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TÓPICOS ESPECIAIS

LINGUAGENS E CULTURA
Profª Dra. Ramayana Lira
Isadora Muniz Vieira

SHOHAT, Ella; STAM, Robert. Do Eurocentrismo ao policentrismo. In _______. Crítica da imagem


eurocêntrica. São Paulo: Cosac Naify, 2006.

Publicado originalmente em 1994, o livro “Crítica da imagem eurocêntrica: multiculturalismo


e representação” chegou ao Brasil em 2006 através da edição da extinta Cosacnaify. O livro perpassa
por questões centrais para a crítica do eurocentrismo na esfera das representações. Ou melhor: não
apenas propõe o deslocamento do foco epistemológico do continente europeu, mas distribuí-lo de
maneira diversa a fim de evitar a formação de centros únicos de poder, saber e ser.
Os autores da obra possuem uma trajetória pessoal e intelectual que em certa medida se
relaciona com com suas reflexões. Ella Shohat é o que podemos chamar de sujeito diaspórico: nascida
no Iraque em 1959, reside em Nova Iorque e leciona nos departamentos de Arte e Políticas Públicas e
Estudos Islâmicos e do Oriente Médio na New York University. Além de suas pesquisas sobre
representações, também se dedica ao estudo do feminismo num viés multicultural, sem contudo se
prender a essencialismos identitários em sua defesa de um feminismo plural. Já Robert Stam nasceu
nos Estados Unidos da América, mas recusa-se a se identificar como americano. Em entrevista
concedida à Globo Universidade, afirmou ser antisegregacionista. Seus estudos estão voltados ao
cinema, também numa perspectiva multicultural. Da mesma forma que Shohat, Stam também transitou
por diferentes espaços, tendo lecionado na Tunísia, na França e no Brasil. Atualmente também é
docente na New York University.
No capítulo específico a ser discutido em aula, “Do eurocentrismo ao policentrismo”, Shohat e
Stam deixam evidente no título a defesa de um deslocamento das representações da Europa para
diversos lugares do mundo. Aqui o policentrismo sugere a possibilidade de criação de diferentes
representações em países de Primeiro, Segundo e Terceiro Mundo. Para tanto, é feita uma reflexão
introdutória que objetiva desmistificar o ocidente e entendê-lo como um conceito arbitrário que, tal
qual o conceito de oriente, é uma das faces do mesmo signo colonial. Ao separarmos o mundo em duas
categorias distintas de ocidente e oriente, ignoramos os processos históricos pelos quais passaram todos
os continentes em suas formações complexas e enfatizamos aspectos essencialistas e imaginários
acerca de dois conceitos criados para designar aspectos culturais e localizações geográficas, mas que
são insuficientes para demonstrar o hibridismo do mundo.
Assim, o eurocentrismo é intrínseco ao mito do ocidente. No caso do eurocentrismo
contemporâneo, segundo os autores, ele é um resíduo do colonialismo iniciado no século XV. Aqui os
autores tomam o cuidado de diferenciar o processo de colonização iniciado no século XI do
colonialismo. O primeiro é entendido como a conquista e a anexação de territórios – a colonização
europeia possui o diferencial de ter se caracterizado como um processo imperativo que objetivava não
somente a conquista de territórios, mas a tentativa de submeter o mundo colonizado a um regime
universal de verdade e poder – e o segundo é compreendido como o etnocentrismo em sua forma
institucional, armada e globalizada. Nesse sentido, apesar do fim do controle colonial na sua forma
direta, a maior parte do mundo continua submisso ao ocidente a partir de novas formas de dominação,
principalmente de natureza cultural e econômica. Eis o neocolonialismo. Nesse momento do texto, os
autores fazem referência à Teoria da Dependência, reconhecendo suas limitações, mas entendendo que
ela também é importante para os estudos dedicados a compreender a relação de dominação e submissão
que envolvem Primeiro, Segundo e Terceiro Mundo.
Segundo os autores, a prática colonialista é uma prática discursiva. Ancorados na perspectiva
foucaultiana, os autores consideram a existência “regimes de verdade” que optam por excluir certas
visões de mundo e formas de representação. Assim, um discurso colonial é tanto produto histórico das
instituições coloniais quanto um aparato linguístico e ideológico que justifica práticas de exclusão. É na
sequência dessa reflexão que Shohat e Stam iniciam a discussão sobre raça e racismo, visto que este
último é um aliado e um produto parcial do colonialismo. Nesse momento do texto que, em diálogo
com teóricos como Paul Gilroy e Frantz Fanon, os autores destrincham o discurso racista em suas
diversas facetas, seja na sua forma mais escancarada ou na sua forma de “falso elogio”, relacionando-o
como inerente ao discurso do colonialismo.
Outro ponto pertinente para a discussão do descentramento proposto pelos autores é a respeito
do conceito de Terceiro Mundo e os problemas que ele carrega. Shohat e Stam entendem que embora o
conceito tenha surgido de uma concepção positivista que divide as nações como “atrasadas”,
“subdesenvolvidas” ou “evoluídas”, o termo é importante porque ajuda na tentativa de compor “nações
e ‘minorias’ colonizadas, neocolonizadas ou descolonizadas cujas desvantagens estruturais foram
formadas pelo processo colonial e por uma divisão internacional do trabalho injusta”. (pág. 55) Penso
que a discussão a respeito da Teoria do Desenvolvimento poderia ter sido feita junto com a discussão
sobre o conceito de Terceiro Mundo, mas é apenas uma crítica em relação à construção do texto e não a
respeito das escolhas conceituais dos autores. De qualquer forma, o conceito é historicizado,
problematizado e entendido como pertinente, ainda que seja impossível dividir o mundo em três partes.
De acordo com os autores, o Terceiro Mundo está portanto relacionado com uma prolongada
dominação estrutural e não com categorias econômicas, raciais ou geográficas. A obra de Shohat e
Stam está situada num contexto em que o Terceiro Mundo testemunhava lutas anticoloniais e
revolucionárias ao mesmo tempo que as esquerdas foram impactadas pela queda do comunismo e pelo
adiamento de uma “revolução tricontinental” que unisse os movimentos progressistas de todas as partes
do mundo. Penso que uma questão a ser colocada para a turma poderia ser: que tipo de conflitos e
dilemas o dito Terceiro Mundo do século XXI enfrenta e em que medida eles se assemelham ou se
diferenciam das questões do final do século XX?
Na sequência é feita uma discussão sobre a produção cinematográfica do Terceiro Mundo em
termos geográficos, estéticos e políticos. Os autores usam exemplos de diferentes produções e
diretores, inclusive o Cinema Novo no Brasil, mas enfatizam a produção numerosa de países como a
Índia, Paquistão, Coréia do Sul, Tailândia, etc., contrastando com a predominância do
hollywoodianismo e aos fatores econômicos e políticos que contribuem para a difícil difusão do cinema
terceiromundista. No entanto, são categóricos ao afirmar que o cinema do Terceiro Mundo não deve ser
reduzido à mera cópia do cinema produzido nos Estados Unidos, tampouco à mera oposição completa
da linguagem de Hollywood. Como teóricos multiculturalistas que são, os autores propoem uma
multiculturalização dos currículos de cinema ao redor do mundo. Outra questão a ser debatida poderia
ser: no século XXI é possível pensar num cinema do Terceiro Mundo começando a adentrar no
circuito do cinema do Primeiro Mundo? Vale lembrar que o vencedor do Oscar nas categorias
“melhor filme” e “melhor filme estrangeiro” de 2020 foi a produção sul-coreana “Parasita”, o que
causou uma série de debates, inclusive sugestões de que a categoria de filme estrangeiro deveria ser
extinta.
No texto é feita também uma discussão a respeito dos meios de comunicação do chamado
Quarto Mundo, referente às diversas produções midiáticas de povos “nativos”, “tribais” e “originários”
cujo objetivo é criar uma autorepresentação e participação ativa em todas as fases de produção, em
resposta às representações feitas durante muito tempo pela mídia do Primeiro Mundo, principalmente a
partir de filmes etnográficos e documentários. Evidentemente que a produção de uma mídia indígena
não é considerada a solução das questões de violência e segregação que esses povos sofrem, mas,
segundo os autores, contribuem para romper com hierarquias do tipo
cientista/antropólogo/cineasta/objeto de estudo.
Por fim, vale enfatizar uma discussão importante propostas pos /shohat e Stam a respeito do
conceito de “pós-colonial”, largamente problematizado pelos autores. O prefixo “pós” aqui é debatido
tanto em termos de superação de discursos obsoletos quanto em termos de avanço cronológico: o pós-
colonial se pretende como um avanço intelectual frente aos estudos coloniais e se pretende ancorado
num contexto histórico em que o colonialismo teria sido superado. Shohat e Stam são portanto críticos
não somente a essa terminologia mas a tudo que ela pretende em questões filosóficas e históricas. Além
disso, para os autores, o termo pós-colonial apaga particularidades da experiência colonial e inibe
aspectos importantes das permanências da dominação, além de tratar da questão do hibridismo com
certa ingenuidade, celebrando os processos de sincretismo sem atentar ao fato que ele é fruto da
violência religiosa, por exemplo.
Por fim, Shohat e Stam fazem uma defesa do multiculturalismo, defendendo-o de críticas que
o consideram como mera tolerância e coexistência de diversas culturas utilizada inclusive para fins
comerciais ou ideológicos, não questionando a hegemonia da epistemologia eurocêntrica. Os autores
reconhecem que o conceito é polissêmico e que pode ser interpretado de diversas maneiras por
diferentes grupos intelectuais e políticos, mas enfatizam que ele não possui essência e possibilita um
debate sempre relacionado às questões de raça e colonialismo. A última questão a ser debatida com a
turma seria: o que os colegas pensam a respeito do multiculturalismo? O que leram/ouviram a
respeito em termos de críticas e defesas desse conceito?

http://redeglobo.globo.com/globouniversidade/noticia/2012/02/entrevista-robert-stam-fala-
sobre-sua-trajetoria-nos-estudos-do-cinema.html

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