Você está na página 1de 241

Livro didático de

História
do Direito
brasileiro

CELSO PÉRICLES FONSECA THOMPSON


NATALIA PEIXOTO BRAVO DE SOUZA
ANTONIO HENRIQUE DE CASTILHO GOMES
PAULO JORGE DOS SANTOS FLEURY
EDUARDO FERRAZ FELIPPE
MARCELO MACHADO COSTA LIMA
ORGANIZAÇÃO

SOLANGE FERREIRA DE MOURA


1ª edição
SESES
rio de janeiro  2014
Comitê editorial externo  antônio henrique de castilho gomes, celso péricles fonseca thompson
e edir figueiredo de oliveira teixeira de mello

Comitê editorial interno  marcelo machado costa lima, paulo jorge dos santos fleury e solange
ferreira de moura

Organizador do livro  solange ferreira de moura

Autores dos originais  celso péricles fonseca thompson (capítulo 1), natalia peixoto bravo de
souza (capítulos 2 e 3), antonio henrique de castilho gomes (capítulos 4 e 5), paulo jorge dos
santos fleury (capítulo 6), eduardo ferraz felippe (capítulos 7 e 8), marcelo machado costa
lima (capítulos 9 e 10)

Projeto editorial  roberto paes

Coordenação de produção  rodrigo azevedo de oliveira

Projeto gráfico  paulo vitor fernandes bastos

Diagramação  eduardo trindade de araújo , paulo vitor fernandes bastos e victor maia

Supervisão de revisão  aderbal torres bezerra

Redação final e desenho didático  jarcélen ribeiro, maria carmem paula freitas, monica veiga e
raphaela novaes de moraes

Revisão linguística  michele paiva, monica veiga e jarcélen ribeiro

Capa  thiago lopes amaral

Todos os direitos reservados. Nenhuma parte desta obra pode ser reproduzida ou transmitida por quais-
quer meios (eletrônico ou mecânico, incluindo fotocópia e gravação) ou arquivada em qualquer sistema ou
banco de dados sem permissão escrita da Editora. Copyright seses, 2014.

Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (cip)

L784 Livro didático de História do Direito brasileiro


Solange Ferreira de Moura [organizador].
— Rio de Janeiro: Editora Universidade Estácio de Sá, 2014.
240 p

isbn: 978-85-60923-19-9

1. Direito. 2. História. 3. Brasil. I. Título.

cdd 340.9

Diretoria de Ensino – Fábrica de Conhecimento


Rua do Bispo, 83, bloco F, Campus João Uchôa
Rio Comprido – Rio de Janeiro – rj – cep 20261-063
Sumário

Prefácio 7

1. Com quantas naus se faz um país? 9

A chegada dos portugueses 10


Administração Colonial – Capitanias hereditárias 18
Capitanias hereditárias 18
A criação do governo-geral 21
A escravidão e a economia colonial 24
A agromanufatura açucareira 24
Mineração — A Era do Ouro 28

2. Liberdade, liberdade, abre as asas sobre nós


— o processo de independência 35

O Império português em tempos de crise 36


As conjurações mineira e baiana (1789-1798) 38
A transferência da Corte portuguesa para as Américas,
ou o início do processo de “interiorização da metrópole”. 44
A Revolução do Porto e a emancipação da América portuguesa 48

3. “Sois reis! Sois reis!” A construção do Brasil imperial 57

De Reino Unido a Império do Brasil 58


A Constituição de 1824 e suas repercussões 65
A crise do Primeiro Reinado 69
O Segundo Reinado 70
O regresso conservador e a antecipação da maioridade de D. Pedro 76
Crise e fim do Império do Brasil (1870-1889) 82

4. Ordem Unida: sentido! República Militar 87

A República Militar 88
O Governo Provisório 89
O Código Penal de 1890 93
O novo governo de Deodoro da Fonseca 93
De fevereiro de 1891 a novembro de 1891 93
O governo do Marechal Floriano Peixoto 95
A Primeira Constituição Republicana 97

5. Café ou leite? 103

O Café com leite: a política na República Oligárquica 104


Movimentos Sociais 108
Movimentos rurais 108
As revoltas urbanas 111
Economia cafeeira e primeiras indústrias 115
O Código Civil de 1916 119
O movimento operário 120
A Semana de Arte Moderna 122
O Tenentismo 124
A crise da Oligarquia 125

6. Terra em transe — A Era Vargas 131

“Façamos a revolução antes que o povo a faça” 132


Os anos 1920: permanências, tensões e expectativas 132
Da vitória do candidato oficial ao movimento revolucionário 134
O período do Governo Provisório - de 1930 a 1934 137
O período do Governo Constitucional de 1934 a 1937 143
O período da Ditadura do Estado Novo (de 1937 a 1945) e a Constituição de 1937 147
A questão federativa e o Estado Novo 148
O Departamento de Imprensa e Propaganda e a nova
institucionalidade social e trabalhista do Estado brasileiro 149
Vargas, o “protetor dos trabalhadores”, o “pai dos pobres” 149
Da continuidade da configuração da institucionalidade social e
trabalhista no Estado Novo, iniciada no período do Governo Provisório. 150
O enfraquecimento e a derrocada do Estado Novo 151
Uma digressão importante - o papel do exército no período de 1930 a 1945 151

7. A entrada é uma rua antiga estreita e torta:


da Democracia à Ditadura 159

A Constituição Democrática de 1946 160


Principais características da Constituição de 1946 160
O Segundo Governo de Getúlio Vargas 162
O industrialismo de JK 165
O curto governo Jânio Quadros 169
João Goulart e o golpe militar de 1964 170

8. Olhos grandes sobre mim — Da ditadura à abertura


lenta e gradual 177

As primeiras alterações na Constituição 178


Resistência e Repressão 180
O Ato Institucional n°5 182
Quando a exceção vira regra. Uma década de arbítrio sem freio. 182
Médici comemora com a taça 183
A repressão política – Os “Anos de Chumbo” 184
A abertura lenta e gradual 185

9. Eu organizo o movimento — O processo de


redemocratização do Brasil 193

O retorno paulatino à normalidade democrática 194


A Era Tancredo... Quer dizer, a Era Sarney 195
As graduais reconquistas nos campos da política e das liberdades públicas 196
A economia na Era Sarney — o elo fraco da corrente 197
A Constituinte e o exercício da cidadania 198
Constituinte: vamos à esquerda ou vamos à direita? 200
As críticas dos setores conservadores e a reação progressista 203
A Constituição de 1988, a conquista da “Constituição Cidadã” 204
O Texto Magno e as novas conquistas 206

10. A caminho do futuro: o Estado Democrático de Direito 213

Precisão de análise 214


As eleições de 1989 e o Governo Collor 214
A polarização de forças políticas e a solução conservadora 215
“Caçador de Marajás” 215
A disputa 216
A breve “República das Alagoas” 216
Plano Collor 217
Bloqueio de contas correntes e poupanças 217
A crise econômica e moral do Governo Collor 218
Itamar Franco e o governo de transição 219
O Plano Real e a estabilização econômica 220
Privatização 220
O Real 221
A Era FHC: o primeiro mandato 221
1º mandato: estabilização política e econômica e os ventos neoliberais 222
O segundo mandato FHC: o fim da lua de mel 222
Alguns pontos positivos 223
Lula lá: enfim o metalúrgico chega ao poder 223
Ganhando a confiança dos investidores internacionais 224
Os programas sociais 225
“Esquema do mensalão” 225
O direito brasileiro na contemporaneidade: breves notas 226
Prefácio
O Projeto Livro Didático Estácio propicia a construção de obras coletivas que reúnem pro-
fessores das instituições da Rede Estácio de Educação Superior e professores de outras ins-
tituições de ensino, com o objetivo de fornecer aos estudantes da Estácio material didático
adequado aos Projetos Pedagógicos e Planos de Ensino e integrados aos Planos de Aula das
disciplinas dos cursos de graduação.
O Livro Didático de História do Direito Brasileiro foi elaborado com o objetivo específico
de narrar os fatos mais relevantes da História do Brasil para a construção do sistema jurídi-
co brasileiro. Nossa abordagem visa proporcionar um olhar panorâmico sobre a construção
histórica da nação brasileira, as bases de nossa cidadania e os fundamentos do Direito pátrio.
Buscamos tornar o conteúdo complexo da obra acessível ao ingressante no Curso de
Direito, sem simplificações conceituais. Este livro didático deve ser visto como uma base
para a compreensão da estrutura jurídica nacional.
A obra abrange os principais fatos históricos do período que vai da chegada dos portu-
gueses ao Brasil até o ano de 2005, narrados por um grupo de excepcionais professores, que
se dedicaram a contar a História do Brasil para os estudantes de Direito da Rede Estácio de
Educação Superior.
No entanto a nossa História continua. Somos todos sujeitos ativos da História, escre-
vendo os próximos capítulos, que serão melhores se conhecermos bem os fatos passados
para não cometermos os mesmos erros.
O Direito é fruto da História e, como tal, irá refletir as escolhas que fizermos como seres
humanos, como cidadãos e como sociedade.

Bons estudos e sucesso!


solange ferreira de moura

7
1
Com quantas
naus se faz um
país?

celso péricles fonseca


thompson
1 CURIOSIDADE
Com quantas naus
se faz um país?
A chegada dos portugueses
Condado Portucalense O Reino de Portugal nasceu das armas! Com isso, queremos dizer que, no
Condado Portucalense – Feudo de século XII, Portugal lutava para expandir seu território rumo ao sul, ocu-
onde se originou o Reino de Portugal pando territórios sob domínio mouro (muçulmanos) e, ao mesmo tempo,
preocupado com a ameaça representada por Castela que via no Condado
Portucalense, o núcleo inicial do reino de Portugal, “um vassalo rebelde a
CURIOSIDADE ser submetido pela força”. Vejamos na gravura a seguir:

Mouros
do
Conda nse al
Portug
Povos muçulmanos do norte da África.
ale
O termo era usado para os muçulmanos Portuc
al al al
na Península Ibérica. Portug Portug Portug

CURIOSIDADE
Revolução de Avis
Revolução que deu à burguesia o con- Fronteira atual de Portugal Cristãos Muçulmanos
trole político, consolidando o poder mo-
nárquico em Portugal. Por que navegar foi tão importante para os portugueses? Muitas
vezes somos levados a um raciocínio enganoso. Portugal é um país pe-
CURIOSIDADE queno para os nossos padrões, no entanto, realizou façanha em escala
nunca vista organizada pelo reino que, simultaneamente, estimulava
Numeramento o comércio marítimo e a
Nome dado ao censo de 1527. reconquista das terras ocu-
O território português
padas pelos mouros e ia se corresponde a duas
afirmando politicamente vezes a superfície do
em torno da monarquia. estado do Rio de Janeiro.
Para o fortalecimento do
seu poder, os reis contaram com um corpo de funcionários leais ao Esta-
do, corpo esse no qual assumem destaque os legistas subsidiando o po-
der dos governantes, principalmente após a Revolução de Avis de 1385
que, expulsando do país elementos favoráveis ao domínio de Castela,
beneficiou a burguesia concentrando recursos tecnológicos e militares,
fornecendo o suporte ao empreendimento das navegações reunindo in-
teresses de cunho político, econômico, religioso e militar em um plano
sem precedente na História.
A ascensão do Mestre de Avis como D. João I ao trono português im-
primiu pulso à economia de Portugal. Segundo o numeramento, embo-

10 • capítulo 1
ra com população pouco superior a um milhão de habitantes, em sua ATENÇÃO
maioria vivendo no meio rural, a dinâmica da vida econômica portugue-
sa era orientada por um Estado que atendia aos interesses mercantis, ao Esses interesses estiveram presentes na
mesmo tempo em que pretendia satisfazer a nobreza guerreira. atuação de Dom Henrique, o Navegador,
filho do rei D. João I e promotor da ex-
pansão marítima até sua morte em 1460.
Portugal foi beneficiado pela unificação já em 1249, mais de dois sé-
Já no reinado de D. João II (1481-1495)
culos antes da espanhola. Ao navegar pelo Atlântico, os portugueses
pode-se dizer que a expansão marítima
superaram antigos mitos, abrindo perspectivas de intercâmbio numa
ganhou um caráter mais mercantil, obje-
escala planetária, o que demandou esforços de organização por parte
tivando chegar às Índias, atraentes pelo
do Estado português, conciliando interesses da nobreza guerreira e
comércio das chamadas especiarias ―
dos grandes comerciantes, o que se comprova com a conquista de
artigos raros e de preço compensador
Ceuta em 1415, entreposto comercial no norte da África, aonde che-
― pelos quais valia a pena correr riscos.
gavam ouro, seda e marfim. Para a burguesia, esse empreendimento
alimentava a perspectiva de grandes lucros no comércio a partir da
costa africana, na qual se estabeleceram muitas feitorias.

Muito poderosos eram os interesses da nobreza, reunindo o desejo


de glória militar contra o infiel muçulmano, a cobiça por terras e, tam-
bém, pela oportunidade de expandir o cristianismo.
O Estado centralizado tornava-se peça essencial à expansão maríti-
ma, pois era capaz de mobilizar recursos em uma escala nacional, finan-
ciando projetos e reunindo segmentos sociais com diferentes visões de
mundo. Os governos centralizados se caracterizavam basicamente pela
organização de uma justiça real aliada à disponibilidade de um tesouro
real, bem como a existência de um exército real para garantir a presença
do Estado e o acatamento as suas decisões.

ATENÇÃO
O Estado português emissor da moeda e concentrador da posse de riquezas recor-
reu às práticas mercantilistas promovendo a acumulação primitiva, condição neces-
sária para o desenvolvimento do capitalismo.

COMENTÁRIO
As navegações são apresentadas frequentemente apenas pelo lado exitoso. Dessa
maneira, as pessoas têm dificuldade de avaliar a real extensão dos perigos das via-
gens. A primeira viagem de circum-navegação, ou seja, a primeira volta ao mundo re-
alizada de 1519 a 1521, por obra de Fernão de Magalhães, navegador português a
serviço dos espanhóis, foi completada apenas por um dos cinco navios que a iniciou.

Devemos lembrar que o povo português forneceria o elemento hu-


mano de uma expansão pelo mundo. O fato da América Portuguesa,

capítulo 1 • 11
CURIOSIDADE que, mais tarde virá a ser o Brasil, constituir o mais importante projeto
colonial lusitano não nos permite desconhecer a presença portuguesa
Cosmologia nos quatro cantos do planeta, cobrindo do Atlântico Norte ao Japão na
Ramo da ciência que estuda a origem segunda metade do século XVI.
do Universo. Lisboa, nesse período, havia se tornado uma cidade cosmopolita
reunindo gente de variadas origens como genoveses, catalães, mouros,
florentinos, aragoneses enfim, enorme variedade de etnias e de idiomas,
típicos de uma cidade rica, encruzilhada de civilizações, afinal tratava-se
de gente, com as ambições de enriquecimento que, em todas as épocas,
constituíram poderoso atrativo para superar os medos.
Outro aspecto a ser lembrado é o do conhecimento científico, par-
ticularmente o conhecimento cartográfico. O século XV, ao ampliar
as possibilidades de contato entre as civilizações, tornou necessário o
registro e a representação das novas terras e povos que alteraram para
sempre a visão que os homens tinham de seu planeta e dos seus habi-
tantes.

IMAGEM
Mapa-múndi datado do século XV
O conhecimento geográfico ainda era muito limitado, mesmo que a mentalidade es-
tivesse mudando rápido, a visão cosmológica e geográfica era bastante reduzida.
O contorno dos continentes era diferente e perceba que a América não aparece.

12 • capítulo 1
IMAGEM
O primeiro mapa-múndi moderno: o Theatrum Orbis Terrarum, publicado pela primeira vez em 1570.

O conhecimento científico sofria sérias limitações, e isso dava força a toda uma série de
crendices associando temores às travessias oceânicas. Evidentemente combater crendices
não eliminava os perigos reais de tempestades e dificuldades de abastecimento que cria-
vam barreiras às expedições de longa distância.
Na proporção que as viagens progrediam, o conhecimento adquirido levava a questio-
namentos e à incorporação de informações em função das descobertas, a exemplo das regi-
ões africanas atingidas pelos portugueses, ampliando as perspectivas de lucro.
Fator importante a ser considerado foi o desenvolvimento da ciência náutica e a inven-
ção de novo tipo de embarcação, a Caravela.

EXEMPLO
A caravela é um barco relativamente pequeno, ideal para a navegação
costeira. Os portugueses mantiveram-se no propósito de chegar às Ín-
dias costeando a África, tendo inclusive o rei de Portugal, D. João II,
recusado apoio financeiro a Colombo quando este propôs atingir o les-
te indo na direção do oeste, o que confirmaria a esfericidade da terra
como efetivamente sucedeu em outubro de 1492, quando sob o patro-
cínio dos reis católicos chegou às terras americanas.

O feito do navegador genovês fez com que os reis de Portugal e


Espanha disputassem as terras recém-descobertas. Uma primei-
ra solução foi estabelecida pela Bula Papal Inter Coetera (1493), que determinou o limite de cem

capítulo 1 • 13
CURIOSIDADE léguas a oeste de Cabo Verde ― limite recusado por Portugal.

Hugo Grotius
Esse impasse foi resolvido apenas com a mediação do Papa Alexan-
Para muitos, foi o criador do Direito In-
dre VI, mediante a assinatura do Tratado de Tordesilhas (1494), pelo
ternacional. Sua obra referencial é Sobre
qual as terras situadas a 370 léguas a oeste das ilhas de Cabo Verde
o Direito da Guerra e da Paz, de 1625.
integrariam os domínios da Espanha, ao passo que aquelas situadas a
leste pertenceriam ao reino de Portugal.

CURIOSIDADE
IMAGEM
Paz de Westfalia
Tratado que encerrou a Guerra dos 30
anos e representou um marco nas re- Territórios de exploração Territórios de exploração
lações internacionais ao reconhecer a castelhana portuguesa
soberania dos Estados.

Tratado de Tordesilhas (1494)

Tratado de Tordesilhas (1494)


Bula Inter Coetera (1493)

Observou a linha à direita de Tordesilhas?


Trata-se do limite estabelecido pela Bula Papal Inter Coetera

Tratado de Tordesilhas, 1494

Portugal recorreu ao poder da Igreja, pois os Papas até o século XVII


agiram como árbitros supremos nas questões internacionais. Só com
base nos escritos de Hugo Grotius (1562-1645) teremos outros referen-
ciais para disputas diplomáticas, em uma época em que os Estados irão
afirmar sua soberania sem reconhecer uma autoridade supranacional.
Essa situação se consolida com a Paz de Westfalia.
Algumas questões devem ser levantadas. Em primeiro lugar, para
que o mundo fosse efetivamente dividido em duas esferas de poder era
preciso que do outro lado do planeta, a 180°, houvesse outra linha de-
marcatória, funcionando como contrameridiano. Os portugueses se
mantiveram no propósito de atingir as Índias, dirigindo-se para o Oriente,
o que permitiu o estabelecimento de numerosas feitorias na costa africana.
Portugal vivia o reinado de D. Manuel (1495-1521). Os monarcas an-

14 • capítulo 1
teriores haviam equilibrado as atenções do Estado na aventura marítima CURIOSIDADE
com a tradição das práticas da agricultura. O novo monarca dispendeu
seus esforços essencialmente em atingir os centros de comércio de todo Feitorias
o mundo. A seu favor contava a experiência portuguesa na navegação, Entreposto comercial fortificado cons-
que, em 1488, ultrapassou o cabo das Tormentas no sul da África, abrin- truído pelos portugueses.
do o caminho para o oceano Índico e para as terras das especiarias. A
navegação ganhava outro patamar, saindo no ocidente de uma perspec-
tiva local, condicionada pelo Mediterrâneo, para uma escala planetária,
onde o domínio das rotas comerciais teria peso decisivo.

Vasco da Gama deu a Portugal grande vantagem em relação aos mer-


cadores venezianos. A partir da descoberta do caminho marítimo do
comércio indiano artigos como pimenta, cravo, gengibre e noz mosca-
da estavam ao alcance dos europeus.
Mesmo tendo perdido dois navios carregados de especiarias o inves-
timento na frota de Vasco da Gama foi altamente recompensado com
um lucro em torno de 6 mil porcento (Huberman, 1981, p. 98).

Para os portugueses, as especiarias continuavam a ser o negócio


mais lucrativo do mundo, em especial nas trocas com a Ásia.

ATENÇÃO
Em 1500, a expedição de Cabral atinge o litoral do que hoje é o estado da Bahia.

O tratado de Tordesilhas, assinado entre Portugal e Espanha, foi


ignorado pelos outros reinos como a França, que rapidamente enviou
seus barcos para o novo mundo, desconsiderando a divisão acordada
pelos países ibéricos. Por duas vezes houve tentativa francesa de estabe-
lecer colônias na parcela portuguesa da América.

ATENÇÃO
A expedição enviada à Guanabara resultou na fundação da colônia da França Antár-
tica, somente erradicada com a expulsão dos franceses em 1567 e a permanência
portuguesa na região, com a fundação da cidade do Rio de Janeiro.

capítulo 1 • 15
IMAGEM

Mem de Sá

Durante três anos, os franceses se mantiveram no Maranhão, fundando São Luís, a úni-
ca capital brasileira que não foi estabelecida pelos lusitanos, nomeada assim em homena-
gem ao rei da França, defensor do cristianismo à época das Cruzadas.
Na área que coube aos espanhóis, estes se preocuparam em manter o controle das regiões
mineradoras, notadamente os vice-reinos de Peru e México, este chamado de Nova Espanha,
cedendo espaço ao avanço de ingleses e franceses em regiões da América do Norte. Igualmente
na América do Sul, vastos territórios na Amazônia compreendidos no domínio dos espanhóis
acabariam integrando a América portuguesa, alterando muito o estabelecido em Tordesilhas.
Alguns pontos de convergência devem ser estabelecidos entre as colonizações ibéricas
na América.
Ocorreu, porém, uma pro-
funda diferença no desenrolar Afinal, tanto portugueses quanto
dos diversos processos de colo- espanhóis tinham grande
nização. interesses em metais preciosos.
A Espanha, desde o princípio
de exploração das terras do novo continente, foi bem-sucedida na sua busca por ouro e prata.
Contrastando com os portugueses que encontraram índios em um estágio primitivo, desconhe-
cendo referenciais básicos para a civilização trazida da Europa, a exemplo das cidades, os espa-
nhóis entraram em contato com civilizações avançadas.
Valendo-se de circunstâncias favoráveis, como as dissidências que minavam o império aste-
ca na América Central, assim como o domínio do império inca na América do Sul, os espanhóis
estabeleceram as bases de um sistema militar-mineiro, em que um punhado de aventureiros,
como Cortez e Pizarro, entre outros, submeteram numerosas populações indígenas.

ATENÇÃO
A ambição desses homens, atendendo ao serviço da coroa, levou a morte de milhões de indígenas, quer
pela violência dos conquistadores, quer pelas doenças por eles trazidas.

16 • capítulo 1
A chegada de metais preciosos deu momentaneamente a condição de CURIOSIDADE
grande potência aos monarcas espanhóis, governantes de um reino alicerça-
do na união de Aragão e Caste- Nepotismo
la, esta última impulsionadora Favorecimento de amigos e parentes por
Cabral chegou às terras
da expansão marítima. Colom- parte de quem ocupa cargos públicos.
bo, sem ser exceção entre os americanas buscando Favorecimento, proteção: Essa empresa
grandes aventureiros, era um riquezas e reafirmando funciona na base do nepotismo. Hist. rel.
homem em que conviviam os a presença portuguesa Favores excessivos dentro da estrutura
desejos de riqueza, fama e gló- como havia sido administrativa da Igreja, concedidos pe-
ria e aspirações à descoberta de los papas aos seus sobrinhos.
acertado em Tordesilhas.
possíveis paraísos terrestres. Fonte: Caldas Aulete

IMAGEM

Pedro Álvares Cabral

Pedro Álvares Cabral é sempre citado entre nós como o descobridor


das terras que hoje formam o Brasil e, no entanto, raramente se mencio-
na que sua expedição iniciada em março de 1500, no porto do rio Tejo,
em Lisboa, somente se completou em julho de 1501, ao retornar das ín-
dias com seis dos treze navios originais, ainda assim se revelando em-
preendimento muito lucrativo.
Pois é, lembram-se da famosa carta de Pero Vaz de Caminha, em que
ele contou as proezas e aventuras vividas pela expedição chefiada por
Cabral? Esse é comprovadamente o primeiro caso de nepotismo em nos-
sa terra, pois além detalhar o descobrimento para Sua Majestade, apro-
veita para pedir favores para seu genro.
Apesar de Cabral ter tomado posse das terras que cabiam a Portugal,
não houve interesse maior em investir nas terras recém-descobertas,
uma vez que o Oriente apresentava muitos atrativos para o comércio.
As expedições que sucederam ao descobrimento mantiveram o obje-
tivo de explorar as terras à procura de riqueza de fácil obtenção.

capítulo 1 • 17
CURIOSIDADE Gaspar de Lemos e Américo Vespúcio se limitaram a avaliar a costa brasileira.

Escambo
Troca de mercadorias sem uso do dinheiro. Foram mandadas expedições ao litoral, tendo como principal resul-
tado a constatação da existência do pau-brasil, madeira útil para a ativi-
dade têxtil.
A oferta no litoral de árvores do pau-brasil era grande, o que favo-
receu a exploração predatória. Além dos portugueses, os navegadores
franceses se tornaram frequentadores do nossa costa, a ponto dos na-
tivos saberem distinguir os Mair, franceses, dos Perós, portugueses. O
escambo, prática comum na relação entre europeus e nativos, era enten-
dido como uma troca pelos indígenas, porém, numa perspectiva mais
ampla, era parte de uma circulação mercantil europeia, importante acu-
muladora de riquezas.

O papel da monarquia portuguesa guiando o processo de expansâo marítima


administrando interesses diversos como o da burguesia e o da nobreza. A
divisão do mundo em Tordesilhas e o período denominado pré-colonial.

Administração Colonial – Capitanias


hereditárias

Você deixaria terras recém-descobertas sem o controle e proteção jurídi-


ca de alguém de confiança? Parece que não. Portugal resolveu esse dile-
ma por meio de um arranjo administrativo.

Capitanias hereditárias

No início do século XVI, os portugueses estavam voltados para o comér-


cio com o oriente e se limitaram ao reconhecimento das regiões litorâ-
neas em suas terras americanas, travando conhecimento com as tribos
e, por meio de escambo, obtiveram a colaboração dos nativos para a ex-
ploração da fonte de riqueza mais evidente, a extração em grande quan-
tidade de pau-brasil, madeira empregada para tingir tecidos na Europa.
Portugal não podia deixar ao acaso seus domínios enquanto outros
países começavam a empreender suas viagens e reprimir a presença de
embarcações francesas tornou-se tarefa primordial. Além disso, manter
o controle dessa costa imensa era muito caro.
Somente em 1530 a expedição de Martim Afonso de Souza ao Brasil
materializa a colonização, reprimindo a presença de barcos estrangei-
ros levando pau-brasil, criando núcleos de povoamento e deixando na
região do Rio da Prata os marcos de soberania de Portugal.

18 • capítulo 1
A fundação de São Vicente trouxe para o Brasil a estrutura citadina re- CURIOSIDADE
presentada pelas casas, capela, cadeia e pelourinho, bem como a nomea-
ção de autoridades como juízes, meirinhos e escrivães. Portugal precisava Marcos de soberania
de mais do que isso para tornar a colônia rentável e controlada por Lisboa. Representações em pedra do poder do
No nascedouro das cidades eram erguidos os pelourinhos, colunas Estado sobre um determinado território.
de pedra localizadas em áreas centrais onde se castigavam os infratores,
como símbolo da autoridade do Estado português.
Os limites estabelecidos em Tordesilhas levam a alguns pequenos CURIOSIDADE
problemas, mais destacados ao se examinar a divisão do Brasil em capi-
tanias hereditárias, solução encaminhada pelo governo português para Meirinho
a ocupação do território sem comprometer o tesouro real, um processo, Antigo funcionário judicial correspon-
portanto, vinculado à iniciativa privada. dente ao Oficial de Diligência de hoje.
Por falar em Tordesilhas você deve se perguntar como aquelas pes-
soas sabiam exatamente em que lugar passava a linha de Tordesilhas. A
resposta é: não sabiam!
O conhecimento geográfico tinha muitas limitações e a precisão dei-
xava muito a desejar.
O rei português procedeu à divisão do território brasileiro em 15
lotes de terras confiados a 12 donatários que ali exerceriam autori-
dade por sua delegação. Foram investidos de direitos sem, contudo,
poderem vender os territórios recebidos. Os referidos direitos com-
preendiam fundar vilas, cobrar impostos e dominar tribos rebeldes ao
controle português, entre as quais sobressaiam os tupinambás, nume-
rosos e que percebendo os conflitos entre os europeus se aliaram aos
franceses contra os lusitanos.
A ideia era que os donatários, burocratas e militares, alguns deles
experimentados nas lutas das Índias, pudessem manter a conquista e
assegurar a integridade e o povoamento do território. A maioria, contu-
do, não conseguiu arcar com as despesas para se instalar nas suas capi-
tanias, que, de resto, não podiam simplesmente ser vendidas.
Na prática, apenas cinco donatários efetivamente tomaram posse
das suas capitanias.
Dom João III mandou vir da
metrópole mudas de cana-de Assim entendemos a
-açúcar. O que não estava pre- importância de homens
visto foram dificuldades para como João Ramalho e
dominar os índios, mesmo ten-
Caramuru.
do o apoio de pessoas aqui che-
gadas como náufragos, degredados ou não, fazendo a intermediação entre
os colonizadores e os nativos.
Os colonizadores eram pouco numerosos e, em vários casos, se
adaptavam às línguas e costumes da população nativa. Havia uma lín-
gua geral, o tupi, mais falado que o português.

capítulo 1 • 19
ATENÇÃO
“Assim, quando se pretendia falar ao povo, era a língua selvagem que mais se empregava, reservando o
português, língua oficial, para as camadas mais cultas.” (Azevedo, 1943. p. 179).

Os donatários se reservavam direitos da cobrança de impostos sobre tudo o que fosse


produzido na capitania, podiam fundar vilas, bem como doar lotes de terra, chamados ses-
marias ― para alguns a origem remota de latifúndios em nosso país. Em resumo, espera-
vam facilidades a serem oferecidas pelo governo para obter lucro.

Dois documentos estabeleciam deveres e direitos dos donatários:


1- A Carta de Doação, pelo qual o soberano concedia as terras aos capitães-mores, com
direito de juro e herdade;
2 - O foral, fixando os direitos, foros e tributos respectivamente ao Rei e ao capitão-mor.

À Coroa cabia o quinto do ouro e das pedras preciosas, ou seja, 20% do que era produzi-
do, bem como o monopólio das especiarias. Aos donatários era proibido doar ou partilhar
a capitania entre seus parentes.
A necessidade de obedecer a normas Juridicamente integrávamos
emanadas do Estado fez com se aplicas- o mundo português, da
sem ao país normas vigentes na metrópo- mesma forma que outras
le, algo frequentemente considerado de
partes do império, como
menor importância, mas que integrava,
como prêmio ou castigo, a população do
Goa, Guiné ou Macau.
Brasil no contexto geral do império onde vigorava a lei da metrópole.
Nas monarquias da era moderna, o soberano era o centro do poder. A justiça, portanto,
ao privilegiar a vontade do monarca tornava pública a justiça penal.
As punições tinham como objetivo servir de exemplo pelo temor para os súditos.

EXEMPLO
Mesmo a pena de morte apresentava graus de sofrimento e padecimento proporcionais, diferenciando a
morte natural na forca ou no pelourinho que, uma vez cumprida, autorizava o sepultamento, da morte natu-
ral na forca “para sempre”, em que a forca estava localizada fora da cidade e o corpo ficaria exposto desde
a morte até o dia 1º de novembro, quando era autorizado o sepultamento.

Tais rigores, em contrapartida, eram amenizados pela eventual comutação das penas e per-
dão real, demonstrando outra face da justiça identificada com a imagem do rei misericordioso.
Desde a revolução de Avis se procurou chegar a uma codificação geral das leis do reino,
buscando o ordenamento jurídico e tendo no Direito Romano seu referencial, se ocupando
o Direito Canônico das matérias de cunho espiritual. O governo luso era fundamentado nas
chamadas ordenações, sucessivamente Afonsinas (1446 a 1521), Manuelinas (1521 a 1603)
e Filipinas (1603 a 1867).

20 • capítulo 1
As reformas introduzidas sob o reinado de D. Manuel (1495-1521) CURIOSIDADE
associaram de forma mais nítida o monarca e sua lei em um momento de
expansão no ultramar. Já sob D. Sebastião (1554-1578) houve concessões à Ordenações
Igreja ao acatar decisões do Concílio de Trento, base da reação católica ao Nome dado às leis do reino que vigiam em
protestantismo. todo o Reino. No entanto, havia dificulda-
Uma perspectiva mais ampla e duradoura foi aberta pelas Ordena- de para aplicação das leis nas colônias.
ções Filipinas, que, não obstante entrarem em vigor sob o domínio es-
panhol mantiveram, em linhas gerais, as tradições legais portuguesas.
Mesmo advindo a Restauração da monarquia portuguesa em 1640, as CURIOSIDADE
Ordenações Filipinas continuaram a vigorar.
As ordenações zelavam inclusive pela interdição do contato com po- Baraço
pulações consideradas indesejáveis no reino, a exemplo de ciganos ou Laço de apertar a garganta do condenado.
mouros, como verificado no livro V, ordenação 69.
Pregão
EXEMPLO Descrição de culpa e pena.

Mandamos que os ciganos, assim homens como mulheres, nem outras pessoas, de qual-
quer nação que sejam que com eles andarem, não entrem em nossos reinos e senhorios.
E entrando, sejam presos e açoitados com baraço e pregão (Hunold Lara, p. 218).

Além do mais, temos de considerar que os limites das capitanias


foram estabelecidos em razão da faixa litorânea, ou seja, a demarcação
obedecia ao estipulado pela área mais conhecida, ficando impreciso o
limite interior das capitanias, o que mais adiante será de grande valia
para a expansão do território brasileiro, mesmo persistindo dúvidas so-
bre quem seria legítimo senhor de terras em disputa.
Por outro lado, podemos dizer que as Capitanias não conseguiram
ser rentáveis, mesmo com produtos como açúcar, algodão e tabaco, que,
apesar da sua popularidade na Colônia, não conseguiu, nessa fase, um
destaque expressivo na economia. Entretanto, em alguns casos pontu-
ais, como na Capitania de Pernambuco, confiada a Duarte Coelho, os
donatários tiveram sucesso em seus empreendimentos, particularmen-
te no que se refere ao cultivo da cana-de-açúcar.

ATENÇÃO
O rei de Portugal lançou mão de medidas para auxiliar as capitanias que, como um
conjunto, fracassaram. A América portuguesa carecia de uma forma mais centraliza-
da de administração. Para isso foi criado o governo-geral.

A criação do governo-geral
A partir de 1548, o Regimento Geral foi o instrumento por meio do qual

capítulo 1 • 21
o rei reorganizou administrativamente, por um conjunto de leis, o Brasil. O governador-ge-
ral foi incumbido de coordenar a defesa da colônia, explorar o sertão, auxiliar as capitanias,
que durariam até 1759.

IMAGEM

GOVERNADOR-GERAL

PROVEDOR-MOR OUVIDOR-MOR CAPITÃO-MOR

DONATÁRIOS DAS GOVERNADORES DAS


CAPIT. HEREDITÁRIAS CAPIT. DA COROA

CÂMARAS MUNICIPAIS

Organograma do governo-geral

As capitanias, ao contrário do que muitas vezes se afirma, não acabaram com a criação
do governo-geral.

Apenas na época do Marquês de Pombal as capitanias seriam extintas.

O início do governo-geral eram tempos marcados pela vida rural com seus engenhos. As
cidades iriam se consolidar tendo São Vicente como referência.
Basta observar o organograma anterior e verificar que a estrutura trazida do reino por
Tomé de Souza, o 1º governador-geral, atende às preocupações básicas do Estado portu-
guês relativas à administração de suas terras americanas.
Ao provedor-mor cabiam as funções de natureza financeira, ao capitão-mor, as relativas
à defesa da colônia, e ao ouvidor-mor, àquelas pertinentes à Justiça, ou seja, os mecanis-
mos básicos de controle estavam instalados em uma terra promissora.

ATENÇÃO
Detalhe importante é que cada um desses cargos tinha autonomia para, no campo de sua competência, ser
a maior autoridade na colônia, respeitando o comando do governador.

O ouvidor-mor exercia a justiça, observando que, naquela época, as pessoas não eram con-
sideradas iguais perante a lei. Peões, índios e escravos se sujeitavam a penas muito mais seve-
ras que aquelas impostas a senhores de engenho ou a fidalgos, sendo-lhes permitido conceder
anistia aos réus, e como prova de sua autonomia jurídica, caso houvesse discordância entre sua
posição e a do governador, o réu seria enviado a Lisboa perante as instâncias superiores.

22 • capítulo 1
O período de expansão marítima foi marcado pela ampliação do alcance do Direito por-
tuguês. A justiça da Corte passou a ser um tribunal de apelação denominado Casa de Supli-
cação, intérprete máximo do Direito português e criando jurisprudência.

No Brasil, as funções judiciais, no início, se somavam às administrativas.

A carência de juízes levou à criação na Bahia da figura de Juízes do Povo, eleitos pela po-
pulação local. Ao fim do período colonial, a justiça brasileira tinha magistrados e tribunais
próprios, embora as instâncias recursais derradeiras continuassem em Portugal. O que vir-
tualmente aconteceu foi a diminuição dos poderes dos donatários.
O capitão-mor tinha entre suas atribuições a defesa da costa, o comando da esquadra e
a repressão dos nativos rebeldes. No trato com os índios, ficou claro que as tribos receptivas
ao contato com os portugueses deveriam ser tratadas como aliadas.
O provedor-mor cuidava das rendas, fiscalizava o tráfego marítimo, fazia inventários e
supervisionava a escrituração.
O governador-geral promoveu a centralização da administração colonial, comprando a
Capitania da Bahia, que passou a condição de capitania real. Com Tomé de Souza, vieram
também os primeiros jesuítas que iriam desempenhar na América Portuguesa papel rele-
vante nas relações dos portugueses com os indígenas.

ATENÇÃO
Apesar dos esforços centralizadores dos governadores, é preciso reconhecer que as distâncias eram gran-
des entre as capitanias, e o comércio entre elas não tinha grande importância.

Os grandes proprietários tenderam a exercer os poderes locais nas Câmaras Munici-


pais, onde eram chamados “Homens Bons”. As Câmaras Municipais cuidavam da rotina
das cidades e vilas, fiscalizando o comércio, a construção de estradas e cuidando para que
o poder permanecesse nas mãos do seu grupo. Para tal objetivo, proibiram que judeus e
estrangeiros em geral pudessem integrar essa elite. O governo-geral foi sucedido pelos vi-
ce-reis no século XVIII.

RESUMO
Vimos os esforços reais para administrar o Brasil, com o mínimo de gasto para a coroa, daí a criação das
capitanias. O sistema apresentou problemas e como Portugal decidiu ficar no Brasil, criou o governo-geral,
que trouxe para a colônia o aparelho jurídico administrativo de Portugal (vide organograma).

capítulo 1 • 23
COMENTÁRIO A escravidão e a economia colonial

Escravidão Tornou-se lugar-comum afirmar que o trabalho escravo forneceu as


Embora na Era Moderna o termo escravi- bases para a construção do Brasil, desde o período colonial até pró-
dão se mantenha, estamos diante de um ximo do final do Império brasileiro, quando a Lei Áurea libertou os
fenômeno bastante diferenciado do ob- escravos no país. Formalmente, porque a população negra não teve
servado na Antiguidade. Nesse contexto, oportunidade, nos planos social e econômico, de se integrar à vida
a grande vítima foi o continente africano. nacional, restando a eles papéis subalternos associados à pobreza
material, ao analfabetismo, fazendo do negro liberto um cidadão de
segunda categoria.
COMENTÁRIO Além disso, são frequentes as comparações entre o destino das po-
pulações negras no Brasil e aquelas da América Inglesa, tendo em vista
Açúcar que questões ligadas ao relacionamento de etnias suscitam discussões
O açúcar, especiaria considerada em ligadas, em princípio, ao acesso dos negros ao mercado de trabalho e
alta conta, foi a solução do problema aos diferentes graus de inserção na sociedade.
tanto pelo seu valor como pela pers- Dizemos que os norte-americanos são fortemente marcados pela
pectiva do emprego em larga escala da escravidão com aproximadamente dois séculos e meio de duração sem
escravidão, garantindo os dividendos do atentar para o fato de que, no Brasil, o período escravocrata começou
tráfico, bem como a presença lusa nas pelo menos oitenta anos antes e se encerrou 23 anos depois, dando mar-
terras americanas. gem a que muitos escravocratas empobrecidos com o fim da Guerra Ci-
vil Americana, resultando na abolição da escravatura, em 1865, vissem
no Brasil a chance de manter seu modo de vida.
Do século XV ao XIX, milhões de pessoas, os números variam muito e
é difícil precisar, foram arrancadas do seu mundo, acorrentadas e envia-
das a locais estranhos para elas, como o sul dos Estados Unidos, Cuba
ou o nordeste do Brasil, entre outros, alimentando uma das atividades
mais rentáveis da História, o tráfico.
Igualmente essa situação mexeu com a estrutura das várias etnias no
continente africano que, por vezes, em razão de preconceito enraizado,
ainda é tratado como se fosse um único país e toda sua diversidade cul-
tural parece abolida em função da cor da pele de seus habitantes, não
obstante as diferenças visíveis entre os diversos grupos étnicos.

A agromanufatura açucareira

A severa repressão das expedições guarda-costas não podia dar conta


dos infratores, de forma que Portugal necessitou trazer para suas terras
americanas um cultivo que promovesse a ocupação da terra, o açúcar.

24 • capítulo 1
Como assinalou Celso Furtado: CONCEITO
“É fato universalmente reconhecido que aos portugueses coube a primazia
Mercantilismo
no empreendimento dessa empresa. Se seus esforços não tivessem sido co-
O Estado é que garante comércio exclu-
roados de êxito a defesa das terras do Brasil ter-se-ia transformado em ônus
sivo, as colônias, para as quais promove
demasiado grande e — excluída a hipótese de antecipação na descoberta do
arranjos político-militares. O comércio
ouro — dificilmente Portugal teria perdurado como grande potência colonial
executa a exploração organizada pelo
na América.” (Furtado,1959, p. 11).
Estado, daí a lógica dos privilégios, con-
ciliando interesses públicos e privados.

Durante algum tempo, o termo engenho identificava o local da pro-


dução de açúcar. Depois passou a indicar todo o complexo envolvido na
produção e também a ordem social na qual se inseria. A estrutura familiar
era de natureza patriarcal, isto é, concentrando poderes nas mãos dos se-
nhores de Engenho, controlando com mão pesada sua família a partir da
Casa-grande, normalmente situada em um plano elevado, próximo ao qual
estavam a casa da moenda, a máquina de moer cana, a caldeira, e a senzala
era onde se concentravam os escravos.
O Mercantilismo condicionou a atividade açucareira dentro da ló-
gica da exploração colonial fundamentada no chamado exclusivismo
metropolitano obrigando a que os produtores vendessem o açúcar aos
comerciantes portugueses deles dependendo para a aquisição das ma-
nufaturas, ou seja, a ordem econômica sofria a interferência da domina-
ção política a determinar as trocas comerciais.
A morte do rei de Portugal, D. Sebastião, ainda jovem e sem herdei-
ros, ao combater os muçulmanos no norte da África em 1578, abriu o
problema da sucessão e o trono foi destinado ao candidato mais pode-
roso, Felipe II, da Espanha.
Durante sessenta anos (1580-1640), Portugal e Espanha estariam
unidos sob a mesma dinastia, com consequências econômicas e polí-
ticas significativas para o
Brasil. Um tempo longo A derrota espanhola
que assistiu ao apogeu e consolida o
progressivo declínio do po- protestantismo na Europa,
der espanhol ainda à época
bem como abre espaço
de Felipe II, malogrando
em sua tentativa de subme-
para a afirmação da
ter a Inglaterra por meio da Inglaterra e dos Países
“Invencível Armada”, der- Baixos como potências
rotada pelas intempéries e marítimas.
pelos corsários ingleses.
Desde a Idade Média, o reino de Portugal mantinha relações de co-
mércio com a região dos Países-Baixos, fazendo das cidades, como Ams-
terdam, centro de recepção e distribuição de mercadorias. Os mercado-
res holandeses eram os principais distribuidores de produtos orientais

capítulo 1 • 25
REFLEXÃO trazidos por Portugal, e o domínio espanhol era prejudicial aos interes-
ses holandeses no Brasil associados à economia açucareira.
América Hispânica A organização da economia açucareira exigia muito dinheiro. A
“A entrega da Coroa, pelas camadas diri- montagem de um engenho era cara, envolvendo mão de obra numerosa
gentes portuguesas, a Felipe II, em 1580, alimentando o tráfico de escravos africanos e, progressivamente, trans-
visava, entre outros objetivos, a garantir a ferindo o controle global do processo dos proprietários rurais para uma
prata espanhola essencial às transações burguesia mercantil mantendo um fluxo de renda constante, tudo den-
mercantis portuguesas, principalmente tro de crescente especialização nas atividades de produção e comércio.
no Oriente.” (Levy, 1979, p. 57). O açúcar se tornaria o elemento destinado a preservar a presença dos
colonizadores integrando economicamente a colônia com os mercados
da Europa. A adoção da monocultura açucareira não apenas aumentou
o tráfico de escravos, bem como internacionalizou a economia.
A proliferação de engenhos mudou não apenas fisicamente a apa-
rência das regiões litorâneas. O emprego maciço da mão de obra escrava
e sua exploração consolidou a expansão da economia açucareira.

EXEMPLO
A produção farta em solo fértil como o de Pernambuco, por exemplo, levou a que a
economia nordestina se especializasse na lavoura. Reuniam-se a grande propriedade,
o trabalho escravo e a empresa mercantil fornecendo as bases do sistema econômico.

Estava caracterizado o chamado Pacto Colonial, assegurando à me-


trópole o monopólio do comércio colonial, conciliando interesses dos
produtores brasileiros e os dos comerciantes portugueses. Os senhores
de engenho conseguiam bom preço para o açúcar e os negociantes lusos
ganhavam com o transporte e a revenda da mercadoria bem como por
trazer produtos europeus aos colonos e, principalmente, com o tráfico
de escravos.

IMAGEM

Matérias-primas

COLÔNIA MONOPÓLIO METRÓPOLE

Manufaturados

A economia açucareira criou mercado a ser atendido dentro da pró-


pria colônia. Centrados na produção açucareira, os senhores de enge-

26 • capítulo 1
nho estimularam a produção de alimentos no interior, impulsionando principalmente a
pecuária de corte com destaque para as regiões do Vale do Rio São Francisco e na região
do Piauí. Para os paulistas, a tendência foi desenvolver a penetração e o desbravamento do
interior visando o apresamento dos indígenas, o que os levou a entrar em terras sujeitas
legalmente a Espanha, pelo Tratado de Tordesilhas.
Na verdade, dentro da União Ibérica, mesmo considerando a dominação espanhola,
não se pode ignorar que uma parcela da elite de Portugal acabava se beneficiando dela. A
ideia era participar de alguma forma da circulação de riquezas da América Hispânica.
Ao falar das invasões holandesas no Brasil, torna-se necessário ter uma ideia de como
essa sociedade se organizou. O poder nas terras holandesas se concentrou em uma repúbli-
ca de ricos mercadores, receptiva aos empreendedores, o que incluía os judeus, persegui-
dos pela Inquisição nos países ibéricos.
A criação da Companhia das Índias Ocidentais, em 1621, em moldes semelhantes a sua
coirmã a Companhia das Índias Orientais, deixa claro o objetivo essencialmente mercantil
da conquista do nordeste açucareiro do Brasil. O empreendimento, tanto na primeira ten-
tativa na Bahia, em 1625, de curta duração, quanto os 24 anos transcorridos desde a toma-
da de Pernambuco, em 1630, foi determinado por razões comerciais e também de natureza
política, uma vez que a Holanda havia se libertado do domínio espanhol, e o Brasil, sob a
União Ibérica, constituía um alvo atrativo.
A presença holandesa no nordeste refletia os costumes e a estrutura política de uma so-
ciedade estruturada em bases urbanas, contrastando com o interior das terras brasileiras,
situação que permaneceu mesmo em momentos de maior esforço para expulsar o invasor,
a exemplo da Insurreição Pernambucana de 1645, ou seja, uma identidade luso-brasileira
construída em função do mundo rural opondo-se ao mundo urbano dos colonizadores.

REFLEXÃO
Sobre a presença holandesa no Brasil, cabe uma observação sobre o conde Maurício de Nassau, represen-
tativo do Brasil holandês. Nassau assimilou a problemática do relacionamento entre os grandes senhores
de engenho e as autoridades holandesas. Motivados principalmente pelo receio de aumento dos impostos
dos produtores brasileiros, os holandeses procuraram manter o status quo, negociando com Portugal que
desde 1640 havia recuperado sua independência, com o final da União Ibérica.

Deve-se ter na devida conta que a presença holandesa no nordeste foi um empreendimen-
to essencialmente comercial, tornando pouco
aceitável a ideia de que sua colonização seria a As hipóteses ligadas à
mais adequada ao Brasil, uma vez que, por prin- colonização holandesa
cípio, atividades coloniais beneficiam a metró-
podem ser confrontadas
pole e uma elite colonial a ela vinculada.
De concreto, temos o registro de que os ho- com a trajetória da
landeses, após sua expulsão do Nordeste, em colonização holandesa
1654, se dirigiram às Antilhas e, por conta dos na Indonésia e na região
conhecimentos adquiridos no Brasil, benefi- da África do Sul.
ciados por distâncias que permitiam baratear
o transporte das mercadorias, provocaram o declínio da economia açucareira nordestina.

capítulo 1 • 27
ATENÇÃO
Mesmo considerando que os preços do açúcar não se mantiveram altos, a produção açucareira não decli-
nou, refletindo a complexidade da economia colonial. A pecuária ocupava espaços no interior e produtos
como o tabaco e o algodão ampliavam sua importância.

Mineração — A Era do Ouro


Com a descoberta do ouro em fins do século XVII, as contas de Portugal puderam se reequi-
librar. Na colônia, a economia deslocou seu eixo das regiões nordestinas para a das Gerais.
Um novo surto de prosperidade havia chegado, integrando áreas muito distantes ao consu-
mir produtos agrícolas e também atrair a pecuária.

ATENÇÃO
O sistema colonial ganhava nova dimensão ao integrar produtores e mineradores e aumentar o pagamento
de impostos para a coroa, além do monopólio dos transportes na mão de comerciantes portugueses.

A produção de ouro na região das Gerais permitiu ao reino português viver um período de opu-
lência cujo declínio já se verifica após 1760. A busca pelo ouro, no século XVII, foi responsável
por um êxodo populacional que deu nova face à colônia. Estima-se que mais de cem mil pessoas
vieram à região das minas.
Evidentemente a metrópole não
foi indiferente ao êxito da mineração e
Pessoas de variada condição
aumentou os mecanismos de controle social chegaram à região das
da economia colonial. A Coroa preci- minas, na esperança de fazer
sava de ouro em quantidades crescen- fortuna fácil com o garimpo.
tes para saldar seus compromissos,
Aventureiros de toda espécie
principalmente com a Inglaterra, de
quem Portugal se tornou uma econo-
vinham à área de mineração.
mia dependente.

28 • capítulo 1
Acontece que o Direito não se antecipa à realidade, mas regula as CURIOSIDADE
atividades humanas pelo conhecimento e bom senso. Em um primeiro
momento, a descoberta de riqueza metálica literalmente joga milhares Ato de Navegação
de pessoas na região das minas agitada pela possibilidade de ficar rico Aprovado em 1651, pelo Parlamento
sem o controle do fisco, pois o Estado não dispõe de soldados para im- Britânico, determinava que apenas na-
por a ordem e administradores para supervisionar o cumprimento das vios ingleses poderiam desembarcar
determinações reais. mercadoria na Inglaterra e suas colô-
O Portugal da Restauração, após a União Ibérica, apresentava uma nias. Isso levou à guerra contra a Holan-
condição muito distinta da época em que se firmou a aliança com os da que, ao terminar, em 1654, deixava a
britânicos. As lutas contra os holandeses, a guerra da Restauração e o Inglaterra vitoriosa como maior potencia
declínio do comércio com o oriente enfraqueciam os portugueses. Os naval da Europa.
ingleses, por sua vez, se afirmavam como potência marítima, principal-
mente após o Ato de Navegação, e passaram a ter controle inclusive do
tráfico de escravos.
Além disso, no século XVIII, a In-
Enquanto o ouro foi
glaterra levou a dianteira em relação
aos demais países com a chamada
abundante, as minas
Revolução Industrial, o que tornou ostentaram riqueza
mais difícil a posição de Portugal, em suas cidades.
com reflexos na colônia brasileira.
A mineração provocou uma alteração profunda na vida colonial. Nos
primeiros tempos a presença europeia era essencialmente rural com-
pondo uma elite controladora dos engenhos e culturas agrícolas. Mes-
mo as pessoas ricas levavam uma vida simples em sua maioria. O surgi-
mento das cidades mudou as regras do jogo.
A sociedade das minas permitiu que muitas pessoas livres e pobres
buscassem oportunidades de mudar de vida em um contraste nítido
com o mundo mais fechado da sociedade baseada na produção açuca-
reira do Nordeste. Uma sociedade com mais esperança. Uma sociedade
em que descobrir uma jazida muda a vida de uma hora para outra, ao
contrário da rotina da empresa açucareira do Nordeste.

ATENÇÃO
O ouro e os diamantes foram responsáveis pela colonização do território e promove-
ram o surgimento de vilas e povoados. A migração não se limitou à chegada de gente
da metrópole, na própria colônia houve pessoas que se deslocaram de vários cantos
do Brasil, enfrentando perigos como ataques de índios ou de animais nas regiões a
serem atravessadas para o destino final.
Além disso, ocorreu um fenômeno comum às áreas apontadas como as de grande
prosperidade. A tendência à elevação geral de preços, o que comprometia a so-
brevivência dos que lá chegavam. Enfim, para muitos, o ouro era uma miragem, e a
pobreza, uma realidade.

O Estado português tratou de regulamentar a exploração de riquezas

capítulo 1 • 29
CURIOSIDADE e, para isso, instituiu a Intendência de Minas visando supervisionar as con-
cessões de terra para a mineração e controlar as relações entre os minera-
Datas dores. Entre os pré-requisitos para participar da exploração aurífera esta-
Nome atribuído aos lotes em que se vam ter, ao menos, 12 escravos para trabalhar nas datas.
subdividiam lavras de acordo com as ins- Não é preciso uma grande informação do processo como um todo
truções do governo, obrigando a quem para imaginar que a sonegação de informações sobre o ouro encontrado
achasse ouro comunicar ao governo. fosse elevada. Às autoridades interessava a parte do Leão nos tributos
sobre a produção de riqueza. Algo fácil de entender em nossos dias.
As condições de trabalho nas minas eram muito sofridas, particu-
larmente nas galerias subterrâneas sujeitas a desastres. Mesmo con-
siderando todos esses fatores desfavoráveis, podemos registrar uma
acentuada urbanização nas Gerais, permitindo que muitas atividades
profissionais, antes de pouco significado ou inexistentes, ganhassem
força na capitania. Com efeito, médicos, artesãos, músicos, escritores,
juntamente com funcionários da metrópole viviam em cidades com ele-
vado nível de riqueza. Não se tratava de “mais do mesmo”. A mineração
permitiu a formação de um rico patrimônio cultural na região.
O enriquecimento da região numa época em que Portugal da restau-
ração se encontrava crescentemente endividado resultou numa taxação
abusiva. Antes se aplicavam às Ordenações Manuelinas de 1532, estipu-
lando que um quinto do minério seria propriedade real. A estes foram
acrescentados tributos tão onerosos que levaram a decadência das Minas.

A economia brasileira, no período colonial, atendeu aos interesses da


metrópole tendo no açúcar o elemento de fixação de Portugal como
potência colonial na América.
Depois do fim da União Ibérica e de os holandeses serem expulsos,
levando o cultivo do açúcar para a regiâo das Antilhas, nossa produção
entrou em decadência.
Com a descoberta das minas, a colonização interiorizou-se e houve
uma urbanizaçâo nessas áreas produtoras, provocando a chegada de
muitos migrantes.

MULTIMÍDIA
Para saber mais, assista aos filmes indicados.
1492: A CONQUISTA DO PARAÍSO. Direção: Ridley Scott. Produção: Gaumont.
França, Alemanha, 1992. 154 min., son., col., 35mm.
AGUIRRE, A CÓLERA DOS DEUSES. Direção: Werner Herzog. Produção: Werner
Herzog Filmproduktion. Alemanha, Espanha, 1972. 93 min., son., col., 35mm.
A RAINHA MARGOT. Direção: Patrice Chéreau. Produção: Renn Productions. Fran-
ça, Itália, Alemanha, 1993. 162 min., son., col., 35mm.
DESMUNDO. Direção: Alain Fresnot. Produção: A. F. Cinema e Vídeo. Brasil, 2002.

30 • capítulo 1
101 min., son., col., 35mm.
A MISSÃO. Direção: Roland Joffé. Produção: Warner Bros. Inglaterra, 1986. 125 min., son., col., 35mm.
COMO ERA GOSTOSO O MEU FRANCÊS. Direção: Nelson Pereira dos Santos. Produção: Condor Filmes,
Regina Filmes. Brasil, 1972. 84 min., son., col., 35mm.
O DESCOBRIMENTO do Brasil. Direção: Humberto Mauro. Produção: Brazilia Filme. Brasil, 1937. 60 min.,
son., P/B, S/I.
CARAMURU – A INVENÇÃO DO BRASIL. Direção: Guel Arraes. Produção: Globo Filmes. Brasil, 2001. 85
min., son., col., S/I.

ATIVIDADE
1. (ENADE/ 2012 — questão 8)
A globalização é o estágio supremo da internacionalização. O processo de intercâmbio entre países, que
marcou o desenvolvimento do capitalismo desde o período mercantil dos séculos XVII e XVIII, expande-se
com a industrialização, ganha novas bases com a grande indústria nos fins do século XIX e, agora, adquire
mais intensidade, mais amplitude e novas feições. O mundo inteiro torna-se envolvido em todo tipo de
troca: técnica, comercial, financeira e cultural. A produção e a informação globalizadas permitem a emer-
gência de lucro em escala mundial, buscado pelas firmas globais, que constituem o verdadeiro motor da
atividade econômica (Adaptado de: SANTOS, M. O país distorcido. São Paulo: Publifolha, 2002).

No estágio atual do processo de globalização, pautado na integração dos mercados e na competitividade


em escala mundial, as crises econômicas deixaram de ser problemas locais e passaram a afligir pratica-
mente todo o mundo. A crise recente, iniciada em 2008, é um dos exemplos mais significativos da conexão
e interligação entre os países, suas economias, políticas e cidadãos. Considerando esse contexto, avalie as
seguintes asserções e a relação proposta entre elas.

I. O processo de desregulação dos mercados financeiros norte-americano e europeu levou à formação de


uma bolha de empréstimos especulativos e imobiliários, a qual, ao estourar em 2008, acarretou um efeito
dominó de quebra nos mercados.
POR QUE
II. As políticas neoliberais marcam o enfraquecimento e a dissolução do poder dos Estados nacionais, bem como
asseguram poder aos aglomerados financeiros que não atuam nos limites geográficos dos países de origem.

A respeito dessas asserções, assinale a opção correta.

a) As asserções I e II são proposições verdadeiras, e a II é uma justificativa da I.


b) As asserções I e II são proposições verdadeiras, mas a II não é uma justificativa da I.
c) A asserção I é uma proposição verdadeira, e a II é uma proposição falsa.
d) A asserção I é uma proposição falsa, e a II é uma proposição verdadeira.
e) As asserções I e II são proposições falsas.

2. (Sistema Político e Direito Internacional)


“As guerras religiosas e as ambições universais das dinastias Bourbon, Habsburgo e do Santo Império
Romano Germânico, nos idos dos séculos XVI e XVII, levaram à assinatura dos Acordos de Westphalen,

capítulo 1 • 31
em 1648. Com o objetivo de frear a Guerra dos Trinta Anos (1618–1648) e promover a reorganização
das unidades estatais no que tange a religião, os tratados ultrapassaram tais funções tornando-se peça
fundadora do Sistema Internacional Moderno.” (SILVA, Francisco Carlos Teixeira da. Impérios na História.
Rio de Janeiro: Elsevier, 2009. p. 145)

Considerando o texto acima identifique a assertiva correta:

— O Sistema Internacional surgido ao fim da Guerra dos Trinta Anos:

a) Identificou a falência da ordem política internacional baseada no princípio da não intervenção.


b) Consagrou os princípios basilares da continuidade no tempo e das fronteiras estáveis transmitidos pelos
romanos aos visigodos como alicerce da diplomacia.
c) Condicionou a arbitragem de litígios na área da Cristandade a aceitação da liderança dos Papas confor-
me disposto no IV concílio de Latrão.
d) Reconheceu no Estado autonomia no trato de seus assuntos domésticos rejeitando a ideia de uma
autoridade política suprema.
e) Assimilou as concepções políticas autocráticas do Império Romano do Oriente para enfrentar a ameaça
dos otomanos.

3. (Administração Colonial e Ordem Jurídica)


“... Com efeito, a noção de que as decisões cabiam, em última instância ao soberano, conferia à Forma-
ção Social Brasileira, na conjuntura, uma coerência ideológica na qual a desigualdade era assumida e
conscientemente legitimada.” (Albuquerque, Manuel Maurício de. Pequena história da formação social
brasileira. 3. ed. Rio de Janeiro: Graal, 1984. p. 226)

De acordo com o texto acima podemos dizer que a organização jurídica da colônia brasileira obedeceu à
orientação do poder real, sendo colocada em prática pelo Governo Geral que:
a) Recorreu ao exemplo da França, elaborando um código colonial muito mais rígido que o metropolitano.
b) Incumbiu o ouvidor-mor de organizar a justiça, deixando as instâncias finais para Lisboa, onde funcio-
nava a Casa de Suplicação.
c) Instalou no Brasil os Tribunais do Santo Ofício para combater heresias
d) Deixou a cargo dos “Homens Bons”, núcleo do latifúndio, o combate ao criptojudaismo.
e) Organizou a partilha das terras indígenas e controlou o tráfego marítimo utilizando os serviços do ouvidor-mor.

4. (Economia colonial)
A escravidão, prática de longa duração, marcou profundamente a sociedade brasileira desde as primeiras
levas chegadas ao Nordeste no século XVI o que nos permite concluir que:
a) Constituiu uma prática inovadora na História, o que explica sua rápida expansão a partir da África, atin-
gindo até a Ásia.
b) Manteve o Brasil, em plena era da segunda revolução industrial, como o último país do mundo a, legal-
mente, abolir a escravidão.
c) Trouxe para as regiões litorâneas do Nordeste uma alternativa barata para substituir a mão de obra
indígena, mais especializada, porém rebelde.
d) Deixou o Brasil muito mais rico com o emprego na mineração, muito embora tenha tido um começo
tardio, um século depois das Treze Colônias da América receberem seus escravos da África Ocidental.

32 • capítulo 1
e) Representou um atrativo de tanta importância que levou os holandeses a invadir Angola para obter mão
de obra para suprir as atividades açucareiras, mostrando como o tráfico de escravos articulava interesses
nos três continentes.

Questões discursivas:
1 — Explique por que nem todas as leis de “As Ordenações” eram de fácil aplicação no Brasil.
2 — Identifique as diferenças mais marcantes entre a economia da agromanufatura açucareira e àquela
da mineração.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
ALBUQUERQUE, M. M. Pequena história da formação social brasileira. Rio de Janeiro: Graal, 1984.
DOHLNIKOFF, M.; CAMPOS, F. Atlas História do Brasil. São Paulo: Scipione, 1993.
FURTADO, C. Formação Econômica do Brasil. Brasília: UNB, 1959.
HUBERMAN, L. História da riqueza do homem. Rio de Janeiro: Zahar, 1981.
LARA, S. H. Ordenações Filipinas: Livro 5. São Paulo: Companhia das Letras, 1999.
LEVY, M. B. História financeira do Brasil Colonial. Rio de Janeiro: IBMEC, 1979.
MAGALHÃES, B. Expansão Geográfica do Brasil Colonial. São Paulo: Companhia Editora Nacional, 1935.
MARTINS FILHO, I. G. S. Evolução Histórica da Estrutura Judiciária Brasileira. In: Revista Jurídica Virtu-
al, Brasília, v. 1, n. 5, set. 1999. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/revista/Rev_05/
evol_historica.htm>>. Acesso em: 16 de abr. de 2014.
SOUZA, L. M. (org). História da vida privada no Brasil. São Paulo: cotidiano e vida privada na América Por-
tuguesa. São Paulo: Cia das Letras, 1997.

capítulo 1 • 33
12
Liberdade, liberdade,
abre as asas sobre
nós — o processo de
independência

natalia peixoto bravo


de souza
2 COMENTÁRIO
Liberdade, liberdade, abre as asas sobre
nós — o processo de independência

O Império português em tempos de crise


Controle
Esse controle ocorria por meio da conces-
são de monopólios a companhias comer-
ciais ou da cobrança abusiva de impostos.

Portinari. Chegada de D. João VI a Salvador

Você conhece a imagem acima? Ela faz parte da coleção de pinturas


do artista brasileiro Cândido Portinari (1903-1962) e retrata um dos mo-
mentos mais conhecidos
de nosso passado histórico: Independência ou
a transmigração da Corte construção do Brasil?
portuguesa para o Brasil, a Essa é uma pergunta que
parte americana do Impé-
tentaremos responder.
rio português, ocorrida no
ano de 1808. Frequentemente, esse acontecimento é apontado como o
marco inicial de um processo que culminaria com a independência do
Brasil, alguns anos mais tarde.
No entanto, antes de voltarmos nosso olhar para o processo de eman-
cipação da chamada América portuguesa de sua metrópole europeia,
relembraremos algumas das principais rebeliões ocorridas no período
colonial, que evidenciam a existência de fissuras na relação colônia/me-
trópole desde meados do século XVII.
Geralmente motivadas por questões de ordem econômica, essas re-
beliões expressavam o descontentamento da população local em rela-
ção ao excessivo controle da metrópole sobre as províncias coloniais.

36 • capítulo 2
Observe a tabela abaixo, que descreve detalhadamente alguns desses movimentos:
Guerra dos Emboabas Guerra dos Mascates Revolta dos Beckman Revolta de Felipe dos Santos
Quando 1708 1709 1684 1720

Onde Minas Gerais Pernambuco Maranhão Vila Rica

Paulistas contra colonos Comerciantes de Recife de-


População maranhense
baianos e portugueses, pe- nominados pejorativamente Mineiros e escravos contra o
Quem jorativamente chamados de de "Mascates" contra fazen-
contra os jesuítas e os go-
Governo
vernantes
Emboabas deiros de Olinda

A pedido dos jesuítas, o go-


verno português proibiu a
escravidão indígena, princi-
Ascensão comercial do re-
pal mão de obra das lavou-
cife transformou este no
ras do Maranhão, levando
centro econômico de Per-
ao uso de mão de obra es- Revolta contra a rigorosa
Disputa entre paulistas, pri- nambuco. Comerciantes do
crava negra, que seria as- política fiscal e opressiva
meiros a encontrarem ouro local queriam autonomia po-
segurada pela então criada tributação. A causa imedia-
na região, e "forasteiros" lítica que estava nas mãos
Por quê pelo monopólio das regiões dos fazendeiros de Olinda
Companhia do Comércio ta foi a criação das Casas
do Maranhão (1682). Essa de Fundição onde 20% do
mineradoras recém-desco- decadentes com a crise do
Companhia usufruía do mo- ouro extraído era confiscado
bertas açúcar e, por determinação
nopólio comercial, inflacio- como imposto à Portugal
Real, conseguiram-na, cau-
nou os produtos de abaste-
sando a revolta dos olinden-
cimento e não cumpriu com
ses
o abastecimento de escra-
vos, causando desconten-
tamento geral da população.

Chefiados por Manuel e


Thomas Beckman, os co-
A rivalidade levou a um
Os olindenses invadiram Re- lonos se rebelaram, expul- Rebeldes fazem suas exi-
conflito armado no qual os
cife e os conflitos duraram sando os jesuítas, abolindo gências ao governador, que
Emboabas venceram por
até 1710, quando o novo a Companhia e formando fingiu aceitá-las até que
Como estarem em maior número,
governador foi enviado à um governo, que duraria até conseguisse organizar uma
possuírem mais armamen-
Pernambuco, prendendo os quase 1 ano, até que novo ofensiva, reunindo forças
tos e estarem apoiados por
revoltosos governador fosse enviado militares necessárias
Portugal
ao Estado do Maranhão pelo
governo Real

Aprisionamento ou exílio
Criação da capitania de São dos rebeldes, enforcamento
Extinção da companhia de
Paulo e Minas e ida dos de Felipe dos Santos, apli-
Conse- Nomeação de Recife como Comércio, volta dos jesuítas
paulistas à região de Mato cação das Casas de Fundi-
sede administrativa de Per- para Maranhão e morte, exí-
quências Grosso e Goiás (expansão ção e separação das capita-
nambuco lio ou prisão dos líderes do
territorial e descoberta de nias de São Paulo e Minas
movimento
novas minas) Gerais, aumentando a auto-
ridade Real sobre ambas.

Ao observarmos a tabela, é A intensa extração de metais


possível notar que duas de suas
preciosos no local, aliada ao
rebeliões ocorreram na mesma
localidade: a região minerado-
interesse metropolitano no melhor
ra. Desde a descoberta de ouro aproveitamento das riquezas
na região, no ano de 1695, hou- coloniais, resultou na adoção de
ve grande deslocamento para o uma série de medidas de controle
local, resultando no acirramen-
por parte de Portugal.
to dos conflitos entre a popula-
ção nativa e os migrantes pelo controle de territórios e das minas de extração aurífera,
altamente lucrativas.

capítulo 2 • 37
CURIOSIDADE EXEMPLO
Inconfidência Mineira Entre as medidas podemos citar:
Vejamos como aparece a definição de • O surgimento da intendência das minas e das casas de fundição;
Inconfidência Mineira no Dicionarioweb: • A criação do Quinto real e da derrama.
“movimento patriótico do final do séc.
XVIII (1789), que, chefiado pelo alferes A aplicação dessas medidas e a punição àqueles que as descumpriam
Joaquim José da Silva Xavier, o Tiraden- variava de intensidade, sendo mais branda em alguns momentos e mais
tes, pretendia libertar o Brasil do re- severa em outros. Nos momentos de controle mais intenso, estouravam
gime colonial português.” (grifos meus). movimentos contestatórios como a Revolta de Felipe dos Santos (1720),
presente na tabela mostrada anteriormente.
Foi, entretanto, cerca de setenta anos mais tarde que ocorreu no mesmo
CURIOSIDADE lugar uma das rebeliões coloniais mais estudadas da História do Brasil: a
Inconfidência, ou Conjuração Mineira.
Inconfidência
Falta de fé ou de fidelidade para com
alguém, especialmente para com o Es- As conjurações mineira e baiana (1789-
tado ou o soberano. Infidelidade, revela-
ção do segredo confiado.
1798)

Com certeza, vocês já ouviram falar de


Joaquim José da Silva Xavier, o Tiraden-
tes. Comumente retratado como na ima-
gem, portando cabelos e barbas longas,
à semelhança de Jesus Cristo, ele é con-
siderado um dos grandes heróis nacio-
nais, um mártir, que sacrificou a própria
vida em nome da nação brasileira.
Líder da chamada Inconfidência Mi-
neira, teria protagonizado o primeiro
grande movimento de emancipação na-
Tiradentes cional ocorrido na colônia. Entretanto,
afinal, quem foi Tiradentes, inconfidente
ou herói nacional? E a Inconfidência Mineira foi realmente um movimen-
to visando à independência do Brasil ainda no século XVIII?
De acordo a versão do Dicionarioweb, a inconfidência mineira foi
um movimento patriótico e de alcance nacional visando à independên-
cia do Brasil. No entanto, novas interpretações sobre o movimento têm
surgido em estudos acadêmicos mais recentes.
O termo inconfidência, anteriormente muito utilizado, tem sido menos
visto nos trabalhos sobre o assunto, pois nomeá-lo dessa forma significaria
ratificar a interpretação oficial da história, segundo a qual os inconfidentes,
ao se rebelar, foram traidores e infiéis para com a Coroa portuguesa.

38 • capítulo 2
Por essa razão, o termo conjuração tem sido mais utilizado pelos CURIOSIDADE
pesquisadores e acadêmicos, pois ele traduz exatamente o que ocorreu
em Minas Gerais: um movimento conspiratório que visava a romper os Conjuração
laços de dependência entre a região e o Império português. Significa sublevação.
Além da revisão historiográfica, ligada à forma como o movimento
foi nomeado, a pesquisa histórica mais recente também produziu novas
interpretações sobre as motivações, os interesses e a forma como o mo- CONCEITO
vimento foi interpretado por historiadores do século XIX: hoje é sabido
que a transformação da conjuração mineira em movimento patriótico e Identidade Nacional
nacionalista, assim como a elevação de Tiradentes ao status de herói na- De acordo com o livro História em Cur-
cional, ocorreu em fins do século XIX, e obedeceu aos interesses ligados so, “o conceito de identidade nacio-
à (re)construção de uma identidade nacional para o país. nal se consolidou no século XIX como
Como discutiremos adiante, o país que hoje chamamos de Brasil, que elemento fundamental no processo de
possui sua língua, sua história e seus costumes próprios, e cujos habitantes construção das nações ocorrido na-
são chamados de brasileiros, não existia à época da conjuração mineira. quela época. Englobando um conjunto
Naquela época, havia no território correspondente ao Brasil de hoje, variado de componentes — memória,
não um país, mas um território bastante extenso integrado ao Império história, artes, literatura —, a identidade
português, chamado pelos historiadores atuais de América portuguesa. nacional tanto define o que é comum à
Apesar de sua contiguidade geográfica, o território era naquele momen- determinada nação quanto o que a dife-
to, composto de inúmeras províncias coloniais, que possuíam pouca ou rencia das demais”.
nenhuma integração física, econômica e cultural/identitária. Dizia-se
que, àquela época, era mais fácil viajar de Salvador a Lisboa do que de
Salvador ao Rio de Janeiro.
Da mesma forma, o comércio entre as capitanias do norte e as do sul
era bastante reduzido, bem como as trocas culturais entre elas.

EXEMPLO
Certamente, um habitante da região mineradora ao final do século XVIII não se sen-
tiria pertencente à mesma nação de um pernambucano da mesma época.

Ainda não havia, portanto, uma identidade nacional constituída,


que estivesse traduzida na existência de vínculos identitários entre os
habitantes da então América portuguesa.

EXEMPLO
Alguém nascido em Pernambuco sentia-se pernambucano e não brasileiro, da mes-
ma forma que uma pessoa nascida na Bahia via-se apenas como baiano.

Entre a população nativa das regiões coloniais portuguesas, o sen-


timento de identidade era local, não nacional. Portanto, se no século
XVIII e mesmo no início do XIX não havia um país chamado Brasil, bem
como não havia uma identidade nacional constituída, como seria pos-
sível que os conjurados mineiros houvessem lutado pela libertação da

capítulo 2 • 39
IMAGEM nação brasileira?
Estudos mais recentes, como o do historiador Kenneth Maxwell, têm
apontado como causa imediata para o início do movimento as disputas
por poder político e por privilégios econômicos entre as elites da próspe-
ra Vila Rica, no coração da região mineradora.
Segundo o autor, durante a Era Pombalina (1750-1777), o Marquês
de Pombal adotou uma série de medidas modernizadoras visando tor-
nar a arrecadação de fundos portuguesa mais eficiente. A consequência
desse processo para a América portuguesa, que já era, naquela época, a
parte mais rica do Império português, foi um aumento brutal do contro-
le e da pressão portuguesas sobre as regiões coloniais, sobretudo as da
região das minas, provocando insatisfação entre as elites.
No entanto, com o fim da administração pombalina, houve nova-
mente um afrouxamento desse controle, possibilitando que as elites
locais retomassem o estrito controle político e econômico da região. Na
prática, o grupo voltou a se beneficiar das concessões para extração de
Marquês de Pombal minérios e da “vista grossa” feita pelo governador ao intenso contraban-
do de ouro e diamantes praticado pelo grupo ou em seu benefício.
No ano de 1785, essa situação se modificou, com a nomeação de Luís
da Cunha Meneses como novo governador. Meneses entrou em conflito
com a elite local, pois privilegiava seus apadrinhados e desrespeitava as
autoridades e a legislação vigente.
Os conhecidos poetas arcadistas Tomás Antônio Gonzaga, ouvidor
da região, e Claudio Manuel da Costa, poderoso advogado detentor de
concessões para a extração de minérios, tiveram os seus interesses atin-
gidos pela chegada do novo governador.

COMENTÁRIO
De acordo com Maxwell: “O lucrativo controle do contrabando pelos lacaios do go-
vernador, tanto no Distrito Diamantino quanto em Santo Antônio, eliminou do negó-
cio muitos dos que dele se beneficiavam antes.”

A fama do novo governa-


dor de beneficiar militares Ainda, de acordo com
de origem portuguesa em de- Kenneth Maxwell: “O
trimento dos oficiais nativos alferes Silva Xavier
também gerava descontenta-
estava tão indignado
mento no grupo dos Dragões
Reais das Minas, do qual fa-
com a parcialidade do
zia parte o alferes Joaquim governador em relação
da Silva Xavier, o Tiradentes. a seus favoritos que
Portanto, foram prin- falava abertamente em
cipalmente os conflitos de
rebelião.”
interesse, as tensões e as

40 • capítulo 2
disputas em torno do poder local, agravadas pelo retorno da fiscalização CURIOSIDADE
metropolitana em um período de decadência na produção de ouro, que
levaram os conjurados a planejarem para o dia da Derrama uma rebelião No fim do século XVIII, Salvador era a
separatista, cujo objetivo era libertar a região das minas do controle impe- segunda mais populosa de todo o im-
rial, iniciando a partir dali uma experiência de autogoverno. Desse modo, pério, superando o Rio de Janeiro e per-
não houve qualquer pretensão de independência nacional no movimento dendo apenas para Lisboa.
dos conjurados mineiros.
Certamente, a difusão do ideário liberal pela região, possibilitada pelo
costume das elites de completar seus estudos na Europa, contribuiu para
intensificar as reflexões do grupo, bem como para fortalecer suas convic-
ções separatistas. Além disso, a experiência bem-sucedida das 13 colônias
norte-americanas, que tinham conseguido a libertação do jugo colonial
britânico, também serviu de inspiração para os revoltosos do sul.

ATENÇÃO
Como é sabido, o plano foi descoberto antes de ser concretizado e Joaquim José da
Silva Xavier, o conjurado de origem social mais modesta, foi punido exemplarmente,
com a decretação da sua prisão e morte, por enforcamento, no ano de 1792.
Seus companheiros de conjura, ao contrário de Tiradentes, foram submetidos a pro-
cesso, mas poupados da morte pela Coroa. Terminava, assim, de forma melancólica,
o sonho de liberdade e de autonomia dos homens ilustrados de Vila Rica.

Tiradentes — Museu histórico nacional.

capítulo 2 • 41
CURIOSIDADE A Conjuração Baiana (1798), também chamada de Conjuração dos
Alfaiates, ocorreu alguns anos mais tarde, e teve motivações e a partici-
Salvador pação de grupos sociais distintos dos da região de Vila Rica.
No fim do século XVIII, Salvador era a Sede político-administrativa da América portuguesa até o ano de 1763,
segunda mais populosa de todo o im- Salvador era uma cidade de grande importância para o Império português.
pério, superando o Rio de Janeiro e per- Por conta de sua importância política ao longo dos séculos de coloni-
dendo apenas para Lisboa. zação portuguesa nas Américas, a cidade de Salvador ainda concentrava
um grande volume de transações comerciais com o mercado internacio-
nal da época: boa parte do açúcar, do algodão e do tabaco exportados a
CONCEITO partir da colônia tinha saída pelo porto da cidade.
Dessa forma, Salvador era uma cidade multifacetada, em que os di-
Antigo Regime versos grupos sociais possuíam representação expressiva. Se, por um
Foi o nome dado ao conjunto de práti- lado, encontramos mercadores enriquecidos com o lucrativo comércio
cas e valores vigentes nas sociedades internacional, por outro, possuía também um grande número de escra-
ocidentais europeias anteriores à Revo- vos e de homens livres e pobres, que encontravam poucas possibilida-
lução Francesa. Uma das marcas do An- des de inserção social em uma sociedade ainda pautada pelos valores
tigo Regime foi sua estrutura profunda- do Antigo Regime.
mente hierarquizada, na qual prevaleciam
privilégios aos grupos como o Clero e a REFLEXÃO
Nobreza, e a desigualdade. Assim, como
características do Antigo Regime, pode- Como vimos, as práticas e os valores característicos das sociedades europeias ante-
mos citar: o absolutismo, a sociedade ou riores à Revolução Francesa foram nomeadas de Antigo Regime. Mas, se essas são
estamental, os fortes vínculos entre Es- características dos países europeus da época, por que afirmamos que os valores do
tado e Igreja e uma estrutura econômica Antigo Regime estavam presentes na cidade de Salvador do século XVIII?
profundamente centralizada, marcada
pela concessão de monopólios ou exclu- Para compreender essa questão, é necessário perceber a América
sivos comerciais. portuguesa não como uma região em separado, isolada do contexto
europeu, mas como parte integrante do Império português, cuja sede
estava localizada na Europa, e que, portanto, compartilhava dos valores
CURIOSIDADE comuns às demais sociedades europeias do período.
Na colônia, assim como na metrópole, havia restrições à participação
Defeito mecânico política daqueles que tivessem “defeito mecânico” ou que não atestas-
Em uma sociedade escravista e pro- sem sua “pureza de sangue”.
fundamente marcada pelos valores do Do mesmo modo, e pelos mesmos motivos expostos anteriormente,
Antigo Regime, o trabalho manual era al- a origem social de cada um não era algo pessoal, mas uma questão de
tamente desvalorizado, e por essa razão, interesse público. Nesse contexto, aqueles que, em sua genealogia fa-
era visto como defeito. miliar, apresentassem vínculos sanguíneos com cristãos-novos, índios,
mouros ou negros estavam impedidos de participar da vida política na
colônia, uma vez que esta era uma prerrogativa dos membros das famí-
CURIOSIDADE lias mais nobres da região.

Cristãos-novos
Judeus convertidos ao catolicismo.

42 • capítulo 2
COMENTÁRIO CURIOSIDADE
Sobre esse assunto, o historiador Evaldo Cabral de Mello afirmou que: “Dos séculos Devassa
XVI ao XVIII vigorava em Portugal, Espanha a respectivas colônias um sistema de Pesquisa de provas e inquirição de tes-
discriminação que impedia aos descendentes de judeus, africanos, índios e mouros o temunhas para averiguação de um fato
acesso aos cargos públicos, à carreira eclesiástica, e às honrarias e mercês dispen- criminoso ou presumido como tal; sindi-
sadas pela Coroa. A honra do indivíduo e de sua parentela ficava assim prisioneira cância./Os autos ou processos de que
da pureza do sangue.” constam essas pesquisas; sumário./P. ext.
Exploração; procura minuciosa; pesquisa.
Em uma sociedade marcada pela estratificação social como era a Sal-
vador de fins de 1700, as possibilidades de ascensão das classes popu-
lares eram muito remotas.
Se a participação política Por todos esses motivos,
na cidade era restrita à cha-
o que a princípio era
mada nobreza da terra, a
participação nas atividades uma insatisfação
comerciais locais também popular ligada ao
não dependia da livre ini- aumento de preços das
ciativa: somente à Coroa mercadorias da cidade
cabia a concessão de mono-
logo se converteu em um
pólios (direitos exclusivos)
comerciais a pessoas ou a movimento muito maior,
companhias de comércio. de crítica ao próprio
Para a população mais colonialismo português.
pobre, apartada dos privilé-
gios e das benesses concedidas pela Coroa aos seus favoritos, a piora em
suas condições de vida gerada pelo aumento de preços das mercadorias
era de responsabilidade da administração colonial, elitista e excludente.

ATENÇÃO
O clima de insatisfação, acentuado pela grande circulação de ideias iluministas pela
cidade (por meio de panfletos e da leitura pública das principais obras iluministas),
levou à elaboração e à distribuição de panfletos criticando a monarquia absolutista
e a administração colonial portuguesa, e defendendo ideias típicas do movimento
iluminista francês, como a igualdade perante a lei e o livre comércio.

Ciente de tal movimentação, o governador da Bahia reagiu exigindo a


abertura de uma investigação, cujos resultados apontaram a existência de
um movimento de insatisfação
popular que já programava a re- Todos os condenados
alização de um pronunciamento eram de origem social
revolucionário. Motivado por essas modesta e de cor
informações, o governador orde- negra ou parda.
nou a prisão de 49 pessoas, acusa-

capítulo 2 • 43
CURIOSIDADE das de participarem da conspiração, das quais seis foram condenadas à
morte e quatro levadas à forca.
A punição aos acusados de conjuração em Salvador foi consideravel-
mente mais severa do que aquela imposta aos conjurados mineiros: na
Bahia, ao contrário do ocorrido em Vila Rica, a participação da popula-
ção no movimento foi ampla e diversificada: havia entre os descontentes
desde proprietários de terra até soldados e alfaiates, que muitas vezes
eram negros ou pardos.
Tudo isso, aliado ao medo de que na América portuguesa se repetisse
o que tinha acabado de ocorrer no Haiti, onde, no ano de 1792, escravos
e ex-escravos lideraram uma bem-sucedida revolução social, provocou
uma reação mais rigorosa e violenta da Coroa. O chamado haitianismo
já tirava o sono da elite colonial.

Napoleão Bonaparte
Francês nascido na ilha da Córsega em A transferência da Corte portuguesa para as
1769, Napoleão foi um dos personagens
principais da Revolução Francesa: res-
Américas, ou o início do processo de “interio-
ponsável por vitórias heroicas do exér- rização da metrópole”.
cito francês, Bonaparte foi promovido a
general aos 27 anos, e nos últimos anos Desde fins do século XVIII eclodiram rebeliões em diversas regiões co-
da revolução já era visto como um herói loniais questionando alguns dos pressupostos da colonização portu-
nacional. Aclamado imperador em 1804, guesa, como a cobrança de impostos e a ausência de perspectivas para a
Napoleão promoveu a recuperação eco- população mais pobre. Em muitos casos, como em Vila Rica e Salvador,
nômica do país e tinha uma grande ambi- houve forte presença das ideias liberais nos movimentos contestatórios.
ção: tornar a França a maior potência do A defesa de governos constitucionais, das liberdades individuais e
continente europeu, transformando-se da separação entre Estado e Igreja são apenas alguns desses princípios,
igualmente no maior general e estadista presentes desde meados do século XVIII no pensamento iluminista
de toda a Europa. Com esse objetivo, o e fortalecidos com a Revolução Francesa, que abalou as estruturas do
imperador deu início a um processo de Antigo Regime europeu e produziu um dos maiores mitos históricos de
expansão territorial em que, à medida todos os tempos: Napoleão Bonaparte.
que conquistava novas terras, substituía Mesmo nos países europeus não afetados pela expansão do impé-
o governante local por alguém de sua rio napoleônico, esse processo era visto como temerário, pois havia a
confiança, causando sobressalto entre preocupação de que a influência trazida pelos conquistadores franceses
as monarquias europeias. pudesse afetar as estruturas do Antigo Regime no restante da Europa.
Se Bonaparte lutou ao lado dos revolucionários na França e participou
da derrubada do absolutismo em seu país, poderia fazer o mesmo nos
países vizinhos.

44 • capítulo 2
IMAGEM CONCEITO
Bloqueio Continental
O Bloqueio Continental, decretado por
Napoleão Bonaparte, em 1806, proibia
todas as nações europeias de fazer co-
mércio com a Inglaterra. Caso essa deter-
minação não fosse cumprida, o imperador
francês prometia invadir com seus exér-
citos e ocupar os países desobedientes.
Com essa medida, Napoleão pretendia
enfraquecer a indústria inglesa, maior
obstáculo ao desenvolvimento industrial
da França. Napoleão pretendia utilizar sua
força militar para inibir o comércio dos pa-
íses europeus com a Inglaterra e, assim,
fortalecer a economia francesa.
Napoleão Bonaparte — Arquivo de Villa Maria

E foi exatamente isso o que aconteceu: à medida que as tropas na-


poleônicas circulavam pelo continente, levavam consigo os ideais da
Revolução Francesa, contribuindo para ampliar a circulação das ideias
liberais em toda a região.

É importante ressaltar, no entanto, que apesar de se considerarem os


porta-vozes dos princípios liberais, os franceses, em seu movimento de
expansão pela Europa, agiram de forma violenta, intolerante e desres-
peitosa em relação à população conquistada.

O expansionismo francês não foi, portanto, algo benéfico à popu-


lação conquistada, como se poderia imaginar: como todo processo de
conquista, ele acarretou em prejuízos irreparáveis aos países que foram
objeto do desejo e da ambição desmedidas de Napoleão.
Apesar da incontestável superioridade militar do exército napoleô-
nico, que lhe rendeu a conquista de novos territórios, faltava ao impera-
dor francês superar militar e economicamente a Grã-Bretanha, o único
país a já ter passado pela Revolução Industrial, e que apresentava uma
estrutura econômica mais sólida e pujante que a de seu rival. Planejan-
do converter sua força militar em ganhos econômicos concretos para o
país, Bonaparte decretou, em 1806, o chamado Bloqueio Continental.
Portugal, que mantinha fortes relações econômicas com a Inglaterra, não
podia aderir ao bloqueio de Napoleão. Ao mesmo tempo, não podia recusá
-lo, pois seu país poderia ser invadido pelas tropas francesas. Ameaçado por
ingleses e franceses, a situação do príncipe-regente português era delicada.

capítulo 2 • 45
Conselheiro do príncipe, o nobre D. Rodrigo de Sousa Coutinho tinha uma solução:
transferir a Corte portuguesa para as Américas, que já era naquela época a parte mais rica
do Império, e, no Brasil, recuperar o prestígio e a prosperidade que um dia o Império por-
tuguês possuiu. Pressionado pelos ingleses, que já haviam aportado no litoral de Lisboa à
espera de uma decisão da Coroa portuguesa, e ciente de que o exército de Napoleão deixara
a França em direção ao seu país, o príncipe resolveu aceitar a sugestão de seu ministro.

ATENÇÃO
Por isso, em 27 de Novembro de 1807, acompanhado de aproximadamente 15 mil pessoas, o príncipe dei-
xa o porto de Lisboa rumo à parte americana de seu Império: o Brasil, ou a América portuguesa, evitando a
perda de seu trono e, ao mesmo tempo, reconstruindo, a partir das Américas, um império grandioso como
foi o Portugal cantado por Camões, em seu famoso poema “Os Lusíadas”.

O trajeto das embarcações portuguesas rumo ao Brasil durou cerca


de dois meses. Escoltada pela marinha inglesa, a mais poderosa do
mundo, a família real chegou a Salvador no dia 22 de janeiro de
1808, e foi recebida com festa pela população local.
Já em terras americanas, o príncipe João assinou um de-
creto de enorme importância para todo o Império português:
o da abertura dos portos às nações amigas. Segundo esse do-
cumento legal, passava a ser possível, a partir daquele mo-
mento, a realização de transações comerciais entre a América
portuguesa e as nações estrangeiras, sem a necessidade de
intermediação de Lisboa.
Página de Os Lusíadas
Com esse documento chegava ao fim, na prática, o pacto
colonial, e, consequentemente, o status de colônia da Amé-
rica portuguesa, ou pelo menos de uma parte dela: a região Centro-Sul, onde a Corte por-
tuguesa se instalou. É a partir daí que tem início um processo chamado pela historiadora
Maria Odila Leite da Silva Dias de “interiorização da metrópole”.
Segundo a referida historiadora, a vinda da família real para o Rio de Janeiro, até então
sede político-administrativa da colônia portuguesa nas Américas, provocou um processo
de deslocamento da metrópole de Lisboa para o Rio de Janeiro. Dali em diante, era a partir
dessa cidade que o Império portu-
guês seria comandado. Por outro lado, esse processo
O Rio de Janeiro passava, afinal, de interiorização da metrópole
de cidade colonial à cidade impe- garantiu aos portugueses
rial, provocando um profundo des- americanos que habitavam a
contentamento nas outras regiões
cidade do Rio de Janeiro uma
coloniais da América portuguesa
e mesmo em Lisboa, que perdia a ampliação de oportunidades sem
partir de então, pelo menos de for- precedentes.
ma provisória, seu status de sede do
Império português.

46 • capítulo 2
Novas funções e instituições foram criadas, permitindo a alguns des- EXEMPLO
ses homens a incorporação em postos burocráticos ligados a essa nova
realidade vivida pela cidade: bancos, bibliotecas, escolas militares e de Postos Burocráticos
medicina foram fundadas; novas oportunidades de comércio interno e Como funcionários da realeza, por
externo surgiram em decorrência desse processo, e tudo isso provocou o exemplo.
enraizamento de novos interesses, ligados aos grupos beneficiados com
a vinda da Corte portuguesa para o Rio de Janeiro.
Além desses casos, há também o dos portugueses natos que migram CURIOSIDADE
com o rei português para o Brasil e aqui recebem benefícios, terras e
privilégios, consolidando seus interesses no Centro-Sul da América por- Constituição
tuguesa. Será esse grupo que fará forte oposição ao retorno da Corte a Lei fundamental que discrimina os po-
Portugal, alguns anos mais tarde. deres de um país, suas atribuições e os
direitos e deveres dos cidadãos.
REFLEXÃO
Não é possível afirmar que a vinda da Corte portuguesa para as Américas significou,
na prática, o fim do status de colônia para todo o Brasil. Como discutimos anterior-
mente, não havia ainda, naquele momento, o Brasil enquanto um país com unidade
política e identidade nacional constituídas.
O que havia àquela época era um território chamado Brasil, composto por inúmeras regi-
ões coloniais com pouca ou nenhuma integração física e econômica, e cuja população na-
tiva cultivava muito mais um sentimento de identidade local do que de identidade nacional.

Por isso, o processo de construção da nação brasileira, bem como de


sua nacionalidade, teria início após a separação política entre o Brasil e
o Império português e estaria consolidado apenas em meados do século
XIX. Desse modo, para melhor compreendermos essa história, é neces-
sário perceber que a constituição do Brasil enquanto um país politica-
mente independente de Portugal e a constituição de uma nacionalidade
brasileira ocorreram em momentos diferentes.

ATENÇÃO
Assim, o processo de emancipação política do Brasil foi motivado, portanto, não por
arroubos de nacionalismo dos brasileiros descontentes com os colonizadores por-
tugueses, mas por insatisfações e dissidências internas do Império português, que
abarcava interesses contraditórios e irreconciliáveis.

A impossibilidade dessas diferentes partes em conflito chegarem a


um acordo levou à opção pela independência, como veremos adiante.

RESUMO
Dessa maneira, vale a pena reforçar, a independência do Brasil não resultou de uma
guerra entre diferentes nações, mas, sim, de uma guerra ocorrida no interior da na-
ção portuguesa, como afirma o historiador Sérgio Buarque de Holanda, que nomeou
todo o processo de “Guerra civil portuguesa”.

capítulo 2 • 47
Compreendida essa questão, pode-se entender melhor por que a vinda da Corte para
o Rio de Janeiro não trouxe benefícios nem foi bem aceita por todas as regiões da então
América portuguesa.

EXEMPLO
Para as províncias do norte, por exemplo, esse processo de interiorização da metrópole provocou uma
aproximação incômoda entre a região e o centro decisório de todo o Império: na prática, a metrópole inte-
riorizada estava mais próxima de suas colônias e, assim, podia controlá-las com mais eficiência.

Nos anos de permanência da Corte portuguesa no Rio de Janeiro, houve um aumento


significativo dos impostos cobrados às províncias do norte.
Essa sobrecarga de impostos recaídos sobre a região, aliada ao novo status político-ad-
ministrativo do Rio de Janeiro, gerou um profundo descontentamento entre as elites locais.
A Revolução Federalista de 1817 deixava claro o desejo dos pernambucanos de maior au-
tonomia em relação à metrópole.
Inspirados pelo modelo federalis- Esse quadro de insatisfações e
ta norte-americano, os revoltosos dissidências no interior do Império
pernambucanos reivindicavam o
português foi agravado quando,
direito ao exercício do autogover-
no, mantendo-se parte do Impé-
em 1820, estourou em Portugal
rio português, mas assegurando um movimento reivindicatório
sua autonomia local. O movimen- que ficou conhecido como a
to foi sufocado pelas pretensões Revolução do Porto.
centralizadoras de D. João VI, mas
deixava clara a inexistência de unidade entre as diferentes regiões da América portuguesa.

A Revolução do Porto e a emancipação da América


portuguesa

REFLEXÃO
Você já se perguntou alguma vez como ficou a situação de Portugal após a transmigração da família real
para a América portuguesa? Uma das formas de tentarmos responder a essa pergunta é observando Lis-
boa, a antiga sede do Império português.

Após a partida da Corte portuguesa para o Rio de Janeiro, a cidade transformou-se no re-
trato da destruição: invadida e arrasada pela guerra com as tropas napoleônicas, governada
por um militar inglês, prejudicada pelo deslocamento do eixo econômico do império para
o Rio de Janeiro, a situação de Lisboa e do restante de Portugal era caótica.
No ano de 1814, após cerca de seis anos de conflitos e graças a um grande esforço do povo
português, as tropas napoleônicas deslocadas para o país foram finalmente derrotadas. Mas

48 • capítulo 2
o saldo de destruição e de prejuízos de toda ordem deixado por esses anos de guerra era
desanimador. A perspectiva lisboeta de retomada do protagonismo no interior do Império
português sofreu um duro golpe com a elevação do Brasil a reino unido de Portugal e Algar-
ve (1815): com essa medida, ficava clara a intenção da monarquia portuguesa de dar conti-
nuidade ao projeto de enraizamento da metrópole em terras americanas, contrariando os
interesses dos portugueses que viviam na Europa.

RESUMO
Como já foi dito, estava em curso no Brasil não apenas uma estada temporária da Corte, circunscrita ao
momento em que Portugal estivesse invadido por tropas francesas, mas a execução de um projeto de
refundação do Império português a partir das Américas. Transferir-se para o Brasil não foi apenas uma
forma de fugir de Napoleão, mas também uma tentativa do Império português de recuperar o esplendor,
deslocando a sua sede para a região que já era há muito tempo a mais rica de todo o império: o Brasil.

Em 1820, o descontentamento em relação à situação periférica de Portugal no Império


português acentuou-se: na Espanha, um movimento de inspiração liberal ganhava as ruas
e submetia o rei a uma constituição.
No mesmo ano, o atraso no pagamento das tropas portuguesas sediadas no Porto foi o
estopim para o início de uma revolta que ganhou as ruas da cidade e, em poucos meses, se es-
tendia a Lisboa, ganhando o nome de Revolução Liberal do Porto: assim como os espanhóis,
os portugueses pretendiam não apenas que o rei retornasse a Portugal, mas também que ele
assinasse uma constituição, que limitaria seus poderes e garantiria direitos aos portugueses.
Além de desejarem retomar a condição de sede do Império português, o que seria con-
seguido caso o rei D. João VI retornasse a Lisboa, os revolucionários tinham outras exigên-
cias: para satisfazer aos desejos das Cortes de Lisboa, convocadas com o objetivo de reunir
os diferentes representantes da nação portuguesa e, assim, dar continuidade ao movimen-
to revolucionário, era necessário que o rei tomasse medidas que, na prática, significariam
o fim do processo de “interiorização da metrópole” no Centro-Sul da América portuguesa.
A esse processo, os brasileiros reagiram, denunciando o que seria uma tentativa de reco-
lonização do Brasil por parte das Cortes de Lisboa. Na prática, como já vimos, a única região
“descolonizada” da América portuguesa, que fazia às vezes de metrópole e impunha um rígi-
do controle sobre as demais regiões, era a Centro-Sul, liderado pelo Rio de Janeiro, que a essa
altura já era chamado nas províncias do norte pejorativamente de “a nova Lisboa”.
De fato, o Rio de Janeiro e os grupos de interesses constituídos na cidade após a chega-
da da família real corriam risco de sofrer sérios prejuízos em consequência das determina-
ções que vinham das Cortes.
A partir daí, as divisões entre os grupos favoráveis e os contrários aos revolucionários do
Porto irão se tornar cada vez mais evidentes, até o momento em que reste apenas a alterna-
tiva da separação política entre os reinos.

capítulo 2 • 49
REFLEXÃO
Mas antes de chegar a isso, vamos discutir outros aspectos importantes dessa história?
Anteriormente, afirmamos que o movimento de reação às determinações vindas das Cortes de Lisboa foi
liderado pelos brasileiros, que denunciaram a tentativa de recolonização do Brasil contida naquelas medi-
das. Mas, se antes da independência não havia o Brasil enquanto um país constituído, e se tampouco havia
naquele momento uma nação brasileira, como é possível afirmar que os brasileiros tiveram um papel de
destaque na oposição às determinações de Lisboa?

O significado do termo brasileiro é hoje para nós bastante conhecido: todos o identifica-
mos como o termo referente àqueles que possuem nacionalidade brasileira, ou seja, nasce-
ram no país ou são descendentes de brasileiros. No passado, entretanto, o termo brasileiro
já teve diferentes significados: no século XIX, precisamente durante a Revolução do Porto,
ser brasileiro era assumir uma atitude política.

IMAGEM

Maria Leopoldina Regente. Georgina de Albuquerque

Assim, brasileiros eram não necessariamente as pessoas nascidas no território que em


alguns anos formaria um novo país, o Brasil, mas, sim, aqueles que estavam unidos, ainda
que momentaneamente, em torno das mesmas convicções: eram contrários às determina-
ções que chegavam às Américas por meio das Cortes de Lisboa.

50 • capítulo 2
COMENTÁRIO
José Bonifácio, que foi um dos representantes da América portuguesa nas Cortes e que é considerado um
dos artífices do processo de independência, afirmou que, em sua opinião, brasileiros eram aqueles que luta-
ram ao seu lado e, assim, assumiram posição política favorável à separação dos reinos do Brasil e de Portugal.

Para os homens ligados ao Partido Brasileiro, não inte-


ressava o retorno da Corte portuguesa para Lisboa, pois
isso significaria a perda de privilégios adquiridos com o
deslocamento do eixo do Império português para o Rio
de Janeiro. Apesar disso, a separação política entre os
reinos do Brasil e de Portugal não foi algo planejado pelo
grupo dos brasileiros desde o início das divergências en-
tre eles e as Cortes portuguesas.
Na verdade, ela foi uma solução surgida e amadu-
recida no curso dos acontecimentos, à medida que ia
José Bonifácio ficando clara a impossibilidade de brasileiros e por-
tugueses chegarem a um consenso. No primeiro momento, os brasileiros defenderam
a criação de um império dual, o Império luso-brasileiro, com duas sedes, o reino do
Brasil e o reino de Portugal.
Ambos os reinos estariam articulados politi- A possibilidade de
camente um ao outro, garantindo a autonomia de “recolonização do
ambos e resguardando os interesses constituídos Brasil” era a grande
na cidade do Rio de Janeiro de qualquer medida
preocupação do grupo.
que pudesse alterar a sua condição.
Diante do aumento das pressões vindas de Lisboa e de dentro da própria colônia, D.
João VI, até então reagindo ao movimento com medidas conciliadoras, se viu obrigado a
tomar uma decisão: pressionado pelas tropas portuguesas, que manifestavam sua insa-
tisfação nas províncias do Grão-Pará e da Bahia, o rei jurou obedecer à constituição que
estava sendo elaborada em Portugal, e decidiu-se pelo retorno ao continente europeu.

ATENÇÃO
No dia 26 de abril de 1821, D. João VI finalmente regressou a Portugal, atendendo ao pedido das Cortes e
causando descontentamento entre os brasileiros, que chegaram a tentar impedir a sua saída pelo porto da
Guanabara. Constatada a inevitabilidade do retorno do rei, alguns componentes do Partido Brasileiro pas-
saram a defender a ideia da separação entre os reinos, como forma de assegurar a autonomia da região
Centro-sul da América portuguesa em relação ao Império português.

Ciente da insatisfação que seria causada pela sua decisão, e pretendendo evitar a eclo-
são de um movimento que significasse o fim do controle da dinastia dos Bragança sobre
o território português nas Américas, o rei português se decidiu pela permanência de seu
filho primogênito, o príncipe Pedro, no Brasil, até que se resolvessem as divergências entre

capítulo 2 • 51
o movimento em curso na cidade de Lisboa e aqueles que se opunham a ele, localizados,
sobretudo, no Rio de Janeiro.
Entretanto, a permanência no Brasil de um herdeiro do trono português desagradou as
Cortes portuguesas, que imediatamente passaram a exigir a volta de Pedro para Portugal. O
Partido Brasileiro, por sua vez, iniciou um movimento para convencer Pedro a ficar.

ATENÇÃO
A disputa entre as Cortes e o Partido Brasileiro teve momentos decisivos. Em 9 de janeiro de 1822, o
príncipe Pedro recebeu um manifesto com mais de 8 mil assinaturas pedindo que ele ficasse no Brasil e
concordou em ficar. O episódio é conhecido como o Dia do Fico.

As Cortes portuguesas continuaram tomando medidas e fazendo exigências que


contrastavam com os interesses enraizados na região Centro-Sul do Brasil. Os interes-
ses de brasileiros e portugueses tornavam-se cada vez mais conflitantes, e a separação
entre os reinos parecia ser a única forma de garantir a autonomia do Centro-Sul e, por
extensão, de toda a América portuguesa, diante da insistência das Cortes em retomar o
controle estreito sobre essa região.

IMAGEM

Independência do Brasil – pintura de François-René Moreau.

Para a família real portuguesa, uma vez que a separação entre os dois reinos parecia
inevitável, seria mais vantajoso que ela acontecesse sob a liderança de um representante da
família real portuguesa, pois assim estaria garantido para a dinastia portuguesa o controle
das duas regiões, ainda que, do ponto de vista político, a independência do Brasil signifi-
casse a separação dessa região de Portugal.

52 • capítulo 2
Desse modo, a liderança de Pedro no processo de independência do Brasil não repre-
sentou uma ruptura ou um rompimento de seus laços com a família Bragança. Muito pelo
contrário: ela representou a possibilidade de manutenção dos laços entre Brasil e Portugal,
apesar da iminência da separação entre as partes, que se efetivaria ainda no ano de 1822.

COMENTÁRIO
É importante, ainda, relembrar que nem todas as regiões coloniais manifestaram descontentamento ou
oposição às decisões vindas de Lisboa: nas províncias do norte, contrariadas e sufocadas com o controle
da “nova Lisboa” sobre sua região, a revolução iniciada em Portugal reacendia a chama do autogoverno,
pois talvez possibilitasse a esses locais a conquista de maior autonomia tanto em relação a Portugal quanto
em relação ao Centro-Sul do Brasil. Em muitos casos, houve manifestações explícitas de apoio aos revol-
tosos nas regiões ao norte da América portuguesa.

Por isso, é importante frisar novamente que não é possível compreender o processo de
independência do Brasil da forma como geralmente estamos acostumados a estudá-lo:
como um movimento uniforme, unindo todos aqueles nascidos no Brasil e chamados de
brasileiros, contra a opressão do colonizador.

IMAGEM

Independência ou morte — pintura de Pedro Américo

ATENÇÃO
No dia 7 de Setembro de 1822, às margens do riacho Ipiranga, D. Pedro proclamava a separação do Brasil
da Corte portuguesa. Com essa decisão, nascia o Brasil: um país independente politicamente de Portugal,
que seria comandado pelo primogênito da dinastia portuguesa, o futuro rei D. Pedro I.

capítulo 2 • 53
Entretanto, o caminho rumo à Começava, a partir de então,
construção de um país integrado e
o longo e duro processo de
com unidade política, abarcando
todo o território que um dia perten-
construção do Brasil.
ceu ao Império português era, naquele momento, apenas um dos inúmeros caminhos
possíveis de serem trilhados e estava em seu estágio inicial.

RESUMO
Vimos nesse capítulo que, em meados do século XVIII, no contexto de crise do Antigo Regime europeu,
multiplicaram-se pela América portuguesa movimentos de insatisfação em relação ao excessivo controle
e/ou à cobrança de impostos vindas da metrópole. Dois dos movimentos mais conhecidos da época foram:
a conjuração mineira e a conjuração baiana.
Vimos também que não é possível afirmar que esses movimentos tiveram alcance nacional ou pretendiam
lutar pela independência nacional, pois a nação e a nacionalidade brasileira não estavam constituídas até
meados do século XIX.
Por fim, vimos que as repercussões da Revolução Francesa e a difusão do ideário liberal pelo continente
europeu tiveram seus efeitos também no continente americano: elas serviram de inspiração para os movi-
mentos contestatórios citados acima e estiveram indiretamente ligados a uma grande mudança ocorrida na Amé-
rica portuguesa: a transferência da Corte portuguesa para a parte americana de seu império. Pressionados pelos
ingleses e por Napoleão, o príncipe regente português se decidiu pela transferência da sede do império português
para as Américas, em um processo que ficou conhecido como a “interiorização da metrópole”.
Os conflitos ligados à independência e à formação do Brasil não foram motivados por critérios de nacionalidade,
mas por disputas no interior do Império, entre aqueles que se sentiam prejudicados e os que haviam obtido bene-
fícios com a mudança no status da cidade do Rio de Janeiro. Dessas disputas internas surgiria, em 1822, o Brasil.

ATIVIDADE
Leia os fragmentos de textos destacados abaixo e assinale as alternativas corretas:
“A permanência da família real no Brasil era desejada por aqueles setores sociais — comerciantes, burocra-
tas, proprietários de terras e de escravos — que prosperavam, acumulavam poder e ganhavam prestígio no
Rio de Janeiro. Eles sabiam que os favores concedidos pelo soberano português eram a razão fundamental
das mudanças que ocorriam em suas vidas.”
(MATTOS, I. R. Independência ou Morte: a emancipação política do Brasil. São Paulo: Atual, 1991).

“Novas instituições foram criadas pela Coroa portuguesa, e a maioria delas foi estabelecida no Rio de
Janeiro, que, assim, assumiu um papel centralizador dentro de uma América portuguesa que antes era
muito fragmentada no sentido administrativo. Houve resistência a isso, principalmente em Pernambuco,
em 1817. Mas, no final, o poder central foi mantido.”
(Adaptado de Kenneth Maxwell, "Para Maxwell, país não permite leituras convencionais". Entrevista
concedida a Marcos Strecker. Folha de São Paulo, 25/11/2007, Mais, p. 5).

54 • capítulo 2
Questão 1
Sobre as transformações político-sociais e econômicas ocorridas durante a permanência da Corte portugue-
sa no Brasil (1808-1821), estão corretas as afirmações a seguir, À EXCEÇÃO DE:
a) A vinda da família real para o Brasil manteve a região Centro-Sul colônia em uma posição periférica com
relação às decisões políticas e econômicas do Império português, permanecendo a cidade de Lisboa como
o principal centro econômico e político do Império.
b) A abertura dos portos favoreceu os interesses dos proprietários rurais produtores de açúcar e algodão,
uma vez que se viram livres do monopólio comercial.
c) Durante o Período Joanino, organizaram-se novos órgãos e instituições, como o Banco do Brasil e a
Casa da Moeda.
d) Dentre as medidas que mudaram o perfil político-econômico da colônia, destacou-se o decreto que
promoveu a Abertura dos portos às nações amigas, em 1808, que concedeu à América portuguesa a per-
missão para a realização de comércio com as nações amigas do Império português.

Questão 2
No ano de 1817, ocorreu em Pernambuco um movimento revolucionário, que contou com a participação
das mais diversas camadas sociais. Esse movimento ficou conhecido como Revolução Pernambucana.
Dentre os fatores que contribuíram para a eclosão da Revolução Pernambucana é INCORRETO citar:
a) A insatisfação com os portugueses que controlavam o comércio na região.
b) A excessiva cobrança de impostos do governo sobre a população de Pernambuco.
c) A influência dos ideais da Revolução Francesa no movimento pernambucano.
d) A insatisfação com a manutenção da escravidão, que causava desigualdade na colônia.

Questão 3
“Quer Portugal livre ser,
Em ferros quer o Brasil;
promove a guerra civil,
Rompe os laços da união.”
(Volantim, 7/10/1822)

A partir dos versos acima, publicados em um jornal fluminense, pode-se verificar que a postura de Portugal em
relação a sua antiga colônia, ao longo do ano de 1822, aprofundou o desgaste das relações entre os dois reinos.
Assim, a independência do Brasil pode ser explicada pelo seguinte fato:

a) criação do cargo de governador das Armas, gerando conflitos institucionais no Exército nacional.
b) arbitrariedade das Cortes portuguesas, subordinando os governos provinciais diretamente a Lisboa, e
tomando medidas que foram interpretadas como uma tentativa de recolonização das Américas, que desa-
gradavam ao grupo dos brasileiros.
c) existência de facção separatista brasileira ligada ao tráfico negreiro, objetivando controlar as posses-
sões portuguesas na África.
d) revogação da liberdade de culto concedida aos britânicos, ampliando os antagonismos entre Londres e
as Cortes portuguesas.

capítulo 2 • 55
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
CARVALHO, J. M. (org). A construção nacional 1830-1889. Rio de Janeiro: Objetiva, 2011.
DIAS, M. O. S. A interiorização da metrópole e outros estudos. São Paulo: Alameda, 2005.
FREIRE, A.; MOTTA, M. S.; ROCHA, D. História em curso: o Brasil e suas relações com o mundo ocidental.
São Paulo: Editora do Brasil, 2005.
MATTOS, I. R.; ALBUQUERQUE, L. A. S. Independência ou morte: a emancipação política do Brasil. Rio de
Janeiro: Atual, 1991.
_______________ Construtores e herdeiros: A trama dos interesses na construção da unidade política. In:
Almanack Braziliense nº 01, maio 2005. p 8-26.
_______________ O Tempo Saquarema. 5. ed. São Paulo: Hucitec, 2004.
MAXWELL, K. A Devassa da Devassa. A Inconfidência Mineira. Brasil e Portugal (1750-1808). Rio de
Janeiro: Paz e Terra, 2000.
MELLO, E. C. A outra Independência: o federalismo pernambucano de 1817 a 1824. São Paulo: 34, 2004.
_______________ O nome e o sangue: uma parábola genealógica no Pernambuco colonial. São Paulo:
Companhia das Letras, 2009.
SCHWARCZ, L.M. D. João Carioca. São Paulo: Companhia das Letras, 2007.
SILVA, Alberto da Costa e (org). Crise colonial e independência 1808-1830. Rio de Janeiro: Objetiva, 2011.

56 • capítulo 2
“Sois reis!

13 Sois reis!” A
construção do
Brasil imperial

natalia peixoto bravo


de souza
3 “Sois reis! Sois reis!”
A construção do Brasil imperial
De Reino Unido a Império do Brasil
COMENTÁRIO
Brasil IDEIA
O processo de construção da nação
brasileira, bem como de uma identidade “Havia um país chamado Brasil; mas absolutamente não havia brasileiros.”
comum a todos os brasileiros, teria o seu
pontapé inicial alguns anos após a consu-
mação da independência política. Desse A frase de abertura, do naturalista francês Auguste de Saint-Hilaire,
modo, não houve coincidência ou simulta- já foi utilizada em outro capítulo para embasar a discussão sobre o pro-
neidade entre os processos de formação cesso de independência da América Portuguesa entre os anos de 1808 e
do Brasil e da nação brasileira, pois eles 1822. Para compreendermos o período histórico do pós-independência
ocorreram em momentos diferentes. em toda a sua complexidade, é necessário recorrer novamente a ela: a
ruptura de D. Pedro com as Cortes portuguesas resultou na criação de
um novo país, o Brasil.
CURIOSIDADE É importante relembrar que o movimento de insatisfação em rela-
ção às decisões das cortes portuguesas, que resultou na separação polí-
Partido Brasileiro tica entre os reinos do Brasil e de Portugal, foi protagonizado pelo grupo
Formado, sobretudo, por aqueles que ob- integrante do chamado Partido Brasileiro.
tiveram algum tipo de ganho ou de am- Por esse motivo, a maioria dos integrantes desse grupo vivia na região
pliação de oportunidades com o desloca- Centro-Sul, nas proximidades da cidade do Rio de Janeiro. Desse modo, o
mento do eixo do Império português para a processo de independência foi conduzido pelas lideranças do Centro-Sul
cidade do Rio de Janeiro. e obedeceu aos interesses específicos desse grupo e dessa região.

ATENÇÃO
Já frisamos que não houve um movimento nacional de independência, pois não
havia unidade e tampouco havia interesses comuns entre as diferentes regiões que
compunham a parte americana do Império português até o ano de 1822. O único
elo entre essas diferentes regiões era o fato de todas serem parte de um mesmo
todo — o Império Português.

Com a condução vitoriosa do processo de independência a partir do


Centro-Sul, rompeu-se a ligação entre as partes: herdeiro de um nome,
Brasil, e de um território, aquele que um dia pertenceu ao Império por-
tuguês, ou seja, a América Portuguesa, D. Pedro I tentaria, a partir de
então, reconstituir essa ligação, conferindo a ela um novo significado.

58 • capítulo 3
IMAGEM

D. Pedro I – pintura de Jean Baptiste Debret

Um aspecto importante relativo ao momento pós-independência é que, uma vez que


não havia entre as regiões coloniais da América Portuguesa um sentido de unidade política,
cultural ou histórica preexistente à independência do Brasil, havia uma grande possibilida-
de de que aquele território que por três séculos pertencera a Portugal se fragmentasse após
a separação de sua antiga metrópole.

REFLEXÃO
Da mesma forma como ocorreu na América Espanhola, em que os antigos vice-reinados foram transfor-
mados em países independentes ao longo do século XIX, a América Portuguesa poderia ter dado lugar a
diferentes países independentes entre si. Por que isso não ocorreu no Brasil? Essa é uma pergunta para a
qual muitos historiadores têm buscado uma resposta.

Uma das respostas possíveis para essa pergunta está associada à atuação de dois homens
proeminentes nesse começo de século: D. Pedro I e
José Bonifácio. Estes puseram em prática, nos primei- Iniciava-se naqueles
ros anos de governo imperial, um projeto de constru- anos a formação do
ção de um novo vínculo entre essas regiões, a partir do Império do Brasil.
Centro-Sul do Brasil, e não mais a partir de Lisboa.

capítulo 3 • 59
IMAGEM

José Bonifácio

Nesse processo de construção de uma nova unidade política entre as regiões da antiga
América Portuguesa, houve grande resistência. Como já foi estudado, nem todas as regiões
coloniais pretendiam romper com o Império Português e incorporar-se ao novo país em
gestação naquele momento. Em regiões como a Bahia e o Grão-Pará, a incorporação ao Im-
pério do Brasil foi feita por meio do recurso à força: tropas militares foram enviadas por D.
Pedro para lutar contra os descontentes, favoráveis aos revolucionários do Porto.
Para alcançar o objetivo de transformar as desintegradas regiões que compuseram o Brasil
colonial em um todo unificado que constituiria o Império do Brasil, seria necessário um go-
verno forte e centralizador, capaz de impor a sua autoridade às regiões descontentes do novo
império. Assim pensava José Bonifácio de Andrada, um dos principais conselheiros do rei.

60 • capítulo 3
COMENTÁRIO
Vamos ver o que o próprio Bonifácio afirmou sobre esse mesmo assunto:
“(...) preguei a independência e liberdade do Brasil, mas uma liberdade justa e sensata debaixo das formas tute-
lares da Monarquia Constitucional, único sistema que poderia conservar unida e sólida essa peça majestosa e
inteiriça de arquitetura social desde o Prata ao Amazonas, qual a formara a mão onipotente e sábia da divindade.”

Desse modo, durante todo o período de governo de D. Pedro, chamado de Primeiro Reinado,
políticas centralizadoras foram adotadas pelo monarca com o objetivo de viabilizar a constru-
ção de um país unificado, cujas fronteiras fossem correspondentes às da América Portuguesa.

COMENTÁRIO
Tudo isso será discutido de forma mais detalhada ao longo deste capítulo. Entretanto, antes de partirmos
para uma análise mais aprofundada sobre os aspectos destacados anteriormente, cabe esclarecer alguns
pontos importantes e pertinentes à nossa reflexão.

Em primeiro lugar, é importante ressaltar que a oposição à política centralizadora de


D. Pedro I não apareceu apenas nas regiões ao norte do Império que, desde o processo de
independência, estiveram alinhadas ao Partido Português. Havia diferentes grupos em dis-
puta, com projetos distintos de nação para o Brasil.
Nos momentos imediatamente após o processo de independência já era possível perce-
ber a formação de grupos que discordavam quanto à forma política que o novo país deveria
assumir. Entre todos eles, que vamos descrever melhor adiante, dois se destacavam: o gru-
po encabeçado por José Bonifácio e o grupo liderado pelo jornalista Gonçalves Ledo.
O primeiro, capitaneado por José Bonifácio, defendeu a separação política entre os rei-
nos do Brasil e de Portugal e a adoção da monarquia constitucional.
O outro grupo, liderado pelo jornalista Gonçalves Ledo, também se posicionara favorá-
vel à separação entre os reinos à época da independência, e defendia a monarquia consti-
tucional. Mas, se ambos concordavam nessas questões fundamentais, qual era o ponto de
discordância entre esses dois grupos?

As diferenças entre esses dois grupos, um chamado de aristocratas e o outro de democra-


tas, estavam ligadas à questão da distribuição de poderes entre o Executivo e o Legislativo,
que poderiam dar ao governo de D. Pedro uma feição mais centralizadora ou uma feição
mais descentralizada.

Mas antes de continuarmos nosso raciocínio, vamos compreender um pouco melhor


essas ideias?

capítulo 3 • 61
CURIOSIDADE Aprendemos no capítulo anterior que um dos legados da Revolução
Francesa foi a difusão das ideias liberais por todo o continente europeu.
Legado O movimento que pôs fim ao Antigo Regime na França e que defendia
Patrimônio material ou espiritual que se ideias como a igualdade perante a lei, a limitação do poder do rei por
deixa para a posteridade. meio de uma constituição, a separação entre a Igreja e o Estado e a ga-
rantia das liberdades individuais aos cidadãos serviu de inspiração a
inúmeros movimentos semelhantes que ocorreram na Europa e até
COMENTÁRIO mesmo nas Américas ao longo do século XIX.

Liberdade EXEMPLO
Como a liberdade religiosa, a liberdade
de expressão e a liberdade econômica. Os casos da Espanha e de Portugal são exemplos de quanto as ideias liberais cir-
culavam pelo continente naqueles anos. De acordo com essas ideias, em governos
constitucionais, as liberdades dos indivíduos seriam mais bem preservadas, pois os
reis deveriam obedecer a uma Constituição, e, portanto, não teriam mais poderes
ilimitados. Os cidadãos, por sua vez, teriam direitos iguais e estariam submetidos ao
mesmo conjunto de regras, independentemente da origem social ou das preferên-
cias pessoais do governante. Nesse formato, ricos e pobres, nobres e burgueses
teriam os mesmos direitos perante a lei.

Outro princípio bastante valorizado era o da separação entre os poderes:


difundido com base na obra do iluminista francês Montesquieu, ele atestava
os benefícios da separação dos poderes em Executivo, Legislativo e Judiciário.
Os três poderes seriam independentes entre si e garantiriam a manuten-
ção de um sistema de equilíbrio, em que não haveria excessos de nenhuma
das partes. Ao rei caberia o comando do poder Executivo. Ele executaria a lei e
os projetos aprovados pelo Legislativo.
Os representantes do povo, eleitos por meio do voto, comporiam o poder
Legislativo, que seria exercido em um parlamento, uma assembleia, ou em
órgãos como o senado e as câmaras de deputados. Aos integrantes do poder
Legislativo caberia a elaboração e a votação das leis. O judiciário seria exerci-
do por juízes e demais juristas, responsáveis pela aplicação da lei e pelo julga-
mento daqueles que não as cumprissem.

ATENÇÃO
Na prática, o equilíbrio entre os poderes variava de acordo com a correlação de forças
de cada sociedade: quanto maior a soma de poder que cabia ao Executivo, mais cen-
tralizado seria o governo. Ao contrário, se nesse equilíbrio de poderes prevalecesse o
poder Legislativo, mais descentralizado seria o governo, maior seria a participação dos
representantes do povo e mais autonomia teriam as regiões em relação ao poder central.

Como as ideias vinculadas ao grupo dos democratas contrariavam


o projeto de nação defendido por homens fortes do governo, como José
Bonifácio, e também contrariavam a própria vontade de D. Pedro, seus mem-

62 • capítulo 3
bros foram sendo isolados de uma efetiva participação política. Em 1823, CURIOSIDADE
quando se formou no Brasil uma Assembleia Constituinte com o objetivo de
redigir a Constituição a ser jurada por D. Pedro I, os democratas não puderam Povo
participar desse processo. É importante ressaltar que, quando fala-
Mesmo excluídos os democratas, as divergências persistiam quanto à for- mos de povo, não estamos nos referindo
ma que deveria assumir o governo do Brasil: entre os integrantes do Partido à população mais humilde, pois, assim
Brasileiro, que no futuro ficariam conhecidos como os liberais moderados, como no caso do conceito de brasilei-
ainda era forte a defesa da prevalência do poder Legislativo no governo de D. ro, o significado de povo no século XIX
Pedro. Assim, esse grupo era favorável a um governo mais descentralizado do era diferente de seu significado atual.
que desejava o imperador, com maior participação do povo. Naquela época, o termo povo referia-se
Os homens do povo possuíam plenas condições para o exercício de sua apenas à chamada boa sociedade, com-
cidadania no Brasil do século XIX, ou seja, podiam participar da vida política posta pelos homens livres e proprietá-
do país, alguns apenas na condição de eleitores e outros como eleitores e pos- rios de terras e de escravos.
síveis candidatos aos cargos do Legislativo da época. Voltaremos a esse ponto
quando analisarmos mais detidamente a Constituição de 1824.
Para melhor compreendermos as diferentes visões e posicionamentos
políticos do período, vamos observar a tabela a seguir?

Formado por aqueles que se posicionaram


contra a Revolução do Porto como aqueles
que obtiveram benefícios com o deslocamen-
Partido Brasileiro durante o
to da sede do Império para o Rio de Janeiro.
processo de independência
Os absolutistas, que eram contra a submissão
do rei a uma Constituição, também integra-
vam esse grupo naquele momento.

Composto tanto por aqueles que defendem


um modelo de monarquia constitucional com
Partido Brasileiro após o Executivo forte, como é o caso de José Bo-
processo de independência nifácio, quanto pelos que defendem um go-
verno mais descentralizado, com mais peso
para o poder Legislativo.

Do Partido Português faziam parte aque-


les que se identificavam com a Revolução
Partido Português durante o
do Porto e, portanto, eram favoráveis ao
processo de independência
retorno do rei a Portugal e às demais exi-
gências dos revolucionários.

capítulo 3 • 63
CURIOSIDADE Os portugueses que permaneceram no Brasil
e não aderiram à independência, declarando-
Democrata se brasileiros, os que defendiam a reunifica-
Que professa princípios democráticos. Partido Português após o
ção entre os reinos do Brasil e de Portugal
processo de independência
e ainda os absolutistas, que migraram para o
Democracia Partido Português após a derrota da Revolu-
Forma de governo na qual o povo exer- ção do Porto em Portugal.
ce a sua soberania por meio de repre-
sentantes eleitos pelo voto. Agora que já conseguimos identificar melhor as mudanças ocorridas
nos partidos Português e Brasileiro após o processo de independência,
vamos retomar o nosso raciocínio?
CURIOSIDADE
RESUMO
Aristocrata
Pertencente à aristocracia; nobre. Como já foi dito nas páginas anteriores, nem todos concordavam quanto à melhor
forma de governo que o Brasil deveria adotar após a sua separação de Portugal:
Aristocracia alguns, chamados de exaltados, defendiam a República, mas não eram muito nume-
Governo no qual o poder é monopolizado rosos e por isso não faziam tanto barulho.
por um grupo de pessoas privilegiadas.
Os absolutistas defendiam a forma de governo em que os poderes
estão todos concentrados nas mãos do rei, e por isso eram contra a mo-
CURIOSIDADE narquia constitucional.
Entre os defensores da Constituição, também havia diferenças: os
Império democratas eram favoráveis a um governo mais descentralizado, com
Forma de Estado governada por impe- predominância do poder Legislativo e acabaram perdendo espaço den-
rador ou imperatriz; conjunto de países tro do Partido Brasileiro.
sujeitos ao poder de um imperador. Já os aristocratas, liderados por José Bonifácio, eram favoráveis a um
Executivo forte, um governo centralizado, que permitisse ao monarca
brasileiro impor a sua autoridade e, assim, garantir a unidade do antigo
território português nas Américas.
Para os adeptos dessas ideias, no processo de construção do Império
do Brasil, era necessária a centralização do poder nas mãos do rei. Mas
o que é um Império? Você conhece o significado dessa palavra? Você sa-
beria diferenciar um império de um reino?
Quando analisamos os grandes impérios que existiram ao longo da
história, percebemos que todos eles tinham algo em comum: a sua voca-
ção expansionista. Todos promoveram, ao longo de sua existência, gran-
des e bem-sucedidas expedições militares, conquistando novas terras e
povos, e tornando-se muito poderosos.

REFLEXÃO
Foi assim durante o Império Romano, no Império Português das grandes navega-
ções, e em tantos outros exemplos. Mas se os impérios possuem essa característica,
o que faria do Brasil recém-independente um Império, como sugere o seu nome?

64 • capítulo 3
De acordo com o historiador Ilmar Mattos, José Bonifácio e o grupo representado por ele,
juntamente com D. Pedro, estavam diretamente envolvidos no processo de construção do
Império do Brasil e para isso precisaram promover uma expansão diferente: no caso brasi-
leiro, a expansão seria “para dentro” do território que um dia compôs a América Portuguesa.
Desse modo, o Brasil do pós-independência não seria um império graças à conquista de terri-
tórios vizinhos, como os da atual Argentina, Paraguai, Uruguai, entre outros exemplos.
O Brasil seria um império porque precisou expandir-se para dentro do antigo território
português, conquistando e trazendo as regiões do Norte e do Sul, não identificadas desde
o início com o projeto de nação pensado no Centro-Sul, para o seio desse novo país em
construção: o Brasil. Era necessário, portanto, fortalecer o poder Executivo, para que o im-
perador pudesse dispor de plenos poderes e, assim, colocar em prática o projeto idealizado
por esse grupo: a construção do Império do Brasil.
Desse modo, o processo de construção do Império do Brasil e, por consequência, da
nação brasileira, a “expansão para dentro”, tem início no governo de D. Pedro I e é possibi-
litada pela ação centralizadora do imperador.

COMENTÁRIO
Para concluir a reflexão sobre os diferentes matizes do pensamento político no pós-independência, sugiro
a observação atenta do significado das palavras aristocrata e democrata. É possível que já possa com-
preender por que esses grupos foram nomeados dessa forma: os democratas foram os que defenderam,
entre os grupos estudados, maior participação do povo na política, enquanto os aristocratas defendiam um
governo mais restrito à participação popular.

Por esse motivo, como vimos, os democratas acabaram apartados de todo o processo de
elaboração da Constituição. Entretanto, mesmo entre os ditos democratas, a defesa da de-
mocracia não era tão evidente, pelo menos da forma como nós entendemos a democracia
atualmente, pois em ambos os formatos a maioria esmagadora da população permanece-
ria impossibilitada de qualquer tipo de participação política.
De toda a forma, as discussões e os desentendimentos entre os constituintes dificulta-
vam o andamento da Assembleia. Como não se chegava a um acordo quanto à distribuição
dos poderes entre o Executivo e o Legislativo, parecia cada vez mais difícil a tarefa de elabo-
ração de uma Constituição para o país. Além do desagrado causado pelo interesse dos in-
tegrantes do Partido Brasileiro na limitação dos poderes do rei, havia ainda outros motivos
de desentendimentos, como a tentativa dos brasileiros de impedir que os portugueses que
não declarassem apoio explícito à independência tivessem direitos políticos.

A Constituição de 1824 e suas repercussões

Diante dessa situação, em novembro de 1823, o Imperador Pedro I, em uma atitude carre-
gada de autoritarismo, fecha a assembleia constituinte e nomeia um Conselho de Estado
para ajudá-lo na elaboração de uma nova Constituição, sem a participação dos membros da
Assembleia, diminuindo sua representatividade.

capítulo 3 • 65
CURIOSIDADE Tendo sido produzida pelo Imperador e pelos conselheiros escolhi-
dos por ele, a Constituição foi outorgada em 1824. Você sabe a diferença
Autoritário entre as palavras promulgada e outorgada?
Diz-se de pessoa que quer ser obede- Quando uma carta constitucional é elaborada por representantes do
cida sem discussão; diz-se de governo povo eleitos para o exercício do poder Legislativo que lhes compete e o
não democrático. governante apenas a assina, comprometendo-se a obedecê-la e, ao mes-
mo tempo, aprovando-a, dizemos que a Constituição foi promulgada.
Quando, no lugar, a Carta é imposta ao povo de forma autoritária,
CURIOSIDADE sem que seus representantes tenham participado de sua elaboração, di-
zemos que a Constituição foi outorgada.
Promulgar E foi assim que ocorreu com a Constituição de 1824: elaborada sem
Tornar público, expedir, publicar ofi- a participação dos constituintes, ela foi recebida com desagrado por boa
cialmente. parte dos cidadãos e súditos desse império em construção, que denun-
ciavam o autoritarismo das medidas do imperador.
Outorgar Além disso, seu conteúdo contrariava os interesses de boa parte dos
Conferir, dar. O imperador outorgou- integrantes do Partido Brasileiro, bem como daqueles homens e mulhe-
lhe o título de Barão. res que ainda resistiam à tentativa de incorporação de suas regiões ao
Império do Brasil.
A balança de equilíbrio na Carta outorgada por D. Pedro I pendia
CURIOSIDADE para os poderes do Executivo, garantindo ao monarca um governo cen-
tralizado, que lhe permitiria dar continuidade ao seu projeto imperial,
Federalismo como discutimos nas páginas anteriores.
Forma de governo em que os estados
reconhecem o poder central, mas man- EXEMPLO
têm a autonomia de cada um.
Entre as principais características da Carta de 1824, podemos citar:
• A consagração do modelo de monarquia unitarista, na qual o imperador nomeia
os presidentes de província, subordinando-os diretamente à autoridade central.
Isso desagradou algumas regiões, pois foi interpretado como um desrespeito às
autonomias locais;
• A instituição do padroado, segundo o qual a Igreja Católica no Brasil ficava subor-
dinada à autoridade real;
• O sistema eleitoral indireto e censitário, que excluía uma grande parcela da popu-
lação do direito ao voto e a divisão de poderes, não em três, como na teoria de Mon-
tesquieu, mas em três mais um, que estaria acima desses três e que seria exercido
exclusivamente pelo imperador: o Poder Moderador.

Vamos ler alguns trechos originais da Constituição de 1824, para


melhor compreendermos os impactos gerados por ela em toda a socie-
dade da época?

66 • capítulo 3
Segundo o documento outorgado por D. Pedro:
(...) o Império é a associação política de todos os cidadãos brasileiros; o seu governo é mo-
nárquico, hereditário, constitucional e representativo; são cidadãos brasileiros: os que no
Brasil tiverem nascido, quer sejam ingênuos ou libertos (...), todos os nascidos em Portugal
e suas possessões, que sendo já residentes no Brasil na época em que se proclamou a
independência (...), aderiram a esta.

Vejamos como a Constituição de 1824 define o poder moderador:


O poder moderador é a chave de toda a organização política, e é delegado privativamente
ao imperador, (...) para que incessantemente vele sobre a manutenção da independência,
equilíbrio e harmonia dos demais poderes políticos.

Observe o organograma da Constituição de 1824: ele permite visualizar melhor a estru-


turação político-administrativa imposta pelo imperador com o documento.

Poder moderador
IMPERADOR

Nomeia os membros vitalícios do


CONSELHO DE ESTADO
Nomeia os presidentes de Autoritarismo Nomeia as autoridades
eclesiásticas da
PROVÍNCIA Poder LEGISLATIVO IGREJA OFICIAL CATÓLICA
APOSTÓLICA ROMANA
Aprova ou não as
CONSELHOS CÂMARAS Padroado
decisões da
GERAIS MUNICIPAIS
ASSEMBLEIA GERAL Nomeia e destitui
Unitarismo os ministros do
Nomeia o Convoca ou dissolve a
PODER EXECUTIVO
Nomeia e suspende SENADO VITALÍCIO CÂMARA DOS
os ministros do DEPUTADOS
PODER JUDICIÁRIO Unitarismo
Baseado no organograma de Ilmar Rohloff de Mattos et al. Brasil — uma história dinâmica, p.22.

As insatisfações e reações à Constituição logo se fizeram sentir: em 1824, mesmo ano de


sua outorga, explodiu um movimento contestatório em uma das regiões de maior ebulição
do império.

EXEMPLO
Palco da Revolução Federalista de 1817 e alinhada aos portugueses durante a Revolução do Porto, Per-
nambuco era um dos exemplos mais fortes de que o projeto de constituição de um novo império comanda-
do a partir do Centro-Sul não seria facilmente implantado, pois a sua aplicação resultaria no sufocamento
das identidades e das autonomias locais.

capítulo 3 • 67
Por isso, em Pernambuco, onde a chama do autogoverno esteve acesa alguns anos an-
tes, a notícia de que o rei nomearia um presidente de província para a região, desconside-
rando a indicação da câmara municipal local, foi o estopim para o início do movimento
nomeado de Confederação do Equador.
Entre as lideranças do movimento, que pretendia separar-se do Império do Brasil e for-
mar um novo país composto por uma confederação de estados da qual fariam parte as pro-
víncias da Bahia até o Grão-Pará, estavam o mestiço Natividade Saldanha e frei Joaquim do
Amor Divino Rabelo e Caneca, mais conhecido como frei Caneca.

IMAGEM

Frei Caneca

A outorga de uma Constituição vista como autoritária e o desrespeito à autonomia local


reavivou os pendores federalistas da região, comprometendo o projeto unificador do im-
perador D. Pedro I. A essa tentativa de secessão o imperador reagiu com firmeza, enviando
tropas e militares que conseguiram derrotar os descontentes.

ATENÇÃO
É importante ressaltar que também foi importante para a vitória das tropas enviadas pelo imperador o apoio
dado a elas por um grupo formado por proprietários de terras e de escravos, e também pelos comerciantes
portugueses, para quem as ideias de liberdade e de igualdade propagadas pelo grupo eram um sinal peri-
goso, pois poderiam colocar em risco a “manutenção da ordem” em sua região.

A reação desencadeada a partir da capital do império, com o apoio de grupos locais, en-
terrou novamente o sonho federalista acalentado nas províncias do Norte do império: frei
Caneca, símbolo da resistência local, foi fuzilado, a mando do governo, em 1825.

68 • capítulo 3
A crise do Primeiro Reinado CURIOSIDADE
A essa altura, você já deve ter percebido que a tarefa de governar e de, Antilusitano
ao mesmo tempo, promover a unidade política do Brasil recém-inde- Diz-se daquilo ou daquele que é contra
pendente não foi nada fácil para o imperador: acusado de autoritarismo os portugueses.
pelo grupo que mais tarde seria conhecido como o dos liberais modera-
dos, D. Pedro enfrentava ainda a oposição daqueles que lhe acusavam
de privilegiar os interesses portugueses, concedendo a eles benefícios e
vantagens das quais a população local não desfrutava.
Aliás, é sempre importante ressaltar que, nos primeiros anos após
a emancipação política do Brasil, cresceu imensamente o sentimento
antilusitano entre a população, ainda impactada pelas divergências que
resultaram na separação entre os reinos do Brasil e de Portugal.

ATENÇÃO
Isso não quer dizer que o antilusitanismo de parte da população significasse o
fortalecimento do nacionalismo, do sentimento de pertença à nação brasileira.

Na verdade, o processo de constituição da identidade nacional bra-


sileira teve início no período pós-independência e esteve em curso ao
longo do século XIX, encontrando-se consolidado apenas em meados e
fins desse século. A oposição aos portugueses ocorreu, em muitos casos,
por causa do controle desse grupo sobre o comércio local em algumas
regiões do Império, o que criava conflitos e ressentimento da população
local em relação aos portugueses, sobretudo àqueles que não declara-
ram apoio explícito à causa da independência.
Desse modo, as críticas à postura centralizadora e autoritária do Im-
perador, somadas ao descontentamento causado pelos supostos privilé-
gios concedidos por ele aos portugueses, em um momento de marcado
sentimento antilusitano, contribuíram para fragilizar o governo de D.
Pedro I, pois abalavam a sua popularidade.
Esse quadro foi agravado pelo envolvimento do imperador em dois
conflitos bélicos: a guerra da Cisplatina e as disputas ligadas à sucessão
do trono português.

CURIOSIDADE
Você sabia que a região correspondente ao atual Uruguai foi parte do Reino, e poste-
riormente do Império do Brasil por aproximadamente onze anos, entre 1817 e 1828?

Durante o período Joanino, a região da Cisplatina foi incorporada ao


Reino do Brasil com o nome de Banda Oriental. Em 1825, teve início na
região um movimento liderado por uruguaios desejando a separação do
Império governado por D. Pedro I e a incorporação da região à Argentina.

capítulo 3 • 69
O Brasil reagiu decretando guerra ao vizinho portenho, em um conflito que terminou
três anos depois com a decretação da independência da região, que deu origem à Repúbli-
ca Oriental do Uruguai, em 1828. O envolvimento do Brasil no conflito provocou inúmeras
críticas ao imperador, em razão da sobrecarga de impostos cobrados pelo império para
custear a participação do país nessa guerra.
A outra razão para o endividamento do governo brasileiro causava ainda mais revolta
entre a população: com a morte de D. João VI, teve início em Portugal a disputa pelo trono
português envolvendo a filha de D. Pedro, D. Maria da Glória, que era a sucessora legítima
ao trono, e o irmão de D. Pedro, D. Miguel.
Disposto a intervir em favor da filha no conflito dinástico português, D. Pedro enviou re-
cursos e mobilizou esforços para garantir a sua posse, contribuindo para acirrar ainda mais
os ânimos no grupo dos brasileiros, cada vez mais insatisfeito com as ações do imperador.

ATENÇÃO
Todos esses elementos reunidos potencializaram o clima de tensão e de oposição ao governo de D. Pedro
I que, pressionado, reagiu de forma inesperada: abdicou ao trono do Império do Brasil em favor de seu filho
mais velho, à época com cinco anos, e retornou ao continente europeu para disputar com o irmão o trono a
que tinha direito hereditário. Em 1831, nove anos após o início de seu reinado no Brasil, D. Pedro retornava
a Portugal, mas deixava o poder nas mãos de seu herdeiro, o futuro D. Pedro II.

O Segundo Reinado

D. Pedro II reina, mas não governa: o período regencial


Vejamos o que afirma o historiador José Murilo de Carvalho sobre o período da história do
Brasil conhecido como Segundo Reinado, que vai do ano de 1831 até o ano de 1889.

COMENTÁRIO
Entre 1831 e 1889, o Brasil consolidou sua independência, garantiu a unidade da antiga colônia portu-
guesa, definiu suas relações com os países vizinhos no rio da Prata, fundou uma monarquia constitucional
representativa, manteve a liberdade de imprensa e a competição partidária, deu os primeiros passos na
industrialização e, embora muito lentamente, livrou-se do trabalho escravo [...].

A afirmação acima já nos permite entrever alguns dos aspectos marcantes do período
em que D. Pedro II governou o Brasil: em seu reinado, houve inúmeras rebeliões populares
e elitistas, que puseram em risco o projeto de construção de um Brasil unificado, como so-
nhara seu pai. Houve também nesses anos:

70 • capítulo 3
O acirramento das tensões entre o Brasil e a Inglaterra.

A consolidação do processo de construção da nação brasileira.

As disputas envolvendo liberais e conservadores pelo protagonismo na política nacional.

A decretação da proibição do tráfico de escravos.

O envolvimento do Brasil na Guerra do Paraguai.

A abdicação de D. Pedro I, reagindo às pressões vindas principalmente do grupo dos


brasileiros, que deram origem aos chamados liberais moderados, pegou a todos de surpre-
sa: mesmo os críticos mais impiedosos do imperador provavelmente não esperavam uma
decisão tão drástica de sua parte.
Após um primeiro momento de surpresa e, em alguns casos, de festejos e hostilidades
em relação aos portugueses, percebeu-se que a saída do imperador deixava o governo sem
um comando. Isso porque, seu filho mais velho, o próximo na linha de sucessão, tinha na
época apenas cinco anos. Diante desse quadro, o congresso reuniu-se para eleger uma re-
gência trina que, como o nome sugere, seria composta de três governantes responsáveis
pela condução política do país até que o imperador tivesse idade para assumir o comando
do Império do Brasil.

ATENÇÃO
Ressalte-se que a forma de governo do país permaneceu sendo uma monarquia, e que D. Pedro, àquela épo-
ca apenas uma criança, já reinava, mas ainda não tinha condições de governar, sendo, portanto, necessária a
organização de um governo regencial nesse ínterim.

D. Pedro II aos 12 anos

capítulo 3 • 71
RESUMO
No início deste capítulo, discutimos de forma muito cuidadosa como o rei D. Pedro I e o aristocrata José
Bonifácio pretendiam, após o processo de independência, fazer do Brasil um Império constituído pelas
mesmas regiões que no passado compunham a América Portuguesa.
Para que isso ocorresse, foi necessário o que o historiador Ilmar Rohloff de Mattos chamou de “expansão
para dentro”, e que poderia ser traduzido na integração das demais regiões pertencentes ao antigo Império
português ao novo país que se formava a partir do Centro-Sul do Brasil.
É bem verdade que essa integração nem sempre ocorreu de forma voluntária ou natural: algumas regiões
demonstraram resistência à sua inclusão nesse novo Império, e foi necessário o uso da força para garantir
que o projeto imperial de D. Pedro obtivesse êxito.
Vimos também que a política centralizadora do imperador, muitas vezes criticado pelo seu autoritarismo,
esteve diretamente relacionada ao interesse na promoção de unidade política entre essas regiões distintas
e distantes do Brasil pós-independência. Como é possível imaginar, passados apenas nove anos da for-
malização da independência do Brasil, o projeto de nação assumido por D. Pedro ainda estava em curso: o
que mantinha as regiões do império do Brasil unidas era, justamente, a força centrípeta que vinha do Rio
de Janeiro, em decorrência da política centralizadora do imperador.
Ora, com a abdicação de Pedro I, como evitar o perigo de fragmentação do território brasileiro? Como sufo-
car o desejo tão evidente em algumas regiões de maior autonomia local? Como garantir a “manutenção da
ordem” na ausência de um governo forte? Essas são as questões que terão de ser enfrentadas pela elite
senhorial que assumiu o controle político da nação após o retorno de D. Pedro a Portugal.

A ausência do rei possibilitará o crescimento do grupo político favorável a uma maior


descentralização do poder e, com uma estrutura política mais descentralizada, o Império
do Brasil tornou-se mais vulnerável às inúmeras revoltas que estouraram de Norte a Sul do
país, algumas de caráter separatista, colocando a unidade do país em risco.
Por fim, o medo de que essas revoltas “levassem à anarquia”, ou seja, provocassem a
dissolução do império e a alteração sua estrutura social, baseada na grande propriedade
e na escravidão, levou os membros das elites, que se dividiam em liberais e conservadores
e tinham divergências políticas, a chegarem a um acordo, em meados do século XIX, já no
governo de Pedro II. Por essa razão, a alternância entre os gabinetes liberal e conservador
e a semelhança na forma como ambos governavam será a prova de que chegara ao fim o
período de disputas internas.
Em tais circunstâncias, o país entrava em uma nova fase, marcada pela estabilização po-
lítica e pela consolidação do sentimento de pertencimento à nação brasileira. A identidade
nacional já aparecia, fortalecida pelo surgimento de uma História pátria, de uma língua
portuguesa distinta daquela falada na antiga metrópole, enriquecida pelos vocábulos de
origem indígena e pela própria literatura romântica indianista, que exaltava as virtudes do
índio, o símbolo legítimo da brasilidade.
Nesse mesmo processo, em que, na intenção de se constituir uma identidade nacional
para o Brasil, a herança indígena foi ressaltada, e houve o apagamento da herança africana,
pois em uma sociedade profundamente marcada pela escravidão, a cultura africana era
vista como um elemento negativo, a ser descartado, consciente ou inconscientemente.

72 • capítulo 3
REFLEXÃO
Entretanto antes de discutirmos melhor o Brasil de meados do século XIX, vamos analisar mais de perto o
chamado Período Regencial?

Com a partida do rei de volta a Portugal (1831), tinha início no Brasil um momento de
intensa instabilidade: de um lado, absolutistas, liberais moderados e exaltados discutiam
e disputavam o controle político do país; de outro, manifestações explícitas de antilusita-
nismo resultavam em cenas de violência e aumentavam o clima de tensão em toda a parte.
À medida que chegava a notícia da abdicação nas províncias mais distantes, aumenta-
vam consideravelmente os conflitos vivenciados entre portugueses e a população local, e os
ânimos daqueles que sempre defenderam mais autonomia regional se exaltavam.
Já nos primeiros anos de período regencial, houve inúmeras revoltas populares, deixan-
do claro que o momento político vivido no Brasil daqueles anos era delicado.
Foi nesse contexto que o grupo dos liberais moderados, integrantes do Partido Brasilei-
ro durante o Primeiro Reinado, ganhou maior destaque na política nacional, e conseguiu
aprovar medidas que resultaram na descentralização do governo, garantindo maior auto-
nomia às regiões e comprometendo a possibilidade de o governo central reagir com força
às tantas revoltas que marcaram esse período.
A tabela ajuda a compreender melhor a composição partidária durante todo o perí-
odo regencial.

1831-1834
LIBERAIS EXALTADOS 1835-1837 1837-1870
“FARROUPILHAS”
PROGRESSISTAS PARTIDO LIBERAL
LIBERAIS MODERADOS
“CHIMANGOS” PARTIDO
REGRESSISTAS CONSERVADOR
RESTAURADORES

Naquele contexto, o próprio clima era mais suscetível à vitória dos grupos favoráveis à
descentralização, pois o tempo em que o imperador impunha uma política centralizadora
ainda estava muito vivo na memória daqueles homens, que poucos anos antes faziam forte
oposição ao que consideravam as medidas autoritárias do rei.
No entanto, a defesa de uma estrutura política mais descentralizada não significava que
os liberais questionassem a ordem social em que viviam. Ao contrário, a manutenção da or-
dem pública e o perigo da fragmentação do país estiveram entre as maiores preocupações
do grupo. Assim, é nesse contexto que é criada, ainda em 1831, a Guarda Nacional.
Os comandantes da Guarda, chamados de Coronéis, eram, em muitos casos, aqueles
que já possuíam o controle político de suas regiões, sendo a eles concedida maior autono-
mia, ou seja, menor intervenção do governo central na resolução de conflitos locais.
Do ponto de vista do ambiente político provocado pela abdicação, o formato mais des-
centralizado assumido pela guarda estava de acordo com as demais ações que marcaram a
primeira fase do período regencial. Em 1834, houve nova vitória do grupo dos liberais mo-

capítulo 3 • 73
CURIOSIDADE derados: três anos após o retorno de D. Pedro a Portugal, era aprovada
uma reforma constitucional, a única em todo o Império que tornaria a
Guarda Nacional estrutura política do país mais descentralizada.
É inspirada no modelo francês das milí-
cias cidadãs, segundo o qual as respon- COMENTÁRIO
sabilidades pela garantia da ordem pú-
blica deveriam ser repassadas a quem Nas palavras de José Murilo de Carvalho:
tinha muitos motivos para preservá-la: “A Constituição foi reformada em 1834 por um Ato Adicional votado pela Câmara,
os proprietários de terras e de escravos. que recebera para isso mandato especial dos eleitores. Foi a única reforma constitu-
cional feita durante o Império. O Ato Adicional concedeu às províncias assembleias
e orçamentos próprios e deu a seus presidentes poderes de nomeação e transfe-
CURIOSIDADE rência de funcionários públicos, mesmo quando pertencentes ao governo geral. O
novo sistema só não era plenamente federal porque os presidentes (de província)
Conselho de Estado continuavam a ser indicados pelo governo central”.
O Conselho de Estado era formado por
políticos indicados pelo próprio Impe- Além das medidas já relatadas, que garantiam às regiões mais auto-
rador. Suas inúmeras atribuições pos- nomia em relação ao poder central, outro importante elemento que ga-
sibilitavam um controle mais efetivo do rantia ao imperador o poder de controlar mais de perto as regiões e pro-
monarca sobre os mais variados aspec- víncias imperiais foi abolido pelo Ato Adicional: o Conselho de Estado.
tos de seu governo, contrariando os de-
sejos de maior autonomia tão evidentes REFLEXÃO
em algumas regiões.
Além disso, é importante lembrar que o próprio poder moderador, por ser de uso
exclusivo do monarca, não vigorava durante o período regencial. Por todos esses
motivos, o governo da regência teve como característica marcante o menor controle
do poder central sobre as regiões integrantes do Império do Brasil e isso possibilitou
o surgimento e o fortalecimento de inúmeras revoltas de Norte a Sul do país, como
é possível observar na tabela.

NOME PROVÍNCIA DATA LÍDERES FATOS CAUSAS PRINCIPAIS

REVOLTA DOS LIBERAIS DOMÍNIO SOBRE BELÉM


MALCHER, CONTRA O PRESIDENTE DURANTE UM ANO E
PARÁ 1833-36 VINAGRE, NOMEADO PELO GOVERNO LUTAS NO INTERIOR;
CABANAGEM
ANGELIM REGENCIAL; SITUAÇÃO DE MORTE DE 40% DA
MISÉRIA DOS CABANOS. POPULAÇÃO DA
PROVÍNCIA.
INSATISFAÇÃO COM AS
DR. SABINO ORGANIZAÇÃO DA
SABINADA BAHIA 1837-38 AUTORIDADES IMPOSTAS
ÁLVARES REPÚBLICA BAHIENSE.
PELA REGÊNCIA.
INSATISFAÇÃO COM O
MANUEL "BALAIO", PRESIDENTE NOMEADO CONQUISTA DA VILA DE
BALAIADA MARANHÃO 1833-41 RAIMUNDO GOMES, PELA REGÊNCIA E CAXIAS; ANISTIA AOS
COSME REVOLTA DE VAQUEIROS, REVOLTOSOS.
FAZEDORES DE BALAIOS E
ESCRAVOS FUGIDOS.

74 • capítulo 3
NOME PROVÍNCIA DATA LÍDERES FATOS CAUSAS PRINCIPAIS CURIOSIDADE
REAGINDO À DURA DURA REPRESSÃO AO
REPRESSÃO ÀS PRÁTICAS CONFLITO, RESULTANDO
Anarquia
RELIGIOSAS ENTRE OS NA PUNIÇÃO DE 500 Sistema politico com base na ausência
BAHIA ESCRAVOS, OS MALESES PESSOAS, DAS QUAIS 16
MALÊS 1835 ESCRAVOS MALÊS de toda forma de Estado ou governo.
PLANEJAVAM UMA FORAM CONDENADAS À
INSURREIÇÃO, QUE FOI MORTE E TRÊS FORAM Desordem ou confusão causada pela
DESCOBERTA ANTES DE REALMENTE EXECUTADAS.
SUA EFETIVAÇÃO. ausência de autoridade.
ALTOS IMPOSTOS, FUNDAÇÃO DAS
BENTO GONÇALVES;
EXIGÊNCIA DE MUDANÇAS REPÚBLICAS DE PIRATINI
FARROUPILHA RIO GRANDE 1835-1845 GIUSEPPE
DO SUL POLÍTICAS, EXEMPLO DAS E JULIANA; ANISTIA AOS
GARIBALDI.
REPÚBLICAS PLATINAS. REVOLTOSOS.

As revoltas regenciais detalhadas na tabela anterior são as mais estu-


dadas e divulgadas nos livros de História, mas não foram as únicas: hou-
ve inúmeros casos de rebeliões, algumas de caráter separatista, outras
desejando o federalismo e algumas até mesmo defendendo o retorno de
D. Pedro, como foi o caso da revolta dos Cabanos, que, curiosamente, foi
uma rebelião popular e conservadora.
Não houve unidade de interesses ou dos grupos sociais envolvidos
nessas revoltas. Houve casos de movimentos protagonizados por escra-
vos e libertos, como nos malês; houve rebeliões de caráter nitidamente
popular, como a Balaiada, e houve também rebeliões de caráter elitista,
como foi a Farroupilha.
Todas elas, no entanto, deixaram uma impressão clara aos homens
da época: a descentralização política era perigosa, pois poderia levar à
anarquia e até mesmo à fragmentação do território brasileiro.

REFLEXÃO
A essa altura, você pode estar se perguntando: o que esses homens veem como
anarquia?

Para a “boa sociedade”, ou seja,


aqueles que faziam jus às duas
pré-condições à cidadania no
Brasil imperial, os homens livres
e proprietários de terras e de es-
cravos, a anarquia seria uma al-
teração da estrutura social do
país que pudesse por em risco
aquilo que era visto como essen-
cial para a manutenção da or-
Sociedade brasileira - pintura de Debret
dem: a propriedade escrava.

capítulo 3 • 75
Ainda que em nenhuma das rebeliões regenciais a existência da escravidão no país te-
nha sido questionada, pairava entre a elite senhorial o fantasma do haitianismo: o medo
de uma rebelião escrava que fugisse ao controle e que redundasse no fim da escravidão era
imenso, e esteve na raiz da mudança de rumos tomada pelo governo a partir de então: tinha
início o chamado regresso conservador.

O regresso conservador e a antecipação da maiori-


dade de D. Pedro

“Fui liberal, então a liberdade era nova para o país, estava nas aspirações de todos, mas não
nas leis, não nas ideias práticas; o poder era tudo, fui liberal. Hoje, porém, é diverso o aspecto
da sociedade; os princípios democráticos tudo ganharam e muito comprometeram [...]”.

A afirmação acima é de Bernardo Pereira de Vasconcelos, membro da elite senhorial


formado em Coimbra e deputado por Minas Gerais. Vasconcelos, apesar de ter pertencido
ao grupo dos liberais, favoráveis à descentralização ocorrida após a abdicação de D. Pedro,
afinal é de sua autoria o projeto de lei do Ato Adicional, agora se posicionava ao lado daque-
les que ficarão conhecidos como os conservadores.
O sentimento de que a estrutura social brasileira, patriarcal e ancorada na escravidão,
pudesse estar em risco uniu antigos opositores no desejo de reforma: mesmo Evaristo da
Veiga, símbolo liberal, defendia ajustes no governo regencial para a garantia da ordem.

ATENÇÃO
Assim, após a renúncia do regente Feijó e sua substituição pelo conservador Pedro de Araújo Lima, inicia-
va-se o chamado regresso conservador, em que foram tomadas medidas visando à retomada do controle
mais estreito do governo central sobre as regiões imperiais, evitando assim a possibilidade de fragmen-
tação e de “anarquia”. Nesse sentido, em 1840, foi aprovada no parlamento a lei interpretativa do Ato
Adicional, que diminuía os poderes dos presidentes de província.

Percebendo o ambiente favorável aos conservadores, e temendo a sua exclusão do jogo


político imperial, os liberais reagiram de forma talvez inesperada: passaram a defender a
antecipação da maioridade de D. Pedro, que completaria 18 anos em 1843. A alta popula-
ridade do jovem imperador garantiu o sucesso da proposta e, em um clima de festas, foi
aprovada pela assembleia geral, ainda em 1840, a maioridade do imperador que, em re-
conhecimento pelo apoio a ele prestado, formou seu primeiro gabinete com políticos li-
berais. Já no ano seguinte, no entanto, os conservadores retornavam ao poder, aprovando
mais duas leis de caráter centralizador.

76 • capítulo 3
Em uma delas foi recriado o Conselho de Estado, garantindo ao rei a CURIOSIDADE
prerrogativa da nomeação do presidente do conselho e dos ministros
Liberal
que conduziriam a política nacional. Na outra, reformava-se o Código
Quem é partidário do liberalismo.
do Processo Criminal, garantindo o controle do Executivo sobre a po-
lícia e o Judiciário. Rapidamente, o imperador, auxiliado pelo gabinete
Liberalismo
conservador que retornava à cena política, recolocava o país no rumo
Doutrina que preconiza a liberdade políti-
da centralização e da unidade, o que garantiria, a seu ver, a ordem e a
ca ou de consciência, contra a interferên-
estabilidade necessárias para o Império do Brasil.
cia do Estado. Doutrina que, no setor eco-
nômico, preconiza a liberdade individual e
Nesse processo, houve resistências: ao longo da década de 1840, valoriza a iniciativa privada, em oposição à
ocorreram algumas reformas ligadas aos liberais, sendo a mais conheci- intervenção do Estado.
da delas a Revolta da Praieira, ocorrida na sempre resistente Pernambu-
co. Em meados da década de 1850, entretanto, já não havia mais riscos Conservador
sérios à unidade e estabilidade do país: seria o período áureo da chama- Que conserva, que se opõe a mudanças;
da conciliação. contrário a inovações.
Antes disso, porém, o imperador enfrentou um cenário de marcadas
disputas entre liberais e conservadores. Utilizando-se das prerrogativas
que lhe cabiam como decorrência do Poder Moderador, D. Pedro II pro-
movia a alternância periódica no poder entre liberais e conservadores,
dissolvendo a câmara sempre que necessário.
Dessa forma, o monarca pretendia fazer uma espécie de mediação
ou de arbitramento entre os dois grupos e, assim, evitar a desestabiliza-
ção política do império.

RESUMO
Já afirmamos anteriormente que, apesar das divergências entre liberais e conserva-
dores, os dois grupos não discordavam naquilo que era considerado o essencial: a
manutenção de uma estrutura social estratificada, patriarcal e escravocrata.

Alguns historiadores atribuem essa relativa homogeneidade dos


grupos à sua formação: entre liberais e conservadores era grande o nú-
mero de bacharéis formados em Coimbra, que partilhavam valores co-
muns e convicções semelhantes. Para outros, o temor de uma revolução
social que alterasse a estrutura escravista e da propriedade da terra era o
grande fator de unidade entre os dois grupos.

COMENTÁRIO
Seja pelo primeiro motivo, seja pelo segundo — ou mesmo por ambas as razões —,
é certo que não havia tantas diferenças assim entre Luzias, o apelido dos liberais, e
Saquaremas, como ficaram conhecidos os conservadores.

Em 1848, D. Pedro II tomava mais uma medida visando à consolidação

capítulo 3 • 77
CURIOSIDADE de uma estrutura política centralizada: naquele ano, foi criado o cargo de
Presidente do Conselho de Ministros, a ser nomeado pelo imperador. No
Presidente do Conselho de Brasil, D. Pedro II acumularia as funções de chefe de Estado e chefe de Go-
Ministros verno, o que lhe garantia pleno controle sobre o processo político nacional.
O Presidente do Conselho nomearia os Além disso, no caso
demais ministros, mas não seria o che- brasileiro, o conselho de Por esse motivo, o
fe do governo, como nos demais países ministros escolhido pelo parlamentarismo
parlamentaristas. imperador convocava as implantado por D. Pedro
eleições. O processo come- II ficou conhecido como
çava “de cima para baixo”
parlamentarismo às
ao contrário do caso inglês,
em que o parlamento, for- avessas.
mado por representantes do povo escolhidos por meio do voto, escolhe o Pri-
meiro Ministro.
Na década de 1850, passados cerca de trinta anos do início da cons-
trução do Brasil imperial, já era possível notar os seus resultados: o Bra-
sil dos anos de 1850 era uma nação com relativa estabilidade, sem ris-
cos aparentes de fragmentação e com a identidade nacional fortalecida
por uma vigorosa produção artística e intelectual. Tínhamos, enfim, um
país e uma nação.

EXEMPLO

LITERATURA O índio era exaltado como símbolo máximo da


ROMÂNTICA nacionalidade brasileira

HISTÓRIA Destacava a trajetória de personagens heroicos


ENSINADA NAS que estimulavam o patriotismo e o orgulho nacional
ESCOLAS
Incorporava vocábulos indígenas e adquiria ca-
A LÍNGUA racterísticas próprias, diferenciadas do portu-
PORTUGUESA guês de Portugal

Nesse contexto, foi nomeado pelo imperador o gabinete conservador


que foi considerado um dos símbolos da chamada hegemonia saqua-
rema: formado por Eusébio de Queirós, Paulino José Soares de Sousa e
Joaquim José Rodrigues Torres, este foi o segundo gabinete mais longo
do Segundo Reinado. Nessa gestão, foram tomadas algumas medidas de
suma importância para o Brasil daquele momento: a abolição do tráfico
de escravos e a aprovação da lei de terras.

78 • capítulo 3
REFLEXÃO
A esta altura, você deve estar se perguntando como um gabinete conservador foi o responsável pela apro-
vação da lei que proibia o tráfico de escravos, se os conservadores representavam justamente a elite se-
nhorial, proprietária de terras e resistente a quaisquer mudanças que pudessem pôr em risco seu estatuto
e seus privilégios. A resposta a essa pergunta começa na análise das relações entre o Brasil e a Inglaterra.

No Brasil do pós-independência, restaram muitas heranças da longa presença portu-


guesa nas Américas:

EXEMPLO

A LÍNGUA FALADA

A DINASTIA REINANTE

AS COMIDAS TÍPICAS

OS HÁBITOS E COSTUMES

A ORGANIZAÇÃO SOCIOESPACIAL

A RELIGIOSIDADE

Muitos outros exemplos poderiam ser citados. Parte do legado deixado pelos portugueses,
sem dúvida, foi a relação de dependência econômica do Império do Brasil com a Inglaterra.
A condição para que Portugal reconhe-
cesse a independência do Brasil foi o pa- O fim do comércio de
gamento de uma dívida que, na prática, escravos no Brasil traria
significou a transferência de todo o débito prejuízos econômicos
português com a Inglaterra para o Brasil. justamente para o grupo
A partir de então, o governo brasileiro pas-
em evidência com a saída
saria a sofrer com as constantes pressões
inglesas pela proibição do comércio de es- do imperador.
cravos no país.
Em 1826, como condição para o reconhecimento inglês da independência do Brasil, foi
assinado um tratado que entraria em vigor em 1831, segundo o qual estaria proibido o trá-
fico de cativos no país. Cinco anos mais tarde, quando o tratado assinado com os ingleses
passaria a valer, o país foi palco de importantes mudanças políticas.
Isso porque, com a abdicação de D. Pedro I, o grupo dos liberais moderados, formado
principalmente por senhores de terras e escravos, assumiu o controle político do país.
Assim, é possível que a lei, em vigor desde 1831, que proibia o tráfico de escravos, não

capítulo 3 • 79
CURIOSIDADE tenha sido cumprida porque contrariava diretamente os interesses do
grupo que controlava politicamente o país naqueles anos.
Outro motivo para o não cumprimento da lei foi a estrutura descen-
tralizada que assumiu o país nos anos da regência, pois ela dificultava o
controle mais estreito do governo central sobre as províncias do império.

ATENÇÃO
O fato é que, de 1831 a 1850, ao contrário do que determinava a lei, o tráfico de
escravos para o Brasil aumentou ao invés de diminuir. Na década de 1830, o café já
se tornara o principal produto de exportação da economia brasileira, e a expansão da
lavoura cafeeira no Sudeste do país aumentava a demanda por mão de obra escrava.

À Inglaterra, por sua vez, não passou despercebido o fato de que o


tratado assinado pelo Brasil era descumprido: já na década de 1840, au-
mentaram significativamente as pressões vindas daquele país, ao ponto
Lei Eusébio de Queirós de ter sido aprovada em solo britânico uma lei que considerava pirataria
Decretava a proibição do tráfico de es- os navios que transportassem escravos rumo ao Brasil, e ainda permitia
cravos em todo o território nacional. à marinha inglesa a interceptação de tais embarcações.
A invasão das águas territoriais brasileiras pelos navios ingleses con-
figurava uma evidente violação à soberania nacional, e o governo brasi-
CURIOSIDADE leiro pouco podia fazer para reagir às afrontas do governo inglês, pois
não possuía força militar ou econômica à altura do país europeu.
Lei de Terras Assim, quando os conservadores assumiram o governo, em 1848,
A partir da aprovação da Lei de Terras, uma questão se colocava para eles: como assumir uma posição em re-
a terra tornava-se mercadoria no país, lação ao tráfico de escravos que não demonstrasse fraqueza diante das
passando a ser adquirida por meio da agressões inglesas? Percebendo o aumento das tensões entre o Brasil e a
compra, e não mais por meio de doa- Inglaterra e cientes da impossibilidade de o Brasil reagir às pressões bri-
ções, como havia sido o costume em tânicas, os políticos da chamada trindade saquarema decidiram tomar
todo o período da colonização portu- para si a tarefa de extinguir o tráfico.
guesa e nos primeiros anos do Império. Em 1850, aprovaram a Lei Eusébio de Queirós. Dessa vez, o governo
fiscalizaria de perto o cumprimento da lei e, cinco anos após a sua de-
cretação, não aportavam mais navios trazendo escravos no Brasil. A lei,
dessa vez, fora cumprida à risca. No mesmo ano, outra lei muito impac-
tante foi aprovada: a Lei de Terras.
Alguns historiadores têm relacionado as duas leis em suas análises.
Tendo sido publicadas no mesmo ano, elas expressam a preocupação
da elite senhorial com relação à disponibilidade de mão de obra para
a lavoura no curso de alguns anos, quando, fatalmente, a escravidão já
teria sido extinta. Isso porque, com o término do tráfico de escravos, a
existência da escravidão no país estava com os dias contados.

80 • capítulo 3
COMENTÁRIO COMENTÁRIO
É importante ressaltar que o gabinete que aprovou e fez cumprir a Lei Eusébio de Guerra do Paraguai
Queirós era conservador, e, portanto, estava afinado com os interesses da elite pro- Motivada por disputas geopolíticas en-
prietária de terras e de escravos, mais que interessada na manutenção da escravidão. tre os países da região da bacia do Pra-
ta, Brasil, Paraguai, Uruguai e Argentina,
Na impossibilidade de adiar e resistir às pressões inglesas pelo fim a participação do Brasil na Guerra do
da escravidão aprovou-se a lei proibindo o tráfico de cativos para o Brasil, Paraguai, pela sua duração, pela quanti-
mas, ao mesmo tempo, com a Lei de Terras, garantia-se a disponibilida- dade de perdas humanas e de prejuízos
de de mão de obra para a econômicos, além dos impactos sociais
lavoura no futuro pós-es- Como veremos, a abolição dela resultantes, foi de fundamental im-
cravidão, pois a transfor- da escravidão significou portância para a derrocada do governo
mação da terra em mer- a libertação, mas não a de D. Pedro II.
cadoria dificultaria, ou inclusão social da imensa
até impediria, o acesso de
população escrava do
ex-escravos a ela como pe-
quenos proprietários. Brasil oitocentista.
Do ponto de vista político, os anos de 1850 e 1860 foram anos de es-
tabilidade e de alternância no poder entre liberais e conservadores. As
disputas entre os dois grupos, que marcaram as primeiras décadas do
Segundo Reinado, haviam cedido lugar a um entendimento tácito de
que ambos teriam o seu lugar, ainda que separadamente, no governo
de D. Pedro II.
Essa estabilidade é rompida com o início da guerra mais longa e san-
grenta da História do Brasil: a Guerra do Paraguai.

IMAGEM

Guerra do Paraguai — Pintura de Pedro Américo.

Entre os impactos provocados pela Guerra do Paraguai na socieda-


de brasileira, podemos citar: o fortalecimento do sentimento de iden-
tidade nacional, motivado pela reação nacionalista da população aos

capítulo 3 • 81
COMENTÁRIO ataques do Paraguai ao Brasil e também pelo fato de, pela primeira vez,
brasileiros de regiões distantes conviverem e compartilharem o mesmo
Novos Grupos Sociais cotidiano de luta contra o inimigo estrangeiro.
Cafeicultores paulistas, classes médias Isso possibilitou a criação de vínculos concretos entre brasileiros de
urbanas. todas as regiões do país, contribuindo para solidificar o sentimento na-
cionalista em toda a pátria.
Outras consequências da guerra foram a perda de popularidade do
imperador, o crescimento
de um sentimento corpo- Menos de vinte anos
rativo dentro do exército após o fim da guerra do
e também o crescimento Paraguai, a monarquia
do movimento abolicio-
chegaria ao fim no Brasil.
nista, que aumentaria as
pressões pelo fim da escravidão. Aliás, esse seria um tema que teria um
impacto significativo na ruptura entre o imperador e um dos grupos so-
ciais que mais lhe deu apoio em todo o seu governo: a elite senhorial e
proprietária de escravos.
A partir da década de 1870, as fissuras na relação da monarquia com a
Igreja, com o exército e com a classe de proprietários de escravos serão mais
uma evidência de que o governo monárquico entrava em crise no país.

Crise e fim do Império do Brasil (1870-1889)

Como já adiantamos, o fim do Império não foi decorrência, unicamente,


de um golpe militar: a Proclamação da República resultou de um longo
processo de desgaste do Império, acentuado em seus últimos vinte anos.
De um lado, o Estado imperial brasileiro foi se incompatibilizando com
sucessivos segmentos da sociedade que compunham suas bases de susten-
tação: Igreja, militares, classe senhorial (a questão religiosa, a questão mili-
tar, a abolição da escravidão). De outro lado, as profundas transformações
ocorridas nas décadas de 1870 e 1880 levaram a um descompasso entre o
poder político e o poder econômico na sociedade imperial.
A partir da década de 1870, ocorreu a ascensão de novos grupos sociais,
que vão reclamar de sua falta de representatividade política no governo
imperial, e vão alterar a tradicional composição de forças que caracteri-
zava essa sociedade. É importante lembrar que a classe tradicionalmente
vinculada ao poder político no império era a elite senhorial, da qual fa-
ziam parte, principalmente, os cafeicultores do vale do Paraíba.
Esses estavam majoritariamente concentrados no Partido Conserva-
dor. O Partido Liberal também era, na maior parte, formado por proprie-
tários rurais, mas de menor porte e voltados para o mercado interno.

82 • capítulo 3
A classe formada pelos cafeicultores de São Paulo, que no fim do im-
CURIOSIDADE
pério já lideravam a produção de café em âmbito nacional, não estava
Cafeicultores do Vale da Paraíba
representada nos dois mais tradicionais partidos políticos do império,
Chamados de “Os republicanos do 14 de
e por isso não tinha poder político à altura de sua importância econô-
Maio”, um dia após a decretação da Lei
mica para o país. De São Paulo, portanto, principalmente de um partido
Áurea, que aboliu da escravidão no Brasil.
formado em 1870, o Partido Republicano Paulista, surgiu uma forte e
organizada oposição ao governo de D. Pedro II.

Todos esses fatores, reunidos, ajudam a compreender o que ficou conhe-


cido como um processo de crise de legitimidade da monarquia, que pode ser
explicada pela incapacidade do Estado imperial de articular as velhas e as no-
vas demandas surgidas a partir da ascensão desses novos grupos.
À perda de apoio dos cafeicultores do vale da Paraíba, somada aos
desgastes do governo com a Igreja e o exército não se seguiu a formação
de uma nova base de sustentação para o imperador: ele perdia apoio das
classes que tradicionalmente lhe deram suporte, sem substituí-los por
novos grupos de apoio.

Fonte: Bia Correa do Lago. O povo comemora o fim da escravidão no Paço.

A reunião de grupos descontentes com a monarquia, como uma parcela


dos militares, da elite paulista e da própria elite senhorial escravista possi-
bilitou a organização de um golpe que pôs fim à monarquia no Brasil.
No entanto, em relação à Proclamação da República, é importante
ressaltar a falta de participação popular efetiva nesse processo.

capítulo 3 • 83
COMENTÁRIO
Aristides Lobo, jornalista e futuro ministro do governo republicano, que foi testemunha ocular do dia 15 de
novembro, deixou um depoimento marcante sobre esse dia. Na visão do jornalista, o povo assistiu “a tudo
bestializado, atônito, sem conhecer o que significava”.

Desse modo, mais como o resultado de um longo processo de desgaste do que pela for-
ça das ideias republicanas, chegava ao fim no Brasil, quase setenta anos depois, o governo
monárquico da dinastia dos Bragança. A partir de 1889, teria início do Brasil o longo, tur-
bulento e descontínuo período republicano.

RESUMO
• Nos quase 80 anos de existência do Império do Brasil, muitas coisas aconteceram, a
maior parte delas não tão naturais quanto se pensa: a unidade do território brasileiro foi
resultado de um processo e, ao mesmo tempo, de um projeto: o de construção do Império
do Brasil, a partir do território que um dia pertenceu aos portugueses.
• Esse processo/projeto teve início com D. Pedro I e foi implantado por meio de uma po-
lítica vista como autoritária e centralizadora. Em meados do século XIX, estava consolidada
a unidade e o modelo político monárquico-centralizador, assim como a nacionalidade bra-
sileira, também resultado de um processo.
• Nas relações internacionais, o país teve de lidar com as pressões inglesas pelo fim do
tráfico de escravos, que finalmente foi proibido em 1850. Alguns anos depois, o país se en-
volveria em um conflito de grandes proporções: a Guerra do Paraguai. As consequências do
conflito e a nova composição social do país estiveram diretamente ligadas à crise que pôs
fim ao Império no Brasil.

ATIVIDADE
1. Acerca da Independência do Brasil, é correto afirmar que:

A) Consubstanciou os ideais propostos pela Insurreição de 1817.


B) Instituiu a monarquia como forma de governo, a partir de um amplo movimento popular.
C) Implicou na adoção da forma monárquica de governo e preservou os interesses básicos dos proprietá-
rios de terras e de escravos.
D) Propôs, a partir das ideias liberais das elites políticas, a extinção do tráfico de escravos.
E) Provocou, a partir da Constituição de 1824, profundas transformações nas estruturas econômicas e
sociais do país.

2. A abdicação do Imperador D. Pedro I representou a culminância dos diferentes problemas que caracte-
rizam o Primeiro Reinado, a exemplo do (a):

A) Apoio inglês à política platina do Império.


B) Apoio das províncias à política do Reino Unido implantada por D. Pedro I, após a morte de D. João VI.

84 • capítulo 3
C) Conflito entre os interesses dos produtores tradicionais de açúcar e os novos produtores de ouro.
D) Confronto entre os grupos políticos liberais e o governo centralizado e com tendências absolutistas de
D. Pedro I.
E) Crescente participação popular nas manifestações políticas, favorecidas pela abolição do tráfico.

3. A organização do Estado Brasileiro que se seguiu à independência resultou do projeto do grupo:

A) Liberal-conservador, que defendia a monarquia constitucional, a integridade territorial e o regime cen-


tralizado.
B) Maçônico, que pregava a autonomia provincial, o fortalecimento do executivo e a extinção da escravidão.
C) Liberal-radical, que defendia a convocação de uma Assembleia Constituinte, a igualdade de direitos
políticos e a manutenção da estrutura social.
D) Cortesão que defendia os interesses recolonizadores, as tradições monárquicas e o liberalismo econô-
mico.
E) Liberal-democrático, que defendia a soberania popular, o federalismo e a legitimidade monárquica.

4. Como elemento comum à maioria das rebeliões que marcaram o período regencial (1831-1840), des-
taca-se:

A) A oposição ao regime monárquico.


B) A defesa do regime republicano.
C) O repúdio à escravidão.
D) As críticas e a insatisfação em relação ao poder centralizado.
E) O boicote ao voto censitário.

5. A consolidação do Império nas duas primeiras décadas do Segundo Reinado está ligada à(ao):

A) Afirmação do projeto autonomista liberal, pondo fim às Rebeliões Provinciais.


B) Recuperação das lavouras tradicionais, como açúcar, eliminando-se a hegemonia do setor cafeeiro.
C) Conciliação entre liberais e conservadores, para conter o crescente movimento republicano.
D) Hegemonia do projeto político conservador, centralizado e que projetava a Coroa sobre os Partidos.
E) Encaminhamento da abolição, garantindo-se a mão de obra à lavoura através da imigração.

capítulo 3 • 85
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
Referências bibliográficas
CARVALHO, J. M. (org). A construção nacional 1830-1889. Rio de Janeiro: Objetiva, 2011.
DIAS, M. O. S. A interiorização da metrópole e outros estudos. São Paulo: Alameda, 2005.
FREIRE, A.; MOTTA, M. S.; ROCHA, D. História em curso: o Brasil e suas relações com o mundo ocidental.
São Paulo: Editora do Brasil, 2005.
MATTOS, I. R.; ALBUQUERQUE, L. A. S. Independência ou morte: a emancipação política do Brasil. Rio de
Janeiro: Atual, 1991.
____________________ Construtores e herdeiros: A trama dos interesses na construção da unidade polí-
tica. In: Almanack Braziliense nº 01, maio 2005. p. 8-26.
____________________ O Tempo Saquarema. 5. ed. São Paulo: Hucitec, 2004.
MAXWELL, K. A Devassa da Devassa. A Inconfidência Mineira. Brasil e Portugal (1750-1808). Rio de
Janeiro: Paz e Terra, 2000.
MELLO, E. C. A outra Independência: o federalismo pernambucano de 1817 a 1824. São Paulo: 34, 2004.
____________________________O nome e o sangue: uma parábola genealógica no Pernambuco colonial.
São Paulo: Companhia das Letras, 2009.
SILVA, A. C. (org). Crise colonial e independência 1808-1830. Rio de Janeiro: Objetiva, 2011.

86 • capítulo 3
14
Ordem Unida:
sentido!
República Militar

antonio henrique de
castilho gomes
4 CURIOSIDADE
Ordem Unida: sentido!
República Militar
A República Militar
Monarquia
(do grego: monos – um; arkhein – go-
verno): é uma forma de governo em “Na noite quinze reluzente, com a bravura, finalmente, o marechal que procla-
que o chefe de Estado é um monarca, mou foi presidente.” (GRES Imperatriz Leopoldinense – 1989)
normalmente com o título de Rei ou Rai-
nha (no Brasil o título era de Imperador).
Nas monarquias, o cargo de monarca é Você consegue relacionar esse pequeno trecho de samba enredo
vitalício, quer dizer que dura até a morte com algum episódio da História do Brasil?
ou a abdicação, quando o próprio mo- Se você pensou na Proclamação da República, acertou! Mas o que
narca abre mão de seu cargo, e heredi- significa proclamar uma república? No episódio retratado no samba en-
tário, ou seja, é normalmente passado a redo, a proclamação da república, significou a mudança da monarquia
um herdeiro com laços sanguíneos, via para a república.
de regra, um filho ou filha. Aliás, ainda no trecho do samba, podemos identificar algumas in-
formações, vejamos: “na noite quinze reluzente”, refere-se ao fato de
República que a proclamação da república no Brasil ocorreu no dia 15, mais espe-
(do latim, res publica, coisa pública): go- cificamente, no mês de novembro do ano de 1889. E “o marechal que
verno no qual o chefe do Estado é eleito proclamou foi presidente” nos diz que essa proclamação ocorrida no dia
pelo povo ou seus representantes, ten- 15 de novembro foi feita por um militar, o Marechal Deodoro da Fonse-
do a sua chefia uma duração limitada. ca, e que este mesmo militar se tornou Presidente da República.
A eleição do chefe de Estado, por re-
gra chamado presidente da república, é REFLEXÃO
normalmente realizada por meio do voto Entretanto você deve estar se perguntando: Por que a República foi proclamada?
livre e secreto. O termo república refere- Por que o Brasil deixou de ser uma Monarquia e se transformou numa República?
se, regra geral, a um sistema de governo Por que o Marechal que proclamou foi presidente? Quem desejava a República?
cujo poder emana do povo, em vez de
outra origem, como a hereditariedade Neste capítulo, vamos tentar responder, se não todas, pelo menos
ou o direito divino. algumas perguntas importantes sobre o tema.

RESUMO
Nós já sabemos, porque vimos no capítulo anterior, que a ideia republicana não era
nenhuma novidade no cenário político brasileiro e que a Proclamação da República
estava diretamente ligada ao crescimento de importância do Exército brasileiro,
ocorrido após a Guerra do Paraguai, ao crescimento da importância política dos
grandes produtores de café de São Paulo, que organizavam sua produção com ca-
racterísticas mais modernas, sem a utilização da mão de obra escrava, e ao fim des-
ta mesma escravidão.

88 • capítulo 4
Neste contexto, esses cafeicultores irão se aliar aos militares, enten- COMENTÁRIO
dendo que, para que seus interesses fossem, de fato, atendidos fazia-se
necessária uma mudança radical de regime, estabelecendo-se uma Re- Decretação do fim da escravidão
pública no lugar da decadente Monarquia. Essa aliança fortalecia tan- Como vimos no capítulo anterior, os ca-
to os cafeicultores quanto os militares, e possibilitava que a República feicultores do Rio de Janeiro, escravo-
pudesse acontecer sem que as camadas populares participassem desse cratas, abandonaram o apoio que davam
processo, e esse era um ponto importante para as elites. ao Império quando este decretou o fim
Essa aliança, somada ao isolamento político do império, ocorrido da escravidão em 1888.
com a decretação do fim da escravidão possibilitou a proclamação da
República, que teve dois momentos principais: o primeiro, quando o
Marechal Deodoro da Fonseca dava um golpe militar ocupando o Mi- CURIOSIDADE
nistério da Guerra e depondo o Imperador; e outro quando, na Câmara Golpe militar
Municipal do Rio de Janeiro, José do Patrocínio declarava extinta a Mo- Tomada do poder efetuada por militares
narquia e inaugurava a República. por medidas ou estratégias que não es-
Após esse evento, instaurava-se um governo provisório chefiado pelo tão previstas na lei ou na Constituição.
próprio Marechal Deodoro. Este Governo Provisório iria durar até feve-
reiro de 1891, quando o próprio Deodoro tornar-se-ia o primeiro pre- Marechal Deodoro
sidente eleito (indiretamente é verdade) da República do Brasil, tendo Marechal Floriano Peixoto
como vice-presidente o Marechal Floriano Peixoto, que assumiria o go- Marechal Deodoro e Marechal Floriano
verno em novembro de 1891, após a renúncia do Marechal Deodoro. Peixoto eram ambos militares alagoanos.
Em tão pouco tempo, três governos diferentes, o provisório, o gover-
no do Marechal Deodoro e o governo do Marechal Floriano, todos mili- República da Espada
tares, por isso chamamos esse período inicial de nossa História repu- Por que Espada? Porque a espada fazia
blicana de “República Militar” ou “República da Espada”. Vamos agora parte do uniforme de gala dos marechais.
estudar um pouco cada um desses governos.

O Governo Provisório

De novembro de 1889 a fevereiro de 1891.

Qual seria o papel deste governo provisório? Basicamente o governo


provisório deveria coordenar as mudanças institucionais necessárias à
transição do regime monárquico para o regime republicano, por meio,
principalmente, da construção de uma nova Constituição e da organiza-
ção das primeiras eleições presidenciais, afinal, uma das características
marcantes de uma república é a escolha do presidente por meio de um
processo eleitoral.
Dentro desse contexto, o presidente provisório proclamou uma série
de decretos que garantiam esta transição, alterando diversos aspectos po-
líticos-institucionais. Destacaremos aqui algumas destas modificações.
O Decreto número 1 estabelecia no Brasil uma República Federativa
de caráter provisório até a convocação do congresso constituinte, que

capítulo 4 • 89
COMENTÁRIO deveria elaborar uma nova Constituição e, por conseguinte, definir o
formato de República a ser estabelecido no Brasil.
Unidades federativas
No Brasil chamamos de estados. REFLEXÃO

Formato de República? Então não há um só modelo de República? Você deve estar
CURIOSIDADE pensando nisto. De fato, podemos ter algumas diferenças nos modelos republicanos,
Províncias uma delas é o tamanho da autonomia que as unidades federativas têm em relação
A palavra província tem origem no latim ao governo federal.
pro- (em nome de) e vincere (vencer/
dominar/controlar), portanto, para os Havia duas correntes muito fortes no Brasil e que remontam ao tem-
romanos, a província era um território po do Império. Uma corrente defendia que os estados deveriam ter mui-
sujeito à jurisdição de um magistrado ta autonomia em relação ao governo federal (estes eram os federalistas).
que o controlava em nome do governo Outra corrente definia uma concentração maior de poder no governo
central. No tempo presente, algumas federal (alguns chamavam essa corrente de unitaristas).
nações utilizam essa expressão para Essa discussão será muito intensa e levará inclusive a um movimen-
denominar as partes que compõe o ter- to armado conhecido como Revolução Federalista, que trataremos mais
ritório nacional, equivalendo-se, guarda- adiante. Além de estabelecer o modelo Federativo, esse decreto extin-
das as diferenças aos estados. guia as províncias e as transformava em estados federados.
Ainda em 1889, estabelecia-se o símbolo do novo estado brasileiro.
Estados federados Pelo decreto número 4, oficializava-se a nova bandeira.
Estado, no sentido de subdivisão ad-
ministrativa, é uma unidade autônoma COMENTÁRIO
(autogoverno, autolegislação e autoar- Curiosamente, a bandeira não apresentava grandes modificações, mantendo sua
recadação) dotada de governo próprio e estrutura e substituindo os símbolos imperiais por uma esfera representando o céu,
Constituição e que, com outros estados, com a frase “Ordem e Progresso”. Essa frase, inspirada pelo positivismo, indica-nos
forma uma federação. que a República recém-proclamada se investia de ares de modernidade.

Beneplácito Simbolicamente, a proclamação trazia um significado: com o esta-


Estabelecia que as determinações da belecimento desse novo formato, o Brasil entrava definitivamente na
Igreja Católica destinadas ao clero e modernidade, abandonando um passado retrógrado e atrasado.
fiéis católicos, para terem validade no A República era o novo, o moderno, e o Império, o velho o ultrapassa-
território de Portugal e posteriormente do. Na prática, essa lógica não se traduziu em transformações profundas,
no Brasil Império, deveriam receber a pois velhos problemas permaneciam. Mas fazia-se necessário enterrar o
aprovação expressa do monarca. Império, e essa era a tarefa do governo provisório, sendo que a criação de
novos símbolos era uma estratégia para cumprir este objetivo.
Padroado
Foi um acordo instituído entre a Santa
Sé e Portugal em que o Papa delegava
ao rei de Portugal o poder exclusivo da
organização e financiamento de todas
as atividades religiosas nos domínios e
nas terras descobertas por portugueses.
A BANDEIRA DO IMPÉRIO A BANDEIRA DA REPÚBLICA

90 • capítulo 4
Outra ação significativa do governo provisório foi a separação entre Estado e Igreja.
Desde os longínquos tempos da colônia, instrumentos como o Beneplácito e o Padroado
provocavam uma íntima ligação entre a Igreja Católica Apostólica Romana e o Estado (pri-
meiro o Estado Português e depois o Estado Imperial Brasileiro).
O Catolicismo era religião oficial, e os demais credos só poderiam ser manifestados em
cultos domésticos, como previa a Constituição Imperial de 1824, no artigo quinto do seu títu-
lo primeiro: “a Religião Catholica Apostólica Romana continuará a ser a Religião do Império.
Todas as outras Religiões serão permitidas, com seu culto doméstico ou particular em casas
para isso destinadas, sem fórma alguma exterior do Templo.”
Essa separação foi realizada por meio do Decreto 119-A, de 7 de janeiro de 1890, como
vemos em alguns de seus artigos no quadro abaixo:

Art. 1º É prohibido á autoridade federal, assim como á dos Estados federados, expedir leis, regula-
mentos, ou actos administrativos, estabelecendo alguma religião, ou vedando-a, e crear differenças
entre os habitantes do paiz, ou nos serviços sustentados á custa do orçamento, por motivo de
crenças, ou opiniões philosophicas ou religiosas.
Art. 2º A todas as confissões religiosas pertence por igual a faculdade de exercerem o seu culto,
regerem-se segundo a sua fé e não serem contrariadas nos actos particulares ou publicos, que
interessem o exercicio deste decreto.
Art. 3º A liberdade aqui instituida abrange não só os individuos nos actos individuaes, sinão tabem
as igrejas, associações e institutos em que se acharem agremiados; cabendo a todos o pleno
direito de se constituirem e viverem collectivamente, segundo o seu credo e a sua disciplina, sem
intervenção do poder publico.
Art. 4º Fica extincto o padroado com todas as suas instituições, recursos e prerogativas.
Art. 6º O Governo Federal continúa a prover á congrua, sustentação dos actuaes serventuarios do
culto catholico e subvencionará por anno as cadeiras dos seminarios; ficando livre a cada Estado
o arbitrio de manter os futuros ministros desse ou de outro culto, sem contravenção do disposto
nos artigos antecedentes.
Art. 7º Revogam-se as disposições em contrario.

Essa separação entre Estado e Igreja levou ao estabelecimento do casamento civil e do


registro civil de nascimento, etapas da vida do cidadão que ficavam a cabo da Igreja.
Podemos perceber, então, que uma série de modificações na estrutura política e jurí-
dica foi realizada pelo governo provisório. Mas a República havia nascido sob o signo da
modernidade, estampada na sua bandeira pela palavra Progresso.

REFLEXÃO
Mas afinal de contas o que se queria dizer com a expressão progresso? Se pararmos para pensar, perce-
beremos que essa palavra pode assumir sentidos diversos.

No final do século XIX, progresso significava industrialização, e industrialização era um


dos símbolos da modernidade. Creditava-se à República o “novo” e ao extinto Império o
“velho”. O Estado republicano deveria garantir que o progresso se materializasse, deven-

capítulo 4 • 91
CURIOSIDADE do ele, o Estado, criar as condições para que o Brasil pudesse entrar no
universo das nações modernas. Entretanto o que se tinha era um país
Encilhamento mergulhado em um sistema econômico monetário completamente ar-
A política econômica de Rui Barbosa foi caico, sustentado por uma economia agrícola dominada pelo café e por
chamada de encilhamento, por analogia uma política monetária que não atendia mais as necessidades de uma
à grande confusão e tensão das apos- economia não mais escravista.
tas em corridas de cavalos, cujo ápice Tentando cumprir este objetivo o então Ministro da Fazenda Rui
ocorria no momento de aperto da “cilha”, Barbosa empreendeu uma política econômica que ficou conhecida por
a tira de couro ou de pano com que se Encilhamento.
prende a sela ou a carga sobre o lombo O encilhamento foi uma política econômica fundamentada na ideia
de uma cavalgadura. de livre emissão de créditos monetários. Essa medida visava duas coi-
sas básicas: estimular a industrialização e o estabelecimento de novos
Ações negócios. Para garantir essas linhas de crédito e o investimento em in-
Representam a menor fração do capi- dústrias e/ou outros negócios o governo federal foi obrigado a injetar no
tal social de uma empresa, ou seja, é mercado uma grande quantidade de dinheiro, emitindo, para isso, uma
o resultado da divisão do capital social enorme quantidade de papel moeda.
em partes iguais, sendo o capital social Sabemos que o valor da moeda está intrinsecamente ligado a um
o investimento dos donos na empresa, equilíbrio entre o volume da riqueza de um país e a quantidade de di-
ou seja, o patrimônio da empresa, esse nheiro circulante. Se o Estado emite uma quantidade de dinheiro, mui-
dinheiro compra máquinas, paga funcio- to maior do que sua riqueza, esse dinheiro passa a não valer exatamente
nários etc. O capital social, assim, é a o que representa, gerando aquilo que chamamos de inflação. O governo
própria empresa. acreditava que esse dinheiro iria gerar uma produção de riqueza signifi-
cativa, o que acabaria por garantir o equilíbrio entre o dinheiro circulan-
Bolsa de Valores te e a riqueza produzida.
É o mercado organizado onde se ne-
gociam ações e outros instrumentos O problema é que, como a política de créditos era completamente livre de
financeiros. controle, não se tinha garantias de que quem recorreu ao empréstimo teria
condições de arcar com o pagamento, ou se de fato iria investir na produção
Especulação de riquezas.
No mercado de ações pode ser enten-
dido como a valorização de uma ação Na prática o que se viu foi uma onda de empréstimos que geraram in-
baseada em falsas informações. vestimentos pouco eficazes. A maioria das empresas não durava muito
ou sequer iniciava suas atividades. Para piorar, essas empresas tinham
ações que eram negociadas nas bolsas de valores, mesmo após encerra-
COMENTÁRIO rem sua curta existência.
Esses fenômenos associados a um clima de euforia, com a onda de
Empresas fantasmas novos negócios e de novos empréstimos, geraram uma especulação na
Porque na realidade elas não existiam. Bolsa de Valores, que mantinha o preço das ações dessas “empresas fan-
tasmas” em alta.
Entretanto, como toda alta de preços especulativa, chega um mo-
mento em que os preços despencam levando à falência muitos inves-
tidores que perdem tudo. Dessa forma, o que se teve como resultado
prático desta catastrófica política econômica foi uma gigantesca alta
inflacionária, uma onda de falências e um agravamento da já frágil eco-
nomia brasileira.

92 • capítulo 4
Dessa forma, o gabinete ministerial seria dissolvido no ano de 1891 às vésperas da pri-
meira eleição presidencial, ocorrida em 25 de fevereiro daquele ano, um dia após a promul-
gação da primeira Constituição republicana.

O Código Penal de 1890

Com a Abolição da Escravatura e a Proclamação da República, as lei penais sofreram mui-


tas modificações com o advento de um novo Código Penal. Em 1890 foi promulgado o novo
diploma, por meio de um decreto, o Decreto 847. O teor desse Código bem demonstra o
temor das elites às novas condições sociais ocorridas com a libertação dos ex-cativos. Aliás,
isso fica claro com a criminalização de prática da capoeira em locais públicos.

EXEMPLO
Embora o Código proibisse a imputação de penas infamantes e a pena restritiva de liberdade individual não
pudesse ser superior a 30 anos, uma situação que bem demonstrava sua rigidez era o fato de que previa
possibilidade de criminalizar condutas mesmo a crianças a partir dos nove anos.
Outra situação que demonstra a mentalidade da época está presente no artigo 268, que previa a punição
para o crime de estupro, fazendo-se uma diferenciação de penalização de acordo com a condição “socio-
moral” da mulher — se o estupro fosse cometido contra mulher virgem ou não, mas honesta, a pena para o
acusado seria muito mais severa do que se cometido contra mulher pública ou prostituta.
O adultério permanecia tendo o mesmo tratamento concedido pelo Código do Império, ou seja, incorreria
neste delito a mulher casada que mantivesse relações sexuais com outro homem. Entretanto, o marido
somente cometeria tal crime se estivesse mantendo outra mulher.
Este é o retrato de uma época.

O novo governo de Deodoro da Fonseca

De fevereiro de 1891 a novembro de 1891

Como acabamos de ver, o chefe do governo provisório, Deodoro da Fonseca, acabou


sendo eleito o primeiro Presidente da República. Entretanto, a eleição já apontava al-
guns problemas, em parte causados pelo fracasso da política econômica empreendi-
da durante o governo provisório. Além disso, os cafeicultores paulistas, grupo político
muito forte por conta da riqueza que controlava, já davam sinais de que desejavam as-
sumir o controle político da nação.
Dessa forma, o cenário que definiu o processo eleitoral era bastante complexo. Nos dias
de hoje, quando se está em um ano eleitoral, observa-se aproximações entre políticos buscan-
do alianças para fortalecerem suas candidaturas. Em nossa primeira eleição não foi muito
diferente. Havia uma forte divisão entre os aliados de outrora, os cafeicultores e os militares.
Aliás, nem mesmo os militares estavam coesos, porque um grupo, do qual fazia parte o
Marechal Floriano Peixoto, não via com maus olhos a candidatura de um político civil, um
cafeicultor paulista, para o cargo de Presidente da República.

capítulo 4 • 93
CURIOSIDADE O fato é que duas chapas se formaram, uma primeira tendo o chefe
do governo provisório, Deodoro da Fonseca, como candidato a Presidên-
Colégio eleitoral cia da República e o Almirante Wandenkolk como candidato a vice-pre-
É um grupo de representantes políticos, sidente; uma segunda era formada por um civil, representante dos cafei-
escolhidos ou não pela população, que cultores paulistas, Prudente de Morais, tendo como vice um militar, o já
nos representa e escolhe o presidente. citado Marechal Floriano Peixoto.
É o que chamamos de eleições indiretas.
REFLEXÃO
Estado de sítio
Estado de sítio é um estado de exceção, Contudo, falemos um pouco do processo eleitoral. Como escolhemos nosso Presi-
instaurado como uma medida provisória dente da República hoje em dia? Vamos às urnas e votamos em uma chapa elegen-
de proteção do Estado, quando este está do de forma direta o candidato a presidente e seu vice. Pois é, aquela eleição foi
sob determinada ameaça, como uma muito diferente. Primeiro por que não foi o povo quem escolheu; foi o que chamamos
guerra ou uma calamidade pública. Im- de colégio eleitoral.
plica na suspensão do exercício dos di-
reitos, liberdades e garantias individuais. No entanto quem era o colégio eleitoral dessa primeira eleição? O
congresso constituinte convocado pelo então Chefe do Governo Provi-
sório, para elaborar uma nova Constituição.
Esse congresso se reuniu ainda em 1889, mas seus trabalhos constitu-
cionais só se iniciaram em 1890, mais precisamente em 15 de novembro,
data em que a República comemorava seu primeiro ano de vida. O primei-
ro presidente brasileiro foi eleito de forma indireta. Além disso, a eleição
para presidente e vice-presidente era separada. O que possibilitava que o
presidente eleito viesse de uma chapa e o vice-presidente de outra, como,
aliás, acabou acontecendo. E qual foi o resultado dessas eleições? O pre-
sidente você já sabe, o congresso escolheu o Marechal Deodoro. E o vice
-presidente? Foi eleito o Marechal Floriano Peixoto da outra chapa.

COMENTÁRIO
Curiosamente, o Colégio Eleitoral, em sua maioria, apoiava a candidatura de Pruden-
te de Morais, mas elegeu Deodoro com medo de possíveis represálias do Exército.

O cenário político enfrentado por Deodoro, entretanto, não era sim-


ples: primeiro ele herdara os graves problemas econômicos causados
pelo encilhamento. Segundo, a falta de apoio do congresso inviabilizava
qualquer ação de seu governo. A única fonte de apoio de Deodoro eram
alguns governos estaduais.
Nesse cenário, Deodoro tenta, no início de novembro do mesmo ano
em que foi eleito, fechar o congresso nacional e decretar estado de sítio,
objetivando reformar a Constituição para atribuir mais poderes ao presi-
dente. O golpe fracassa. Militares, liderados pelo Almirante Custódio de
Melo, ameaçam bombardear o Rio de Janeiro, obrigando Deodoro a re-
nunciar em 23 de novembro, encerrando seu curto mandato presidencial.

94 • capítulo 4
O governo do Marechal Floriano Peixoto COMENTÁRIO
Constituição
De 1891 a 1894 Só para lembrar, a Constituição estabe-
lecia eleições diretas para presidente e
Após a renúncia do Marechal Deodoro, abriu-se um debate acerca da para vice-presidente e as primeiras elei-
sucessão presidencial. Segundo a nova Constituição, caso o cargo de ções foram indiretas.
presidente da república ficasse vago, por qualquer motivo, antes que
se completassem dois anos de mandato, deveriam ser convocadas no- Grupo de militares
vas eleições. Como Deodoro ficou no cargo por um período menor do Marinha e Exército
que um ano, parte da sociedade esperava que fossem convocadas novas
eleições. Entretanto, isso não aconteceu, e é por conta disso que muitos
entendem que a permanência de Floriano Peixoto no poder configurava CURIOSIDADE
um golpe de Estado. Revolta da Armada
Quais forças políticas apoiavam esse golpe? É fácil reconhecê-las. Para alguns historiadores, a Revolta da
Basta lembrar que o Marechal Floriano tinha sido candidato a vice-presi- Armada enfrentada pelo Presidente Flo-
dente da república na chapa do cafeicultor paulista Prudente de Morais. riano Peixoto seria a segunda, uma vez
Era desse grupo, o mais forte, tanto política quanto economicamente, que por ocasião da tentativa de fecha-
que vinha o apoio ao governo de Floriano. Mas o que esperavam esses mento do Congresso pelo então Presi-
políticos que apoiaram a permanência de Floriano? Esperavam que ele dente Deodoro da Fonseca, o Almirante
“pacificasse” o país, para que logo em seguida pudessem governar o país Custódio de Melo havia ameaçado bom-
sem maiores oposições. bardear a capital federal caso Deodoro
Dessa forma, alegando que Floriano teria sido eleito em um formato di- mantivesse o plano. Esse evento, para
ferente do que estabelecia a Constituição, as regras de sucessão só teriam alguns, é chamado de Primeira Revolta
validade para o próximo mandato. Mas o que Floriano teria de pacificar? da Armada.
Logo após a manifestação de permanência no cargo, Floriano en-
frentou a oposição política de um grupo de militares de alta patente,
que se manifestaram contra essa permanência, exigindo a convocação
imediata de novas eleições.
Esse grupo tornou pública essa posição por meio de um manifesto
que ficou conhecido como Manifesto dos Treze Generais. A reação de
Floriano Peixoto foi bastante dura e já dava sinais de como ele trataria
as rebeliões que se iniciavam. Logo após a publicação do manifesto, o
Presidente Floriano Peixoto exonerou e reformou todos os militares que
assinaram o documento.
Floriano também teve de enfrentar revoltas armadas. Essas revoltas
eram a manifestação prática da forte oposição que Floriano Peixoto so-
fria. Essa oposição se relacionava em parte as insatisfações políticas de
grupos que se sentiam afastados do poder, ou que não viam no estabele-
cimento do regime republicano a resposta aos anseios que os levaram a
pactuar na derrocada da monarquia.
Dessa forma, essas insatisfações em maior ou menor grau foram
diretamente responsáveis pela eclosão desses movimentos, que sacudi-
ram o governo do Marechal Floriano Peixoto. O primeiro desses movi-
mentos armados foi a Revolta da Armada.

capítulo 4 • 95
CURIOSIDADE Liderada pelo Almirante Custódio de Melo, alguns militares exigiam
a imediata convocação de novas eleições presidências afirmando que o
Partido Republicano país deveria retomar o caminho da legalidade. Além disso, havia uma
Conhecido como chimangos ou pica-paus. questão interna às forças armadas: a Marinha sentia-se, desde a procla-
mação da República, desprestigiada politicamente, na medida em que a
Partido Federalista própria proclamação teria se dado a partir de um golpe articulado pelo
Conhecido como maragatos. próprio Exército.
De posse de alguns navios, os revoltosos bombardearam a cidade
do Rio de Janeiro, mas o marechal/presidente não recuou. Conhecido
como o Marechal de Ferro, pela forma dura e autoritária com a qual rea-
gia a tais enfrentamentos, Floriano organizou a defesa do litoral e, con-
tando com o apoio do Exército, conseguiu controlar e vencer a rebelião.
Após a vitória governamental no Rio de Janeiro o almirante Custódio de
Melo migra para o sul onde se aproxima de outro movimento a Revolu-
ção Federalista.
Esse movimento encontra suas origens na instabilidade política do
estado do Rio Grande do Sul e na disputa histórica, que remonta ao tem-
po do império, entre a formação de um Estado descentralizado ou de
um Estado centralizado. Logo assim que assumiu o governo, Floriano
Peixoto exonerou todos os presidentes de províncias que fossem aliados
do antigo governo e nomeou substitutos.

ATENÇÃO
É nesse contexto que, no Rio Grande do Sul, foi proclamado presidente o político
Júlio de Castilhos, ligado ao governo federal. Além disso, desde a Proclamação da
República, dois grupos políticos disputavam acirradamente o poder naquele estado.
De um lado estava o Partido Republicano, do outro lado estavam os federalistas.

Os primeiros, do qual fazia parte Júlio de Castilhos, eram defensores do


presidencialismo e de um governo centralizado, sendo influenciados pelo
positivismo e apoiados pelo governo federal. Já os segundos eram contrá-
rios ao governo de Júlio de Castilhos, e defensores de um sistema político
mais descentralizado e defendiam, por isso, uma reforma na Constituição.
Os conflitos armados se iniciaram logo após a proclamação de Júlio de
Castilhos e foram marcados por uma vantagem inicial do movimento fede-
ralista que chegou, inclusive, a ocupar a cidade de Desterro, em Santa Cata-
rina, onde se aproximou de Custódio de Melo, líder da Revolta da Armada.
Após as primeiras vitórias, os federalistas foram sendo, pouco a pou-
co, derrotados pelas tropas federais, enviadas pelo Presidente Floriano.
O acordo final de paz, entretanto, só seria firmado no início do governo
de Prudente de Morais, que venceria as primeiras eleições diretas da jo-
vem República Brasileira.
Pelo que observamos, o cenário político desses primeiros anos de
República foram bastante conturbados. Disputas políticas entre civis e
militares, eleições indiretas, renúncia de presidente, posse inconstitu-

96 • capítulo 4
cional, crise econômica, revoltas armadas, descontentamento da Mari- CURIOSIDADE
nha. Nem mesmo dentro do próprio Exército, diga-se de passagem, ha-
via uma unidade política explicita. Outorgada
Existem duas formas de fazer valer uma
COMENTÁRIO Constituição. Uma delas é proclamando
“[...] As Forças Armadas não atuavam como um grupo homogêneo diante de uma clas- -a. Isso ocorre quando ela é escrita por
se social cujos representantes políticos, afora raras exceções (...), se encontravam uni- um grupo de pessoas, que formam uma
dos. As rivalidades se recortavam entre Exército e Marinha – razão principal da Revolta assembleia e se submete o texto final
da Armada – entre quadros jovens e velhos, entre partidários de Deodoro e Floriano. A a essa mesma assembleia. Outra forma
disputa entre os seguidores dos dois chefes, cujos objetivos não eram essencialmente é quando ela é outorgada por uma au-
diversos, demonstra como a unidade do grupo se quebrava diante de lealdades pesso- toridade. Ou seja, nomeia-se um grupo
ais [...]” (Bóris Fausto. Pequenos ensaios de História da República – 1889 – 1945). que vai escrevê-la e o chefe do execu-
tivo, sem consultar nenhum instrumento
Entretanto, Floriano Peixoto terminava seu mandato cumprindo a político faz valer o texto constitucional.
missão que lhe cabia: “pacificando” a república e derrotando os levan-
tes armados. Mas será que de fato a jovem república brasileira estaria de Congresso constituinte
fato “pacificada”? Quando se vai promulgar uma Consti-
tuição democraticamente, um grupo de
pessoas é eleita para escrevê-la. Este
A Primeira Constituição Republicana grupo é chamado de Assembleia Cons-
tituinte. Quando o grupo que vai escre-
ver a Constituição acumula a função
REFLEXÃO legislativa, ou seja, compõe o Congres-
Se prestarmos a atenção no que lemos até agora, perceberemos que, por diversas so nacional, chamamos de “Congresso
vezes, citamos a Constituição republicana. Como já sabemos, Constituição é a lei Constituinte”.
máxima de um país e, mais do que isso, é ela quem dá as características que o Esta-
do terá e de que forma serão regulamentadas as relações sociais.

Findado o Império, tornava-se fundamental a organização de uma


nova Constituição. Ao contrário da anterior, que fora outorgada por D.
Pedro I, a nova Constituição seria elaborada pelo congresso constituinte
e aprovada em sessão deste mesmo congresso.

EXEMPLO
“Nós, os representantes do povo brasileiro, reunidos em Congresso Constituinte,
para organizar um regime livre e democrático, estabelecemos, decretamos e promul-
gamos a seguinte [...]” – Preâmbulo da Constituição de 1891.

Entretanto quais seriam as principais mudanças e diferenças existentes


entre o texto da Constituição de 1824 e o texto da Constituição de 1891?
São muitos, a começar pelo formato do Estado, que migrava de uma
monarquia para uma República e pelo nome que adotava esse novo Es-
tado, expresso no início do texto constitucional: “Constituição da Repú-
blica dos Estados Unidos do Brasil”.

capítulo 4 • 97
CURIOSIDADE Esse nome desde já revela a in-
fluência que o texto sofreria, em al-
Voto universal guns pontos, da Constituição esta-
Ocorre quando todos os cidadãos da- dunidense. A influência poderia ter
quela nação têm direito de votar. sido ainda maior, caso o primeiro
presidente tivesse acatado o primei-
Voto censitário ro modelo da Bandeira Nacional:
É quando se cria condições para que o Já apontamos algumas diferenças, como na relação entre Estado e
indivíduo possa exercer seu direito de Igreja. Veremos mais algumas. Nós falamos muito em eleição, em voto
escolha. direto ou indireto. Mas o que determinava a Constituição republicana
em relação ao processo eleitoral e ao direito de voto? A nova Constitui-
ção estabelecia a eleição direta, tanto para o Executivo como para o Le-
gislativo, em um único turno e determinava o voto universal. A Cons-
tituição imperial estabelecia o voto censitário. No caso específico da
Constituição Imperial, como já vimos, o critério era econômico.
Então, podemos afirmar que a Constituição republicana permitiu a
ampliação do eleitorado, ou seja, da população que poderia participar
do processo eleitoral. Entretanto, essa ampliação foi mínima, uma vez
que, embora universal, o direito de votar tinha alguns limites. Vejamos
o que dizia o texto constitucional:

TÍTULO IV
Dos Cidadãos Brasileiros
SEÇÃO I
Das Qualidades do Cidadão Brasileiro
Art 70 — São eleitores os cidadãos maiores de 21 anos que se alistarem
na forma da lei.
§ 1º — Não podem alistar-se eleitores para as eleições federais ou para as
dos Estados:
1º) os mendigos;
2º) os analfabetos;
3º) os praças de pré, excetuados os alunos das escolas militares de ensino
superior;
4º) os religiosos de ordens monásticas, companhias, congregações ou co-
munidades de qualquer denominação, sujeitas a voto de obediência, regra
ou estatuto que importe a renúncia da liberdade Individual.

Ficaram de fora mulheres e analfa-


betos, só para nos prendermos ao grupo
principal. Isso era um limite grave, na
É um limite e tanto
medida em que, cumprindo todas as exi- para a democracia!
gências, o universo eleitoral girava em
torno de 3% da população brasileira.

98 • capítulo 4
É claro que essas limitações interessavam às elites políticas que go- CURIOSIDADE
vernavam o país, na medida em que permitiam um relativo controle so-
bre o voto. Além disso, essa característica influenciou diretamente nas Vitalício
políticas educacionais, uma vez que interessava a manutenção do anal- É aquilo que dura a vida inteira. Quando
fabetismo, como elemento construtor do controle político. dizemos que mandato de um Senador
é vitalício, estamos dizendo que ele só
COMENTÁRIO acaba na morte deste mesmo Senador.
Curiosamente, a mesma Constituição que limitava a cidadania —, expressa na
participação política por meio do voto — foi responsável por uma ação que au- Mandato
mentou o número de cidadãos brasileiros, em um evento que ficou conhecido Período do exercício das funções atribu-
como a Grande Naturalização. Como se deu esse fenômeno? Logo após a pro- ídas pelo processo eleitoral. É o tempo
clamação foram naturalizados todos os estrangeiros que aqui viviam e que não em que um legislador ou um presidente,
manifestassem o direito de não sê-lo. ou qualquer outro cargo eleitoral, per-
manece no poder.

EXEMPLO República Federativa
A própria Constituição, promulgada em 1891, dizia em seu artigo 69 que seriam ci- É um Estado que possui características
dadãos brasileiros “os estrangeiros, que se encontrando no Brasil aos 15 de novem- de uma República e de uma Federa-
bro de 1889, não declararem, dentro em seis meses depois de entrar em vigor a ção. Ou seja, é um Estado formado pela
Constituição, o ânimo de conservar a nacionalidade de origem.” união de estados federados que pos-
Outro aspecto diferencial entre o texto de 1891 e o texto de 1824 se refere à dis- suem autonomia ampla, mas se subor-
tribuição de poderes. O texto imperial estabelecia um quarto poder, o Moderador, dinam ao Governo Federal.
de uso exclusivo do Imperador. A nova Constituição extinguia o Poder Moderador,
estabelecendo apenas os poderes Executivo, Legislativo e Judiciário. Presidencialismo
É um sistema de governo onde o Presi-
O Poder Legislativo era composto pela Câmara dos Deputados e pelo dente (no caso de Estados democráti-
Senado. Os membros do Senado perdiam sua vitaliciedade e passavam cos, eleito) acumula as funções de Che-
a ter um mandato, seguindo o exemplo dos membros da Câmara dos fe de Estado (representante da nação)
Deputados. A diferença é que o mandato de um Deputado tinha a du- e de Chefe de Governo (aquele que
ração de três anos e o de um Senador nove. No que diz respeito ao Po- efetivamente governa).
der Executivo, a Constituição estabelecia um mandato de quatro anos e
proibia a reeleição consecutiva.
Também estabelecia a Carta de 1891 que caso o cargo de Presidente COMENTÁRIO
da República ficasse vago antes de completarem dois anos da eleição,
deveriam ser convocadas novas eleições. Carta de 1891
Outra característica importante a ser discutida dessa Constituição é Como já informado na polêmica envol-
a autonomia que se concede aos estados. Adotando a República Fede- vendo Floriano Peixoto no cargo de Pre-
rativa como forma e de governo (república) e forma de Estado (federa- sidente da República, após a renúncia
ção) e o Presidencialismo como sistema político, a nova Constituição de Deodoro.
dava ampla autonomia aos estados, permitindo que estes contraíssem
empréstimos no exterior, constituíssem forças militares próprias e or-
ganizassem suas próprias constituições, que estariam subordinadas à
Constituição Federal.
Se analisarmos o texto constitucional iremos observar as marcas des-
sa autonomia no Título II em seus diversos artigos. Essas características,

capítulo 4 • 99
CURIOSIDADE de maior autonomia regional, representam uma vitória dos interesses
locais, principalmente dos grandes estados (Minas Gerais e São Paulo).
Elites econômicas Elas serão, inclusive, de fundamental importância na construção de um
Segundo o dicionário Aurélio, elite é um modelo político, consolidado após o Governo de Floriano Peixoto e que
grupo de pessoas influentes em uma perdurou por toda a chamada República Oligárquica (1894/1930), que
dada sociedade, por estarem em posi- ficou conhecida por “coronelismo”.
ção de poder acima das demais. Dessa Implantada a Constituição e findado o governo de Floriano Peixoto,
forma, podemos entender que a expres- encerrava-se a primeira etapa da implantação do Regime Republicano,
são “elite econômica” se refere a um instaurado no Brasil em 1889. Essa transição Monarquia — República
grupo de pessoas que ocupam um lugar se cristalizava longe do olhar popular. Se tivéssemos de escolher uma
de influência política determinada pela característica marcante desse processo, certamente seria o afastamento
sua posição econômica, ou seja, é o das massas populares deste processo.
grupo social que concentra a maior fatia
da riqueza e que por isso pode exercer ATENÇÃO
influência política. Tudo foi articuladamente preparado para que a transição ocorresse sem rupturas
radicais. Tratava-se de garantir uma espécie de transição controlada, de modos que
interesses e privilégios das classes dominantes não fossem sequer ameaçados. O
acesso à terra, as relações de trabalho no campo, o controle do voto, o predomínio
das relações pessoais na construção dos laços políticos, são “permanências” que
garantiam a organização de um Estado nos moldes desejados pelas elites econômi-
cas, principalmente a dos grandes estados de Minas Gerais e São Paulo.

Dessa forma, o que vai se construir durante toda a República Velha é


um sistema político/econômico, controlado por um pequeno grupo de
grandes proprietários rurais, enquanto a população, principalmente as
camadas mais pobres, assistia a tudo bestializada.

RESUMO
•  Os primeiros governos republicanos foram constituídos por presidentes militares;
•  Já nos primeiros anos a jovem República enfrentou uma grave crise econômica:
o Encilhamento;
•  O período foi marcado por rebeliões armadas: Revolta da Armada e Revolução
Federalista;
•  Havia divergências entre as elites agrárias e os militares;
•  A Constituição republicana concedia autonomia para os estados, separava o Es-
tado da Igreja, estabelecia o voto universal (mas excluía mulheres e analfabetos) e
direto entre outras coisas;
•  A república foi proclamada sem a participação popular;
•  Após os governos militares inicia-se um período em que as oligarquias agrárias,
principalmente as cafeeiras, irão controlar o país.

100 • capítulo 4
ATIVIDADE
Questão 1 (ENEM 2010)
I — Para consolidar-se como governo, a República precisava eliminar as arestas, conciliar-se com o pas-
sado monarquista, incorporar distintas vertentes do republicanismo. Tiradentes não deveria ser visto como
herói republicano radical, mas sim como herói cívico religioso, como mártir, integrador, portador da imagem
do povo inteiro. (CARVALHO, J. M. A formação das almas: O imaginário da República no Brasil. São
Paulo: Companhia das Letras, 1990).
II — Ei-lo, o gigante da praça,/O Cristo da multidão! É Tiradentes quem passa/Deixem passar o Titão. (AL-
VES, C. Gonzaga ou a revolução de Minas. In: CARVALHO. J. M. C. A formação das almas: O imaginário
da República no Brasil. São Paulo: Companhia das Letras, 1990).

A Primeira República brasileira, nos seus primórdios, precisava constituir uma figura heroica capaz de con-
gregar diferenças e sustentar simbolicamente o novo regime. Optando pela figura de Tiradentes, deixou de
lado figuras como Frei Caneca ou Bento Gonçalves. A transformação do inconfidente em herói nacional
evidencia que o esforço de construção de um simbolismo por parte da República estava relacionado:

A) ao caráter nacionalista e republicano da Inconfidência, evidenciado nas ideias e na atuação de Tiradentes.


B) à identificação da Conjuração Mineira como o movimento precursor do positivismo brasileiro.
C) ao fato de a proclamação da República ter sido um movimento de poucas raízes populares, que preci-
sava de legitimação.
D) à semelhança física entre Tiradentes e Jesus, que proporcionaria, a um povo católico como o brasileiro,
uma fácil identificação.
E) ao fato de Frei Caneca e Bento Gonçalves terem liderado movimentos separatistas no Nordeste e
no Sul do país.

Questão 2 (ENEM 2010)


O artigo 402 do Código penal Brasileiro de 1890 dizia: Fazer nas ruas e praças públicas exercícios de agi-
lidade e destreza corporal, conhecidos pela denominação de capoeiragem: andar em correrias, com armas
ou instrumentos capazes de produzir uma lesão corporal, provocando tumulto ou desordens.
Pena: Prisão de dois a seis meses. (A Negregada instituição: os capoeiras no Rio de Janeiro: 1850-1890.
Rio de Janeiro: Secretaria Municipal de Cultura, 1994 — adaptado).
O artigo do primeiro Código Penal Republicano naturaliza medidas socialmente excludentes. Nesse con-
texto, tal regulamento expressava:

A) A manutenção de parte da legislação do Império com vistas ao controle da criminalidade urbana.


B) A defesa do retorno do cativeiro e escravidão pelos primeiros governos do período republicano.
C) O caráter disciplinador de uma sociedade industrializada, desejosa de um equilíbrio entre progresso e
civilização.
D) A criminalização de práticas culturais e a persistência de valores que vinculavam certos grupos ao
passado de escravidão.
E) O poder do regime escravista, que mantinha os negros como categoria social inferior, discriminada e
segregada.

capítulo 4 • 101
GABARITO
Questão 1 – C
Questão 2 – D

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
AQUINO, R. S. L.; DIAS, L. S. O samba-enredo vista a História do Brasil. Rio de Janeiro: Ciência Moderna,
2009.
CARONE, E. A República Velha: evolução política. São Paulo: DIFEL, 1971.
CARVALHO, J. M. Os bestializados: o Rio de Janeiro e a Republica que não foi. São Paulo: Cia. das Letras,
1987.
______________________. A formação das almas. São Paulo: Cia. das Letras, 1990.
FAUSTO, B. Pequenos ensaios de História da República (1889/1945). In: Cadernos CEBRAP. São Paulo.
GERAB, W. J.; ROSSI, W. Indústria e trabalho no Brasil: limites e desafios. São Paulo: Atual, 1997.
LUSTOSA, I. A História do Brasil explicada aos meus filhos. Rio de Janeiro: Agir, 2007.
NEVES, M. S.; HEIZER, A. A ordem é o progresso: o Brasil de 1870 a 1910. São Paulo: Atual, 2004.
REVISTA DE HISTÓRIA DA BIBLIOTECA NACIONAL. Ano 4, número 42. Março de 2009.
TEIXEIRA, F. M. P. História Concisa do Brasil. São Paulo: Global, 2000.

102 • capítulo 4
15 Café ou leite?

antonio henrique de
castilho gomes
5 CURIOSIDADE
Café ou leite?

O Café com leite: a política na República


Colégios eleitorais
Oligárquica
Colégio Eleitoral – Total de cidadãos com
direito a voto em determinada região. Por que a História resolveu “batizar” a forma de fazer política durante a
chamada República Oligárquica de Política do Café com Leite?

COMENTÁRIO CURIOSIDADE
O grande poeta, músico e compositor Noel Rosa, em 1934, ano em que a política do
Maior produtor de leite café com leite já não tinha tanta força assim (estávamos nos primeiros anos da cha-
Embora também fosse um grande pro- mada Era Vargas), lançava uma canção que seria um grande sucesso: “Feitiço da Vila”.
dutor de café. Essa canção colocava o bairro carioca de Vila Isabel como um lugar onde se fazia
samba. Mas o que nos interessa é um único trecho dessa composição. Nele Noel faz
referência ao café com leite: “Lá, em Vila Isabel, quem é bacharel não tem medo de
bamba. São Paulo dá café, Minas dá leite, e a Vila Isabel dá samba.”

No capítulo anterior, nós verificamos que a Constituição, ao conce-


der autonomia aos estados acabou favorecendo politicamente as elites
econômicas desses estados.
Além disso, verificamos também que, entre todos os estados, São
Paulo e Minas Gerais, maiores colégios eleitorais e principais econo-
mias, foram os mais favorecidos. No decorrer das três primeiras décadas
do século XX, os dois estados, representados por suas elites econômicas
irão construir e consolidar o controle político do Estado Nacional, inclu-
sive celebrando um acordo (nem sempre cumprido à risca), que estabe-
lecia um revezamento entre o Partido Republicano Paulista e o Partido
Republicano Mineiro, na Presidência da República. Você deve estar se
perguntando: “Partido Mineiro? Partido Paulista?”
De fato, isso pode nos causar algum estranhamento, porque hoje
concebemos os partidos no âmbito nacional, mas, na época, os partidos
eram estaduais e não nacionais. Como o estado de São Paulo era o maior
produtor de café, e o estado de Minas Gerais, o maior produtor de leite ,
acabou-se chamando esse acordo político entre as oligarquias paulista e
mineira de “Política do café com leite”.
Entretanto, o que significava na prática essa política? Como ela se
sustentava? Quais os interesses que levaram a constituição desta alian-
ça? Que mecanismos garantiam o funcionamento dela? E os demais es-
tados? Onde entram nesse cenário?
Primeiro precisaremos recordar como essas oligarquias chegaram
ao poder. Então vejamos este ponto.

104 • capítulo 5
RESUMO CURIOSIDADE
Como vimos no capítulo anterior, a República foi proclamada com base em uma alian- Coronelismo
ça entre as elites agrárias — principalmente os cafeicultores de São Paulo — e os mi- Para entendermos o funcionamento
litares. Após a proclamação da República, essa aliança começou a apresentar proble- político de toda a República Oligárquica
mas e ser palco de disputas entre esses cafeicultores, defensores da transitoriedade é necessário compreender bem o fun-
do governo militar, e uma facção dos militares do exército que pretendiam permanecer cionamento desse modelo político. O
mais tempo no governo. Essa disputa, como vimos, ficaria representada na disputa coronel a que se faz referência não é a
eleitoral entre o Marechal Presidente Deodoro da Fonseca e o paulista Prudente de patente militar do exército. Nesse caso,
Morais, que seria derrotado nas primeiras eleições presidenciais (indiretas). estamos nos referindo ao grande pro-
Sabemos que, após os conturbados governos do próprio Deodoro e de seu vice, o prietário rural, que também é conhecido
também Marechal, Floriano Peixoto, os cafeicultores paulistas chegaram ao poder por “coronel”. Você já deve ter visto na
com a vitória eleitoral, agora em uma eleição direta, de Prudente de Morais, que se televisão ou lido em algum livro uma per-
tornaria o primeiro presidente civil da jovem República Brasileira. sonagem, grande proprietária de terras,
sendo chamada de “Coronel Fulano”!
A partir daí começaria a se construir um modelo político sustenta-
do pelos acordos, pelo controle do voto e predomínio das elites agrárias
nos seus respectivos estados, enfim da prática do Coronelismo. Mas o
que é mesmo o Coronelismo?
Essa denominação, na verdade, se remonta a Guarda Nacional, orga-
nização militar criada no Brasil em 1832, durante o período regencial.
Na prática a Guarda Nacional que, na sua criação, estava subordinada a
um grande proprietário rural que recebia o título de Coronel, era o ins-
trumento que fazia valer o poder dessas autoridades locais sobre uma
parcela da população que a ele estava subordinada. Essa subordinação,
que se dava em muitos aspectos, garantia a esse grande proprietário um
controle político absoluto na região onde ele predominava.

COMENTÁRIO
Nas palavras de José Murilo De Carvalho:
A distância entre a lei e a realidade sempre esteve presente no cotidiano da maioria
dos brasileiros. Até a metade do século XX, para quase toda a população rural, que
era majoritária, a lei do Estado era algo distante e obscuro. O que essa população
conhecia, e bem, era a lei do proprietário. Até mesmo autoridades públicas, como ju-
ízes e delegados, eram controladas pelas facções dominantes nos municípios. Havia
o “juiz nosso”, o “delegado nosso”. (Escola de transgressão. In: Revista de História da
Biblioteca Nacional. Ano 4, número 42, março de 2009, p. 20)

Esse controle político, garantido por essa subordinação, ou depen-


dência, se refletia no controle sobre o voto. Na sua região era eleito
quem o Coronel desejasse. Dessa forma, os municípios eram totalmen-
te controlados por esses grandes proprietários, que, pela força ou pela
dependência, tinham sob seu controle os votos necessários para garan-
tir o predomínio político.

capítulo 5 • 105
CURIOSIDADE Do coronel a população local dependia para quase tudo.

Jagunço EXEMPLO
Empregado armado que servia de guar- Emprego, médico, segurança, são só alguns exemplos de formas de dependência
da-costas de políticos e fazendeiros, desta população empobrecida em relação ao chefe político local.
capanga.
Esses favores muitas vezes eram dados em troca de votos, em uma
Coerção prática conhecida como clientelismo, em que o eleitor, uma espécie de
É o ato de induzir, pressionar ou compe- cliente, recebe favores e, em troca, garante que seu voto e de seus fami-
lir alguém a fazer algo pela força, intimi- liares serão dados ao Coronel que lhes prestou o serviço. Era uma espé-
dação ou ameaça. cie de troca: o Coronel fazia o “favor” e recebia o voto.
Se prestarmos atenção ao
noticiário político da atualida-
de, observaremos que essa é
uma prática ainda usual, em-
bora seja proibida pela legis-
lação eleitoral em vigor. Mas
essa não era a única forma
de controle eleitoral exercido
pelo Coronel. Outra possibili-
dade era a utilização da força,
o chamado voto de cabresto. Este se manifestava, fosse pela presença dos
jagunços desse coronel nos lugares onde ocorria a votação, fosse pela sim-
ples ameaça ou ainda pelo medo da violência construído no dia a dia.
A coerção eleitoral era facilitada pelo fato das eleições serem abertas
e não secretas. A legislação eleitoral em vigor na época não estabelecia
o voto secreto, ou seja, era possível saber em quem o cidadão tinha vota-
do, o que facilitava a ação coercitiva sobre o voto.

COMENTÁRIO
De certo modo, mesmo com mais dificuldades — hoje em dia o voto, como sabemos,
é secreto — ainda temos muitos eleitores que sofrem coerção pela violência na hora
de exercer o direito de voto.

Além dessas formas de corrupção eleitoral, havia fraudes de todos


os tipos. Sessões eleitorais eram fechadas e os jagunços do Coronel vo-
tavam por todos os eleitores daquela zona eleitoral, inclusive pelos mor-
tos. A contagem era realizada sem que ninguém fiscalizasse. Por isso, o
processo eleitoral garantia de todas as formas possíveis que apenas os
candidatos indicados pelos coronéis fossem eleitos.
Esse poder quase absoluto que os coronéis tinham em “seus” mu-
nicípios, de alguma forma significava um problema para o governo fe-
deral, que precisava estabelecer uma relação que lhes garantisse apoio
nas eleições presidenciais. O fato é que as oligarquias cafeeiras preci-
savam estabelecer uma aliança política com estes coronéis, principal-

106 • capítulo 5
mente no nordeste. Esse acordo se consolida no governo do Presiden- COMENTÁRIO
te Campos Sales, por meio de uma aliança que ficou conhecida como
“Política dos Governadores”. Diplomados
Esse “esquema” funcionava de forma bastante simples, até porque Quando os eleitos tomam posse de seus
as divergências que existiam entre o governo federal e o poder dos es- mandatos.
tados, representados pelos coronéis, não eram ideológicas, o que facili-
tava o acordo. A alma dessa política era a chamada Comissão de Verifi-
cação dos Diplomas dos Eleitos. A essa Comissão, criada no Congresso
Nacional, cabia acatar, ou não, a eleição, tanto do executivo quanto do
legislativo. Ou seja, só seriam diplomados depois que sua eleição fosse
confirmada pela tal Comissão.
Ora, quem controlava essa Comissão? Era o próprio Estado. Dessa
forma, só tomavam posse os candidatos eleitos apoiados pelas oligar-
quias locais. Os que não pertencessem a esses grupos não tomavam
posse, em um movimento que ficou conhecido como “degola”. Para as
elites locais, esse mecanismo, mais do que garantir a eleição de seus
candidatos, demonstrava o reconhecimento, por parte do governo fede-
ral, do poder que esses coronéis tinham em seus estados e municípios.
Dessa forma, o Governo Federal mandava um recado: reconhecia a
autoridade política local, não interferia nos assuntos locais, garantia os
privilégios locais e, em troca, recebia o apoio político na hora da eleição
presidencial. Assim, garantia-se a política do café com leite, porque ela
garantia o predomínio local dos coronéis, como vemos no esquema:

Federal
Política do café com leite
(MG/SP)

Estadual Comissão de Verificação


Política dos Governadores
Oligarquias locais Degola

Municipal Curral

Coronéis Eleitoral

Voto de cabresto Clientelismo

Dessa forma, o controle político eleitoral durante toda a chamada


República Oligárquica esteve nas mãos dos grandes proprietários ru-
rais, mantendo seus privilégios e assegurando uma política econômica
basicamente ruralista. Entretanto, é um erro acreditar que essa hege-
monia não teve seus momentos de crises.

capítulo 5 • 107
COMENTÁRIO Diversos foram os movimentos sociais que ao longo desse período aba-
laram as estruturas do país, como veremos no próximo item.
Campo
Só no decorrer da década de 1960 é
que a população urbana ultrapassou a Movimentos Sociais
população rural.

Movimentos rurais
CURIOSIDADE
Como vimos no item anterior, a base do controle político exercido pelos
Propriedade rural grandes latifundiários estava na condição de dependência da imensa
Também conhecida como latifúndio. população rural brasileira. No início do século XX, a maior parte da po-
pulação brasileira concentrava-se no campo e convivia com uma realida-
de muito dura.
Extrema pobreza Ao longo de toda a nossa his-
A extrema pobreza pode ser represen- tória, a propriedade de terras
Não foram poucos os
tada na figura do boia fria, camponês sempre esteve concentrada nas instrumentos legais
sem-terra e sem emprego, que diaria- mãos de uma pequena parte da que favoreceram esse
mente sai de casa na esperança de população. A agricultura bra- fenômeno.
conseguir trabalho. sileira sempre foi baseada na
grande propriedade rural, desde os tempos da colônia e, dessa forma,
sempre favoreceu essa concentração.
Fato é que, no início da República, essa imensa massa de campone-
ses sem terra dependiam diretamente dos grandes latifundiários para
garantir o seu sustento.
Esse panorama facilitava o controle político sobre os camponeses,
mas também construía uma paisagem de extrema pobreza. Nesse uni-
verso de muita pobreza e de muitas incertezas, surgirão personagens
que apresentarão discursos religiosos de esperança em dias melhores.
Eles comporão um movimento típico do interior do Brasil conhecido
como messianismo. Esse movimento se caracteriza pela presença do
elemento religioso no discurso desses indivíduos, que encontram na ex-
trema pobreza um fértil terreno para sua aceitação. Não foram poucos
os beatos que andavam pelo interior com mensagens de fé e de certeza
de uma vida melhor, aqui ou após a morte.
Desse messianismo irão surgir alguns movimentos importantes
na história brasileira. Alguns desses movimentos romperam a fron-
teira do discurso e se transformaram em realidade concreta, o que
incomodava aos grandes proprietários. Entre esses movimentos dois
merecem destaque: Canudos e Contestado. Vejamos no que consis-
tiu o movimento de canudos.

108 • capítulo 5
CURIOSIDADE
O movimento de Canudos só se torna possível pela junção das condições
miseráveis em que viviam os camponeses com o surgimento do messianis- Sertão
mo. Ainda no final do século XIX, no sertão da Bahia irá surgir a figura do be- Os Sertões – Samba de Edeor de Paula,
ato Antônio Conselheiro (Antônio Mendes Maciel). Dono de uma fé católica GRES Em cima da hora, 1976.
fervorosa, Antônio Conselheiro viu a família ser perseguida por grandes pro-
prietários, tornou-se órfão de pai ainda jovem e mais tarde foi abandonado “Marcado pela própria natureza / O nor-
pela esposa. Ele identificava na República a origem de diversos problemas e deste do meu Brasil / Oh! solitário ser-
anunciava transformações profundas no mundo. tão / De sofrimento e solidão / A terra é
seca / Mal se pode cultivar / Morrem as
plantas, e foge o ar / A vida é triste neste
No início dos anos de 1890, ele e seus seguidores ocuparam uma fa- lugar / Sertanejo é forte / Supera misé-
zenda abandonada às margens do rio Vaza-barris no interior da Bahia, ria sem fim / Sertanejo homem forte /
fundando o que se chamaria de “Arraial do Belo Monte”, também co- Dizia o poeta assim / Foi no século pas-
nhecido por Canudos, por conta de uma planta comum na região. Lá sado / No interior da Bahia / O homem
estabeleceram uma agricultura de tipo familiar e artesanato, mas que revoltado com a sorte / Do mundo em
trouxe algum desenvolvimento à região. que vivia / Ocultou-se no sertão / Espa-
O discurso de Conselheiro encontrou-se com o desejo de transfor- lhando a rebeldia / Se revoltando contra
mação que o camponês nutria dentro de si. Mas, muito mais do que as a lei / Que a sociedade oferecia / Os
pregações ou profecias do Beato, o que incomodava de fato as elites di- jagunços lutaram / Até o final / Defen-
rigentes da região e do país era a perigosa independência que o arraial dendo Canudos / Naquela guerra fatal.”
mantinha em relação à estrutura política e econômica predominante no
país. O fato é que Canudos era um exemplo que precisava ser extinto.
No início dos anos de 1890, Conselheiro e seus seguidores ocuparam
uma fazenda abandonada às margens do rio Vaza-barris no interior da
Bahia, fundando o que se chamaria de Arraial do Belo Monte, também
conhecido por Canudos, por conta de uma planta comum na região. Lá
estabeleceram uma agricultura de tipo familiar e artesanato que trouxe-
ram algum desenvolvimento à região.
Iniciaram-se, entretanto, expedições contra o arraial, que, àquela al-
tura, era tratado pelo governo e pela imprensa como um lugar de loucos
e fanáticos. Ao todo foram quatro as expedições enviadas contra o ar-
raial. A cada vitória dos “rebeldes” aumentava o desejo e a necessidade,
para o governo, de aniquilar o arraial. Na quarta expedição, comandada
pelo General Artur de Andrada Guimarães, formada por cerca de oito mil
homens armados, com o que havia de mais moderno no exército brasi-
leiro, o arraial foi definitivamente derrotado e sua população dizimada.

COMENTÁRIO
Nas Palavras de Euclides da Cunha:
“Canudos não se rendeu. Exemplo único em toda a história resistiu até o esgotamento
completo. Expugnado palmo a palmo, na precisão integral do termo, caiu no dia 5,
ao anoitecer, quando caíram os seus últimos defensores, que todos morreram. Eram

capítulo 5 • 109
AUTOR quatro apenas: um velho, dois homens feitos e uma criança, na frente dos quais rugiam
raivosamente cinco mil soldados” (Euclides da Cunha. Os Sertões. 1975. p. 476).
Euclides da Cunha
Nascido no Rio de Janeiro em 1866, Outro movimento semelhante em suas características ao movimen-
Euclides da Cunha foi engenheiro, mi- to de Canudos foi a Guerra do Contestado. O conflito se assenta nas
litar, jornalista, escritor. Trabalhou como mesmas condições de pobreza e dificuldade dos camponeses do confli-
correspondente do jornal O Estado de to em Canudos.
São Paulo, na guerra de Canudos, onde Essa região era controlada por latifundiários e começou a ser modi-
escreveu sua principal obra Os Sertões. ficada em 1908 quando uma empresa britânica (Brazil Railways) iniciou
Morreu em 1909. a construção de uma ferrovia. A empresa foi adquirindo terras na região,
desalojando uma quantidade significativa de famílias. Essa situação só
não foi mais complicada porque ao longo da construção a empresa con-
CURIOSIDADE tratou cerca de 8 mil trabalhadores. Entretanto, finalizada a obra, esses
trabalhadores foram demitidos e se uniram às famílias expulsas de suas
Guerra do Contestado propriedades.
A Guerra do Contestado ocorreu em
uma região que foi objeto de disputa ATENÇÃO
entre as províncias de Santa Catarina e É nesse quadro desolador que aparece a figura do “monge” José Maria. Cercado
Paraná desde o século XIX. pelo mesmo misticismo que envolvia a figura do Conselheiro, o beato José Maria
ampliou sua fama por se autoproclamar herdeiro de um beato desaparecido anos
antes e que virou lenda, na medida em que estes camponeses aguardavam sua volta
messiânica. Os seguidores do beato ocupavam umas terras que haviam sido cedidas
por um “coronel”.

O desenvolvimento dessa comunidade levou as tropas policiais de


Santa Catarina a expulsarem o grupo que seguiu para terras pertencen-
tes ao estado do Paraná. Essa ocupação foi vista como uma tentativa de
anexação do território por coronéis de Santa Catarina, o que levou o go-
verno federal a enviar tropas para destruir a comunidade. A resistência
foi intensa e a cada derrota a comunidade se reorganizava, só sendo de-
finitivamente derrotada em 1916, com um ataque violento de tropas do
exército brasileiro, deixando cerca de 20 mil mortos.
Operando em outra lógica, mas originário de uma mesma realidade,
temos o cangaço. Esse fenômeno é palco de divergências historiográfi-
cas. Há aqueles que o compreendem dentro de uma lógica que é cha-
mada de banditismo social, enquanto outros o compreendem como um
movimento que não possuía uma ideologia popular e estava mais ligado
aos interesses particulares das lideranças desses bandos.

REFLEXÃO
Entretanto, afinal de contas, o que era um cangaceiro? A quem ele estaria ligado?
Quais seus reais interesses?

O fato é que o cangaço foi um movimento independente, tendo


ou não ideologias, o cangaceiro rebelava-se contra a estrutura social

110 • capítulo 5
vigente. O que o cangaceiro estabelecia era que, em seus domínios, quem mandava
não era o coronel, mas ele. Dessa forma, o cangaço aparecia como uma brecha no con-
trole político do coronel, por isso, eram, muitas vezes, admirados por parte da popu-
lação do interior.
A origem do cangaceiro está na população mais
humilde, mais pobre, vítima da violência e das in-
O cangaceiro queria
justiças praticadas pelos coronéis. Dessa forma, ha- ser visto, identificado,
via uma fonte inesgotável de pessoas prontas a ade- considerado protetor
rir ao cangaço. E de fato esse movimento controlou ou ameaça.
boa parte do sertão nordestino, submetendo muitas
vezes poderosos coronéis.
Ele quer ser visto, notado respeitado, ou porque é um “benfeitor” ou porque tem auto-
ridade fundada na violência de seus atos.
Esse movimento ficou marcado pela presença de diversos bandos que perambulavam
pelo sertão nordestino, controlando vastas áreas. O cangaço só vai desaparecer, de fato, já
na década de 1930, quando não foi mais capaz de acompanhar o desenvolvimento tecnoló-
gico das armas que as forças policiais e militares utilizavam para seu combate.

EXEMPLO
Dentre todos os bandos, o mais conhecido foi o bando de Lampião e Maria Bonita. De fato, esse bando contava
com a participação de mulheres, na maioria das vezes em condições de igualdade com os homens do bando.

As revoltas urbanas

Se no campo a tensão era construída principalmente pelas péssimas condições de vida dos
camponeses, nos centros urbanos a situação não era muito diferente. As camadas mais po-
bres viviam em um universo de pobreza extrema, cercada de diversos problemas.
Como pano de fundo desse cenário, estava o preconceito racial. A maior parte dessa
população empobrecida e excluída socialmente era formada por negros, ex-escravos ou
descendentes de escravos, que, além da pobreza, sofria com o preconceito racial. O final do
século XIX trazia uma lógica, que invadia o século XX e que estabelecia a mestiçagem como
símbolo de fracasso nacional.
Assim, desde o Império, havia práticas que buscavam embranquecer a sociedade bra-
sileira. A imensa leva de imigrantes europeus, principalmente italianos, que chegara ao
Brasil para substituir a mão de obra escrava, obedecia essa lógica. A grande naturalização
foi outro elemento que tinha como um de seus objetivos essa prática embranquecedora.
Dessa forma, essa população negra, que desde o fim da escravidão ocupava os centros
urbanos, vivia à margem da sociedade. Não tinham acesso à escolaridade, a empregos for-
mais, suas manifestações culturais e religiosas eram proibidas por lei, enfim, eram margi-
nalizados de todas as formas possíveis, muito embora representassem uma parcela signifi-
cativa da população destes grandes centros.
Na capital federal, esse número era bastante significativo, até porque, por ocasião
do fim da escravidão, o Rio de Janeiro era uma das províncias com a maior concentra-

capítulo 5 • 111
ção de mão de obra escrava do Império. Assim, o Rio acabou sendo o palco das maiores
tensões urbanas ligadas às questões raciais. Duas merecem destaque: a Revolta da Va-
cina e a Revolta da Chibata.

COMENTÁRIO
A reportagem abaixo lhe causa estranhamento? Ela é de 21 de abril de 2014 e nos diz que houve um
aumento significativo de casos de Dengue. O mosquito Aëdes aegypti, transmissor da dengue, também é
o transmissor da febre amarela, uma das doenças que assolavam a capital federal desde os meados do
século XIX. Ela, a peste bubônica e a varíola produziam um efeito tão devastador, que, alguns países, che-
garam a proibir a vinda de imigrantes e navios cargueiros para o porto do Rio de Janeiro.

Quando algum navio por aqui parava, era obrigado a permanecer em quarentena antes
de aportar em outros países. A pouca infraestrutura e o insuficiente saneamento básico
ajudavam a construir um quadro grave de saúde pública na cidade.

COMENTÁRIO
Segundo o Instituto Brasileiro de Geografia Estatística (IBGE), em seu documento “Estatísticas do Século
XX”, a população da capital do país à época, o Rio de Janeiro, saltou de 522.651 habitantes, em 1890,
para 1.157.873 habitantes, em 1920.

Esse crescimento populacional aliado à já comentada falta de infraestrutura transfor-


mava a cidade do Rio de Janeiro em um palco de graves problemas sociais. A falta de habi-
tações dignas para as populações mais pobres aumentava ainda mais as condições epidê-
micas em que a cidade vivia.
Todo esse panorama se chocava frontalmente com a ideia de progresso advinda com
a República. Nesse contexto, o Governo Federal do então Presidente Rodrigues Alves no-
meou o Engenheiro Pereira Passos para o governo do Distrito Federal e iniciou uma série
de reformas urbanas, cujo objetivo era modernizar a cidade.

Essas reformas se baseavam nas reformas sofridas pela cidade de Paris em meados do século
XIX e pretendiam introduzir no Brasil a Belle époque, transformando a cidade do Rio de Janeiro
em vitrine da suposta modernidade.

O projeto previa, entre outras coisas, o alargamento de ruas e avenidas do centro, o que
determinava a demolição dos cortiços e zungas, onde habitava a maioria da população em-
pobrecida, majoritariamente negra. Logo, se cumpria dois objetivos claros e indissociáveis
para a lógica que movia tais reformas: modernizar o Rio de Janeiro e retirar do seu centro
as populações negras.
Assim, os cortiços começaram a ser derrubados, e essa população, não tendo para aon-
de ir, iniciou a ocupação dos morros mais próximos do centro da cidade. A grande questão
é que, nos morros, as condições de vida dessa população não eram muito diferentes daque-
las nos cortiços e zungas.

112 • capítulo 5
Além dessas reformas, o projeto de modernização da capital federal CURIOSIDADE
pressupunha também a erradicação das epidemias que assolavam a ci-
dade e o maior conjunto de ações ocorreu a partir da nomeação do mé- Vacinação Obrigatória
dico sanitarista Oswaldo Cruz, que lideraria as ações de combate às epi- Lei nº 1.261, de 31 de outubro de 1904
demias. Se por um lado, as reformas urbanas se utilizaram de medidas O Presidente da Republica dos Estados
autoritárias, como as derrubadas dos cortiços, o combate às epidemias Unidos do Brazil:
seguiu o mesmo curso. Faço saber que o Congresso Nacional
decretou e eu sancciono a lei seguinte:
EXEMPLO Art. 1º A vaccinação e revaccinação
Para conter o avanço da peste bubônica, o governo do Distrito Federal estabeleceu contra a variola são obrigatorias em
uma estratégia curiosa: passou a comprar ratos mortos da população, incentivando-a toda a Republica.
a iniciar uma verdadeira temporada de caça aos ratos. É obvio que somente a parcela Art. 2º Fica o Governo autorizado a re-
mais empobrecida participava dessas ações, e por conta disso expunha-se mais ao gulamenta-la sob as seguintes bases:
risco de contaminação. a) A vaccinação será praticada até o
sexto mez de idade, excepto nos casos
Entretanto, o auge do combate às epidemias ocorre com a decreta- provados de molestia, em que poderá
ção da vacinação obrigatória. ser feita mais tarde;
A decretação da vacina- b) A revaccinação terá logar sete annos
ção obrigatória causou um após a vaccinação e será repetida por
A vacinação obrigatória
elevado grau de descon- septennios;
tentamento em diversos
se transformava,assim, c) As pessoas que tiverem mais de seis
setores da sociedade brasi- em mais uma das mezes de idade serão vaccinadas, ex-
leira. Dentro de uma lógica inúmeras ações cepto si provarem de modo cabal terem
autoritária, Oswaldo Cruz, autoritárias estabelecidas soffrido esta operação com proveito
em nenhum momento, se dentro dos ultimos seis annos;
pelo governo e que
preocupou em esclarecer à Rio de Janeiro, 31 de outubro de 1904,
população de que se tratava
atingiam a população. 16º da Republica.
a vacina. Fonte: http://www2.camara.leg.
Aliás, é bom que se diga, a vacinação preventiva era uma novidade na br/legin/fed/lei/1900-1909/lei-
época não apenas para os mais pobres, mas para a população em geral. 1261-31-outubro-1904-584180
A resistência à vacinação não nasceu nas camadas populares. Para se ter
uma ideia, a Liga Contra a Vacina Obrigatória foi criada pelo Senador Lauro
Sodré e refletia uma insatisfação mais ampla. A questão é que as camadas
mais populares já se apresentavam insatisfeitas com uma série de medidas
autoritárias e antipopulares tomadas pelo governo no decurso das ações da
reforma urbana. Por isso, quando as lideranças da Liga convocaram um co-
mício contra a vacinação, a presença popular foi inevitável.
Curiosamente, as lideranças da Liga não se fizeram presentes no
evento que acabou sendo duramente reprimido pelas forças policiais.
Esse confronto acabou se espalhando por toda a cidade. Depredações
de bondes, de estabelecimentos públicos, formação de barricadas, tiros
ocorreram em todo o centro da cidade ao longo de uma semana. Diante
da situação, o governo revogou temporariamente a vacinação obrigató-
ria e conteve as manifestações.

capítulo 5 • 113
CURIOSIDADE ATENÇÃO
Chibata É importante que se diga que pior do que a vacinação obrigatória eram as péssimas
Você sabe o que é uma “chibata”? O di- condições de vida das camadas mais pobres, que serviram de combustível para a
cionário define chibata como uma vara explosão que se deu com a decretação. Assim sendo, é preciso observar a revolta
fina e comprida, ou como uma tira fina não apenas como um movimento de resistência à vacinação obrigatória, mas como
de couro usada para bater, ou ainda uma manifestação de descontentamento popular frente a uma série de medidas
como um chicote. A chibata era um ins- autoritárias que não respondiam aos desejos das camadas mais empobrecidas, que
trumento de tortura utilizado contra es- permaneciam excluídas no cenário nacional.
cravos na punição mais comum aplicada
a eles, a chibatada. Outro movimento vinculado às questões sociais e raciais ocorrido na
Capital Federal foi a Revolta da Chibata.

COMENTÁRIO REFLEXÃO
castigo corporal
O decreto em questão estabelecia a pe- Mas se a escravidão foi extinta em 1888, por que em 1910 surgiria uma revolta com
nalidade de 25 chibatadas em caso de esse nome?
falta grave.
Simples, embora a escravidão estivesse extinta, a marinha brasileira
ainda manteve os castigos corporais como punição disciplinar. Curiosa-
mente, essa prática havia sido extinta um ano após a Proclamação da Re-
pública, mas reintroduzida pelo decreto 328 de abril de 1890. Associado
ao castigo corporal estava às péssimas condições de trabalho dos mari-
nheiros, da má alimentação aos baixos salários, passando pelas longas
jornadas de trabalho.
Esse quadro era ainda pior para os marinheiros que trabalhavam
nas condições insalubres das casas de máquinas. A maioria desses ma-
rinheiros era negra, o que tornava a chibata um castigo físico e moral,
pois remetia à condição de escravo, abolida desde 1888.

Foi nesse contexto que surgiu a Revolta da Chibata. Após um duro castigo
aplicado a um marinheiro, João Cândido, também marujo, lidera um grupo
que vai tomar o comando do “Minas Gerais”, moderno encouraçado da mari-
nha, onde servia o líder do movimento.

Entretanto não parou por aí: outros navios também foram toma-
dos. Após manobrarem os navios e apontarem seus canhões para a
cidade do Rio de Janeiro, os marinheiros enviaram uma carta ao go-
verno federal exigindo, entre outras coisas, o fim dos castigos corpo-
rais e a anistia a todos os envolvidos no levante. Diante da situação,
o responsável pelo governo federal, Hermes da Fonseca, atendeu às
reivindicações dos revoltosos, decretando o fim dos castigos corpo-
rais e garantindo anistia aos revoltosos.

114 • capítulo 5
ATENÇÃO CURIOSIDADE
Depois de encerrado o conflito, entretanto, e com os navios já em poder da marinha, o Revolta da Chibata
Presidente da República autorizou a prisão e expulsão das lideranças do movimento. Esta é a letra da música composta em
João Cândido foi preso com mais 17 marinheiros nas masmorras da Ilha das Cobras, 1975, por João Bosco e Aldir Blanc, e
sendo posteriormente julgado e absolvido, mas jamais reintegrado à Marinha. retrata com bastante clareza a Revolta
da Chibata. Apresentada aqui com sua
Canudos, Contestado, Cangaço, Vacina, Chibata, todos esses movi- letra original e com as partes censura-
mentos nos revelam uma profunda insatisfação com as condições pre- das à época de seu lançamento entre
cárias a que estavam submetidas às camadas populares, seja no campo, parênteses.
seja na cidade. As transformações que o Brasil experimentava traziam à Há muito tempo nas águas da Guana-
tona questões viscerais, que de alguma forma pressionavam o sistema. bara / O dragão do mar reapareceu /
Se na prática tais movimentos não conseguiram subverter definitiva- Na figura de um bravo marinheiro (fei-
mente a ordem estabelecida, pelo menos revelavam que essa não era a ticeiro) / A quem a história não esque-
República dos sonhos de todos. ceu / Conhecido como o almirante (na-
vegante) negro / Tinha a dignidade de
IMAGEM um mestre-sala / E ao navegar (acenar)
pelo mar com seu bloco de fragatas (na
alegria das regatas) / Foi saudado no
porto pelas mocinhas francesas /Jo-
vens polacas e por batalhões de mulatas
/ Rubras cascatas jorravam das costas
/ dos negros pelas pontas das chiba-
tas (santos entre cantos e chibatas) /
Inundando o coração de toda tripulação
(do pessoal do porão) / Que a exemplo
do marinheiro (feiticeiro) gritava então /
Glória aos piratas, às mulatas, às sereias
/ Glória à farofa, à cachaça, às baleias /
Glória a todas as lutas inglórias / Que
através da nossa história / Não esque-
cemos jamais / Salve o almirante negro
Jornal do Brasil — Wikipédia (navegante negro) / Que tem por mo-
numento / As pedras pisadas do cais /
Mas faz muito tempo.

Economia cafeeira e primeiras indústrias
Não é uma novidade republicana a importância do café na economia na-
cional. Desde o Segundo Reinado que o café se tornara o principal pro-
duto da economia nacional. Durante toda a República Velha, essa reali-
dade permanecerá inalterada. A grande diferença é que o grande centro
produtor não será o Rio de Janeiro, mas o Oeste paulista, muito embora
essa migração também tenha ocorrido durante o Segundo Reinado.

capítulo 5 • 115
REFLEXÃO
Como sabemos, as Oligarquias cafeeiras paulistas tem um papel fundamental na ruptura com a monarquia e
a construção da República. Mas o que significa dizer que o café é o principal produto da economia brasileira?

Observemos as tabelas que se seguem:

ANO REGIÃO ARROBAS DE CAFÉ %


VALE DO PARAÍBA 2 737 639 77,5
1854 100
OESTE PAULISTA 796 617 22,5
VALE DO PARAÍBA 2 074 267 20,0
1888 100
OESTE PAULISTA 8 300 063 80,0

COMÉRCIO EXTERIOR DO BRASIL - PRINCIPAIS PRODUTOS EXPORTADOS


(% SOBRE O TOTAL DA EXPORTAÇÃO)

DECÊNIOS CAFÉ AÇÚCAR CACAU ERVA- ALGODÃO COUROS


MATE FUMO EM PLUMA BORRACHA E PELES TOTAL
1821-1830 18,4 30,1 0,5 - 2,5 20,6 0,1 13,6 86,8
1831-1840 43,8 24,0 0,6 0,5 1,9 10,8 0,3 7,9 89,8
1841-1850 41,4 26,7 1,0 0,9 1,8 7,5 0,4 8,5 88,2
1851-1860 48,8 21,2 1,0 1,6 2,6 6,2 2,3 7,2 90,9
1861-1870 45,5 12,3 0,9 1,2 3,0 18,3 3,1 6,0 90,3
1871-1880 56,6 11,8 1,2 1,5 3,4 9,5 5,5 5,6 95,1
1881-1890 61,5 9,9 1,6 1,2 2,7 4,2 8,0 3,2 92,3
1891-1900 64,5 6,0 1,5 1,3 2,2 2,7 15,0 2,4 93,6
1901-1910 51,3 1,2 2,8 2,9 2,4 2,1 28,2 4,3 95,2
1911-1920 53,0 3,0 3,6 3,0 2,6 2,0 12,1 6,2 85,5
1921-1930 69,6 1,4 3,2 2,7 2,1 2,4 2,6 4,6 88,6
1931-1940 52,4 0,4 4,1 1,7 1,6 13,9 1,0 4,4 79,5
Se observarmos a primeira tabela, verificaremos como a produção paulista supera a
produção do estado do Rio de Janeiro, localizada na região do Vale do Paraíba.
Olhando para a segunda tabela, iremos observar a participação da produção cafeeira
no total das exportações brasileiras, comparando-a com a participação de outros produtos
primários. Só para termos uma ideia da importância do café nesse cenário, basta perceber
que, entre os anos de 1890 e 1930, a participação do café ficou entre 51% e 69%.
Isso é de uma importância muito significativa. No decênio 1921/1930, o café represen-
tava cerca de 70% do total de nossas exportações.

EXEMPLO
Só para exemplificar, era dessa importância que vinha a força política dos grandes produtores de café.
Desse modo, o café acabava sendo o principal gerador de divisas, dólares que o Brasil utilizava para suprir
suas necessidades exportadoras.

116 • capítulo 5
Para se ter uma ideia, o Brasil chegou a ser responsável por 75% da CURIOSIDADE
distribuição mundial de café. O país era grande importador de produtos
industrializados, bens de consumo não duráveis, e, mesmo com uma Balança comercial
geração de riquezas considerável, principalmente vinda do café, a eco- Todos os países vendem produtos para
nomia brasileira mantinha sua característica agrário-exportadora, o que outros países, o que nós chamamos de
resultava, muitas vezes, em uma balança comercial desfavorável. exportação, e também compram pro-
Aliás, a dívida externa brasileira era um problema, tanto que, no dutos de outros países, que chamamos
governo do Presidente Campos Salles, foi posto em prática um plano de importação. Balança comercial é a
econômico que ficou conhecido por funding-loan. Esse plano foi uma relação entre o volume de riqueza con-
decorrência dos problemas gerados pela política do encilhamento, que seguido com as exportações e o volume
estudamos no capítulo anterior. gasto com as importações. Dizemos que
Na prática, o funding-loan foi um novo empréstimo para saldar dívi- a balança comercial de um país é favo-
das anteriores e dar uma folga à economia brasileira com o objetivo de rável quando a riqueza conquistada com
reorganizá-la. Esse empréstimo, de cerca de dez milhões de libras, feito as exportações é maior que a riqueza
a banqueiros ingleses, tinha condições especiais de pagamento: uma gasta com as importações. Quando
carência de três anos e um prazo de dez anos. Entretanto havia algumas acontece o contrário dizemos que a ba-
exigências, a mais significativa é que o governo dava como garantia de lança comercial é desfavorável, o que é
pagamento todas as nossas rendas alfandegárias. um problema.
O fato é que mesmo com a riqueza do café, as condições de nossa
economia eram muito precárias. Os cafeicultores e outros proprietários Se a balança comercial se mantém
de terras eram ricos, mas a economia brasileira, nem tanto. sempre desfavorável, o país começa a
contrair dívida em cima de dívida, o que
RESUMO vai trazendo uma série de problemas
Além de tudo o que já falamos acerca da importância do café, vale lembrar que ele econômicos.
era o maior gerador de empregos, diretos ou indiretos, e acabava incentivando o
desenvolvimento de outras atividades econômicas que a ele estavam ligadas. O café Funding-loan
era tão importante para a economia nacional que o governo, que era controlado pe- É uma expressão da língua inglesa que
los produtores de café, criou um mecanismo de proteção do preço do café. significa empréstimo, financiamento.

Entretanto, você deve se perguntar por que um produto tão impor- Carência
tante e tão lucrativo precisava de um sistema de controle de produção? Tempo para iniciar o pagamento.
Por várias razões a produção cafeeira estava sujeita a crises de superpro-
dução, e esse tipo de crise não é nada boa. Você sabe que a lei da oferta Rendas Alfandegárias
e da procura regulamenta o preço das coisas em uma economia liberal. Impostos arrecadados com as exporta-
Se tivermos pouca quantidade de um determinado produto no mercado ções.
e uma procura muito grande, seu preço aumenta, ou seja, se a procura é
maior do que a oferta haverá alta de preço.
No entanto, quando ocorre o contrário e temos uma oferta grande de
um dado produto associada a uma procura pequena, o preço cai. Quan-
do temos uma superprodução de qualquer produto, a tendência é que
tenhamos maior oferta do que procura, o que vai fazer que esse produto
tenha uma queda de preço.
O café, como já dissemos, era suscetível a essas crises de superpro-
dução. Como a maior parte da produção era destinada ao mercado ex-
terno, qualquer problema na economia dos países consumidores de

capítulo 5 • 117
CURIOSIDADE nosso café (Inglaterra e EUA, eram os principais), a compra era suspensa
e ficávamos com toneladas de café acumulados no porto.
Capital Além disso, como o café dava muito lucro, havia uma tendência a
Riqueza investida na geração de mais produzir cada vez mais. Dessa maneira, para garantir o preço e os lucros
riqueza. Podem ser diversas formas de dos cafeicultores, o governo se comprometia a comprar o excedente de
riqueza: dinheiro, equipamento e até café e a queimá-lo, caso fosse necessário, em um acordo que ficou co-
produtos, desde que utilizados para ge- nhecido como “Convênio Taubaté”.
rar mais capital. Com isso, o governo federal garantia os lucros dos cafeicultores. O
governo contraía empréstimos, gastava dinheiro público para garantir
os lucros de uma pequena parcela da sociedade. Como isso era possível?
COMENTÁRIO Não podemos nos esquecer de que eram os cafeicultores que governa-
Produtos industrializados vam o país.
Produtos que utilizamos no dia a dia e
que possuem um tempo de utilização ATENÇÃO
relativamente pequeno — vidros, roupas, Além de todas as questões que explicam a importância do café no cenário da eco-
chapéus etc. nomia nacional, gerador de divisas, gerador de empregos diretos e indiretos, respon-
sável pelo desenvolvimento de outras atividades econômicas, e outras tantas que
sequer comentamos, o café teve uma importância significativa no nascimento das
Europa e dos Estados Unidos nossas primeiras indústrias. É claro que isso é uma expressão exagerada, porque já
A Inglaterra era uma parceira econômi- havia algumas indústrias no Brasil, desde o século XIX, mas é na segunda década do
ca histórica. século XX que aparece um número significativo de indústrias.

A maior parte dessas novas indústrias vai se concentrar em São Paulo
porque lá estava a maior produção cafeeira, e, portanto, a maior concen-
tração de capital. Desse modo, foram os capitais gerados pela economia
cafeeira que em parte financiaram o aparecimento dessas indústrias.
Como já dissemos, o Brasil impor-
tava quase tudo que consumia, em
Esse crescimento
termos de produtos industrializados, industrial está
principalmente o que chamamos de ligado à Primeira
bens de consumo não duráveis. Guerra Mundial.
Essas importações vinham prin-
cipalmente da Europa e dos Estados Unidos. Com a eclosão da Primei-
ra Guerra Mundial, em 1914, esses países suspenderam esse comércio.
Consequentemente, o Brasil precisou passar a produzir esses bens de
consumo a fim de substituir parte das exportações, daí o nome de “in-
dústrias de substituição”.
No entanto, permanecíamos um país majoritariamente agrário-ex-
portador. Essas indústrias eram pequenas e concentradas principal-
mente no eixo Rio de Janeiro/São Paulo, com predominância do estado
de São Paulo.

118 • capítulo 5
CONCENTRAÇÃO DA PRODUÇÃO INDUSTRIAL
CONCENTRAÇÃO %
REGIÕES
1907 1919 1939
SÃO PAULO 15,9 31,5 45,4

GUANABARA 30,2 20,8 17,0

RIO DE JANEIRO 7,6 7,4 5,0

MINAS GERAIS 4,4 5,6 6,5

RIO GRANDE DO SUL 13,5 11,1 9,8

DEMAIS ESTADOS 28,4 23,6 16,3


CANO, Wilson. Raízes da concentração industrial em São Paulo. São Paulo: HUCITEC, 1976. Apud:
GERAB, William Jorge; ROSSI, Waldemar. Indústria e Trabalho no Brasil. São Paulo: Atual, 1998. p. 69.

DISTRIBUIÇÃO SETORIAL DO PIB BRASILEIRO, 1910-1950 (%)


ANO AGRICULTURA INDUSTRIA SERVIÇOS*

1910 35,8 14,0 50,2

1920 32,0 17,1 50,9

1930 30,6 16,5 52,9

1940 25,0 20,8 54,2

1950 24,3 24,1 51,6


*INCLUI O GOVERNO
Como podemos observar nas tabelas anteriores, há um relativo crescimento da participa-
ção do setor industrial no Produto Interno Bruto (PIB) brasileiro na década da guerra (1910),
embora a participação preponderante ainda seja do setor agrícola, tendo esse crescimento se
concentrado nos estados de São Paulo (principalmente) e Minas Gerais, justamente os dois
principais estados no cenário político e econômico nacional.
Se esse crescimento não nos colocou na estrada rumo ao universo das nações indus-
trializadas, foi suficientemente significativo para transformar a paisagem urbana dessas
principais cidades, trazendo para o cenário político novos atores, que serão responsáveis
por transformações significativas da República brasileira.

O Código Civil de 1916


A busca pela elaboração de uma legislação civil brasileira foi uma luta que começara já
no Império, logo após a elaboração do Código Comercial, e se estendeu pela República. O
país ainda estava submetido às ultrapassadas normas das Ordenações Filipinas, e foram

capítulo 5 • 119
COMENTÁRIO precisos quase cem anos após a Independência para que ganhasse uma
legislação à altura dos novos tempos.
Legislação à altura dos novos O Código Civil de 1916 reproduziu, como não poderia deixar de ser,
tempos as concepções predominantes ao final do século XIX e início do século
Antes de ter sido codificado, foi objeto XX, ou seja, refletia o ambiente liberal-conservador que marcava a so-
de encomenda a vários grandes juristas ciedade brasileira daquele período. Por isso, seria injusto afirmarmos,
da época: Teixeira de Freitas, Nabuco como fazem alguns, que se tratou de uma legislação ultrapassada.
de Araújo, Visconde de Seabra, Felício É bem verdade que hoje, diante do novo diploma civil de 2002, a
dos Santos, Coelho Rodrigues. Entre- maior parte desses entendimentos realmente pode ser considerada ul-
tanto, sua elaboração ficou ao encargo trapassada, já que baseados no individualismo então reinante. No en-
de Clóvis Beviláqua, jovem (o que seria tanto, na época em que foi introduzida foi uma legislação em consonân-
fator de desconfianças na época) cia com seu tempo, adotando, pela primeira vez no Brasil, concepções
jurista da famosa Escola do Recife. capitalistas, principalmente no que diz respeito ao direito de proprieda-
Embora tenha começado seu trabalho de e à liberdade de contratar.
em 1899, o texto final somente viria a
ser aprovado como Código Civil brasi-
leiro em 1916, após muitos debates e O movimento operário
emendas, o que leva, inclusive, a que
alguns considerem ser mais correto Você sabe o que é um sindicato e conhece sua importância na história
dizer que se trata de uma obra coletiva. da classe trabalhadora? A nossa atual Constituição, em seu artigo 7º,
estabelece um rol ampliado de direitos para os trabalhadores. O movi-
mento operário, organizado em sindicatos é um dos responsáveis pela
conquista e manutenção desses direitos, que só foram garantidos pela
primeira vez na Constituição de 1934.

RESUMO
Pois bem, vamos conhecer um pouco mais dessa história. No item anterior, verificamos
que, por causa da Primeira Guerra Mundial e graças aos capitais acumulados pela
produção cafeeira, o Brasil teve um crescimento na produção industrial relativamente
importante, e que esse crescimento também foi acompanhado pelo aumento de uma
categoria social que se tornava cada vez mais importante, a classe trabalhadora.

No início do século XX, a memória da escravidão ainda era muito re-


cente. Não podemos nos esquecer de que a escravidão só foi abolida le-
galmente em 1888. Entretanto, sabemos que a forma como a classe mais
abastada se relacionava com a classe trabalhadora ainda trazia vícios da
época da escravidão: basta lembrar a origem da revolta da chibata.
À vista disso, as condições de trabalho do operariado brasileiro eram
muito precárias, assemelhando-se às condições experimentadas pelos
operários ingleses no século XVIII:

EXEMPLO
Longas jornadas de trabalho (quase sempre em torno das 16 horas)

120 • capítulo 5
Falta de segurança (os acidentes eram constantes e mutilações e
COMENTÁRIO
mortes eram frequentes)
Imigrantes europeus
No estado de São Paulo a maioria era
Ausência da seguridade social (o que garantiria a remuneração em de origem italiana.
caso de doença, mutilações ou morte)
Anarco-sindicalistas
Nome que faz referência aos partici-
Não existência de aposentadoria
pantes dos sindicatos orientados pelo
anarquismo.
Trabalho infantil
Lei
Remuneração diferenciada por gênero (a mulher sempre tinha salá- Lei Adolfo Gordo
rios inferiores)

CURIOSIDADE
Acontece que muitos dos trabalhadores das indústrias brasileiras
eram imigrantes europeus, onde essas condições já haviam sido abolidas! Anarquismo
Dessa forma, esses trabalhadores não trouxeram apenas sua força de tra- Essa doutrina, contrária a qualquer forma
balho, trouxeram também sua história de lutas por direitos. de dominação ou controle, influenciou o
É neste contexto, crescimento da produção industrial e da classe movimento operário na década de 1910,
operária, fabril e urbana, que aparecerão as primeiras manifestações de sendo responsável pela deflagração das
trabalhadores reivindicando melhores condições de trabalho. Esses tra- greves de 1917, 1918 e 1919. Esses
balhadores reuniam-se em sindicatos e eram profundamente influen- trabalhadores desejavam conquistar
ciados por uma ideologia bastante forte na Europa, principalmente na muitas coisas, mas de forma mais ime-
Itália: o Anarquismo. diata melhores condições de trabalho.
A estratégia de luta e organização desses sindicatos se sustentava
em diversos elementos, mas as greves e paralizações associadas a uma
formação da consciência do trabalhador com base na educação desses
mesmos trabalhadores eram os mais importantes. Dessa maneira, os
anarquistas esperavam reverter às condições de trabalho em curto pra-
zo e, segundo sua lógica, eliminar toda e qualquer forma de opressão,
inclusive o Estado e a divisão da sociedade em classes sociais.
Para difundir suas ideias, os anarco-sindicalistas criaram diversos
jornais, como O livre pensador, A terra livre, A lanterna e muitos outros.
Na medida em que o movimento operário crescia, crescia também a pre-
ocupação do Estado. Desacostumado em lidar com movimentos popu-
lares, o Estado sempre reagia com violenta repressão, basta lembrarmos
o desfecho da Guerra de Canudos e do Contestado!
Por isso, desde 1907, havia uma lei que permitia a expulsão de es-
trangeiros envolvidos com manifestações ou movimentos operários. A
partir do ano de 1917, ano da primeira grande greve, o número de es-
trangeiros expulsos do país se elevou significativamente e a repressão
crescia na mesma proporção que o movimento operário.

capítulo 5 • 121
COMENTÁRIO
É do presidente Washington Luís (1926/1930) a frase “a questão operária é uma questão de política”.
Essa frase revela a intolerância e a violência que marcariam toda a repressão ao movimento.

No entanto, é bom que se diga, muitos direitos foram conquistados, muito embora,
como já dissemos, tais direitos só se consolidariam da década de 1930. A influência do
anarquismo junto ao movimento operário brasileiro entrou em decadência no início da
década de 1920, mais especificamente em 1922, quando foi fundado o Partido Comunista
do Brasil, que passou a centralizar a direção do movimento operário.
A fundação do Partido Comunista é resultado de orientações partidas da III Interna-
cional Comunista, organismo internacional, criado na União Soviética para incentivar e
apoiar possíveis revoluções proletárias (operárias) no mundo todo, a partir de 1919.

ATENÇÃO
É importante ressaltar que além das conquistas de direitos, que foram muitas e significativas, o movimento
operário, com suas greves, trazia para o cenário nacional uma nova força política, que estava fora das re-
gulamentações e acordos que predominavam na República dos Coronéis e que teria importância vital no
destino da jovem república brasileira: a classe operária (fabril e urbana).

A Semana de Arte Moderna

Você já viu essa imagem? Ela é um importante


quadro de uma grande artista brasileira: Tarsila
do Amaral. Você já ouviu falar dela? Ela está li-
gada a um importante movimento: o Modernis-
mo. Esse movimento tem um importante marco
dentro da sua História, a Semana de 22, ou Se-
mana de Arte Moderna de 1922, ocorrida em
São Paulo, no Teatro Municipal. Nesse evento,
poetas, escritores, pintores, músicos e outros
tantos artistas puderam expor suas produções
artísticas tornando público uma movimento que
já era pensado e concebido há alguns anos.
Fonte: Wikipedia

Contudo, de onde vinha a influência para esse movimento que rompia com o Classicis-
mo da arte brasileira, apresentando soluções artística revolucionárias e apresentando uma
temática nacional, mas de um Brasil desconhecido? Vinha dos movimentos vanguardistas

122 • capítulo 5
europeus do pós-Primeira Guerra. Esse evento sacudiu
a Europa, jogando por terra um modelo artístico cen- As vanguardas
trado em uma lógica sociocultural que naufragava com europeias nascem
a guerra. no desejo de romper
De certa forma, essas influências encontraram um
com uma sociedade
panorama perfeito para a sua difusão no Brasil em uma
jovem intelectualidade descontente com os modelos
que terminava com
arcaicos da arte e da sociedade brasileira. Curiosamen- a guerra.
te, paralelo a esse sentimento e a essas influências, vi-
nha o desejo de romper com os padrões clássicos europeus que eram amplamente difun-
didos no Brasil. Basta lembrar que o modelo de reforma urbana que norteou as chamadas
reformas Pereira Passos foi a reforma de Paris.
O Brasil da República Velha tinha herdado o desejo de ser um país europeu, branco e
europeu. O modernismo apresenta uma arte que rompe com esses modelos ao apresentar
um país mestiço, e representar em suas temáticas o trabalhador, o mulato, o pobre.

REFLEXÃO
No entanto, você deve estar se perguntando: mas qual a relação entre esse movimento artístico e o cená-
rio de transformações que se desenhava desde a segunda metade da década de 1910? Quais os desdo-
bramentos desse movimento para os destinos da república brasileira?

Pode parecer que não há nenhuma ligação entre esses contextos, mas as ligações são
profundas. Primeiro porque o modernismo apresenta uma leitura do país, completamente
divergente daquela apresentada pelas elites dominantes.

EXEMPLO
Por exemplo, se até então dominava o desejo de europeização, valorizando o que vinha de fora, o moder-
nismo propunha um olhar para as entranhas do país.

Propunha-se um movimento de releitura, sob o olhar


de nossas tradições daquilo que nos chegava de fora, como
A República Velha
apresentado por Oswald de Andrade no Manifesto Antropo- dava sinais de
fágico. Se o cenário intelectual brasileiro da República Velha cansaço.
via na mestiçagem um sinal de fracasso, com já vimos, os
modernistas determinavam nosso caráter mestiço como singularidade.
Segundo, porque ao propor todas estas releituras o movimento modernista rompia com
a sociedade tradicional brasileira e seu modelo político, propondo novos modelos, sociais,
políticos e culturais. Por isso, o movimento de 22 apresentava as contradições de uma dé-
cada em que ficava claro que o modelo político, econômico e social, já não dava mais conta
da complexidade que avançava na sociedade brasileira.

capítulo 5 • 123
COMENTÁRIO O Tenentismo
Tenentes Como estamos vendo, muitas coisas estão mudando, seja no campo
Daí o nome Tenentismo dado ao movi- social, no econômico, no artístico, temos muitas mudanças que repre-
mento. sentam inovações em um quadro que parece não estar pronto para es-
sas inovações. Entretanto, a crise não se mostra somente em razão das
“novidades”. Ela também parte de dentro do próprio sistema. É nesse
contexto que ocorre uma rebelião dentro de parte do exército.
Como assim? Parte do exército? O Exército então não era uma insti-
tuição coesa. Desde a proclamação da República, em 1889, que o exér-
cito apresentava setores divergentes. Basta lembrar que nas primeiras
eleições, aquelas indiretas, anteriores à Constituição de 1891, havia dois
candidatos militares, em chapas distintas.
Parte do Exército, a jovem oficialidade, recém-saída da escola de for-
mação de Oficiais de Realengo, majoritariamente oriundos das camadas
médias urbanas, entendia que o Exército havia traído, em parte, os ideais
que o haviam levado a assumir um papel preponderante na Proclamação
da República, e que, ao longo dos anos, o Exército teria assumido um pa-
pel subserviente aos interesses dos grandes proprietários rurais.
Para esses jovens oficiais, a maioria tenentes e capitães, era neces-
sário que o Exército se reorganizasse para novamente ficar a frente dos
projetos políticos de desenvolvimento e modernização da sociedade
brasileira como um todo. Esses jovens oficiais eram mais sensíveis aos
anseios e apelos das camadas médias e também das tropas, segmentos
que mais sofriam com os problemas econômicos da nação. Assim, os
tenentes, como ficaram conhecidos os participantes desse movimento,
reivindicaram reformas dentro do exército e dentro do sistema político
eleitoral brasileiro.
O grupo defendia a moralização política e o combate à corrupção. Na
prática, os tenentes exigiam algumas mudanças interessantes, como o
fim do voto de cabresto, o estabelecimento de eleições secretas e a refor-
ma do sistema público de ensino.
Mas como esse movimento ganhou a forma de luta armada? Em
um momento mais conturbado, mais especificamente na eleição de
Artur Bernardes, os tenentes apoiaram o candidato de oposição Nilo
Peçanha. Uma campanha direcionada às populações urbanas, que ti-
nha sua importância política cada vez maior, não foi suficiente para
que Nilo Peçanha fosse eleito.
O controle sobre o processo eleitoral, como vimos, era por demais
poderoso, e Artur Bernardes, mineiro, candidato das velhas oligarquias,
era conduzido à Presidência da República. Mas se você pensa que com
a “vitória” eleitoral de Artur Bernardes o movimento diminuiria suas
ações, enganou-se. Após a publicação, em um jornal, de uma carta (fal-
sa) ofensiva ao Exército, atribuída ao candidato eleito, diversas unida-
des do Exército tentaram um levante, mas a oposição dentro do próprio

124 • capítulo 5
Exército, liderada por oficiais do alto escalão, comprometidos com o sis- COMENTÁRIO
tema, impediu que o levante de fato acontecesse.
Após o fechamento do Clube Militar e da prisão de seu presidente, Ao longo desses anos
o Marechal Hermes da Fonseca, acusado de interferir nos interesses Movimento operário, modernismo, te-
políticos das elites agrárias pernambucanas, o levante aconteceu. Tro- nentismo etc.
pas invadiram o Forte de Copacabana e atacaram o Quartel General do
Exército. Entretanto, a maior parte dos envolvidos no levante desistiu e
abandonou a resistência.
Cercados por tropas legalistas fiéis ao comando militar, 18 membros
do movimento decidiram sair e enfrentar as tropas, marchando pela
praia de Copacabana, em um episódio que ficou conhecido como “Os
18 do Forte de Copacabana”. O saldo foi que de todos os que permane-
ceram na marcha apenas dois sobreviveram. Mesmo com a derrota do
movimento, o Governo de Artur Bernardes permaneceu sob um clima de
tensão, o que o levou a passar a maior parte do seu mandato governando
sob Estado de Sítio.
Em 1924, sob a liderança de Juarez Távora, Joaquim Távora e Eduar-
do Gomes, os tenentes pegaram em armas no estado de São Paulo, pre-
tendendo formar um governo provisório e eleger uma nova Assembleia
Constituinte. Após intensos conflitos, os tenentes rumaram em direção
ao sul do país, encontrando-se no Paraná com uma coluna revoltosa vin-
da do Rio Grande do Sul, liderada por Luiz Carlos Prestes.
A fusão desses dois grupos deu origem à chamada Coluna Prestes,
que pretendia estender a luta contra o governo por todo o território na-
cional. Entre 1925 e 1927, a coluna percorreu perto de 24 mil quilôme-
tros e participou de diversos combates contra tropas federais e contra
jagunços dos coronéis, sem perder um único participante.
Em 1929, os principais líderes da Coluna exilaram-se na Bolívia. O
Tenentismo não chegou a concluir ou alcançar seus objetivos, mas teria
participação ativa no movimento que marcaria o fim da chamada Repú-
blica Velha.

A crise da Oligarquia
Esse cenário de crise iniciado na década de 1910 e que se ampliou de
forma intensa na década seguinte, vai encontrar no ano de 1929 um con-
texto internacional gravíssimo. Se as próprias condições políticas que
foram construídas ao longo desses anos já tornavam os processos eleito-
rais complexos, a crise mundial, começada nos Estados Unidos no ano
de 1929, tornou-os insustentáveis.
E de que crise estamos falando? Estamos nos referindo à crise do ca-
pitalismo mundial, iniciada com a quebra da Bolsa de Valores de Nova
Iorque. O crescimento econômico desenfreado experimentado pela
economia estadunidense nos anos que se seguiram ao final da Primeira

capítulo 5 • 125
COMENTÁRIO Guerra Mundial, associado ao caráter extremamente liberal do modelo
econômico, levou a economia daquele país a uma crise de superprodu-
Oligarquias dissidentes ção sem precedentes na História do capitalismo.
Na prática, era o que havia de oposição. Sem possibilidade de escoar sua produção, a economia paralisou.
São grupos políticos de estados que, Demissões em massa, falências e fome constituíram-se em caracterís-
de alguma forma, sentiam-se despres- ticas marcantes de um período que ficou conhecido pelo nome de a
tigiados e com pouca ou nenhuma “Grande Depressão”. Rapidamente a crise tornou-se internacional na
participação política. Não se trata de medida em que as economias europeias estavam ligadas intimamente
uma oposição radical, mas de divergên- à economia estadunidense.
cias dentro do próprio sistema.
ATENÇÃO
Entretanto de que forma essa crise se relaciona com o Brasil? Simples. O maior
consumidor do nosso café eram os Estados Unidos acompanhados pela Europa.
Com a crise, a compra do café brasileiro foi suspensa, mergulhando o país numa
grave crise do setor cafeeiro. O presidente da República do período, o fluminense
radicado em São Paulo, Washington Luiz, já vinha empreendendo uma política eco-
nômica dura, a fim de controlar os graves problemas econômicos que se arrastavam
por décadas no Brasil.

A crise mundial que deflagrava a crise no setor cafeeiro obrigou a me-


didas ainda mais duras. Dessa forma, o Partido Republicano Paulista de-
cidiu lançar a candidatura de outro cafeicultor de São Paulo: Júlio Pres-
tes. Ora, pela lógica do café com leite, o candidato a ser lançado seria o
Governador de Minas Gerais, Antonio Carlos. Vendo-se preterido pelo
poderoso Partido Republicano Paulista, Antonio Carlos aproximou-se
das chamadas oligarquias dissidentes, mais especificamente oriundas
do Rio Grande do Sul e da Paraíba.
Essa aliança entre as oligarquias mineira, paraibana e gaúcha ficou
conhecida como Aliança Liberal. Para presidência foi indicada a candi-
datura do governador do Rio Grande do Sul, Getúlio Vargas, tendo como
candidato a vice-presidente o paraibano João Pessoa.
Durante a campanha eleitoral, a Aliança Liberal realizou diversos co-
mícios por diversas capitais estaduais, sempre com um discurso voltado
para os desejos das camadas urbanas, principalmente a classe operária.
Além disso, havia propostas de reformas jurídicas que iam ao encontro
do desejo dos Tenentes, como o estabelecimento do voto secreto e do
voto feminino e a criação de uma justiça eleitoral, objetivando acabar
com o grave problema da corrupção.
Entretanto, apesar do apoio conseguido entre as camadas urbanas,
a aliança liberal foi derrotada pela gigantesca máquina eleitoral contro-
lada pelos grandes coronéis. Os principais líderes da aliança haviam se
comprometido a acatar o pleito eleitoral, mas parte da aliança, princi-
palmente alguns oriundos do Tenentismo, defendia a tomada do poder
pela luta armada. Esses grupos cresciam e conseguiam apoio em diver-
sos setores populares.

126 • capítulo 5
De fato, havia por parte das elites econômicas o Dessa forma, o
temor de um movimento revolucionário mais radical,
temor de uma
o que levou o Governador Antonio Carlos a defender
a tese de que era necessário “fazer a revolução, antes revolta popular levou
que o povo a fizesse”. ao engajamento das
Quando o ex-candidato a vice-presidência pela lideranças políticas
Aliança Liberal, João Pessoa, foi assassinado, por dis- da Aliança Liberal.
putas locais pelo poder, a “Revolução” se materializou.
Tropas gaúchas lideradas por Góes Monteiro marcharam em direção ao Rio de janeiro para
derrubar o Presidente Washington Luiz e estabelecer um governo provisório. O ex-candida-
to à presidência pela Aliança Liberal, Getúlio Vargas, assumia a liderança do Movimento.
Quando os gaúchos chegaram ao Rio de Janeiro, sem disparar um único tiro, encontraram
Washington Luiz deposto e preso, junto com o candidato eleito Júlio Prestes, por uma junta
militar que entregaria o governo provisório nas mãos de Getúlio Vargas, inaugurando uma
nova fase da História republicana do país.

RESUMO
•  Política do café com leite foi o nome pelo qual ficou conhecido o modelo político predominante na Repú-
blica Velha, a partir do governo de Prudente Moraes. Esse modelo se caracterizava pela subordinação do
indivíduo a um grande proprietário e no controle do voto (coronelismo);
•  Durante toda a República Velha, a economia era predominantemente agrícola, tendo o café como prin-
cipal produto de exportação;
•  O Convênio Taubaté era uma política protecionista que objetivava manter os lucros dos cafeicultores, em
caso de crises no setor;
•  A República Velha foi palco de Revoltas Populares motivadas pelas precárias condições de vida no
campo e na cidade e por questões raciais (Guerra de Canudos, Guerra do Contestado, Cangaço, Revolta
da Vacina e Revolta da Chibata);
•  Com a Primeira Guerra Mundial, a economia brasileira sofreu um pequeno surto industrialista (indústrias
de substituição);
•  O crescimento da classe operária e das classes médias urbanas iniciou um processo de contestação do
modelo político e social da República Velha;
•  O movimento operário brasileiro se fortaleceu ao longo da década de 1910 e 1920;
•  A semana de arte moderna trouxe para o cenário cultural brasileiro novos paradigmas e novas formas de
expressão que também revelavam descontentamento com o modelo social e político do período;
•  A crise mundial de 1929 produziu uma grave crise no setor cafeeiro, que se desdobrou em uma crise
política levando ao rompimento da política do Café com Leite e a “Revolução de 1930”.

capítulo 5 • 127
ATIVIDADE
Questão 1 (ENADE — 2011)
Com o advento da República, a discussão sobre a questão educacional torna-se pauta significativa nas
esferas dos Poderes Executivo e legislativo, tanto no âmbito Federal quanto no Estadual. Já na Primeira
República, a expansão da demanda social se propaga com o movimento da escola novista; no período
getulista, encontram-se as reformas de Francisco Campos e Gustavo Capanema; no momento de crítica e
balanço do pós-1946, ocorre a promulgação da primeira Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional,
em 1961.
É somente com a Constituição de 1988, no entanto, que os brasileiros têm assegurada a educação de
forma universal, como um direito de todos, tendo em vista o pleno desenvolvimento da pessoa no que se
refere a sua preparação para o exercício da cidadania e sua qualificação para o trabalho.
O artigo 208 do texto constitucional prevê como dever do Estado a oferta da educação tanto a crianças
como àqueles que não tiveram acesso ao ensino em idade própria à escolarização cabida.
Nesse contexto, avalie as seguintes asserções e a relação proposta entre elas.
A relação entre educação e cidadania se estabelece na busca da universalização da educação como uma
das condições necessárias para a consolidação da democracia no Brasil.
PORQUE por meio da atuação de seus representantes nos Poderes Executivos e Legislativo, no decorrer
do século XX, passou a ser garantido no Brasil o direito de acesso à educação, inclusive aos jovens e
adultos que já estavam fora da idade escolar.

A respeito dessas asserções, assinale a opção correta.


A) As duas são proposições verdadeiras, e a segunda é uma justificativa correta da primeira.
B) As duas são proposições verdadeiras, mas a segunda não é uma justificativa correta da primeira.
C) A primeira é uma proposição verdadeira, e a segunda, falsa.
D) A primeira é uma proposição falsa, e a segunda, verdadeira.
E) Tanto a primeira quanto a segunda asserções são proposições falsas.

Questão 2 (ENEM 2011)


Completamente analfabeto, ou quase, sem assistência médica, não lendo jornais, nem revistas, nas quais
se limita a ver as figuras, o trabalhador rural, a não ser em casos esporádicos, tem o patrão na conta de
benfeitor. No plano político, ele luta com o “coronel” e pelo “coronel”. Aí estão os votos de cabresto, que
resultam, em grande parte, da nossa organização econômica rural.
(LEAL, V. N. Coronelismo, enxada e voto. São Paulo: Alfa-Ômega, 1976 — adaptado)
O coronelismo, fenômeno político da Primeira República (1889-1930), tinha como uma de suas principais
características o controle do voto, o que limitava, portanto, o exercício da cidadania. Nesse período, esta
prática estava vinculada a uma estrutura social:

A) Igualitária, com um nível satisfatório de distribuição da renda.


B) Estagnada, com uma relativa harmonia entre as classes.
C) Tradicional, com a manutenção da escravidão nos engenhos como forma produtiva típica.
D) Ditatorial perturbada por um constante clima de opressão mantido pelo exército e polícia.
E) Agrária marcada pela concentração da terra e do poder político local e regional.

128 • capítulo 5
GABARITO
Unidade II - Capítulo 5
Questão 1 – A
Questão 2 – E

capítulo 5 • 129
16 Terra em transe
— A Era Vargas

paulo jorge dos


santos fleury
6 CURIOSIDADE
Terra em transe
— A Era Vargas
“Façamos a revolução antes que o povo
Política dos governadores
a faça”
A liderança da política dos governadores,
até 1930, foi exercida pela burguesia ca- Essa frase, atribuída a Antônio Carlos Ribeiro de Andrada, presidente
feeira de São Paulo em articulação com do estado de Minas Gerais no período compreendido entre 1926 e 1930,
as oligarquias dos demais estados da fe- refletia o estado de ânimo reformista de segmentos das elites políticas
deração (especialmente Minas Gerais e brasileiras por ocasião do final da década de 1920.
Rio Grande do Sul). Vamos então relembrar, conforme foi visto no capítulo anterior, o
que foi a década de 1920 para a República e para a sociedade brasileiras.

CONCEITO
Os anos 1920: permanências, tensões e
Vacância
Estado do que está vago, desocupado
expectativas
(lugar ou cargo).
A década de 1920, no Brasil, foi marcada por agitações políticas que se
desenvolveram no quadro das transformações que atingiram a econo-
mia e a sociedade do país e que prenunciavam o esgotamento do arranjo
político-institucional do Estado brasileiro, baseado na chamada políti-
ca dos governadores.
Em termos gerais, o cenário social, político e econômico dos anos
1920 e que se constituiu no pano de fundo da crise final da República
Velha e da eclosão da “Revolução” de 1930, pode ser descrito a partir das
seguintes condições:
Maior visibilidade dos setores médios urbanos, fenômeno que se veri-
ficou especialmente após a Primeira Guerra Mundial.

Processos de sucessão presidencial marcados por ajustes, contradi-


ções e desgastes entre as oligarquias estaduais e no interior dessas
oligarquias, abrindo-se com isso a possibilidade de dissidências em
relação ao arranjo institucional da “política dos governadores”.

A eclosão do tenentismo que, a partir de 1922, foi responsável por


uma intensa agitação política, que se expressou por meio de vários
movimentos insurrecionais, como a Revolta do Forte de Copacabana,
em 1922, a Revolução de 1924, em São Paulo, a Revolta do Encoura-
çado São Paulo, a formação da Coluna Prestes.

A crise que atingiu o capitalismo mundial em 1929 e que produziu


efeitos severos na economia brasileira e a derrota da Aliança Liberal
nas eleições de 1º de março de 1930 ajudaram a construir o cenário
que levaria à crise final da República Velha e à Revolução de 1930.

132 • capítulo 6
CURIOSIDADE
Oligarquias
De acordo com o Dicionário de Política, publicado pela editora da Universidade de Brasília, o termo oligar-
quia significa etimologicamente “governo de poucos”. Para os filósofos gregos, em muitos casos, o termo
oligarquia tem um significado muito específico, significado esse marcado por uma “carga” ética negativa.
Platão nos diz que a oligarquia é o tipo de constituição baseada no patrimônio, em que os ricos governam
e os pobres são excluídos do exercício do poder.
Segundo Aristóteles e sua distinção entre formas puras e viciadas de Constituição, a oligarquia, como
“governo dos ricos”, se apresenta como a forma viciada da aristocracia, que seria o “governo dos melhores”.
Isócrates deplora as oligarquias e os regimes baseados na prepotência, aprovando, em contrapartida,
os regimes baseados na igualdade e as democracias. Tal concepção negativa manteve-se na tradição do
pensamento político posterior ao período grego clássico. Ainda que o termo oligarquia não corresponda
a uma forma específica de governo, ele pode ser entendido como um arranjo social e/ou político em que
o poder supremo encontra-se nas mãos de um grupo limitado de indivíduos, com tendências a se fechar
em si mesmo, ligados entre si por vínculos de sangue ou por vínculos gerados por interesses diversos, que
desfrutam de privilégios particulares, se utilizando de todos os meios disponíveis pelo poder para a conser-
vação de tais privilégios, dentre eles destacando-se o exercício do poder político.

Afinal, como se desencadeou a Revolução de 1930?


As origens imediatas do movimento “revolucionário” de 1930 podem ser encontradas
no processo sucessório do presidente Washington Luís.

CURIOSIDADE
Processo sucessório
O processo sucessório na República Velha (diretrizes fixadas nos artigos 41 a 46 da Constituição de
1891). Os mandatos dos chefes do Poder federal, durante o período da República Velha, eram de quatro
anos, sem direito à reeleição para um mandato subsequente. Se houvesse a vacância da presidência da
República, a regra sucessória era bastante clara: se a vacância ocorresse antes do final do segundo ano
de mandato, novas eleições deveriam ser convocadas, e, se a vacância ocorresse nos dois últimos anos do
mandato, o vice-presidente o concluiria.
Assumindo no último ano de mandato, o vice-presidente não poderia se candidatar ao mandato seguinte.
As eleições ocorriam a cada quatro anos, no dia 1º de março, e a posse em 15 de novembro do mesmo
ano de ocorrência do processo eleitoral.
A década de 1920 foi marcada pelos mandatos
dos seguintes presidentes: entre os anos de 1920
e 1922, a presidência da República foi ocupada por
Epitácio Pessoa, eleito para completar o mandato
de Rodrigues Alves que, por sua vez, fora eleito para
o mandato de 1918 a 1922 e faleceu antes de to-
mar posse, acometido da gripe espanhola. Em tempo:
Rodrigues Alves já havia ocupado a presidência da
Epitácio Pessoa República no período de 1902 a 1906. Rodrigues Alves

capítulo 6 • 133
O sucessor de Epitácio Pessoa foi Artur Bernar-
des, que ocupou a presidência de 1922 a 1926.
Período difícil, marcado por várias revoltas tenen-
tistas, o que levou Artur Bernardes a governar
praticamente sob estado de sítio. Ainda durante
esse mandato, foi promovida uma reforma consti-
Artur Bernardes tucional em 1926.
O sucessor de Artur Bernardes foi Washington Washington Luís
Luís que governou de 1926 a 1930. Seu mandato
foi marcado por uma relativa estabilidade política. Seu sucessor, Júlio Pres-
tes, foi eleito em 1º de março de 1930 e deveria assumir a presidência em
15 de novembro de 1930. Todavia, isso não aconteceu.
Júlio Prestes

Depois de um mandato relativamente estável, nada poderia prever a ocorrência de uma


cisão entre as elites políticas dos principais estados (S. Paulo, Minas e Rio Grande do Sul).
Entretanto, a insistência de Washington Luís na candidatura de Júlio Prestes, presidente
do estado de São Paulo, ao comando do Executivo federal, rompendo um possível acordo
sucessório com Minas Gerais, abriu caminho para que mineiros e gaúchos firmassem um
acordo, possibilitando a articulação de uma chapa de oposição pelo então presidente do
estado de Minas Gerais, Antônio Carlos Ribeiro de Andrada, o que deu origem a uma série
de desentendimentos que levariam a toda movimentação política que resultaria no fim
da República Velha.
As oposições à candidatura oficial de Júlio
Prestes, reunidas na Aliança Liberal, depois de
intensas negociações, lançaram a chapa Getú-
lio Vargas-João Pessoa. Tal composição da cha-
pa de oposição refletia a necessidade de se ofe-
recer uma posição de destaque ao Rio Grande
do Sul em um possível novo cenário político na-
cional que pudesse a vir se configurar com a vi-
Getúlio Vargas tória da Getúlio Vargas-João Pessoa nas eleições João Pessoa
que iriam se realizar em 1º de março de 1930.

RESUMO
A campanha eleitoral da chapa de oposição buscou promover o ideário da Aliança Liberal que refletia as
aspirações das oligarquias regionais não diretamente vinculadas ao núcleo cafeeiro, ao mesmo tempo em
que buscava sensibilizar os setores médios urbanos.

Da vitória do candidato oficial ao movimento revolucionário

Transcorridas as eleições em 1 de março de 1930, a vitória coube ao candidato oficial, Jú-


lio Prestes, que sucederia a Washington Luís em 15 de novembro do mesmo ano. Deve-se
lembrar de que tanto a candidatura oficial como a oposicionista se valeram dos tradicionais

134 • capítulo 6
recursos de “fabricação” de votos (fraudes eleitorais) que haviam sido em- CURIOSIDADE
pregados durante os processos sucessórios anteriores.
A definição da vitória da candidatura oficial, parecia se constituir no Revoltas tenentistas
marco de encerramento da existência da Aliança Liberal. A aceitação dos Tenentismo foi o nome dado ao movi-
resultados eleitorais (ainda que fraudados) era comportamento “clássi- mento político-militar, e à série de rebe-
co” dos grupos que participavam do jogo político da República Velha. liões de jovens oficiais de baixa e média
patente do Exército Brasileiro no início
da década de 1920, descontentes com
Entretanto, dessa vez, nem todos nas fileiras oposicionistas aceitaram o a situação política do Brasil.
resultado das eleições. Começou a se formar a ideia de que poderia ha- Propunham reformas na estrutura de
ver uma alternativa ao resultado que deu a vitória à candidatura de Júlio poder do país, entre as quais se des-
Prestes. Uma alternativa armada. Alguns políticos mais jovens, pertencentes tacam o fim do voto de cabresto, insti-
à Aliança Liberal, passaram a defender a adoção dos procedimentos que tuição do voto secreto e a reforma na
eram característicos das revoltas tenentistas. Importantes líderes políticos educação pública.
da Aliança Liberal eram ou haviam sido adversários figadais dos tenentes. O movimento tenentista não conseguiu
Não obstante, um acordo acabou sendo fechado entre os tenentes (com produzir resultados imediatos na estru-
exceção de Luís Carlos Prestes) e lideranças da Aliança Liberal. tura política do país, já que nenhuma
de suas tentativas teve sucesso, mas
conseguiu manter viva a revolta contra o
poder das oligarquias, representada na
EXEMPLO Política do café com leite. No entanto, o
tenentismo preparou o caminho para a
Artur Bernardes, ex-presidente, tinha combatido com bastante severidade as revoltas Revolução de 1930, que alterou definiti-
tenentistas ocorridas durante seu mandato, tendo ficado co- vamente as estruturas de poder no país.
nhecido como o perseguidor da Coluna Prestes. João Pessoa,
candidato à vice-presidência na chapa aliancista, havia sido
promotor militar, tendo levado a cabo acusações contra mui-
tos dos militares que participaram dos levantes da década de
1920. Osvaldo Aranha, ainda que fosse um político jovem,
destacou-se na luta contra as insurreições tenentistas no Rio
Grande do Sul.
Osvaldo Aranha
Apesar das adesões e dos acordos firmados em
torno de uma “solução armada”, a conspiração não conseguia avançar
de maneira objetiva até meados de 1930, quando então um evento “não
programado” veio alterar o rumo dos acontecimentos. Esse evento foi
o assassinato de João Pessoa, candidato à vice-presidência na chapa da
Aliança Liberal, perpetrado por seu inimigo político, João Dantas, em
uma confeitaria do Recife.

Esse crime provocou grande comoção no país e foi habilmente explorado


pela oposição no sentido do desenvolvimento de uma articulação revolucio-
nária que colocasse em prática a “alternativa armada” à sucessão de Wa-
shington Luís.

capítulo 6 • 135
CURIOSIDADE
Nessas articulações pós-assassinato de João Pessoa, os ganhos consegui-
Poderes discricionários dos pelos militares, especialmente pelo Exército, foram significativos. O co-
Trata-se de uma prerrogativa de que mando geral das operações militares ficou a cargo do então tenente-coronel
dispõe a administração pública de levar Góis Monteiro, que, apesar de alagoano de nascimento, tinha sua carreira
adiante certos atos administrativos com vinculada ao Rio Grande do Sul. Durante os anos 1920, longe de ser um
liberdade para fixar o conteúdo de tais revolucionário, Góis Monteiro foi um militar legalista que sempre havia se
atos e a conveniência e oportunidade situado na oposição aos movimentos tenentistas, tendo combatido a coluna
de sua aplicação. A discricionariedade Prestes em sua passagem pelos estados do Nordeste. Mas, naquele mo-
pode ser entendida, então, como a liber- mento, Góis Monteiro optou por apoiar o movimento revolucionário que iria
dade que a administração pública tem se desencadear em outubro de 1930.
para agir nos limites firmados pela lei.
A discricionariedade não pode ser con-
fundida com arbitrariedade, já que esta A revolução foi deflagrada em 3 de outubro de 1930 em Minas Gerais
corresponde ao agir que extrapola os e no Rio Grande do Sul, enquanto no Nordeste o movimento se iniciou
limites legais, tornando o ato perpetrado no dia 4 de outubro, sob a liderança do tenente Juarez Távora, tendo
nestas condições, pela Administração como centro de operações a Paraíba.
Pública, ilegal. A situação do Nordeste rapidamente tendeu favoravelmente aos
revolucionários e, no Sul, a expectativa girava em torno do avanço das
tropas gaúchas sobre o território de São Paulo. Todavia, no dia 24 de
EXEMPLO outubro, os generais Tasso Fragoso, Menna Barreto e Leite de Castro e
o almirante Isaías Noronha depuseram o presidente Washington Luís,
Medidas de controle formando uma junta governativa provisória.
A promulgação do Código dos interven-
tores em agosto de 1931 é um exemplo ATENÇÃO
das medidas de controle. Empréstimos
externos não poderiam ser contraídos Entretanto, diante da pressão das manifestações populares no Rio de Janeiro e das
pelos estados sem a expressa autori- tropas sediciosas vindas do sul, a junta provisória desistiu de sua intenção de continuar a
zação do poder central. Os gastos com exercer o poder e o transmitiu a Getúlio Vargas no dia 3 de novembro de 1930, que se
serviços da polícia militar deveriam se tornava chefe do Governo Provisório. Em 11 de novembro, foi promulgado o decreto
manter ou no limite ou abaixo do pata- no 19.398 que dava perfil institucional aos poderes discricionários desse cargo.
mar de 10% das despesas correntes.
Os estados foram proibidos de dotar Com o movimento revolucionário de 1930, nasceria um novo tipo de
suas polícias de artilharia e de aviação, Estado, que, segundo o professor Boris Fausto, iria se mostrar diferente
o que significava dizer que os estados do Estado oligárquico, não somente pela centralização ou por um maior
não podiam armar suas polícias em pro- grau de autonomia, mas também em função dos seguintes elementos: a
porção superior à do Exército. atuação econômica voltada gradativamente para os objetivos de promover
a industrialização, a atuação social, tendente a dar algum tipo de proteção
aos trabalhadores urbanos, incorporando-os, a seguir, a uma aliança de
classes promovida pelo poder estatal e o papel central atribuído às Forças
Armadas — em especial o Exército — como suporte de criação de uma
indústria de base e, sobretudo, como fator de garantia da ordem interna.

136 • capítulo 6
RESUMO
Um dos resultados políticos mais significativos do movimento revolucionário de 1930 foi o afastamento da
oligarquia paulista do centro do poder. Tal deslocamento, todavia, não significou que os setores sociais que
se encontravam articulados e/ou associados aos vitoriosos de 30 tivessem condições de ocupar tal posi-
ção para legitimar o novo regime ou para solucionar a crise econômica.

O período do Governo Provisório - de 1930 a 1934


O Governo Provisório foi marcado, desde o seu início, por intensas disputas entre os gru-
pos que tinham participado das forças revolucionárias, especialmente, da Aliança Liberal.
Essas disputas giravam em torno de dois temas básicos: a duração do governo provisório e
o modelo de Estado a ser implantado no Brasil.
Medidas de caráter intervencionista e
centralizador, inspiradas nas demandas Pode-se dizer que, nos
de setores tenentistas, foram tomadas nos primeiros anos do Governo
primeiros tempos do Governo Provisório.
Provisório, ocorreu o
Entre elas podemos destacar a criação do
Sistema de interventórias que se consti-
fenômeno da “militarização”
tuiu em um instrumento fundamental de das interventórias.
controle da política local pelo poder cen-
tral. No lugar de presidentes/governadores eleitos, associados às elites dominantes locais,
os estados passaram a ser governados por interventores, nomeados e subordinados direta-
mente ao Presidente da República, sendo que os primeiros interventores eram vinculados
ao movimento tenentista.

EXEMPLO
Algumas concessões foram feitas por Getúlio a forças políticas locais. O caso mais emblemático dessas
concessões diz respeito àquelas feitas ao estado de São Paulo. Cinco substituições foram realizadas, em
um período de menos de dois anos, na interventória do estado por pressão das elites paulistas.

RESUMO
Entretanto, ao mesmo tempo em que concessões eram feitas a algumas elites políticas locais, medidas de
controle e de cerceamento da autonomia dos estados eram tomadas por Getúlio. O objetivo de tais medi-
das de controle sobre as polícias estaduais era o combate às exacerbações federalistas (derivadas da or-
dem constitucional de 1891) por meio da redução do poder de fogo das oligarquias regionais.

capítulo 6 • 137
Além de medidas políticas e administrativas de caráter centralizador e intervencionista,
o Governo Provisório promoveu importantes investimentos nas áreas social e trabalhista.
Vejamos alguns desses investimentos.
• Ainda em novembro de 1930, pouco depois da posse de Vargas como Chefe do Governo
Provisório, foram criados o Ministério dos Negócios da Educação e Saúde Pública por meio do
decreto nº 19.402, de 14.11.1930 e o Ministério do Trabalho, Indústria e Comércio por meio do
decreto nº 19.433, de 26.11.1930, este último conhecido como Ministério da Revolução.
• Entre 1931 e 1934 e, mais precisamente, durante a gestão de
Salgado Filho à frente do Ministério do Trabalho (de 1932 a 1934),
foram sancionadas numerosas leis que tratavam da regulação
das condições de trabalho dos que se encontravam no mercado
de trabalho (leis trabalhistas) e das questões que tratavam do am-
paro àqueles que, temporariamente ou definitivamente, se afas-
tavam do mercado de trabalho (leis previdenciárias). Assim, entre
os decretos e leis que foram sancionados neste período de 1931 a
1934, podemos destacar: Salgado Filho

A regulamentação da jornada de trabalho no comércio e na indústria em oito horas diárias.

A regulamentação do trabalho do menor e da mulher.

A adoção da lei de férias.

A regulação da sindicalização das classes patronais e operárias pelo decreto-lei nº 19.770, de 19


de março de 1931.
A institucionalização da Carteira de Trabalho e Previdência Social pelo decreto-lei nº 21.175, 21 de
março de 1932 e sua regulamentação pelo decreto nº 22.035, de 29 de outubro de 1932.
A criação das Comissões Mistas de Conciliação e Justiça pelo decreto-lei nº 21.396, de 12 de maio
de 1932 e das Juntas de Conciliação e Julgamento pelo decreto-lei nº 22.132, de 25 de novembro
de 1932.
A criação do Instituto de Aposentadorias e Pensões dos Marítimos pelo decreto nº 22.872, de 29
de junho de 1933.
A criação do Instituto de Aposentadorias e Pensões dos Comerciários pelo decreto nº 24.272, de
21 de maio de 1934.
A criação da Caixa de Aposentadorias e Pensões dos trabalhadores em trapiches e armazéns pelo
decreto nº 24.274, de 21 de maio de 1934.
A criação da Caixa de Aposentadorias e Pensões dos operários estivadores pelo decreto nº 24.275,
de 21 de maio de 1934.
A criação do Instituto de Aposentadorias e Pensões dos Bancários pelo decreto nº 24.615, de 9
de julho de 1934.

A construção da institucionalidade social e trabalhista na Era Vargas durante o Governo


Provisório tem algumas observações importantes.

138 • capítulo 6
Vamos conhecê-las a seguir:

Em novembro de 1930, a criação do Ministério do Trabalho, Indústria e Comércio revelou um novo


projeto em que o Estado brasileiro passaria a regulamentar e fiscalizar as relações entre capital e
trabalho no país.
Em 12 de dezembro de 1930, o Governo Provisório promulgou o decreto nº 19.482 (a chamada “lei
dos 2/3”) que, entre outras providências, exigia, em seu artigo 3º, que todos os indivíduos, empre-
sas, associações, companhias e firmas comerciais, que explorassem, ou não, concessões do Go-
verno Federal ou dos governos estaduais e municipais, ou que, com esses governos contratassem
quaisquer fornecimentos, serviços ou obras, ficariam obrigadas a demonstrar perante o Ministério
do Trabalho, Indústria e Comércio, em um prazo de 90 dias, contados da data da publicação desse
decreto, que ocupavam, entre os seus empregados, de todas as categorias, dois terços, pelo menos,
de brasileiros natos.
A primeira lei de regulamentação da sindicalização da Era Vargas (decreto-lei nº 19.770, de 19 de
março de 1931) estabeleceu que as associações de empregados e empregadores devessem se
organizar por ramos de produção econômica (unidade sindical), ao mesmo tempo em que o sindi-
cato passou a ser considerado como órgão consultivo e de colaboração com o Estado, garantindo
os benefícios da legislação social, a ser implementada, apenas para os trabalhadores sindicalizados.
A implementação da Carteira de Trabalho, em 1932 (decreto nº 22.035, de 29 de outubro de
1932), permitiu ao Ministério do Trabalho um maior controle sobre a população trabalhadora e,
nesse mesmo ano, o governo reconheceu as profissões que poderiam legalmente existir.
As Comissões Mistas de Conciliação destinavam-se a dirimir os dissídios coletivos, tendo caráter
conciliatório e arbitral, sendo que, as decisões jurisdicionais ficavam a cargo do ministro do trabalho
— tais comissões eram paritárias e organizadas onde existissem sindicatos de patrões e emprega-
dos, presididas por magistrados, advogados ou funcionários públicos.
Já as Juntas de Conciliação e Julgamento eram competentes para os dissídios individuais, sendo
tais juntas compostas por um presidente, nomeado pelo Ministério do Trabalho, e por dois vogais,
representantes das classes patronal e laboral. A lei definia a instância única trabalhista, ainda que o
ministro do trabalho tivesse prerrogativa de avocar (de “chamar” para si) processos.

O perfil crescentemente centralizador e intervencionista do Governo Provisório gerou


uma insatisfação crescente entre setores oligárquicos, inclusive entre aqueles dissidentes
que haviam apoiado a Revolução de 1930. Por sua vez, os tenentes buscavam se organizar
em termos nacionais, reafirmando seu apoio ao Governo Provisório, criticando duramente
o federalismo das oligarquias e defendendo a concepção de um governo forte, opondo-se,
assim, a uma reconstitucionalização do país que eles (os tenentes) consideravam prematura.
Além da rearticulação das oligarquias regionais que passaram a reivindicar o fim do
regime discricionário implantado com a Revolução de 1930 e de uma aliança, por vezes
incômoda, com os tenentes, Vargas teve de lidar também com uma crescente insatisfação
nas Forças Armadas que se encontravam fragilizadas e fragmentadas politicamente diante
da subversão hierárquica causada pela presença dos tenentes rebeldes no poder.

capítulo 6 • 139
CURIOSIDADE Pressionado por agitações, crises nos ambientes civil e militar, Vargas
optou por dar início ao processo de reconstitucionalização do país,
Sem distinção de sexo
apesar da oposição dos setores revolucionários do movimento tenen-
Voto feminino - O artigo 2º do Código Elei-
tista. Para tanto, fez editar um Código Eleitoral, promulgado através do
toral de 1932 estabelecia que era eleitor o
decreto no 21.076 de 24 de fevereiro de 1932.
cidadão maior de 21 anos, sem distinção
de sexo, e que estivesse alistado de acordo
com os seus dispositivos. Portanto, o Códi- Esse código eleitoral, além de regulamentar o alistamento dos elei-
go Eleitoral de 1932 foi o primeiro dispo- tores e as eleições em âmbito federal, estadual e municipal, trazia algu-
sitivo legal brasileiro a tratar do voto femi- mas inovações bastante significativas:
nino. Segundo esse código, em seu artigo
119, o título de eleitor convertia-se em um A implantação do sufrágio universal direto e secreto.
documento essencial ao desempenho de
A extensão do direito do voto a todos os brasileiros, maiores de 21 anos,
funções ou de empregos públicos, ou para
alfabetizados, sem distinção de sexo.
o exercício de profissões em que fosse
O estabelecimento da representação proporcional para todos os órgãos cole-
exigida a nacionalidade brasileira, ou ainda
tivos de natureza política do país - tal procedimento garantia que as minorias
para a comprovação da identidade em to-
teriam representação no Legislativo.
dos os casos exigidos por lei, decretos ou
O estabelecimento da representação classista que foi regulada pelo decreto
regulamentos.Tais disposições não se apli-
22.653 de 20 de abril de 1933 e que determinava a eleição de quarenta
cavam, todavia, aos cidadãos residentes no
congressistas como representantes de empregadores e empregados, esco-
estrangeiro, ou domiciliados no Brasil, há
lhidos através de eleição realizada por seus sindicatos ou por associações
menos de um ano, nem aos homens maio-
profissionais.
res de sessenta anos, nem às mulheres
A criação da Justiça Eleitoral composta por um Tribunal Superior no Distrito
em qualquer idade. Isso significa dizer que,
Federal, por Tribunais Regionais em todas as capitais dos estados e por juízes
apesar de o código de 1932 firmar que a
eleitorais nas comarcas e nos distritos, aos quais passou a caber a condução
condição de eleitor era indistinta para ho-
do alistamento dos eleitores, a direção dos pleitos e da apuração eleitoral,
mens e mulheres, não havia a obrigatorie-
assim como a proclamação dos eleitos, retirando definitivamente de órgãos
dade do alistamento e do exercício do voto
do Legislativo a faculdade de fiscalizar as eleições e de reconhecer os can-
para as mulheres de qualquer idade.
didatos eleitos.

Representação classista
Um detalhe a respeito da representação Sob a égide do Código Eleitoral de 1932, foram realizadas as eleições
classista prevista no Código Eleitoral de para a Assembleia Nacional Constituinte (fixadas para 3 de maio de
1932 e regulamentada pelo decreto nº 1933, por meio do decreto nº 21.402, que criou também a Comissão que
22.653 de 20 de abril de 1933: dos 40 deveria elaborar o anteprojeto da futura Constituição e em relação ao
congressistas que comporiam a “bancada qual deveriam se desenvolver os trabalhos da Assembleia Constituinte).
classista”, 20 seriam representantes dos A promulgação do Código Eleitoral de 1932 representou, na verdade,
empregadores e 20 dos empregados. En- a disposição do Governo Provisório em atender às demandas pela cons-
tre os 20 representantes dos empregado- titucionalização que vinham de São Paulo, Minas e Rio Grande do Sul.
res, seriam computados três representan- Permaneciam, porém, as dúvidas, sobretudo em São Paulo, acerca da
tes das profissões liberais, e, entre os 20 convocação das eleições para a Assembleia Nacional Constituinte e da
representantes dos empregados, seriam disposição do governo em controlar os tenentes.
computados dois representantes dos fun-
cionários públicos.

140 • capítulo 6
CONCEITO
Após alguns incidentes, como o empastelamento do jornal Diário Carioca,
pró-constitucionalização e as mortes de quatro rapazes que participavam Égide
de uma tentativa de invasão à sede de um jornal tenentista em São Paulo, O que serve de amparo, defesa, proteção.
os ânimos se acirraram e, em 9 de julho de 1932, eclodiu em São Paulo a
Revolução Constitucionalista contra o governo federal.
EXEMPLO
Concessões
Mesmo com o desequilíbrio entre as forças federais e as forças pau- Entre as concessões feitas por Vargas
listas, a luta se arrastou por quase três meses e terminou com a derro- podemos destacar medidas de claro
ta militar de São Paulo. Apesar de derrotadas as forças de São Paulo, a sentido “eleitoreiro”, como a decretação
questão da reconstitucionalização do país defendida pelas elites paulis- da anistia a todos os que haviam parti-
tas vingou, e, após meses de debates que se seguiram às eleições para cipado da Revolução Constitucionalista
a Assembleia Nacional Constituinte, a Constituição foi promulgada em de 1932 (por meio do decreto 24.297
16 de julho de 1934. de 28 de maio de 1934) e a suspensão
No dia seguinte à promulgação da nova Constituição (ou seja, no dia da censura à imprensa através de uma
17 de julho de 1934), ocorreu a eleição para a Presidência da República lei concluída em 14 de julho de 1934.
que se realizou de forma indireta pelos constituintes, tendo sido Getúlio
Vargas eleito para um mandato de quatro anos, sem direito à reeleição.
A eleição de Vargas se fez à custa de concessões, já que outros candida-
tos se apresentaram ao pleito indireto (como Borges de Medeiros, Góis
Monteiro, Artur Bernardes, Afrânio de Mello Franco).
Com o término dos trabalhos da Assembleia Constituinte, encerra-
va-se a fase do Governo Provisório e Vargas exerceria o poder como pre-
sidente legitimamente eleito.
Entre os principais aspectos que merecem destaque na análise da
Constituição de 1934, podemos destacar:
A Constituição de 1934 recepcionou o constitucionalismo social de Weimar
(Constituição Alemã de 1919), fixando em nosso ordenamento jurídico os
direitos sociais, sob a forma de preceitos norteadores da legislação traba-
lhista (presentes no § 1º, do artigo 121 do texto constitucional) — na verda-
de, a Carta de 1934 seguiu as tendências de incorporação de dispositivos
de proteção social que se encontravam presentes em constituições como a
Constituição Mexicana de 1917, a própria Constituição Alemã anteriormente
citada e a Constituição Republicana Espanhola de 1931.
Na esteira da constitucionalização dos preceitos norteadores da legislação
trabalhista, a Carta de 1934 previa a implantação da Justiça do Trabalho
(artigo 122) para dirimir as questões, regidas pela legislação social, entre em-
pregados e empregadores, não devendo se aplicar a essa Justiça, entretanto,
o que se encontrava disposto no capítulo IV, referente ao Poder Judiciário.
O texto constitucional de 1934 propunha um Estado um pouco mais li-
beral e um pouco menos centralizado do que desejava Vargas — ficava
assegurado o regime federativo, restringindo-se, contudo, a autonomia
financeira dos estados.

capítulo 6 • 141
Foi mantida a divisão tripartite dos poderes, sendo que o Executivo foi fortalecido com uma maior
capacidade para decretar o estado de sítio, ainda que a bancada liberal na Assembleia Constituinte
tivesse logrado garantir a supremacia do Legislativo no sistema político — conservou-se o mandato
de quatro anos para o presidente da República, sem direito à reeleição e a figura do vice-presidente
foi abolida.
Instituiu-se o mandado de segurança como garantia de defesa de direito certo e incontestável
que estivesse ameaçado ou que fosse violado por ato claramente inconstitucional de qualquer
autoridade, o habeas corpus se conservou em sede constitucional e mantiveram-se os direitos e as
garantias individuais que constavam do texto constitucional de 1891.
O Legislativo manteve-se bicameral, apesar de certo esvaziamento das prerrogativas do Senado
Federal em matéria legislativa, o que de certa forma foi compensado com a atribuição de funções
de perfil mais federativo, tais como a promoção da coordenação dos poderes federais entre si, a
manutenção da continuidade administrativa, a guarda da Constituição, a colaboração na elaboração
de leis e a prática de atos que fizessem parte de sua competência — de acordo com o artigo 22
desta Constituição, o Poder Legislativo era exercido pela Câmara dos Deputados, com a colabora-
ção do Senado Federal.
Uma interessante competência atribuída ao Senado pela Carta de 1934 consistia na fiscalização
da legalidade dos regulamentos expedidos pelo Poder Executivo e na suspensão da execução dos
dispositivos ilegais — tal competência dizia respeito não somente a uma função política, mas tam-
bém a uma função jurisdicional.
Fixou-se a obrigatoriedade do alistamento eleitoral e do voto para os homens maiores de 18 anos e
para as mulheres maiores de 18 anos, quando exercessem função pública remunerada.
(O intervencionismo do Estado em temas de natureza econômica e social ficou contemplado no
capítulo sobre a Ordem Econômica e Social) A União foi autorizada a monopolizar determinadas
indústrias ou atividades econômicas por força do interesse público, ao mesmo tempo em que con-
dicionou o aproveitamento industrial das minas e das jazidas minerais, bem como das águas e da
energia hidráulica à autorização ou concessão federal — estabeleceu-se uma separação entre a
propriedade do solo e a propriedade das riquezas do subsolo.

A Constituição de 1934 teve uma vigência efêmera – cerca de três anos após a entrada
em vigor desta constituição, ela era substituída pela carta constitucional de 1937, que, na
verdade, segundo Francisco Campos, teve valor puramente histórico.

Se, para Paulo Bonavides e Paes de Andrade, a Constituição de 1934 teve uma vigência de curta
duração por se mostrar dúbia, uma verdadeira colcha de retalhos, marcada por indecisões e ambi-
guidades, de acordo com a professora Ângela Maria de Castro Gomes, pesquisadora da Fundação
Getúlio Vargas (FGV), a Carta de 1934 se mostrou inovadora em muitos aspectos, configurando-
se como “um marco de compromissos e também de dissensões” e como um documento jurídico
de difícil caracterização.

142 • capítulo 6
RESUMO
Assim, ao mesmo tempo em que incorporou alguns dos principais anseios e propostas do movimento te-
nentista e das pequenas bancadas, a Constituição de 1934 foi marcada pelos princípios liberais e demo-
cráticos defendidos pelas oligarquias do Centro-Sul do país.

O período do Governo Constitucional


de 1934 a 1937

Com a promulgação da constituição de 1934 e o fim do regime discricionário do Governo Pro-


visório, o país voltou à normalidade institucional-democrática — com a anistia proclamada pela
Constituição, muitos dos participantes da Revolução Constitucionalista de 1932 retornaram do
exílio, sendo recebidos, em muitos casos, com grandes manifestações populares.

As esperanças de que o país viveria em um regime democrático, firmado no texto cons-


titucional de 1934 se mostraram frustradas já que, aproximadamente três anos após a pro-
mulgação da Carta de 1934, seria implantado o regime autoritário do Estado Novo.
Em outubro de 1934 ocorreram eleições para a Câmara dos Deputados e para as Assem-
bleias Constituintes dos Estados, cujos membros procederiam as eleições indiretas para
os governos estaduais e para os representantes no Senado, além de terem de elaborar as
constituições estaduais em um prazo de, no máximo, quatro meses.

CURIOSIDADE
Eleições
As eleições de outubro de 1934 foram turbulentas, tendo havido conflitos no Pará, Maranhão, Rio Grande do
Norte, Santa Catarina e Rio de Janeiro e, em muitos estados, os interventores foram derrotados (dos 21 inter-
ventores somente nove foram eleitos governadores, destacando-se Armando de Sales Oliveira em SP, Flores
da Cunha no RS, Benedito Valadares em MG, Juraci Magalhães na BA e Carlos de Lima Cavalcanti em PE).

A partir da restauração da ordem legal e democrática, a participação política foi estimu-


lada e os movimentos sociais se fortaleceram. Várias greves ocorreram no Rio de Janeiro,
em São Paulo, no Rio Grande do Norte e em Belém, destacando-se as paralisações em ser-
viços públicos: comunicações, transportes, bancos.
Organizações políticas não partidárias de direita (Ação Integralista Brasileira — AIB) e
de esquerda (Aliança Nacional Libertadora — ANL) se tornaram expressivas e alcançaram
grande capacidade de mobilização em nível nacional.

capítulo 6 • 143
Havia sido criada em 1932, dirigida por Plínio Salgado, era uma or-
ganização paramilitar, inspirada no fascismo italiano, orientada por
um nacionalismo e moralismo extremados e combatia os partidos
AIB políticos existentes, defendendo a integração plena da sociedade e
do Estado, cuja representação se faria por meio de uma única e forte
agremiação: a própria AIB.

Foi criada em março de 1935 e se inspirava nos modelos de frentes


populares que se constituíam na Europa para impedir o avanço do
nazismo e do fascismo — era composta por comunistas, socialistas
e liberais desiludidos com os rumos assumidos pelo regime oriundo
ANL da Revolução de 1930 (além de importantes lideranças tenentistas
como Miguel Costa, Hercolino Cascardo, Agildo Barata) e defendia a
implantação da reforma agrária, das liberdades públicas e preconizava
a luta anti-imperialista, tendo como presidente de honra o ex-tenente,
e agora líder comunista, Luís Carlos Prestes.

Com a emergência das primeiras manifestações de pressão políticas das novas forças
sociais organizadas, o governo Vargas organizou a repressão em duas frentes:

A repressão policial voltada, principalmente, contra a classe operária e que se estendeu posterior-
mente a jornalistas, intelectuais e parlamentares de oposição.
A implantação de uma legislação de exceção (lei nº 38 de 4 de abril de 1935 ou Lei de Segurança
Nacional) que suprimiu uma série de liberdades democráticas e definiu como crimes contra a ordem
política e social, entre outros:
•  a provocação de animosidade nas classes armadas;
•  a incitação do ódio entre classes sociais;
•  a propaganda subversiva;
•  a greve de funcionários públicos;
•  a organização de associações ou de partidos com o objetivo de subverter a ordem política e social.

Em julho de 1935, a ANL, com sedes espalhadas por todo o território nacional e tendo
arregimentado milhares de simpatizantes, foi colocada na ilegalidade depois do discurso
proferido por Prestes, em 5 de julho, e, a partir de agosto de 1935, começou a organizar, na
clandestinidade, um movimento armado com o objetivo de derrubar Vargas e implantar
um governo popular.

CURIOSIDADE
Clandestinidade
Na clandestinidade, a ANL, como movimento de massas, começou a esvaziar e passou a ser controlada
pelo PCB e por Prestes, que intensificou os contatos com antigos camaradas, demonstrando a clara inten-
ção de continuar a luta iniciada pela Coluna.

144 • capítulo 6
No dia 23 de novembro de 1935, o movimento que ficaria conhecido CURIOSIDADE
como Intentona Comunista, teve início em Natal, no 21º Batalhão de
Caçadores, espalhando-se para o Recife (onde o foco da rebelião foi o O estado de guerra
29º Batalhão de Caçadores) e para o Rio de Janeiro, onde a rebelião es- Estado de guerra e estado de comoção
tourou no dia 27 de novembro no 3º Regimento de Infantaria e seguido interna — Os estados de exceção se
por rebeldes da Escola de Aviação Militar. apresentavam, propositadamente, tipifi-
O episódio do levante comunista de 1935 foi um fracasso e abriu ca- cados de maneira imprecisa. Por exem-
minho para amplas medidas repressivas por parte do governo, ao mes- plo, com relação ao estado de guerra,
mo tempo em que intensificou a escalada autoritária que já se verificava o artigo 161 da Constituição de 1934
desde a promulgação da constituição de 1934. Veja alguns exemplos. estabelecia que tal condição implicaria
na suspensão das garantias constitucio-
Em 25 de novembro de 1935, durante a insurreição comunista, o governo já nais que pudessem prejudicar direta ou
havia pedido a decretação do estado de sítio por 60 dias. indiretamente a segurança nacional. No
Em janeiro de 1936 foi criada a Comissão Nacional de Repressão ao Comu- caso do estado de comoção interna, tal
nismo e que se destinava a investigar a participação de funcionários públicos e condição de exceção seria implementa-
de outras pessoas em atos ou crimes contra as instituições políticas e sociais. da, de acordo com o artigo 1º do decreto

Em 21 de março de 1936, o governo promulgou um decreto que equiparava nº 702, de 21 de março de 1936, quan-

“comoção interna” com o estado de guerra (essa equiparação encontra-se do ocorressem tentativas de subversão

firmada no artigo 1º do decreto nº 702, de 21 de março de 1936), suspen- das instituições políticas e sociais.

dendo todas as principais garantias previstas no artigo 113 da Constituição.

Ao longo do ano de 1936, o Congresso aprovou todas as medidas excepcio-


nais solicitadas pelo Poder Executivo e a partir do decreto de 21 de março
de 1936, o “estado de comoção interna”, equiparado ao estado de guerra, foi
prorrogado sucessivamente até junho de 1937 — em março de 1937 a polí-
cia invadiu o Congresso e prendeu cinco deputados que eram considerados
simpatizantes da ANL.
A chefia de polícia do Distrito Federal, a cargo do ex-tenente, Filinto Müller
(que havia sido expulso da Coluna Prestes) teve seus poderes consideravel-
mente ampliados, especialmente para calar os opositores de Vargas.
Em fins de outubro de 1936 começou a funcionar o Tribunal de Segurança
Nacional que havia sido criado pela lei nº 244 de 11 de setembro de 1936
(e inicialmente incorporado à Justiça Militar, sendo dela desvinculado pelo
decreto-lei de 20 de dezembro de 1937), e que, a princípio, se destinava a
julgar os comprometidos na insurreição de 1935, mas que se transformou
em órgão permanente de repressão aos opositores de Getúlio e que existiu
durante todo o Estado Novo.

Com o desencadeamento do processo sucessório e com a definição


das candidaturas verificou-se um arrefecimento do ambiente repressivo
e o pedido de prorrogação do estado de guerra foi negado pelo Congres-
so. Mas não havia qualquer disposição por parte de Getúlio Vargas e de
seus principais apoiadores em deixar o poder por força do resultado das
eleições, uma vez que nenhuma das três candidaturas era confiável aos
olhos do governo.

capítulo 6 • 145
CURIOSIDADE OBJETIVOS
Plano Cohen Ao longo de 1937, o Governo Federal promoveu intervenções, com o objetivo de apa-
O que foi o Plano Cohen? rar algumas arestas consideradas indesejáveis em alguns estados e no Distrito Fede-
Aparentemente, seria um documen- ral cujo prefeito, Pedro Ernesto, foi destituído por, possivelmente, estar associado à
to contendo uma situação imaginária, ANL – no Exército, vários oficiais legalistas foram afastados dos comandos militares.
mostrando como se desenvolveria uma
insurreição comunista e como ocorreria
a reação dos integralistas diante dela. O Em setembro de 1937, veio a público um suposto plano de uma in-
autor do documento seria alguém chama- surreição comunista, o famoso Plano Cohen, cujos efeitos de sua divul-
do Cohen (nome de origem claramente gação levaram o Congresso a aprovar o estado de guerra e a suspensão
judaica). Na realidade, a história desse das garantias constitucionais por 90 dias.
plano ainda guarda muitos aspectos obs- Entre os efeitos da divulgação do Plano Cohen, podemos destacar a
curos. Em setembro de 1937, um oficial retomada de um clima político golpista com a aprovação do estado de
do Exército, integralista, capitão Olímpio guerra e da suspensão das garantias constitucionais pelo prazo de noven-
Mourão Filho, foi surpreendido, datilogra- ta dias e a federalização da Brigada Militar gaúcha pelo comandante do
fando, no prédio do Ministério da Guerra, III Exército, general Daltro Filho, tirando de Flores da Cunha, importante
um plano de um levante comunista. Esse liderança política do Rio Grande do Sul que se opunha a Vargas, o instru-
documento, de alguma forma, passou dos mento de resistência a um golpe que pudesse ser perpetrado por Getúlio.
integralistas para o comando do Exército Por ocasião do final do mês de outubro, o deputado Negrão de Lima,
e em 30 de setembro foi divulgado no portando uma carta do governador de Minas Gerais, Benedito Valada-
programa radiofônico Hora do Brasil e res, escrita em nome de Getúlio Vargas, percorreu os estados do Nor-
parcialmente publicado nos jornais. deste com a missão de conseguir o apoio dos governadores da região
para um golpe de Estado, o que levaria ao cancelamento das eleições
Federalização da Brigada Militar presidenciais que se realizariam em 1938 e à dissolução da Câmara dos
O que significou, na prática, a federaliza- Deputados e do Senado. Essa proposta não contou com a adesão de Ju-
ção da Brigada Militar? raci Magalhães, governador da Bahia e de Carlos de Lima Cavalcanti, go-
Na prática, essa medida representava a vernador de Pernambuco.
exacerbação da intervenção do gover-
no federal nos assuntos internos dos
estados, ainda que, pelo artigo 167 da
Constituição Federal de 1934, as polí- Em 9 de novembro, Armando de Salles Oliveira, um dos candidatos à suces-
cias militares estaduais (o que era o caso são presidencial, encaminhou um manifesto aos chefes militares apelando
da Brigada Militar do Rio Grande do Sul) para que não permitissem o golpe de Estado. No entanto, em 10 de novem-
fossem consideradas reservas do Exér- bro de 1937, tropas da polícia militar cercaram o Congresso, impedindo a
cito. Apesar dessa condição, as polícias entrada dos parlamentares. À noite, Getúlio comunicou à nação, pelo rádio,
militares encontravam-se sob o coman- que o país estava iniciando uma nova fase política, ao mesmo tempo em que
do dos governadores. Com a federaliza- anunciou a entrada em vigor de uma nova Constituição, elaborada por Fran-
ção, entretanto, a Brigada Militar do Rio cisco Campos, iniciando-se assim a ditadura do Estado Novo — o Congresso
Grande do Sul passou ao comando do III foi dissolvido e, a 13 de novembro, 80 membros do Congresso dissolvido
Exército, tirando do governador Flores da levaram solidariedade a Getúlio.
Cunha a capacidade armada de resistir a
um provável golpe de Estado que se avi-
zinhava e que acabou acontecendo.

146 • capítulo 6
O período da Ditadura do Estado Novo (de 1937 a
1945) e a Constituição de 1937

O golpe do Estado Novo impôs uma Constituição que ficaria conhecida como Polaca em vir-
tude de sua identificação com a Carta polonesa (1935). Entretanto, essa constituição sofreu
também a influência da Constituição portuguesa salazarista de 1933, da Carta del Lavoro (a
legislação social italiana fascista de 1927), além da Constituição gaúcha de 1891 (marcada
pelo positivismo de Júlio de Castilhos).

A Carta Constitucional do Estado Novo teve existência apenas nominal. Para Bonavides e Paes de
Andrade, se a Constituição de 1937 não pode ser rotulada de forma categórica como uma Cons-
tituição nominal, ou seja, uma Constituição dotada de um texto meramente formal, não se pode
deixar de constatar que grande parte dela permaneceu inaplicada, exceção feita aos dispositivos
autoritários que se prestavam às demandas imediatas do poder.

Em entrevistas concedidas ao jornal carioca, Correio da Manhã, em março de 1945,


Francisco Campos, reconhecido como o principal autor do texto da Carta de 1937, dizia que
a constituição tinha um caráter puramente histórico, uma vez que a determinação, prevista
em seu artigo 187 de que deveria ser submetida a um plebiscito nacional, nunca foi concre-
tizada. E, uma vez que o plebiscito nunca foi realizado, a vigência da Carta até a realização
da consulta seria provisória. Sem a realização do plebiscito que deveria ter ocorrido em até
seis anos a partir do início do mandato do presidente Vargas, ou seja, a partir de 1937, sua
aprovação definitiva não ocorreu, tornando-se, portanto, inexistente.
Apesar de apresentar certa convergência ideológica com a Constituição Polonesa de
1935, para Francisco Campos, a Constituição brasileira de 1937 (outorgada) não pode ser
considerada uma constituição fascista já que nela encontravam-se capitulados, como cri-
mes de responsabilidade do presidente da República, os atos que atentassem contra a exis-
tência da União, contra a Constituição, contra o livre exercício dos poderes políticos, contra
a probidade administrativa, contra a guarda e emprego do dinheiro público e contra a exe-
cução das decisões judiciárias (art. 85). Segundo Francisco Campos, como uma constitui-
ção poderia ser fascista prevendo crimes de responsabilidade do presidente da República?
De acordo com Boris Fausto, a chave da compreensão do Estado Novo encontrava-se
nas “disposições finais e transitórias” da Constituição de 1937. Com a dissolução do Con-
gresso, Vargas tinha o poder para expedir decretos-leis relacionados a todos os assuntos de
responsabilidade do governo federal. Pelo artigo 186 das “disposições finais e transitórias”,
o estado de emergência era declarado em todo o país, com a suspensão de todas as liberda-
des civis formalmente garantidas pela própria Constituição. Em outro preceito transitório
que teve vigência indefinida, ficava o governo autorizado a aposentar funcionários civis e
militares, se assim fosse do interesse do serviço público ou da conveniência do regime.

capítulo 6 • 147
CURIOSIDADE
Durante todo o período Estado Novo, Getúlio Vargas exerceu o poder por meio dos decretos-leis, uma vez
que não ocorreram nem o plebiscito que daria existência definitiva à Constituição de 1937, nem as elei-
ções para o Parlamento que deveriam acontecer após o plebiscito.

Com o Estado Novo e com a aplicação de alguns dispositivos da Constituição de 1937,


a tendência centralizadora que já se verificava alguns meses após a Revolução de 1930 se
realizou plenamente. O princípio da separação e da independência dos poderes foi elimi-
nado, ficando a competência dos poderes condicionada aos interesses do Presidente da
República.
Os estados passaram a ser governados por interventores que, por sua vez, a partir de um
decreto-lei de abril de 1939, passaram a ser controlados por um departamento administra-
tivo, do qual dependiam a expedição do orçamento e os decretos–leis dos interventores. O
Senado foi extinto e, em seu lugar, surgiria um Conselho Federal formado por represen-
tantes eleitos pelas assembleias estaduais e por dez membros diretamente nomeados pelo
Presidente da República. A sucessão presidencial ocorreria por meio de eleições indiretas,
por um Colégio Eleitoral composto por representantes da Câmara dos Deputados, do Con-
selho Federal, das Câmaras Municipais e de um Conselho da Economia Nacional.

A questão federativa e o Estado Novo

Ainda que a Constituição de 1937 firmasse a natureza federativa do Estado brasileiro (artigo 3º),
a hipertrofia da União limitou consideravelmente a autonomia dos estados-membros da federação.

Como exemplo das limitações impostas pela Carta de 1937 e pelo regime do Estado Novo,
devemos lembrar que, de acordo com o artigo 9º dessa mesma Constituição, O Governo Fe-
deral poderia intervir nos estados, mediante a nomeação pelo Presidente da República de um
interventor, que assumiria no estado as funções que, pela sua Constituição, competiriam ao
Poder Executivo, ou as que, de acordo com as conveniências e necessidades de cada caso, lhe
fossem atribuídas pelo Presidente da República. Além disso, os próprios interventores eram
controlados por um departamento administrativo responsável pela análise e pela aprovação
ou rejeição da proposta de orçamento e dos decretos-leis dos interventores.
Havia nesse texto constitucional um claro silêncio sobre os partidos políticos e não se
verifica qualquer referência à Justiça Eleitoral. Os direitos e as garantias individuais foram
mantidos (artigo 122) e fixou-se a possibilidade de legislação específica prescrever a pena
de morte para os crimes capitulados nos subitens do item 13, do artigo 122, — para deter-
minados crimes de natureza política como o atentado contra a soberania, contra a integri-
dade do território nacional, contra a ordem social estabelecia e para os crimes de homicí-
dio cometidos com extremos de perversidade.

148 • capítulo 6
Foram mantidos, na Carta de 37, todos os preceitos norteadores da CURIOSIDADE
legislação social e trabalhista (artigo 137) que já haviam sido firmados
anteriormente na Constituição de 1934 e no que se referia aos dispositi- Pai dos pobres
vos relacionados à organização familiar, podemos destacar: Para a construção dessa imagem, foi
criado o Departamento de Imprensa e
a manutenção da indissolubilidade do casamento (artigo 124); Propaganda (que se constituiu em um
verdadeiro “ministério da propaganda”)
a responsabilização direta da família, com a colaboração do Estado, com rela-
por meio do decreto-lei nº 1.915, de 27
ção à educação (artigo 125);
de dezembro de 1939.
e o estabelecimento da igualdade entre filhos legítimos e naturais (artigo

126), remetendo a efetivação desta medida para uma futura legislação infra-
constitucional, o que não aconteceu.

O Departamento de Imprensa e Propaganda e a nova institu-


cionalidade social e trabalhista do Estado brasileiro

A configuração da nova institucionalidade social e trabalhista do Estado


brasileiro, iniciada logo após a vitória da Revolução de 1930 com a im-
plementação de uma legislação social e previdenciária durante a fase do
Governo Provisório continuou a se desenvolver durante o período do Es-
tado Novo, associada agora à criação da imagem de Getúlio Vargas como
o protetor dos trabalhadores, como o “pai dos pobres”.
Ao Departamento de Imprensa e Propaganda (DIP) foram atribuídas
funções relacionadas à produção/patrocínio de literatura social e polí-
tica, programas, filmes publicitários do governo, informações, notícias
para o cinema, rádio, imprensa. Além disso, o departamento era res-
ponsável pela proibição da entrada no país de publicações consideradas
nocivas aos interesses brasileiros, atuava junto aos correspondentes es-
trangeiros para evitar que fossem disseminadas informações, imagens
negativas que pudessem prejudicar a imagem do Brasil no exterior e
pela transmissão diária do programa Hora do Brasil que, até os dias de
hoje, se constitui em instrumento de propaganda e de divulgação das
ações e das obras do governo.

Vargas, o “protetor dos trabalhadores”, o “pai dos pobres”

Para que se firmasse a figura de Vargas no imaginário popular como


protetor dos trabalhadores, como “pai” dos pobres, recorreu-se a várias
cerimônias com a presença da população (por exemplo, as comemora-
ções do 1º de maio, no estádio de São Januário, no Rio de Janeiro e no
Pacaembu, em São Paulo) e ao uso intensivo dos meios de comunicação
da época. A partir de 1942, o então ministro do trabalho, Alexandre Mar-
condes Filho, passou a realizar palestras semanais na Hora do Brasil,
durante as quais era contada a história da implementação da legislação
social, explicando o alcance e o objetivo das leis sociais e trabalhistas

capítulo 6 • 149
por meio da apresentação de casos con-
Com tais ações, a imagem
cretos e se dirigindo a públicos determi-
nados (aposentados, mulheres, pais de
de Vargas foi sendo fixada
menores trabalhadores, imigrantes). como guia, como amigo,
como pai, como dirigente
Da continuidade da configuração benevolente dos brasileiros,
da institucionalidade social e traba- particularmente dos
lhista no Estado Novo, iniciada no
período do Governo Provisório.
trabalhadores.

Alguns dos principais marcos da institucionalidade social e trabalhista do Estado brasilei-


ro firmados durante o período do Estado Novo foram:

A implantação do salário-mínimo que ocorreu por meio da lei nº 185, de 14 de janeiro de 1936 e do De-
creto-lei nº 399, de 30 de abril de 1938 que regulamentou a aplicação da lei anterior — a partir da imple-
mentação do salário-mínimo, passou a existir um valor mínimo de remuneração, diferenciado por regiões.
A implantação de uma nova lei tratando da regulamentação da sindicalização (decreto-lei nº 1.402,
de 05 de julho de 1939).
A organização da Justiça do Trabalho dada pelo decreto-lei nº 1.237, de 2 de maio de 1939 e o
início de seu funcionamento em 1 de maio de 1941.
Criação do Imposto Sindical e das normas de sua aplicação e recolhimento por meio do decreto-lei
nº 4.298, de 14 de maio de 1942.
A implantação da Consolidação das Leis do Trabalho pelo decreto-lei de nº 5.452, de 1 de maio
de 1943.
Criação do Instituto dos Serviços Sociais do Brasil pelo decreto-lei nº de 7 de maio de 1945 (Lei
Orgânica dos Serviços Sociais do Brasil).

Na verdade, a Constituição de 1937 teve uma vigência mitigada ao longo de um período


que se caracterizou por apresentar duas fases bem distintas:

A primeira, marcada pela ascensão e a consolidação da ditadura do


PRIMEIRA Estado Novo em consonância com a vaga autoritária e fascista que
varreu a Europa nos anos 1930 e início da década de 1940.

A segunda, caracterizada pela crescente dissonância entre o regime do


Estado Novo e a mudança nos rumos da Segunda Guerra Mundial, que
se verificou com a entrada dos Estados Unidos no conflito a partir de
SEGUNDA 1941, com a contenção do avanço das forças do Eixo (tanto na frente
oriental europeia, como no “teatro” da guerra no Pacífico) e com o rea-
linhamento do Brasil no esforço de guerra contra as potências do Eixo.

150 • capítulo 6
O enfraquecimento e a derrocada do Estado Novo
A queda do Estado Novo se constituiu em um processo lento, iniciado com a edição do Ato
Adicional de 28 de fevereiro de 1945 e concluído com o afastamento de Getúlio Vargas do
poder em 29 de outubro de 1945.
Durante esses nove meses, a ambiência sociopolítica brasileira foi marcada por intensa
agitação — questões fundamentais e urgentes emergiram nesse período, a saber:

Concessão de anistia

Realização de eleições presidenciais

O “queremismo” (continuidade de Getúlio Vargas no poder)

A convocação da Assembleia Constituinte

As questões citadas aprofundaram de maneira significativa as divisões entre forças si-


tuacionistas e oposicionistas, por sua vez, divididas em grupos civis e militares. Somente a
questão sucessória conseguiu unir as forças antagônicas ao governo no momento em que
Vargas articulava sua continuidade à frente do poder.

Uma digressão importante - o papel do exército no período de 1930 a 1945

O Exército se constituiu na principal força impulsionadora da Revolução de 1930, movi-


mento armado que iria derrubar a ordem oligárquica da Primeira República. Apesar do
protagonismo do Exército na superação da República Velha, a consolidação de sua força
política foi dificultada no período imediatamente posterior à Revolução de 1930, sendo
necessárias três grandes crises, ocorridas ao longo dessa década, para que se definisse o
fortalecimento organizacional e institucional do Exército, o que levaria a instituição a se
converter na guardiã do Estado Novo.
Os dois líderes responsáveis pelo processo reformista do Exército ao longo da década
de 1930 foram:

Góis Monteiro (ministro da Guerra entre 1934 e 1935 e Chefe do Estado Maior do Exército de
1937 a 1943).

Eurico Gaspar Dutra (ministro da Guerra entre 1937 e 1945).

Esses dois generais conseguiram transformar o Exército em uma organização coesa, politicamen-
te homogênea e socialmente permeável às classes alta e média da população.

Para o Exército, a história da década de 1930 foi a história da eliminação de correntes re-
formistas e esquerdistas (nesse último caso, eliminação consolidada após Revolta Comunista
de 1935) e do afastamento dos generais da ge-
ração da Primeira República, dentre os quais Getúlio foi convencido a
muitos simpatizaram com a Revolução Cons- promover o fortalecimento
titucionalista de São Paulo de 1932. Além dis- da organização das Forças
so, em função das sucessivas crises político-
Armadas
militares que marcaram os anos 1930,

capítulo 6 • 151
CURIOSIDADE
Ao final da década de 1930, antes do início da Segunda Guerra Mundial, graças à ação de Góis Monteiro
e de Dutra, o Exército se mostrava como uma organização muito mais disciplinada, purificada ideológica e
politicamente, com recursos garantidos no orçamento nacional, com efetivos ampliados de 38 mil para 90
mil homens, contando com o serviço militar obrigatório (para formação de reservas) e com controle pleno
sobre as forças policiais estaduais.

Após o golpe de 1937 que implantou o Estado Novo, os militares (especialmente os do Exército)
passaram a ser os principais fiadores da ordem social e do desenvolvimento do regime estado-
novista — com a repressão das forças de esquerda, do movimento integralista e das oligarquias
regionais, tornou-se difícil estabelecer uma clara distinção entre Forças Armadas e o Estado. Com
o término da guerra, coube às Forças Armadas o papel protagonista no processo que levaria à
queda de Getúlio Vargas e ao fim do Estado Novo, ao mesmo tempo em que foram os avalistas
da solução para a crise que se configurou a partir do apoio que várias forças sociais (inclusive o
Partido Comunista) deram à continuidade do poder getulista.

A partir de 1942, tanto na Europa como no Pacífico, o avanço das forças do Eixo come-
çou a ser detido na frente oriental do “teatro” europeu (Batalha de Stalingrado) e no “te-
atro” da guerra no Pacífico (batalha de Midway), o que sinalizava uma clara reversão das
condições que marcaram o início da Segunda Guerra Mundial.
Com o avanço das tropas aliadas na Europa e no Pacífico, trazendo consigo a clara pers-
pectiva da derrota do nazifascismo europeu e do Império japonês, o Estado Novo varguista
começou a dar sinais de esgotamento, especialmente a partir do segundo semestre de 1944.
Já em 24 de outubro de 1943, veio a público o Manifesto dos Minei-
ros, no qual personalidades, como Afonso Arinos, o ex-presidente Artur
Bernardes, Milton Campos, Pedro Aleixo, Virgílio de Melo Franco, pro-
punham que se instalasse no Brasil um verdadeiro regime democrático
que pudesse dar segurança econômica e bem-estar ao povo brasileiro.
Dentro do governo, Osvaldo Aranha mostrou-se francamente
favorável à abertura democrática e com o fechamento da Socieda-
de dos Amigos da América pelo chefe de polícia, Coriolano de Góis,
Afonso Arinos entidade para a qual Aranha havia sido convidado para ser vice-pre-
sidente, fez com que o ministro das Relações Exteriores pedisse de-
missão do cargo. Verificou-se também um progressivo afastamento do general Góis Mon-
teiro em relação ao Estado Novo, um de seus idealizadores e alicerces militares — sendo
responsável pelo encaminhamento da saída de Getúlio do poder.
A imprensa burlava frequentemente a censura, condição que revela um indicador se-
guro da perda de força dos regimes autoritários. Em 22 de fevereiro de 1945, José Américo,
ex-ministro de Getúlio e ex-candidato à Presidência da República nas abortadas eleições de
1938, em entrevista ao jornal carioca O Correio da Manhã, criticava o Estado Novo e afirmava
que a oposição já tinha candidato que era o brigadeiro Eduardo Gomes.

152 • capítulo 6
Em 28 de fevereiro de 1945, Getúlio baixou o Ato Adicional nº 9 à Carta de 1937 que
determinava um prazo de 90 dias para a marcação da data das eleições — editou-se assim o
Código Eleitoral (decreto nº 7.586 de 28 de maio de 1945 — lei Agamenon) que regulava o
alistamento e as eleições, estabelecendo a data de 2 de dezembro de 1945 para a eleição do
Presidente, do Conselho Federal e da Câmara dos Deputados e a data de 6 de Maio de 1946
para a realização das eleições para as assembleias legislativas (art. 136).
Por esse tempo, Getúlio declarava que não seria candidato à presidência enquanto, den-
tro do governo, gestava-se a candidatura do general Dutra, ainda Ministro da Guerra, em
oposição à candidatura de Eduardo Gomes.
Todavia, para que se pudessem realizar as eleições previstas para o dia 2 de dezembro,
havia a necessidade da criação de partidos, organização política que havia deixado de exis-
tir no Brasil por força da implantação do regime do Estado Novo.
Assim, ao longo do ano de 1945, foram criados os três grandes partidos que dominariam
o cenário político brasileiro até 1964: o PSD (Partido Social Democrático), a UDN (União De-
mocrática Nacional) e o PTB (Partido Trabalhista Brasileiro):

PSD (Partido Social Democrático) – surgido a partir da “máquina” do Estado, sob os auspícios da buro-
cracia, dos interventores nos estados e do próprio Getúlio.

UDN (União Democrática Nacional) – formada em abril de 1945, tem suas origens no Manifesto
dos Mineiros de 1943 e na antiga oposição liberal, continuadora da tradição dos partidos democrá-
ticos estaduais, organizou-se em torno da candidatura do brigadeiro Eduardo Gomes.

PTB (Partido Trabalhista Brasileiro) – fundado em setembro de 1945, sob a égide de Getúlio, do
Ministério do Trabalho e da burocracia sindical, tendo como objetivo reunir os trabalhadores em
torno da política getulista.

O PCB (Partido Comunista Brasileiro) veio apoiar o governo Vargas, com base em orientação vinda
de Moscou de que os partidos comunistas deveriam apoiar os governos de seus países que fizes-
sem parte da frente antifascista, fossem esses governos democráticos ou ditatoriais. Isso explica
o apoio de Prestes ao governo Vargas que, em abril de 1945 estabelecera, pela primeira vez, rela-
ções diplomáticas com a URSS — verificou-se maior aproximação dos comunistas em relação ao
governo quando, em junho de 1945, um decreto-lei do governo visava o controle dos monopólios e
de práticas monopolistas, prevendo inclusive a desapropriação, pelo presidente da República, das
empresas envolvidas em atos nocivos ao interesse público.

Em meados de 1945, trabalhistas ligados a Getúlio, com o apoio dos comunistas, deram
início à campanha do Queremismo, defendendo a instalação da Assembleia Constituinte com
Getúlio no poder — tudo indicava que Getúlio pretendia manter-se como ditador ou como pre-
sidente eleito, esvaziando, ao longo do tempo, as candidaturas de Dutra e de Eduardo Gomes.
Diante da radicalização e do crescimento do movimento queremista, Vargas, em 10 de
outubro de 1945, baixou um decreto antecipando as eleições estaduais para 2 de dezembro.
Por esse decreto, os interventores deveriam, em um prazo de 20 dias, outorgar as consti-
tuições estaduais. Caso os interventores quisessem se candidatar aos governos estaduais,
deveriam se desincompatibilizar de seus cargos até 30 dias antes das eleições.

capítulo 6 • 153
CURIOSIDADE
Campanha do Queremismo
Queremismo foi um movimento político surgido em maio de 1945 com o objetivo de defender a perma-
nência de Getúlio Vargas na presidência da República. A expressão se originou do slogan utilizado pelo
movimento: "Queremos Getúlio".

Tudo indicava que Vargas sairia extremamente fortalecido dessas eleições, realizadas
sob a égide de seu governo. Todavia, diante de tal possibilidade, as articulações conspirató-
rias se intensificaram, tendo à frente o general Góis Monteiro e o candidato do PSD, general
Dutra. Toda essa articulação conspiratória contava com o aval do então embaixador norte
-americano no Brasil, Adolf Berle.

Vargas acabou sendo deposto não por conspiração externa, mas pelo jogo político interno que
teve, no afastamento de João Alberto do cargo estratégico de Chefe de Polícia do Distrito Federal
e em sua substituição pelo irmão de Vargas, Benjamin Vargas, o motivo imediato para sua depo-
sição — corria o boato que, ao assumir a chefia da Policia do Distrito Federal, Benjamin prenderia
todos os generais que estivessem conspirando contra o regime.

Dutra ainda tentou um compromisso, solicitando ao presidente que voltasse atrás na


nomeação — com a recusa de Vargas, Góis Monteiro mobilizou as tropas, forçando Vargas
à renúncia, o que fez com que essa transição para o regime democrático, bancada pelos mi-
litares, especialmente por um personagem que havia participado ativamente da Revolução
de 1930 (Góis Monteiro), mantivesse muitas continuidades com o regime anterior.

Com a queda de Vargas, os militares e a oposição liberal, assim como os dois candidatos à presi-
dência (Eduardo Gomes e Dutra), acordaram que o poder deveria ser entregue, temporariamente,
ao presidente do Supremo Tribunal Federal, José Linhares.

RESUMO
A Era Vargas foi uma etapa das mais conturbadas de nossa história republicana que teve suas origens em
um processo revolucionário (a Revolução de 1930).
Foi profundamente influenciada pela conjuntura internacional da década de 1930 e da primeira metade
da década de 1940.
Representou também um momento de modernização/racionalização da máquina do Estado que o trans-
formariam no grande agente fomentador das políticas públicas voltadas para a superação do atraso do
capitalismo brasileiro (uma modernização autoritária, diga-se de passagem) e de configuração de uma
institucionalidade social e trabalhista que marca nossa sociedade até os dias de hoje.

154 • capítulo 6
ATIVIDADE
Questão 1
Segundo a pesquisadora da Fundação Getúlio Vargas, Ângela Maria de Castro Gomes, “poucos períodos
na História do Brasil produziram desdobramentos tão duradouros, importantes e ambivalentes como o dos
oito anos que cobrem o período conhecido como Estado Novo (1937-1945)”. Assim, com relação à ambi-
ência jurídico-político-institucional dessa etapa da Era Vargas, é correto afirmar que:
A - Uma das características mais marcantes do regime do Estado Novo diz respeito à radicalização da na-
tureza federativa do Estado brasileiro, uma vez que, pela constituição de 1937, os municípios adquiriram a
condição de entes federativos, dotados de ampla autonomia em relação aos estados e em relação à União.
B - Apesar do perfil autoritário do regime estado-novista, as eleições para a renovação periódica da Câma-
ra dos Deputados e do Senado foram mantidas regularmente durante os oito anos de sua vigência, o que
contribuiu, decisivamente para limitar os poderes de Getúlio Vargas à frente do Executivo federal.
C - A continuidade do processo de configuração da nova institucionalidade social e trabalhista do Estado
brasileiro durante o período do Estado Novo, processo este iniciado nos primeiros tempos do Governo
Provisório, esteve associada à produção da imagem de Getúlio Vargas como protetor dos trabalhadores,
como o pai dos pobres.
D - Tal como nas constituições anteriores (as de 1824, 1891 1934), a Carta de 1937 contemplava a
intervenção do Estado na economia e nas questões de natureza social, tendo sido firmado em seu texto, o
rol de preceitos que nortearam a produção da legislação social e trabalhista no Brasil desde, pelo menos,
a proclamação da República.
E - Ainda que a ordem constitucional de 1937 tivesse se configurado em um ambiente de exercício pleno
da democracia, as questões de natureza social e trabalhista foram colocadas em um segundo plano, visto
que a lógica liberal, assumida em sua plenitude por Vargas e por seus assessores, se constituiu em con-
siderável obstáculo à adoção de políticas de intervenção estatal tanto na economia, como na área social.

Questão 2
No que se refere à construção da institucionalidade social e trabalhista da Era Vargas, podemos afirmar que:
I - A criação do Ministério do Trabalho, que ocorreu logo após a vitória da Revolução de 1930, revelou um
novo projeto jurídico-político-institucional em que o Estado brasileiro passaria a regulamentar e fiscalizar
as relações entre capital e trabalho no país.
II - Durante a gestão do Salgado Filho (1932 a 1934), à frente do Ministério do Trabalho, foram sanciona-
das numerosas leis que tratavam da regulação das condições de trabalho dos que se encontravam no mer-
cado de trabalho (leis trabalhistas) e das questões que tratavam do amparo àqueles que, temporariamente
ou definitivamente, se afastavam do mercado de trabalho (leis previdenciárias).
III - A implementação da Carteira de Trabalho, em 1932 (Decreto nº 22.035, de 29 de outubro de 1932),
permitiu ao Ministério do Trabalho um maior controle sobre a população trabalhadora.
Após analisar cada uma das afirmativas acima (verificando se elas estão CORRETAS ou ERRADAS), assi-
nale qual alternativa melhor reflete o resultado de sua análise:
A - Todas as afirmativas estão erradas.
B - Todas as afirmativas estão corretas.
C - Somente a afirmativa I está errada.
D - Somente a afirmativa II está correta.
E - Somente a afirmativa III está errada.

capítulo 6 • 155
Questão 3
As constituições brasileiras de 1934 e de 1937 foram produzidas no contexto do reordenamento socio-
político-econômico resultante do movimento revolucionário de 1930, que rompeu, em grande parte, com o
modelo republicano da chamada República Velha, ao mesmo tempo em que refletiram em seus textos as
tendências antiliberais que marcaram o ambiente político da Europa na década de 1930 e que produziram
efeitos notáveis sobre as sociedades latino-americanas. Assim, no que se refere a alguns dos principais
aspectos dessas duas cartas constitucionais, é correto afirmar que:
A - Pela carta de 1934, o Poder Legislativo era exercido pela Câmara dos Deputados, com a colaboração
do Senado Federal, o que significou uma redução das atribuições legislativas da casa congressual repre-
sentativa da Federação.
B - Pela Constituição de 1937, o presidente da República compartilhava seu poder com o Conselho Fe-
deral nas funções de coordenação da atividade dos órgãos representativos e de promoção ou orientação
da política legislativa.
C - A constituição de 1934 manteve os princípios formais fundamentais da organização do Estado bra-
sileiro presentes na primeira constituição republicana de 1891, como a divisão quadripartite dos poderes
independentes e coordenados entre si e o regime representativo.
D - O texto constitucional de 1937 definia que os governos estaduais seriam exercidos por governadores
eleitos por meio de eleições diretas.
E - No que se refere a temas de natureza social e trabalhista, somente foram incorporados pela Constituição
de 1937, já que os constituintes que produziram o texto de 1934 se omitiram com relação a tais questões.

Questão 4
Em discurso pronunciado na Assembleia Nacional Constituinte, em 20 de julho de 1934, Getúlio Vargas
não escondeu o descontentamento com a nova Constituição. De acordo com ele, a Constituição de 34,
diferentemente daquela que fora promulgada em 1891, enfraquecia os elos da Federação, anulava, em
grande parte, a ação do presidente da República, cerceando-lhe os meios imprescindíveis à manutenção
da ordem, ao desenvolvimento normal da administração, estimulando as forças armadas à prática do fac-
ciosismo partidário, subordinando a coletividade, as massas proletárias e desprotegidas ao bel-prazer das
empresas poderosas e colocando o indivíduo acima da comunhão de interesses da sociedade. Levando-se
em consideração as críticas perpetradas por Vargas, nesse discurso, em relação ao texto da Constituição
de 1934 e o curto tempo de sua vigência, é correto afirmar que:
A - A Carta de 34 destoa completamente dos principais objetivos que nortearam a Revolução de 1930,
já que manteve os mesmos princípios liberais de organização do Estado que orientaram a elaboração do
primeiro texto constitucional republicano.
B - Apesar do fortalecimento do Poder Executivo, no texto da constituição de 1934 ficou assegurado o
predomínio do Poder Legislativo no sistema político, que deveria se constituir em um inibidor do avanço
do Executivo.
C - As críticas de Vargas se referem à total ausência das temáticas da proteção social e da proteção às
relações trabalhistas nesta constituição, o que dificultaria a continuidade da organização socioprodutiva
capitalista no Brasil.
D - Apesar das tensões políticas que marcaram o período de vigência dessa ordem constitucional, sua
substituição pelo texto de 1937 ocorreu por meio dos trabalhos de uma assembleia revisora que, reunida a
partir do final de 1936, elaborou as emendas ao texto de 34, emendas que serviram para o aprimoramento
dessa carta e que acabaram por compor a Constituição de 1937.

156 • capítulo 6
E - Por ter sido outorgada, a carta de 34 previa uma organização do Estado brasileiro com características
bastante semelhantes àquelas de alguns dos textos constitucionais que regiam os regimes fascistas euro-
peus do período, especialmente no que dizia respeito à organização partidária, já que a primeira constitui-
ção da Era Vargas previa a organização de um partido único capaz de dar sustentação ao governo.

Questões discursivas
Questão 1
Analise a seguinte afirmativa: A Constituição de 1937 sofreu poderosa influência da Carta de 1891 e de
seus aspectos liberais e individualizantes, e sua aplicação regular se deveu à implantação do regime do
Estado Novo caracterizado pela intensa atividade legislativa e pela descentralização político-administrativa.
Essa afirmativa está CORRETA ou ERRADA? Justifique.

Questão 2
Quais eram os dispositivos presentes no Código Eleitoral de 1932 que refletiam as reivindicações do pro-
grama dos revolucionários de 1930, especialmente as reivindicações dos tenentes?

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
FAUSTO, B. A crise dos anos vinte e a Revolução de 1930. In: FAUSTO, B. (dir.). História Geral da Civilização
Brasileira - Volume III (o Brasil Republicano), tomo 2 (Sociedade e instituições - de 1889 a 1930), São Paulo:
Difel, 1985.
_________. História do Brasil. 14. ed. São Paulo: Edusp, 2012.
FERREIRA, M. M.; PINTO, S. C. S. A crise dos anos 1920 e a Revolução de 1930. In: FERREIRA, Jorge; DEL-
GADO, Lucilia de Almeida Neves (orgs). O Brasil Republicano - o tempo do liberalismo excludente (da Procla-
mação da República à Revolução de 1930). Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2003.
FORJAZ, M. C. S. Tenentismo e política. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1977.
GOMES, A. M. C. Estado Novo: ambiguidades e heranças do autoritarismo no Brasil. In: ROLLEMBERG, Denise;
QUADRAT, Samantha Viz (orgs.). A construção social dos regimes autoritários: legitimação, consenso e con-
sentimento no século XX - Brasil e América Latina. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2010.
NETO, L. Getúlio (1930-1945) - do governo provisório à ditadura do Estado Novo. São Paulo: Companhia das
Letras, 2013.
OLIVEIRA, L. L.; VELLOSO, M. P.; GOMES, A. M. C. Estado Novo - ideologia e poder. Rio de Janeiro: Zahar, 1982.
PANDOLFI, D. Os anos 1930 - as incertezas do regime. In: FERREIRA, Jorge; DELGADO, Lucilia de Almeida
Neves (orgs). O Brasil Republicano - o tempo do nacional-estatismo (do início da década de 1930 ao apogeu
do Estado Novo). Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2003.
RIBEIRO, D. Aos trancos e barrancos - como o Brasil deu no que deu. 3. ed. Rio de Janeiro: Guanabara, 1986.
VILLA, M. A. A história das constituições brasileiras - 200 anos de luta contra o arbítrio. São Paulo: Leya, 2011.

capítulo 6 • 157
17
A entrada é uma rua
antiga estreita e
torta: da Democracia
à Ditadura

eduardo ferraz felippe


7 CURIOSIDADE
A entrada é uma rua antiga estreita
e torta: da Democracia à Ditadura

A Constituição Democrática de 1946


Eurico Gaspar Dutra Como uma vista panorâmica, o período entre 1945 e 1964 são anos de
Eurico Gaspar Dutra era militar e seu continuidades e rupturas frente à época em que Vargas esteve no poder.
governo foi voltado para a manutenção A modernização da máquina do Estado, ocorrida durante o período var-
da ordem legal e por uma aproximação guista, continuou.
gradual, no plano internacional, com os A queda do presidente Getúlio Vargas, em 1945, abriu espaço para
Estados Unidos da América. No gover- uma nova onda democrática no país. Mais uma vez, a deposição de um
no Dutra, houve a elaboração de uma presidente tinha sido feita por intermédio dos militares, assim como a
nova Constituição, alinhada aos princí- Revolução de 1930 que colocou o próprio Vargas no poder. Entretanto,
pios democráticos, e que tinha por obje- a oposição ao Estado Novo era fruto da insatisfação de setores, tanto da
tivo a estabilização política. Foi conside- elite brasileira quanto das camadas populares.
rado um marco jurídico importantíssimo Vargas tentou articular a sua continuidade no poder. Suas primeiras
no período, pois, com ela, há o retorno ações possibilitaram a fundação de dois partidos políticos:
das liberdades civis, bem como dos di- •  O Partido Social Democrático (PSD), associado aos interesses con-
reitos políticos, tão limitados na ditadura servadores agrários e aos interventores varguistas;
Vargas. Portanto, vamos analisá-la com •  E o partido trabalhista brasileiro (PTB), vinculado à estrutura tra-
um pouco mais de calma. balhista do Estado varguista.
Além disso, possibilitou que o Partido Comunista Brasileiro (PCB)
retornasse ao usufruto de toda a sua autonomia política. Contudo, os
militares retiraram Vargas do poder, justamente para evitar o risco do
continuísmo político.

As eleições de 1945 ocorreram em clima de legalidade jurídica. Por


meio de uma aliança do PSD e do PTB, o general Eurico Gaspar Dutra
venceu as eleições com 55% dos votos, contra o candidato da União
Democrática Nacional (UDN), Brigadeiro Eduardo Gomes, que repre-
sentava os setores liberais.

Principais características da Constituição de 1946

Entre os principais pontos introduzidos pela nova Constituição, desta-


cam-se os seguintes:

Tendência restauradora das linhas da Constituição de 1891, com as inova-


ções (aproveitáveis) de 1934, principalmente no que se refere à proteção
aos trabalhadores, à ordem econômica, à educação e à família.

160 • capítulo 7
Restabelecimento das eleições diretas para presidente, governadores e
CURIOSIDADE
prefeitos.
Guerra fria
Conflito de ordem política, militar, tec-
O mandato presidencial foi fixado em cinco anos, mantida a proibição da nológica, econômica, social e ideológica
reeleição para cargos executivos. ocorrido entre 1948 e 1991 entre Es-
tados Unidos da América e União So-
viética e seus respectivos aliados. Cabe
As atribuições do Congresso foram fortalecidas, principalmente aquelas que
considerar que não houve o confronto
dizem respeito à inspeção das ações do Executivo. Nesse sentido, todas as
militar direto entre essas nações, os em-
medidas administrativas ou de política econômica do governo (mesmo as de
bates entre o bloco capitalista e o bloco
curto prazo) teriam de receber a autorização do Congresso Nacional.
socialista foram direcionados para as
zonas periféricas.
Foi restaurado o princípio federalista, estabelecendo-se a divisão de atri-
buições entre a União, os estados e os municípios, sendo que aumentada a
autonomia Municipal.

No que se refere aos direitos eleitorais, seguiu as diretrizes expressas no


Código Eleitoral de 1932 — verdadeiro marco revolucionário sobre o tema
no país —, mas extinguiu a bancada profissional, presente na Carta de
1934, e ampliou a obrigatoriedade do voto feminino, antes restrita às mu-
lheres que exercessem cargo público remunerado.

No âmbito das liberdades civis, reestabeleceu a liberdade de associação,


crença e de cultos religiosos, manifestação de pensamento, sendo que a
censura só poderia ocorrer em espetáculos voltados para a diversão pública;

No plano social, a Constituinte optou por uma postura mais conser-


vadora. O direito de greve, por exemplo, foi aprovado por meio de um
texto genérico que reconhecia o direito, mas deixava para o Congresso
uma futura regulamentação, que terminou por não vir.
Todas as medidas propostas na Constituição favoreciam um mo-
vimento de alinhamento gradual do país aos interesses da sociedade
capitalista. Dessa forma, era apenas uma questão de tempo para que
houvesse o diálogo cada vez mais aberto entre a presidência do país e os
representantes do capitalismo norte-americano.

Eram os primeiros anos da Guerra Fria, sendo que a guerra ideológica se


intensificava em todo o mundo. A divisão do mundo em:
•  de um lado, o bloco capitalista liderado pelos Estados Unidos da América e;
•  do outro lado, o bloco socialista liderado pela União Soviética, teve impac-
to imediato no Brasil.

capítulo 7 • 161
CURIOSIDADE O Partido Comunista do Brasil, posto na legalidade após a Cons-
tituição de 1946, tinha como seu líder Luís Carlos Prestes e estava em
Plano Salte franco crescimento desde as eleições ocorridas em 1947. No entanto,
Sigla formada pelas iniciais de Saúde, em virtude do quadro internacional do pós-guerra, passou a ser cada
Alimentação, Transportes e Energia. vez mais atacado pelos congressistas e representantes dos outros par-
tidos. Os comunistas eram acusados de estarem a serviço de Moscou e
conspirando contra os interesses nacionais.
CURIOSIDADE
ATENÇÃO
Nacionalismo
Esse conceito não deve ser desvincu- Ainda em 1947, os deputados do PCB tiveram seus mandatos cassados. Esse ato
lado de outros conceitos, como Nação político, no âmbito de um cenário de Guerra Fria, representou o alinhamento por
e Estado. O nacionalismo deve ser en- completo do Brasil ao bloco capitalista liderado pelos Estados Unidos.
tendido como uma atitude mental que
associa atitudes individuais e nação. No Em termos econômicos, o país saiu da Segunda Guerra Mundial com
caso Vargas, a economia estava voltada uma reserva de valores alta. Entretanto, a má aplicação desses recursos
para a defesa dos interesses nacionais disponíveis fez com que, já em fins de 1947, a população brasileira pas-
e da diminuição do envio de divisas ao sasse a sentir os efeitos da perda do valor da moeda.
exterior. Com o intuito de equilibrar as finanças públicas, Dutra lançou o
Plano Salte que, em termos gerais, visava a atuar em áreas básicas da
infraestrutura do país, propiciando condições de crescimento, ao mes-
mo tempo em que buscaria o equilíbrio econômico. O plano foi um
fracasso e provocou grande desvalorização da moeda nacional, sendo
que ao fim do seu mandato, as reservas cambiais baixaram a quase um
décimo do que eram após a Segunda Guerra Mundial. Nessa época, o
Presidente Dutra já havia perdido o apoio popular. Entretanto, seu par-
tido, o PSD, mais uma vez aliado ao PTB, preparava o cenário para o
retorno daquele que nunca havia saído de cena: Getúlio Vargas.

O Segundo Governo de Getúlio Vargas


Getúlio Vargas Mesmo tendo vencido nas urnas, foi neces-
sário manter um diálogo com os militares
retomou o
para afastar qualquer desconfiança referen-
poder em 1951. te a um possível rompimento com a ordem
democrática. Vargas não conseguiu o apoio pleno da cúpula militar,
mas a visão nacionalista tinha a simpatia dos militares.

Contudo, não foram os militares o principal grupo contrário a Vargas. A im-


prensa da época, em sua maior parte, apresentava uma posição hostil ao go-
verno Vargas, em virtude das posições autoritárias no Estado Novo. Diferente-
mente dos militares, os grandes empresários dos meios de comunicação não
acreditavam que Vargas tivesse se convertido aos princípios democráticos.

162 • capítulo 7
Um problema agravava ainda mais a situação do presidente: a Guerra CURIOSIDADE
Fria. No plano internacional, a década de 1950 foi palco de uma série de
eventos que demonstravam que o mundo passava por um processo de cres- Joseph McCarthy
cente tensão. Os comunistas tinham acabado de conquistar a China (1949), Os efeitos das perseguições do Macar-
e no ano seguinte eclodia a Guerra da Coreia (1950-1953). thismo permanecem até dias atuais. Na
No âmbito internacional, o anticomunismo havia se fortalecido cerimônia do Oscar de 1999, o diretor
nos Estados Unidos da América com a eleição de Eisenhower, em 1953. Elias Kazan, ganhador de uma estatue-
Ocorreu uma ampla perseguição a artistas e intelectuais comunistas por ta, teve de lidar com os protestos con-
meio das falas do senador Joseph McCarthy. Muitos foram os artistas trários de intelectuais que não o perdoa-
perseguidos por esse político, dentre eles, o mais famoso foi Charles ram pela colaboração com os processos
Chaplin, que teve seu passaporte confiscado e morreu fora dos Estados promovidos por McCarthy em suas co-
Unidos da América, na Suíça. missões contra comunistas.
O Brasil viveu essa divisão ocorrida em todo o mundo entre comu-
nistas e anticomunistas. Contudo, em nosso país, os grupos de direita
combatiam não somente o comunismo, mas também o nacionalismo. CURIOSIDADE
Em virtude das medidas econômicas tomadas por Vargas, ele passou
a ser, cada vez mais, associado aos interesses nacionalistas por alguns Charles Chaplin
membros da imprensa. Sir Charles Spencer Chaplin, mais co-
Em fins de 1951, Vargas enviou ao Congresso projeto de criação de uma nhecido como Charlie Chaplin (Lon-
empresa para cuidar do petróleo. A medida foi aprovada em 1953, criando- dres, 16 de abril de 1889 — 25 de de-
se a Petrobras como uma empresa estatal de economia mista, detentora do zembro de 1977), foi um ator, diretor,
monopólio de pesquisa, exploração e refinação do Petróleo no Brasil. produtor, humorista, empresário, escri-
tor, comediante, dançarino, roteirista e
CURIOSIDADE músico britânico. Chaplin foi um dos
atores mais famosos da era do cinema
A campanha “O Petróleo é nosso” motivou diversos setores da sociedade. Maria mudo, notabilizado pelo uso de mímica
Antonieta Leopoldi, em seu Política e interesses na industrialização brasileira, afir- e da comédia pastelão. É bastante co-
ma que, como ocorria em outros países da América Latina, a sociedade civil optou nhecido pelos seus filmes: O Imigran-
por um modelo energético que excluía as companhias estrangeiras de petróleo da te, O Garoto, Em Busca do Ouro (este
exploração e refino do material. O debate em torno do petróleo ganhou um tom considerado por ele seu melhor filme),
apaixonado que atravessou o governo Dutra, até terminar por constituir a Petrobras. O Circo, Luzes da Cidade, Tempos Mo-
dernos, O Grande Ditador, Luzes da
Ribalta, Um Rei em Nova Iorque e A
EXEMPLO Condessa de Hong Kong.

A charge explicita como estava sendo veiculada a
imagem da divergência política entre os setores na-
cionalistas em cartazes de pequena circulação as-
sociadas aos defensores da nacionalização. Perceba
que, nessa imagem de 1952, o monopólio estatal é
explicitamente defendido, não somente nas conven-
ções de petróleo, mas em outros âmbitos da socie-
dade brasileira. Na charge, o monopólio estatal é a
arma do Brasil contra a presença dos grupos estrangeiros.

capítulo 7 • 163
A partir da campanha “O Petróleo é nosso”, o governo Vargas passou a ter como um de
seus nortes da política econômica a conjunção entre nacionalismo e estatização. Todavia,
aumentou a oposição ao governo Vargas, justamente nos grupos em que ele anteriormente
encontrava maior apoio, ou seja, nos trabalhadores.

Em 1953, quando a inflação corroía os salários, os operários têxteis foram os primeiros


a parar pedindo restituição do poder de compra de seus salários. Logo, outras categorias
descontentes se juntaram a eles, como a dos ferroviários e a dos gráficos. No final, 300 mil
operários haviam entrado em greve.

Apesar de não terem conseguido o aumento buscado, as greves serviram não apenas para
aumentar o nível de organização dos trabalhadores, mas também para levar à demissão o mi-
nistro do Trabalho, substituindo-o por um novo ministro: João Goulart, aliado político pró-
ximo a Vargas e, como veremos mais adiante, importante personagem da história brasileira.
A greve contribuiu para criar o Pacto de Unidade Intersindical (PUI), que pode ser concebida
como um embrião do que viria a ser o Comando Geral dos Trabalhadores (CGT).
Em termos de percurso histórico, Vargas gozava, até os primeiros anos de 1950, de uma
grande popularidade. O projeto nacionalista de Vargas estava voltado especialmente para a
elaboração de um parque industrial nacional. Seu objetivo político-econômico era dotar o
Brasil de certa autonomia diante do capital internacional, mesmo que a ele não se opusesse
de modo pleno. Na verdade, a intenção de Vargas era encontrar autonomia de modo que o
Estado nacional não perdesse o controle frente ao capital internacional.
Apesar de a proposta agradar diversos setores
da sociedade, Vargas não conseguia concretizar seu
Nesse sentido,
programa. Os principais motivos foram a escassez a greve de 1953
de capital nacional disponível, assim como a pouca marcou a mudança
disposição dos Estados Unidos em ampliar o envio de de direcionamento
recursos ao Brasil. Sem o apoio externo e sem a possi-
político de Vargas
bilidade de investimento interno, Vargas direcionou
sua atenção para as reivindicações dos trabalhadores
para sua aliança com
em busca de apoio político. os trabalhadores.
Dessa maneira, o governante passou a se distanciar dos dois grupos que se opunham às
suas posições políticas e econômicas:
•  os militares e;
•  a imprensa.
Na imprensa, um inimigo destacava-se – Carlos Lacerda. Os principais ataques de La-
cerda eram dados pelas acusações de corrupção que, segundo o jornalista, atingia toda a
administração pública.

CURIOSIDADE
A relação não era apenas conflituosa com a imprensa. Como afirma Alzira Alves de Abreu: “Para divulgar
as realizações de seu governo, Vargas incentivou a criação da Última Hora, jornal inovador, que introduziu
uma série de técnicas de comunicação de massa até então desconhecidas no Brasil.”

164 • capítulo 7
Diante desse cenário, Vargas cada vez mais buscava apoio nas classes CONCEITO
trabalhadoras. O ministro do Trabalho, João Goulart, apresentou uma
proposta de aumento de 100% do salário mínimo. A imprensa atacou Populista
fortemente o governo, acusando a medida de populista e voltada para o O termo populismo tem sido utiliza-
atendimento equivocado de demandas da população, resultando, daí, a do para designar a política getulista e
demissão de João Goulart. de outros governos latino-americanos
Essa reação de Vargas foi, entretanto, meramente política. Na como o peronismo e o cardenismo. As
data simbólica de 1º de maio, ele mesmo autorizou o aumento do principais características seriam a pre-
salário mínimo em 100%. Com essa medida, Vargas consagrava sua sença de um líder que manipularia as
aliança com os trabalhadores e reforçava, dia a dia, sua imagem de massas e de outro uma massa que se
Vargas como o “pai dos pobres”. Contudo, por outro lado, essa me- deixaria manipular.
dida fortaleceu as ações dos antigetulistas que passaram a pedir a
intervenção dos militares.
Houve maior polarização dos diversos setores da sociedade. De um CURIOSIDADE
lado os partidários de Vargas, de outro, os antigetulistas. Após o aten-
tado da Rua Tonelero, Vargas estava com uma imagem extremamente O atentado da Rua Tonelero
fragilizada, tanto entre a população, quanto em relação aos grupos po- Ocorreu na noite de 5 de agosto de
líticos que possuíam posturas radicalmente contrárias. Vargas se suici- 1954, quando Carlos Lacerda levou um
dou em 24 de agosto de 1954, gerando imensa comoção nacional. Esse tiro no pé e seu segurança pessoal, Ru-
gesto político teve um efeito profundo em relação aos seus opositores, ben Vaz, foi assassinado. Gregório For-
obrigados a assumir uma postura defensiva. tunato, segurança de Vargas, foi o man-
dante. Esse evento teve impacto direto
As análises históricas consideram que o suicídio de Vargas retardou no suicídio do então presidente.
a tomada do poder pelos militares em mais de dez anos. O suicídio foi
um gesto político de profundo impacto na vida social do país.

O industrialismo de JK
Conforme vimos, o suicídio de Getúlio Vargas marcou o fim de sua presen-
ça física no âmbito da política; contudo, não representou o fim da influên-
cia de sua personalidade no destino do país. A partir da década de 1930,
houve uma profunda mudança no que diz respeito às bases do desenvol-
vimento, ao modelo econômico adotado, à participação do Estado na eco-
nomia e ao controle POPULAÇÃO RESIDENTE, POR SITUAÇÃO DO DOMICÍLIO — BRASIL — 1940/2000
sindical e social.
237,7

250
O gráfico ao lado
200
Milhões de habitantes

mostra o crescimen-
138

150
to da população em
111

100
80,4

espaços urbanos des-


52,1
41,1
38,8

38,6

50
33,2

31,3

35,8

de a década de 1940.
31,8
28,3

18,3

16,3
12,9

A progressiva am- 0
1940 1950 1960 1970 1980 1990 2000 2050*
pliação da concentra- Urbana Rural *Projeção da ONU

ção populacional nos Fonte: Tendências demográficas, 2000. IBGE, 2001

capítulo 7 • 165
CURIOSIDADE espaços urbanos foi fruto de uma série de fatores e não pode ser expli-
cada facilmente. Contudo, essa mudança está profundamente atrela-
Venceram as eleições da às mudanças iniciadas no governo Getúlio Vargas e nas alterações
O movimento 11 de novembro foi um feitas por Juscelino Kubitschek.
contragolpe militar, liderado pelo Ge-
neral Lott, para garantir que Juscelino Juscelino Kubitschek e João Goulart, respectivamente presidente e
Kubitschek assumisse a presidência da vice-presidente, venceram as eleições por meio de uma coligação en-
República que havia conquistado por tre o PSD e o PTB. Entretanto, não foi tão simples alcançarem seus
meio de votação nas urnas. cargos. Houve a tentativa de um golpe militar que impediria que Jus-
celino assumisse a presidência da República, mas o mesmo fracassou.

CURIOSIDADE Após assumir a presidência, a ênfase de seu governo foi a questão da


infraestrutura econômica e o desenvolvimento do país. A promessa era a
Desenvolvimentismo de desenvolvimento de 50 anos em cinco. A estrutura técnico-industrial
Proposição econômica que considerava já estava montada e era uma das principais heranças do governo Vargas.
a intensificação da industrialização, con-
dição indispensável para que os países O governo de JK ficou conhecido como o governo da estabilidade e do
em desenvolvimento, então chamados desenvolvimento. Muitas mudanças ocorreram tanto no que se refere à
de Terceiro Mundo, conseguissem alcan- área econômica quanto no plano da cultura. A estabilidade política foi
çar o desenvolvimento dos países do Pri- conseguida por meio da aliança política entre dois grandes partidos da
meiro Mundo. A industrialização ocorre- época: PSD/PTB. Muitos ponderam que JK possuía um espírito conci-
ria sob o comando do Estado, associado liador e capaz de contornar crises políticas com habilidade. Ele criou o
ao capital privado nacional e estrangeiro. Conselho do Desenvolvimento e apresentou o seu Plano de Metas.

IDEIA CURIOSIDADE
Como sugestão, assista ao filme: Plano de Metas
Os anos JK – uma trajetória política. Impulsionado por um ideal desenvolvimentista, ele estipulou 30 metas para acabar
Direção: Silvio Tendler. Produção: Terra com os gargalos de crescimento da economia do país. A 31º meta seria a metassín-
Filmes. Brasil, 1980. 110 min., son., col., tese, ou seja, a construção de uma nova capital para o país — Brasília.
35mm.
Sinopse: O filme aborda a História do
Brasil — a eleição de JK, o nascimento ATENÇÃO
de Brasília, o sucessor Jânio Quadros
que renúncia, a crise política, o golpe Importante destacar que o Programa de Metas de JK foi elaborado com base em
militar e a cassação dos direitos polí- estudos da economia brasileira, realizados desde a década de 1940, e tinham por
ticos de Juscelino. O foco é a trajetó- objetivo eliminar os “pontos de estrangulamento” da economia brasileira.
ria política de Juscelino Kubitschek, o
“presidente bossa nova”, popular entre Para que o programa de metas fosse desenvolvido com maior ve-
os artistas, que propunha aceleração locidade e precisão, JK criou o que ficou conhecido como uma ad-
no desenvolvimento do País rumo à ministração paralela, estabelecendo novos canais burocráticos que,
modernidade e a ocupação de um lu- dentro da legalidade, tentava evitar a morosidade típica da máquina
gar entre as potências mundiais. administrativa tradicional, de forma a possibilitar a concretização do
Programa de Metas.

166 • capítulo 7
Assim, existiam os chamados grupos executivos de trabalho, dota- CONCEITO
dos de autonomia orçamentária e liberdade para contratar o pessoal ne-
cessário ao desenvolvimento da Meta a ser realizada. Instituto Superior de Estudos
Veja abaixo os grupos criados e os seus respectivos anos: Brasileiros (Iseb)
Para os intelectuais do Iseb, o Brasil só
GRUPO ANO DE CRIAÇÃO poderia ultrapassar sua fase de subde-
senvolvimento pela intensificação da in-
Grupo executivo da indústria automobilística (Geia) 1956
dustrialização, baseada em uma política

Geicon, da indústria naval 1959 nacionalista capaz de levar à emancipa-


ção e à plena soberania. Contudo, essa
Geimape, de maquinaria pesada 1959 política nacionalista não deveria evitar a
cooperação nacional, mas utilizá-la a fa-
A questão automobilística era central nos planos de JK, visto que a in- vor do desenvolvimento da nação.
tegração rodoviária era um tema estrutural da organização e da integra-
ção nacional por meio da unidade nacional promovida pelas rodovias.
CURIOSIDADE
Essas propostas tiveram o protagonismo de um órgão criado pelo
governo: o Instituto Superior de Estudos Brasileiros (Iseb), vinculado Instituto Superior de Estudos
ao Ministério da Educação e Cultura. O Iseb pode ser considerado Brasileiros (Iseb)
o órgão ministerial mais importante do projeto “nacional-desenvolvi- Foi um órgão criado em 1955, vinculado
mentista”. Como afirma a historiadora Alzira Alves de Abreu, o grupo ao Ministério de Educação e Cultura, do-
de intelectuais que o criou tinha como objetivos o estudo, o ensino e tado de autonomia administrativa, com li-
a divulgação das ciências sociais, voltados à análise e à compreensão berdade de pesquisa, de opinião e de cá-
crítica do Brasil para a promoção do desenvolvimento nacional. tedra, destinado ao estudo, ao ensino e à
divulgação das ciências sociais. O Insti-
Também é criado no período (1959), a Superintendência do Desen- tuto funcionou como núcleo irradiador de
volvimento do Nordeste — Sudene. A institucionalização dessa superin- ideias e tinha como objetivo principal a
tendência foi uma forma de intervenção no Nordeste de modo a promo- discussão em torno do desenvolvimen-
ver e coordenar o desenvolvimento da região. Importantíssimo destacar tismo e, a princípio, a função de validar
que a criação da Superintendência envolveu a definição geográfica do a ação do Estado, durante o governo de
que se compreendida como Nordeste e que estariam submetidos à ação Juscelino Kubitschek.
governamental: os estados do Maranhão, Piauí, Ceará, Rio Grande do Foi extinto após o golpe militar de 1964.
Norte, Paraíba, Pernambuco, Alagoas, Sergipe, Bahia, mas também par-
te de Minas Gerais (região do Polígono das Secas).
O crescimento da diferença entre o Nordeste e o Centro-Sul do CURIOSIDADE
Brasil fez com que, mesmo com a industrialização, houvesse a neces-
sidade de intervenção direta do Estado por meio da conjunção entre Sudene
planejamento e investimento. Como causa imediata da criação do ór- A Sudene, a partir de 1964, passou a ser
gão deve-se citar a seca de 1958, que aumentou o desemprego rural e incorporada pelo Ministério do Interior, e
o êxodo da população. sua desativação ocorreu em 2001, em
virtude de escândalos de corrupção e fa-
A meta com maior destaque e considerada a principal por JK foi vorecimento de grupos da região.
Brasília. A construção da nova capital representava um antigo so-
nho já inscrito no imaginário político da nação brasileira. Em 19 de

capítulo 7 • 167
CONCEITO setembro de 1956 foi sancionada a lei nº 2.874, que criou a Companhia
Urbanizadora da Nova Capital — Novacap.
Companhia Urbanizadora da
Nova Capital — Novacap
A mudança da capital era um sonho an- Para a construção de Brasília foi feito um concurso que teve como
tigo para o país. Ela teve seus primór- vencedor o projeto de Lúcio Costa e Oscar Niemeyer. A vitória desse
dios na elaboração dada por Francisco projeto mostrava a intenção do Brasil em se modernizar. Entretanto,
Adolfo de Varnhagen, o Visconde de não foi só isso: representava também um projeto voltado para a ocu-
Porto Seguro, em seu livro, de 1877: A pação do Oeste brasileiro. Enquanto o litoral expressava o passado
questão da Capital: Marítima ou inte- colonial e já era densamente populoso, o Oeste ensejava o futuro,
rior? Isso porque, o Rio de Janeiro, ao com base em um modelo de exportação de produtos primários. Ha-
longo do período imperial e do período via uma política territorial que teria uma peça essencial de sua pro-
republicano, foi palco de inúmeras re- posta na região.
voltas, o que colocava permanentes in- De toda forma, o processo de construção de Brasília foi vagaroso
terrogações acerca desse espaço como e demandou muita energia, já que necessitava estar concluído ain-
capital da nação. Além disso, o governo da no mandato de JK. E assim foi em 21 de abril de 1960. Enquan-
JK parecia viver uma encruzilhada entre to o Juscelino fechava solenemente os portões do Palácio do Catete,
o Brasil urbano e o Brasil rural. A nova transformando-o em Museu da República, Brasília passava a ser a
capital seria a marca definitiva da supe- nova capital do país.
ração do atraso que se difundira no país.
CURIOSIDADE
No que concerne às relações internacionais, o governo JK vivenciou um aconteci-
mento de importância capital para a redefinição de rumos nas relações entre a Amé-
rica Latina e os EUA: a Revolução Cubana. A partir dela, o governo norte-americano
implementou a Doutrina de Segurança Nacional baseada em um papel ativo dos
militares no cenário político interno dos diversos países da região.
Nesse sentido, por meio de apoio logístico, financeiro e de apoio político internacio-
nal, os EUA facilitaram o surgimento de Estados Civil-Militares em diversos países da
região como o Brasil, Chile, Argentina e Uruguai.

Com relação ao último ano do governo JK, pode-se dizer que ele vi-
venciou experiências limítrofes. Se, por um lado, havia a euforia com
a inauguração de Brasília, por outro, a população estava cada vez mais
insatisfeita com os altos preços cobrados pelos produtos básicos em
mercados e feiras livres.

Como pondera Célia Maria Leite Costa, em seus textos acadêmicos


sobre a eleição de 1960, Jânio Quadros propunha o esgotamento do
estilo político de improvisação do presidente Juscelino Kubitschek, o
que se somou à crise econômica. Desse modo, nas eleições de 1960,
a UDN e seu candidato Jânio Quadros saíram vitoriosos.

168 • capítulo 7
O curto governo Jânio Quadros CURIOSIDADE
A campanha eleitoral do presidente Jânio Quadros investiu na relação di- Vassourinha
reta entre o candidato Jânio e os populares. São famosas as músicas sobre "Varre, varre, vassourinha..." foi o jingle
a “vassourinha” de Jânio para afastar a corrupção, seus comerciais volta- da campanha "varre, varre vassourinha,
dos para o ataque à inflação e seus lemas como “Jânio Quadros vem aí...” varre a corrupção", mote usado por Jânio
O resultado foi a vitória expressiva de Jânio Quadros na campanha elei- Quadros, candidato nas eleições para a
toral de 1960, com a maior margem já conseguida em todas as votações já presidência do Brasil em 1960. Compos-
realizadas até aquele momento. Jânio Quadros era um político carismático, ta por Maugeri Neto, a música possuía
que conseguia “falar a língua do povo” com imensa facilidade. Por diversas apenas uma estrofe, que repetida duas
vezes foi chamado de excêntrico por parte de seus adversários políticos. vezes, continha os seguintes versos:
Contudo, apesar dessa excentricidade aparente, Jânio Quadros Varre, varre, varre vassourinha!
implementou um estilo de governo profundamente conservador. Al- Varre, varre a bandalheira!
gumas ações foram centrais para a construção de sua imagem como Que o povo já 'tá cansado
um conservador. De sofrer dessa maneira
No plano interno, optou por ampliar o controle aos sindicatos, re- Jânio Quadros é a esperança desse povo
primiu manifestações de estudantes e protestos de camponeses no Nor- abandonado!
deste. De modo contrário, e de forma surpreendente, foi um dos impul- Jânio Quadros é a certeza de um Brasil,
sionadores da política externa independente proposta pelo Ministério moralizado!
de Relações Exteriores de seu governo. Alerta, meu irmão!
Os dilemas a resolver, entretanto, eram muitos. O governo JK havia Vassoura, conterrâneo!
deixado um pesado legado de contas públicas a pagar referentes ao pro- Vamos vencer com Jânio!
grama de metas e, especialmente, em relação à Brasília. Em busca de A música inicia como Vassourinha, fre-
superar a crise financeira, Jânio Quadros pôs em prática uma política de vo do Carnaval de Recife desde 1910 e
austeridade fiscal que se tornou impopular. uma das mais conhecidas marchinhas,
Essas medidas foram: executada para encerrar o baile. Para re-
•  congelamento de salários; forçar a ideia de combate à corrupção na
•  restrição ao crédito e; política , o jingle emprega o som de uma
•  corte de subsídios federais para investidores internos. vassoura várias vezes.
Houve um impacto direto na desvalorização do cruzeiro, o que am-
pliou a insatisfação de operários e empresários. Além disso, tentou li-
mitar o envio de remessas de recursos para o exterior, o que feriu os in- CURIOSIDADE
teresses da classe dominante de empresários e estrangeiros no Brasil.
Ernesto “Che” Guevara
CURIOSIDADE Ernesto Guevara de la Serna, conhecido
como "Che" Guevara (Rosário, 14 de ju-
A imprensa, mais uma vez liderada por Carlos Lacerda, ampliou suas críticas ao nho de 1928 — La Higuera, 9 de outu-
governo de Jânio. O cenário tornou-se muito grave quando Jânio resolveu tomar bro de 1967) , foi um político, jornalista,
uma medida ousada para a época: agraciou Ernesto “Che” Guevara com uma con- escritor e médico argentino-cubano.
decoração, quando este último passou pelo Brasil após uma conferência em Punta Guevara foi um dos ideólogos e co-
del Este, no Uruguai. mandantes que lideraram a Revolução
Cubana (1953-1959) que levou a um
Guevara, ao lado de Fidel Castro, foi uma das figuras mais importan- novo regime político em Cuba. Ele par-
tes do movimento nacionalista que promoveu a Revolução Cubana, que ticipou até 1965, da reorganização do
já havia migrado para os rumos socialistas. Esse foi o pretexto para um Estado cubano, desempenhando vários

capítulo 7 • 169
altos cargos da sua administração e de caloroso discurso de Carlos Lacerda contra Jânio, dizendo o então presi-
seu governo, principalmente na área dente propunha que no Brasil acontecesse o mesmo que em Cuba.
econômica, como presidente do Banco Praticamente no dia seguinte, Jânio Quadros renunciou ao cargo de
Nacional e como Ministro da Indústria, presidente do Brasil. A versão que se popularizou foi a de que Jânio to-
e também na área diplomática, encarre- mou essa medida com a intenção de ampliar a mobilização popular e,
gado de várias missões internacionais. consequentemente, retornar ao poder com a autonomia suficiente para
Convencido da necessidade de esten- governar de forma mais centralizada.
der a luta armada revolucionária a todo o Contudo, seus planos foram em vão. Não houve a manifestação po-
Terceiro Mundo, Che Guevara impulsio- pular esperada. Em sua carta-renúncia, Jânio ponderou que “forças ter-
nou a instalação de grupos guerrilheiros ríveis” o teriam forçado a renunciar. Não identificou precisamente quais
em vários países da América Latina. seriam essas forças, mas deviam ser associadas ou a alguns políticos da
UDN e militares, no âmbito interno, ou ao capital norte-americano, no
âmbito externo.
IDEIA
CURIOSIDADE
Como sugestão, assista ao filme:
Jango. Direção: Silvio Tendler. Produção: Revolução Cubana
Caliban Produções Cinematográficas. A Revolução Cubana foi um movimento armado e guerrilheiro que culminou com a
Brasil, 1984. 115 min., son., col., S/I. destituição do ditador Fulgencio Batista de Cuba, no dia 1 de janeiro de 1959, pelo
Sinopse: Rodado em 1984, Jango re- Movimento 26 de Julho liderado pelo então revolucionário Fidel Castro .
trata a carreira política de João Belchior O termo Revolução Cubana é genericamente utilizado como sinônimo do castrismo,
Marques Goulart, presidente deposto governo autoritário, mas que em sua origem notabilzou-se pela implantação de uma
pelos militares em 1º de abril de 1964. série de programas assistencialistas sociais e econômicos, notadamente alfabeti-
Na obra, Tendler procurou mostrar a po- zação e acesso a saúde universal. O apoio soviético depois do movimento armado
lítica brasileira da década de 60, desde enfatizou seu caráter anticapitalista e também antiamericano para posteriormente
a candidatura de Jânio Quadros, pas- alinhar o país com o chamado bloco socialista. Todavia, essas características ficaram
sando pelo golpe militar, as manifes- claras apenas depois da revolução, não sendo o seu foco inicial, segundo alguns
tações da UNE e os exílios. O filme é historiadores, que alegam que o rumo comunista foi tomado após a oposição dos
narrado pelo ator José Wilker e conta Estados Unidos ao golpe de Fidel Castro.
com depoimentos de Magalhães Pinto,
Aldo Arantes, Raul Ryff, Afonso Arinos
e Francisco Julião, entre outros.
João Goulart e o golpe militar de 1964
A renúncia de Jânio Quadros, ao deixar vago o cargo de presidente da Re-
pública, abriu uma séria crise nos rumos políticos do Brasil. O cargo de-
veria ser ocupado pelo seu vice-presidente João Goulart. No entanto, João
Goulart, mais conhecido como Jango, em sua trajetória política, havia
sido partidário das propostas getulistas, tendo sido, inclusive, ministro
do trabalho do segundo governo Vargas e vice-presidente de Juscelino.
Para as forças conservadoras, Jango era identificado como comu-
nista. No momento da renúncia de Jânio Quadros, Jango se encontrava
em visita à China comunista, o que o identificava ainda mais como um
simpatizante do regime comunista. Enquanto os grupos conservadores
se articularam para impedir a posse de Jango, os grupos legalistas, espe-

170 • capítulo 7
cialmente no Rio Grande do Sul, se articularam para possibilitar a posse CONCEITO
de Jango. O Brasil chegou perto de uma guerra civil.
Parlamentarista
Os EUA, temendo que o Brasil seguisse o Parlamentarismo é um sistema de go-
exemplo cubano, fez pressão diplomática verno no qual o chefe de Estado não é

para que houvesse uma solução de eleito diretamente pela sociedade civil
votante. O Governo responde politica-
compromisso.
mente perante o Parlamento, sendo que
este último pode retirá-lo quando julgar
Nesse sentido, Jango assumiu o cargo de presidente por meio de uma
necessário por meio de um pedido for-
solução de compromisso proposta pelo deputado Plínio Salgado. Ele
mal ao Congresso.
apresentou ao Congresso Nacional uma emenda constitucional esta-
Esse regime durou de setembro de
belecendo o regime parlamentarista no Brasil.
1961 até janeiro de 1963, momento
em que houve um plebiscito para avaliar
Após esmagadora vitória do presidencialismo (com a queda do parla- se Jango deveria ou não continuar exer-
mentarismo), Jango tornou a possuir poderes plenos como presidente da cendo a presidência de forma regulada
República. O período de parlamentarismo havia sido um período de caráter pelo Parlamento.
transitório, mas em que houve uma ampla organização de forças populares
como a criação, em 1962, do Comando Geral dos Trabalhadores (CGT).
Esse retorno ao presidencialismo dava a Jango maior legitimidade CONCEITO
para passar novas propostas de incremento econômico e político à so-
ciedade brasileira. Esses anos foram de polarização política. Presidencialismo
De um lado havia os conservadores que criticavam quaisquer pla- É um sistema de governo no qual o
nos que incorporassem por demais medidas nacionalistas e que tives- presidente da república é chefe de
sem em seu centro uma preocupação com as massas, e; do outro lado governo e chefe de Estado. Como
havia aqueles que acreditavam que somente medidas econômicas de chefe de Estado, é ele quem escolhe
caráter nacionalista poderiam fazer com que o país saísse da situação os chefes dos grandes departamen-
de crise em que vivia. tos ou ministérios. Juridicamente, o
Em princípio, as medidas econômicas propostas por João Goulart não presidencialismo se caracteriza pela
conseguiram agradar nem a um grupo nem a outro. Gradualmente, foi separação dos poderes: Legislativo,
sendo gerado um profundo descontentamento na população brasileira Judiciário e Executivo.
com os rumos econômicos do país, visto que a inflação continuava alta.
Na busca por sanar os problemas apresentados, Jango propôs o
Plano Trienal. Havia uma conjuntura de radicalização ideológica que CURIOSIDADE
motivou um profundo sentimento de anticomunismo nos militares e
o Plano não deu resultados imediatos. Goulart, cada vez mais afastado Plano Trienal
dos setores conservadores, ia se afastando também dos grupos políti- Voltado para a melhoria das contas pú-
cos ideológicos vinculados ao nacionalismo econômico, que traziam blicas, foi criado o Plano Trienal de De-
propostas mais radicais de reforma agrária. senvolvimento Econômico e Social, em
Diante desse cenário, João Goulart propôs o que ficou conhecido dezembro de 1962, que procurou esta-
como o Comício das Reformas (ou Comício da Central), que reuniu cer- belecer regras para o controle do déficit
ca de 150 mil pessoas. Esse comício foi a expressão da orientação nacio- público e refreamento do crescimento
nal-reformista adotada pelo presidente João Goulart com o intuito de inflacionário.
mobilizar as massas contra o fato de suas propostas terem sido bloque-
adas no Congresso nacional.

capítulo 7 • 171
CURIOSIDADE CURIOSIDADE
Marcha da Família com Deus e Comício das Reformas
pela Liberdade O Comício da Central, ou Comício das Reformas, foi um comício realizado no dia 13
Foi o nome comum de uma série de ma- de março de 1964 na cidade do Rio de Janeiro, na Praça da República, situada em
nifestações públicas ocorridas entre 19 frente à Estação da Central do Brasil. Cerca de 150 mil pessoas ali se reuniram sob
de março e 8 de junho de 1964 no Bra- a proteção de tropas do I Exército, unidades da Marinha e Polícia, para ouvir a palavra
sil em resposta à "ameaça comunista" do Presidente da República, João Goulart, e do governador do Rio Grande do Sul,
representada pelo discurso em comício Leonel Brizola. As bandeiras vermelhas que pediam a legalização do Partido Comu-
realizado pelo então presidente João nista Brasileiro e as faixas que exigiam a reforma agrária foram vistas pela televisão,
Goulart em, 13 de março daquele mes- causando arrepios nos meios conservadores.
mo ano. Na data, o mandatário assinou
dois decretos, permitindo a desapropria-
ção de terras numa faixa de dez quilô- OBJETIVOS
metros às margens de rodovias, ferro-
vias e barragens e transferindo para a Esse comício foi decisivo para os rumos políticos da nação. Foi depois dele que co-
União o controle de cinco refinarias de meçou a resposta dos grupos conservadores nacionais. As manifestações contrárias
petróleo que operavam no país. Além ao comício se seguiram no país. As mais célebres foram aquelas conhecidas como
disso, prometeu realizar as chamadas “Marcha da Família com Deus e pela Liberdade”. Elas foram organizadas por setores
reformas de base, uma série de mudan- do Clero e de entidades femininas e congregou setores da classe média contra o
ças administrativas, agrárias, financeiras chamado “perigo comunista” e favoráveis à deposição do presidente.
e tributárias que feriam os interesses da
classe média e da elite, já que haveria As marchas provocaram um sentimento de apoio aos setores conser-
distribuição de terras e bens. vadores nacionais. Esse cenário mostrava que João Goulart tinha sérios
opositores nos setores conservadores.
No entanto, o estopim para a mudança ficou conhecido como a Re-
volta dos Marinheiros. Foi o momento em João Goulart apoiou o grupo
de marinheiros, contra a decisão do Ministro da Marinha, Sílvio Mota,
de prender aqueles que participaram da reunião comemorativa do se-
gundo aniversário da Associação dos Marinheiros e Fuzileiros Navais,
entidade considerada ilegal. Jango ganhou apoio dos fuzileiros, o que
demonstrou a polarização dentro das Forças Armadas.
A crise no interior do grupo militar contribuiu para o início do golpe.
Após o ocorrido com os marinheiros e sob os ecos da Marcha da Família, os
militares, com o apoio diplomático dos EUA, passaram a organizar o golpe.

CURIOSIDADE
Revolta dos Marinheiros
A Revolta dos Marinheiros, ou Motim dos Barcos do Tejo, foi um levantamento mili-
tar ocorrido a 8 de Setembro de 1936, protagonizada por centenas de marinheiros,
muitos deles pertencentes à Organização Revolucionária da Armada (ORA), uma
estrutura ligada ao Partido Comunista Português que visava a solidariedade com
as forças republicanas da Espanha e culminou num intenso trabalho de agitação e
manifestações de descontentamento diversos.

172 • capítulo 7
A bordo dos navios Armada Portuguesa NRP Dão, NRP Bartolomeu Dias e NRP Afon- IDEIA
so de Albuquerque com o objetivo de os levar para o mar e fazer um "ultimatum" ao Go-
verno exigindo o fim das perseguições a militares da Armada e a libertação dos presos. Como sugestão, assista ao filme:
O Governo teve conhecimento dos preparativos e, ao fim de algumas horas, conse- O dia que durou 21 anos. Direção:
guiu dominar a revolta, ordenando a intervenção da aviação contra os navios suble- Camilo Tavares. Produção: N/I. Brasil,
vados. O resultado foi a morte de 10 marinheiros, centenas de presos e a expulsão 2012. 77 min., son., col., S/I.
da Marinha dos elementos ligados às ideias democráticas e comunistas. Sinopse: Este documentário mostra a
Alguns dos detidos foram os primeiros presos enviados para Colónia Penal do Tarra- influência do governo dos Estados Uni-
fal, para onde partiram a 29 de Outubro daquele ano. dos no Golpe de Estado no Brasil em
1964. A ação militar que deu início a
ditadura contou com a ativa participa-
Em 31 de março de 1964, com a movimentação das tropas do General ção de agências como CIA e a própria
Olímpio Mourão Filho, no estado de Minas Gerais em direção ao Rio de Casa Branca. Com documentos secre-
Janeiro, deflagrou-se o golpe militar. tos e gravações originais da época, o
filme mostra como os presidentes John
F. Kennedy e Lyndon Johnson se or-
RESUMO ganizaram para tirar o presidente João
Goulart do poder e apoiar o governo do
Após a Segunda Guerra Mundial, o Brasil optou pelo alinhamento ideológico marechal Humberto Castelo Branco.
com os EUA.
A constituição de 1946 propunha o fim do Estado Novo e a consolidação dos valo-
res democráticos.
Vargas permaneceu no jogo político, mesmo após o fim do Estado Novo. Sua reelei-
ção em 1951 foi fundamental para a continuação do modelo do nacional-estatismo.
Com o suicídio de Vargas e a presidência de JK, houve o investimento em um mode-
lo desenvolvimentista de economia.
A alta inflação deu a oportunidade da ascensão de Jânio Quadros que não se esta-
bilizou no governo.
Com João Goulart (Jango), o Brasil viveu um período de radicalização política e ide-
ológica que levou ao golpe de 1964.

ATIVIDADE
Questão 1
Enem 1999
“Os 45 anos que vão do lançamento das bombas atômicas até o fim da União Sovi-
ética, não foram um período homogêneo único na história do mundo. [...] Dividem-se
em duas metades, tendo como divisor de águas o início da década de 1970. Apesar
disso, a história deste período foi reunida sob um padrão único pela situação inter-
nacional peculiar que o dominou até a queda da URSS.”
(HOBSBAWM, E. J. Era dos extremos. São Paulo: Cia das Letras, 1996)
O período citado no texto e conhecido por “Guerra Fria” pode ser definido como
aquele momento histórico em que houve:

capítulo 7 • 173
a) Corrida armamentista entre as potências imperialistas europeias ocasionando a Primeira Guerra Mundial.
b) Domínio dos países socialistas do sul do globo pelos países capitalistas do Norte.
c) Choque ideológico entre a Alemanha Nazista/União Soviética Stalinista, durante os anos 30.
d) Disputa pela supremacia da economia mundial entre o Ocidente e as potências orientais, como a China
e Japão.
e) Constante confronto das duas superpotências que emergiam da Segunda Guerra Mundial.

Questão 2
Enem 2008
O Plano de Metas aplicado durante o governo de Juscelino Kubitschek, entre 1956 e 1960, visava a esti-
mular o desenvolvimento econômico brasileiro.
Pela leitura do quadro, conclui-se que um dos objetivos alcançados pelo Plano de Metas foi:
a) Integração das redes de transporte rodoferroviário.
b) Modernização das técnicas de extrativismo mineral.
c) Ampliação dos investimentos na infraestrutura industrial.
d) Expansão dos capitais privados na prospecção de petróleo.

Questão 3
Uespi 2012
Sob a presidência de Juscelino Kubitschek (1955-1961), a nação brasileira assistiu à criação de Brasília,
— considerada, pela UNESCO, patrimônio cultural da humanidade — e vivenciou:
a) Momentos de euforia resultantes, em boa parte, da política desenvolvimentista de incremento à indústria
nacional e aumento do poder aquisitivo da classe média.
b) Importante papel político para a aproximação dos países da América Latina com os Estados Unidos, em
vista da estratégica posição do Brasil no Atlântico Sul.
c) Época de forte repressão política ao operariado e descaso para com a interiorização do desenvolvimento
econômico.
d) Um período predominantemente liberal, em termos econômicos, o que pode ser exemplificado pelo
início da construção da Companhia Siderúrgica Nacional.
e) Uma forte recessão econômica em que a indústria nacional não deu sinais de crescimento e o poder
aquisitivo da classe média caiu.

174 • capítulo 7
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
BERNSTEIN, S. Los regímenes políticos del siglo XX. Para uma historia comparada del mundo contemporâneo.
Barcelona: Ariel Historia, 2005.
CARVALHO, J. M. Cidadania no Brasil. O longo Caminho. 3. ed. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2002.
GASPARI, E. A ditadura escancarada. São Paulo: Companhia das Letras, 2002.
____________. A ditadura derrotada. O sacerdote e o feiticeiro. São Paulo: Companhia das Letras, 2003.
GOMES, Â. C. A invenção do trabalhismo. Vértice; Rio de Janeiro; JUPERJ, 1988.
LUSTOSA, I. A História do Brasil explicada aos meus filhos. Rio de Janeiro: Agir, 2007.
NAVES, S. C. Da bossa nova à tropicália. 2. ed. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2001.
____________. O violão azul: modernismo e música popular. 1. ed. Rio de Janeiro: Fundação Getúlio Vargas, 1998.
PRESOT, A. Celebrando a Revolução: as marchas da Família com Deus pela liberdade e o golpe de 1964. In:
ROLLEMBERG, D.; QUADRAT, S. A Construção Social dos Regimes autoritários. Legitimidade, consenso e
consentimento no século XX. Brasil e América Latina. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2010.

capítulo 7 • 175
18
Olhos grandes
sobre mim — Da
ditadura à abertura
lenta e gradual

eduardo ferraz felippe


8 CURIOSIDADE
Olhos grandes sobre mim — Da
ditadura à abertura lenta e gradual

Conforme vimos, o golpe de Estado que derrubou o governo do pre-


sidente João Goulart instalou o regime militar no Brasil. Ao longo de
Escola Superior de Guerra (ESG)
todo o período conhecido como ditadura militar, o Brasil foi governador
Escola Superior de Guerra (ESG) – Lo-
por cinco generais presidentes: Castelo Branco (1964-1967); Costa e
cal de formação intelectual de grande
Silva (1967-1969); Emilio Médici (1969-1974); Ernesto Geisel (1974-
parcela dos militares do alto oficialato
1979) e João Figueiredo (1979-1985).
das Forças Armadas no Brasil. Ela foi
criada nos moldes do War College nor-
Antes de iniciarmos a compreensão do Estado jurídico que sustentou o
te-americano e congregava civis e mili-
binômio “segurança e desenvolvimento” durante o período da ditadura ci-
tares voltados para pensar as particula-
vil-militar, cabe fazermos uma análise do conceito de ditadura militar e
ridades do fenômeno da guerra.
as críticas que atualmente vem recebendo dos autores contemporâneos.

CURIOSIDADE
As primeiras alterações na Constituição
Atos institucionais
Os atos institucionais, segundo o portal Quando ocorreu o golpe militar em 31 de março de 1964, os militares de-
do planalto nacional que versa sobre a clararam que a sua presença seria apenas provisória, com o intuito de evi-
legislação brasileira, foram normas edi- tar radicalizações políticas que cor-
tadas pelo presidente da República ou ressem o risco de levar o Brasil para
O processo,
pelo Comandante em chefe do Exérci- os rumos da Revolução Cubana. contudo, não ficou
to, que não necessitavam da aprovação Os golpistas mantiveram o Con- pouco tempo no
do Congresso Nacional e que se faziam gresso aberto, ainda que ao preço de poder, e sim 21 anos
aplicar imediatamente, modificando a numerosas cassações, por entende-
impostos à nação.
Constituição. Tiveram validade entre rem que a melhor forma de manter
1964 e 1979, sendo que, atualmente, a ordem era a sua própria permanência no poder. Por isso, após o golpe
não estão mais em vigor. militar, a questão passava a ser como montar o aparelho jurídico que
sustentaria os militares no poder.
O primeiro governo militar de Castelo Branco montou uma estrutura
político-jurídica autoritária e criou novas instituições econômicas que
auxiliaram tanto no modo de melhor equilibrar o binômio segurança e
desenvolvimento quanto abriu caminho para as repressões que ocorre-
riam nos governos subsequentes.
Além disso, procurou equilibrar a presença nos grupos governantes
tanto de membros da Escola Superior de Guerra (ESG), como o próprio
presidente Castelo Branco, quanto de políticos ligados às tropas.
A montagem de uma nova estrutura político-jurídica foi o fato mais
destacável do período do governo Castelo Branco. Essa nova estrutura
baseou-se em atos institucionais, conhecidos como AI.
O mais conhecido, devido ao caráter repressor e violento, foi o Ato

178 • capítulo 8
Institucional nº 5 (AI-5). O primeiro deles, o AI-1, começou a montagem CURIOSIDADE
de uma estrutura que vigoraria até, pelo menos, 1979, quando começou
o processo de anistia. AI-1
O AI-1, publicado em 1964, dispôs o
ATENÇÃO seguinte: “Modifica a Constituição do
Brasil de 1946 quanto à eleição, ao
A partir do AI-1 houve a primeira modificação na Constituição brasileira. Ela perma- mandato e aos poderes do Presidente
necia em vigor, contudo, manietada pelas modificações estabelecidas pelo primeiro da República; confere aos Comandan-
ato institucional. Essas primeiras modificações diziam respeito imediatamente ao pa- tes-em-chefe das Forças Armadas o
pel do presidente da República e da votação que o elege. Com base no AI-1 ocorre- poder de suspender direitos políticos e
ram outros atos institucionais vinculados a propostas que, cada vez mais, propunham cassar mandatos legislativos, excluída
um maior fechamento político ao regime. a apreciação judicial desses atos; e dá
outras providências”.
O AI-2, publicado em 1965, dava a exata medida do que estava ocor-
rendo no cenário político brasileiro. AI-2
A Constituição continuava tendo validade, mas houve uma modifi- AI-2 – “Modifica a Constituição do Brasil
cação com relação ao processo legislativo e à suspensão de garantias in- de 1946 quanto ao processo legislativo,
dividuais. As modificações foram ocorrendo de forma paulatina com o às eleições, aos poderes do Presiden-
objetivo de dar à população a sensação de que as ações militares de mo- te da República, à organização dos três
dificação da Constituição, por meio dos atos institucionais, ocorriam Poderes; suspende garantias de vitali-
dentro da legalidade jurídica. ciedade, inamovibilidade, estabilidade e
Já o AI-3, publicado em 1966, era um ataque imediato à possibilidade a de exercício em funções por tempo
de que os direitos políticos fossem exercidos de forma plena. Esse ato certo; exclui da apreciação judicial atos
institucional estava voltado a tornar indireto o regime de votação daque- praticados de acordo com suas normas
les que exerciam cargos eletivos em dimensões municipais e estaduais. e Atos Complementares decorrentes; e
Todos esses atos foram importantes para consolidar a intenção de dá outras providências”.
Castelo Branco de criar o aparato jurídico-institucional para os anos
seguintes do regime militar brasileiro. O AI-2 e o AI-3 possibilitaram AI-3
prerrogativas autoritárias que foram AI-3 – “Dispõe sobre eleições indire-
conferidas ao Executivo e excluíram
O novo presidente, tas nacionais, estaduais e municipais;
as questões deles decorrentes da após essas leis, permite que Senadores e Deputados
apreciação do Judiciário. passou a gozar Federais ou Estaduais, com prévia li-
Em 1967, foi promulgada uma de um poder cença, exerçam o cargo de Prefeito de
nova Constituição que englobaria capital de Estado; exclui da apreciação
praticamente
também a Lei de Imprensa e uma Lei judicial atos praticados de acordo com
de Segurança Nacional.
ilimitado. suas normas e Atos Complementares
A oposição passou a denunciar a “institucionalização da ditadura” decorrentes.”.
no país.

ATENÇÃO
A Constituição de 1967 reuniu todos os decretos outorgados pelo regime militar desde o
seu início. As críticas ferozes da oposição eram legítimas e explicitavam uma característica
do regime militar brasileiro: a necessidade de institucionalizar como forma de controle.

capítulo 8 • 179
IDEIA Houve uma gradual radicalização, em termos de fechamento polí-
tico do regime, até o Ato institucional n°5 (AI-5). Esse ficou conhecido
Como sugestão, assista ao filme: pela memória do regime militar como o ato mais violento, pois dizia res-
Uma noite em 67. Direção: Ricardo Ca- peito à liberdade de manifestação individual.
lil, Renato Terra. Produção: Videofilmes. Antes de compreendê-lo, cabe considerar o cenário de manifesta-
Brasil, 2010. 85 min., son., col., S/I. ções que grassavam no país, após o golpe de 1964.
Sinopse: Final do III Festival da Música
Popular Brasileira da TV Record, 21 de
outubro de 1967. Entre os candidatos, Resistência e Repressão
aos principais prêmios figuravam Chico
Buarque de Holanda, Caetano Veloso, A vida política no Brasil passou por uma gradual destruição, ao longo de
Gilberto Gil e Mutantes, Roberto Carlos, todo o período militar. A possibilidade de que os indivíduos exercitas-
Edu Lobo e Sérgio Ricardo, protagonis- sem seus direitos políticos como parte da cidadania no país estava cada
ta da célebre quebra da viola no palco. vez mais distante após a outorga dos atos institucionais.
Com imagens de arquivo e apresenta- Apesar de vivenciarmos um regime de ditadura militar, houve rea-
ções de músicas hoje clássicas, o filme ções de todos os tipos contra o regime em vigor. Elas foram um crescen-
registra o momento do tropicalismo, os do, desde o instante em que ocorreu o golpe militar de 1964, tendo sido
rachas artísticos e políticos na época da aplainadas por meio da violência possibilitada pelo AI-5.
ditadura e a consagração de nomes que Os motivos de oposição gravitavam em torno de dois motivos cen-
se tornaram ídolos. trais: a severa política de controle das finanças públicas e a suspen-
são das liberdades democráticas. As manifestações contrárias ao re-
gime foram plurais. Elas possuíram um espectro amplo que vai desde
o cinema novo de Glauber Rocha, célebre cineasta brasileiro, até as
peças do teatro do grupo “Opinião”.
As apresentações do Teatro Opinião englobavam peças de protesto e
de resistência, configurando um espaço de estudo e de difusão da dra-
maturgia nacional e popular. O grupo de teatro opinião foi fruto de um
grupo de artistas ligados, inicialmente, ao Centro Popular de Cultura da
UNE (CPC) com o objetivo específico de se tornar um espaço de resistên-
cia estética ao que ocorria no regime militar no período.
Foi produzido o show musical Opinião que, inicialmente, contava
com Zé Keti e Nara Leão, que depois foi substituída por Maria Bethânia
e que teve a direção de Augusto Boal. Desde o seu início, o “Opinião”
abriu espaço para shows de samba e deu espaço para a arte popular faci-
litando a disseminação da cultura periférica.

EXEMPLO
Muitas foram as peças e os textos desse estudo, como Moço em Estado de Sítio, de
Oduvaldo Vianna Filho, Dr. Getúlio, Sua Vida e Sua Glória, de Ferreira Gullar e Dias
Gomes e O Último Carro, de João das Neves.

Talvez o principal veículo de crítica social tenha sido a música. A


existência dos festivais da canção criou o espaço para que toda a revolta
contrária à ditadura militar fosse canalizada para a expressão artística.

180 • capítulo 8
Muitos foram os festivais da canção, contudo o festival da canção de IDEIA
1967 foi um dos que mais se destacou. Nesse festival houve um debate con-
ceitual claramente anunciado entre a música de protesto dos verdadeiros Como sugestão, assista ao filme:
defensores da música popular brasileira em sua explícita associação com a Cabra-cega. Direção: Toni Venturi. Pro-
vertente política e aqueles vinculados ao iê-iê-iê do rock internacional. dução: Olhar Imaginário. Brasil, 107
min., son., col., S/I.
CURIOSIDADE Sinopse: Aborda a resistência armada
contra a ditadura brasileira nos anos
Festival da canção de 1967 1960 e 1970. O filme se inicia ao som
Esse foi o festival que lançou uma das músicas mais famosas de Caetano Veloso “Ale- de MPB dos festivais, com imagens de
gria, Alegria”. Teve como seu vencedor “Ponteiro”, de Edu Lobo. Essa foi uma das primei- arquivo. Cavalaria passa, polícia esbra-
ras aparições do lendário grupo Os Mutantes, que cantaram com Gilberto Gil a música veja, indignados marcham. Em meio à
“Domingo no Parque” — uma mistura que unia guitarra elétrica e violão para falar de correria, dá para ver no rosto das pes-
temas do interior do país. soas o orgulho de se opor ao regime.
Mas algumas cenas resgatadas da TV
Os festivais da canção tiveram como patrocinador e rede televisiva a Tupi, hoje de domínio público, mostram
TV Record. Desde o programa O Fino da Bossa, estrelado por Elis Regina, o corpo já sem vida de Ernesto "Che"
ocorria o patrocínio e incentivo de artistas diversos. Guevara (1928-1967) escarafuncha-
Apesar do teor político das letras de autores como Chico Buarque, do na Bolívia. Assim, desde o primeiro
Milton Nascimento e Caetano Veloso, a crítica social não poderia es- momento a utopia da revolução popular
tar explícita. As letras deveriam utilizar metáforas e mensagens cifra- entra em choque com a realidade da re-
das de modo que não corressem o risco de cair nas malhas da censura pressão. Na história, o militante Thiago
da patrulha política. (Medeiros), baleado no peito no dia em
que viu a sua companheira e amada ser
EXEMPLO capturada pela polícia, precisa passar
uns dias no “aparelho” de seu mentor,
O exemplo mais famoso dessa nova estética musical foi a música “Apesar de Mateus (Jonas Bloch). Lá recupera as
Você”, de Chico Buarque. Quando foi lançada, essa canção teve uma imediata forças e aguarda novas diretrizes. Sozi-
associação ao tema do amor e da perda. Contudo, aproximadamente depois de nho, fechado — e silencioso por medo
dois meses, as autoridades políticas passaram a recolher exemplares do disco de ser denunciado — no apartamento,
com a acusação de que a música incitava os ouvintes contra o regime militar que lhe resta esperar. Mas ficar afastado da
estava instaurado. Outro exemplo que merece ser destacado é a música “Cálice”, ação, ouvir notícias de camaradas mor-
composta pelo mesmo Chico Buarque e Milton Nascimento, com a sugestiva troca tos, começa a lhe fazer mal. No deses-
entre cale-se e cálice, que faziam referência imediata ao silenciamento provocado pero Thiago refletirá sobre a sua vida e
pelo controle de expressão proposto pelo regime. o seu engajamento.
Outra grande inovação foi o surgimento o Tropicalismo. Formado por Caetano Velo-
so, Gilberto Gil, Mutantes, Gal Costa, Rogério Duprat, foi um coletivo que conseguiu
expressar profundas inovações na música brasileira entre 1967 e 1968. A proposta
estética da Tropicália era fugir das posições nacionalistas e esquerdistas que gras-
savam nos domínios da música popular brasileira e que definiam o que poderia ser
concebido como “qualidade musical”.

Os jovens eram os protagonistas das manifestações e dos festivais.


Essa não era apenas uma característica do Brasil, pelo contrário, as ma-
nifestações de maio de 1968 representavam toda a indignação da juven-

capítulo 8 • 181
tude contrária aos reacionários franceses. Além disso, vivia-se um período de reinvenção
das limitações morais entre os jovens o que anunciava um período marcado por transgres-
sões sexuais, assim como novas experiências entre os jovens franceses e, especialmente,
norte-americanos.

O Ato Institucional n°5


Quando a exceção vira regra. Uma década de arbítrio sem freio.

Dentre todos os atos institucionais do Brasil, aquele que é mais lembrado até hoje é o AI-5.
A singularidade desse ato é clara: ele possibilitou a mais violenta legislação para coibir os
atores políticos de expressar sua opinião em toda a História do Brasil.
A ascensão dos escalões da linha dura dentro do exército, com o General Costa e Silva,
sinalizou que haveria a radicalização do controle da liberdade de expressão dentro do regi-
me político da ditadura militar.

O AI-5: “Suspende a garantia do habeas corpus para determinados crimes; dispõe sobre os
poderes do Presidente da República de decretar: estado de sítio, nos casos previstos na
Constituição Federal de 1967; intervenção federal, sem os limites constitucionais; suspen-
são de direitos políticos e restrição ao exercício de qualquer direito público ou privado; cas-
sação de mandatos eletivos; recesso do Congresso Nacional, das Assembleias Legislativas
e das Câmaras de Vereadores; exclui da apreciação judicial atos praticados de acordo com
suas normas e Atos Complementares decorrentes; e dá outras providências”.

De modo conciso, essa é a forma que o texto está explicitado


O texto do ato
no site do planalto.
A suspensão do habeas corpus dava a possibilidade de que os
institucional é
militares e sua política passassem a perseguir qualquer indiví- duro.
duo. Além disso, permitia ao presidente aglutinar em si diversos poderes que, nem mesmo
na fase anterior da ditadura foram tão amplos, especialmente decretar estado de sítio e
intervenção federal fora dos limites constitucionais. Agora, as ações presidenciais concen-
travam poderes quase que ilimitados e estavam acima da Constituição.
Como o presidente era a representação do desejo dos militares, a perseguição política
começou a se acentuar logo após a decretação do AI-5. O endurecimento político levou à
prisão de inúmeros militantes políticos e à expulsão de muitos artistas do país, como Cae-
tano Veloso e Gilberto Gil.
Após o AI-5, houve um recrudescimento da prisão, tortura e morte de discordantes do
regime político instaurado pelos militares.
Grande parte da intelectualidade fugiu do país e teve seus direitos políticos cassados.
O ano de 1968 marcou a polariza-
Muitos brasileiros foram para o ção política tanto dos concordantes
exílio como forma de sobreviver com o regime político quanto daque-
aos anos de chumbo. les que pregavam a mudança política
radical do país.

182 • capítulo 8
REFLEXÃO
Se os militares necessitavam manter órgãos de repressão política era porque toda a população estava insatis-
feita? Todos atacavam o regime militar? Não havia grupos em concordância com o regime além dos militares?

Essas perguntas realçam o fato de que o regime militar possuía uma gama de apoiadores que
tinham suas premissas reforçadas em virtude da força do regime político militar em criar consen-
so, especialmente por meio da propaganda política e do Serviço Nacional de Informações (SNI).
Na verdade, a censura aos órgãos de imprensa era
As violações aos
violenta, de modo que a sociedade não ficava sabendo
do que ocorria nos porões da ditadura.
direitos humanos
A supressão da garantia do habeas corpus possibilitou dos presos políticos
ao regime militar fazer desaparecer pessoas que a ele se eram constantes.
opunham. Até hoje o destino de inúmeros presos durante o regime continua desconhecido.
Durante o governo Médici, apesar da dura repressão política, da tortura instituciona-
lizada e da total falta de liberdade de expressão, o governo fez questão de se aproveitar do
vigor do povo brasileiro.

EXEMPLO
O espetáculo escolhido para o destaque do povo foi o futebol, em especial a Copa do Mundo de 1970. Na
final contra o time da Itália, vencida pelo Brasil, foi exaltada a força do futebol brasileiro e foram cunhadas
algumas propagandas, que associavam o futebol ao presente político do país como no slogan “Ninguém
segura esse país”.

COMENTÁRIO
O lema “Brasil — ame-o ou deixe-o” simbolizava a apropriação da pátria pelos órgãos de segurança.
Amar o Brasil significava concordar com tudo que era feito. Para quem não concordasse, restava o exílio,
a prisão, a tortura ou a morte.

O terceiro presidente militar, Emílio Médici, responsável pelo período mais violento da
repressão, valorizou sua imagem como “homem do povo” ao ressaltar permanentemente
nos meios de comunicação seu apreço pelo futebol. O então presidente fazia questão de
parecer um torcedor como qualquer outro, apenas apaixonado por futebol.

Médici comemora com a taça


Ao mesmo tempo, houve uma intensa exploração midiática da O clima
vitória da seleção brasileira por parte dos órgãos de apoio ao
interno era de
governo militar no Brasil.
Muitos grupos de resistência partiram para ações armadas e confrontação
para a guerrilha, que foi combatida com grande aparato militar. política.

capítulo 8 • 183
A esta altura, a censura aos meios de comunicação era constante, não havia mais qual-
quer garantia individual constitucional ou respeito aos direitos fundamentais. Para quem
não cresceu no estado democrático de Direito, é difícil imaginar o grau de limitação impos-
to ao pensamento, ao sentimento e aos sonhos de quem cresceu naquela época.
As universidades eram vigiadas e qualquer manifestação de opinião contrária ao governo
militar era perigosa, pois a espionagem e a delação cresceram como ervas daninhas, tornan-
do todos silenciosos e temerosos.
Um elemento de aglutinação da população em torno das propostas do governo militar
foi o conhecido “milagre econômico”. No período entre 1967 e 1973, justamente os anos
mais duros da perseguição política e da vitória do Brasil na Copa do Mundo de 1970, o índi-
ce de crescimento da economia brasileira chegou a níveis nunca antes vistos.
O chamado “milagre” foi fruto da conjunção do lento desenvolvimento de condições
específicas da economia brasileira, ao mesmo tempo em que ocorria um cenário interna-
cional de disponibilização de capitais para empréstimos, que foram contraídos em grande
volume gerando uma dívida externa que levou diversas gerações para ser quitada.
No que se refere às condições específicas da economia brasileira, o período militar
aproveitou-se de uma estrutura econômica baseada na industrialização que já vinha sendo
montada desde o período do primeiro governo Vargas e acelerada no período JK.

A repressão política – Os “Anos de Chumbo”


O aparelho de repressão no Brasil permitia ao poder militar combater as dissidências, in-
clusive reprimindo a guerrilha, cujo auge correspondeu ao período da chamada “Guerrilha
do Araguaia” (1972-1975), em que perto de uma centena de militantes do PCdoB mantive-
ram um foco guerrilheiro esmagado pelo Exército.
Era a fase final de um processo de enfrentamento que começou com a chamada
Guerrilha do Caparaó, localizado na divisa de Espírito Santo e Minas Gerais, sob a lide-
rança do MNR — Movimento Nacional Revolucionário.
O meio urbano não permaneceu imune às ações mais ousadas da guerrilha. Mesmo com
a recusa da direção do Partidão em empreender a luta armada, muitos opositores do regime
militar não aguentavam a falta de “uma luz no fim do túnel” e arriscavam o enfrentamento.

EXEMPLO
Nomes como Carlos Marighella e Carlos Lamarca são exemplares desse momento de guerrilha urbana
realizando ataques a bancos e sequestrando representantes diplomáticos de países capitalistas como
EUA, Alemanha Federal, Japão e Suíça. Principalmente no Governo Médici, por meio da OBAN e dos DOI-
Codis, houve o silenciamento, não apenas de parcela significativa da militância, mas também da população
globalmente falando.

O governo militar reprimiu a luta armada que, em parte inspirada no modelo cubano,
acreditava ser possível deflagrar pelas armas um processo revolucionário.

184 • capítulo 8
A abertura lenta e gradual IDEIA
O governo Geisel (1974-1979) iniciou o mandato prometendo um re- Como sugestão, assista ao filme:
torno gradual à democracia. Durante a campanha política para a presi- O ano em que meus pais saíram de
dência, o presidente Geisel teve de enfrentar concorrentes como Ulisses férias. Direção: Cao Hamburger. Pro-
Guimarães e Barbosa Lima Sobrinho, candidatos do MDB. dução: Gullane Filmes. Brasil, 104 min.
O candidato vencedor, Ernesto Geisel, do partido da Arena, anunciou Son., col., 35mm.
o II Plano Nacional de Desenvolvimento (II-PND), em busca de equali- Sinopse: Com 12 anos, Mauro (Michel
zar o crescimento econômico com a contenção da onda inflacionária. Joelsas) já sabe que a profissão de
Contudo, as reformas propostas pelo governo não surtiram o efeito es- arqueiro é a mais solitária dentro de
perado. A economia brasileira não conseguia construir as condições campo. A responsabilidade é tremen-
próprias para o seu autossustento, assim como sofreu de forma dura os da. Transcorre 1970, ano de Copa, e os
efeitos da crise do petróleo. pais de Mauro saem de férias. Esse é
No cenário internacional, os tempos não eram dos melhores. As o eufemismo para dizer que a ditadura
potências internacionais sofriam um momento de retração, causados forçou o casal a se esconder. O garo-
especialmente pelos impactos da crise do petróleo, mas também pelo to é deixado em São Paulo com o avô.
período de congelamento da Guerra Fria. Tudo isso contribuiu negati- O que os pais não esperavam é que o
vamente para o desenvolvimento da economia do país, pois diminuiu o velho falecesse de repente. Mauro está
fluxo de capitais que geralmente era utilizado como forma de acumula- prestes a experimentar um pouco da
ção e posterior investimento em diversas regiões do país. responsabilidade — e da solidão — de
ser um goleiro nesse jogo da tenebrosa
ATENÇÃO e incerta época da repressão.

A tentativa do Governo Geisel de manter o crescimento do país, mesmo após o co-
nhecido “milagre econômico” ocorrido durante o governo Médici, trouxe como efeito COMENTÁRIO
econômico o aumento da dívida externa e a hiperinflação. Tudo isso intensificou
os problemas monetários, deixando um legado de recessão econômica para o seu Ulisses Guimarães
sucessor, João Figueiredo. Mesmo tendo a clareza de que não se
tornaria presidente, pois o processo era
Em termos de sua intervenção na infraestrutura do país, Geisel foi ficcional, Ulisses não deixava de acusar
um desenvolvimentista. o governo militar de opressão política e
de explicitar os erros em termos de polí-
EXEMPLO tica econômica.

Como exemplo, podem ser citadas as obras do metrô em São Paulo e Rio de Janeiro
e a busca por novas fontes de energia como o álcool. Além disso, Geisel foi aquele
que construiu grande parte da usina hidrelétrica de Itaipu e, em 1975, assinou o
acordo nuclear com a República Federal da Alemanha sob a alegação de garantir
a autonomia do país na área de energia, embora, na prática, apenas uma das oito
usinas planejada tenha sido posta em pleno funcionamento.

A imagem da ditadura, durante o governo Geisel, sofreu mais um duro


golpe. Em São Paulo, setores mais radicais do regime militar cometeram
atos de extrema violência. O mais conhecido foi o assassinato do jornalista
Vladimir Herzog, nos corredores do II Exército de São Paulo (DOI-CODI).

capítulo 8 • 185
Segundo as fontes Todavia, as fotos do incidente, coletadas logo após a
oficiais da época, chegada da polícia, estranhamente mostravam seu pes-
coço amarrado a um lençol e com os pés ao chão.
o jornalista teria se
Por ser um jornalista da grande imprensa e em virtu-
matado na prisão. de de seu assassinato não ter sido motivado por nenhum
fato de grande relevância, em termos de ação política, a mobilização pública contrária à
ditadura mais uma vez se organizou. Todas as instâncias da sociedade civil se mobilizaram
contra a versão de que Vladimir Herzog havia se suicidado.

EXEMPLO
Um dos exemplos mais significativos desse ato foi a sentença dada pelo juiz que avaliou o caso, Márcio
José de Moraes, no dia 27 de outubro de 1978. Em suas palavras: “Pelo exposto, julgo a presente ação
procedente e o faço para declarar a existência de relação jurídica entre os autores e a ré, consistente na
obrigação desta, indenizar aqueles danos materiais e morais decorrentes da morte do jornalista Vladimir
Herzog, marido e pai dos autores.”

Esse é um dos fatos que até hoje mais ficaram na memória do período da ditadura mi-
litar no Brasil e que significaram um instante de mobilização pública contra o governo de
Ernesto Geisel, ainda na segunda metade da década de 1970.
Ao longo de seu governo, Geisel teve de se equilibrar entre a pressão exercida pelos par-
tidários da linha dura no exército e daqueles membros da sociedade civil que queriam uma
abertura completa e o retorno imediato à democracia. Por isso, seu governo, por vezes, pa-
recia ser um tanto quanto contraditório.
Em alguns momentos, explicitava em ações seu desacordo com os grupos mais linha
dura do exército, como a extinção do AI-5 e o retorno do habeas corpus. Devido o seu con-
trole rígido do regime, não gerou o imediato retorno da democracia, mas pavimentou o
caminho para o processo de anistia dos exilados políticos.
Em termos da política externa do governo Geisel, evitou-se o alinhamento incondicio-
nal frente ao governo norte-americano, inclusive optando pela não renovação do acordo
militar com os EUA em 1977. Reconheceu alguns governos socialistas, como o da China, o
que ampliou as críticas de alguns militares da linha dura do governo. Contudo, foi sucedi-
do por um militar indicado por ele, o que manteve o país com uma linha de abertura políti-
ca interna para a democracia que continuaria o lema implementado por Geisel de abertura
“lenta e gradual” para a democracia.
Aquele que sucedeu Geisel foi João Figueiredo (1979-1985), da Arena. Ao assumir o go-
verno, João Figueiredo afirmou que iria reconduzir o Brasil à redemocratização. A imagem
do governo militar estava manchada tanto pelas permanentes denúncias de que não eram
respeitados os Direitos Humanos no país e pela permanência da prática de tortura, quanto
devido à grave situação eonômica vivenciada pela população.
Já no governo norte-americano de Carter (1977-1981), as divergências com os EUA leva-
ram ao afastamento dos americanos em relação à ditadura no Brasil, apontado, junto com
outras ditaduras sul-americanas, como violador dos direitos humanos.
A crise do petróleo favoreceu o aumento da taxa de juros no mercado internacional, o que
levou à dificuldade de obtenção de crédito do país no mercado externo. O impacto direto veio

186 • capítulo 8
do aumento da dívida externa do país que chegou à marca dos 100 bilhões de dólares em
1982, levando o Brasil a solicitar emprétimo ao Fundo Monetário Internacional (FMI).
Novamente o economista Delfim Netto foi chamado para dar conta da situação econô-
mica. Ao propor o Plano Nacional de Desenvolvimento III (PND III), Delfim Netto buscava
aquecer a economia, porém o resultado foi modesto e o governo Figueiredo apenas conse-
guiu um fraco desempenho do PIB o que gerou imediata recessão econômica.
As reformas políticas foram aquelas que mais destacaram o governo João Figueiredo.
Em princípio, o governo propôs uma reforma que extinguisse o sistema bipartidário que
grassava no governo.
Poderiam existir novos partidos que marcariam o Dessa maneira,
cenário político nacional e que representariam opções deixavam de existir
oriundas de desejos diversos da sociedade brasileira. apenas o ARENA e
Em 1980, após a aprovação da lei de pluripartida-
o MDB.
rismo, foi fundado o Partido dos Trabalhadores (PT).
O manifesto do PT foi o documento que deu base a um partido classista, socialista e de
luta, um partido sem patrões, só de trabalhadores. A emergência desses novos partidos
políticos vinha atender a desejos de grupos específicos, como os trabalhadores da re-
gião do ABC paulista.
Cabe considerar um outro elemento do tenso jogo político do período. Apesar do
pluripartidarismo explicitar maior abertura para a existência de diversos partidos polí-
ticos e maior liberdade, na verdade ele terminava por esconder uma articulação política
importante por parte do governo militar. Como o MDB era muito conhecido e agregava
em si toda a massa de descontentes com o regime, o pluripartidarismo veio com o in-
tuito de criar diversas legendas políticas de modo a fragmentar a oposição. Nesse caso,
haveria uma identificação não entre os eleitores e a oposição ao regime político, mas
entre os eleitores e aqueles que partidos que pudessem satisfazer os interesses políti-
cos mais imediatos desses eleitores.
Outra medida de fundamental importância foi a anistia dos presos políticos. Lei da
Anistia é a denominação popular da lei nº 6.683, promulgada em de 28 de agosto de 1979,
após uma ampla mobilização social.
A descrição da lei propunha o seguinte:

Art. 1º — É concedida anistia a todos quantos, no período compreendido entre 2 de setem-


bro de 1961 e 15 de agosto de 1979, cometeram crimes políticos ou conexos com estes,
crimes eleitorais, aos que tiveram seus direitos políticos suspensos e aos servidores da Ad-
ministração Direta e Indireta, de fundações vinculadas ao poder público, aos Servidores dos
Poderes Legislativo e Judiciário, aos Militares e aos dirigentes e representantes sindicais,
punidos com fundamento em Atos Institucionais e Complementares.

A mobilização social para a anistia foi imensa. O Comitê Brasileiro pela Anistia (CBA)
comandou a campanha pela “Anistia Ampla, Geral e Irrestrita” que foi coordenada por um
comitê formado por intelectuais, artistas, jornalistas, políticos progressistas, religiosos de
vários credos, sindicalistas e estudantes, no final dos anos 1970. A mobilização gerou tanto
manifestações nas ruas como também ampla campanha que englobava um profundo apa-
rato de propaganda política.

capítulo 8 • 187
Tanto a Lei de Anistia quanto o fim do bipartidarismo político foram centrais para as
mudanças políticas implementadas pelo governo Figueiredo rumo à democratização do
país. Todavia, essas medidas não eram consenso entre os diversos grupos políticos do país.
No âmbito das alas mais radicais do militarismo, havia ampla camada de descon-
tentes que passaram a promover ataques e atentados nas cidades do Brasil, como ex-
plodir bancas de jornal, com o intuito de chamar a atenção para o descontentamento
de parcela dos militares.

EXEMPLO
Entre todos os atentados, um teve relevância destacada: o atentado ao Riocentro. Assim ficou conhecido
o frustrado atentado ao Pavilhão do Riocentro, em 1981, feito por militares descontentes com os rumos
de abertura política. O atentado não atingiu seus objetivos, pois a bomba explodiu dentro do carro em que
elas estavam presentes.

Ao mesmo tempo, esse atentado ficou conhecido como um dos principais equívocos
já realizados pelos grupos dos militares, fossem eles linha dura ou aqueles partidários
da abertura para a democratização seguindo o caminho da institucionalização proposta
pelos militares.
Os primeiros anos da década de 1980 foram marcados, na verdade, por um amplo movi-
mento que mudou os rumos da política no Brasil. Por meio da proposta jurídica do deputado
Dante de Oliveira (PMDB — Mato Grosso), as “Diretas Já”, como ficou conheci­da a proposta,
foi um dos movimentos de maior participação política da História do Brasil. O movimento
propunha eleições diretas para presidente da República e teve amplo apoio dos partidos do
PMDB e do PDS, assim como de setores diversificados da população brasileira.
O ano de 1984 foi todo marcado pela campanha
Uma figura de destaque das “Diretas Já”. Por um lado, ocorria novamente a
do movimento das presença da população nos espaços públicos bus-
“Diretas Já” foi Ulysses cando um objetivo político comum.
Guimarães, apelidado Outros nomes também ganharam destaque,
como Luís Inácio Lula da Silva, Osmar Santos, en-
de “senhor Diretas”.
tre outros.
Dois comícios foram emblemáticos. O primeiro ocorrido no Rio de Janeiro, em 10 de
abril de 1984, e o segundo, ocorrido em São Paulo, em 16 de abril — em ambos os casos a
mobilização popular foi intensa reunindo grande multidão.
No dia 25 de abril, o Congresso se reuniu para votar a emenda Dante de Oliveira e a
possibilidade de que a votação voltasse a ser direta para presidente da República ainda
naquele ano.
A população não pôde estar presente à votação. Os militares reforçaram com tanques
a segurança da parte externa do Congresso Nacional temendo manifestações. Apesar de
todas as manifestações, a proposta não foi aprovada em Congresso para aquele ano.
Com o fim de toda mobilização e o resultado negativo, restava ao povo brasileiro acom-
panhar a eleição indireta para o cargo de presidente da República. Os dois candidatos eram
Paulo Maluf (do PDS) e Tancredo Neves (do PMDB). Tancredo Neves conseguiu a maior vo-
tação e derrotou Paulo Maluf.

188 • capítulo 8
RESUMO
Após o golpe de 1964 se iniciou o período de ditadura militar, marcado por intensa repressão política aos
grupos divergentes do regime.
Apesar da supressão dos direitos políticos, os anos sobre o regime militar foram anos de profunda criativi-
dade artística tanto no âmbito da música, quanto no teatro e artes plásticas.
A ditadura militar governava especialmente por atos institucionais.
Após o AI-5, que suprimiu as garantias individuais e o direito ao habeas corpus, ampliou-se a repressão
política aos descontentes com o regime, com a institucionalização da perseguição política, prisão, tortura
e morte dos dissidentes.
Muitos brasileiros foram exilados e perderam seus direitos políticos.
Entre 1969 e 1973 a taxa de crescimento econômico do Brasil chegou a níveis altíssimos, com alavan-
cagem em empréstimos internacionais, o que fez com que esse período ficasse conhecido como “Milagre
Brasileiro”.
A partir do governo de Ernesto Geisel, iniciou-se uma abertura “lenta, gradual e segura”.
Houve intensas manifestações populares a favor da anistia dos exilados e presos políticos, que resultaram
na Lei da Anistia.
Houve queda no crescimento econômico do Brasil desde 1973, culminando com os difíceis anos 1980 na
economia brasileira nos quais a dívida externa levou o Brasil a depender do Fundo Monetário Internacional.
Houve forte mobilização popular a favor das “Diretas Já”, mas a Emenda Dante de Oliveira não passou no
Congresso dominado pelo regime militar.
O governo de João Figueiredo foi sucedido por um governo civil, porém eleito de forma indireta.

ATIVIDADE
Questão 1
Enem 2012
Diante dessas inconsistências e de outras que ainda preocupam a opinião pública, nós, jornalistas, estamos
encaminhando este documento ao Sindicato dos Jornalistas Profissionais no Estado de São Paulo, para
que o entregue à Justiça; e da Justiça esperamos a realização de novas diligências capazes de levar à
completa elucidação desses fatos e de outros que porventura vierem a ser levantados.
Em nome da verdade. In: O Estado de São Paulo, 3 fev. 1976. Apud. FILHO, I. A. Brasil, 500 anos em do-
cumentos. Rio de Janeiro: Mauad, 1999.
A morte do jornalista Vladimir Herzog, ocorrida durante o regime militar, em 1975, levou a medidas como o
abaixo-assinado feito por profissionais da imprensa de São Paulo. A análise dessa medida tomada indica a:
a) Certeza do cumprimento das leis.
b) Superação do governo de exceção.
c) Violência dos terroristas de esquerda.
d) Punição dos torturadores da polícia.
e) Expectativa da investigação dos culpados.

Questão 2
UFF
"Brasil, ame-o ou deixe-o" foi um dos célebres 'slogans' do regime militar, em torno de 1970, época em que

capítulo 8 • 189
o Governo Médici divulgava a imagem do "Brasil Grande" e proclamava o "Milagre Econômico" que faria do
país uma grande potência. Assinale a opção que melhor caracteriza a política econômica correspondente
ao chamado "Milagre".
a) Fusão do capital industrial e do bancário, gerando monopólios capazes de impor preços inflacionários,
dos quais resultaram o crescimento econômico e o aumento do mercado consumidor nos grandes centros
urbanos.
b) Desenvolvimento de obras de infraestrutura, a exemplo de hidrelétricas e rodovias, com base na pou-
pança nacional e no investimento de bancos públicos.
c) Crescimento econômico e aquecimento do mercado de bens duráveis ancorados em políticas salariais
redistributivas e na indexação de rendimentos do mercado financeiro.
d) Elevados investimentos no setor de bens de capital e na indústria automobilística combinados a uma
vigorosa agricultura comercial de médio porte.
e) Incentivo à entrada maciça de capitais estrangeiros combinada ao arrocho salarial, resultando em eleva-
dos índices de crescimento econômico e inflação baixa.

Questão 3
UFMG
A reforma partidária, que implantou o pluripartidarismo no Brasil, no governo Figueiredo, tinha por objetivo.
a) consolidar os resultados das eleições de 1974 que deram ampla vitória ao partido do governo, o PDS.
b) levar os liberais, concentrados no PP, para engrossar as fileiras do PRS e fortalecer o apoio ao governo.
c) quebrar o monopólio que o MDB exercia na oposição fragmentando-o em inúmeros partidos e evitando
a sua ascensão ao poder.
d) revigorar o PDT para que esse pudesse enfrentar o PT nas eleições majoritárias.
e) utilizar os antigos militantes da UDN nos quadros da ARENA para que essa, fundindo-se com o PDS,
vencesse as eleições para governadores.

Questão 4
Mackenzie
O ano de 1968 foi crucial. O movimento estudantil se espalhou por todo o país, sofrendo violenta repressão
do governo. Diante das pressões da sociedade, o governo militar reagiu, decretando:
a) A deposição do Presidente João Goulart, cujo modelo populista de governo dava sinais de esgotamento.
b) O Ato Institucional nº 5, que conferia ao Presidente Costa e Silva poderes totais para reprimir as opo-
sições.
c) A Abertura Democrática, lenta e gradual, que reconduzia o país à democratização.
d) A Anistia, que embora não fosse irrestrita, permitiu o retorno de muitos exilados políticos.
e) A solução parlamentarista, que possibilitou controlar a grave crise institucional em que vivia o país.

GABARITO
Questão 1 – E
Questão 2 – E
Questão 3 – C
Questão 4 – B

190 • capítulo 8
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
BERNSTEIN, S. Los regímenes políticos del siglo XX. Para uma historia comparada del mundo contempo-
râneo. Barcelona: Ariel Historia, 2005.
CARVALHO, J. M. Cidadania no Brasil. O longo Caminho. 3. ed. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2002.
GASPARI, E. A ditadura escancarada. São Paulo: Companhia das Letras, 2002.
____________. A ditadura derrotada. O sacerdote e o feiticeiro. São Paulo: Companhia das Letras, 2003.
GOMES, A. C. A Invenção do trabalhismo. Rio de Janeiro: Vértice; JUPERJ, 1988.
LUSTOSA, I. A História do Brasil explicada aos meus filhos. Rio de Janeiro: Agir, 2007.
NAVES, S. C. Da bossa nova à tropicália. 2. ed. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2001.
________________. O violão azul: modernismo e música popular. 1. ed. Rio de Janeiro: Fundação Getúlio
Vargas, 1998.
PRESOT, A. Celebrando a Revolução: as marchas da Família com Deus pela liberdade e o golpe de 1964.
In: ROLLEMBERG, D.; QUADRAT, S. A construção social dos regimes autoritários. Legitimidade, consenso
e consentimento no século XX. Brasil e América Latina. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2010.
ROLLEMBERG, D.; QUADRAT, S. Apresentação. In: A construção social dos regimes autoritários. Legi-
timidade, consenso e consentimento no século XX. Brasil e América Latina. Rio de Janeiro: Civilização
Brasileira, 2010.

Site pesquisado:
http://cpdoc.fgv.br/producao/dossies/

capítulo 8 • 191
19
Eu organizo o movimento
— O processo de
redemocratização do
Brasil

marcelo machado costa lima


9 CONCEITO
Eu organizo o movimento — O processo
de redemocratização do Brasil

O retorno paulatino à normalidade


Redemocratizar
democrática
Redemocratização é o processo de res-
tauração da democracia e do estado de Redemocratizar. Mais uma vez. Há quem considere que melhor seria se
direito em países ou regiões que pas- tivéssemos menos oportunidades de encontrar a expressão “redemo-
saram por um período de autoritarismo cratização” nos estudos de História do Brasil, afinal só se redemocratiza
ou ditadura. A redemocratização pode quem, algum dia, experimentou os benefícios da democracia, mas os
acontecer de maneira gradual, onde o perdeu para os ditadores de plantão.
poder restaura os direitos civis lenta- No decorrer de nossa história tivemos de, algumas vezes, reiniciar a
mente, ou de forma abrupta, como é em busca pelos espaços democráticos perdidos para regimes autoritários
geral o caso quando isso acontece atra- que, no uso inadequado do poder, se utilizaram da violência para reduzir
vés de revoluções. os espaços de participação da cidadania na formação da vontade do Esta-
do. No entanto, se pensarmos pelo lado positivo, ainda bem que sempre
houve a oportunidade de reconquista da democracia e da liberdade.
CONCEITO Entre os historiadores, há alguma divergência de quando ocorreu a
retomada democrática após o Golpe de 1964.
Emenda Constitucional
Há quem entenda que tenha sido em 1979, em razão da promulgação da
Uma Emenda Constitucional é uma mo-
Emenda Constitucional nº 11, que entrou em vigor em 1 de janeiro de 1979,
dificação produzida na Constituição de
e cujo artigo 3º revogava todos os Atos Institucionais e complementares,
um Estado resultando em mudanças
incluindo aí o odioso AI-5.
no seu texto. O processo de alteração
em uma Constituição é bem mais difi-
Outros entendem que o processo só tenha realmente se iniciado com o fim do
cultoso do que aquele observado para
regime militar e o retorno de um regime de liberdades capitaneado por civis, e
se modificar uma lei. Isso é natural, já
isso só ocorreria com a eleição de Tancredo Neves (que acabou não governando,
que a Constituição, como se sabe, é o
como veremos).
documento que possui as normas mais
importantes de um país. No entanto, há ainda uma terceira vertente que entende que essa liberdade civil
almejada somente encontraria bases seguras com o suporte jurídico garantido
pela Constituição de 1988. De toda forma, muitas ações no período entre 1985
e 1989 deixam evidente que o processo de superação do regime ditatorial real-
mente começava a ganhar densidade nesse período.

Nesse sentido, apesar de problemas ainda existentes, houve grandes avanços na


conquista da cidadania e das liberdades públicas, o que nos autoriza a acreditar
que a democracia brasileira avançou e amadureceu no pós-1985 e que não está
condenada a alternar vivências históricas com regimes ditatoriais.

Mais uma vez procurávamos nos reerguer de um período ditatorial,


marcado — como sempre acontece nas ditaduras — por práticas autoritá-

194 • capítulo 9
rias e utilização desproporcional e ilegítima da força. O processo político CONCEITO
da bem-vinda redemocratização se acelerou após as grandiosas manifes-
tações havidas em todo o país pelo movimento das Diretas Já, mesmo que Forma indireta
essas manifestações cidadãs não tenham atingido seu objetivo último. Nas eleições indiretas, as pessoas que
vão exercer mandatos políticos não são
A Emenda Constitucional que permitiria as eleições diretas não foi aprovada (por
eleitas diretamente pelo povo, mas por
poucos votos) por aqueles que tinham o poder de alterar a Constituição e, conse-
um grupo de pessoas a quem é conce-
quentemente, de autorizar a eleição para a escolha do presidente pelo voto direto
dido esse poder de escolha. Ou seja, em
do povo. A verdade é que a população já sinalizara de forma clara que o processo
vez de nós escolhermos as pessoas que
de redemocratização não era uma reivindicação de parte da classe política, mas
supostamente representariam nossas
do povo brasileiro. Assim, o movimento pela redemocratização ganhou as ruas e
vontades, elegemos os intermediários
se tornou irreversível.
que, como representantes nossos, terão
É importante, porém, que A redemocratização é o poder de escolher. Isso quer dizer que,
tenhamos em vista que quan- para manifestar sua vontade, a sobe-
sempre um processo
do se afirma que o país passou rania popular têm que passar por dois
por um processo de redemo- de conquistas árduas e intermediários.
cratização, não podemos ser difíceis, principalmente
otimistas a ponto de achar que para um país que ainda
a democracia se instalou de não tem a democracia CURIOSIDADE
forma instantânea.
enraizada em suas Dissidentes
Entretanto, aos poucos, as
conquistas democráticas foram tradições históricas. São aqueles que divergem das opiniões
sendo alcançadas. É o que tentaremos mostrar a partir de agora. de outrem ou da opinião geral, ou mes-
mo se separam de uma corporação por
essa divergência.
A Era Tancredo... Quer dizer, a Era Sarney

Em 1985, quase um ano após a derrota da Emenda Constitucional que CONCEITO


permitiria o retorno das eleições diretas para o cargo de presidente, o
Brasil elegeu de forma indireta o seu primeiro presidente civil depois de Colégio Eleitoral
21 anos de regime militar: Tancredo Neves, político de reconhecida po- É um órgão formado por um conjunto de
sição de combate à ditadura militar, candidato da Aliança Democrática, eleitores com o poder de um corpo deli-
formada pelo PMDB e pelo PFL. berativo para eleger alguém a um posto
Cabe lembrar que o PFL foi um partido criado a partir de um gru- particular. É muito usado em eleições
po de dissidentes do PDS, que era o partido que, substituindo a an- indiretas.
tiga Arena, concedeu sustentação política ao último presidente mili-
tar, João Figueiredo, no momento em que o país voltou a adotar um
sistema pluripartidário.

Com ampla força no Congresso Nacional, Tancredo Neves foi eleito pelo Colégio
Eleitoral para ser o próximo Presidente da República, após expressiva vitória de
480 votos a favor contra 180 de seu adversário — o candidato do PDS, o então
Deputado Federal, Paulo Maluf, que encontrava forte rejeição até mesmo entre as
alas mais conservadoras da política nacional.

capítulo 9 • 195
CONCEITO Embora a eleição tenha sido indireta, sem a legitimação pelo voto
direto popular, a verdade é que a escolha de Tancredo Neves contou
Regime militar com imenso apoio de uma população esperançosa por novos tempos
José Sarney foi Presidente da Arena e e sedenta por uma contínua abertura democrática. Por essa razão,
um dos parlamentares que votaram con- embora a sua eleição não tenha ocorrido pela via direta, não se pode
tra as eleições diretas. afirmar que não foi legítima, pois foi defendida pela maioria da po-
pulação, em todo o país.

No entanto, na véspera da posse, Tancredo Neves foi internado no hospital, com


problemas sérios de saúde. José Sarney, seu vice, dissidente do PDS e antigo
membro da Arena, assumiu interinamente. Com a morte de Tancredo Neves, fato
que gerou enorme comoção no país, ainda se discutiu se Sarney poderia, pelas
regras constitucionais vigentes, assumir a Presidência da República de forma de-
finitiva. Essa solução efetivamente acabou ocorrendo, principalmente em razão
da necessidade de se evitar qualquer retrocesso no processo de conquistas do
exercício do poder pelas forças políticas civis.

As graduais reconquistas nos campos da


política e das liberdades públicas

Para afastar as naturais desconfianças sobre a sua inegável ligação com


o regime militar, o novo presidente procurou se desvincular das posi-
ções assumidas no passado, buscando demonstrar seu compromisso
com a redemocratização do país.
Para tanto, foram tomadas medidas no decorrer de seu período na
presidência:

Reestabelecimento das eleições diretas para a Presidência da República.

Apoio à legalização de partidos políticos que estavam na clandestinidade, inclu-


sive partidos como PCB e PC do B, cujas ideias de esquerda haviam sido com-
batidas pelo regime militar. Aliás, nesse contexto de reabilitação dos partidos de
esquerda, ocorre, também, a criação do PSB (Partido Socialista Brasileiro).

Retirada gradual dos obstáculos à ampliação das liberdades (de imprensa, de


expressão, de manifestação, entre outras) que, pouco a pouco, vão sendo resga-
tadas e, como veremos mais adiante, serão amplamente protegidas pela Consti-
tuição de 1988.

Retomada da ideia de uma política externa independente, abrindo-se maior diá-


logo com os países da América Latina. Nesse contexto, deve-se ressaltar a apro-
ximação com a Argentina, país com quem tradicionalmente o Brasil mantivera, no
decorrer da sua história, relações distantes e, em alguns momentos, tensas.

196 • capítulo 9
No âmbito das ações administrativas, abertura de maior espaço para debates (in- CURIOSIDADE
clusive com a promoção de algumas ações) para questões até então marginaliza-
das, como, entre outros, reforma agrária, cultura, política urbana e meio ambiente. Plano Cruzado
O Plano Cruzado foi um conjunto de me-
didas econômicas, lançado pelo governo
A economia na Era Sarney — o elo fraco brasileiro, em 28 de fevereiro de 1986,

da corrente com base no decreto-lei nº 2.283, de 27


de fevereiro de 1986, sendo José Sarney
o presidente da República e Dilson Funa-
Se, no âmbito político, o país inegavelmente continuava avançando com ro o ministro da Fazenda. Foi o primeiro
suas reformas democráticas, inclusive iniciando discussões sobre os ru- plano econômico nacional em larga esca-
mos a serem fixados na Constituição que estava por vir, a verdade é que, la desde o término da ditadura militar.
na área econômica, o governo Sarney, por meio de uma série de malfa-
dados planos, foi acumulando fracassos em duas frentes ingratas:
• combater a inflação crescente e; CURIOSIDADE
• atenuar a situação caótica da dívida externa.
O primeiro plano, denominado Plano Cruzado, foi o mais famoso Plano Verão
entre todos aqueles experimentados no período. Seu idealizador foi o O Plano Verão, instituído em 16 de janei-
Ministro Dilson Funaro e foi utilizada uma conhecida tática constante- ro de 1989, foi um plano econômico lan-
mente usada por governos assolados pela força destruidora da inflação: çado pelo governo do presidente brasi-
a troca da moeda. Substituía-se a moeda em curso por outra, cortando- leiro José Sarney, realizado pelo ministro
se alguns zeros à direita e, com isso, evidentemente, transmitia-se a Maílson Ferreira da Nóbrega, que havia
falsa impressão de estarmos diante de uma moeda mais valorizada (ou assumido o lugar de Bresser Pereira.
moeda mais forte, como se costuma dizer). Devido à crise inflacionária da década de
No caso em análise, a nova moeda passou a se chamar “cruzado” (o 1980, foi editada uma lei que modificava o
que por si só explica a escolha do nome dado ao plano) e substituiu o índice de rendimento da caderneta, promo-
cruzeiro. Para dar uma ideia da força inflacionária no período, apenas vendo ainda o congelamento dos preços e
três anos depois, um novo plano, o Plano Verão, viria a criar outra nova salários, a criação de uma nova moeda, o
moeda (de “cruzado” para “cruzado novo”), suprimindo mais três zeros. Cruzado Novo, inicialmente atrelada em
Tempos difíceis para o trabalhador, que via seu salário “derreter” no de- paridade com o Dólar e a extinção da OTN,
correr do próprio mês trabalhado. importante fator de correção monetária.
A principal medida do Plano Cruzado, porém, foi a de congelar
os preços e os salários. A ausência de um número adequado de ser-
vidores públicos habilitados à fiscalização levou o presidente a con- CURIOSIDADE
vocar populares para uma cruzada cívica (e, certamente, populista).
Entusiasmados, os “fiscais do Sarney” denunciavam abusos, (conse- Congelar os preços
guindo, inclusive, levar ao fechamento inúmeros estabelecimentos O congelamento de preços é uma me-
em várias localidades do país), mas cometiam outros crimes, como dida econômica considerada radical, que
saques e depredações. proíbe o aumento de preço dos produtos.
O bom resultado inicial da medida rendeu uma vitória esmagado- Segue a mesma lógica o congelamento
ra do PMDB (agremiação política do Presidente) nas eleições, quando o de salários, que proíbe o aumento sala-
partido ganhou praticamente todos os governos estaduais (exceto o de rial. São medidas consideradas radicais
Sergipe, que, mesmo assim, ficou nas mãos do aliado circunstancial, o utilizadas para o combate de surtos infla-
PFL) e a maioria das cadeiras do Congresso. O Plano, porém, se mostrou cionários ou mesmo hiperinflação.
ineficaz e a disparada da inflação retirou o apoio popular do governo.

capítulo 9 • 197
CURIOSIDADE As tentativas com outros planos econômicos (Cruzado II, Bresser e
Verão) igualmente fracassaram em seus propósitos.
Planos econômicos
Cruzado II
O Cruzado II foi um pacote fiscal que aca- Para esse fracasso, contribuiu o fato de o Brasil, em fevereiro de 1987,
bou por fornecer uma válvula de escape anunciar a moratória dos juros da dívida externa. Com essa decisão, o
para toda a inflação reprimida durante o Brasil deixou de ter acesso ao crédito internacional, levando a economia
congelamento de preços. O Plano preten- a enfrentar, ao mesmo tempo, dois problemas que configuram verda-
dia controlar o déficit fiscal aumentando a deiros pesadelos para qualquer ministro responsável pela economia:
receita tributária. •  inflação e;
Bresser •  ausência de crescimento econômico.
O Plano Bresser foi plano econômico bra­ Junta-se a isso uma política de arrocho salarial (quando os rea-
sileiro de emergência lançado em 16 de justes salariais não acompanham a alta do custo de vida) em meio às
junho de 1987, através dos Decretos-Lei perdas do poder de compra do trabalhador em razão das altíssimas
2335/87, 2336/87 e 2337/87, pelo taxas de inflação no período.
então Ministro da Fazenda Luiz Carlos
Bresser Pereira. O plano Bresser seguiu RESUMO
o plano Cruzado, que havia fracassado na
tentativa de controlar a inflação. Não custa relembrar, ainda, que em razão do inexpressivo crescimento econômico
O Plano Bresser instituiu o conge­lamento obtido na época, o período do Governo Sarney (1985-1990) auxiliou para que os
dos preços, dos aluguéis, dos sa­lários e a anos 1980 ficassem conhecidos como a “década perdida”. Diante de um quadro
URP (Unidade de Referência de Preços) como esse, parece não ser difícil concluir que o governo Sarney chegaria ao fim de
como referência monetária para o reajus- forma melancólica e em grave crise econômica.
te de preços e salários.

CURIOSIDADE
CONCEITO
Contexto histórico
Moratória Do ponto de vista econômico, as teses do novo liberalismo, conhecidas como “ne­
No âmbito do direito internacional públi- oliberais”, defendidas por Margareth Thatcher (Primeira-Ministra da Inglaterra entre
co, moratória consiste em um ato unila- 1979 e 1990) e por Ronald Reagan (Presidente dos Es­tados Unidos entre 1981-
teral de um Estado quando este declara 1989), vão se impondo no mundo, defendendo o mínimo de intervenção do Esta-
a suspensão do pagamento dos juros da do nas atividades econômicas como forma de buscar eficiência. No entanto, como
sua dívida externa. efeito colateral, estabeleceu forte ataque a algumas das principais conquistas dos
trabalhadores por meio de ações como flexibilização dos contratos de trabalho, re-
formas na previdência social e o corte dos subsídios aos programas de assistência
às comunidades mais carentes.

A Constituinte e o exercício da cidadania


Entretanto, uma pergunta repetida entre as pessoas mais esclarecidas era:

198 • capítulo 9
“Como reestabelecer a normalidade democrática sob as bases CONCEITO
de uma Constituição que deu suporte à ditadura?”
Assembleia Constituinte
Os constituintes, ou seja, as pessoas
Realmente, isso não é possível. Por isso, a resposta somente vem com
que seriam responsáveis pela escrita
a Emenda Constitucional nº 26, de 17 de novembro de 1985, que con-
da nova Constituição do país, foram os
voca a Assembleia Constituinte, reunida em fevereiro de 1987.
deputados e senadores eleitos em no-
vembro de 1986, naquela famosa elei-
Embora a convocação da Constituinte fosse motivo de comemora- ção em que o Plano Cruzado ajudou os
ção, a emenda foi recebida com alguma dose de decepção e ceticismo, principais partidos de apoio ao governo,
pois houve movimentos, no seio da sociedade civil organizada, que exi- PMDB e PFL, a obter uma maioria es-
giam uma Constituinte exclusiva e não um Congresso Nacional dividi- magadora das cadeiras da Câmara e do
do, com dupla função (a de parlamentar e, concomitantemente, a de Senado. A estes se somaram os sena-
constituinte). dores remanescentes de 1982, inclusi-
Isso porque seria razoável se esperar que, após um regime de exce- ve os biônicos, eleitos indiretamente, e
ção, os temas constituintes ganhassem especial relevo nos debates elei- que representaram a herança antidemo-
torais, de forma que as teses, os princípios e os compromissos ligados crática do período militar ao processo
ao debate constituinte fossem discutidos e refletidos com a máxima constituinte.
profundidade. Entretanto, isso não ocorreu na medida desejada, já que,
no mesmo processo eleitoral, houve também eleição para governadores
de Estado, o que inevitavelmente dividiu as atenções dos eleitores. CONCEITO
CURIOSIDADE Perestroika
Propunha a reestruturação econômi-
Contexto histórico ca, a descentralização das decisões, a
Em 1986, o mundo surpreendia-se com o anúncio de duas políticas propostas pelo abertura da economia e o fim do mono-
último líder da União Soviética, Mikhail Gorbachev: a Perestroika e a Glasnost. A pólio estatal.
primeira se referia à abertura dos processos econômicos para superar o atraso do Glasnost
desenvolvimento tecnológico. Já a segunda era o sopro de liberdade de divulgação Propunha a transparência política, o fim
do que acontecia na União Soviética: a necessidade de abrir a realidade soviética ao da ineficiência administrativa, da per-
mundo e também o mundo aos soviéticos. seguição política e a liberdade de ex-
pressão da população e dos meios de
Mesmo criticados, os trabalhos da Assembleia Nacional Constituin- comunicação.
te foram instalados em primeiro de fevereiro de 1987, sob a presidên-
cia de Ulysses Guimarães. Historicamente, as constituintes brasileiras
sempre tiveram sua gênese com um anteprojeto norteador, o que não
aconteceu nesta de 1987. Isso acabou por abrir caminho para uma mo-
bilização inédita na história do país.

O Congresso Nacional foi palco de um embate inédito. Mobilizaram-se


trabalhadores, empresários, ruralistas, camponeses magistrados, reli-
giosos (em suas várias vertentes), índios, mulheres, militares, homos-
sexuais, estudantes e tantos outros grupos, que buscavam defender
seus interesses específicos no corpo do texto constitucional.

capítulo 9 • 199
122 emendas populares Ressalte-se, ainda, que algumas dessas emen-
foram distribuídas, das obtiveram mais de um milhão de assinaturas,
o que reforça a tese daqueles que alegam uma par-
relatadas, discutidas
ticipação popular sem precedentes na história po-
e votadas no longo do lítica brasileira.
processo de produção Para elaborar a espinha dorsal dos trabalhos cons-
do texto final. tituintes foram criadas oito comissões temáticas:

I Comissão da Soberania e dos Direitos e Garantias do Homem e da Mulher

II Comissão da Organização do Estado

III Comissão da Organização dos Poderes e Sistema de Governo

IV Comissão da Organização Eleitoral, Partidária e Partidos Políticos

V Comissão do Sistema Tributário, Orçamento e Finanças

VI Comissão da Ordem Econômica

VII Comissão da Ordem Social

Comissão da Família, Educação, Cultura e Esportes, da Ciência e Tecnologia e da


VIII Comunicação.

Além dessas, todas subdivididas em três subcomissões, criou-se a Comissão de Siste-


matização com a complexa tarefa de conceder organicidade e sistematicidade entre os di-
versos temas. Nessa linha, é muito interessante observar que essa organização temática
acabou, realmente, concedendo (com poucas diferenças) a estrutura de organização dos
temas da atual Carta da República. Se observarmos a Constituição de 1988, veremos que
seus Títulos e Capítulos seguem razoavelmente essa divisão prevista nos trabalhos das
Comissões e Subcomissões Temáticas.

Constituinte: vamos à esquerda ou vamos à direita?


A pergunta fundamental no enfrentamento desse tema é a seguinte:

Como se organizaram as forças políticas no interior da Assembleia Nacional Cons-


tituinte de 1987?

A vitória do PMDB, impulsionada pelo sucesso momentâneo do Plano Cruzado, foi retumbante.

200 • capítulo 9
Nas eleições de 1986, o PMDB e o PFL, seu circunstancial escudeiro CURIOSIDADE
da época, elegeram juntos mais que 75% do total de cargos de deputados
e senadores em disputa, garantindo a essa coalizão a maioria na Assem- Coalizão
bleia Nacional Constituinte. É um tipo de acordo de cooperação (ver-
Em princípio, esse resultado parecia sinalizar uma Assembleia Na- bal ou escrito) que, feito entre partidos,
cional Constituinte de perfil mais conservador (e, por via de consequên- tenta consolidar um objetivo em comum.
cia, uma Constituição igualmente conservadora), dominada pela lógica
governista (lembrando-se que José Sarney, filiado ao PMDB, era o Presi-
dente da República no período). CONCEITO
O fato é que as posições partidárias oposicionistas — entre os quais
o PT, PDT, PC do B, PCB, para citar os mais significativos — não pare- Conservadora
ciam ter condições de oferecer qualquer resistência às posições políti- Conservadorismo ou conservantismo
cas defendidas pelo “rolo compressor” PMDB/PFL. – É um termo usado para descrever
posições político-filosóficas, alinhadas
com o tradicionalismo e a transforma-
Composição partidária do Congresso Brasileiro, de fev/1987 a set/1988
ção gradual, que, em geral, se contra-
FEVEREIRO 1988 SETEMBRO 1988 põem a mudanças abruptas; ou seja,
uma posição conservadora defende a
Mudanças de
Partidos Cadeiras Porcentagem Cadeiras Porcentagem manutenção da ordem social e política
partido*
estabelecida.
PMDB 305 54,6 235 42,0 -70

PFL 134 24,0 125 22,4 -9

PDS 37 6,6 34 6,1 -3

PDT 26 4,7 28 5,0 +2

PTB 19 3,4 29 5,2 +10

PT 16 2,9 16 2,9 0

PL 7 1,3 7 1,3 0

PDC 6 1,1 13 2,3 +7

PC do B 3 0,5 5 0,9 +2

PCB 3 0,5 3 0,5 0

PSB 1 0,2 6 1,1 +5

PMB 1 0,2 1 0,2 0

PSC 1 0,2 0 0 -1

PSDB - - 48 8,6 +48

Outros - - 9 1,6 +9

Total 559 100,0 559 100,0 0

*Número de membros que saíram ou entraram no partido durante o Congresso


Constituinte. Fonte: KINZO, M.D.G.,1993.
Apesar da maioria conservadora, a Constituição foi marcada por uma
profunda polarização social; aquela energia e disposição acumuladas nas

capítulo 9 • 201
CURIOSIDADE jornadas pela redemocratização do país não esfriou e parece ter contami-
nado uma aguerrida e organizada bancada de esquerda (PT, PDT, PC do
PSDB B, PSB). A busca por maior força no embate político aproximou os consti-
Entre os “rebeldes” do PMDB que deram tuintes de perfil de esquerda com os democratas de centro-esquerda, in-
origem ao novo partido é possível citar no- cluindo neste rol vários parlamentares filiados ao próprio PMDB.
mes como os de Fernando Henrique Car- Aliás, essa vertente, considerada detentora de um perfil mais pro-
doso, Afonso Arinos, Mário Covas, José gressista e que se abrigava no PMDB histórico, ainda no decorrer da pró-
Richa, Franco Montoro, José Serra, Ge- pria Constituinte, formou uma importante dissidência que deu origem
raldo Alckmin, Artur da Távola, Aécio Ne- a um novo partido: o PSDB (Partido da Social Democracia Brasileira).
ves, Arthur Virgílio, Almir Gabriel, Teotônio Entretanto, se a esquerda se articulou, também as forças conservado-
Vilela Filho, entre outros de destaque no ras buscaram se agrupar para o embate político que se prenunciava como
âmbito da política nacional do período e, incontornável. Esse grupo de características conservadoras se tornou co-
como veremos, também em momentos nhecido como “Centrão” e reunia linhas direitistas e centro-direitistas.
posteriores. Não era difícil correlacionar suas posições àquelas defendidas pelo gover-
no José Sarney, já que era composto, em grande parte, por parlamentares
que tiveram uma ligação mais estreita com o regime político-militar.
CURIOSIDADE
Cabe ressaltar, no entanto, que, embora a maioria do PMDB não tenha
Centrão se alinhado às propostas do “Centrão”, mais de 40% do partido o fez,
Em sua maioria, os parlamentares que o que representa um dado muito relevante, considerando a força do
aderiram ao “Centrão” fizeram parte dos partido e a quantidade de parlamentares que possuía.
quadros da antiga Arena, sendo forma-
do por uma frente parlamentar composta Por isso, é possível vislumbrar uma rearticulação da antiga Arena em
principalmente pelos seguintes partidos: torno do termo “Centrão”. Como grupo suprapartidário, sob o comando
PFL, PTB (ambos com quase 80% de de Roberto Cardoso Alves (famoso por definir uma forma de condução
suas bancadas), PDS (quase 85% de sua política com a frase “fransciscana” — “é dando que se recebe”), fará o
bancada), PL (com mais de 70% de sua contraponto às posições dos denominados grupos progressistas, com
bancada), além de outros pequenos parti- propostas políticas de cunho conservador.
dos considerados de orientação direitista Nesse sentido, é possível concluir que a elaboração da Constituição
ou de centro-direita. de 1988 foi caracterizada por um quadro de ampla e árdua negociação,
em que algumas das conquistas almejadas pelos grupos de orientação
de esquerda foram sempre muito temperadas (ou mesmo impedidas)
pela posição conservadora do “Centrão”.
Assim, reproduzindo essa disputa, a Comissão Arinos, responsável
pela elaboração do anteprojeto do texto constitucional, e considerada
ideologicamente eclética, recebeu críticas tanto dos setores mais pro-
gressistas da sociedade — afinados com o compromisso de uma Cons-
tituição renovadora —, mas também dos setores conservadores, que
criticaram o texto consolidado, entendendo que as inovações propostas
levariam o país a um perfil “esquerdista”.

RESUMO
De toda maneira, a verdade é que esse entrechoque das correntes representadas
na Comissão trouxe como resultado um texto que, sem abrir mão de ampliação das

202 • capítulo 9
liberdades públicas (tão vilipendiadas no período autoritário), avançou como nenhu- CONCEITO
ma outro em termos de conquistas sociais.
Neoliberal
O Neoliberalismo é, de forma sintética,
uma linha de pensamento econômico
As críticas dos setores conservadores e a que tem por pressupostos a desregula-

reação progressista mentação da economia, a livre circula-


ção de capitais, as privatizações e a re-
dução de participação do Estado na vida
As possíveis repercussões econômicas e orçamentárias advindas das no- econômica (Estado Mínimo). É também
vas conquistas sociais fizeram com que o Presidente da República, José conhecido por Consenso de Washing-
Sarney, viesse a desferir fortes críticas contra os trabalhos constituintes. ton. Por essa razão, a visão neoliberal
O Presidente alegava que o texto a ser consolidado poderia levar o país assume a defesa das posições capitalis-
à ingovernabilidade, principalmente pelos custos advindos dos novos tas, opondo-se às vertentes defensoras
benefícios previstos. de posições estatizantes e intervencio-
nistas, ideais normalmente vinculados
ATENÇÃO ao pensamento de esquerda.

José Sarney, no Discurso à Nação em 26 de julho de 1988:
“Correspondo a minha obrigação de dizer ao povo, portanto, que nós não devemos
esperar que aconteça um sonho irrealizável. [...] Eu espero, portanto, que chegue-
mos a boas soluções. Vamos chegar a boas soluções. Confio no patriotismo dos
constituintes do Brasil. Para o bem do Brasil. E para o futuro de todos nós.”

As críticas foram, no entanto, imediatamente rebatidas pelo Pre-


sidente da Assembleia Nacional Constituinte (ANC), Ulisses Guima-
rães, que, respondendo em emocionado discurso transmitido em
rede nacional, afirmou que, pelo contrário, a nova Constituição seria
a guardiã da governabilidade, pois as conquistas sociais por ela pro-
movidas ajudariam no combate à fome, à miséria, à ignorância e à
doença sem amparo.

ATENÇÃO
Ulysses Guimarães em resposta à fala de José Sarney, em Discurso de 27 de julho
de 1988:
“Esta Constituição que o povo brasileiro me autoriza a proclamá-la não ficará como bela
estátua inacabada, mutilada ou profanada. O povo nos mandou aqui para fazê-la, não
para ter medo. Viva a Constituição de 1988! Viva a vida que ela vai defender e semear!”

Embora a parte referente à Ordem Econômica tenha evidenciado


uma roupagem mais liberal, com o fortalecimento da empresa priva-
da, houve quem afirmasse que a Constituição emergente parecia en-
trar em conflito com os novos tempos que se aproximavam, ou seja, a
emergência neoliberal. Aliás, nesse sentido, a União Brasileira de Em-

capítulo 9 • 203
presários (UBES), a União Democrática Ruralista (UDR) e a Federação das Indústrias do
Estado de São Paulo (FIESP) atuaram de forma conjunta de maneira a reduzir as conquis-
tas trabalhistas e frear a discussão sobre a questão agrária.

CURIOSIDADE
Contexto histórico
Com o desmoronamento do império soviético e a previsível unificação da Alemanha (que ocorreria pouco mais de
um ano após a edição da Constituição com a simbólica “Queda do Muro de Berlim”), o predomínio da supremacia
liberal americana ecoa pelo mundo. Os ideais liberais parecem triunfar e as ideias de esquerda empalidecem,
perdendo parte da força ideológica de outrora. Nessa época, com um artigo publicado em fins de 1989 com o
título de "O fim da história" e, posteriormente, em 1992, com a obra "O fim da história e o último homem", o ame-
ricano Francis Fukuyama teorizou o fim da história, com a supremacia do capitalismo e a democracia burguesa,
com base em uma abordagem que passa por vários grandes filósofos, tais como Platão, Hegel, Kant e Nietzsche.

Com isso, de acordo com as circunstâncias internacionais, o conjunto de conces-


sões feitas aos trabalhadores fazia parecer
que a nova Constituição brasileira já entra-
Nesse sentido, os juristas
ria em vigor fora de sintonia com os novos costumam classificar
tempos que emergiam, já que o mundo a Constituição de 1988
tenderia a aderir a uma visão neoliberal. como “Compromissória”,
No entanto, a verdade é que os intensos
que seria aquela que
embates ocorridos entre a ala progressista
e o “Centrão” não permitiram que a Consti-
busca uma conciliação
tuição assumisse uma ideologia única (mais de diferentes ideologias,
socialista ou mesmo mais liberal). buscando equilibrá-las.

ATENÇÃO
“Pela primeira vez na História do Brasil e talvez do mundo, se fez uma Constituição com a colaboração dire-
ta da cidadania [...]. O Congresso foi durante a Constituinte um grande ponto de encontro de empresários,
sindicalistas, representantes de igrejas, de nações indígenas, professores e estudantes. Foi uma amostra
de todo o Brasil que, tocado pela consciência de que era hora de mudar, veio e pressionou. Se mais não
fizemos, foi porque mais não pudemos” (Fernando Henrique Cardoso).

A Constituição de 1988, a conquista da


“Constituição Cidadã”

A nova Carta foi denominada “Constituição Cidadã”, em razão de reafirmar os direitos cas-
sados pela ditadura no decorrer do regime militar. No entanto, a ampla participação dos seg-
mentos sociais certamente levou a outras inúmeras conquistas devidamente estabelecidas
no texto constitucional. Ironicamente, uma das maiores virtudes da nossa Constituição é por

204 • capítulo 9
muitos apontada como a razão de seu grande defeito: o texto (excessiva- CONCEITO
mente) prolixo, característico das chamadas “constituições analíticas”.
Na ânsia de garantir o máximo de direitos e garantias, nosso consti- Constituições analíticas
tuinte foi mais fundo do que provavelmente deveria, tratando os temas É, na visão dos constitucionalistas, a
de forma mais minuciosa do que se costuma fazer em uma Constitui- Constituição que cuida de matérias que,
ção, ou mesmo abordando matérias que não são consideradas típicas de em princípio, poderiam ser abordadas
uma Constituição. Explicando melhor, a verdade é que a nossa Consti- pela legislação ordinária. É também
tuição cuidou de temas que, em geral, em outros países, são tratados denominada como prolixa, pois é muito
pelo legislador, por meio de leis “comuns”. extensa, gerando maior necessidade de
Nesse sentido, alguns acusam que houve pretensão a um dirigismo modificações no decorrer do tempo, a
constitucional, situação bastante criticada ainda nos dias atuais por fim de atender às mudanças sociais.
três motivos:

Tornou desnecessariamente mais complexo o trabalho dos repre-


sentantes políticos de alterar, por uma via mais simplificada, normas
CURIOSIDADE
que tradicionalmente exigem mudanças mais frequentes. Dirigismo constitucional
A Constituição é quem definiria as políti-
Reduziu o espaço de liberdade das gerações futuras (nossos filhos, ne- cas públicas e não os representantes do
tos, bisnetos), vinculando-o a escolhas políticas feitas por uma geração povo, como deputados e senadores.
ou, pelo menos, dificultando em grau elevado qualquer alteração de rumo.

Acabou por transferir grande poder de decisão ao Poder Judiciário (prin-


cipalmente, ao Supremo Tribunal Constitucional, o mais importante órgão
deste Poder), já que, praticamente, qualquer tema trazido à discussão, de
forma direta ou indireta, guarda relação com a Constituição.

Esse cenário tem algumas consequências óbvias: o excessivo número


de modificações que sofreu e continua sofrendo o texto original da
Constituição. Até meados do ano de 2014, aproximava-se de 80 o
número de Emendas Constitucionais ocorridas desde 1988. É, sem
dúvida, entre virtudes e vícios, o preço que se paga por se ter optado
por um texto tão abrangente e tão detalhista.

A velocidade com que se operam as mudanças (econômicas, sociais


e tecnológicas etc.) no mundo contemporâneo é muito alta e, por isso,
exige uma intervenção do Direito, que deve alterar sua forma de regu-
lação, de maneira a se adequar à nova re-
alidade ou às novas exigências do mundo. O direito não
Pelo contrário, o direito deve ser re- pode “escravizar
sultado das escolhas do grupo social que a realidade”.
vive essa realidade.
As grandes alterações fáticas e mentais ocorridas na sociedade
brasileira desde a promulgação do texto, bem como alterações de po-

capítulo 9 • 205
CURIOSIDADE líticas públicas ou econômicas (lembre-se: o constituinte de 1988 pre-
feriu dar a essas políticas status constitucional, ou seja, tratá-las na
Constituinte derivado própria Constituição e não nas leis comuns), exigiram uma interven-
Uma Constituição pode sofrer modifica- ção do constituinte derivado.
ções, pois não é um texto imutável. Ela
deve sofrer as alterações exigidas pelas
circunstâncias. Chama-se, então, consti- O Texto Magno e as novas conquistas
tuinte derivado o ator político que está au-
torizado a fazer tais modificações no texto A Constituição de 1988 (incluídas as modificações estabelecidas até
constitucional, nos limites que a próprias os dias de hoje, por via de Emendas Constitucionais), representou, em
regras constitucionais permitirem. várias áreas, grande avanço em relação às Constituições anteriores. Re-
estabeleceu as liberdades públicas, ampliando-as em relação às Consti-
tuições anteriores, assim como avançou de forma bastante intensa nas
áreas sociais. Aliás, essa foi uma das críticas desferidas pelo então Presi-
dente José Sarney, já que os benefícios sociais implicam em ampliação
dos custos aos cofres públicos.
Entre outras conquistas introduzidas pela Constituição de 1988, é
possível destacar as seguintes:

Instituição do chamado Habeas Data, que é considerado um “remédio


constitucional” que permite o cidadão conhecer ou retificar informações
a seu respeito, constantes nos registros e bancos de dados de entida-
des governamentais ou de caráter público.

Criação do Sistema Único de Saúde (SUS), universalizando o serviço


de saúde no Brasil, política pública inédita na história do país pela sua
grande abrangência.

Reconhecimento da função social da propriedade, descaracterizan-


do a possibilidade de que a propriedade venha a ser considerada um
direito absoluto.

Garantia de aposentadoria para trabalhadores rurais sem necessaria-


mente precisarem ter contribuído com o INSS.

Instituição de eleições majoritárias em dois turnos, caso nenhum candi-


dato consiga atingir a maioria dos votos válidos.

Especial proteção ao meio ambiente sadio (hoje considerado um direito


fundamental) não apenas para as atuais gerações, mas para salvaguar-
dar os direitos das gerações futuras.

206 • capítulo 9
Garantia da demarcação de terras indígenas, em proteção às minorias.
IDEIA
Como sugestão, assista aos filmes:
Voto facultativo para cidadãos entre 16 e 18 anos incompletos e tam- A dama de ferro. Direção: Phyllida Lloyd.
bém para os analfabetos, o que representou significativa expansão da Produção: Pathé. Inglaterra/França,
participação política e do exercício da cidadania. 2011. 105 min., son., col., 35mm.
Sinopse: Trata da vida de uma das prin-
cipais defensoras das políticas neolibe-
Maior autonomia aos municípios, de forma a tornar possível mais con- rais, Margareth Thatcher, com algumas
trole do cidadão em relação às decisões que lhe afetam (quanto mais passagens que ajudam a compreender
perto estiverem de nós aqueles que tomam as decisões, mais podemos quais os interesses de classe em jogo.
controlá-los).

Adeus Lênin. Direção: Wolfgang Becker.

Fim da censura às emissoras de rádio e TV, filmes, peças de teatro, Produção: X-Filme Creative Pool. Alema-

jornais e revistas etc. nha, 2003. 121 min., son., P/B, 35mm.
Sinopse: Para entender um pouco o que
significou a reunificação alemã e a cha-
Na área trabalhista, reconhecimento do direito à greve, liberdade sindi- mada Queda do Muro de Berlim.
cal, diminuição da jornada de trabalho.
Constituinte 1987-1988. Direção: Cle-
onildo Cruz. Produção: Tempus Filmes.
Abono de férias com acréscimo de 1/3 do valor do salário, décimo ter-
Brasil, 2012. 52 min., son., col., S/I.
ceiro salário para aposentados, seguro desemprego.
Sinopse: Constituinte 1987-1988” tem
revelações e relatos inéditos de como
Embora, como vimos, pairem algumas críticas à Constituição de tudo ocorreu. Entre as várias etapas,
1988, a verdade é que ela é resultado de todos os embates históricos e o documentário registra episódios do
ideológicos vivenciados na época em que foi escrita. Governo Sarney e a relação com o
Essa afirmação lembra-nos bem a lição de Miguel Reale que afirma congresso, a elaboração do regimento
ser a norma o resultado da tensão evidente entre a realidade dos fatos que interno, a composição dos partidos po-
ocorrem no seio de uma sociedade e os valores que esta mantém. Somos líticos, a virada regimental com a cria-
uma sociedade plural, e nossa história nos conferiu certa “brasilidade” ção do centrão, reforma agraria e mo-
que nos identifica como um povo cheio de características específicas. vimento sindical. Há também o registro
de quando o PT (Partido dos Trabalha-
Mesmo que tenha havido quem afirmasse que a Carta de 1988 se dores) votou contra a redação final da
tratava tão somente de um texto dotado de boas intenções (mas com carta e a assinatura do documento, além
poucas possibilidades de concretização), a verdade é que seu valor de votações e uma analise atual dos en-
simbólico e a identificação dos cidadãos brasileiros com os seus ide- trevistados sobre a Constituição.
ais conferiram a essa Constituição força normativa suficiente para
avançar o projeto (sem deixar de considerar todas as dificuldades
que um plano como este implica) de uma sociedade mais democráti-
ca, livre e igualitária. O projeto não era perfeito, mas era bom. Faltava
encontrar quem o bem executasse.

capítulo 9 • 207
RESUMO
•  O primeiro governo civil pós-período militar foi exercido por José Sarney, substituindo Tancredo Neves,
morto poucos dias após sua eleição indireta pelo Congresso Nacional, embora possamos considerar que
o grande apoio popular por ele obtido legitimasse sua escolha.
•  Muitas ações ocorridas no período entre 1985 e 1989 deixam evidente que o processo de superação do
regime ditatorial e avanço da democracia realmente começam a ganhar densidade nesse período: expan-
são das liberdades públicas (expressão, imprensa, ir e vir), ampliação dos direitos de cidadania, assunção
de um regime pluripartidário, entre outros.
•  No campo econômico, os inúmeros planos do Governo Sarney não foram capazes de fazer o país per-
correr a trilha da normalidade. Com isso, consequências diretas foram hiperinflação, frágil crescimento da
economia brasileira e alta taxa de crescimento da dívida externa.
•  Em 1987, ocorreu o início ao processo de escrita da nova Constituição. A Constituinte encarregada de
produzir o novo texto teve grande participação popular, sendo que o pluralismo da sociedade brasileira se
fez refletir, principalmente na luta política travada entre a chamada ala progressista (esquerda, centro-es-
querda) e as denominadas forças conservadoras (direita e centro-direita).
•  A Constituição acabou por explicitar o embate de forças entre as posições conservadoras do “Centrão”
e os avanços sociais propostos pela ala progressista da ANC (Assembleia Nacional Constituinte), sendo
nossa Constituição de 1988 considerada “compromissória” por não adotar uma única linha ideológica, mas,
pelo contrário, se caracterizar por alinhavar um grande acordo entre as posições de direita e de esquerda.
•  A “Constituição Cidadã”, além de reforçar as garantias e direitos fundamentais relacionados às liberdades
públicas e aos direitos de cidadania, estabeleceu um grande rol de direitos sociais inéditos, bem como novos
direitos denominados “difusos” por pertencerem a toda sociedade, podendo ser exemplificados pelo direito a um
meio ambiente saudável, pelo direito do consumidor, pelo direito ao patrimônio histórico-cultural, entre outros.
•  A Constituição recebeu a crítica de ser ampla, abordando muitas temáticas que, em geral, não são en-
frentadas pelo constituinte, mas sim pelo legislador. Isso acarretou certa “judicialização” das questões po-
líticas (fenômeno em atual expansão), pois assuntos comumente enfrentados na esfera do debate político
acabam sendo resolvidos pelo Supremo Tribunal Federal.

ATIVIDADE
Questão 1
Com a volta dos militares aos quartéis e iniciado o processo de redemocratização do Brasil, foi convocada
uma Assembleia Nacional Constituinte para produzir uma nova Constituição que pudesse espelhar esse
novo momento do país. Em 5 de outubro de 1988, foi promulgada aquela que ficou conhecida por "Cons-
tituição Cidadã" e, em seu texto original, entre outras conquistas previu, como novidade:
a) Ampliação da cidadania com a extensão do direito de voto aos analfabetos e previsão de proteção ao
meio ambiente;
b) Ampliação da cidadania com a extensão do direito de voto aos maiores de 16 anos — voto facultativo;
maior centralização do exercício do poder pela União.
c) Reconhecimento da absolutividade do direito à propriedade; obrigação das empresas estrangeiras man-
terem no mínimo 2/3 de empregados brasileiros.
d) Voto universal obrigatório para maiores de 18 anos (exceto analfabetos, que permaneceram sem direito
a votar); o direito de o presidente baixar decretos com força de lei.

208 • capítulo 9
Questão 2
Fuvest 2012
O presidente do Senado, José Sarney (PMDB-AP), disse nesta segunda-feira [30/5/2012] que o impea-
chment do ex-presidente Fernando Collor de Mello foi apenas um “acidente” na história do Brasil. Sarney
minimizou o episódio em que Collor, que atualmente é senador, teve seus direitos políticos cassados pelo
Congresso Nacional. “Eu não posso censurar os historiadores que foram encarregados de fazer a história.
Mas acho que, talvez, esse episódio seja apenas um acidente que não devia ter acontecido na história do
Brasil”, disse o presidente do Senado. (Correio Braziliense, 30/05/2011.)
Sobre o “episódio” mencionado na notícia acima, pode-se dizer acertadamente que foi um acontecimento:
a) De grande impacto na história recente do Brasil e teve efeitos negativos na trajetória política de Fernan-
do Collor, o que fez com que seus atuais aliados se empenhassem em desmerecer esse episódio, tentando
diminuir a importância que realmente teve.
b) Nebuloso e pouco estudado pelos historiadores, que, em sua maioria, trataram de censurá-lo, impedindo
uma justa e equilibrada compreensão dos fatos que o envolvem.
c) Acidental, na medida em que o impeachment de Fernando Collor foi considerado ilegal pelo Su-
premo Tribunal Federal, o que, aliás, possibilitou seu posterior retorno à cena política nacional, agora
como senador.
d) Menor na história política recente do Brasil, o que permitiu tomar a censura em torno dele, promovida
oficialmente pelo Senado Federal, como um episódio ainda menos significativo.
e) Indesejado pela imensa maioria dos brasileiros, o que provocou uma onda de comoção popular e permitiu
o retorno triunfal de Fernando Collor à cena política, sendo candidato conduzido por mais duas vezes ao
segundo turno das eleições presidenciais.

Questão 3
Leia o texto a seguir.

O ano de 1985 é particularmente confuso; a herança da ditadura cobrará rapidamente a fatura, inflação
alta, descontentamento com a mudança superficial. A morte de Tancredo acaba por dificultar a transição da
Ditadura para Democracia, os genuínos partidos de esquerda, em particular o ainda pequeno PT, Partido dos
Trabalhadores, conseguem significativos resultados nas eleições municipais de prefeitos das capitais.
A resposta vem com a emenda Constitucional nº 26, de 17 de novembro de 1985, que convoca a Assem-
bleia Constituinte a se reunir em fevereiro de 1987, com os deputados e senadores eleitos em novembro
de 1986, somados aos senadores de 1982. Obviamente esta emenda é uma decepção, pois havia um mo-
vimento, no seio da sociedade civil organizada, que exigia uma Constituinte exclusiva e não um congresso
com dupla função. (Extraído de http://arnobiorocha.com.br/2013/05/03/uma-breve-historia-do-proces-
so-constituinte-de-1987/ em 08/05/2014)

Sobre a constituinte de 1987 é possível afirmar:


I)  Representou o desejo das classes dominantes de abandonar o poder e abrir espaço político para os
grupos de esquerda e seus respectivos projetos.
II)  A ideia de uma Constituinte exclusiva não foi adiante em razão de um consenso absoluto em torno da
ideia de que ter um grupo exclusivo para elaborar a Constituição e outro para formar o Poder Legislativo
poderia significar altos custos aos cofres públicos.
III)  Os embates ideológicos havidos entre progressistas e Centrão estabeleceram uma Constituição em
que não se permite extrair uma posição política exclusivamente de direita ou de esquerda.

capítulo 9 • 209
Está(ão) correta(s) as seguintes assertivas:
a) Somente I
b) Somente II
c) Somente III
d) As assertivas II e III

Questão 4
A Era Sarney foi um período interessante da história brasileira, pois mesmo que as políticas econômicas
tenham fracassado reiteradamente, a verdade é que a “sede” de democracia pôde ser sentida no processo
de elaboração da nova Carta. Sobre esse período, marque a resposta adequada:
a) O texto da Constituição de 1988 foi uma vitória do grupo político liderado por José Sarney, pois o Cen-
trão conseguiu afastar as conquistas sociais almejadas pelos grupos progressistas.
b) A Constituição Federal foi elaborada sem grandes embates, pois o povo sabia o que queria e não houve
problemas para, facilmente, se chegar a um consenso.
c) Embora tenha sido criticada por abordar assuntos que não deveria, a Constituição de 1988 representa
uma conquista democrática e aponta para um avanço nas liberdades públicas.
d) Embora a Constituição de 1988 tenha avançado no âmbito das liberdades, não houve avanço nas
áreas sociais.

GABARITO
Questão 1 – A
Questão 2 – A
Questão 3 – C Justificativa: A assertiva I está errada, pois as classes dominantes não possuíam qualquer
intenção de abandonar o poder, mas sim de ali se manter sob outra roupagem. A assertiva II, como o pró-
prio texto aponta, demonstra que havia um grupo que desejava a “constituinte exclusiva”. No que se refere
à assertiva III, a mesma está correta e isso é o que faz de nossa Constituição uma Constituição “compro-
missória”, ou seja, assume compromissos com as duas linhas ideológicas.
Questão 4 – C

210 • capítulo 9
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
BANDEIRA, R. M. G. O Judiciário na Constituição de 1988. Um poder em evolução. In: Ensaios sobreo o impacto da
Constituição de 1988 na sociedade brasileira. v. I. Brasília: Edições Câmara, 2008.
BIONDI, A. O Brasil privatizado: um balanço do desmonte do Estado. São Paulo: Fundação Perseu Abramo, 1999.
BITTAR, E. C. B. (Org). História do Direito Brasileiro. 3. ed. São Paulo: Atlas, 2012.
BONAVIDES, P.; ANDRADE, P. História Constitucional do Brasil. Brasília: OAB, 2006.
BRITO, P. Economia Brasileira Planos Econômicos e Políticas Econômicas Básicas. 2. ed. São Paulo: Atlas, 2004.
CARVALHO, J. M. Cidadania no Brasil. O longo caminho. 10. ed. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2007
CERQUEIRA, M. A Constituição na história: origem e reforma. 2. ed. Rio de Janeiro: Revan, 2006.
FASSY, A. De Castelo a Sarney. Brasília: Thesaurus, 1987.
GOMES, M. E. (Coord.). A Constituição de 1988, 25 anos de construção da democracia e liberdade de expressão. O
Brasil antes, durante e depois da Constituição. São Paulo: Instituto Vladimir Herzog, 2013.
MENCK, J. T. M. Constituinte de 1987 e a Constituinte possível. In: Ensaios sobre o impacto da Constituição de 1988
na sociedade brasileira. v. I. Brasília: Edições Câmara, 2008.
NUNES JUNIOR, A. T. A judicialização da política no contexto da Constituição de 1988. In: Ensaios sobreo o impacto
da Constituição de 1988 na sociedade brasileira. v. I. Brasília: Edições Câmara, 2008.
RABAT, M. N. Autonomia de organização partidária: antes e depois da Constituição Federal de 1988. In: Ensaios
sobreo o impacto da Constituição de 1988 na sociedade brasileira. v. I. Brasília: Edições Câmara, 2008.
RODRIGUES, R. J. P. Dinâmica Constitucional e aprimoramento da democracia. In: Ensaios sobreo o impacto da
Constituição de 1988 na sociedade brasileira. v. I. Brasília: Edições Câmara, 2008.
VOLKMER, A. C. História do Direito no Brasil. 4. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2007.
VILLA, M. A. A história das constituições brasileiras. 200 anos de luta contra o arbítrio. São Paulo: Leya, 2011.
REALE, M. De Tancredo a Collor. São Paulo: Siciliano. 1992.
REIS, D. A. Ditadura e democracia no Brasil. Do Golpe de 1964 à Constituição de 1988. Rio de Janeiro: Zahar, 2014.
ROCHA, F. C. W. Poder político versus poder militar: algumas reflexões. In: Ensaios sobreo o impacto da Constituição
de 1988 na sociedade brasileira. v. I. Brasília: Edições Câmara, 2008.

capítulo 9 • 211
A caminho do

10
1 futuro: o Estado
Democrático de
Direito

marcelo machado costa lima


10 A caminho do futuro: o Estado
Democrático de Direito
Precisão de análise
CONCEITO
Você já constatou que quando queremos observar uma bela paisagem,
Pluripartidarismo ou mesmo capturar aquela bela visão por meio de uma fotografia, bus-
Sistema pluripartidário, também conhe- camos os melhores ângulos e distância a fim de que possamos usufruir
cido como pluripartidarismo ou sistema e apreciar melhor a sua beleza? Se nos situamos muito distantes, perde-
multipartidário, é um sistema político no mos a precisão (ou até mesmo a visão da paisagem buscada); mas se nos
qual três ou mais partidos políticos es- situamos muito próximos, perdemos a noção de totalidade e os detalhes
tão aptos a disputar o poder, podendo que estão no entorno da paisagem e que limitam nosso senso estético.
assumir o controle de um governo de De qualquer forma, intuitivamente percebemos que a distância e o
maneira independente ou em uma coali- ângulo corretos parecem ser aqueles que nos oferecem a oportunidade
zão. Vale lembrar que no decorrer do re- de ver de forma mais clara, em maiores detalhes, sem, contudo, perder a
gime militar adotou-se o bipartidarismo. precisão do que tem de ser visto.
Também assim é na história. A proximidade do tempo analisado
faz com que se vá perdendo a precisão de análise. Envolvemo-nos com
nossos próprios sentimentos, e analisamos os fatos e personagens his-
tóricos por uma lente contaminada (ou mais contaminada) pelos “pré-
conceitos” de quem está direta ou indiretamente envolvido com estes.
Estamos começando a analisar um tempo histórico muito próximo
a todos nós. Veremos que boa parte dos personagens que iremos tratar
são personalidades que, no dia a dia, encontramos nos noticiários tele-
visivos, nos jornais, nas revistas, nos rádios, nos blogs etc. Por isso, aos
poucos, estamos abandonando o ofício de historiadores e assumindo
o papel de jornalistas, a fim de dar conta da história do nosso próprio
tempo, com todos os riscos que isso implica.

As eleições de 1989 e o Governo Collor


Após a promulgação da Constituição Cidadã, mais um passo se daria
para a consolidação do regime democrático no Brasil. Após 29 anos sem
direito a escolher seu presidente pela via do voto direto (a última vez te-
ria sido em 1960, com a eleição de Jânio Quadros), o povo brasileiro re-
tornaria às urnas em novembro de 1989, a fim de escolher o Presidente
da República, que dirigiria o país no quinquênio 1990-1995.
Cabe lembrar que a Constituição de 1988, ao tratar do sistema polí-
tico-partidário, reforçou as linhas do pluripartidarismo, uma das pre-
missas fundamentais de um Estado Democrático de Direito. Em um
ambiente de certa euforia democrática, candidataram-se 22 candidatos,
representando as mais variadas correntes ideológicas e vertentes políticas.

214 • capítulo 10
A polarização de forças políticas e a solução CURIOSIDADE
conservadora Sarney
O político e escritor brasileiro José Sar-
Os setores conservadores, enfraquecidos pelos sucessivos insucessos da ney (1930) foi o 31º presidente do Brasil
política econômica do Governo Sarney, não conseguiam encontrar um (1985-1990). Foi também governador
nome capaz de gerar a confiança necessária para garantir a vitória no plei- do Maranhão (1966-1971) e senador
to e dar continuidade aos seus projetos. Por outro lado, dois partidos mais pelo mesmo estado (1971-1985). De-
identificados com ideais de esquerda viriam a lançar duas influentes figu- pois de deixar a presidência, foi nova-
ras políticas que poderiam vir a polarizar a disputa daquela eleição. mente senador, em 1991, tendo presidi-
De um lado, Luís Inácio Lula da Silva, representando o Partido dos do a câmara alta brasileira por três vezes.
Trabalhadores (PT), detentor de uma base política assentada entre os
trabalhadores e as principais lideranças sindicais do país; de outro lado,
Leonel Brizola, filiado ao Partido Democrático Trabalhista (PDT), que se CURIOSIDADE
apoiava em sua capacidade retórica, externando um discurso em defesa
de alguns princípios em muitos pontos próximos ao varguismo. Luís Inácio Lula da Silva
Os setores mais conservadores, temendo uma vitória de algum can- Lula (1945), como é mais conhecido, é
didato de esquerda e sem conseguir que os tradicionais nomes da po- um político, ex-sindicalista e ex-metalúr-
lítica se sobressaíssem no cenário eleitoral, após terem tentado lançar gico brasileiro. Foi o 35º presidente da
a candidatura do empresário das telecomunicações Sílvio Santos, logo República Federativa do Brasil, cargo
impugnada pelo Superior Tribunal Eleitoral, passam a apoiar um jovem que exerceu de 2003 a 2011.
e desconhecido político alagoano (menos de 40 anos) de boa aparência,
com um discurso carismático, chamado Fernando Collor de Mello.
CURIOSIDADE
“Caçador de Marajás”
Leonel Brizola
Atraindo apoio de diferentes setores da sociedade, o então governador Brizola (1922-2004) foi lançado na vida
do estado de Alagoas, Fernando Collor, prometia modernizar a econo- pública por Getúlio Vargas, sendo o úni-
mia promovendo políticas de cunho neoliberal e a abertura da partici- co político eleito pelo povo para governar
pação estrangeira na economia nacional. Ao mesmo tempo, em bem dois Estados diferentes (Rio Grande do
articulada campanha de marketing, autoproclamava-se o “Caçador de Sul e Rio de Janeiro) em toda a história
Marajás”, atacando os altos salários pagos a uma pequena elite de fun- do Brasil. Exerceu também a presidência
cionários públicos de Alagoas. Para obter maior adesão da direita e do de honra da Internacional Socialista. Sua
empresariado, passou a alertar contra o perigo para o país de uma possí- influência política no Brasil durou aproxi-
vel vitória dos candidatos de esquerda. madamente cinquenta anos, inclusive en-
quanto exilado pelo Golpe de 1964, con-
tra o qual foi um dos líderes da resistência.

capítulo 10 • 215
CURIOSIDADE A disputa
Fernando Collor de Mello No primeiro turno, a disputa entre vários nomes de grande prestígio divi-
Fernando Affonso Collor de Mello diram os votos, de forma que a apuração das urnas deixou a decisão para
(1949) é um político, jornalista, econo- um segundo pleito a ser disputado entre Fernando Collor (que vence com
mista, empresário e escritor brasilei- certa folga) e Luiz Inácio Lula da Silva, o Lula, que superara Leonel Brizola
ro. Foi prefeito de Maceió de 1979 a do PDT por uma pequena margem percentual (menos de 1%).
1982, governador de Alagoas de 1987 Lembremos que essa foi uma conquista da Constituição de 1988. Se
a 1989, deputado federal de 1982 o candidato não atinge 50% dos votos válidos, contabilizados os votos de
a 1986, 32º presidente do Brasil, de todos os candidatos que disputam, haverá um segundo turno de vota-
1990 a 1992, e senador por Alagoas ções com a disputa concentrada somente entre o primeiro e o segundo
de 2007 até a atualidade. lugar, evitando que haja um candidato eleito sem a maioria dos votos
(Collor, por exemplo, encontrara adesão de somente 28,5% dos eleitores
no primeiro turno).
IMAGEM O apoio dos terceiros e quarto colocados (Leonel Brizola e Mário Covas
que juntos receberam quase 19 milhões de votos) a Lula fazia antever um
“Caçador de Marajás” segundo turno muito equilibrado. E assim foi. Na última pesquisa, quase
todos os institutos apontavam empate técnico, sendo que, embora Collor
possuísse pequena vantagem, constatava-se crescente e rápida ascensão
na votação do petista. Porém, no último debate, sentindo-se pressionado
pela possível virada por parte de Lula, Collor de Mello foi mais agressivo e
parece ter revertido a tendência de alta da campanha lulista.
Esse episódio ficou famoso por levantar uma discussão relevante nos
dias de hoje que é aquela que trata sobre o poder de manipulação da mí-
dia em processos eleitorais. Na oportunidade, a Rede Globo foi acusada
pelo PT de ter veiculado em seu telejornal de maior audiência uma edi-
ção do debate em que supostamente teria favorecido o candidato do PRN
(partido sem qualquer expressão no contexto político brasileiro), não ape-
nas no que se referia a escolha dos momentos específicos do debate, mas
também no que diz respeito ao tempo de aparição de cada candidato.
O fato é que mesmo tendo um uma militância atuante e entusias-
mada durante seus comícios e campanha, as ideias de esquerda ainda
assustavam não somente as elites, mas também boa parte de uma clas-
se média e uma classe proletária mais conservadoras. Por outro lado,
o discurso simultaneamente “modernizante” e “moralista” de Collor,
embora contraditório, obteve adesões em todas as classes sociais. Ao fi-
nal, Collor soube utilizar-se com eficiência do significativo espaço a ele
concedido pelas grandes mídias e venceu as eleições com uma diferença
de mais de quatro milhões de votos, atingindo 53% dos votos válidos.
Enfim, o povo escolhia o seu presidente.

A breve “República das Alagoas”


Dá-se início, então, a breve Era Collor (ou “República das Alagoas”, ex-

216 • capítulo 10
pressão utilizada pela mídia para se referir ao Governo Collor). Ao tomar posse no dia 15 de
março de 1990, o Presidente Collor anuncia o seu pacote de modernização administrativa e
revitalização da economia por meio do Plano Collor, que previa, entre outras coisas:

Plano Collor

Retorno do Cruzeiro como moeda em substituição ao Cruzado, em clara tentativa de desvincu-


lar-se aos insucessos da área econômica na Era Sarney;

Congelamento de preços e salários (medida que a história já demonstrara ineficiente, mas que
novamente é experimentada);

Afastamentos e demissões de funcionários públicos, bem como extinção de órgãos públicos,


de maneira a adequar-se a uma das principais regras da bíblia neoliberal da época, ou seja,
reduzir o tamanho do Estado;

Bloqueio de contas correntes e poupanças dos cidadãos e empresas, pelo prazo de 18 meses.

Bloqueio de contas correntes e poupanças


Essa medida, entendida na época como verdadeiro “confisco”, conseguiu assustar tanto
as elites, que lhe haviam dado tanto apoio, como também as classes menos afortunadas.
Começava aí um martírio para Collor. Seu principal objetivo era, tal como nos governos
anteriores, conter a inflação e diminuir as despesas públicas. Porém, essas medidas não
apenas não obtiveram êxito ― produzindo recessão, quebra de empresas e desemprego ―
como, por via de consequência, geraram grande desconfiança e insatisfação na população,
independentemente da classe social.
Na verdade, o governo Collor tentou trilhar uma tendência neoliberal, dando gênese ao
processo de privatização de empresas estatais. Concomitantemente, buscou a redução das
tarifas alfandegárias, de forma a facilitar as importações. Se por um lado essa ação incentivou
a grande indústria nacional a produzir com maior eficiência e a menores custos, procurando
tornar seu produto mais competitivo interna e externamente, por outro lado, gerou uma onda
de falências nas empresas de pequeno e médio porte que não tinham como, rapidamente, se
adequar à nova política econômica e, portanto, competir com os produtos importados.
Após seis meses do lançamento do Plano Collor, o seu insucesso fez nascer o Plano
Collor II. Sem grandes novidades, destacou-se à medida que previa mais cortes no orça-
mento, visando à diminuição ainda maior de despesas. O fracasso dessas medidas leva à
troca de Ministro da área econômica, sem que a mesma surtisse qualquer resultado.

capítulo 10 • 217
CONCEITO A crise econômica e moral do Governo
CPI
Collor
Você já ouviu falar muito das famosas
CPIs (Comissão Parlamentar de Inqué- Para tornar ainda mais crítica a situação do governo, a essa altura come-
rito), não? Trata-se de uma investigação çam a surgir denúncias de corrupção na administração do presidente,
conduzida pelo próprio Poder Legislati- estando envolvidas pessoas da sua convivência íntima, como amigos e fa-
vo, quando este passa a apurar determi- miliares. Enquanto o ex-tesoureiro de sua campanha, Paulo César Farias
nados fatos supostamente irregulares. (mais conhecido como PC Farias), era acusado de tráfico de influência, la-
vagem e desvio de dinheiro, também a primeira-dama se via envolvida em
denúncias de desvio de verba na LBA (Legião Brasileira de Assistência).
CURIOSIDADE O maior impacto adveio da revelação do irmão do presidente, Pedro
Collor, que em entrevista à revista Veja, denuncia os esquemas de cor-
Itamar Franco rupção que envolviam o próprio Presidente Fernando Collor. A popula-
Itamar Franco (1930-2011) foi um políti- ção, já profundamente insatisfeita com a crise econômica e social ge-
co brasileiro, 33º presidente da República rada pelas infrutíferas políticas econômicas do governo, que, inclusive,
(1992-1994), vice-presidente (1990- lhe havia imposto uma série de sacrifícios desde o início do mandato,
1992), senador por Minas Gerais (1975- revolta-se contra Collor e seu Governo. Estabelece-se grave a crise na
1983; 1983-1990 e 2011) e governador “República das Alagoas”.
do estado de Minas Gerais (1999-2003). É instalada, então, uma CPI para investigar a participação de Collor no
esquema chefiado por PC Farias. Percebendo-se cercado por tais circuns-
tâncias negativas, Collor tenta salvar seu mandato, pedindo, em discurso
CURIOSIDADE em rede nacional, que os brasileiros fossem às ruas vestidos de verde e ama-
relo em gesto de apoio ao seu governo. A juventude, em significativa parti-
Fernando Henrique Cardoso cipação cidadã, atende a apenas parte do pedido: vai às ruas, porém vestida
Fernando Henrique Cardoso (1931) é de preto, com o rosto pintado, e exigindo o impeachment do presidente.
um sociólogo, cientista político, filósofo, Esse movimento foi muito festejado pelo seu caráter simbólico. Após
professor universitário, escritor e políti- tantos anos de ditadura, em que sempre houve repressão à liberdade de
co brasileiro. Professor emérito da Uni- expressão política aos jovens, era a primeira vez que estes promoviam
versidade de São Paulo (USP), lecionou um movimento político tão engajado, demonstrando que as novas ge-
também no exterior, notadamente na rações não estavam alienadas da realidade política. Pelo contrário, exi-
Universidade de Paris. Foi funcionário giam uma mudança na postura ética de seus governantes. O movimento
da Comissão Econômica para a América se espalha e diversas manifestações ocorrem em todo o país. Prenuncia-
Latina e o Caribe (CEPAL), membro do se o fim da Era Collor.
Centro Brasileiro de Análise e Planeja- A partir de então, a derrocada é rápida. A Câmara dos Deputados vota
mento (CEBRAP), senador da República a favor da abertura do processo de impeachment de Collor (441 votos a
(1983 a 1992), ministro das Relações favor e 33 contra), autorizando abertura de processo de impeachment no
Exteriores (1992), ministro da Fazen- Senado e, no início de outubro de 1992, o Presidente Collor é afastado até que
da (1993 e 1994) e o 1º presidente do o próprio Senado conclua o processo. O vice-presidente Itamar Franco assu-
Brasil a ser eleito para 2 mandatos con- me provisoriamente o governo e de lá só sairá em 1995 para entregá-lo a seu
secutivos (de 1995 a 1998 e de 1999 sucessor, Fernando Henrique Cardoso.
a 2002). É comumente chamado pelo Entretanto, antes de tratarmos do período Itamar, finalizemos a his-
acrônimo de seu nome completo FHC. tória do Presidente Collor. No final de dezembro, dá-se o julgamento no
Senado e, mesmo que Collor tenha renunciado por meio de uma carta,
de forma a tentar evitar o impeachment, o processo teve seguimento e,

218 • capítulo 10
antes do término do ano, por 76 votos a favor e 3 contra, Fernando Collor CONCEITO
é condenado à perda do mandato tornando-se inelegível por oito anos.
O que poderia representar mais um caso triste na história do país acaba Impeachment
por revelar pontos bastante positivos. Pela primeira vez em nossa história, Impeachment ou impugnação de man-
utilizavam-se as vias institucionais (e não as odiosas e reiteradas medidas dato é um termo do inglês que denomi-
golpistas) para afastar um Chefe de Estado (Presidente da República) de na o processo de cassação de mandato
suas funções. As vias seguidas foram aquelas estabelecidas pelas vias insti- do chefe do poder executivo pelo con-
tucionais, sem a utilização de normas absolutamente estranhas ao ordena- gresso nacional, pelas assembleias es-
mento jurídico vigente (como os famigerados “atos institucionais”). taduais ou pelas câmaras municipais. A
O impeachment do presidente Collor seguira todos os trâmites pre- denúncia válida pode ser por crime co-
vistos pela Constituição, o que reforçava a ideia de que a democracia mum, crime de responsabilidade, abuso
brasileira passava com louvor por mais um teste e, aos poucos, ia se con- de poder, desrespeito às normas consti-
solidando e se aperfeiçoando em um quadro verdadeiramente típico de tucionais ou violação de direitos pétreos
um Estado Democrático de Direito. previstos na Constituição. Em vários pa-
íses da Europa, usa-se o termo moção
de censura, pois a origem da moção é
Itamar Franco e o governo de transição de iniciativa do parlamento, acrescido
do termo político “perda de confiança”,
Estamos agora em fins de 1992 e início de 1993, quando Itamar Franco, quando então o parlamento nacional
vice-presidente no governo Collor, assume de forma definitiva a Presi- não confia mais no presidente e respec-
dência da República em substituição ao ex-presidente Collor. Itamar era tivo primeiro-ministro, obrigando-o a re-
um político pouco conhecido em âmbito nacional, mas possuidor, se- nunciar junto com todo o seu gabinete.
gundo aqueles que com ele conviviam, de algumas características que
neste momento a nação precisaria para fazer o contraponto ao período
político um pouco antes vivenciado: honestidade e simplicidade.
Sem base partidária que pudesse encontrar apoio — embora esti-
vesse filiado ao PMDB desde 1992, quando se desvinculara do PRN de
Collor —, não mantinha com nenhuma agremiação forte vínculo, o que
fez com que levasse para o seu governo muitos conterrâneos de Minas
Gerais. Surge a “República do Pão de Queijo” que substituía, então, a
malsucedida “República das Alagoas”.
Em um primeiro momento, Itamar se notabilizou pela inconstância
de seu temperamento e pela facilidade com que demitia seus ministros
(em dois anos e três meses de governo foram nomeados 61 ministros).
Essa primeira fase do seu governo parecia prenunciar mais um fracas-
so naquele que parecia ser a grande obsessão de qualquer governo que
viesse a administrar o Brasil: o combate à inflação.
Entretanto, em uma segunda fase, duas são as realizações que pa-
recem ganhar maior destaque: os projetos de combate à fome, que co-
meçam a ser levados a sério sob a coordenação do sociólogo Betinho e,
principalmente, a implementação do Plano Real. Este último não ape-
nas estabeleceu a marca de seu governo, mas seus frutos irão beneficiar
em alta escala também Fernando Henrique Cardoso, seu sucessor na
presidência, que, na condição de seu Ministro da Fazenda (foi o quarto
a ocupar a cadeira na breve Era Itamar), foi corresponsável pela implan-

capítulo 10 • 219
CURIOSIDADE tação e implementação do Plano. Falemos um pouco sobre esse impor-
tante programa de estabilização, o único que obteve sucesso depois de
Inflação brasileira tantas tentativas malfadadas.
1.142.332.741.811.850% foi a infla-
ção acumulada de julho de 1965 a ju-
nho de 1994. O Plano Real e a estabilização econômica
Itamar Franco, no exercício rotineiro de substituir ministros, deslocou
Fernando Henrique Cardoso do Ministério das Relações Internacionais
para o Ministério da Fazenda, incumbindo-lhe a tarefa de originar um
novo plano de estabilização econômica. Ironicamente, essa escolha é
por muitos considerada o maior acerto de seu mandato.
A finalidade era a de sempre: dar fim à elevada inflação brasileira,
situação que já perdurava por aproximadamente três décadas. Como
observamos até aqui, os pacotes econômicos anteriores tinham em co-
mum, além de medidas como congelamento de preços, o fracasso.
O plano previa a implantação por etapas, sendo que, entre outras
medidas, foram colocadas em prática as seguintes:

Corte de gastos públicos;

Recuperação da receita com combate à evasão fiscal;

Austeridade no relacionamento com estados e municípios, forçando que


esses equilibrassem seus gastos com cortes nos seus orçamentos, de
forma a seguir os moldes do que estava sendo tentado na esfera federal;

Ajustes no sistema bancário estatal;

Privatizações, principalmente de empresas dos setores siderúrgicos, pe-


troquímico e de fertilizantes.

Privatização
As medidas de privatização parecem fazer com que o Governo Itamar
(inicialmente de tendência nacionalista) retome a uma tendência ne-
oliberal iniciada no Governo Collor, e que será um dos pilares da Era
Fernando Henrique: a paulatina privatização das empresas públicas,
consideradas ineficientes.

220 • capítulo 10
Dizia-se estarem tais empresas submetidas aos interesses corporati- CONCEITO
vos e políticos e, principalmente, de estarem elas vinculadas a um mo-
delo supostamente esgotado, vigente desde a década de 1930, em que o Evasão fiscal
Estado interviria e atuaria excessivamente nas atividades econômicas. Uso de meios ilícitos para evitar o paga-
mento de taxas, impostos e outros tributos.

O Real
CONCEITO
Ultrapassada algumas etapas técnicas foi implantada a nova moeda: o
Real. O plano foi um sucesso, dominando a hiperinflação, estabilizan- Plebiscito
do a economia, gerando alto grau de aprovação do Governo Itamar e, Consulta realizada ao povo antes de uma
principalmente, concedendo a Fernando Henrique Cardoso (FHC) um lei ser promulgada, de maneira a aprovar
prestígio que o levará à eleição para o cargo de presidente da República ou rejeitar as opções que estão sendo por
em 1994 e à reeleição em 1998. ela propostas.

ATENÇÃO
Não podemos esquecer que em cumprimento a uma determinação da própria Constitui-
ção, em abril de 1993, foi realizado um plebiscito para a escolha da forma de governo
(República ou Monarquia) e do sistema de governo (Parlamentarismo ou Presidencia-
lismo) no Brasil.
Mesmo tendo havido um grande percentual de ausência, 66% dos eleitores que
estiveram presentes votaram a favor da forma republicana contra 10% favoráveis
à monarquia, sendo que os demais votaram em branco ou nulo. O sistema de go-
verno presidencialista foi o preferido de 55% dos votos, ao passo que o sistema
parlamentarista (preferido por uma representativa ala de políticos) obteve somente
25% dos votos, razão pela qual foi mantido o regime republicano presidencialista.

A Era FHC: o primeiro mandato


Nas eleições de 1994, graças ao sucesso do Plano Real e, ao permanente
medo que as elites nutriam por uma possível eleição do ex-sindicalista
Luís Inácio Lula da Silva, Fernando Henrique Cardoso vence, ainda no
primeiro turno (com 54,28 % dos votos), a eleição para assumir o mais
alto cargo do Estado.
Embora Lula tenha apontado irregularidades na eleição, alegan-
do uso da máquina pública (pecado que seus adversários também,
e com maior veemência, o acusarão nas eleições de 2006 e 2010),
a verdade é que a quantidade dos votos, inclusive aquela advinda
das classes mais letradas, não colocava em dúvida a legitimidade do
processo eleitoral.

capítulo 10 • 221
1º mandato: estabilização política e econômica e os
ventos neoliberais

Do ponto de vista político, o nome de Fernando Henrique representava uma garantia que o
processo de democratização teria seguimento. Sua biografia indicava um presidente culto,
competente e digno, de tendência socialdemocrata. Aliás, nem mesmo os adversários polí-
ticos duvidariam de suas convicções democráticas.
Entretanto, sob a perspectiva política, não se pode deixar de apontar uma mácula ine-
quívoca no Governo Fernando Henrique: a aprovação de Emenda Constitucional que al-
terava a Constituição para permitir reeleição para os cargos de Chefe do Poder Executivo
(presidente, governador e prefeito).
Os mandatos previstos pela Carta de 1988 eram de cinco anos sem possibilidade de re-
eleição no período subsequente, sendo que a proposta de alteração era no sentido de que
o mandato passasse a ser de 4 anos, porém com a possibilidade de se exercer um outro
mandato subsequente ao primeiro.
A proposta foi considerada uma manobra e, para alguns, um verdadeiro “golpe branco”,
já que a alteração possibilitava ao próprio Fernando Henrique se beneficiar da mesma. Po-
sições mais ponderadas consideravam que, embora a proposta fosse plausível, não poderia
beneficiar o exercente de mandato de Poder Executivo vigente naquele momento. O que se
discutiu mais propriamente naquele momento era menos o aspecto técnico/político (pos-
sibilidade ou não de reeleição), mas, sim, o aspecto ético.
De toda sorte, a proposta de alteração foi aprovada (não sem alguns escândalos sobre
compra de votos) por uma margem pequena de votos, em abril de 1997, permitindo que o
presidente viesse a concorrer à reeleição no ano seguinte. Se é possível afirmar que, sob o
ponto de vista ético, a biografia de FHC saía enfraquecida com esse episódio, o relativo suces-
so da política econômica implementada no primeiro mandato (impulsionado pelo bem-su-
cedido Plano Real) acabou por garantir o segundo mandato, ainda no primeiro turno.
Contudo, deve-se ressaltar que mesmo esse primeiro mandato não passou incólume a
críticas no campo econômico. A acusação da oposição de que os tucanos (o PSDB adota o
tucano como símbolo do partido) teriam optado por uma perspectiva neoliberal prejudi-
cial aos interesses nacionais foi uma constante, principalmente em razão da política de
privatização de empresas públicas (sobretudo nas áreas de telecomunicações, distribuição
de energia elétrica, mineração e financeira).
Todavia, enquanto a estabilidade econômica esteve presente o Governo FHC pôde man-
ter alto seu índice de aprovação junto à população e ao empresariado e, com isso, tranquili-
dade para desenvolver seus projetos. Os problemas começam a surgir mais fortemente no
segundo mandato, quando as eleições já haviam ocorrido.

O segundo mandato FHC: o fim da lua de mel


Os problemas, no entanto, começam a aparecer. Um dos grandes problemas da política eco-
nômica adotada pelo Brasil era a necessidade que se tinha de atrair dólares, a fim de que o
Governo pudesse usá-los para pagamento de compromissos internacionais assumidos (ou

222 • capítulo 10
seja, pagamento de dívidas). O investidor sempre procura segurança e EXEMPLO
qualquer crise faz com que o capital vá procurar os lugares mais seguros.
No decorrer do segundo mandato, o Brasil teve de conviver com vá- Crises internacionais
rias crises internacionais, ocasionando momentos de grande instabili- Apenas para citar algumas das mais
dade e sucessivas fugas de capital do país (em direção a países com a relevantes: a crise asiática em 1997-
economia mais saudável), obrigando a que tivéssemos de recorrer a em- 1998; a crise russa em 1998-1999;
préstimos externos. em 2001, a crise argentina; e os aten-
Essas providências levaram o país a adotar medidas drásticas, redu- tados terroristas nos EUA, em 11 de
zindo gastos públicos, diminuindo investimentos, elevando as nossas já setembro de 2001.
altíssimas taxas de juros, desvalorizando a moeda, entre outras. O certo
é que essas medidas acabaram por desestimular o consumo interno e,
consequentemente, elevaram o desemprego. Na verdade, todos esses REFLEXÃO
fatores se inter-relacionam, caracterizando verdadeiro círculo vicioso.
Para tornar ainda mais crítica a situação,
no ano de 2001, dá-se a ocorrência do
Alguns pontos positivos chamado “apagão”, ou seja, uma crise
nacional que afetou o fornecimento e
De toda maneira, são pontos apontados como positivos do Período FHC a distribuição de energia elétrica, atin-
não apenas a continuidade do Plano Real e a manutenção do controle gindo não só a população (que teve de
sobre a inflação, mas também a criação de alguns programas sociais reduzir o consumo de energia, sob pena
como o vale-gás e o bolsa-alimentação (posteriormente assimilados de pagar uma sobretaxa pelo excesso
pelo Bolsa família, já na Era Lula) e a Lei de Responsabilidade Fiscal, consumido), mas principalmente a in-
que estabeleceu normas de controle de gastos para a União, estados, dústria, abalando ainda mais a comba-
municípios e Distrito Federal. lida economia brasileira.
Embora ainda gere muita polêmica, a tão criticada reestruturação do Esses problemas de “apagões” nos leva
sistema financeiro brasileiro pela via de um programa conhecido como a uma reflexão: quando não se enfren-
PROER (que muito dinheiro custou aos cofres públicos), mais recente- ta de forma conveniente a negligência
mente, no decorrer da crise econômico/financeira mundial de 2008, ob- com a ausência de infraestrutura no
teve seu reconhecimento até mesmo por opositores de FHC. país cria-se sempre uma ameaça.
No entanto, essas conquistas não se apresentaram como suficientes
para superar a baixa aprovação observada no fim de seu mandato. A baixa
popularidade do Governo FHC contribuiu para que a oposição, mais espe-
cificamente o PT, chegasse ao poder pela via eleitoral, dando a oportuni-
dade para que, mais uma vez, se desse a alternância no exercício do poder.

Lula lá: enfim o metalúrgico chega ao poder


Depois de três derrotas consecutivas, na sua quarta tentativa, o candi-
dato de oposição por excelência do período pós-ditadura chega à pre-
sidência: é o começo da Era Lula. Na eleição de 2002: Luís Inácio Lula
da Silva, pelo PT; José Serra, pelo PSDB; Anthony Garotinho, pelo PSB;
e Ciro Gomes, pelo PPS.

capítulo 10 • 223
CONCEITO Os últimos momentos de campanha foram tensos; menos pela
campanha em si, e mais pela expectativa que uma possível vitória de
“Risco Brasil” Lula gerava junto aos investidores internacionais. O passado ligado
Indicador que procura estabelecer o grau às ideias de esquerda fez com que o chamado “Risco Brasil” dispa-
de instabilidade econômica do Brasil, rasse, e com ele, o já mencionado círculo vicioso mais uma vez se
medindo o grau de “perigo” que ele re- apresenta: fuga de dólares do país, elevação das taxas de juros e au-
presenta para o investidor estrangeiro. mento da inflação.
De toda forma, nada disso abalou a intenção do povo de conceder uma
oportunidade ao PT de Lula. Diferentemente das duas últimas eleições
anteriores, resolvidas ainda no primeiro turno, desta vez nenhum dos
candidatos atingiu os 50% dos votos válidos, embora Lula tivesse chegado
perto de vencer ainda no primeiro turno. Lula (46,4%) e Serra (23,2%) dis-
putaram o segundo turno e Lula vence com indiscutíveis 61,3% do total
de votos válidos. Inicia-se a Era Lula.

Ganhando a confiança dos investidores


internacionais

Ao assumir a presidência, Lula parece ter como desafio maior (antes


mesmo de enfrentar as promessas de campanha: entre elas, o combate
à fome) ganhar a confiança dos investidores internacionais, de forma a
estancar a fuga de dólares do país e conseguir que o Brasil se torne um
lugar atraente para o capital internacional.
Aos poucos, essa situação vai sendo revertida, principalmente quan-
do esses investidores percebem que o discurso esquerdista de outrora
foi cedendo espaço para uma visão política mais pragmática. Aliás, essa
situação já vinha sendo evidenciada quando, no decorrer da Campanha,
em 2002, na denominada Carta ao Povo Brasileiro, Lula já enfatizara
que, além da necessidade de priorizar a questão social, a retomada do
crescimento econômico seria sua prioridade.
A visão do Presidente Lula em 2003, diferentemente daquela do ex-
sindicalista, tinha um caráter mais reformista do que propriamente
revolucionária, e isso agradou também aos setores empresariais. Nes-
sa linha, Lula dá continuidade a diversas políticas econômicas imple-
mentadas por FHC, inclusive indicando um nome (Henrique Meirel-
les) ligado ao PSDB para presidir o Banco Central, o que é aceito pelos
investidores internacionais como um sinal de que não intencionava
uma ruptura com o sistema.
É bem verdade que essa posição gerou, dentro do PT, insatisfação
por parte de alguns elementos ligados a posições mais à esquerda do
que o governo pretendia estar. Petistas históricos afastam-se do gover-
no que, cada vez mais, assume a posição de mediador entre os interes-
ses antagônicos dos diversos setores da nossa sociedade, procurando

224 • capítulo 10
representar não apenas os anseios dos trabalhadores e das classes mais baixas, mas, con-
tra todas as expectativas, também os interesses dos setores empresariais brasileiros.

Os programas sociais
As políticas sociais se manifestaram de forma contundente e ganharam grande espaço com
a implantação de diversos programas sociais: Bolsa Família, à frente, mas também Fome
Zero e Primeiro Emprego com grande destaque, entre outros.
Essas ações ganham grande visibilidade concedendo imensa popularidade ao presi-
dente e ao PT (cujo crescimento nas eleições municipais de 2004 é significativo).
No entanto, por outro lado, o Bolsa Família gera fortes críticas por parte da oposição,
pois representaria, segundo ela, o maior programa oficial de compra de votos do mundo. O
fato é que, independentemente da polêmica despertada em relação às repercussões eleito-
rais, alguns órgãos internacionais consideraram o Bolsa Família um dos principais progra-
mas de combate à pobreza do mundo.

“Esquema do mensalão”
Em 2005, porém, em meio ao sucesso econômico e à alta popularidade, surge uma série
de escândalos políticos que colocam em risco a estabilidade governamental. É o famoso
“esquema do mensalão”, que tantas repercussões irá causar e que envolve a compra de vo-
tos de deputados no Congresso Nacional. Na verdade, existiria uma imensa estrutura de
corrupção que garantiria o pagamento a deputados e senadores para que estes votassem a
favor das propostas do governo.
Esse escândalo não somente colocou em questão antigas bandeiras da ética e da mo-
ralidade na política, defendidas de forma tão veemente pelo PT no passado, como ampliou,
ainda mais, a desconfiança que o povo depositava na classe política. Para uma democracia re-
presentativa que almeja se consolidar e
ser forte, nada pode ser mais ameaçador Para uma democracia
do que a descrença do povo em seus re- representativa que almeja se
presentantes. consolidar e ser forte, nada
Entretanto, apesar da crise política pode ser mais ameaçador do
e do estrago (não apenas político, mas
que a descrença do povo em
também ético) causado pelo escândalo,
a verdade é que os ótimos resultados seus representantes.
alcançados na economia e as bem geridas políticas assistencialistas garantiram a Lula o
sucesso nas urnas e, consequentemente, mais um mandato presidencial. Entre a ética e
a segurança econômica, o povo, embora decepcionado, preferiu não optar por mudanças,
elegendo Lula para o período 2006-2010.

capítulo 10 • 225
COMENTÁRIO
Lembram-se do início deste capítulo, quando afirmamos que quando se observa de muito perto se perde a
necessária noção do todo? Pois é. Preferimos parar por aqui. Ir adiante no tempo seria arriscar-se mais do
que a cautela aconselha. Lembram-se do que dissemos acerca da análise de fatos históricos próximos ao
nosso tempo? Aqui nos encontramos em uma fronteira perigosa.
Todavia, antes de finalizarmos este capítulo, façamos uma breve e sintética análise no processo de trans-
formação por que passou a produção jurídica no pós-1988.

O direito brasileiro na contemporaneidade: breves notas


O direito brasileiro vem sofrendo muitas mudanças depois da Constituição de 1988. Nem
poderia ser diferente: uma coisa é um regime democrático, de respeito às liberdades, outra
coisa é um direito interpretado para servir a um regime autoritário. Por isso, a Constituição
de 1988 não foi importante somente pelas regras que estão no seu texto. Ela também es-
palha seus valores democráticos, libertários e cidadãos (por intermédio de princípios) por
todas as demais normas do sistema jurídico.

REFLEXÃO
Pense em uma lâmpada amarela acesa projetando sua luz sobre alguns objetos. Ela fará com que todos os
objetos por ela iluminados pareçam amarelados. Agora, troquemos a lâmpada por uma azul, por exemplo. É
evidente que todos os objetos parecerão azulados. Se trocamos por uma lâmpada verde os objetos parecerão
esverdeados e assim por diante.
Também assim é com a nossa Constituição. Ela tem sua própria “personalidade” e faz com que todas as
normas do sistema sejam influenciadas pela sua forma de ser. Se ela busca ser democrática, liberal e com
preocupações sociais, obrigatoriamente o sistema deverá seguir essa direção.

Nem sempre foi assim. Antigamente a Constituição apenas organizava o Estado e esta-
belecia direitos subjetivos (fundamentais). Esse fenômeno é decorrência direta de uma te-
oria que vem sendo cada vez mais reconhecida no Brasil e que se chama “constitucionaliza-
ção do direito”. Ela afirma que todas as normas do sistema jurídico devem ser produzidas
e/ou interpretadas de acordo com a Constituição. Aliás, para ser mais preciso, de acordo
com a Constituição vigente e, no nosso caso, a Constituição de 1988.

PERGUNTA
É possível que você pergunte: mas e o Código Penal de 1940, que ainda está vigente, e foi produzido na
época da Constituição de 1937? Ele deve ser interpretado pela “luz” de qual Constituição? Essas não são
perguntas difíceis de responder: devem ser interpretadas pela “luz” da nova Constituição, a de 1988.

226 • capítulo 10
ATENÇÃO COMENTÁRIO
A Constituição de 1988 é que está no comando; é ela quem determina quais os valo- Valores
res que devem predominar em qualquer norma que esteja sendo usada pelos nossos Nesse sentido, devemos lembrar as lições
juízes quando buscam solucionar os casos que lhes são apresentados. de Miguel Reale quando afirma que o di-
Por isso, não interessa qual a data em que a lei veio ao mundo; embora ela traga ca- reito é tridimensional (fato, valor e norma).
racterísticas do tempo em que foi produzida, se suas normas são reconhecidas como Lembra? Vimos isso no capítulo 9.
normas ainda válidas (e você já aprendeu esse conceito), devem brilhar com a cor
(valores) que nossa Constituição der a elas e, portanto, deverá espelhar a imagem
democrática e politicamente liberal da Constituição de 1988.

Sistema jurídico
Não é só o texto constitucional que define se um sistema jurídico é de-
mocrático. Pelo contrário, a leitura deste texto depende muito da reali-
dade fática e dos valores de um tempo histórico específico.
Como já dito algumas vezes também, mesmo que mantenhamos
algumas características (permanências) que construímos no decorrer
da nossa história (isso nos confere uma identidade), a verdade é que o
mundo vem mudando bastante nos últimos tempos.

REFLEXÃO
Depois de termos estudado que o direito brasileiro se apresentou como fruto da histó-
ria de cada tempo, mas também (e simultaneamente) como motor para novas mudan-
ças no âmbito social, devemos lançar um olhar crítico para o tempo em que vivemos
e admitir que para nós, brasileiros, essa é uma época de amplo reconhecimento de
liberdades civis e políticas, de democracia, de pluralismo, de reconhecimento dos di-
reitos de minorias (etnia, religião e língua) e também do que vem sendo denominado
de grupos vulneráveis (gênero, idade, condição social, deficiência, orientação social).

Todas essas visões são amparadas pelos valores que nossa Constitui-
ção emana e, consequentemente, nada mais natural que o sistema jurí-
dico acompanhe essas conquistas. Ora, em um mundo no qual as mu-
danças são cada vez mais velozes, uma das funções do direito moderno
é auxiliar para que essas (mudanças) sigam a direção estabelecida por
alguns dos valores maiores expressos pela Constituição, tais como liber-
dade, igualdade e solidariedade.

capítulo 10 • 227
EXEMPLO
Apenas para efeitos exemplificativos, apresentaremos algumas leis que foram introduzidas em nosso sistema
após a Constituição de 1988 e que bem traduzem essa necessidade de superar permanências históricas in-
compatíveis com o século XXI, bem como criar legislações que nos conectem com esses novos tempos que
surgem. O interessante é observar que são legislações que há bem pouco tempo ou não seriam possíveis, ou
não fariam o menor sentido.

Lei de Biossegurança
Trata a produção e comercialização de organismos geneticamente modificados e a pesquisa com células-tron-
co, dois assuntos polêmicos e que são consequência das novas discussões sobre bioética.

Lei Maria da Penha (Lei nº 11.340/2006)


Cria mecanismos para coibir a discriminação e a violência doméstica e familiar contra as mulheres. Como se
sabe, a perspectiva machista sempre esteve presente em nossa formação social.

Lei de Cotas (Lei nº 12.711/2012)


Entre outras iniciativas por parte de alguns estados da Federação, obriga universidades, institutos e centros
federais a reservarem para candidatos cotistas metade das vagas oferecidas anualmente em seus processos
seletivos. Vale lembrar que as cotas são um instrumento de ação afirmativa que tenta corrigir a desigualdade de
oportunidades que observamos terem sido estabelecidas no decorrer de nossa formação histórica, concedendo
maiores oportunidades às populações negra, indígena e pobre.

O Estatuto da Criança e do Adolescente ou ECA (Lei nº 8.069/1990)


Visa a adequar a legislação aos princípios da Convenção das Nações Unidas sobre os Direitos da Criança,
reforçando alguns preceitos determinados pela Constituição de 1988. Na verdade, o ECA, ao estabelecer a pro-
teção integral das crianças e dos adolescentes como prioridade na formulação de políticas públicas, acaba por
reafirmar o dever do Estado, da família e da sociedade em garantir o direito das crianças e dos adolescentes à
liberdade, à dignidade, à convivência familiar e comunitária, à saúde, à educação, à cultura, ao esporte, ao lazer, à
profissionalização e à proteção do trabalho, protegendo-os contra qualquer forma de exploração, discriminação,
violência e opressão.

Estatuto dos Idosos (Lei nº 10.241/2003)


O objetivo principal é o de assegurar os direitos sociais do idoso, para assim promover sua autonomia,
integração e participação efetiva na sociedade.

Lei Caó (Lei nº 7.716/1989)


Seu objetivo é proteger a igualdade racial e a tolerância religiosa. É considerada o embrião da legislação
que combate os crimes de racismo.

Código de Defesa ao Consumidor ou CDC (Lei nº 8.078/1990)


Lei bastante abrangente que trata das relações de consumo em todas as esferas: civil (definindo as res-
ponsabilidades e os mecanismos para a reparação de danos causados); administrativa (definindo os me-
canismos para o poder público atuar nas relações de consumo); e penal (estabelecendo novos tipos de
crimes e as punições para os mesmos).

228 • capítulo 10
Lei da Assistência Social (Lei nº 8.742/1993) CONCEITO
Estabelece os direitos do cidadão a “mínimos sociais” que devem ser providos pelo Esta-
do, por meio de um conjunto integrado de ações de iniciativa pública e da sociedade, de Iniciativa Popular
forma a garantir o atendimento às necessidades básicas. Trata-se de um projeto de lei proposto
pelo povo, conforme as regras estabele-
Legislação ambiental cidas pela Constituição Federal de 1988.
Trata-se de um complexo normativo dos mais avançados (ao menos, em termos legisla-
tivos) do mundo. Seguem os parâmetros estabelecidos pela Constituição Federal, sendo
abordada não só por lei federal, mas também por normatizações estaduais e municipais.

Leis de proteção aos deficientes


Principalmente com base no que estabelece a Constituição Federal de 1988, foi sendo
estabelecida ampla rede de normas que visam garantir às pessoas com deficiência o
acesso aos mesmos bens e serviços disponíveis para os demais cidadãos.

Código Civil de 2002 (Lei nº 10.406/2002)


Representa uma resposta às intensas evoluções das relações sociais ocorridas não
só no Brasil, mas no mundo no decorrer do século XX, em áreas como família, pro-
priedade, personalidade etc.

Legislação de direitos sociais


Complexo normativo muito amplo (com normatizações bem avançada em determinadas
áreas) que estabelecem os marcos para usufruto de direitos como educação, serviço de
saúde, moradia, alimentação, lazer, trabalho, previdência social, entre outros.

Lei da Ficha Limpa


A pressão popular fez nascer o Projeto de Lei de Iniciativa Popular, que conseguiu
reunir cerca de 1,3 milhão de assinaturas (aproximadamente 1% do total do eleitorado na-
cional), estabelecendo critérios rígidos e impeditivos a candidatos condenado por órgãos
colegiados do Poder Judiciário, que pretendiam exercer cargos eletivos.

Lei do Marco Regulatório da Internet (Lei nº 12965/2014)

Determina direitos e deveres para os usuários de internet e estabelece


normas para provedores e empresas de tecnologia. Surgiu em resposta
às necessidades dos novos tempos.

COMENTÁRIO
Entre idas e vindas democráticas, esperamos que tenha sido possível observar a ênfase
que se tentou dar ao fato de que um país verdadeiramente democrático só pode ser
construído quando cidadãos autônomos e conscientes lutam por seus direitos de
participação na formação da vontade do Estado.
Diferentemente do que já foi dito por influente historiador, a História não acabou e somos

capítulo 10 • 229
IDEIA nós os protagonistas do presente e do futuro, buscando concretizar um ideal coletivo, do
qual, admitimos, ainda estamos distantes: a construção de um país livre, igual e ético.
Resumo Se a História nos mostra ser uma tarefa áspera superar algumas permanências indese-
No YouTube você encontra o vídeo “Histó- jáveis, ela própria tem nos mostrado ser perfeitamente possível superar outras tantas,
ria do Brasil por Bóris Fausto – Redemo- sem que isso signifique abrir mão da nossa identidade brasileira, construída em séculos
cratização”. Trata-se de uma ótima revisão de vivência histórica.
do que vimos até aqui. Por isso, não deixe
de assisti-lo.
RESUMO
Veja agora um resumo do capítulo.

O nome de Fernando Collor de Mello foi o escolhido pelas vertentes conservadoras


para representar essa visão nas primeiras eleições presidenciais após o Golpe Militar.
Os casos de corrupção e uma política econômica contestada, que não agrada nem
as elites, nem as classes populares, acabam por levá-lo ao impeachment.
De toda forma, a utilização do instituto do impeachment, regulado pela própria
Constituição, reforça a ideia de que o país, cada vez mais, vê fortalecidas suas
instituições democráticas.
O Governo Itamar Franco (1993-1994) é marcado por dar início à execução do Pla-
no Real, programa que derrotou a inflação no Brasil, depois de tantas malsucedidas
tentativas em governos anteriores.
O sucesso do plano faz com que Fernando Henrique Cardoso, Ministro da Fazenda
na época e que liderou o processo de implantação do referido plano, vença as elei-
ções de 1994 e reeleja-se em 1998.
Após algum sucesso obtido na política econômica, várias crises internas e externas
levam o Brasil a enfrentar turbulentas crises na área econômica, desgastando o
governo e sua política neoliberal.
Com isso, o apoio popular conquistado com o sucesso do Plano Real vai, pouco a
pouco, se esvaindo. De toda maneira, as instituições democráticas e as liberdades
públicas continuaram fortalecendo-se no período.
Inicia-se a Era Lula que, após a desconfiança inicial do empresariado nacional e dos
investidores internacionais com o passado esquerdista, consegue fazer o país alcan-
çar certa estabilidade econômica.
A capacidade de mediar os interesses antagônicos dos diversos setores da nossa
sociedade, além de fazer reviver a ideia do Brasil como país do futuro levam Lula à
reeleição para um novo mandato (2007-2010), mesmo que os escândalos do men-
salão tenham abalado a figura histórica do ex-sindicalista e mais ainda a reputação
de partido ético construída pelo PT, no decorrer da sua história.
A Constituição vai ganhando novas atribuições: não apenas organiza o Estado
e estabelece garantias fundamentais aos cidadãos brasileiros, mas passa a ser
considerada amplificador de valores que irradiam os valores constitucionais por
toda a ordem jurídica.
A esse fenômeno, denominado “constitucionalização do direito”, deve-se o fato de
que as normas da legislação anterior à Constituição passem, cada vez mais, a ser

230 • capítulo 10
interpretadas segundo sua visão, seus valores (principalmente, liberdade, igualdade e solidariedade) e seu
regime (democrático).
Novas e avançadas legislações são produzidas de forma a concretizar, ainda mais, a democracia brasileira, a
cidadania plena e os direitos de liberdade e igualdade exigíveis a um verdadeiro Estado Democrático de Direito.

ATIVIDADE
Questão 1:

(FGV 2012 — Adaptada) Em julho de 2011, faleceu o ex-presidente Itamar Franco. A respeito da
sua chegada ao poder e do seu governo, é correto afirmar:

a) Venceu Luiz Inácio Lula da Silva no primeiro turno das eleições disputadas em 1994, graças ao sucesso
do Plano Real, implementado no governo de Fernando Henrique Cardoso.
b) Venceu Luiz Inácio Lula da Silva nas eleições de 1989 e organizou um governo de coalizão nacional, do
qual participaram todos os demais partidos políticos brasileiros, inclusive o PT.
c) Assumiu a presidência após o processo de impeachment do presidente Fernando Collor de Mello e, com
seu ministro Fernando Henrique Cardoso, implementou o Plano Real.
d) Foi eleito em janeiro de 1985, em eleição direta pelo colégio eleitoral, e organizou um governo de refor-
mas políticas e econômicas que permitiram sua reeleição em 1994.
e) Foi eleito em 1994 devido ao sucesso do Plano Real implementado no governo do presidente Fernando
Henrique Cardoso, do qual participou como ministro da Fazenda.

Questão 2:

Analise as assertivas abaixo que tratam do período pós-ditadura:


I — O Governo Sarney, embora autoritário (resíduo do regime militar) obteve sucesso na área econômica
graças aos cidadãos brasileiros que se incumbiram de ser “fiscais” da política econômica no período Sarney.
II — A Constituinte brasileira foi palco de intensas disputas ideológicas entre grupos denominados “pro-
gressistas” e o “Centrão”, grupo de tendência conservadora, sendo que a Constituição de 1988 acabou por
retratar esse equilíbrio de forças.
III — O Governo Fernando Henrique Cardoso encontrou no processo de privatização de empresas públicas
uma orientação na condução da política econômica de seu governo, considerado por muitos como neoliberal.
IV — O “Mensalão” foi um acontecimento secundário da política nacional e deve ser analisado como um
fato natural, próprio das disputas democráticas.

Representam ideias CORRETAS as seguintes afirmativas:


a) I e II
b) II e III
c) III e IV
d) I e IV

capítulo 10 • 231
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
BAER, Werner. A economia brasileira. 2. ed. São Paulo: Nobel, 2002.
BARROS, Otávio de; GIAMBIAGI, Fabio. Brasil globalizado. O Brasil em um mundo surpreendente. Rio de
Janeiro: Elsevier, 2008.
BRESSER PEREIRA, Luís Carlos. Os Tempos Heróicos de Collor e Zélia. Barueri: Nobel, 1991.
CARNEIRO, Maria Cecília Ribas. O Governo Fernando Henrique 1995 1998. São Paulo: Três, 1999.
CAVALCANTI, Luís Otávio. Como a corrupção abalou o Governo Lula. Por que o presidente perdeu a razão
e o poder. Rio de Janeiro: Ediouro, 2005.
DIAS, Luís Antônio. Plural e Singular: análise da mobilização pelo Fora-Collor. In: Estudos de História. Franca. v. 1.
FARIA, José Eduardo. Direito e Economia na Democratização Brasileira. São Paulo: Saraiva, 2013.
FILGUEIRAS, Luiz. História do Plano Real, fundamentos, impactos e contradições. São Paulo: Boitempo, 2000.
GOERTZEL, Ted G. Fernando Henrique Cardoso e a Reconstrução da democracia no Brasil. São Paulo:
Saraiva, 2002.
GOMES, Marcos Emílio (Coord.). A Constituição de 1988. 25 anos de construção da democracia e liberdade
de expressão. O Brasil antes, durante e depois da Constituição. São Paulo: Instituto Vladimir Herzog, 2013.
LEONI, Brigitte Hersant. Fernando Henrique Cardoso — O Brasil do possível. Bonsucesso: Nova Fronteira, 1997.
PARANÁ, Denise. Lula, o filho do Brasil. São Paulo: Fundação Perseu Abramo, 2002.
PEREIRA, Álvaro. Depois de FHC: personagens do cenário político. São Paulo: Geração Editorial, 2002.
REALE, Miguel. De Tancredo a Collor. São Paulo: Siciliano, 1992.
SOARES, Laura Tavares et al. Governo Lula: decifrando o enigma. São Paulo: Boitembo, 2004.
VILLA, Marco Antonio. A história das constituições brasileiras. 200 anos de luta contra o arbítrio. São
Paulo: Leya, 2011.
VOLKMER, Antônio Carlos. História do Direito no Brasil. 4. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2007.

232 • capítulo 10
ANOTAÇÕES











































ANOTAÇÕES











































ANOTAÇÕES











































ANOTAÇÕES











































ANOTAÇÕES











































ANOTAÇÕES











































ANOTAÇÕES











































ANOTAÇÕES

Você também pode gostar