabriel Abrantes o museu aparece como
um décor privilegiado. Abrantes entra no cinema pela porta das artes visuais
e performáticas, principalmente com o seu filme, co-realizado por Benjamin
Crotty, Olympia I/II (2006). A proposta de actualizar numa reencenação cheap
do famoso quadro de Manet os clichés do discurso contemporâneo fez deste
filme um objecto dúbio, na fronteira entre o cinema e a vídeo-arte.
O travestismo do próprio Abrantes enquanto Olympia é parte de
uma atitude geral que será estruturante na obra do realizador e que assenta
raízes no que Parker Tyler, no livro Underground Film, definiu como “Youth
Attitude”. Para Tyler, o cinema experimental norte-americano dos anos 60
está imbuído de um espírito jovial que rompe com o avant-garde precedente,
maioritariamente associado ao surrealismo (Buñuel, Dali, Cocteau e Maya
Deren). Caracterizado como sendo extático, eufórico, universalmente
tolerante e bufão, a vanguarda, defende Tyler 1, passou do horror e da tragédia
para o êxtase e a felicidade. Os temas predominantes são o infantilismo
e a comédia do homem-criança 2. Em Visionary Iraq (2006), o realizador
luso-americano escolhe uma galeria de arte como cenário para um
“dramalhão” – paratelevisivo – que envolve uma relação incestuosa
no seio familiar e o desejo partilhado pelos irmãos enamorados de irem para
o Iraque espalhar a democracia. Abrantes interpreta – apetece dizer antes
que Abrantes se mascara de – a irmã e o pai desta família, no que é apenas
um dos vários jogos de papéis que alimentam – de gozo, ironia, sardónia
– este cinema infantilizado de museu.
A Brief History of Princess X (2016) é paradigmático dessa relação
1. Parker TYLER, Underground
jocosa que Abrantes vai instituir no seu cinema, convocando elementos
Film, Da Capo Press, Nova Iorque, que compõem e decompõem o seu próprio “status artístico”. O narrador – o
1995, p. 99.
próprio Abrantes – conta como a famosa escultura da autoria de Constantin
2. Parker TYLER, op. Cit., p. 100. Brancusi que procurava representar a imagem de Marie Bonaparte foi objecto
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02/11 / O caso português: cinema experimental... / Luís Mendonça arte / reflexão / crítica
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O PROBLEMA DA VANGUARDA
Abrantes é o rosto
mais visível de um
cinema que, como
térmite, procura
abrir novos flexuosos
caminhos no universo
relativamente
hermético do cinema primazia 8. Leenhardt visa ainda os nostálgicos do mudo e os dogmáticos do
português. primado visual e da “mística naife” do ecrã. Ao cinema não deve corresponder
uma estética, uma lei ou um cânone único. O cinema tem uma virtualidade
que poucos, até então, encontravam com a lucidez de Leenhardt: ele precisa
do seu público. É ele, e não os “fazedores de filmes”, que deve elevar o “nível
artístico” da obra. Cabe sobretudo ao espectador e ao intelectual aprender a
procurar e a encontrar num filme outra coisa que não seja entretenimento 9 .
Muito colado a Leenhardt e ao texto que escreveu mais de quinze
anos antes, Bazin desqualifica os argumentos do chamado cinema puro,
ou “cinema de arte”, que por estar inseguro de si se refugia em visões
dogmáticas do que é o cinema, elevando a Imagem – assim mesmo, com
letra maiúscula – a valor primacial, como um fim em si mesmo. Pelo
contrário, o cinema é, como a arquitectura, uma “arte funcional”, isto é,
quer-se habitável segundo as leis da sua própria evolução. Como chega
a dizer, O cinema não pode existir sem um mínimo (e esse mínimo é imenso)
de audiência imediata 10. Ou, citando Sartre, argumenta que no cinema
a existência precede a essência e que, portanto, a mudança ultrapassa
8. Roger LEENHARDT, op. Cit.,
p. 35.
a realidade e cria já um juízo de valor 11. Acrescenta, logo a seguir, visando
os puristas da Imagem, como os chamaria Leenhardt: É o que não quiseram
9. Roger LEENHARDT, op. Cit., p. 29.
admitir os que amaldiçoaram o cinema sonoro na origem, quando ele já
10. André BAZIN, O que é o possuía sobre a arte muda a incomparável vantagem de a substituir 12.
Cinema?, Livros Horizonte, Lisboa,
1992, p. 110.
Os elogios que Bazin faz ao contexto tecnológico do cinema,
à genialidade inata a um sistema como era Hollywood e a toda esta ideia
11. André BAZIN, op. Cit., p.113.
do cinema como uma forma porosa de escrita, concorrem para o seu
12. Cf, idem, ibidem. desinteresse pelo cinema de vanguarda ou pelos, apelidados por si
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07/11 / O caso português: cinema experimental... / Luís Mendonça arte / reflexão / crítica
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Sílvia das Fadas, Alexandre Alagôa e Jorge Amaro são exemplos de como
a cultura de cinema experimental em Portugal não impede que se encontre
na história plural do avant-garde, formada por uma plêiade de cineastas
e desafiantes propostas estéticas, uma casa para a sua expressão cinéfila
13. Éric ROHMER, The Taste e artística.
for Beauty, Cambridge University
Press, Cambridge, 1989, p.194.
Alexandre Alagôa é um jovem estudante, em vias de concluir
o mestrado de Arte Multimédia da Faculdade de Belas Artes em Lisboa.
14. Éric ROHMER, op. Cit., p.116.
Assinou, até agora, três obras que revelam um interesse consistente pela
15. Nicole BRENEZ, Cinémas linguagem do cinema de vanguarda. Spectrum (2013-2014) e Cocoon (2014
d’avant-garde, Cahiers du cinéma
com Scérén-CNDP, Farigliano,
-2015) são filmes de quadro único que trabalham, num tempo vertical, uma
2006, pp.54-55 ideia inquietante de “forma disforme”. Estudos de Espaço (2015-) é uma
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08/11 / O caso português: cinema experimental... / Luís Mendonça arte / reflexão / crítica
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Para mim, é muito importante ver filmes com outras pessoas, na sala de
cinema. Essa experiência é insubstituível. Claro que por motivos de trabalho
tenho de ver filmes dessa forma. Mas sei que são substitutos 21.
Apesar de se assumir como uma apreciadora do cinema português,
foi emigrando para a Califórnia e depois para Viena que conseguiu
desenvolver a sua linguagem. Diagnostica: em Portugal ainda há muito por
fazer no sentido de se mostrar e ensinar cinema experimental. Há algo que
falha também ao nível da produção, mas há sempre pessoas a resistir e a fazer
cinema de forma singular, sem recorrer ao ICA e aos avultados apoios para
cinema. (...) Essas estruturas não abarcam um outro tipo de cinema, que não
precisa de grandes equipas, produtoras, distribuidoras, nem de tanto dinheiro.
A excepção tem sido a Fundação Calouste Gulbenkian, que tem prestado um
apoio importante a cineastas como Sílvia das Fadas. Em dois dos principais
pólos do cinema experimental, a CalArts na Califórnia e à data na Academia
de Belas-Artes de Viena, encontrou o contexto certo para desenvolver um
cinema atravessado pela ideia de memória como lugar do íntimo. De um
dos seus primeiros filmes, Imorredoira (2008), a Square Dance, Los Angeles
County, California, 2013 (2013), filme seleccionado para o IndieLisboa 2014,
encontro a mesma atracção – diria quase animista – por objectos que
convocam memórias, vivências e texturas – vivências e memórias como
texturas. O trabalho “físico e material” com a película não é um pormenor
neste processo; é, na realidade, um elemento estruturante.
O que muda desde o filme de escola realizado em Portugal, numa
casa povoada de objectos com memória, até ao filme produzido nos Estados
Unidos que procura acender a potência narrativa das fotografias da Grande
Depressão de Russell Lee? Desde logo, o interesse em juntar o trabalho
háptico sobre a imagem a um trabalho háptico sobre o som. Tudo em película,
sempre. Foi muito importante para mim ter a possibilidade de montar o som de
forma analógica. Interessava-me poder trabalhar o som e a imagem na mesa
de montagem, em película e fita magnética, e a CalArts foi o sítio justo para
fazer esta aprendizagem. Em Viena, cidade de alguns monstros do cinema
experimental, tais como os já citados Martin Arnold e Peter Tscherkassky,
Sílvia das Fadas encontrou o melhor lugar para fazer e ver cinema, inclusive
aquele que mais directamente a interpela. No Austrian Film Museum, quase
todos os dias encontro filmes que quero ver. Tanto a programação como
o acesso aos arquivos pesaram muito na minha decisão de vir para Viena.
Há poucos sítios assim. Não iria para Paris, não iria para Berlim. Em termos
de cultura cinematográfica, esta é uma cidade muito interessante. Ainda há
imensos cinemas de bairro que mostram cinema contemporâneo europeu,
21. A entrevista a Sílvia das Fadas
aqui citada foi realizada por Skype
americano, e de outras partes do mundo, e não só cinema comercial.
no dia 17 de Junho de 2016. Há também a Viennale, a Schule Friedl Kubelka, a Filmkoop...
Sílvia das Fadas, Square Dance, Los Angeles County,
11/11 / O caso português: cinema experimental... / Luís Mendonça California, 2013.
© Sílvia das Fadas.
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maneiras de ver e fazer cinema.