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Prescrição Virtual

Apanágio dos regimes democráticos, foi a liberdade de


pensamento sempre exercitada pelos varões ilustres em saber e
doutrina. Não admira pois que, na esfera dos cultores do Direito Penal,
lavre geralmente variedade de opiniões.

Um, entre infinitos exemplos, depara-nos o instituto da


prescrição, que, segundo ensina o mestre Damásio E. de Jesus, “é a
perda da pretensão punitiva ou executória do Estado pelo decurso do tempo sem o
seu exercício” (cf. Código Penal Anotado, 18a. ed., p. 349).

Em verdade, o tempo — devorador de todas as coisas (“edax


rerum”) — apaga a memória do fato punível e torna escusado o castigo
do delinquente.

Sobre este dogma do Direito há nas escolas penais unânime


consenso: já ninguém ousa subestimar o fenômeno do decurso do
tempo, causa e origem de relevantes efeitos na ordem jurídica.

Ainda: tão firme se acha esta convicção no espírito de muitos,


que não falta quem, apoiado no argumento de que tudo faz esquecer o
decurso do tempo, entre a reclamar se reconheçam desde logo os seus
efeitos.

É o toque de rebate dos propugnadores da tese da prescrição


virtual, dita igualmente antecipada ou em perspectiva, em que se põe a
mira na pena que, em tese, lá para o diante, será aplicada ao réu.

O pórtico dos Tribunais, porém, não franqueou ainda entrada a


esse arrojado expediente, suposto lhe note o louvável propósito de
terçar pela economia e celeridade processuais.

Ao extinguir a punibilidade do réu debaixo do argumento da


incoercível e fatal ocorrência da prescrição em perspectiva — atento o
decurso de certo lapso de tempo até a prolação da sentença
condenatória —, adiantou-se o magistrado no exame do mérito
da causa, o que lhe era defeso: cumpria-lhe aguardar a completa
instrução criminal, em ordem a formar seu juízo.
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Pelo que, não será de bom conselho antecipar a análise do


mérito, com o fito de prognosticar a ocorrência, ou não, da prescrição,
que tanto implicará descaso pela obrigatoriedade da ação penal e
violação grave da garantia primaz de todo o acusado: a oportunidade
de comprovar sua inocência; fora também decidir por convicção
íntima, não por livre convencimento mediante motivação lógica,
princípio em que assenta a verdade jurídica apurável no devido
processo legal.

Por este augusto padrão têm decidido nossas Cortes de Justiça:

“É inadmissível a extinção da punibilidade pela prescrição da pretensão


punitiva com fundamento em pena hipotética, independentemente da
existência ou sorte do processo penal” (Súmula nº 438 do STJ).

“Somente ocorre a prescrição regulada pela pena em concreto após o


trânsito em julgado para a acusação, não havendo falar, por conseguinte,
em prescrição em perspectiva, desconsiderada pela lei e repudiada pela
jurisprudência” (STJ; Rev. Tribs., vol. 804, p. 519; rel. Min. Hamilton
Carvalhido).

Esta é, por igual, a opinião de renomados penalistas, como


Guilherme de Souza Nucci:

“A maioria da jurisprudência não aceita a chamada prescrição virtual,


pois entende que o juiz estaria se baseando numa pena ainda não
aplicada, portanto num indevido pré-julgamento, embora seja realidade
que, muitas vezes, sabe-se, de antemão, que a ação penal está fadada ao
fracasso”.

E, passos avante:

“(…), no Código Penal, não há amparo para tal modalidade de prescrição,


embora o legislador devesse cuidar dela no futuro, prevendo-a de maneira
expressa” (Código Penal Comentado, 5a. ed., p. 469).
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Em suma: aqueles que, em pontos de prescrição, não hesitam


em lançar a barra do arbítrio muito além do direito expresso (ou literal
disposição do Código), a esses — conquanto se lhes não deva atenuar
o entusiasmo com que porfiam pelas boas causas e úteis reformas —
parece bem aguardem a promulgação de novo estatuto penal, que os
favoreça e acolha de boa sombra.(*)

Carlos Biasotti
Desembargador aposentado do TJSP e ex-presidente da Acrimesp

__________________
(*) A tese da prescrição virtual (ou antecipada), que mereceu outrora
sufrágios (bem que modestos), de presente perdeu todo o
alcance e momento, por força da Súmula nº 438 do STJ —
do teor seguinte: “É inadmissível a extinção da punibilidade pela
prescrição da pretensão punitiva com fundamento em pena hipotética,
independentemente da existência ou sorte do processo penal” — e de
decisão do STF, que “reconheceu a existência de repercussão geral,
reafirmou a jurisprudência da Corte acerca da inadmissibilidade da assim
chamada prescrição em perspectiva e deu provimento ao recurso do
Ministério Público” (RE nº 602.527-RS; Plenário; rel. Min. Cezar
Peluso; 19.11.2009; v.u.).

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