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COLONIALISMO E MOVIMENTOS ANTISSISTÊMICOS1

RAÚL ZIBECHI

El sujeto del conocimiento histórico es la clase


oprimida misma, cuando combate.
Walter Benjamin

También hay racismo en la izquierda, sobre todo


en la que se pretende revolucionaria.
Subcomandante Insurgente Marcos

Em 17 de outubro de 1961 o estado francês perpetrou um massacre de


argelinos residentes em Paris. Foi um massacre colonial. Não existem cifras
precisas, mas estima-se que entre 150 e 200 argelinos foram assassinados pela
polícia durante uma manifestação pacífica convocada pela seção francesa da Frente
de Libertação Nacional (FLN), para protestar contra o toque de recolher que lhes foi
imposto em 5 de outubro pelo prefeito Maurice Papon. Alguns cadáveres foram
lançados no Rio Sena e outros foram pendurados nas árvores como aviso. Cerca de
11 mil manifestantes foram presos e levados ao Palácio dos Esportes e a centros da
polícia, onde foram espancados e humilhados durante quatro dias.
O de Paris foi um massacre comparável ao que foi perpetrado na Praça
Tlatelolco em 2 de outubro de 1968, e a muitos outros que se sucederam em outras
regiões do mundo. No entanto, durante três década permaneceu no esquecimento.
Os livros publicados foram confiscados e foi proibida a exibição de um filme sobre o
massacre. Para o estado francês houve apenas três mortos. A memória dos fatos do
17 de outubro de 1961 permaneceu reclusa às famílias e coletivos argelinos, e nos
poucos intelectuais e militantes franceses que os apoiavam. Na década de 1980, e
em particular após 1991, tornou-se a falar sobre um dos mais atrozes massacres
cometidos na França. Em 1998 Papon foi condenado, não como responsável pelo
massacre, mas sim como colaborador dos nazistas e por crimes contra a
humanidade durante o regime de Vichy (1940-1944).
Estes fatos ilustram de modo transparente e inequívoco a existência de um
corte entre as pessoas que são reconhecidas como seres humanos e aquelas a
quem é negado este reconhecimento. É um dos temas centrais de Fanon2, o núcleo
do colonialismo, mas também do capitalismo em sua etapa atual de acumulação por
desapropriação, que atualiza a ordem colonial. O lugar dos argelinos no mundo,

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1
Texto originalmente publicado como Introdução ao livro Descolonizar la rebeldía. (Des)
colonialismo del pensamiento crítico y de las prácticas emancipatorias. Málaga: Baladre;
Zambra; Ecologistas en Acción, 2014. Tradução: Alessandro de Melo (fevereiro de 2016).
2
Frantz Fanon!FALAR SOBRE
tanto na metrópole quanto em seu próprio país, é o lugar de onde reflete Fanon, que
será nosso guia nesta jornada sobre os movimentos sociais e sua relação com o
colonialismo. Em particular, interessam-me aquele movimentos – como os de
indígenas, dos afros, dos camponeses e de moradores das periferias urbanas da
América Latina – que fazem política “desde a zona do não-ser” (Grosfoguel, 2012 e
2013). O massacre de Paris é um pretexto para entrarmos neste debate. Poderia
haver eleito outras matanças, entre todas as que nos oferece a história brutal do
capitalismo na América Latina, inclusive as numerosas que foram cometidas nestes
mesmos anos na Argélia. Escolher Paris, a cidade das Luzes, da Comuna3 e das
vanguardas artísticas, nos ajuda a por em contraste ambos os mundos e nos
permite colocar luz sobre os modos como se levantam os oprimidos, mas também
sobre as estreitezas da teoria crítica e das esquerdas no momento de incluí-los
como sujeitos em suas reflexões.
Argélia foi ocupada pela França em 1830, anexando-a como departamento
francês. Em 1872 a França havia confiscado cinco milhões de hectares das
melhores terras para entregá-las a sociedades vinculadas à guerra de conquista
(entre elas a Societé Genevoise4), a colonos privilegiados, generais de carreira e
“legionários fiéis que da noite para a manhã se transformam em proprietários”
(Goldar, 1972: 23). No início da década de 1950, 25 mil colonos franceses possuíam
2,7 milhões de hectares e os argelinos (aproximadamente nove milhões) tem 7,6
milhões de hectares. Os europeus cultivavam com tratores, os argelinos com arados
de madeira.
Além da agressão econômica produz-se uma agressão demográfica: desde
1830 se trasladaram para a Argélia um milhão de franceses, estabelecendo uma
relação de um por dez, bem diferente da registrada em outros processos de
colonização. Em 8 de maio de 1945 toda a França festejou a capitulação da
Alemanha nazista. Neste mesmo dia na Argélia, na cidade oriental de Sétif, no
departamento de Constantina, milhares de pessoas se manifestaram pacificamente
pela independência. Ao chegar ao bairro francês, um manifestante levantou uma
bandeira argelina. Foi assassinado por um policial. Nos enfrentamentos morreram
103 europeus e milhares de argelinos. O exército francês, a Legião estrangeira e as
milícias de colonos provocaram nos dias seguintes um dos mais brutais massacres

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falar sobre a Comuna de Paris, ou ao menos indicar que ele fala disso.
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falar sobre!
que se pode ter lembranças, que levou à morte de cinco a vinte mil pessoas, ainda
que algumas fontes elevam os assassinatos a mais de quarenta mil5.
O massacre convenceu os argelinos sobre a impossibilidade de conseguir a
independência por meio de diálogos e negociações. Enquanto eram assassinadas
as crianças argelinas a tiros nas ruas e mercados de Sétif e Guelma, “na França
livre, governa um gabinete de coalizão dirigido por De Gaulle e integrado pelos
comunistas (Charles Tillon e Maurice Thorez) que se apressam para ignorar o
trâmite nomeando uma ‘comissão investigadora’ que termina justificando aos
franceses” (Goldar, 1972: 48). O racismo atravessava, pelo menos naqueles
momentos, todo o espectro político francês, ainda que com diferentes modos e
intensidades.
Em 1 de novembro de 1954, a FLN lança a guerra pela independência com
40 atentados que provocam danos materiais e sete mortos. No ano seguinte as
tropas de ocupação chegam a 160 mil soldados, que crescem até meio milhão em
1959; os combatentes, que eram apenas 400 quando começou a guerra, chegam a
40 mil milicianos em 1959 (Goldar, 1972: 61). Em 1955 foi aprovada uma lei que
autorizava aos prefeitos dos departamentos a declarar toque de recolher e a
regulamentar a circulação em suas respectivas circunscrições, como resposta ao
levante argelino (Thénault, 2007).
Os oito anos que durou o conflito, até a independência em 1962, foram uma
guerra colonial do ocupante contra todo o povo argelino que apoiou maciçamente o
FLN. O exército francês cometeu as atrocidades próprias do ocupante: assassinatos
em massa, torturas não somente a combatentes mas também a crianças, internação
em campos de concentração, violações de mulheres e crianças, entre outras. Para
se ter uma ideia da virulência da guerra, a FLN informou que foram mortos um
milhão de argelinos e outro milhão foram torturados, de um total de
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aproximadamente nove a dez milhões de habitantes . Vários europeus residentes na
Argélia foram condenados à morte por apoiar a FLN (Goldar, 1972: 96). A maior
parte dos europeus que viviam na Argélia apoiaram o exército francês, e uma
pequena parte integrou a OAS (Organización de l’Armée Secréte), grupo terrorista
de extrema direita no qual participavam militares e policiais.

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O historiador Alistair Horne assegura que muitos cadavers estavam mutilados, as mulheres
com os peitos cortados e os homens com os testículos cortados colocados na boca: Alistais
Horne, A savage war of peace: Algeria 1954-1962 (New York, The Viking Press, 1977). Em
2005 o president Jacques Chirac e em 2012 o presidente François Hollande, reconheceram
o massacre de Sétif (L’Express, 20 de dezembro de 2012).
6
Outras fontes estimam cifras menores, ainda que reconheçam entre 300 mil e meio milhão
a cifra de mortos.
Na França viviam ao redor de 350 mil argelinos que trabalhavam como mão
de obra barata para a indústria, dos quais uma parte considerável apoiava a FLN de
forma clandestina, por meio de coletas para a compra de armas e a ajuda a
familiares das vítimas e presos. Em agosto de 1958, a FLN decidiu abrir uma
segunda frente de guerra contra a França, com uma campanha de atentados com
bombas contra as infraestruturas petroleiras e prédios da polícia, como forma de
pressionar as autoridades francesas que cumpriam uma campanha impiedosa
contra os independentistas na Argélia. Em setembro se decretou o toque de recolher
para os “trabalhadores muçulmanos argelinos” das 20h30 até as 5h30 (Thénault,
2008: 168). Em março, Maurice Papon havia sido nomeado comandante da Polícia
de Paris, em um clima de exasperação dos policiais que exigiam mão dura contra os
argelinos. Papon manteve um cargo similar em Constantina, Argélia, e era
considerado especialista no trato duro e sem contemplações com os norteafricanos,
e foi nomeado expressamente para desarticular a FLN em Paris. Durante a segunda
guerra mundial havia sido colaborador dos nazistas como secretário geral na
prefeitura de Gironda, implementando a deportação de judeus de Bordéus para a
Alemanha7.
A prefeitura de Papon institucionalizou a repressão e o controle dos norte-
africanos em Paris, abriu o Centro de Identificação de Vincennes, criou uma força
policial auxiliar integrada por harkis8, e realizou ataques permanentes nos bairros da
região Oeste, onde viviam a maior parte dos imigrantes, como Nanterre e
Aubervilliers (Nordmann, 2005). Desde o início de 1961 ocorrem atentados
atribuídos à OAS contra hotéis frequentados por argelinos, desaparecem militantes
e colaboradores da FLN, que logo aparecem mortos, em um clima de crescente
hostilidade. Antes do massacre de 17 de outubro ocorreram dois fatos que a
antecederam: em 2 e 3 de abril ocorreu um ataque dos harkis no qual resultou 150
argelinos gravemente feridos, no bairro Goutte d’Or, do Distrito 18o, povoado por
argelinos; na noite de 24 para 25 de julho um grupo de 300 paraquedistas atacou a
parte argelina da cidade industrial de Metz, no norte da França, provocando três
mortos.
Em maio de 1961 abrem-se negociações entre o governo francês eo
Governo Provisório da República da Argélia, braço político da FLN, que se
interrompem em julho por desacordos sobre o futuro do Saara, onde encontram-se
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Papon foi acusado pela deportação de 1.600 judeus para a Alemanha entre julho de 1942 a
maio de 1944, e acabou sendo condenado em 1998 a dez anos de prisão por cumplicidade
em crimes contra a humanidade.
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Argelinos que colaboram com o ocupante. Na Argélia é sinônimo de traidor. Os corpos dos
harkis estavam enquadrados no exército ou na polícia franceses.
as principais riquezas argelinas. Em fins de agosto a FLN retoma sua campanha de
ataques em solo francês, que havia interrompido durante as negociações. Entre 29
de agosto e 3 de outubro ocorreram 33 ataques nos quais morreram treze policiais
(Nordmann, 2005). Papon alimenta o ódio policial contra os argelinos. Durante o
funeral de um policial, em 2 de outubro, disse: “Por cada golpe que recebermos,
devolveremos dez” (Einaudi, 1991: 79).
Os ataques são massivos, com mais de 600 detidos por algumas noites. Em
5 de outubro foi estabelecido um novo toque de recolher para os argelinos, já que o
de 1958 havia sido desbordado, obrigado a fechar os lugares de venda de bebidas,
com a expressa recomendação de andar sozinhos, já que “os pequenos grupos
correm o risco de parecer suspeitos para as patrulhas policiais” (Thénault, 2008:
172). A FLN decide convocar uma manifestação pacífica ao mesmo tempo em que
finaliza os atentados na França. A organização local da FLN resolve que a
manifestação deve realizar-se durante o dia, sem armas e sem cair em
provocações. Na tarde de 17 de outubro, entre vinte e trinta mil argelinos ocupam as
ruas do centro de Paris. Quatro colunas marcham para o centro: serenos, dignos,
vestidos com suas melhores roupas (endomingados, propôs a FLN), desafiando o
toque de recolher. A repressão foi brutal. Houve abundantes disparos contra a
multidão, que resistiu com assombrosa serenidade. Mais de onze mil foram detidos
e levados a diversas dependências policiais e ao Palácio dos Esportes. Algumas
fontes asseguram que várias dezenas de pessoas foram assassinadas durante a
noite no quartel de polícia e nos dias seguintes apareceram cadáveres nas margens
do Sena (Einaudi, 1991: 82).
Até aqui os fatos, sumariamente recortados. O Estado censurou as
publicações que relataram o massacre. O livro de Paulette Péju, Ratonnades a
Paris, publicado no final deste mesmo ano pela editorial Maspero, teve sua
distribuição e venta proibidas pela polícia. O mesmo ocorreu com o filme de Jacques
Panijel, Outubro em Paris, quando foi projetado no ano seguinte.
A independência foi reconhecida em 18 de março de 1962, seis meses
depois do massacre em Paris. Todavia, os fatos acabaram no esquecimento e
apareceram recentemente, quase trinta anos depois, graças ao trabalho militante do
movimento antirracista da década de 1980. A historiadora Sylvie Thénault assinala
que foi gerado um segredo em torno do massacre de 17 de outubro de 1961, com
base em três lógicas: a camuflagem, o esquecimento e a ocultação (Thénault, 2000:
72). A camuflagem provém da atitude do aparato estatal e consiste em negar, proibir
a difusão e deformar os fatos, apesar do fato de que alguns meios informaram, nos
dias seguintes e com detalhes, ainda que não lhe deram a importância que merecia.
O esquecimento, pelo contrário, “explica-se pela atitude dos franceses no momento
dos fatos”, já que “somente as minorias militantes reagiram e protestaram”, incluindo
uma declaração dos grandes sindicatos, um ato na Sorbonne e uma manifestação
convocada pelo Partido Socialista, à qual compareceram dois ou três mil pessoas
em novembro (Thénault, 2000: 73). O que não houve foi uma reação massiva, nem
uma corrente de opinião a favor dos argelinos.
A ocultação dos fatos aconteceu de forma mais complexa. Thénault sustenta
que o 17 de outubro foi apagado pela “repressão de Charonne” e que esta
responsabilidade “interessa às minorias militantes” (Thénault, 2000: 73). Em 8 de
fevereiro de 1962, três meses depois do massacre de 17 de outubro, o Partido
Comunista convocou uma manifestação contra os atentados que realizava a OAS e
pelo fim da guerra da Argélia, quando estavam a ponto de serem assinados os
Acordos de Evian, que consagravam a independência.
A partir do mês de novembro de 1961, além de manifestações reclamando o
fim da guerra, produziram-se atentados da OAS, um dos quais contra o prédio do
Partido Comunista, com um saldo de vários feridos. A manifestação de 8 de
fevereiro foi convocada pelos comunistas e várias centrais sindicais. Compareceram
cerca de 10 mil pessoas, que se concentraram em cinco pontos. Quando a multidão
se dispersava, uma investida policial provocou a morte de nove pessoas, todas
trabalhadoras e militantes francesas. No dia 13, cerca de meio milhão de pessoas
renderam homenagem às vítimas no cemitério de Père Lachaise. No ato, somente
um dos oradores fez uma referência ao massacre de 17 de outubro (Thénault, 2000:
73). O massacre de Charonne ficou inscrito na memória coletiva, durante três
décadas, como a principal repressão vinculada à guerra da Argélia. Em grande
medida, porque as vítimas eram franceses de esquerda que contavam com partidos,
sindicados e meios de comunicação que sustentaram a memória. Thénault examina
as razões da “ocultação” do massacre de 1961 em contraste com a viva recordação
do massacre de Charonne:

A repressão de Charonne evoca facilmente uma tradição de


protestos e confrontação do povo parisiense com as forças da
ordem que o reprime duramente. Esta tradição da cultura política
francesa remonta-se à Comuna. Mais ainda, a repressão de
Charonne despertou o orgulho que deu lugar a uma grande
manifestação de 500 mil pessoas.
Ao contrário, a memória de 17 de outubro culpabiliza os franceses
por duas razões: a indiferença geral que seguiu à repressão é uma
atitude que não desperta orgulho; além disso, a natureza da
repressão conecta na memória coletiva com outros momentos de
“desgraça nacional”. A analogia entre as prisões massivas de 17 de
outubro e os ataques aos judeus durante a Segunda Guerra
Mundial é muito comum nos jornais da época. É uma repressão
pesada de assumir. Também é revelador que outubro ressurgiu
através da Segunda Guerra Mundial, por ocasião da análise das
responsabilidades, da culpabilidade dos franceses durante esse
período (Thénault, 2000: 74)

A memória do massacre de outubro ressurgiu na década de 1980 a partir dos


bairros pobres (bidonvilles) da periferia Oeste de Paris, (Nanterre, Gennevilliers,
Argentuil), não somente por parte dos argelinos mas sim de todos os norte-
africanos. Eram os filhos, os vizinhos, os amigos dos que sofreram aquela
repressão, que trinta anos depois enfrentam o crescimento da ultradireitista Frente
Nacional, e colocam em pé organizações antirracistas. A situação política era bem
diferente, com a chegada ao governo do socialista François Mitterrand em 1981.
Enquanto isso, Papon continuou sua carreira política. Foi prefeito da
pequena cidade de Saint-Armand-Montrond entre 1971 e 1983; deputado entre 1968
e 1981, e Ministro do Orçamento no governo de Raymond Barre, entre 1978 e 1981.
Em 1983 foi acusado de crimes contra a humanidade e, ainda que finalmente tenha
sido condenado como colaborador nazista, nunca foi acusado pelo massacre de 17
de outubro. Nunca houve condenações por assassinar argelinos.
Com o passar dos anos, dezenas de livros, letras de músicas, reportagens
da imprensa, estudos acadêmicos e muitos pronunciamentos de movimentos e
personalidades, recordam aquele massacre. Em 17 de outubro de 2001 o prefeito
socialista de Paris, Bertrand Delanoë, colocou uma placa na ponte Saint-Michel, nas
margens do Sena, “à memória dos muitos argelinos que morreram durante a
sangrenta repressão da manifestação pacífica de 17 de outubro de 1961”.
Esta história não termina aí. O toque de recolher foi decretado novamente
em novembro de 2005, com base na mesma lei que foi aprovada em 1955 para
enfrentar o levantamento do povo argelino pela sua independência. Desta vez
tratava-se de fazer frente às revoltas dos bairros populares das grandes cidades,
iniciadas em Clichy-sous-Bois, Paris, nas quais queimou-se aproximadamente dez
mil veículos em vinte dias, houve 2.800 detidos e 400 presos. Muitos analistas
descartam considerar que essa onda repressiva tenha alguma coloração colonial, no
que coincidem tanto os jornalistas quanto os acadêmicos próximos da esquerda
(Thénault, 2007; Bonelli, 2005). Todavia, a revolta começou em bairros de
imigrantes, quando os adolescentes filhos de africanos (Ziad Benna e Bouna Traoré)
morreram eletrocutados fugindo da polícia.

***
Neste clima refletia e trabalhava Frantz Fanon: na zona do não-ser, onde a
humanidade dos seres é violentada todos os dias, hora após hora. Na colônia,
quase toda a população argelina era confinada em uma forma de campo de
concentração. Na metrópole das Luzes, a cor da pele é motivo suficiente para que
se aplique medidas repressivas que os confinam em um campo real/simbólico em
que os policiais tem as chaves. A atualidade do pensamento de Fanon radica em
seu empenho em pensar e praticar a resistência e a revolução desde o lugar físico e
espiritual dos oprimidos; ali onde boa parte da humanidade vive em situações de
indizível opressão, agravada pela recolonização que supõe o modelo neoliberal.
Índios, negros, mestiços, a imensa maioria da população latino-americana, sofrem
cerco e isolamento (policial e subjetivo) em suas comunidades, favelas, quilombos,
bairros periféricos e precários. A luta de todos os dias para converter estes espaços
em lugar de resistência e transformação social é respondida pelas classes
dominantes com os mais variados e sutis cercamentos: desde o muro que separa
palestinos de israelitas até os mais diversos modos de isolamento, onde os saques
são complementados por políticas sociais domesticadoras.
Ao finalizar a segunda guerra, Fanon emigra da Martinica para a França e
estuda psiquiatria e medicina na Universidade de Lyon, onde sofre a discriminação e
o racismo. Em 1952 publica Pele negra, máscaras brancas9, onde analisa como o
racismo afeta a personalidade dos colonizados. Em 1953 tornou-se médico de uma
divisão do hospital psiquiátrico de Blida-Joinville na Argélia, e, em 1955, une-se à
FLN. No hospital em que trabalhava chegavam torturadores e torturados para
receber assistência. Em 1956 difundiu sua Carta de Renúncia ao cargo, sendo
expulso da Argélia. Foi embaixador do governo provisório da FLN, percorreu vários
países africanos difundindo a causa argelina e realizou uma travessia do deserto
para abrir uma terceira frente na luta pela independência. Doente com leucemia,
morreu em 6 de dezembro de 1961, aos 35 anos.
Fanon é exemplo de compromisso militante e de pensamento anticolonial.
Nunca se sujeitou às categorias herdadas e foi capaz de ir mais além, questionando
a teoria crítica hegemônica, ou seja, o marxismo soviético nas décadas de 1950 e
1960. Por isso advertiu que não devemos imitar a Europa. Suas ideias e análises
são uma porta de entrada a um tema que considero central: a organização e a
militância para mudar o mundo desde a “zona do não-ser”, onde hoje vivem os
milhões de latino-americanos que necessitam construir um mundo novo. A teoria

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9
Existe uma versão em português deste livro: FANON, Frantz. Pele negra, máscaras
brancas. Salvador: Editora Universidade Federal da Bahia, 2008. Também disponível online:
http://unegro.org.br/arquivos/arquivo_5043.pdf.
crítica foi lavrada na “zona do ser”. Não pode ser transplantada mecanicamente à
“zona do não-ser”, porque seria repetir o fato colonial em nome da revolução. Faz
falta outra coisa, percorrer outros caminhos. Fanon começa a transitá-los. Décadas
depois, os zapatistas são os que mais longe chegaram no caminho da criação de
um mundo novo pelos oprimidos.
Desde seu profundo conhecimento do mundo colonial, Fanon não se engana
nem idealiza a atitude do colonizado. “O mundo do colono é um mundo hostil, que
rechaça, mas ao mesmo tempo é um mundo que suscita inveja”, já que o colonizado
“sempre sonha em se estabelecer no lugar do colono” (Fanon, 1999: 41). Esta
atitude o leva a um lugar diferente ao do que aqueles que pensavam que é
suficiente a realização de mudanças estruturais para mudar a situação de dominado.
Os meios de produção e de mudança devem ser expropriados aos expropriadores, e
sobre isso não há a menor dúvida. Mas ele se coloca em outra dinâmica. Raciocina
sobre o complexo de inferioridade do colonizado, sua desumanização pela violência
do opressos. Não somente violência. Confinação massiva, já que toda colônia se
converte em “um imenso campo de concentração, onde a única lei é a da faca”,
onde viver não consiste em encarnar valores, mas sim, apenas, em “não morrer”
(Fanon, 1999: 242).
O colonizado interioriza, “epidermiza” a inferioridade, como assinala em seu
primeiro livro. Fanon compreende que o negro colonizado busca o reconhecimento
do branco porque acredita que é a chave capaz de abrir as portas da opressão;
busca branquear sua pele, deseja a mulher branca ou um pouco mais branca,
identifica-se com o explorador, até o ponto em que se converte em escravo de sua
inferioridade (Fanon, 2009). Pergunta-se sobre os caminhos a seguir para que o
colonizado supere a inferiorização. Sua resposta é a violência. “A violência
desintoxica. Livra o colonizado de seu complexo de inferioridade, de suas atitudes
contemplativas ou desesperadas. Torna-o intrépido, o reabilita perante seus próprios
olhos” (Fanon, 1999: 73).
Criticaram-no por exagerar o papel libertador da violência, porque conduziria
inevitavelmente a “excessos”. No entanto, foi capaz de reconhecer que os
guerrilheiros da FLN também cometeram erros atrozes.

Nos momentos em que o povo sofria o assalto maciço do


colonialismo, a FLN não hesitou em proibir algumas formas de
ação, e recordou constantemente às unidades as leis internacionais
da guerra, porque em uma guerra de libertação o povo colonizado
deve triunfar, mas a vitória deve obtê-la sem ‘barbárie’ (...) O povo
subdesenvolvido que tortura, afirma sua própria natureza,
comporta-se como povo subdesenvolvido (Fanon, 1966: 10, itálico
do autor)

Podemos concordar, como sustenta Wallerstein, que “sem violência não


conseguimos nada. Mas a violência, por mais terapêutica e eficaz que seja, não
resolve nada” (Wallerstein, 2009: 37). Continua sendo necessária uma estratégia
que aborde o “complexo de inferioridade” que sofre o colonizado. De que serve a
revolução se o povo triunfante limita-se a reproduzir a ordem colonial, uma
sociedade de dominantes e dominados?
Abordar a questão da subjetividade é um assunto estratégico-político de
primeira ordem, sem a qual o dominado tornará a repetir a velha história: ocupar o
lugar material e simbólico do colonizador, reproduzindo assim o sistema que
combate. Fanon não acerta ao atribuir à violência o papel de libertador da
inferioridade – em particular quando assegura que “a violência eleva o povo à altura
do dirigente” (Fanon, 1999: 73) –; mas acerta no fundamental, na necessidade de
abordar este problema como uma prioridade política, rompendo assim com a
centralidade da economia e o papel excludente concedido pela teoria da revolução à
conquista do poder e à recuperação dos meios de produção e de mudança. É
preciso fazer mais que elogiar ou repetir a “loucura homicida”, ainda que seja
evidente que “o colonialismo não cede senão com a faca no pescoço” (Fanon, 1999:
47).
Acredito que é o tema mais atual na política dos oprimidos. Ou seja, na
política revolucionária. A partir desta constatação quero destacar sete aspectos que
considero centrais: autonomia e dignidade, poder, reprodução e família, comunidade
ou vanguarda, identidade, a produção de conhecimentos e a criação de um mundo
novo. Tentarei observar como se formulam e praticam nas duas zonas, de forma
breve e não exaustiva, de forma introdutória e provocatória, inspirado pela
experiência zapatista, a vida cotidiana das bases de apoio em seus ejidos e
comunidades. Ainda que algumas as abordarei de forma breve, estão presentes de
forma tangencial nos textos que integram este volume. Para evitar confusões,
enfatizo que não pretendo esgotar os temas, apenas abrir um debate que creio ser
necessário.

AUTONOMIA E DIGNIDADE
O debate sobre a autonomia para os revolucionários da zona do ser
pressupõe a existência de uma sociedade homogênea, na qual todos os seus
integrantes estão em condições de alcançar a autonomia individual e social. As
experiências que toma o pensamento autonomista como referência estão ligadas à
autogestão fabril dos operários da Europa em vários períodos, em particular na
primeira e segunda pós-guerras10 . É neste marco que se produzem os debates
sobre autonomia-autogestão.
Modonesi identifica duas vertentes da autonomia na tradição marxista: como
“independência de classe”, em uma sociedade dominada pela burguesia, e como
emancipação, ou seja, “como modelo, prefiguração ou processo de formação da
sociedade emancipada” (Modonesi, 2010: 104).
Na corrente conselhista, o conceito de autonomia aparece ligado à gestão
(autogestão) das fábricas pelos próprios trabalhadores. Para Anton Pannekoek, a
experiência dos conselhos operários forma parte do “progresso da humanidade” no
sentido do socialismo, em um tipo de ação coletiva que rompe o controle do partido
e dos sindicatos e permite a implantação das iniciativas da base operária. Opõe a
democracia burguesa à democracia proletária, que “depende justamente das
condições econômicas opostas”, ou seja, a produção coletiva.
Para os membros do coletivo Socialismo ou Barbárie, em particular para
Castoriadis, a autonomia – como prática e como objetivo – consiste na direção
consciente dos homens sobre suas próprias vidas, na capacidade das massas de
dirigir-se elas mesmas. Em seus trabalhos, Castoriadis reflete sobre a dupla
experiência histórica: as lutas presentes dos trabalhadores no lugar de trabalho e as
tradições históricas a que recorre o movimento operário em sua auto-instituição. No
primeiro aspecto destaca a luta de classes nas fábricas, tanto as lutas explícitas
(greves, paralisações) como as lutas implícitas (trabalho a desgano11, absenteísmo),
as quais considera como lutas pela autonomia, na medida em que colocam em
questão o domínio do capital, os tempos e a organização do trabalho, e o controle
dos capatazes (Castoriadis, 1974).
Quanto à história de longa duração, considera que o movimento operário se
“autocriou” no século XIX ao se auto-educar para sair do analfabetismo, adquirir,
elaborar e propagar ideias políticas que lhe permitiu modificar as circunstâncias
herdadas. “Mas isso foi possível graças à herança, à tradição do movimento
democrático presente na história destes países, à orientação oferecida pelo projeto

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10
Soviets na Rússia em 1905 e 1917, conselhos de fábrica na Alemanha (1918) e Itália
(1919); controle operário na revolução espanhola, em particular em Barcelona, e na França
após 1968, entre as mais conhecidas.
11
Nota do tradutor: Trata-se de um trabalho realizado apaticamente, sem interesse,
descuidado, com a clara intencionalidade de prejudicar a produtividade da empresa. É
comum em momentos de disputa entre patrões e empregados.
sócio-histórico de autonomia nascido no seio do mundo europeu” (Castoriadis, 1999:
138).
Para os indígenas, camponeses, os setores populares e afros da América
Latina, essas tradições às quais se refere Castoriadis, não existem; não existe nada
que possa assemelhar-se a uma tradição de luta pelas liberdades, como a que
existiu nas cidades europeias a partir do século XIII, à qual se refere em toda sua
obra como o período no qual nasceram as primeiras experiências de autonomia. Na
América Latina estamos frente a outra genealogia: as rebeliões de Tupac Amaru y
Tupac Katari, as revoluções de Zapata e Pancho Villa, a revolução do Haiti, os
quilombos e as outras formas de rebeliões (cimarronajes), são os precursores
daqueles que hoje lutam pela liberdade. Todas estas lutas foram aplastadas a
sangue e fogo, ou brutalmente isoladas, como ocorreu com o Haiti depois de 1804.
Os corpos esquartejados de Katari e Amaru, a escravidão dos milhões que foram
arrancados da África e dos que foram forçados a servir nas minas, falam da “loucura
homicida” do colonizador. Para lutar pela liberdade, os escravos deviam escapar das
plantações até lugares remotos, como aconteceu com o Quilombo dos Palmares,
onde milhares de pessoas viveram durante um século fora do controle colonial
português. O massacre de Peterloo12, em 16 de agosto de 1819 em Manchester foi,
inclusive neste período, uma repressão excepcional na zona do ser, enquanto na
zona do não-ser esse tipo de repressão é a regra, como acertadamente assinala
Ramón Grosfoguel (Grosfoguel, 2013).
Os que vivem na zona do não-ser não podem ser autônomos na sociedade
opressora. Para eles a violência não é o último recurso da dominação (como no
norte), mas sim a vida cotidiana. Para serem autônomos devem separar-se, apartar-
se. Enquanto a autonomia na zona do ser pode realizar-se em espaços comuns aos
diversos setores sociais, como as fábricas, os colonizados devem se proteger em
espaços distantes do controle dos poderosos, traçar uma fronteira inacessível para
os opressores, como assinala Scott:

Nenhuma das práticas nem dos discursos da resistência podem


existir sem uma coordenação e comunicação tácitas ou explícitas
dentro do grupo subordinado. Para que isso ocorra, o grupo
subordinado deve criar espaços sociais nos quais o controle e a
vigilância de seus superiores não possam penetrar (...) Somente
especificando como se elaboram e se defendem esses espaços
será possível passar do sujeito rebelde individual – uma construção

!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!
12
Aconteceu em Manchester quando a cavalaria atacou uma manifestação de 60 a 80 mil
pessoas que reclamavam a reforma da representação parlamentar. Houve 15 mortos (cujos
nomes foram identificados) e mais de 400 feridos. Os jornais da época refletiram o horror do
massacre e, anos depois, todas as demandas foram aprovadas.
abstrata – à socialização das práticas e discursos de resistência
(Scott, 2000: 147)

Este é o ponto decisivo. Os colonizados, na linguagem de Fanon, os de


abajo, na expressão zapatista, devem criar espaços seguros onde os poderosos não
possam acessar, porque vivem em uma sociedade que não lhes reconhece como
seres humanos. São negadas sua dignidade, não podem organizar-se sem ser
violentados pelo estado ou pelos patrões. Fanon compreendeu este ponto como
poucos e nos recorda que “sob a ocupação alemã os franceses não deixaram de ser
homens” (Fanon, 1999: 196).
Na comunidade 8 de Março pude compreender, em extensos diálogos, as
razões pelas quais os zapatistas, antes do levante, realizavam suas reuniões nas
cavernas, nas quais chegavam depois de longas caminhadas noturnas, assim como
a cuidadosa ocultação de sua organização durante uma década. O segredo é a
condição necessária para que o levante possa produzir-se, do mesmo modo que os
confinados no campo de concentração não podem mostrar suas intenções aos
carcereiros.
Um último aspecto se relaciona com o conceito de prefiguração. Na
experiência europeia, “a autonomia começa a existir nas experiências concretas que
a prefiguram” (Modonesi, 2010: 145). No entanto, a prefiguração não é possível em
qualquer parte do mundo nem para qualquer sujeito coletivo. Nem o quilombo de
Palmares nem os caracoles zapatistas prefiguram a sociedade do futuro. São, de
fato, a sociedade outra realmente possível. A ideia de prefigurar implica um
processo de aproximação gradual à sociedade desejada. Os dominados somente
podem sair da situação que padecem dando um golpe capaz de mudar radicalmente
sua situação: pode ser a fuga do escravo ou o levante de 1 de janeiro de 1994. Nos
espaços que liberam, nos territórios onde se assentam, desenvolvem a vida que
querem levar.
As autonomias dos povos indígenas, camponeses e mestiços, devem tender
a ser autonomias integrais. As Juntas de Buen Gobierno zapatistas, os cabildos
nasa del Cauca, as expressões autônomas mapuche, devem abordar todos os
aspectos da vida, desde a produção de alimentos até a justiça e o poder. É por isso
que não são parte da sociedade capitalista hegemônica, mas sim outra coisa,
porque para além do grau de desenvolvimento que tenham, apontam em outra
direção.

PODER PRÓPRIO/ PODER NÃO ESTATAL


Os dominados não podem apelar à justiça do estado. Não podem acudir ao
hospital ou à escola sem ver sua dignidade violentada. “O colonizado, quando é
torturado, quando matam sua mulher ou a violam, não vão reclamar a ninguém”
(Fanon, 1999: 72). Os milhões de indígenas, de afros, de habitantes das favelas, os
pobres da cidade e do campo, não tem a quem recorrer. É bem conhecida a máxima
cunhada durante as manifestações de junho de 2013 no Brasil, após o massacre de
onze pessoas no Complexo da Maré (Rio de Janeiro), que diz que enquanto na
Avenida Paulista os policiais reprimem com balas de borracha, nas favelas o fazem
com balas de chumbo.
Os dominados necessitam criar instituições próprias, projetadas por eles
mesmos, diferentes do estado atual herdado do colonialismo. Aníbal Quijano
distingue os processos ocorridos na Europa e na América Latina na construção do
estado-nação: na primeira, a precondição dos estados foi a democratização das
relações sociais e políticas entre as populações que o integrariam; na segunda, o
estado levanta-se excluindo às maiorias indígenas, negras e mestiças (Quijano,
2000b).
O resultado é que os estados-nação construídos com base no modelo
europeu são instrumentos de dominação de uma raça por outra, questão que se
superpõe e molda as relações capitalistas de produção. A propriedade dos meios de
produção é consequência de sociedades desiguais, antes que a causa da
desigualdade, por isso não se resolve somente com medidas como a expropriação:

A colonialidade do poder estabelecido sobre a ideia de raça deve


ser admitida como um fator básico na questão nacional e do
estado-nação. O problema é, todavia, que na América Latina a
perspectiva eurocêntrica foi adotada pelos grupos dominantes
como própria e os levou a impor o modelo europeu de formação do
estado-nação para estruturas de poder organizadas em torno de
relações coloniais (Quijano, 2000b: 238)

Os processos de mudança não podem girar em torno dos estados-nação


atuais (nem sequer dos chamados estados plurinacionais que pertencem à sua
mesma forma); deve-se redistribuir o poder entre as pessoas para que possam
controlar as condições de sua existência (Quijano, 2000b). Pelo contrário, os atuais
governos progressistas mantém, e em ocasiões aprofundam, a concentração de
poder na falsa crença de que o novo pode construir-se com a ferramenta estatal-
colonial.
A argumentação de Quijano tira o debate de qualquer tentação ideológica
para inseri-lo no campo da experiência histórica e as relações de poder nas
sociedades colonizadas. Se o caminho das mudanças é a democratização das
relações sociais, isso somente pode ser feito a partir da sociedade, ou seja, desde o
lugar dos índios, negros e mestiços ocupam, a partir dos seus bairros, comunidades
e favelas. Neste caminho é o que está transitando o zapatismo, ainda que não é o
único que o está fazendo.
Nas Juntas de Buen Gobierno estão os homens e mulheres designados
pelas comunidades e os municípios autônomos, nelas participam de igual para igual
todos e cada um dos setores sociais que formam parte das bases de apoio. São
espaços que foram construídos por elas e que são controlados por estas mesmas
bases. Os tempos para tomar decisões são os que requer a cultura comunitária. Os
modos de tomar decisões, de distribuir a justiça, de ensinar e cuidar da saúde, de
produzir e reproduzir a vida, são os modos acordados por todos e todas. Quando
dizem que os povos mandam e o governo obedece, estão verbalizando exatamente
o modo de fazer realmente existente. Não existe burocracia civil ou militar que
decida em nome dos demais. São poderes democráticos, não estatais, anticoloniais
porque destroem as relações de subordinação de raça, gênero, geração, saber e
poder herdados, construindo outras novas onde as diferenças coexistem sem impor-
se mutuamente.
Se os movimentos antissistêmicos não constroem poderes próprios,
seguiremos percorrendo o triste caminho que conhecemos desde o começo dos
processos de libertação nacional: forças revolucionárias que tomam o estado e
reproduzem a dominação, porque o estado é uma relação colonial-capitalista que
não pode ser desmontado a partir de dentro. O processo de construir poder próprio
é o caminho para descolonizar as relações sociais. Neste caso, por poder próprio
não entendo somente as Juntas de Buen Gobierno, ou seja, os espaços de poder
coletivo, mas sim todas as construções das comunidades e dos municípios
autônomos: desde as escolas e as clínicas até os cultivos coletivos e os meios de
comunicação comunitários. Este torpe tecido de reprodução da vida está forjado por
poderes que são modos de fazer que abrangem todos os espaços da vida.

FAMÍLIA E REPRODUÇÃO
Na cultura revolucionária do norte, a família é, com o campesinato, símbolo
do negativo e do atraso, dificuldades a superar. Existe uma estreita relação entre a
hierarquização da produção e o papel central que se outorga ao produtor, ao
operário, como sujeito central do processo revolucionário. Trata-se de um operário
artificialmente desgarrado da família, que acaba totalmente deslocada da
organização proletária, seja o sindicato ou o partido. A afiliação ou pertencimento é
de caráter individual. Em síntese, estamos perante uma cultura política focalizada no
lugar do trabalho-produção, no indivíduo como trabalhador-produtor, e nas
organizações que o incluem como tal. É evidente que são organizações
profundamente patriarcais, que se organizam de modo hierárquico, estadocêntrico.
Os integrantes dos movimentos da zona do ser contam-se como pessoas. os
da zona do não-ser, por famílias. Basta chegar a um acampamento sem-terra, a
uma comunidades indígena ou a uma organização territorial das periferias urbanas,
para que se fale sobre a quantidade de famílias que participam. Os membros nunca
se contam individualmente. Por que esta diferença?
Os pobres do mundo vivem inseridos no que Braudel chamava a vida
material ou “o oceano da vida cotidiana”, o reino do autoconsumo, “o habitual, o
rotineiro”, a esfera básica da vida humana que, em sua opinião, é o “grande ausente
da história” (Braudel, 1985: 22). Esta vida material é o reino do valor de uso, que
está fora do mercado:

Aquele que somente vai ao povo para vender pequenas


mercadorias, alguns ovos ou uma galinha, com o fim de obter as
moedas necessárias para pagar seus impostos ou comprar uma
grelha para o arado, roça tão somente o limite do mercado.
Permanece imerso na enorme massa do autoconsumo (Braudel,
1085: 28)

Por acaso não é esta a vida de milhões de pessoas no mundo, ainda que
nas cidades? As periferias urbanas, onde vive a imensa maioria dos setores
populares do mundo, representam um estilo de vida similar ao que descreve Braudel
para a vida rural da época. Não é possível compreender essa vida cotidiana a partir
da lógica da economia capitalista, a partir da centralidade do homem, da
organização vertical, da cultura política de demandar do estado.
Os espaços coletivos, o mercado, o refeitório e a cozinha populares, a
economia informal, são os espaços da reprodução da vida, onde coexistem as mães
com seus filhos e filhas, mas também homens adultos que jogam um papel diferente
ao do operário fabril, já que acompanham as tarefas e cuidados que supõem a
reprodução. Milhões de mulheres na América Latina participam nos movimentos que
são, de fato, movimentos para sustentar a reprodução. A primeira tarefa é o
refeitório popular, o copo de leite ou a merenda escolar; participam em atividades de
apoio escolar ou relacionadas com a saúde e os serviços coletivos do bairro.
A “vida cotidiana” é o lugar das mulheres e das famílias. As mulheres vão
sempre com seus filhos, são mulheres mães, e isso define o papel central das
famílias nos movimentos. No sentido estrito, as mulheres são reprodutoras,
cuidadoras, criadoras, mas também sustentadoras do coletivo. A passagem política
fundamental é a passagem da reprodução na casa familiar à reprodução coletiva em
movimentos. Isto não se costuma visibilizar, ou seja, não lhe dá um estatuto político
à tarefa da reprodução coletiva nem se consideram sujeitos políticos as mulheres
que o realizam.
Como incorporamos este “grande ausente” às teorias e às práticas
revolucionárias? Nos discursos e escritos dos intelectuais e os partidos de esquerda,
o lugar central é ocupado pelo operário (junto com as instituições), mas quase nunca
aparece as pessoas comuns dos bairros pobres, as que vendem nos mercados, os
vendedores informais, os carregadores, as cozinheiras e suas ajudantes nas
cozinhas populares, as artesãs, os motoristas, os vendedores de rua, os mil ofícios
do mundo popular da cidade latino-americana de hoje. Em sintonia com os discursos
modernizantes de organismos internacionais como a CEPAL, as esquerdas
consideram a estes setores populares como um problema para o desenvolvimento,
não como sujeitos. Os sujeitos são os operários (homens) de macacão, por mais
que as mulheres dos setores populares já deram amplas mostras de rebeldia
(Bolívia 2001 a 2005, Oaxaca 2006, entre outros muitos casos).
Esse protagonismo feminino nos levantes populares está conectado com seu
enorme protagonismo na vida cotidiana (vida material de Braudel). As esquerdas
tem dificuldades para enxergar este protagonismo diário; menos ainda considerar
que esta atividade é política. Tão política como a vida laboral do operário em seu
posto de trabalho. A inferiorização e a não visibilização da reprodução vão de mãos
dadas com a desconsideração dos mercados como lugares onde é enunciado o
discurso dos oprimidos, onde se organiza a alimentação, os intercâmbios básicos, o
cuidado dos filhos, onde transcorre parte fundamental da vida dos setores
populares.
A primeira tarefa da pessoa que integra o EZLN [Exército Zapatista de
Libertação Nacional] é convencer à sua família. Isto tem duas dimensões: a
segurança, já que a família é o círculo íntimo que não vai trair, e a dimensão política,
que considera as famílias como os núcleos básicos da organização e da produção-
reprodução de vida.
O zapatismo considera que é nos lugares onde constroem sua vida
cotidiana, “onde os de abajo tomam as grande decisões, onde nasce o Ya basta de
cada um, onde cresce a indignação e a rebeldia, embora seja nas grandes
mobilizações ou ações onde se faz visível e se converte em força coletiva e
transformadora” (EZLN, 2005). A boliviana Silvia Rivera, em um amplo estudo sobre
o trabalho por conta própria das mulheres aymaras no El Alto e La Paz, destaca o
papel da família e das relações de parentesco e reciprocidade no êxito ou fracasso
de seus empreendimentos, para concluir que entre elas “a política não se define
tanto nas ruas como no âmbito mais íntimo dos mercados e das unidades
domésticas” (Rivera, 1996: 132).
Fanon dedica um capítulo à família argelina e outro às mulheres em
Sociologia de uma revolução. Sustenta que a luta revolucionária começa a modificar
a imobilidade da sociedade dominada, até o ponto em que a sociedade colonizada
percebe que, para vencer o colonialismo “deve realizar um enorme esforço sobre ela
mesma, tensionar todas as suas articulações, renovar seu sangue e sua alma”
(Fanon, 1966: 79). Relata a mudança no papel das mulheres a partir do momento
em que se incorporam à luta: exigem poder escolher seus maridos e poder divorciar-
se. Analisa o papel do véu, de modo bem diferente de como o compreendem os
intelectuais colonialistas, convertendo em mecanismos de resistência,
ressignificando seu papel anterior.
A reprodução é o eixo a partir do qual o mundo está mudando. Neste
espaço-tempo é onde a sociedade dos de abajo pode fazer um “esforço sobre ela
mesma”, para mudar-se, modificar sua vida e seu lugar no mundo. Na esfera do
valor de uso, das comunidades e das mulheres, dos meninos e meninas, do jogo, da
vida com a natureza, do intercâmbio entre iguais, do amor e da amizade; é a esfera
onde se pratica a reciprocidade e a irmandade, formas de nos relacionarmos sem as
quais não podemos sonhar com algo diferente do capitalismo. Como seria construir
um mundo novo a partir destes lugares? Como seriam os poderes que nascem
deles?

VANGUARDA OU COMUNIDADE
Fanon denuncia o elitismo das esquerdas, incluindo a noção de partido, que
a considera “importada da metrópole” (Fanon, 1999: 86). É um excelente ponto de
partida anticolonial. Mas sua crítica não se dirige somente ao tipo de organização,
mas sim ao modo como se relaciona com a sociedade e, muito particularmente, com
os setores populares. Em suma, submete à revisão uma cultura política nascida em
Europa a partir da Comuna de Paris (1869), na qual pela primeira vez o partido
começou a ocupar um lugar central:

O grande erro, o vício congênito da maioria dos partidos políticos


nas regiões subdesenvolvidas foi dirigir-se, segundo o esquema
clássico, principalmente às elites mais conscientes: o proletariado
das cidades, os artesãos e os funcionários, quer dizer, a uma
ínfima parte da população que não representa muito mais que um
por cento (Fanon, 1999: 86)
Critica a desconfiança para com os camponeses e as massas rurais, a quem
os partidos querem impor uma organização centralizada, desconhecendo as formas
próprias de fazer, o que considera uma atitude colonialista. Diferentemente dos
partidos e sindicatos, acredita na capacidade revolucionária daqueles que vivem nos
cinturões de miséria das cidades, que, junto aos camponeses, compõem o “povo
deserdado”, capazes de reconstruir a nação.
Seu rechaço à forma partido não é, tampouco neste caso, de caráter
ideológico. Limita-se a transcrever o que observa, a experiência concreta das
esquerdas nas colônias. Ainda que não o formule à maneira zapatista, coincide no
rechaço à organização centrada nas elites mais conscientes e organizadas, porque
estima que eles estão em condições de negociar, de se incrustar no aparato estatal.
Não tem necessidade de destruí-lo, já que esperam conseguir um lugar à sombra do
sistema.
Não é necessário destacar que este modo de fazer forma parte da tradição
leninista, que considera que a chave da revolução consiste em organizar os setores
mais avançados do proletariado. Na América Latina, os partidos comunistas e as
guerrilhas foquistas trabalharam na mesma direção, com a exceção do Movimiento
Armado Quintin Lame, no Cauca colombiano, que era a expressão armada das
comunidade nasa, e a guerrilha “sindical” dirigida por Hugo Blanco na serra andina
de La Convención y Lares, na região de Cusco13.
O zapatismo, pelo contrário, propõe-se a organizar o conjunto do povo. Está
certo que começaram como um pequeno grupo de vanguarda, mas rapidamente
foram convencidos pelas comunidades que não era este o caminho, e tiveram a
generosidade para subordinar-se a elas. Na realidade inverteram a lógica colonial
das esquerdas:

No momento em que se começa a construir a ponte da linguagem,


e começamos a modificar nossa forma de falar, começamos a
modificar nossa forma de pensarmos a nós mesmos e de pensar o
lugar que tínhamos em um processo: Servir.
De um movimento que se colocava servir-se das massas, dos
proletários, dos operários, dos camponeses, dos estudantes para
chegar ao poder e dirigi-los à felicidade suprema, estávamos nos
convertendo, paulatinamente, em um exército que tinha que servir
às comunidades (Marcos, 2008).

Servir as comunidades é a lógica do EZLN. São elas que decidem o que


fazer, não um grupo de especialistas ou de revolucionários profissionais. Neste
ponto o zapatismo realiza uma ruptura completa com as tradições revolucionárias
!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!
13
Ambos movimentos foram abordados com maior detalhe no livro Los arroyos cuando
bajan. Los desafios del zapatismo. Montevideo, Nordan, 1995.
latino-americanas, tributárias do eurocentrismo. No comunicado de despedida o
subcomandante insurgente Marcos menciona cinco eixos do EZLN: geracional, de
classe, de raça, de gênero e de pensamento. Sobre este assinala: “O eixo do
pensamento: do vanguardismo revolucionário ao mandar obedecendo; da tomada
do Poder de Arriba à criação do poder de abajo; da política profissional à política
cotidiana; dos líderes aos povos” (EZLN, 2014).
O zapatismo está mostrando que existem outras tradições revolucionárias
diferentes das europeias. Esta tradição nutre-se do “mandar obedecendo”. Uma
tradição que se remonta, pelo menos, às lutas indígenas contra o colonialismo
espanhol e que tiveram nas revoltas andinas uma de suas maiores expressões.
Contrariamente às interpretações clássicas das revoluções de Tupac Amaru e
Tupac Katari, o historiador Sinclair Thomson assinala que o movimento anticolonial
de 1870-1871 não foi inspirado nem pelos filósofos da revolução francesa nem pelos
criollos norteamericanos. Sua inspiração encontrava-se “fora do paradigma
convencional”, o que levou à sua subestimação, já que a revolta foi julgada segundo
as normas que avalizam um projeto político desde que seja moderno, legítimo e
viável:

Tupac Amaru e seus seguidores não rechaçaram a soberania


monárquica em nome de ideais republicanos. As instituições e
líderes étnicos que controlavam o poder sustentaram suas
demandas em direitos ancestrais, hereditários, atemporais de
direitos humanos e cidadania individual. A democracia estava
presente não como uma filosofia política inovadora, nem como um
sistema no qual um estrato dissociado de intermediários especiais
administrava a coisa pública, mas sim como formas vívidas de
prática comunitária, descentralizada e participativa (Thomson,
2006: 7-8)

Esta outra tradição rebelde foi sistematicamente negada, tanto pelos criollos
liberais como pelos revolucionários dos anos setenta. Apenas com o zapatismo e o
ciclo de lutas boliviano entre 2000 e 2005 começa retomar visibilidade. Uma camada
de ativistas e intelectuais aymaras estão realizando um sério esforço para
sistematizar o legado katarista14. Na Venezuela os integrantes de Cecosesola estão
construindo comunidade sem direção, recriando tradições indígenas e populares. O
zapatismo transita este caminho de descolonização do pensamento crítico,
revitalizando tradições de caráter comunitário. Existe uma genealogia rebelde e

!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!
14
Entre eles poderia se destacar as publicações periódicas Pukara e Willka, dirigidas por
Pedro Portugal e Pablo Mamani respectivamente. Entre as produções recentes destaca-se o
livro Historia, coyuntura y descolonización. Katarismo y indianismo en el proceso político del
MAS en Bolivia, que contempla as exposições de 19 intelectuais, dirigentes e pensadores
aymaras em um ciclo de conferências organizado por Pukara em março de 2010.
emancipatória, não ilustrada nem racionalista, que apenas estamos começando a
explorar.

IDENTIDADE
Quando alguém é invisível por ser negro, índio, mulher, mestiço ou pobre,
quando alguém é ninguneado sistematicamente por sua raça, gênero ou outra
condição, o primeiro que faz é tentar existir, levantar a mão, colocar-se de pé e
dizer: estou aqui! Existo. Essa é a lógica da identidade. Na lógica dos dominados, a
primeira coisa é fazer-se visíveis, nomear-se, reconhecer-se. É um passo ineludível
no processo de converter-se em sujeitos.
Na zona do ser as coisas são de outro modo. Ali a identidade é um
problema. Prisão e opressão, ao mesmo tempo. Identificar-se como espanhol supõe
deslocar para um segundo plano os vascos, catalães, galegos, andaluzes.
Identificar-se como operário com base na centralidade da relação trabalho-capital é
o mesmo que invisibilizar as mulheres, os jovens, os trabalhadores informais, os
imigrantes, os diaristas. Inclusive a identificação como feminista deixa de lado às
mulheres dos setores populares que não se sentem cômodas com esta etiqueta
nem podem falar como elas. E assim por diante.
Ramón Grosfoguel assinala que “na zona do ser o antiessencialismo radical
e a desestabilização de identidades foram exageradas como superiores”
(Grosfoguel, 2013). Mas ali onde as identidades são negadas, inferiorizadas ou
desvalorizadas pela colonialidade do poder, o “antiessencialismo” impede aos povos
reconstruir suas identidades, seus saberes, suas formas de vida e seus
conhecimentos. Convertem-se em parte do fato colonial.
Paralelamente a isso, é necessário debater a ideia de totalidade, em
particular a pretensão de que o capitalismo é um sistema homogêneo no qual as
partes são iguais ao todo, como assinala Aníbal Quijano. A crítica à identidade que
faz John Holloway, por exemplo, adoece deste problema: “O fetichismo é o
problema teórico central que enfrenta qualquer teoria da revolução” (Holloway, 2002:
88). E completa: “A identidade é, talvez, a expressão mais concentrada (e ao
mesmo tempo mais desafiante) do fetichismo ou reificação” (Holloway, 2002: 93).
Vale a pena nos determos neste ponto, já que Holloway é um amigo dos
movimentos do sul. Mas algumas categorias com as que trabalha são eurocêntricas,
foram elaboradas em um certo período do conflito de classes e em certo lugar do
mundo. O conceito de fetichismo, elaborado por Marx para o âmbito da produção de
valores de troca, em uma sociedade que pretendia modelada somente pela relação
trabalho-capital, não é aplicável a lugares onde essa é, apenas, uma das diversas
relações existentes. As mulheres em suas casas e nos refeitórios populares criam
valores de uso e não estão separadas de seu produto, entre outras coisas porque
participam em todo o processo, controlam-no desde o começo até o fim. Na área da
reprodução, ou dos cuidados, os conceitos como fetichismo, trabalho abstrato e
outros, não devem ser aplicados mecanicamente.
O mesmo pode ser dito dos milhões de índios e de camponeses que
trabalham seus lotes para autoconsumo familiar e levam ao mercado somente uma
parte de seus produtos, que muitas vezes não é adquirido por compradores
anônimos mas sim por membros da mesma e outras comunidades. Fetichismo e
alienação não são conceitos adequados para compreender o que fazem os milhões
que controlam a organização e o produto do seu trabalho, como ocorre na pequena
produção independente (chamada frequentemente de informal). Entre eles não
existe uma separação do fazer sobre o feito, para usar a terminologia de Holloway.
A forma capitalista de controlar o trabalho para produzir valores de troca é apenas
uma das muitas formas de trabalho existentes, que não pode subsumir-se em uma
categoria genérica como “fazer”.
Esta análise assinala que a identidade, a definição, implica fragmentação.
Mas a fragmentação existe, não é possível dissolvê-la negando as
heterogeneidades que fazem parte do sistema. Fazem mal os zapatistas em
identificar-se como zapatistas? E os sem terra. E os mapuche, os sem teto, as
mulheres, as camponesas, as negras, os nasa...

PRODUZIR CONHECIMENTOS EM COMUNIDADE


Os quatro cadernos e os dois vídeos que os zapatistas entregaram aos que
participamos na escuelita, reproduzem as vozes de centenas de bases de apoio,
explicando como estão construindo suas autonomias, seus empreendimentos de
saúde, educação, produção, cooperativas e transporte. Explicam também como
trabalham, como administram, como tomam as decisões.
Trata-se de uma forma de produzir conhecimentos bem diferente da que
conhecemos, inclusive da que praticaram os mesmos zapatistas nos primeiros anos
após o levante de 1 de janeiro de 1994, quando o subcomandante Marcos era o
porta-voz e tradutor do movimento. A produção de conhecimentos que refletem os
cadernos mencionados é anônima, comunitária, supera o dualismo sujeito-objeto e a
divisão razão-corpo. É a antítese dos modos capitalistas-eurocêntricos de produzir
saberes, já que não estão orientados para o mercado, não buscam o
reconhecimento acadêmico nem exaltam indivíduos, são conhecimentos criados e
controlados pela comunidade.
As cartilhas e os vídeos da escuelita foram produzidos em assembleias
realizadas em espaços próprios como os caracoles, a partir das intervenções orais
de homens e mulheres em torno de temas definidos, mas sempre vinculados às
suas vidas cotidianas. Trata-se de saberes comunitários, onde o “proprietário” não é
um indivíduo nem estão avalizados por academias. São anônimos, no sentido de
não serem individuais, e o único aval que possuem são as bases de apoio. Neste
sentido desaparece a relação sujeito-objeto característica do modo ocidental de
elaborar conhecimentos. O que permanece é uma pluralidade de sujeitos
interagindo, que são os que criam saberes que geralmente resgatam do passado, ou
seja, de práticas comunitárias que foram caindo no desuso (como as hueseras,
ervateiras e parteiras). São saberes que surgem das práticas e servem para
fecunda-las, para fazê-las mais ricas e intensas, contribuindo para desatar as travas
que as encerram. Esses saberes não são teoria, e nos ensinam que para construir
um mundo novo não é necessária uma teoria revolucionária, que sempre está
separada da realidade e se coloca por cima dela.
A segunda questão é que são saberes construídos com base na reflexão
sobre as experiências concretas, vivas, nas quais participam as bases zapatistas, ao
invés de serem elaborações abstratas, separadas da vida real, especulativas e
intelectuais. Estes saberes abarcam ideias, sonhos, desejos, festas, danças,
trabalhos; quero dizer que não se registra uma cisão corpo-razão, não são
conhecimentos elaborados racionalmente, mas sim de modo heterogêneo, múltiplo,
pelo corpo em seu conjunto, não por um órgão determinado.
Uma série de separações está na base do modo de construir conhecimentos
na perspectiva eurocentrista: indivíduo-comunidade, corpo-razão, sujeito-objeto,
sociedade-natureza. Os zapatistas não elaboram seus conhecimentos em espaços
assépticos separados, mas sim nos espaços comunitários, nas cozinhas, nas roças
de milho, nos cafezais, sob a sombra das árvores, trabalhando e conversando,
escutando os animais, o vento e a água.
Estamos vivendo uma potente transformação no modo de produzir
conhecimentos nos movimentos populares, recuperando formas tradicionais de
compartilhar saberes. A companheira Vilma Almendra, mulher nasa-misak do
Cauca, costuma relatar que pelas manhãs, logo depois de se levantarem, enquanto
tomam o café da manhã ou realizam as tarefas, as numerosas mulheres e homens
de sua família compartilham os sonhos, debatem seu significado, perguntam pelos
sonhos das outras, sentem o que está ocorrendo, o que ocorreu ou o que virá,
tecendo uma trama afetiva-analítica que as ajuda a compreender situações e a
situar-se no mundo de modo mais autônomo. São modos de produção de
conhecimento não hegemônicos, femininos, não racionalistas, que se tecem ao
redor do fogão, nas semeaduras, nos trabalhos em grupo (mingas) ou em qualquer
espaço coletivo (Almendra, 2012).
Uma recente assembleia realizada no resguardo de Munchique, no Cauca,
reflete este modo heterogêneo, recíproco e comunitário de construir conhecimentos.
O informe do Tejido de Comunicación de la ACIN, assinala que 300 pessoas
congregaram-se durante três dias para “compartilhar, escutar, dialogar, analisar e
projetar seu plano de vida como povo nasa”, em volta da tulpa [pedras que
delimitam o fogo] e rodeados de comidas tradicionais, artesanatos, tecidos, bebidas
de milho e de cana, e plantas medicinais (ACIN, 2014).
Os movimentos antissistêmicos começaram a formar seus militantes com
base na educação popular, que foi um passo importante na desarticulação da
relação sujeito-objeto na construção de conhecimento, no descentramento da aula
como eixo do processo educativo. Desde a década de 1970 registram-se muitas
experiências de autoeducação coletiva, construção comunitária de conhecimentos
em práticas que vão desde compartilhar saberes e a espiritualidade, até a música e
a dança.

MUDAR O MUNDO OU CRIAR UM MUNDO NOVO


As bases de apoio zapatistas estão criando um mundo novo. Se houvessem
optado por mudar este mundo haveriam ingressado na política estatal, ainda que
não participassem nas eleições. Mudar este mundo não é possível: o resultado das
mudanças pelas quais lutamos é o mundo em que estamos, aqui e agora. Os povos
vivem (viveram no caso dos zapatistas) em espaços que se assemelham ao campo
de concentração, no sentido que lhe dá Agamben: espaços onde o estado de
exceção é a regra, a vida humana se reduz à vida biológica apenas (vida nua),
situação na qual qualquer um pode matar (o índio-negro-mestiço) sem cometer
homicídio (Abamben, 1998).
Os estados modernos, em particular aqueles onde os não europeus são uma
parte importante da população, instauram através de um estado de exceção
permanente (não declarado, executado frequentemente por grupos parapoliciais-
paramilitares), uma guerra civil legal para eliminar àqueles que o sistema considera
como população sobrante ou descartável. Quem considere excessiva esta
afirmação, pode dar uma olhada no que vem ocorrendo no México desde que o
presidente Felipe Calderón declarou guerra ao narcotráfico (2006), nas favelas
brasileiras a partir da ditadura militar (1964) e em todos os espaços onde, como
assinalava Benjamin, a tradição de resistência e rebelião dos oprimidos nos ensina
que o estado de exceção é a regra.
O campo de concentração não é reformável. Somente é possível destruí-lo,
fazê-lo saltar pelos ares. Para isso, como assinala Fanon e como fizeram os
zapatistas, não existe outro caminho que a violência. Assim, Agamben lembra-nos
que “a partir dos campos de concentração não existe retorno possível à política
clássica” (Agamben, 1998: 238). Ele nos diz que participar da política estatal, com
sua liturgia de votações, comícios e discursos midiáticos é como sentar-se para
negociar com os guardiões do campo [de concentração] alguma medida para
amenizar as condições do aprisionamento. A democracia eleitoral é uma falácia no
campo [de concentração]. Atualmente a democracia é como uma porta corta-fogos
para isolar os de abajo dos outros abajos. A democracia eleitoral é o muro das
prisões, os alambrados dos campos de concentração, o modo de iludir os
confinados de que podem encontrar aliados na sociedade respeitável, “nobre” e
branca, essa que pode votar para as esquerdas e sentir-se representada por elas.
Os zapatistas não se propõem mudar o mundo. A ideia de mudar o mundo
como uma totalidade, capitalista, para dar lugar a outra totalidade, socialista,
compreende-se apenas a partir de uma concepção que considera a sociedade atual
como um campo de relações e elementos homogêneos e contínuos. O trabalho de
Aníbal Quijano é particularmente iluminador neste ponto. Destaca que no
pensamento eurocêntrico o todo tem primazia sobre as partes e uma só lógica
governa a ambas. Mas na realidade as totalidades histórico-sociais são articulações
de elementos heterogêneos, descontínuos e conflitivos, de modo que essa
totalidade não é um sistema fechado, uma máquina e, portanto, seus movimentos
não podem ser unidirecionais; não pode mover-se como um todo porque coexistem
lógicas de movimentos múltiplos e heterogêneos (Quijano, 2000a). Suas análises
nos permitem compreender os tempos e espaços próprios de índios, negros,
mulheres e de todos e todas as pessoas oprimidas.

Os processos históricos de mudança não consistem, não podem


consistir, na transformação de uma totalidade historicamente
homogênea em outra equivalente, seja gradual ou continuamente,
ou por saltos e rupturas. Se assim fosse, a mudança implicaria a
saída completa do cenário histórico de uma totalidade com todos
os seus componentes, para que outra derivada dela ocupe seu
lugar. Essa é a ideia central, necessária, explícita no evolucionismo
gradual e unilinear (...) A mudança afeta de modo heterogêneo,
descontínuo, os componentes de um campo histórico de relações
sociais (Quijano, 2000a: 355)
Não se pode mudar o mundo sem cair em totalitarismos. É necessário
construir um mundo novo, com aqueles e aquelas que estão dispostos a fazê-lo.
Esta é a mensagem profunda do zapatismo, o motivo pelo qual rechaça a unidade e
a homogeneidade e propõe criar espaços de encontro para trabalhar juntos
respeitando as diferenças. É um modo bem distinto do eurocêntrico, não pretende
que todos sejamos zapatistas, não pretende levar-nos a todos até algum lugar, é
outra coisa. Somente podemos mudar o mundo criando algo diferente.
A única saída para que os colonizados não repitam, uma e outra vez, a
terrível história que os coloca no lugar do colono, é a criação de algo novo, de um
mundo novo. É o caminho no qual os dominados podem deixar de referenciar-se no
dominante, desejar sua riqueza e seu poder, perseguir seu lugar no mundo. Neste
caminho podem superar a inferiorização na qual os instalou o colonialismo. Não
poderão superar esse lugar lutando para repartir o que existe, que é o lugar do
dominador, mas sim criando algo novo: clínicas, escolas, caracoles, músicas e
danças; fazer este mundo outro com suas próprias mãos, colocando em jogo sua
imaginação e seus sonhos; com modos diferentes de fazer, que não são uma
reprodução ou cópia da sociedade dominante, mas sim criações autênticas,
apropriadas ao nosotros en movimento. Criações que não deixam nada para invejar
do mundo do colono. Neste movimento coletivo de caminhar, também teremos as
condições para descolonizar o pensamento crítico.

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