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Katia Medved Leite Nunes Universidade do Estado de Santa Catarina

Centro de Artes
Departamento de Artes Plásticas

Katia Medved Leite Nunes

HUNDERTWASSER: ARTE E ECOLOGIA

Trabalho de Conclusão de Curso apresentado à Universidade do


HUNDERTWASSER: ARTE E ECOLOGIA Estado de Santa Catarina, curso de licenciatura em Artes Plásticas, como
requisito parcial para a obtenção de título licenciado.

Orientadora: Cleidi Marília C. De Albuquerque

Florianópolis Florianópolis
2008 2008
Katia Medved Leite Nunes

Hundertwasser: Arte e Ecologia

Trabalho de Conclusão de Curso aprovado como requisito parcial para


obtenção do grau em licenciatura, no curso de Graduação em Artes
Plásticas pela Universidade do Estado de Santa Catarina – Udesc.

Banca Examinadora

__________________________________________________________
Prof. Cleidi Marília C. De Albuquerque
Orientadora

Árvore, sempre no meio


__________________________________________________________ De tudo o que a cerca
Árvore que saboreia
Prof. Carlos Alberto Krauz Toda abóbada dos céus.
Membro
Deus vai aparecer-lhe.
Ora, para que ela esteja segura,
Ele desenvolve em redondo o
seu ser
E lhe estende braços maduros.
__________________________________________________________ Árvore talvez
Prof. Sandra Maria Correia Favero Pense no interior.
Membro Árvore que se domina
Dando-se lentamente
A forma que elimina
Os acasos do vento!
(RILKE in BACHELARD,
Florianópolis, junho de 2008. 1993, p. 242)
NUNES, Katia. Hundertwasser: Arte e Ecologia. Trabalho de
Conclusão do Curso de Licenciatura e Artes Plásticas da Universidade
do Estado de Santa Catarina.

Resumo

No presente trabalho estudo a visão artística e sócio-ecológica de


Sumário
Friedensreich Hundertwasser, tornada pública em manifestos, teorias,
atos públicos e obras de arte. No primeiro capítulo apresento um
panorama geral do contexto histórico da segunda metade do século XX
no âmbito artístico, científico, social, político e especialmente ecológico.
1. Introdução...........................................................................................03
O segundo capítulo é dedicado a Hundertwasser e sua teoria das cinco
2. Contexto Histórico..............................................................................09
peles que englobam o ser humano – epiderme, vestuário, casa do
3. As Cinco Peles....................................................................................21
homem, meio social e identidade, meio global (ecologia e humanidade)
3.1. A Epiderme......................................................................................23
–, bem como a relação do artista com estas, apresentando e analisando
3.2. O Vestuário......................................................................................42
as soluções propostas pelo artista para a melhoria de todas as peles. Em
3.3. A Casa do Homem...........................................................................48
uma terceira etapa busco estruturar e analisar os resultados práticos
! [A Beleza]............................................................................................72
alcançados por Hundertwasser.
3.4. O Meio Social e a Identidade..........................................................77
3.5. O Meio Global – Ecologia e Humanidade.......................................90
4. Considerações Finais..........................................................................98
Palavras-chaves: Hundertwasser; arte; ecologia; as cinco peles do
homem; estética; natureza. 5. Índice de Imagens.............................................................................104
6. Bibliografia.......................................................................................107
Introdução

Da vocação artística individual à ampliação para uma rede social


de comunicação, da ideologia sócio-ecológica ao ativismo
transformador através da obra artística, Hundertwasser1 engaja-se
declaradamente a favor da beleza e do bem-estar social. Contemporâneo
por excelência na multiplicidade de interesses, na diversidade que
abrange do microcosmo dos selos postais ao macrocosmo da arquitetura,
o “pintor-rei” representa bem uma nova postura frente a uma nova
realidade, a da globalização.
Seu engajamento militante e cosmopolita, com raízes em
convicções profundas, pretende inserir a arte na vida social cotidiana de
indivíduos, comunidades e nações, de forma a resultar em
transformações favoráveis que conduzam à harmonia universal.
Tanto o artista sui-generis, como sua ideologia e obra originais e
multifacetadas, despertaram meu interesse e levaram-me a estudá-los
detalhadamente para melhor compreensão e divulgação em nosso país.
No presente trabalho estudo a visão artística e sócio-ecológica de

[01] Hundertwasser Friedensreich Hundertwasser, tornada pública em manifestos, teorias,


Fotografia: Gerhard Krömer, 1985.
atos públicos e obras de arte. Meu primeiro contato com a produção
Fonte: SCHMIED, Wieland. Hundertwasser 1928-2000 Personality, Life, artística de Hundertwasser aconteceu em 2004, por intermédio da obra
Work. Taschen, Köln, Germany: 2000. (p. 390)
“Hundertwasser o Pintor-Rei das Cinco Peles”, de autoria de Pierre
1 Friedensreich Hundertwasser (1928-2000), pintor, artista gráfico, ecologista e
arquiteto austríaco.
Restany. Constatei também a escassez de material bibliográfico em RAND, 2007, p. 23)

língua portuguesa sobre a obra do artista, tão valorizado na Europa,


A doutrina da “salvação” de Hundertwasser é baseada em duas
EUA e Japão. Pretendo situar o artista e sua obra no cenário artístico que
premissas: uma ecológica e uma estética. Um de seus esteios é a
se estende da década de 1950, passando pelo pós-moderno até o
necessidade de aproximar nossa existência à natureza; o outro, é a
hipermoderno ou contemporâneo.
proclamação de que a beleza é a chave para a libertação de todo o mal.
Hundertwasser não participou diretamente de nenhum
Hundertwasser acredita que o princípio do crescimento orgânico deve
movimento artístico de vanguarda. Seus caminhos sempre foram
informar e determinar todos os aspectos de nossas vidas. Também crê
solitários e divergentes dos demais artistas, apesar de, num primeiro
que uma ornamentação saudável irá restaurar o senso global da
momento, podermos identificar ideais comuns entre eles.
harmonia para todas as coisas. Assim, pretende proteger o mundo
O artista preza a beleza quando a grande maioria de críticos e
natural e embelezar o que o homem produziu.
artistas valoriza o grotesco, a anti-arte, o provocante e chocante ou a
Que artista moderno proeminente iria transformar a fachada de
completa apatia e indiferença. Exalta o poder da pintura, enquanto
um restaurante qualquer de rodovia, construído anos antes e projetado
outros a negligenciam, partindo para a exploração de novos meios
por outra pessoa, com materiais pré-fabricados? Tal trabalho é altruísta
expressivos. Associando beleza e pintura, busca harmonia entre o
e, sendo decorativo, contraria o espírito modernista da arte e da
homem e seu meio ambiente, entre o homem e seu próximo. A beleza é
arquitetura. Que pintor outro que Hundertwasser iria desenvolver um
seu mais poderoso recurso contra os males que assombram a sociedade
projeto de redesign3 de um museu para valorizar as cores dos trabalhos
contemporânea, enquanto a vanguarda artística procura provocar
de outros artistas ao utilizar somente preto e branco no exterior do
indiferença, chocar ou causar repugnância.
prédio?

Some distorted minds consider ugliness


beautiful and beauty ugly. In today's museums, museus de hoje, a beleza agora é considerada ruim, uma idéia negativa, e a
beauty is now considered bad, a negative idea, and fealdade é considerada boa, vista como positiva. Primeiro isso era uma lei não
ugliness is considered good, seen as positive. First falada. Agora é exprimida em alto e bom tom, e as pessoas se consideram
this was an unspoken law. Now it is voiced aloud, corajosas se tomam essa posição. Dizem que a beleza é perigosa. Dizem que a
and people consider themselves brave if they take beleza é negativa.
this position. They say beauty is dangerous. They 3 O termo redesign consiste na reformulação, em forma, cor, textura, de um objeto já
say beauty is negative.2 ( HUNDERTWASSER in existente; no caso de Hundertwasser, o redesign aplica-se aos projetos que, para
além das intervenções sobre a fachada de um edifício, incluam o arranjo e a
2 Algumas mentes deturpadas consideram a fealdade bela e a beleza feia. Nos renovação dos espaços interiores. (RESTANY, 2002, p. 49)
Após anos criando imagens de um mundo paradisíaco, ocupa-se as bread was used in the war. Being an artist is a
way of being, it's not just what you produce. 4
em pensar questões diversificadas como esgoto, trânsito, arquitetura, ( HUNDERTWASSER in RAND, 2007, p. 83)

dieta alimentar, planejamento urbano, latrina de húmus, a relva dos


telhados, sociedades sustentáveis, indumentária, energia, identidade, Os objetivos de Hundertwasser convergem com os da história da

entre outras facetas que a vida moderna implica. Tais interesses reduzem arte tradicional clássica. Por sua concepção de beleza, porém, sua arte

sua respeitabilidade frente a críticos modernistas, que execram as muitas vezes é considerada ingênua e de menor valia, conforme destaca

atividades extra-artísticas de Hundertwasser. Os múltiplos interesses do Pierre Restany: “A verdade banal gera escândalo, particularmente em

artista traduzem a diversidade contemporânea típica do mundo Viena, segundo parece, e Hundertwasser adquiriu uma reputação

globalizado, abarcando do microcosmo da vida cotidiana ao sulfurosa de eterno beatnik ingênuo ou de bobo a jogar ao terrorismo

macrocosmo da obra artística. Fundamentalmente, não são seus mental.”5 Com uma personalidade individualista e narcisista,

interesses variados que ofendem os modernistas, mas suas atividades Hundertwasser nunca se desviou de seu caminho para tentar qualquer

sociais por si mesmas. Estas práticas constituem o âmago de sua rejeição aproximação com movimentos artísticos da arte tradicional. Entretanto,

pelo modernismo internacional. Uma vez compreendida a substância o individualismo e a relação entre arte e política surgem com força no

dessa rejeição, o desprezo mútuo dos protagonistas fica claro. contexto da segunda metade do século XX, e, neste aspecto,

Hundertwasser não considera a palavra “vanguarda” como sinônimo de Hundertwasser é pioneiro e encontra pontos em comum com outros

uma crítica externa à sociedade, mas utiliza a palavra em seu sentido artistas de sua época.

original de uma “vanguarda militar”, tropa de choque da cultura. É a arte estética inferior? O trabalho de Hundertwasser não se
encontra em sintonia com as principais necessidades e problemas de sua
A painter should be avant-garde, should be
in advance of the needs of our society and ecology 4 Um pintor deve ser vanguardista, deve estar à frente das necessidades de nossa
– which is in a state of crisis. A painter should act sociedade e ecologia – que está num estado de crise. Um pintor deve agir como
as an example against the consumer society. He exemplo contra a sociedade de consumo. Deve ser exemplo de como viver numa
should be an example of how to live in a wasteless sociedade de desperdícios. E o que o pintor faz? Faz o contrário. Respinga ao redor
society. And what does the painter do? He does the e desperdiça a pintura. Ele é pior desperdiçando um material valioso. Eu considero
contrary. He splashes around and wastes the paint. a pintura uma atividade religiosa; a substância da pintura é um material sagrado.
He is worse, wasting valuable stuff. I consider Deveria ser considerada como ouro. Deveria ser usada sabia- e inteligentemente.
painting a religious activity; the substance of paint Ao menos como o pão foi usado na guerra. Ser artista é uma maneira de ser, não
is a sacred material. It should be cared for like gold. somente o que você produz.
It should be used wisely and intelligently. At least 5 RESTANY, 2002, p. 18 e 19.
época? Sua concepção ideológica nos acrescenta algo? Tentarei dar Contexto Histórico
respostas a tais questionamentos a partir de uma análise criteriosa.
No primeiro capítulo apresento um panorama geral do contexto
histórico da segunda metade do século XX no âmbito artístico, O século XX foi caracterizado como a era dos extremos pelo
científico, social, político e especialmente ecológico. historiador Eric Hobsbawn. O termo extremos designa o caráter
O segundo capítulo é dedicado a Hundertwasser e sua teoria das dramático dos conflitos e transformações ocorridos nesse breve período
6
cinco peles que englobam o ser humano – epiderme, vestuário, casa do de tempo, o qual concentra duas guerras mundiais, revoluções sociais,
homem, meio social e identidade, meio global (ecologia e humanidade) ditaduras totalitárias – nazismo e fascismo, o desenvolvimento técnico-
–, bem como a relação do artista com estas, apresentando e analisando científico, a Guerra Fria, o progresso tecnológico, a ameaça nuclear e o
as soluções propostas pelo artista para a melhoria de todas as peles. desequilíbrio ecológico.
Em uma terceira etapa busco estruturar e analisar os resultados A ameaça ecológica impõe-se como fenômeno determinante
práticos alcançados por Hundertwasser. Seu principal objetivo, a nesse século. A ascensão burguesa, o sistema capitalista e o crescente
harmonia entre o ser humano e o mundo que o cerca, revela-se como o progresso científico, somados à contribuição do trabalho proletário,
caminho para a felicidade, que só será alcançado por meio do permitiram o desenvolvimento da indústria já desde o século XVIII.
entendimento da importância da beleza e do respeito à natureza, através Diante desta crescente industrialização, com ênfase na agilidade
da plena compreensão de todas as peles do ser humano. produtiva e quantitativa, vigorava o preceito de que o meio ambiente era
uma fonte inesgotável de recursos naturais à disposição do ser humano.
Ávido por progresso e explorador incansável dos recursos naturais, o ser
humano provocou vastos danos ecológicos à biosfera e à vida humana.
Uma visão de mundo obsoleta levou à escassez de recursos e à
degradação inconseqüente do meio ambiente, que, combinados ao
aumento populacional, denotam uma crise de percepção.
Foi somente a partir da década de 1960 que a conscientização
6 As cinco peles: organização esquemática tratando de todos os níveis da ecológica começou a ganhar importância. A consciência de que a
experiência humana, desenvolvida por Friedenreich Hundertwasser.
valores e nas ações. Uma mudança de paradigma para uma nova visão
de mundo tornava-se necessária com urgência. A ecologia aparecia em
cena com uma evolução em seus conceitos.

Grande evolução, em pouco tempo. Ecologia


foi um termo cunhado no século XIX para designar o
estudo do funcionamento dos sistemas naturais, com
destaque para as relações que se estabelecem entre os
seres vivos num mesmo hábitat. Adquiriu nas últimas
décadas dimensão muito mais abrangente: o estudo da
reprodução da vida em escala planetária, criando uma
nova perspectiva para se pensar as sociedades humanas
como parte desse conjunto. Em pouco mais de um século,
como se vê, deixou para trás o domínio restrito da
biologia, penetrou no espaço das ciências sociais,
redefiniu conceitos, passou a denominar um amplo
movimento social organizado e chegou, por fim, a
designar uma nova filosofia de vida. (BENJAMIN, 1993,
p. 05)

[02] Rain of blood is falling into the garden, xilogravura japonesa,


A urgência ecológica e as novas descobertas na Física Atômica
43x55.5cm, 1973.
levaram a ciência a uma visão sistêmica da vida. O novo paradigma

Fonte: SCHMIED, Wieland. Hundertwasser 1928-2000 Personality, apresenta uma visão de mundo holística, ecológica, que percebe o
Life, Work. Taschen, Köln, Germany: 2000. (p. 177) mundo como um todo integrado, onde tudo está interligado e é
interdependente. Tal visão evoluiu para a noção de ecologia profunda,
devastação ambiental nos levaria a conseqüências irreversíveis, criando termo cunhado no início da década de 1970 pelo filósofo norueguês
uma crise mundial que atingiria toda a vida no planeta, mobilizou Arnes Naess, que abrange os estudos das ecologias: humana, social,
ativistas de diferentes segmentos sociais: cientistas, ambientalistas, ambiental.
artistas, políticos e outros. As pesquisas científicas apontavam que A ecologia profunda interpreta o mundo como uma rede de
apesar dos estragos já causados pelo ser humano ao meio ambiente, fenômenos fundamentalmente interconectados e interdependentes,
ainda havia soluções viáveis à alteração deste quadro, mas estas reconhecendo o valor intrínseco de toda matéria viva ou não, sem
exigiriam mudanças radicais na nossa percepção, no pensamento, nos estabelecer qualquer distinção entre o ser humano e o meio ambiente
natural. experiência ecológica profunda de sermos parte da
teia da vida, então estaremos (em oposição a
Essa mudança de paradigma requer uma expansão nas nossas deveríamos estar) inclinados a cuidar de toda a
natureza viva. (CAPRA, 1996, p. 29)
percepções e valores. O antigo paradigma é baseado em valores
antropocêntricos, enquanto a ecologia profunda está alicerçada em O mundo da arte na década de 1960, igualmente defrontava-se
valores ecocêntricos. Todos os seres vivos estão conectados em uma com novos desafios, campos desconhecidos e inexplorados. Segundo
rede de interdependência. De tal percepção ecológica profunda emerge Gilles Lipovetsky7, em A Era do Vazio, é no decorrer desta década que
um novo sistema de ética. identificamos o fim do modernismo e o começo de uma cultura pós-
Ao não distinguir entre o ser humano e os outros seres vivos, a moderna. Após a grande ruptura modernista com os padrões
ecologia profunda qualifica o eu como parte inerente à natureza, estabelecidos desde a arte clássica, vivida na primeira metade do século,
estabelecendo uma nova postura em relação a sua preservação. a arte se aproximou da vida cotidiana, e encontrava-se diante de
possibilidades expressivas multiplicadas ao infinito. A regra passou a ser
Essa expansão do eu até a identificação a ausência de regras. A liberdade de expressão ampliou-se em conceitos,
com a natureza é a instrução básica da ecologia
profunda, como Arne Naess claramente reconhece: técnicas, materiais expressivos e suportes, conferindo abrangência tanto
O cuidado flui naturalmente se o eu é às possibilidades do campo criativo como à própria criação artística.
ampliado e aprofundado de modo que a proteção da
Natureza livre seja sentida e concebida como Neste contexto surge uma diversidade de correntes, estilos, escolas e
proteção de nós mesmos. ... Assim como não
precisamos de nenhuma moralidade para nos fazer movimentos artísticos. A Pop Art é um boom revolucionário que surge
respirar... [da mesma forma] se o seu eu, no sentido
amplo dessa palavra, abraçar um outro ser, você não nos EUA; Dubuffet cria seu conceito de L'art Brut, valorizando a obra
precisa de advertências morais para demonstrar
cuidado e afeição... você o faz por si mesmo, sem excluída do mercado da arte; Pierre Restany, em conjunto com Yves
sentir nenhuma pressão moral para fazê-lo. ... Se a
realidade é como é experimentada pelo eu ecológico, Klein, funda o grupo dos Nouveaux Réalistes; a Arte Povera é a
nosso comportamento, de maneira natural e bela,
segue normas de estrita ética ambientalista. novidade na Itália; surgem na cena artística: o conceito de Arte
Informal, o Expressionismo Abstrato, a Arte Existencial, o
O que isto implica é o fato de que o
vínculo entre uma percepção ecológica do mundo e
o comportamento correspondente não é uma 7 Gilles Lipovetsky (1944), filósofo francês, criador do conceito de
conexão lógica, mas psicológica. A lógica não nos hipermodernidade para designar a atualidade, dedica-se aos estudos desta sociedade
persuade de que deveríamos viver respeitando hipermoderna. É autor de livros como: A Era do Vazio, O Império do Efêmero,
certas normas, uma vez que somos parte integral da Metamorfoses da Cultura Liberal, Os Tempos Hipermodernos, A Sociedade Pós-
teia da vida. No entanto, se temos a percepção, ou a moralista.
Minimalismo, a Earth Art, a Land Art. O termo Arte Conceitual muito bem”, declara Alain Finkielkraut8 jogando com a máxima “Deus
concentra diversos destes grupos e movimentos, ao afirmar a idéia como está morto” de Nietzsche. Deus morto, neste contexto, refere-se à perda
elemento principal da obra de arte, e não mais a materialidade da obra. da unidade total, do valor absoluto, em prol de uma fragmentação
A tecnologia aliada à globalização e à indústria dá margem à exploração generalizada, que vem acontecendo desde o século XVIII.
de novos meios expressivos como a fotografia, a imagem digital e o Lipovetsky aponta o ativismo ecológico, surgido com
vídeo. Victor Vasarely dá inicío a experiências tecnológicas que tanta força na década de 1970, como conseqüência do narcisismo
resultam na Op Art. O corpo se torna objeto de exploração artística com característico do indivíduo pós-moderno, e, portanto, não devemos
a Body Art. Esse panorama diversificado inclui também artistas que não pensar que tal consciência ecológica seja consistente. Uma das
se engajaram em nenhum grupo, trilhando novos caminhos principais características desta nova sociedade que surge no pós-
individualmente. Joseph Beuys e Friedenreich Hundertwasser são modernismo, é a superficialidade generalizada. No âmbito da
exemplos; exploraram conceitos e dedicaram-se a explorações artísticas globalização, acontecimentos e informações atingem uma velocidade
independentes. Numa primeira instância estes artistas cultuaram ideais ímpar, o homem tem acesso direto a tudo e a todos, mas este
semelhantes; ambos demonstravam grande interesse pela “progresso” resulta em inevitável superficialidade.
conscientização ecológica, utilizando sua arte como instrumento O mundo entra numa nova era, um período de incógnita, a
político; entretanto, apesar de compartilharem este objetivo de sociedade pretere atitudes autoritárias e dirigistas, privilegiando
engajamento entre arte e política, no desenvolvimento de seus trabalhos democratização e a diversidade em todos os âmbitos da vida e da
trilharam caminhos bastante diferentes para expressar e afirmar tais cultura. Ocorre uma mudança de pressupostos cultural- e moralmente:
ideais.
Lipovetsky caracteriza o indivíduo da era pós-moderna como um Instala-se um novo estágio de
individualismo: o narcisismo designa o surgimento
personagem essencialmente individualista, hedonista e narcisista. E a era de um perfil inédito do indivíduo nas suas relações
consigo mesmo e com o seu corpo, com os outros,
mais próxima do niilismo (a negação de todos os valores), que Nietzsche com o mundo e com o tempo no momento em que o
“capitalismo” autoritário cede lugar a um
anunciou no século XIX. capitalismo hedonista e permissivo. A idade de
“Deus está morto, Marx também e eu não estou me sentindo
8 Alain Finkielkraut (1949), filósofo francês de origem polonesa, muito influenciado
pelos escritos de Hannah Arendt, analisa os estragos da modernidade e a
fragilização do meio social.
ouro do individualismo, concorrente no nível
econômico, sentimental no nível doméstico, Apesar de estarem começando a tomar
revolucionária nos níveis político e artístico, chega uma consciência parcial dos perigos mais evidentes
ao fim e um individualismo puro se desenvolve, que ameaçam o meio-ambiente natural de nossas
desembaraçado dos últimos valores sociais e morais sociedades, elas (as formações políticas e instâncias
que ainda coexistiam com o reino glorioso do homo executivas) geralmente se contentam em abordar o
oeconomicus, da família, da revolução e da arte; campo dos danos industriais e, ainda assim,
emancipada de qualquer enquadramento unicamente numa perspectiva tecnocrática, ao
transcendental, a própria esfera privada muda de passo que só uma articulação ético-política – a que
sentido, uma vez entregue aos desejos variáveis dos chamo ecosofia – entre os três registros ecológicos
indivíduos. Se a modernidade se identifica com o (o do meio-ambiente, o das relações sociais, e o da
espírito do empreendimento e com a esperança subjetividade humana) é que poderia esclarecer
futurista, é claro que, devido à sua indiferença convenientemente tais questões. (GUATTARI,
histórica o narcisismo inaugura a pós-modernidade, 2004, p. 08)
a última fase do homo aequalis. (LIPOVETSKY,
1993, p.32)

O conceito de ecologia se estende à ecosofia, que se orienta por


9
Félix Guattari , em seu livro As Três Ecologias, dedica-se à três domínio:
problemática da era pós-moderna: a singularização. O autor se posiciona
−Ecosofia ambiental: a ecologia mais conhecida e difundida pela mídia,
quanto à urgência da mudança de paradigmas, tal como Capra e
visa a preservação do ecossistema, das fontes de energia, das reservas de
Lipovetsky, e lança sua visão sobre a questão. Coloca que para alcançar
água potável, sobrevivência das espécies, etc.
resultados satisfatórios dependemos da reavaliação de três ecologias:
humana, social, ambiental. Com esta citação, Guattari inicia suas Mais do que nunca a natureza não pode ser
separada da cultura e precisamos aprender a pensar
reflexões: “transversalmente” as interações entre
ecossistemas, mecanosfera e universos de
referências sociais e individuais. (GUATTARI,
Existe uma ecologia das idéias danosas, 2004, p. 25)
assim como existe uma ecologia das ervas
daninhas. ( BATESON, 1980, p. 11)
Ecosofia social:
E parte para a problemática colocada:
9 Félix Guattari (1930-1992), filósofo e militante revolucionário francês criador de ... não haverá resposta à crise ecológica a
conceitos como esquizoanálise, transversalidade, ecosofia, caosmose, é um dos não ser em escala planetária e com a condição de
maiores inventores conceituais do século XX. Trabalhou durante muitos anos com que se opere uma autêntica revolução política,
Gilles Deleuze com quem escreveu os livros Anti-Édipo, Capitalismo e social e cultural, reorientando os ojetivos da
Esquizofrenia, O que é Filosofia?, entre outros; autor de As Três Ecologias, onde produção de bens materiais e imateriais. (op. cit.,
aborda seu conceito de ecosofia. p. 09)
Algumas facetas da proposta de Guattari para a reformulação de
Uma ecosofia social tratará de modificar e reinventar
paradigmas a partir destes três registros de ecosofias são reconhecíveis
maneiras de ser no seio do casal, da família, do contexto urbano, do
na concepção artística de Friedensreich Hundertwasser.
trabalho, etc. Neste domínio faríamos funcionar práticas efetivas de
A arte de Hundertwasser é expressão de uma ideologia. Artista
experimentação tanto nos níveis microssociais quanto em escalas
gráfico, plástico, ativista ambiental e arquiteto, nas décadas de 1960 e
institucionais maiores.
1970 propõe a adoção de uma moral prática da beleza 10, que pretende
uma conscientização preservacionista da vida, do ser humano, e do seu
A questão será literalmente reconstruir o
conjunto das modalidades do ser-em-grupo. E não habitat.
somente pelas intervenções “comunicacionais” mas
também por mutações existenciais que dizem
Seu postulado enfatiza a verdade e o poder da beleza: a natureza
respeito à essência da subjetividade. (op. cit., p. 16) é um fim em si, nada existe fora dela; enquanto harmoniosa, a natureza
está imbuída de beleza.
−Ecosofia mental: questiona a própria noção de subjetividade humana. É
A arte é o meio que conduz à beleza. Hundertwasser reverencia
claro que as teorias psicanalíticas e estruturalistas serviram de fonte para
a criação artística como um sacerdócio, relacionando a arte ao sagrado.
o questionamento da subjetividade cartesiana ("penso, logo existo"). Na
A configuração de uma nova moral prática para a sociedade consumista
verdade, há outras maneiras de existir fora da consciência. Por isso
tem por objetivo a busca do bem estar na vida e no meio ambiente.
Guattari prefere falar em componentes de subjetivação. Questiona, pois,
Como ativista ambiental, Hundertwasser lança mão da arte para
o individualismo, o consumismo, a alienação e a passividade nossa de
conscientizar e concretizar ações práticas que venham a modificar
cada dia.
situações degradantes. Desenvolve a teoria das cinco peles, uma
organização esquemática representando todos os níveis da experiência
A ecosofia mental, por sua vez, será
levada a reinventar a relação do sujeito com o humana. Partindo do princípio do pensamento sistêmico, segundo o qual
corpo, com o fantasma*, com o tempo que passa,
com os “mistérios” da vida e da morte. Ela será
levada a procurar antídotos para a uniformização 10 Hundertwasser atribui poderes mágicos à beleza, acredita que o belo tenha um
midiática e telemática, o conformismo das modas, efeito curativo; o homem poderá “alcançar a suprema justiça através da beleza”.
as manipulações da opinião pela publicidade, pelas Existe uma relação intrínseca entre beleza e natureza. A perfeição encontra-se nas
sondagens, etc. (op. cit., loc. cit.) formas orgânicas da natureza e no caráter cíclico da vida; o papel do ser humano
não é a imitação da natureza, mas aprender com ela, interagir com sua sabedoria e
desenvolver a criatividade neste processo de troca. (referencia)
na natureza tudo está interligado e é interdependente, as cinco peles que As Cinco Peles do Homem
envolvem o ser humano são definidas: a epiderme, o vestuário, a casa, o
meio social e a identidade, o meio global – ecologia e humanidade.

E que espiral é o ser do homem!


Nessa espiral, quantos dinamismos que se
invertem! Já não sabemos imediatamente se
corremos para o centro ou se nos evadimos.
(BACHELARD, 1989, p. 217)

[03] The Great Way, 1955.


Fonte: www.hundertwasser.com

A primeira, a pele natural, é repleta de intimidade com o sujeito,


na medida em que reveste seu corpo físico e seu Eu. O processo de
expansão da subjetividade dá-se na segunda pele, no direito à
indumentária personalizada. O próximo passo diz respeito ao espaço
físico imediatamente circundante, a casa. A quarta pele situa o sujeito
criativo em seu ambiente social e foca no desafio de preservação de sua
identidade pessoal. A quinta pele é a pele planetária, diretamente
relacionada a problemas ambientais e soluções ecológicas viáveis.
A Epiderme

A epiderme consiste na pele mais próxima do Eu11. Como


invólucro, camada sensível, viva, constituinte do corpo humano, a
epiderme inspira e expira as necessidades mais básicas do ser humano:
das necessidades fisiológicas à sexualidade e à morte. Contém, além do
físico, o Eu. O Eu aqui como ser humano sensível e pensante, com todas
as características subjetivas que determinam sua personalidade, caráter,
consciência e inteligências múltiplas12. Para Hundertwasser, o potencial
criativo do ser humano remete à essência de sua natureza.
Através de manifestos e ações, Hundertwasser questiona a
estruturação de seu habitat e o modo como nos relacionamos com ele.
Defende o direito à criação, caracterizando a arte como um estilo de
vida com nova orientação para com a matéria circundante. O potencial
criativo nasce com o ser humano. A criatividade é um elemento vital

11 O Eu é o centro da consciência superior, é a soma total dos pensamentos, idéias,


sentimentos, lembranças e percepções sensoriais, extra-sensorial, e não-sensorial. É
o sujeito empírico, onde o Eu-sujeito significa a posse do Eu-objeto por si mesmo.
Representa os impulsos instintivos da personalidade na sua mais baixa
[04] As Cinco Peles do Homem, desenho a tinta, 29.7x20.9 cm,
representação, reservatório inicial da energia psíquica. (JOLIVET, 1965, p. 220)
Hundertwasser,Viena, 1998. 12 A Teoria das Inteligências Múltiplas foi desenvolvida pelo psicólogo da
Universidade de Harvard, Howard Gardner, em 1985. É uma alternativa para o
conceito de inteligência como uma capacidade inata, geral e única. Gardner
Fonte: SCHMIED, Wieland. Hundertwasser 1928-2000 Personality, Life, identificou as inteligências lingúística, lógico-matemática, espacial, musical,
cinestésica, interpessoal e intrapessoal. Postula que essas competências intelectuais
Work. Taschen, Köln, Germany: 2000. (p. 395)
são relativamente independentes, têm sua origem e limites genéticos próprios e
substratos neuroanatômicos específicos e dispõem de processos cognitivos
independentes. (GARDNER, 1996.)
que, segundo o artista, sofreu opressão na sociedade ocidental, automatismo14, o qual foi amplamente explorado pelo tachismo e pela
suscitando automatismos culturais e reflexos inibitórios à nossa arte informal durante a década de 1950. O transautomatismo, que surgiu
essência criativa. como uma idéia de transcendência ao automatismo, não estava focado
no subconsciente, mas numa “partida em direção à verdadeira
There is always a system of superior criatividade”15.
order, of creative intelligence, and you have to fit
into this system. Only the one who is a creative
intelligence will survive. That means we are a
congregation of Gods. This is our normal status.
People are very different from one
another. They are already different at birth.
Everyone can and must be creative. That is a law of
nature. The beggar becomes a king and the king a
beggar. What matters is what you are and what you
make of yourself. It is your creative power. It is
very easy, no problem.13 (HUNDERTWASSER in
RAND, 2007, p. 64)

Na teoria do transautomatismo, de 1954, e da “Gramática do


Ver” de 1957, Hundertwasser critica o analfabetismo perceptivo da
[05] A Gramática do Ver, Paris, 1957.
sociedade, incentiva o direito à expressão individual e afirma a
Primeira página.
necessidade de interatividade criativa entre espectador e obra de arte,
resgatando a herança de Marcel Duchamp que, no início do século XX, Fonte: SCHMIED, Wieland. Hundertwasser 1928-2000
atribuiu a significação e a apreensão da obra de arte ao público: “é o Personality, Life, Work. Taschen, Köln, Germany: 2000. (p. 80)

espectador quem faz a arte”. 14 Os surrealistas usaram o termo “automatismo” na década de 1920 para descrever a
A teoria do transautomatismo partiu de reflexões acerca do redação ou pintura espontânea, empreendida para expressar livremente as
atividades do subconsciente. Os surrealistas consideravam o automatismo uma
13 Sempre há um sistema de ordem superior, de inteligência criativa, e você tem que forma de se livrar de qualquer noção ou estilo artístico preconcebido para alcançar
caber neste sistema. Só aquele que é uma inteligência criativa sobreviverá. Isso a abordagem mais verdadeira e individual da expressão criativa. O surrealista
significa que nós somos umas congregações de Deuses. Este é nosso estado normal. francês André Masson foi o pioneiro do automatismo na arte com os seus desenhos
As pessoas são muito diferentes umas das outras. Elas já são já diferentes no “relâmpago”. Mais tarde, o automatismo foi adotado pelos expressionistas abstratos
nascimento. Todo mundo pode e deve ser criativo. Isso é uma lei da natureza. O de Nova York e serve para descrever o estilo de pintura de “ação” a mão livre de
mendigo torna-se um rei e o rei um mendigo. O que importa é o que você é e o que Jackson Pollock. (WOOD, 1998, p. 42)
você faz de si. É seu poder criativo. É muito fácil, nenhum problema. 15 SCHMIED, 2000, p. 80.
A principal premissa de Hundertwasser afirma que o que disposição de suas pinturas ao lado de flores e árvores, contra as paredes
entendemos por “ver” muitas vezes não compreende uma percepção das casas, entradas e escadarias, colocando um fragmento de casca ou
visual cognitiva; o “ver” não constitui um sentido amplamente folha próxima a elas, para ver como ficavam numa situação de
desenvolvido, segundo ele; na realidade, somos analfabetos no âmbito interatividade com a realidade visual da natureza.
visual, e geralmente só enxergamos e assimilamos coisas que já vimos
anteriormente. Assim, o dever da arte moderna seria ensinar as pessoas
a vislumbrar coisas novas, enxergar o mundo a partir de ângulos
inusitados. Hundertwasser acredita que o significado e o valor da obra
de arte estão relacionados à variedade e à qualidade das imagens
interiores e pensamentos que esta evoca no espectador. O status de uma
pintura, então, seria determinado pela riqueza de associações que ela é
capaz de despertar no público espectador participativo.
O caráter dessas associações pode ser bastante diferente; elas
podem estar relacionadas com coisas no presente, passado ou futuro,
podem dizer respeito ao visível e invisível, a objetos e idéias, memórias
e desejos, ao real e ao possível, a fatos e valores. Uma pintura pode nos
recordar de um cheiro, uma melodia, um momento específico, pessoas e
paisagens, pode gerar diferentes humores, liberar energias, nos
estimular à ação. Em seus trabalhos teóricos, Hundertwasser propôs-se a
reunir todas as possibilidades de associações e efeitos que uma pintura
pudesse exercer; queria definir os diferentes tipos de associações [06] Hundertwasser com suas pinturas, Viena
Fotografia: Alfred Schmid, 1989.
suscitadas pela obra ao ser observada e ordená-las em relação a certos
pontos de vista. Fonte: SCHMIED, Wieland. Hundertwasser

Um resultado prático de sua “Gramática do Ver” foi a 1928-2000 Personality, Life, Work. Taschen, Köln,
Germany: 2000. (p. 105)
Uma pintura é essencialmente imóvel, mas sua visualização é associativas ou seqüências de imagens em espectadores distintos, mas
um processo dinâmico. Entretanto, o dinamismo deve estar latente, também desencadeará filmes interiores amplamente divergentes no
encontrar-se implícito na obra pictórica para poder desencadear o mesmo espectador em ocasiões diferentes, conforme seu humor e
processo. É aqui que as coisas se tornam bastante complexas. Por um disposição específicos.
lado, cada pintura individual pode armazenar um número infinito de Deste ponto de vista, a função dos títulos17 dados por
pinturas imagéticas que, em observação prolongada, se revelarão ao Hundertwasser a suas obras pictóricas torna-se clara: eles são um tipo
espectador; por outro lado, a visualização, a recepção, pode tornar-se de contribuição adicional para o filme individual começar a rodar.
um processo criativo se o espectador responde à obra de arte com uma Vários títulos diferentes sugerem uma riqueza infinita de possibilidades
riqueza de imagens interiores de sua própria imaginação. A criação para o filme individual. Mas uma vez que o cinema individual começa a
artística por excelência seria uma pintura rica em imagens subjetivas e projetar suas próprias significações em relação à obra pictórica, lembrar
criativas frente a frente com um espectador com predisposição à dos títulos somente interfere na exibição do filme.
criatividade imaginativa e imune a automatismos culturais – então a O artista certa vez tentou identificar as várias fases de um filme
“série contínua infinita”16 de pinturas descrita por Hundertwasser de em formação: da projeção de associações, de qualidade variável, à
fato viria a se concretizar. formação de imagens interiores e pensamentos, seguidos por sua
Hundertwasser descreveu o processo de observação de uma conversão em energia, que vem a ser o retorno à vida real do
pintura e as imagens e pensamentos gerados por tal processo como espectador. O espectador torna-se, então, criativo. Mas mesmo assim o
“filme interior” ou “filme individual” e, ocasionalmente, até como filme em formação não precisa chegar a uma conclusão: como
“cinema individual”. Para realçar o papel ativo do espectador neste associações e outros produtos da imaginação, a criatividade das pessoas
processo, mais tarde denominou-o “filme formativo interior ou tem o potencial de desenvolver-se permanentemente. Mas:
individual” - referindo-se à profusão de imagens desvelando-se diante
do seu “olho interior”. “It would be pointless and impossible to
want to describe how the film continues",
Cada pintura contém não uma, mas infinitas possibilidades de
17 Os títulos conferidos às pinturas por Hundertwasser estavam vagamente ligados a
“filmes individuais”. Não apenas fará surgir diferentes correntes sua forma física e significação - cor e objeto que ele retratou. Normalmente tinham
mais de um título. Hundertwasser preferia nomeá-los sem um sentido óbvio para
estimular a criatividade imaginativa do espectador diante da obra, esta que nunca
16 SCHMIED, 2000, p. 81. possui somente uma significação, mas suscita múltiplas. (SCHMIED, 2000, p. 74)
Hundertwasser said. "Beyond these areas, life using strength and application and intellect, but
boundless, new perspectives open up for the in art these things produce absolutely no result.19
individual, a transautomatic formative film; but, ( HUNDERTWASSER in RAND, 2007, p. 29)
given the vastness of the space, in fact, it soon
comes up against the provisional and temporary
limits of our capabilities. The individual film Em 1959, ao fundar a Pintorarium, uma academia
therefore traces a steady, continuous course,
moving from the superficial world to the typical universal de todos os campos criativos, junto com Ernst Fuchs e Arnulf
and quasi-infinite space of true human
possibilities.18 (SCHMIED, 2000, p. 81)
Rainer, Hundertwasser igualmente reforça a importância que confere à
natureza no processual exercício criativo:
Quanto ao exercício artístico, Hundertwasser ainda retorna a
expor a importância que confere a este, comentando de seu processo Physical absence is a precondition for my
spiritual presence. If I were present in a master
criativo: class it would influence people and frighten them
out of expressing themselves. Of course, the
For me pictures are gateways through students influence each other. In the classroom
which – when I succeed – I can burst into a world there are plants and trees. They take my place, they
which is at once very close to us and very distant; a are the teachers. Sitting between plants and trees in
world to which we have no access. Where we find a room and being creative is very interesting
ourselves, but which we cannot perceive; a world because the students immediately compare their
which is opposed to the real world. Our parallel own creativity with the creativity of nature. Nature
world, from which, in a sense, we alienate grows according to very stable laws and patterns,
ourselves. And this is paradise. We are inside it, we and nature is always right – how the leaves come
are imprisoned in it, and yet some inexplicable out and how the trunk grows and how the bud
power denies it to us. comes out. Plants influence people, but when an
I have manage to open some windows artist is influenced by a plant's creativity then the
onto this world. How I have managed it is difficult
to explain. It certainly wasn't by force, not by 19 Para mim imagens são passagens pelas quais – quando eu sou bem sucedido –
selection, not by intelligence, not even exactly by posso entrar num mundo primeiramente muito fechado e distante de nós; um
intuition, but almost by a kind of sleepwalking. The mundo ao qual nós não temos nenhum acesso. Onde achamo-nos, mas não
work of an artist is very difficult, precisely because conseguimos perceber; um mundo que é oposto ao mundo real. Nosso mundo
it cannot be done with force, with diligence, or with paralelo, de que, num sentido, nós alienamo-nos. E isto é o paraíso. Nós estamos
intelligence. I mean, you can do everything else in dentro dele, nós somos presos a ele, e mesmo assim algum poder inexplicável o
nega a nós.
18 “Seria sem propósito e impossível querer descrever como o filme continua”, disse Eu consegui abrir algumas janelas sobre este mundo. Como administrei isso é
Hundertwasser. “Além destas áreas, ilimitadas, novas perspectivas aparecem ao difícil explicar. Certamente não foi por força, não por seleção, não por inteligência,
indivíduo, um filme formativo transautomático; mas, dada a vastidão do espaço, nem sequer exatamente por intuição, mas quase por um tipo de sonambulismo. O
aliás, logo batem de frente com os limites provisórios e temporários de nossas trabalho de um artista é muito difícil, precisamente porque não pode ser feito com
capacidades. O filme individual portanto traça um firme curso, contínuo, movendo- força, com diligência, nem com inteligência. Quero dizer, você pode fazer tudo
se do mundo superficial ao espaço típico e quase-infinito das verdadeiras mais na vida usando força e aplicação e intelecto, mas na arte estas coisas não
possibilidades humanas. produzem absolutamente nenhum resultado.
artist's own creativity will be almost perfect; he ( HUNDERTWASSER in SCHMIED, 2000, p. 83)
cannot fail – he follows the laws of vegetation in
creating paintings.20 (op. cit. , p. 75)
Hundertwasser expõe drásticas comparações: “Nós devemos, no
No “Manifesto do Bolor”, de 1958, Hundertwasser faz uso da mínimo, acabar com as pessoas ocupando aposentos minúsculos, como
teoria da criação transautomática para encorajar o homem a “cultivar galinhas e coelhos em seus viveiros.” E faz ainda algumas declarações
seu próprio bolor doméstico”; quebrando assim, a tendência ao arrojadas: “Nas, assim chamadas, favelas, só o corpo humano pode ser
distanciamento entre ser humano e natureza, resultante de uma pseudo- oprimido, mas na arquitetura que supostamente foi planejada para os
assepsia cultural. O artista propõe um retorno à participação do homem seres humanos, a alma do homem perece”22.
como ser biológico no ciclo orgânico da matéria. Começa a discorrer, então, sobre o que ele mais tarde
O “Manifesto do Bolor” começa, depois de uma declaração descreveria como “O Direito de Janela”: “O habitante de uma casa-
introdutória acerca da liberdade artística, com a afirmação: apartamento deve ter a liberdade de inclinar-se para fora de sua janela e
– tão longe quanto seus braços alcançarem – arranhar fora o reboco”.
Everyone should be able to build and as Semelhantemente, deve-lhe ser permitido “tomar um longo pincel” e
long as this freedom to build does not exist,
present-day planned architecture cannot be pintar tudo ao redor de sua janela.
considered art at all. Our architecture has
succumbed to the same censorship as paintings in O “Manifesto do Bolor” culmina no credo: “Somente quando
the Soviet Union. All that this has achieved is a few
detached and pitiable compromises by men of bad
arquitetos, pedreiros e habitantes formarem uma unidade, ou um na
conscience who work with straight rulers!21 mesma pessoa, nós poderemos falar de arquitetura. Todo o resto não é
20 Ausência física é uma condição prévia para minha presença espiritual. Se eu
estivesse presente numa classe magistral influenciaria as pessoas e os assustaria a
arquitetura, mas um ato criminoso que veio a assumir forma. Arquiteto/
expressarem-se. Naturalmente, os estudantes influenciam uns aos outros. Na sala de pedreiro/habitante são uma trindade como a Sagrada Trindade de Deus/
aula há plantas e árvores. Elas tomam o meu lugar, elas são os professores. Sentar
entre plantas e árvores em um quarto e ser criativo é muito interessante porque os Filho/Espírito Santo. A grande semelhança entre estas duas trindades,
estudantes imediatamente comparam sua própria criatividade com a criatividade de
natureza. A natureza cresce de acordo com leis muito estáveis e padrões, e a sua quase-identidade, deve ser anotada ...”23
natureza é sempre correta – como as folhas saem e como o tronco cresce e como o
broto sai. As plantas influenciam as pessoas, mas quando um artista é influenciado
pela criatividade de uma planta então a própria criatividade do artista será quase Soviética. Tudo o que isso alcançou foram alguns acordos desprendidos e
perfeita; ele não pode fracassar – ele segue as leis da vegetação em criar pinturas. lamentáveis por homens de má consciência que trabalham com réguas de linha
21 Todo mundo deveria estar apto à construir e já que esta liberdade para construir não reta!
existe, a arquitetura planejada atual não pode ser, absolutamente, ser considerada 22 RAND, 2007, p. 67.
arte. Nossa arquitetura sucumbiu à mesma censura que a pintura na União 23 RESTANY, 2002, p. 23.
encontram menos em casa nela, do que num desejo confortável de um
grupo de formigas estúpidas.”24
O slogan “A linha reta é atéia e imoral”25 torna-se a partir daqui
uma constante nos escritos teóricos do artista.
De tudo isso, Hundertwasser tira a conclusão prática:

In order to rescue functional architecture


from moral ruin, a decomposing solution should be
poured over all those glass walls and smooth
concrete surfaces, so that the moulding process can
set in. It is time for industry to recognise its
fundamental mission, which is to engage in
creative moulding! And only after creative
moulding, from which we have much to learn, will
a new and wonderful architecture come about.26
( HUNDERTWASSER in SCHMIED, 2000, p. 83)

A reflexão sobre o bolor conduz à conclusão do ciclo biológico


da natureza, quando Hundertwasser, em sua progressão empírica,
desenvolve as latrinas de húmus, no ano de 1975, e o “Manifesto da
[07] Demonstração pública para a “alteração arquitetural” Santa Merda”, em 1979.
individual no Dormitório Internacional dos Estudantes, Viena,
A latrina de húmus é um aparelho extremamente simples: um
1968.
balde largo com assento e tampa (ou uma tela de mosca). Seu uso é
Fonte: SCHMIED, Wieland. Hundertwasser 1928-2000 igualmente simples: coloca-se uma camada de húmus ou folhagem no
Personality, Life, Work. Taschen, Köln, Germany: 2000. (p. 90) 24 SCHMIED, 2000, p. 83.
25 RESTANY, 2002, p. 16.
26 “Para salvar a arquitetura funcional da ruína moral, o processo de decomposição
Segue-se a condenação à régua e à linha reta: “A régua é o deve ser uma solução despejada sobre todas essas paredes de vidro e superfícies
lisas de concreto, de modo que o processo do bolor possa entrar em ação. É tempo
símbolo do novo analfabetismo.” E “a linha reta não é uma linha para indústria reconhecer sua missão fundamental, que é empenhar-se na criação do
bolor! E somente depois do cultivo ao bolor, do qual nós temos muito a aprender,
criativa, ela é uma linha que duplica. Deus e o espírito humano se uma nova e maravilhosa arquitetura irá ser realizada".
balde, e, depois de utilizá-lo, adiciona-se uma nova camada de húmus
com o auxílio de uma pequena pá para retirá-lo de um segundo balde;
“assim como os gatos, que podem nos fornecer instruções básicas
quanto à higiene do banheiro”27, afirma Hundertwasser. Em um curto
período de tempo, todo o conteúdo do balde se transforma em húmus,
pronto para ser utilizado na fertilização.
Contudo existe um truque para esta transformação ocorrer: o
balde deve possuir um fundo duplo, e o ar deve entrar por baixo, onde
há furos, que funcionam igualmente como passagem para escoar
líquidos excessivos. Em modelos mais elaborados, a latrina pode ainda
estar conectada à rede elétrica, para que então o fundo interno do balde
(onde se encontra a primeira camada de húmus ou folhagem) possa ser
mantido a uma certa temperatura, o que acelera favoravelmente o
processo de transformação.
A latrina de húmus tem caráter significativo para
Hundertwasser: ela realmente ocupa um lugar importante em sua visão
de mundo. Situa-se no âmago de sua crença ecológica. Repetidas vezes
o artista manifesta-se eloqüentemente em sua defesa: “O que sai de nós
não é um desperdício, mas os blocos de construção do mundo, nosso [08] Desenho informativo para a construção e uso da latrina
de húmus, 1980.
ouro, nosso sangue. Nós estamos sangrando à morte, assim como a
nossa civilização, nossa terra, pela interrupção lunática do ciclo.
Fonte: SCHMIED, Wieland. Hundertwasser 1928-2000
Alguém que passa por retiradas de sangue contínuas, sem repô-lo com Personality, Life, Work. Taschen, Köln, Germany: 2000. (p.
novo sangue, irá sangrar até morrer. Freud estava certo quando ele disse 281)

27 SCHMIED, 2000, p. 280.


no livro A Interpretação dos Sonhos que a merda é sinônimo de ouro. causar a princípio, ajuda-nos a entender a filosofia ecológica de
Isso não é somente um sonho, mas realidade, como nós agora Hundertwasser: seu compromisso começa com as coisas mais simples e
determinamos.” cotidianas. É por isso que pode ser chocante em uma primeira reflexão.
Ele adiciona ainda, “nós agradecemos a Deus por nosso pão Mas quanto mais nós pensamos nisso, mais a razão por trás de tudo
diário, que vem da terra, mas nós não rezamos para que a nossa merda parece lógica; e nós hesitamos em sorrir quando, de acordo com tal
seja transformada de volta à terra ... o dejeto é belo. Classificar e ponto de vista, um simples balde repentinamente toma a forma de um
reintroduzir o dejeto é uma atividade alegre ... Nós temos o privilégio de trono.
testemunhar como o nosso próprio dejeto, nossos próprios excrementos, O material orgânico derivado da decomposição da matéria
com a ajuda de nossa sabedoria, são transformados em húmus, assim animal e vegetal tem significativa relevância para a fertilidade, a
como a árvore cresce e a colheita amadurece ...”28. continuidade da vida. “A merda torna-se ouro e Hundertwasser se sente
O processo então providencia uma constante reciclagem e o bem em sua primeira pele”30.
eterno ciclo da natureza suscita em Hundertwasser um sentimento de Hundertwasser frisa que uma higiene moral31 deve ocorrer para
imortalidade. As palavras homo – humus – humanitas tornam-se que sua visão de mundo possa vir a ser concretizada. Esta concepção de
sagradas, por derivarem de uma mesma origem. Ele assim exclama higiene moral exige uma mudança de paradigmas e valores vigentes na
elogios ao húmus: “O húmus tem uma fragrância agradável. O cheiro do sociedade ocidental. A moral é uma ciência essencialmente prática e diz
húmus é mais sagrado e está mais próximo a Deus do que o cheiro do respeito à conduta do homem, fornecendo regras de ação precisas e
incenso. Qualquer pessoa que caminhe em um bosque após uma chuva, claras enquanto justifica racionalmente o dever. A moral dirige e
conhece esse aroma ...”29 Ele realça repetidamente que considera a sustenta nossa vontade, enquanto ser humano.
interrupção do ciclo natural entre a alimentação e o húmus um pecado Segundo Hundertwasser, os valores sociais vigentes no mundo
mortal, um suicídio. Devendo isso ser combatido se queremos ocidental do século XX, nos afastaram da verdadeira essência da vida,
sobreviver enquanto humanidade. 30 RESTANY, 2002, p. 30.
A latrina de húmus constitui-se no “trono” da transformação de 31 “Moral – que concerne à Moralidade. - Propriedade pela qual os atos humanos se
acham conformes com a regra ideal da conduta humana; o comportamento moral
nossa maneira de viver. Essa metáfora, por mais perplexidade que possa de fato de um indivíduo ou de um povo.” (JOLIVET, 1975, p. 148)
“A Moral é a ciência que define as leis da atividade livre do homem; ou poder-se-ia
28 SCHMIED, 2000, p. 280. ainda dizer: o Moral é a ciência que trata do uso que o homem deve fazer de sua
29 SCHMIED, 2000, p. 280. liberdade, para atingir seu fim último.” (JOLIVET, 1965, p. 348)
que deve ser bem vivida, ao nos afastar da natureza em favor de uma
assepsia equivocada. Ele defende uma volta à interação saudável do ser
humano com o meio ambiente, em uma espécie de harmonia ecológica,
com a consciência sistêmica de que somos parte integral desta.

Em seu germe, toda vida é bem-estar. O


ser começa pelo bem-estar. Em sua contemplação
do ninho, o filósofo tranqüiliza-se seguindo uma
meditação de seu ser no ser tranqüilo do mundo.
Traduzindo então na linguagem dos metafísicos de
hoje a absoluta ingenuidade de seu devaneio, o
sonhador pode dizer: o mundo é o ninho do
homem. (...) Sim, por que deixaríamos de trabalhar,
de aglomerar a massa do mundo à volta do nosso
abrigo? O ninho do homem, o mundo do homem,
nunca acaba. E a imaginação ajuda a continuá-lo. O
poeta não pode abandonar uma imagem tão grande,
ou mais exatamente, tal imagem não pode
abandonar o seu poeta. Bóris Pasternak escreveu
justamente: “O homem está mudo, é a imagem que
fala. Pois é evidente que só a imagem pode
acompanhar os passos da natureza.”
(BACHELARD, 1993, p.116)

[09] Perfume de Húmus, técnica mista, 60.5x49.5 cm, Algajola


(Córsega) 1979.

Fonte: RESTANY, Pierre. Hundertwasser o Pintor-Rei das Cinco Peles.


Taschen, Köln, Alemanha: 2002.
O Vestuário interiorização do sujeito que dela faz uso. Ela tem uma função política,
social, sociológica, ao apresentar nossa identidade individual ao mundo
externo.
Na segunda pele, o vestuário, Hundertwasser questiona a
A segunda pele torna-se a maquilagem
produção e a confecção em série estimulada pelo capitalismo e pela distintiva da quarta: sinal de pertencer a um grupo
que consolida a sua identidade “diferente” pela
cultura de consumo, na medida em que estas mecanizam e uniformizam adoção de uma moda. (RESTANY, 2002, p. 38)
o homem quando deveriam afirmar sua singularidade através da
vestimenta. O artista aponta uma renúncia ao individualismo saudável, A vestimenta do ser humano, desta forma, torna-se um meio de

uma padronização que coíbe o indivíduo. Neste sistema taylorista 32 de comunicação que permite a expressão da individualidade e do modo

produção, todos são afetados por três males, no que se refere à segunda como queremos ser percebidos pela sociedade. Ela traz em si sinais

pele: a uniformidade, a simetria e a tirania da moda. identificativos da identidade pessoal na mesma medida em que uma
associação, um grupo, um partido ou uma nação reconhecem-se em
A uniformidade do anonimato do vestuário sinais identificativos, por exemplo, sua bandeira.
traduz no homem a renúncia ao individualismo, ao
orgulho de usar uma segunda pele criativa, original
e diferente das outras. (RESTANY, 2002, p. 38) Os sinais identificativos de uma nação
encarnam a soma e a síntese de todas as identidades
Em contraposição a tal tendência, Hundertwasser confecciona individuais dos cidadãos que a compõem. Os
cidadãos reconhecem-se nesses sinais que são o
suas próprias roupas, dando-lhes caráter de passaporte social, testemunho da sua pertença à nação. A bandeira
atua como segunda pele da nação. (RESTANY,
aproveitando-as em sua riqueza de formas e cores, afirmando o direito à 2002, p. 39)
diversidade e à individualidade. A segunda pele, assim, mantém uma
relação direta com a quarta, o meio social e a identidade. A roupa não A segunda pele, aqui, assinala uma ligação mais profunda à

mais se limita a esconder, mas sim revela a subjetividade do ser humano quarta, ao dizer respeito não somente ao nível de consciência individual,

para o universo exterior, ao mesmo tempo em que favorece a mas também à identidade cultural, a um nível de consciência nacional.
Quanto à liberdade criativa de confeccionar sua própria
32 Relativo ao taylorismo, sistema de exploração industrial baseado nos princípios da
psicotécnica e de organização racional do trabalho, com o qual se procura alcançar indumentária, Hundertwasser coloca que a única condição imposta à
o máximo de rendimento com o mínimo de tempo e de atividade. (Dicionário
Aurélio, 1986, p. 1654) segunda pele refere-se à necessidade de conforto desta. “O luxo do
vestuário reside no seu conforto”33. De maneira que a liberdade criativa
encontra aqui um suporte para sua expressão, estimulando o potencial
criativo através do ato de confeccionar sua própria indumentária.
Exemplo de criatividade individual, Hundertwasser utiliza tecidos e
materiais dos mais variados, com um misto de estampas, cores e
formas. Suas sandálias home-made de inverno e de verão e sua boina
colorida tornaram-se conhecidas do público e encontram-se registradas
em inúmeras fotografias.

[11] Hundertwasser, 1982.

Fonte: RAND, Harry. Hundertwasser. Taschen, Köln, Germany:


2007. (p. 175)

Quanto aos padrões estéticos, ele utiliza elementos para fuga da


padronização da moda no século XX, ou seja, foge dos padrões
convencionais e dá preferência à sua escolha de colorido, estampas e
formas orgânicas personalizadas. Basicamente os mesmos elementos
que encontraremos em sua arquitetura e que ele defende em todos os
[10]Hundertwasser sempre usava pares de
domínios da vida do ser humano, em busca de um mundo mais belo e
meia trocados, 1988.
harmonioso.

Fonte: RAND, Harry. Hundertwasser. Tanto em suas pinturas quanto em suas vestimentas e arquitetura,
Taschen, Köln, Germany: 2007. (p. 171) Hundertwasser preza o colorido, rejeitando o cinza e o monocromático.

33 RESTANY, 2002, p. 39. Sua moral da beleza aplica-se a todas as esferas potencialmente criativas
que cercam o homem. Elemento vital da beleza, ele atribuí ao colorido
um status sagrado. “As cores paradisíacas dos Céus”34.

Paradise is not just colours at radom, but


certain creative colours. Colour is only the outer
appearance of wealth and diversity. The more
different things there are, the richer the world. It
approaches paradise: many different things living
next to each other.35 (HUNDERTWASSER in
RAND, 2007, p. 107)

Hundertwasser afirma que sem o estímulo criativo, o homem


perde a capacidade da imaginação, virando escravo de automatismos.

O direito à criação é um direito universal


que todos temos, desde que o mereçamos. Eis a
razão por que a sociedade é criminosa: pela
educação que nos dá, suscita em nós automatismos-
reflexos que nos fazem viver mal na nossa segunda
e terceira peles, desviando-nos do nosso verdadeiro
objetivo, que é o de viver bem. (RESTANY, 2002,
p. 22)

[12] Os pés de Hundertwasser com sandálias home-made de inverno e


Singular e autêntico na visão de mundo, o artista ousa opor-se a verão, Paris, 1950.
convenções estabelecidas também no modo de vestir, numa afirmação Fotografia: Augustin Dumage
ao direito de exercício da subjetividade.
Fonte: RESTANY, Pierre. Hundertwasser o Pintor-Rei das Cinco Peles.
Taschen, Köln, Alemanha: 2002. (p.37)
34 RAND, 2007, p. 106.
35 O paraíso não é somente cores ao acaso, mas certas cores criativas. A cor é
simplesmente a aparência exterior da riqueza e diversidade. Quanto mais diferentes
as coisas são, mais rico o mundo. Ele aproxima-se do paraíso: muitas coisas
diferentes vivendo próximas umas às outras.
A Casa do Homem que o guiam. Princípios estes, com os quais tive contato no estudo da
primeira e segunda peles e que se prolongam nas demais peles,
alcançando seu ápice na teorização de sua arquitetura, a terceira pele.
Tudo nas criações arquitetônicas de Hundertwasser tem apoio e Em alguns textos, Hundertwasser revela-se lírico na construção
definição em uma fundamentação teórica minuciosa, que cuida dos de seu corpus teórico, recorrendo muitas vezes a metáforas, o que
mínimos detalhes. Muito do que a princípio possa parecer arbitrário em dificulta a ordenação e a incorporação de suas idéias num sistema claro.
suas construções é baseado em idéias desenvolvidas ao longo de anos. Como resultado, o contorno aqui sugerido não pode reivindicar uma
Se na sua pintura alguns elementos têm origem no subconsciente, em validade absoluta. Como é habitual com um sistema aberto, também
seus projetos arquitetônicos sobressai-se um padrão muito mais poderia supor trajetos diversos, através de interpretações particulares e,
sofisticado em princípios preconcebidos. No entanto, Hundertwasser portanto, subjetivas.
está ciente de que manter a mente aberta para aceitar recorrentes A concepção arquitetônica do artista é baseada no vínculo
correções intuitivas, faz parte do processo do projeto, como adesão aos existente entre humanidade e natureza ou na perda desta conexão, a
princípios que o guiam. qual almejava ver restituída a todo custo. A visão geral começa, então,
O artista formula estes pensamentos em inúmeros manifestos, com uma declaração de Hundertwasser referida à humanidade:
cartas e declarações, repetindo-os constantemente, variando-os,
revisando-os, situando-os em novos contextos. Freqüentemente encontra Os seres humanos foram criados à
imagem e semelhança de Deus. Eles são,
uma expressão mais adequada para eles, inventando frases de impacto, portanto, destinados a serem criativos. Somente
se forem ativos criativamente, eles obtêm uma
condensando-os em forma de slogan. Embora ao fazer isso consiga individualidade e vivem em harmonia com a
natureza. Hoje, entretanto, nossas capacidades
torná-los memoráveis, seus comentários farpados às vezes podem ter criativas são constantemente inibidas.
obscurecido o que ele efetivamente tenta expressar. ( HUNDERTWASSER in SCHMIED, 2000, p.
298)
Em um primeiro contato com o trabalho de Hundertwasser torna-
Embora exista uma interconexão entre todas as cinco peles,
se complexa a organização em um único contexto de todos seus
podemos assinalar uma ligação direta entre a primeira pele, a epiderme e
princípios, mas estes não estão separados uns dos outros, juntos formam
a quinta pele, o meio global – ecologia e humanidade, com a terceira, a
um todo orgânico. Tentarei aqui esboçar um resumo destes princípios
casa do homem. Quanto à arquitetura, Hundertwasser tem dois preceitos ocidental, com seu manifesto Los von Loos36. Adolf Loos37, em um livro
fundamentais: o exercício criativo e a integração obrigatória da natureza editado no ano de 1908 faz a seguinte declaração: O ornamento é um crime.
em todo e qualquer tipo de construção. Hundertwasser parte desta declaração para defender seu ponto de vista
A casa está, também, diretamente ligada à intimidade da primeira contra o funcionalismo estéril da arquitetura moderna.

pele. Desde seu nascimento o homem cria uma profunda ligação com No manifesto “O Teu Direito de Janela – O Teu Dever de Árvore”,

esse espaço físico. A casa mantém grande significação na vida do Hundertwasser apresenta uma proposta para solucionar o problema

homem, influenciando muito em seu desenvolvimento enquanto ser enfrentado nos espaços urbanos, com o estímulo à criação e à consciência
ecológica.
humano.
O “Direito de Janela” favorece o exercício da individualidade e a
Porque a casa é o nosso canto do mundo. capacidade de criação em nossas próprias esferas. Concede-nos a liberdade
Ela é, como se diz amiúde, o nosso primeiro
universo. É um verdadeiro cosmos. Um cosmos em de decorar a fachada ao redor das janelas de nossas casas de acordo com
toda a acepção do termo. (BACHELARD, 1993, p.
nossos desejos e gostos pessoais.
24)

Numa conversa direta com o exercício criativo, Hundertwasser


Toda grande imagem simples revela um
nos sugere utilizar o espaço da casa como veículo para a criação e estado de alma. A casa, mais ainda que a paisagem,

expressão imaginativa, declarando guerra ao caráter funcional e à 36 Los von Loos (“Longe de Loos”) foi um manifesto ocorrido em Viena, Aústria, no
ano de 1968, onde Hundertwasser discursou nu contra a arquitetura retilínea
infertilidade da arquitetura moderna, desenvolvida na primeira metade estéril de Adolf Loos, arquiteto do início do século XX que defendia o
funcionalismo prático, boicotando os ornamentos característicos do Jugendstil.
do século XX. (RESTANY, 2002, p. 26)
A arquitetura moderna tem por objetivo uma renovação dos 37 Adolf Loos (1870 - 1933) foi um dos pioneiros da arquitetura moderna. Após seus
estudos em Dresden, passou três anos nos EUA, sofrendo influência sobretudo da
conceitos arquitetônicos até então desenvolvidos. Nela, a estruturação do escola de Chicago. Quando inaugurou seu ateliê de arquitetura em Viena, em 1896,
aplicou suas idéias estéticas às formas de construção. Foi pioneiro na negação do
espaço urbano caracteriza-se pela funcionalidade resultante do pensamento papel da intuição artística na procura de um estilo, confiando mais nas formas
fundamentais usadas pelo homem desde os seus primórdios. Precursor da nova
racional. O rompimento com a tradição histórica faz parte do discurso de
objetividade, procurou sempre a solução mais simples para seus projetos e métodos
alguns arquitetos modernos como Le Corbusier e Adolf Loos. de construção, empregando apenas ocasionalmente motivos ornamentais como
elementos articuladores. Em 1908 lança o livro Ornamento e Crime. Esta
Hundertwasser faz uma crítica clara e direta a este estilo concepção arquitetônica baseada na funcionalidade entrou em conflito aberto com a
“Secessão” de Viena. Suas obras mais célebres e importantes são a moradia Steiner
arquitetônico, que se estabeleceu durante o período modernista no mundo (1910) e a de Michaelplatz (1910-1911), em Viena, bem como a residência Tzara,
em Paris. (wikipedia.com)
é “um estado de alma”. Mesmo reproduzida em seu MANIFESTO
aspecto exterior, ela fala de uma intimidade.
YOUR WINDOW RIGHT, YOUR TREE DUTY
(BACHELARD, 1993, p. 84)
The window right

O “Dever de Árvore” tem por preocupação o nosso A resident must have the right to lean out of his
window and design everything his arm can reach on
relacionamento com a natureza. Exige que a natureza seja trazida às the wall outside just as it suits him. It will thus be
visible from afar to everyone in the street that
construções que criamos enquanto sociedade. Foi elaborado para someone lives there.

lembrar-nos de que a perda de contato com a natureza acarreta Seckau, 1958


We are suffocating in our cities from air pollution
desorientação à humanidade. and lack of oxygen.
The vegetation which lets us live and breathe is
being systematically destroyed.
Our existence is losing its dignity.
We walk past gray, sterile house fronts and do not
realize that we have been committed to prison cells.
If we wish to survive, every one of us must act.
You yourself must design your environment.
You cannot wait for the authorities and for
permission.
Your outside walls belong to you just as much as
your clothing and the inside of your home.
Any kind of individual design is better than sterile
death. It is your right to design your windows and,
as far as your arm can reach, your outside walls just
as it suits you.
Regulations which forbid or place restraints on this
window right are to be ignored.
[13] O projeto árvore-locatária, Via Manzoni, Milão, 1973
It is your duty to help vegetation to its right with all
the means available to you.
Fonte: RAND, Harry. Hundertwasser. Taschen, Köln, Germany: 2007. (p. 149) Free nature must grow wherever rain and snow fall;
what is white in winter must be green on summer.
Everything horizontal under the open sky belongs
to nature.
Roads and roofs should be planted with trees. (HUNDERTWASSER in HAND, 2007, p. 146)
It must be possible to breathe forest air in the city
again.
The man-tree relationship must assume religious
proportions.
Then at last people will understand the sentence:
the straight line is godless
Düsseldorf, 27, february of 1972.38

38 MANIFESTO
SEU DIREITO DE JANELA, SEU DEVER DE ÁRVORE
O direito de janela
Um habitante deve ter o direito de inclinar-se para fora da sua janela e transformar
tudo que seu braço pode alcançar na parede externa como lhe couber. Assim será
visível de longe a todo mundo na rua que alguém vive ali.
Seckau, 1958
Nós estamos sufocando em nossas cidades de poluição do ar e falta de oxigênio.
A vegetação que nos permite viver e respirar está sendo sistematicamente
destruída.
Nossa existência está perdendo sua dignidade.
Passamos caminhando pelo cinza, frentes de casas estéreis e não compreendemos
que fomos acometidos a celas de prisão.
Se desejamos sobreviver, cada um de nós deve agir.
Você mesmo deve projetar o design de seu ambiente.
Você não pode esperar pelas autoridades e pela permissão.
Suas paredes externas pertencem a você assim como sua roupa e o interior de seu
lar.
Qualquer tipo de design individual é melhor que a morte estéril. É seu direito
projetar suas janelas e, até onde seu braço alcançar, suas paredes externas como lhe [14] Tree Tenants,tinta e aquarela, 33x21cm, Viena,
couber. 1973.
Regulamentos que proibem ou colocam restrições neste direito de janela devem ser
ignorado.
É seu dever ajudar a vegetação em seus direitos com todo o meio disponível a você. Fonte: SCHMIED, Wieland. Hundertwasser
Natureza livre deve crescer onde quer que a chuva e a neve caiam; o que é branco 1928-2000 Personality, Life, Work. Taschen, Köln,
no inverno deve estar verde no verão. Germany: 2000. (p. 25)
Tudo na horizontal sob o céu aberto pertence a natureza.
As estradas e telhados devem ter árvores plantadas.
Deve ser possível respirar o ar da floresta na cidade outra vez.
O relacionamento homem-árvore deve assumir proporções religiosas. Nosso relacionamento com a natureza, com a vegetação,
Então enfim as pessoas entenderão a sentença: a linha reta é atéia particularmente com as árvores, deve ter uma conotação religiosa. O
Düsseldorf, 27, fevereiro de 1972.
próprio ciclo da vida: nascimento, crescimento, envelhecimento e Sob o céu aberto tudo na linha horizontal pertence à natureza; a
deterioração, constitui-se em um rito sagrado. Devemos respeitar plantas linha vertical pertence à humanidade. “A natureza livre deve crescer
como irmãos mais velhos que estavam aí antes de nós e que onde quer que a neve ou a chuva caiam, tudo que fica coberto de branco
provavelmente viverão além de nós. Somos visitantes convidados da no inverno deve estar verde no verão”40. Quando Hundertwasser fala
natureza e devemos comportar-nos de acordo. sobre retornar as terras apropriadas ilegalmente pelo homem à natureza,
A humanidade deve, após ter exercitado sua natureza destrutiva ele efetivamente refere-se a todas as superfícies horizontais. Sobre os
por tanto tempo, firmar um tratado de paz com a natureza. Esse tratado telhados deve haver vegetação para compensar a terra que foi retirada
de paz deve conter ao menos os seguintes pontos: para a construção pelas fundações da casa. Isso torna-se mais difícil com
ruas e praças públicas. Impossível querer cobri-las completamente com
−Devemos aprender a linguagem da natureza para podermos nos telhados cobertos por vegetação. Em contraste, e como um tipo de
comunicar com ela. contra-medida, a natureza prospera em introduzir-se nos “domínios” do
−Devemos viver em harmonia com as leis da natureza. homem quando as árvores-locatárias crescem para fora de janelas e
−“Devemos devolver à natureza qualquer terra da qual ilegalmente nos sacadas, estendendo-se para cima das paredes das casas, estipulando,
apropriamos”.39 assim, uma reivindicação à dimensão vertical. Desta maneira, as
−O ditado bíblico “Tenha domínio sobre a terra” deve ser revogado e árvores-locatárias exigem um tipo de “vingança” por toda a injustiça
substituído por uma aproximação mais cautelosa da natureza. cometida contra a natureza.
−As criações humanas e a natureza não devem mais ser opostas, mas
conduzidas a uma harmonia. Tree tenants are intended to symbolize the
profound reorientation of the coming epoch, when
−Devemos tolerar a vegetação espontânea. the vegetation and trees will once again be accorded
important status as man's partners. (…) Tree
−A sociedade humana deve outra vez tornar-se uma sociedade livre de Tenants pays rent in a more valuable currency than
a human tenant:
desperdícios. O que nós jogamos fora como desperdício deve ser
1. As an oxygen supplier
devolvido ao ciclo natural.
2. As a climatic regulator; extremes of heat and
cold, humidity and dryness are moderated

39 HUNDERTWASSER in SCHMIED, 2000, p. 298. 40 HUNDERTWASSER in RESTANY, 2002, p. 56.


3. As a dust hoover which is constantly in operation construímos mecanicamente com a régua e o esquadro, instrumentos
4. As an echo damper estes que pretendem uma exatidão, a qual, na realidade, foge ao domínio
5. As a beauty dispenser visible from afar
do natural.
6. As a mood regulator for urban-damaged people
7. As a symbol and estimulator of the reorientation
of our society and as an example of the forestation (...) The straight line is a man-made
of cities, even – and in particular – on vertical danger. There are so many lines, but only one of
façades. them is deadly and that is the straight line drawn
with a ruler. The danger of the straight line cannot
Further advantages: cleaning of waste water and
rain water; deposit for humus from humus plants; be compared with the danger of organic lines
described by snakes, for instance. The straight line
protection for walls against ultra-violet rays.41 (…)
(HUNDERTWASSER in HAND, 2007, p. 147) is completely alien to mankind, to life, to all
creations.42 (HUNDERTWASSER in HAND,
2007, p. 37)

Já em seu “Manifesto do Bolor” de 1958, por exemplo, mas


mesmo antes disso, Hundertwasser posiciona-se contra o racionalismo O uso da linha reta e do ângulo reto inevitavelmente resulta em
na arquitetura e declara a linha reta ateísta. Ela conduz diretamente à uma “arquitetura de grades”, a qual Hundertwasser, injustamente, chama
nossa destruição. A humanidade não consiste de linhas retas e ângulos “Arquitetura da Bauhaus”, atribuindo todas as características desse tipo
retos precisos. Eles não são criativos, mas duplicantes, nós os de arquitetura à Bauhaus.

The Bauhaus mentality behind residential


41 As árvores-locatárias são pretendidas para simbolizar a reorientação profunda da architecture can be described as unfeeling,
época que está chegando, quando a vegetação e árvores mais uma vez serão emotionless, dictatorial, heartless, aggressive,
concordadas com estado importante como sócios do homem. (…) Árvores- smooth, sterile, unadorned, cold, unpoetic,
locatárias pagam alugam em um dinheiro mais valioso que um inquilino humano: unromantic, anonymous and yawningly void. An
1. Como um fornecedor de oxigênio illusion of functionality.43 (HUNDERTWASSER in
2. Como um regulador climático; extremos de calor e frio, umidade e secura são RAND, 2007, p.38)
moderado
3. Como um aspirador de pó que está constantemente em operação 42 A linha reta é um perigo artificial, criado pelo homem. Há tantas linhas, mas
4. Como um abafador de eco somente uma delas é mortal e esta é a linha reta desenhada com uma régua. O
5. Como um distribuidor de beleza visível de longe perigo da linha reta não pode ser comparado com o perigo de linhas orgânicas
6. Como um regulador de disposição para pessoas afetadas pelo estresse urbano descritas por cobras, por exemplo. A linha reta é completamente alheia à
7. Como um símbolo e estimulator da reorientação da nossa sociedade e como um humanidade, à vida, a todas as criações.
exemplo do florestamento das cidades, mesmo – e em particular – em fachadas 43 A mentalidade da Bauhaus por trás da arquitetura residencial pode ser descrita
verticais. como insensível, sem emoção, sem coração, agressiva, lisa, estéril, sem
Mais vantagens: limpeza de água desperdiçada e água da chuva; depósito para ornamentos, fria, sem poesia, sem romantismo, anônima e tediosa. Uma ilusão de
húmus de húmus de plantas; proteção para paredes contra raios ultra-violetas. funcionalidade.
seres humanos; por um lado, para protegê-los de condições climáticas
O artista propaga a noção de “irregularidades desreguladas”. Ele
adversas como frio, tempestades e chuva e, por outro, para assegurar
as detecta no crescimento das plantas e quer que as pessoas as emulem
que eles não se encontrem completamente à parte do mundo exterior. A
em sua criatividade e empreendimentos arquitetônicos, não se atendo à
casa é o primeiro mundo do homem, seu primeiro lugar, sua proteção, o
rígida simetria, mas arranjando espaço para divergências mais
abrigo por excelência de corpo e alma:
espontâneas. Variedade é sinônimo de riqueza e beleza; uniformidade,
em contraste, é pecado.
A casa é uma das maiores (forças) de
No “Manifesto do Bolor”, Hundertwasser proclama a “trindade integração para os pensamentos, as lembranças e os
sonhos dos homens. Nessa integração, o princípio
da arquitetura” - como metáfora e exemplo da criatividade ativa, os de ligação é o devaneio. O passado, o presente e o
futuro dão à casa dinamismos diferentes,
autônomos: arquiteto, pedreiro e habitante da casa deveriam ser um e a dinamismos que não raro interferem, às vezes se
opondo, às vezes excitando-se mutuamente. Na
mesma pessoa. Tal conexão assinala o fim da alienação. O mundo pode vida do homem, a casa afasta contingências,
ser apreendido e determinado outra vez. O homem torna-se auto- multiplica seus conselhos de continuidade. Sem ela,
o homem seria um ser disperso. Ela mantém o
suficiente e pode assumir responsabilidade por si mesmo e por seu homem através das tempestades do céu e das
tempestades da vida. É corpo e é alma. É o primeiro
espaço de vivência, até que seja suficientemente forte para suportar a mundo do ser humano. (BACHELARD, 1993, p.
26)
responsabilidade que demanda sua época, além da sua esfera puramente
pessoal. A casa é nosso refúgio do mundo, é onde se encontra nossa

A arquitetura, conforme a visão da teoria das peles, deve ser essência. Ela deve ser um espaço onde podemos expressar nossos mais

adaptada organicamente ao homem e às necessidades deste, deve ser profundos desejos e medos, deve estar impregnada da essência do

feita “sob medida” como o são suas roupas, a segunda pele. A partir homem que a habita.

desse ponto de partida, podemos entender porque Hundertwasser


Nessas condições, se nos perguntassem
destinou o papel principal em sua arquitetura às janelas. Elas tomam a qual o benefício mais precioso da casa, diríamos: a
função de “poros” por onde a casa pode “respirar”. Ao mesmo tempo casa abriga o devaneio, a casa protege o sonhador,
a casa permite sonhar em paz. Só os pensamentos e
em que servem como olhos por onde o mundo exterior é percebido e as experiências sancionam os valores humanos. Ao
devaneio pertencem valores que marcam o homem
sem o qual o homem teria de abrir mão de seu refúgio seguro. em sua profundidade. O devaneio tem mesmo um
privilégio de autovalorização.
A função primária da arquitetura é providenciar proteção aos
Ele usufrui diretamente de seu ser. Então, os
lugares onde se viveu o devaneio reconstituem-se
por si mesmos num novo devaneio. É exatamente
porque as lembranças das antigas moradas são
revividas como devaneios que as moradas do
passado são imperecíveis dentro de nós. ( op. cit.,
loc. cit. )

Hundertwasser trabalha como “doutor da arquitetura”, profissão


por ele inventada, que tem por função principal o redesign e o
embelezamento de estruturas arquitetônicas já existentes, estruturas estéreis
e desalmadas em caráter44. Viaja por diversos lugares, discursando sobre
arquitetura e meio ambiente.
I talked about inhuman architecture and
especially the inhuman architecture done in that
Office, for which the architects there were all
responsible. I said that humans should have the
right to transform the insides and the outsides of the
places in which they live. This “third skin” of
human beings has to develop, to change and [15] Redesign, Áustria, 1982.
undergo mutations, and if impede this process, it is
as criminal as if you prevent a child from growing.
And that is what is done constantly in architecture, Fonte: RAND, Harry. Hundertwasser. Taschen, Köln, Germany: 2007. (p. 177)
and that is why I got angry.45
( HUNDERTWASSER in RAND, 2007, p. 171)
Em um adendo, escrito em 1959, ao “Manifesto do Bolor”, lista
construções arquitetônicas, as quais julga “saudáveis”:

1. Contruções de Antoni Gaudí em


44 RAND, 2007, p. 170. Barcelona.
45 Eu falei sobre arquitetura desumana e especialmente a arquitetura desumana feita 2. O Jugendstil em Viena.
naquele Escritório, pelo qual os arquitetos lá eram os responsáveis. Disse que os 3. As Torres Watts de Simon Rodia em
seres humanos devem ter o direito de transformar os interiores e os exteriores dos Los Angeles.
lugares em que eles vivem. Esta "terceira pele" dos seres humanos tem que ser 4. O palácio do carteiro Ferdinand Cheval
desenvolvida, mudar e sofrer mutações, e se você impede esse processo, isso é tão em Hauterives na região do Drôme, França.
criminoso quanto impedir uma criança de crescer. E é isso que é feito 5. Os bairros insalubres e as zonas
constantemente na arquitetura, e essa é a razão pela qual eu fiquei zangado. deprimentes de todas as cidades, os assim
chamados bairros de lata. íntegro podem, por vezes, parecer retrógrados, mas seus princípios
6. As quintas e as casas que os povos
primitivos construíam com as próprias mãos. certamente o guiam à ação prática. Sua simplicidade muitas vezes
7. As casas operárias das pequenas hortas
(os Schrebergärten). criticada talvez seja responsável pelo forte impacto que suas iniciativas
8. As paredes dos banheiros públicos com
as suas inscrições.
acabam provocando. Ainda que seu efeito prático possa ter resultado
9. Algumas obras do arquiteto Christian em nada mais grandioso que a correção de alguma aberração ou outra,
Hunziker.
10. A cidade-jardim dos tarots em devemos atentar para as mudanças sugeridas com respeito. Ao final,
Capalbio, sul da Toscânia, contruída por Niki de
Saint-Phalle. algumas de suas exigências, que a princípio pareciam desejáveis mas
(RESTANY, 2002, p. 24)
não praticáveis, descobrem-se definitivamente passíveis de serem

Por fim, Hundertwasser demanda: colocadas em prática, apesar do ceticismo inicial.


Os princípios que guiam a filosofia da natureza de Hundertwasser e
−completa liberdade na construção em oposição a qualquer forma de que fundamentam seus empreendimentos arquitetônicos, revelaram-se
censura na arquitetura; quase de ordem secundária; o artista não precisa enumerá-los um a um
−tolerância a ervas daninhas, bolor, marcas decorrentes do tempo, bem quando projeta uma construção ou age como médico da arquitetura. O
como à erosão climática, em oposição à demanda por uma limpeza processo de execução dos projetos mostra-se bastante orientado por
estéril em todas as áreas; intuição em todas as etapas.
−ornamentos em oposição ao vazio e à monotonia; Quando trabalha em seus projetos arquitetônicos, Hundertwasser não
−o ciclo natural e a reciclagem em oposição à exploração excessiva e é convencional e projeta um passo de cada vez. Normalmente começa
inconseqüente dos recursos naturais; com um esboço simples que registra a idéia básica da construção
−uma revolução silenciosa em todas as áreas em oposição a uma projetada. Para continuar, traduz a idéia esboçada em realidade
mudança violenta e destrutiva. tridimensional, imediatamente construindo maquetes. O primeiro
modelo criado desta maneira apresenta características um tanto quanto
Talvez a visão de mundo de Hundertwasser radicalize na primárias. Quando pondera os detalhes com lápis ou pincel de aquarela
simplificação demasiada de questões complexas, mas é certamente em mãos, freqüentemente prossegue seu trabalho com fotografias (ou
coerente. Os ideais de uma era pré-industrial e o desejo por um mundo fotocópias) que também o capacitam a verificar as proporções de
qualquer solução que testa. Diversidade, variedade e irregularidades são os princípios estilísticos
prioritários de Hundertwasser. Em contraste, o sistema de “grades”,
geometria e simetria são os inimigos. Hundertwasser ama cores,
ornamentos, tudo que em sua visão possa ser relacionado ao crescimento
orgânico. Ele quer reconciliar a vida das pessoas nas metrópoles com a
natureza.
A que elementos o artista recorre quanto ao design? Como ele
alcança seus objetivos estilísticos? O que faz a arquitetura de
Hundertwasser tão diferente em detalhes das outras construções a sua
volta? Segue-se uma lista relativa ao complexo arquitetônico Children's
Day Centre, Frankfurt, Alemanha. Os elementos seguintes fazem-se
presentes na construção:

−Telhados verdes. As superfícies do telhado são devolvidas à natureza.


Grama, arbustos e árvores crescem através de uma camada de húmus
com cerca de um metro de profundidade em uma “concha” de concreto
protegida por diversas camadas de betume.
−Árvores-locatárias. As árvores-locatárias “habitam” pequenas sacadas
integradas à fachada. Atrás da parede exterior e na frente das janelas
[16] Pintura sobre fotografia para o filme “Hundertwasser Regentag” de Peter
retraídas, ficam tubos de aço inoxidável contendo aproximadamente 1
Schamoni, de 1971/1972.
Aquarela sobre papel fotográfico. metro cúbico de terra assentada em "cestas de raiz" formadas de barras
de aço inoxidável.
Fonte: SCHMIED, Wieland. Hundertwasser 1928-2000 Personality, Life, Work.
Taschen, Köln, Germany: 2000. (p. 255)
impressão de que "dançam", uma família de "velhas", "jovens",
"vigorosas" e "esbeltas" janelas. A moldura e a armação das janelas são
pintadas e manchadas em quatro cores diferentes. Todas as janelas têm
vidraças triplas e peitoril cerâmico.
−“Chapéus” de cerâmica sobre as janelas. Estes fornecem o toque de
coroação às janelas e, ao mesmo tempo, adicionam mais cor à fachada.
−Colunas. Elas foram projetadas para preencher dois propósitos, se
possível: como elementos decorativos e suporte funcional; no trabalho
de Hundertwasser vemos colunas para suporte e aquelas meramente
decorativas, mas que servem como caminho para a passagem de fiações.
Todas as colunas são revestidas de cerâmicas coloridas. Elas tem
formatos diferentes e são posicionadas assimetricamente, algumas
verticais, outras em ângulos originais; Hundertwasser pensava as
colunas como árvores, impossível tê-las em quantidade suficiente.
−Chão desnivelado, paredes ondulantes, superfícies curvas, esquinas
arredondadas definem a aparência dos corredores e escadarias que
levam aos diferentes ambientes. As paredes ondulam, como o chão, para
[17] Children’s Day Centre, Frankfurt-Heddernheim, 2000. dar a impressão de uma série de dobras. Linhas de cerâmica com
Fotografia: Stephan Bröcher. (Fachada) tesselas não combinadas correm por elas.
−Cúpulas bulbosas. Estas são a coroação gloriosa da construção e, ao
Fonte: RAND, Harry. Hundertwasser. Taschen, Köln, Germany:
mesmo tempo, a assinatura do artista. A casa com a cúpula bulbosa
2007. (p. 40)
pertence ao mundo de Hundertwasser.
−Passagens. Já mencionei o desnível do chão e as “paredes que dobram”,
−Janelas de diferentes tamanhos, variando proporções, espaçadas
mas outra característica essencial dos corredores é o direito das crianças
assimetricamente ao longo da fachada do complexo. Visam dar a
de desenhar nas paredes e decorar as áreas livres com suas próprias
pinturas. Assim as paredes testemunham a diversão das crianças em seu
exercício criativo.

[19] Children’s Day Centre, Frankfurt-Heddernheim, 2000.


Fotografia: Stephan Bröcher. (Corredor)

Fonte: RAND, Harry. Hundertwasser. Taschen, Köln, Germany: 2007. (p. 40)
[18] Children’s Day Centre, Frankfurt-Heddernheim,
2000.
Fotografia: Stephan Bröcher

Fonte: RAND, Harry. Hundertwasser. Taschen, Köln,


Germany: 2007. (p. 40)
Aqui, após recorrentes visitas ao direito à criação do ser humano, âmago da bela natureza; contido por sua prudência de agnóstico, de fato
proposto por Hundertwasser na primeira pele, pretendo deter-me em ele declarava “pressentir” uma espécie de linguagem da natureza que,
algumas considerações sobre a beleza e o papel central e relevante “parecendo evocar o anúncio da alegria da existência”, aproxima-a de
desempenhado pela estetização na obra do artista, antes de proceder à nós. Afirmando que “o gênio é a disposição inata do espírito através da
análise da quarta pele. qual a natureza impõe suas regras à arte”, Kant sugeria a idéia de que o
[A Beleza] ato criador do artista é uma emanação do poder da natureza, dessa bela
natureza “saída das mãos de Deus” ou “Providência”47.
Os pensadores e poetas românticos consideram que se o prazer é
A beleza é um ponto fundamental no desenvolvimento de toda a uma condição do belo, todavia não o completa sozinho; que a natureza
ideologia de Hundertwasser, o que se mostra explícito em suas pinturas não se reduz apenas aos nossos estados de alma; que ela mesma é uma
e, por extensão, em seu conceito arquitetônico. O conceito de beleza alma que a nós se dirige, sendo sua beleza o que há de mais real nas
utilizado por Hundertwasser tem raízes no romantismo alemão do final coisas. Beleza e verdade são, na Natureza, um reflexo da divindade, e a
do século XVIII, e sua estetização, no Jugendstil austríaco do fin de arte, prolongando no homem o trabalho da natureza, é ela própria
siècle. divina: natureza e arte não constituem uma unidade. Ligado à idéia de
Os pensadores românticos acreditavam que a beleza está uma natureza artística percebida como lugar da manifestação divina está
diretamente relacionada à natureza. “Voltar à fruição e à exploração da o credo estético e místico de Schelling.
natureza”, dissipando “o fantasma da coisa em si transcendente e
Trata-se de discutir as antíteses clássicas
insondável”46: lançada em 1800 por Schelling, essa declaração traz em do pensamento para repensá-las em uma relação
dinâmica: diminuir a distância entre sujeito e objeto
síntese o objetivo maior do romantismo alemão. A filosofia da natureza – e a experiência do romance é decisiva para a
formação desse sentimento – visando uma
leva naturalmente à filosofia da arte, de maneira que a intuição estética discussão mais radical da separação entre finito e
infinito, indivíduo e totalidade. A Beleza se
torna-se, em Schelling, o órgão e o método supremo da filosofia: ela
configura sinônimo de Verdade no interior de uma
revela o ser. reavaliação profunda da hendíadis tradicional.
(ECO, 2004, p.315)
Kant abre caminho para o reconhecimento de uma “presença” no
Para Schelling, a beleza da natureza depende de um jogo muito
46 SCHELLING, 1989, p. 150. 47 KANT in ECO, 2004, p. 312.
profundo: o de uma atividade viva, autônoma, produtora de suas formas próprio de sua pintura. Esta poética, ou psicológica, dimensão conferida
e ritmos, cujo surgimento percebo ao meu redor. Como a da alma à pintura é o que mais importa ao artista: a possibilidade de descobrir
humana, a atividade da natureza é de fato um Todo que regula a ação que o mundo na sua pintura equivale àquele em que ele pode morar, de
das forças opostas que tendem à sua mútua destruição; é um Logos48, modo que consegue "viver" em sua própria pintura. As várias formas de
regulador dos contrários, tal como o confirma o tranqüilo espetáculo de sua pintura, assim, parecem ter "alma", mesmo quando as cifras
um crepúsculo, do luar, de uma aurora ou de uma clareira. desafiam toda interpretação objetiva.
É nessa íntima união do geral e do particular, da liberdade e da As cores são vitais no impacto causado pela pinturas de
necessidade, do espiritual e do natural, que se encontram o princípio e a Hundertwasser. O artista faz uso de cores instintivamente, sem organizá-
essência da arte. Lançada como uma ponte entre o homem e a natureza, las de acordo com qualquer regra, sem associar determinadas cores a
a arte só pode refletir, com a vida divina da natureza, a absoluta certos símbolos. Prefere as cores intensas, radiantes e ama colocar cores
identidade da natureza e do homem. De essência panteísta49, somente a complementares lado a lado, para acentuar o movimento duplo da
arte realiza a filosofia da identidade. De acordo com Schelling, a função espiral, por exemplo. Mais além, ele também gosta de usar finos
da arte não é agradar, descrever ou refugiar-se na particularidade; ela pedaços de folhas de ouro e prata, que ele juntaria à pintura.
permite o acesso do homem ao absoluto. Projeto ambicioso. A arte de Hundertwasser gira em torno de dois grupos principais
A arte não é apenas necessária para contribuir a revelar a de motivos: um abrange um mundo de formas que servem como
manifestação do divino na obra, na natureza; ela é também o magnífico analogias para o crescimento de vegetação, natural animista; o outro,
prolongamento, no homem, do trabalho artístico da natureza e de sua contém as cifras arquitetônicas: casas, janelas, arestas, cercas, portões e
incessante evolução. torres. Uma das características principais da arte de Hundertwasser é
A princípio, Hundertwasser assimila e se apropria de todos os que ambos os grupos de motivos são inseparavelmente interligados: as
elementos tradicionais do Jugendstil austríaco num cosmos poético formas da vegetação parecem estáticas, elas se concretizam na
arquitetura para preservar, ao passo que tudo construído parece crescer
48 O termo Logos, no pensamento grego, significa o discurso que transmite de organicamente, como se tivesse se desenvolvido como fruto da própria
maneira adequada tanto a razão interna de quem fala quanto a razão externa inscrita
na ordem das coisas. (wikipedia.com)) natureza.
49 Panteísmo, doutrina que identifica Deus com toda a natureza ou a totalidade do
mundo. Filosofia da imanência em oposição ao teísmo, que mantêm a Nos seus projetos arquitetônicos posteriores, casas com árvores
transcendência de Deus. (Dicionário Aurélio, 1986, p.1258)
crescendo para fora delas ou com folhagem em seus telhados e janelas O Meio Social e a Identidade
pintadas, Hundertwasser transforma seu desejo por um paraíso terreno
em realidade concreta e assim, mais uma vez, claramente demonstra,
como em seu trabalho o esboço rústico mais básico contém um quadro Nascido Friedrich Stowasser, Hundertwasser muda seu nome em
do mundo inteiro. diversas ocasiões de sua vida; em 1949, adota o nome Hundertwasser ao
descobrir que Sto nas línguas eslavas, significa Cem, Hundert em
alemão. Wasser quer dizer Água, então Hundertwasser – Cem águas,
água à potência cem50. Em 1961 altera seu primeiro nome para
Friederich, depois Friedreich. No ano de 1968 faz nova amálgama:
Friedensreich Hundertwasser Regentag passa a ser seu nome completo,
onde Friedensreich significa “Reino da Paz” e Regentag, “Dia de
Chuva”. Na década de 1990 adiciona ainda o nome Dunkelbunt (cores
vivas, um pouco tristes, como animadas por um clarão vindo das
profundezas: uma reminiscência das flores do herbário de sua
infância?)51, Friedensreich Hundertwasser Regentag Dunkelbunt, um
pseudônimo repleto de significados que dizem muito sobre sua
personalidade e identidade.
Os nomes “Hundertwasser” e “Friedensreich” caracterizam o
espectro inteiro de uma personalidade artística que dificilmente poderia
ser mais complexa; “Regentag” e “Dunkelbunt” mediam entre estes dois
pólos. “Hundertwasser” sugere poesia; o mundo paradisíaco de seus
sonhos, que é a base de todo seu trabalho, encontra-se, já, contido em
“Friedensreich”. O nome aqui é visto como um cartão de visita,
50 RESTANY, 2002, p. 16.
51 RESTANY, 2002 p. 16.
apresentando ao mundo exterior suas crenças e ideais. Sobre a trabalho não se compromete somente com a pintura, mas com a vida em
identidade e a constante mudança de nomes, Hundertwasser faz a si. Hundertwasser considera a pintura como o mais poderoso meio de
seguinte declaração: expressão; mesmo quando escreve, ou todas as coisas extraordinárias
que cria, estão interligadas com a pintura.
There are many reasons why sometimes a
man wants to change his name. (...) One man has Quanto à identidade, ainda, Hundertwasser se interessa muito por
one name; When he has many names he is many
persons. That is very good. I have many names and aquela trazida por uma nação ao seu povo. A quarta pele, ou seja, o
am many persons. I am a painter, an architect, an
ecologist. One name does not correspond exactly to meio social, constitui-se no conjunto de grupos associativos que
one of these professions. I always have the problem
of being only one. There are so many things to do propiciam vida a uma coletividade. A nação, um sistema nacional,
and I always say: I'd like to be ten Hundertwassers
permanece até hoje a trama mais densa do tecido comunitário.53
to do ten times more things. Although I cannot do
that, at least I can have many names.52
(HUNDERTWASSER in RAND, 2007, p. 15) Para alcançar a harmonia universal, Hundertwasser defende o
projeto da sociedade estético-naturista de natureza pacifista. Ou seja,
Em seu trabalho, Hundertwasser se submete somente a critérios acredita que a beleza engendra a paz; de maneira que o habitante de
que ele mesmo tenha postulado. Sua arte é autônoma e independente, “espaços felizes”, oferecidos por sua arquitetura orgânica, sente-se feliz
pretendendo, também, seu espectador como autônomo e independente. consigo mesmo e com o vizinho. De forma semelhante, a nação com
Quer equipá-lo com tudo que ele necessita. Quer comunicar um habitat em ordem e harmonia universais, bela portanto, resultaria em boa
conhecimento heterodoxo do mundo que, então, poderá ser desenvolvido convivência e relações internacionais pacíficas.
mais adiante.
Após constatar a força da idéia nacional sobre os cidadãos,
Friedensreich tenta dar ao espectador subsídios além da pintura Hundertwasser dedicou-se aos sinais que distinguem e afirmam a
para o ajudar a apreendê-la. Por uma extensão que se amplia, seu identidade de uma nação: os selos postais, a bandeira, as placas de
licença de automóveis. Reconhece a relevância tanto do macrocosmo
52 “Há muitas razões por que às vezes um homem quer mudar seu nome. (...) Um
homem tem um nome; Quando ele tem muitos nomes, ele é muitas pessoas. Isso é arquitetônico como do microcosmo dos selos postais para o alcance da
muito bom. Tenho muitos nomes e sou muitas pessoas. Sou pintor, arquiteto,
ecologista. Um nome não corresponde exatamente a uma destes profissões. Eu harmonia universal; desenha inúmeros modelos de selos para países
sempre tenho o problema de ser somente um. Há tantas coisas para fazer e eu
sempre digo: Gostaria de ser dez Hundertwassers para fazer dez vezes mais coisas.
Embora eu não posso fazer isso, ao menos eu posso ter muitos nomes. “ 53 RESTANY, 2002, p. 65.
diversos a partir de 1975, tendo-se tornado uma celebridade mundial Em 1979 Hundertwasser é convidado por Senghor, humanista da
premiada em arte filatélica.54 Inicia-se na arte da filatelia com o tema negritude e presidente do Senegal, a conceber três selos para a nação
recorrente da espiral, que anunciara vinte e dois anos antes o senegalesa.55 Sobre o artista, assim se externou o presidente:
transautomatismo da “Gramática do Ver”.

Enraizado nas realidades do seu tempo, ele


cria, para além dessas realidades, um mundo mais
belo mas também mais justo ... O pintor
Hundertwasser revela-nos uma nova visão, uma
nova consciência do mundo. (RESTANY, 2002, p.
67)

Quanto à importante significação dos selos postais, elos de


comunicação entre pessoas, grupos, comunidades e nações,
Hundertwasser escreve em 1990:

The stamp is an important object.


Although very small in format, it carries a message.
Stamps are a measure of the culture of a country.
This tiny, rectangular piece of paper links the hearts
of sender and receiver. It is a bridge between
peoples and nations. The stamp knows no borders.
It reaches us even in prisons, asylums and hospitals.
[20] Conjunto de selos postais comemorativos, desenhados para o And wherever we may be on earth. Stamps should
be ambassadors of art and life and not simply
WIPA Exibição Internacional Filatélica 2000, Viena. soulless proofs of postage paid. The stamp must
experience its destiny. The stamp must once again
fulfill its purpose, which means it must serve on
letters. A true stamp must feel the tongue of the
Fonte: SCHMIED, Wieland. Hundertwasser 1928-2000 sender moistening its gum. A stamp must be stuck
Personality, Life, Work. Taschen, Köln, Germany: 2000. (p. 255) on a letter. A stamp must experience the dark
depths of the post box. A stamp must suffer
franking. A stamp must sense the hand of the
postman handing the letter to the addressee. A

54 RESTANY, 2002, p. 66. 55 RESTANY, 2002, p. 67.


stamp which is not mailed on a letter is no stamp. It história de sucesso, a história de sua iniciativa para introduzir diferentes
has never lived, it is a sham. It is like a fish who
have never swum, a bird who has never flown. A placas de licença automotivas na Áustria é a história de um retrocesso, a
stamp must have lived as a stamp. The stamp is the
only work of art that everyone can own, young and despeito de diversas vitórias parciais e aprovações. O artista dedica-se
old, rich and poor, healthy and sick, educated and
ignorant, free or robbed of freedom. This precious
com muito zelo à introdução das placas de licença que desenhou. Sente
piece of art reaches everyone as a gift from afar. A que esta não somente é uma boa causa, mas também, de grande
stamp should be a testimony to culture, beauty and
the creative spirit of mankind.56 importância. Em sua opinião esta eleva-se a um daqueles pontos de
(HUNDERTWASSER in HAND, 2007, p. 141)
Arquimedes onde a alavanca deve ser posicionada para obter um efeito
melhor do que o esperado.57
Numa visão humanista, atribui caráter anímico ao selo enquanto
Como no caso dos selos postais, as placas de licença atentam
mensageiro da comunicação humana, da harmonia universal. A marca
para dois pontos que Hundertwasser considera cruciais: beleza e
mais móvel da identidade nacional criada por Hundertwasser constitui-
identidade, ou, em outras palavras, design estético e “caráter nacional”.
se em seu código de prática moral: as imagens representadas são repletas
Se as considerações estéticas são predominantes nos selos postais, no
de beleza e transmitem paz.
caso das placas de licença, Hundertwasser foca na importância de
Se o interesse de Hundertwasser pelos selos postais é uma promover a individualidade e a tradição próprias da Áustria.
56 “O selo é um objeto importante. Embora muito pequeno em formato, carrega uma
mensagem. Os selos são uma medida da cultura de um país. Este minúsculo pedaço
retangular de papel liga os corações dos remetentes e destinatários. É uma ponte
entre as pessoas e as nações. O selo não conhece nenhuma fronteira. Alcança-nos
mesmo em prisões, asilos e hospitais. E onde quer que possamos estar na Terra. Os
selos devem ser embaixadores da arte e da vida e não simples provas desalmadas
de correios pagos. O selo deve experimentar seu destino. O selo mais uma vez deve
satisfazer seu propósito, o que significa que deve servir em cartas. Um selo
verdadeiro deve sentir a língua do remetente umedecendo sua goma. Um selo deve
ser colado numa carta. Um selo deve experimentar as profundidades escuras da
caixa de correio. Um selo deve sofrer a selagem. Um selo deve sentir a mão do
carteiro passando a carta ao destinatário. Um selo que não é remetido numa carta
não é nenhum selo. Nunca viveu, é uma fraude. É como um peixe que nunca nadou,
um pássaro que nunca voou. Um selo deve ter vivido como um selo. O selo é a
única obra de arte que todo mundo pode possuir, jovem e velho, rico e pobre,
saudável e doente, educado e ignorante, livre ou sem liberdade. Esta preciosa peça
de arte alcança a todos como um presente de longe. Um selo deve ser um
testemunho de cultura, beleza e o espírito criativo da humanidade.” 57 SCHMIED, 2000, p.261.
Hundertwasser igualmente exerce seu poder criativo na
numismática, criando moedas, no entanto, sem valor de troca
universalmente reconhecido. Cria também uma série de relógios “Time
drops” e relógios de pulso dos sete dias da criação, modelos de cartões
telefônicos e fichas de cassino, todos compreendidos como
possibilitadores de “comunicação ativa”.

[21] Moedas, 1978; placas de licença de automóveis,1988.


[22] Relógios “Time Drops”, 1989; cartões telefônicos para os correios austríacos,
1992.

Fonte: RESTANY, Pierre. Hundertwasser o Pintor-Rei das Cinco Peles. Taschen, Fonte: RESTANY, Pierre. Hundertwasser o Pintor-Rei das Cinco Peles. Taschen,
Köln, Alemanha: 2002. Köln, Alemanha: 2002.
Hundertwasser considera-se judeu, pintor, austríaco, cidadão
“It seems as if the flag contains another
cosmopolita de um mundo para o qual moldou a imagem de um espaço
flag,” Hundertwasser wrote in an accompanying
feliz na beleza. Para o mundo real, repleto de antagonismos e do text, “advancing, streaming, unrolling and opening
up in a strange and mysterious wind, a flag which is
contraste das consciências de identidade, como a situação belicosa no transformed into another dimension. It is an image
of how matter concentrates and turns into life.
Oriente Médio, o artista acredita no potencial da união dos símbolos (o Quantity is transformed into energy. It is a symbol
of the never ending cycle, a symbol for ever
crescente verde do Islã e a estrela azul de Davi) para alcançar a paz. Em renewing life.”60 (HUNDERTWASSER in
1978 Hundertwasser cria, então, a bandeira e um manifesto metafórico SCHMIED, 2000, p. 265)

para a paz no Oriente Médio; a bandeira proposta contém a estrela azul


Pretende que a bandeira Koru flutue lado a lado com a Union
repousando no crescente verde em fundo branco, símbolo da
Jack dos colonizadores anglo-saxônicos. Em 1986, depois de uma
reconciliação entre judeus e árabes.58 Por intermédio do chanceler
campanha de três anos, mil Koru flutuavam nos telhados e fachadas da
austríaco Bruno Kreisky ambos foram enviados aos chefes de estado do
Nova Zelândia, comprovando a compreensão acertada do pintor-rei
Oriente Médio, tendo obtido respostas prudentes mas não decisivas de
quanto à aspiração Maori no que se refere a uma identidade autônoma
ambos.
nacional.61
As bandeiras elaboradas por Hundertwasser são seus mais belos
Em 1986 Hundertwasser elabora um projeto de nova bandeira
manifestos e, mais que isso, representam uma “profissão de fé”.59
para a Austrália: Uluru. A bandeira possui um semicírculo vermelho
Em 1983, após dez anos de residência na Nova Zelândia, invertido (perfil invertido de Ayers Rock, a montanha sagrada dos
Hundertwasser identifica o desenvolvimento de uma segunda identidade aborígenes Uluru) sobre um fundo lápis-lazúli e uma estrela branca de
no país (os 15% da população Maori) paralela à identidade anglo- sete pontas inscrita no meio azul. A nova bandeira foi acolhida com
saxônica dos colonizadores. Hundertwasser desenha, então, uma prudência e uma comissão de promoção da Uluru foi constituída.
segunda bandeira para o país, que traz o esporângio desenrolado do feto,
60 “"Parece como se a bandeira contece outra bandeira," Hundertwasser escreveu em
planta nacional que os Maori adotaram nas suas tatuagens como um texto que acompanha, "avançando, correndo, desenrolando e abrindo num
símbolo. vento estranho e misterioso, uma bandeira que é transformada em outra dimensão.
É uma imagem de como a questão se concentra e transforma-se em vida.
Quantidade é transformada em energia. É um símbolo do ciclo constante, um
58 RESTANY, 2002, p. 71. símbolo para cada vida renovada".
59 SCHMIED, 2000, p.264. 61 RESTANY, 2002, p. 72.
[23]Bandeira Koru para Nova Zelândia, 1983.

[24] Bandeira Uluru para Austrália, 1986.

Fonte: RAND, Harry. Hundertwasser. Taschen, Köln,


Germany: 2007. (p. 196)
Fonte: RAND, Harry. Hundertwasser. Taschen, Köln, Germany:
2007. (p. 197)
O Meio Global – Ecologia e Humanidade O ciclo orgânico da casa eco-naturista concebida por
Hundertwasser tem telhado de relva, a qual por sua vez é fortificada
pelo húmus da privada, bem como as árvores-locatárias nas janelas. Essa
Hundertwasser vislumbra na natureza a fonte suprema da vegetação capta a água da chuva para utilização doméstica. A seguir, a
harmonia universal. Sua concepção de sacralização da natureza ganha purificação das águas de esgoto é processo executado por plantas
reforço nas iniciativas de proteção contra a degradação perpetrada pelo aquáticas de filtragem.
homem e pela indústria. O artista propõe a resistência não violenta contra o sistema de
A defesa da ordem superior da natureza na sua regeneração destruição global; vislumbra na dita “evolução” a ruína do homem e de
espontânea destaca-se no corpus teórico do artista a partir da rejeição da seu habitat. Destaca a ecologia verdadeira, pura, naturista, como um
linha reta, em 1953, sempre acompanhada de um plano operacional agente retardador da degradação.
como solução viável. O plantio de árvores é um ato ecológico que, em grandes
Em 1982, por exemplo, o sistema de purificação de água pelas proporções, requer organização e persistência. Hundertwasser tece
plantas aquáticas inspirado na técnica da Dra. Käthe Seidel, é elogios a Joseph Beuys pelo plantio de 7.000 carvalhos em Kassel e a
concluído. Uriburu, cidadão argentino promotor de campanhas de plantações anuais
em Buenos Aires. O próprio Hundertwasser plantou mais de 60.000
[25] Desenho de uma carta de Hundertwasser árvores no mundo inteiro pelo sistema das árvores-locatárias na sua
para Alex Wade, do esquema de purificação da arquitetura.
água, Kaurinui, 1982.
A reflexão sobre o ciclo vital aderida a ética moral levam o
artista ao conceito do “cemitério ecológico”, onde o plantio de árvores
Fonte: RESTANY, Pierre. Hundertwasser o
Pintor-Rei das Cinco Peles. Taschen, Köln. ganha novos significados e razão de ser. Transformando radicalmente o
conceito de “morte” da sociedade ocidental, Hundertwasser, mais uma
vez, nos direciona para o respeito ao ciclo vital natural:

With the entry into na ecological age we


can see that there is no waste, nothing dies,
everything is alive constantly, only transformed (HUNDERTWASSER in RAND, 2007, p. 164)
into other forms – and this is not a religious
philosophy, only facts. Because of a wrong
conception, the Last Judgement, resurrection,
people still believe like the old Egyptians – if you
can corserve a man in his corporeal appearance,
then at the Last Judgement he will continue to live.
But this is complete nonsense. A person should be
buried only half a metre, or two feet, below the
surface. Then a tree should be planted there. He
should be buried in a coffin that decays so that
when you plant a tree on top the tree will take
something out of his substance, and change it into
tree-substance. When you visit the grave you don’t
visit a dead man, you visit a living being who was
just transformed into a tree. He continues to live in
the tree. You say, “This is my grandfather, the tree
is growing well, fantastic”. You can develop a
beautiful forest which will be more beautiful then a
normal forest because the trees have their roots in
the graves. That forest can spread over the
landscape and, as we don’t have enough forest, the
forest will be conserved at the same time. It will be
a park, a place for pleasure, a place to live, even a
place to hunt. A fantastic place where you can live
in constant contact with life and death.62
[26] Cerimônia de plantação de árvores, Judiary Square, Washington, 18 de novembro
de 1980.
62 Com a entrada numa idade ecológica nós podemos ver que não há nenhum
desperdício, nada morre, tudo está constantemente vivo, só transformado em outras
formas – e isso não é uma filosofia religiosa, somente fatos. Por causa de uma Fonte: RESTANY, Pierre. Hundertwasser o Pintor-Rei das Cinco Peles. Taschen,
concepção errada, o Último Juízo, ressurreição, as pessoas ainda acreditam como Köln, Alemanha: 2002.
os antigos egípcios – se você pode conservar um homem na sua aparência corporal,
então no Último Juízo ele continuará a viver. Mas isso é completamente sem
sentido. Uma pessoa deve ser enterrada somente à meio metro, ou dois feet, sob a
superfície. Então uma árvore deve ser plantada ali. Ele deve ser enterrado num
O ano de 1974 assinala o decisivo engajamento político de
caixão que pereça, de modo que quando você planta uma árvore acima, a árvore irá Hundertwasser na causa ecológica. Em seu retorno à Nova Zelândia,
absorver algo da sua substância, e mudar para uma substância da árvore. Quando
você visita a sepultura você não visita um homem morto, você visita um ser vivo adere à campanha de proteção da natureza com sua primeira “poster
que foi transformado numa árvore. Ele continua a viver na árvore. Você diz, "Esse
é meu avô, a árvore está crescendo bem, fantástico". Você pode desenvolver uma
linda floresta que será mais linda que uma floresta normal porque as árvores têm um parque, um lugar para o prazer, um lugar para viver, até mesmo um lugar para
suas raizes nas sepulturas. Essa floresta pode espalhar-se sobre a paisagem e, como caçar. Um lugar fantástico onde você pode viver em contato constante com vida e
nós não temos floresta suficiente, ao mesmo tempo a floresta será conservada. Será morte.
campaign”63. O cartaz gráfico inicial foi o belo e sensível “Conservation Durante a década 1980 Hundertwasser participa de diversas
Week”: uma cabeça com olhos amendoados chora com árvores que lhe manifestações, homenagens e conferências, sempre em defesa de seu
atravessam a face, cujos troncos reproduzem um rio de lágrimas. Tanto programa-mensagem: o homem precisa poder exercer livremente o seu
a campanha como o cartaz obtiveram grande sucesso, o que levou direito a viver em “espaços felizes”, em harmonia com a natureza.
Hundertwasser a fixar residência no país, dando uma trégua a seu No discurso sobre “a arte falsa” proferido em Viena em 1981,
nomadismo característico. qualifica a arte contemporânea calcada na fealdade, na agressão visual,
As constantes ameaças à natureza, os perigos da energia nuclear, na poluição ótica, como fatal para a alma. Quando a ecologia vira moda
impulsionam Hundertwasser a desbravar a floresta amazônica: sobe o e precede-se à associação entre vanguarda e esquerda política,
Rio Negro a partir de Manaus e confirma a imanência da ordem natural: Hundertwasser demonstra revolta:

A revolução verde não é uma revolução


O naturalismo como disciplina do política. É uma evolução que segue a do
pensamento e da consciência perceptiva é um proletariado que pretende ter sido a última. É
programa ambicioso e exigente, que ultrapassa suportada pela base e não é nem minoritária nem
largamente as balbuciantes perspectivas ecológicas elitista. É uma evolução criadora em harmonia com
atuais. Trata-se de lutar muito mais contra a o curso orgânico da natureza e do universo.
poluição objetiva, a poluição dos sentidos e do (HUNDERTWASSER in RESTANY, 2002, p.
cérebro, muito mais do que do ar ou da água. Um 83-84)
contexto tão excepcional como o do Amazonas
suscita a idéia de um regresso à natureza original. A Para Hundertwasser a beleza é a fórmula feliz da habitação
natureza original deve ser exaltada como uma
higiene da percepção e um oxigênio mental: um social. E a ecologia propicia tal beleza. Seu pensamento e sua
naturalismo integral, catalisador gigantesco e
acelerado das nossas faculdades de sentir, de pensar sensibilidade estéticos são destinados à percepção e à visualização
e de agir. (RESTANY, 2002, p. 82)
criativa. Entende o domínio da arte como “eternidade”, paz.
A metáfora da espiral como ciclo orgânico da vida e da
O cartaz transforma-se no meio mais eficaz de tradução da moral
natureza, de fundamental e recorrente importância na obra de
prática de Hundertwasser e de sensibilização pública. Obra gráfica
Hundertwasser, revela-se tanto no “pulmão”do mundo, macrocosmo
impressa em offset a partir de imagens tiradas de seus quadros, o cartaz é
natural, como nas águas do Rio Negro, microcosmo que integra a
concebido em tempo real e in situ, e responde particularmente à
floresta amazônica.
urgência de determinada situação. É o meio ideal para o ativismo
63 RESTANY, 2002, p. 80.
ecológico de Hundertwasser, que produz muitos cartazes para
campanhas e manifestos para inúmeras nações.

Cartazes desenhados por Hundertwasser


Da esquerda para a direita, de cima para baixo: Cartazes desenhados por Hundertwasser, da esquerda para direita, de cima para baixo:
[27] Imagine Tomorrows World, 1998. [31] Save the Rain, 1983.
[28]Arche Noah 2000 - You Are a Guest of Nature Behave, 1980/1981. [32] Among Trees You Are at Home, 1999.
[29] Conservation Week, New Zealand, 1974. [33] Survival or Suicide - Rainforest, 1990.
[30] Artists For Peace, 1982. [34] Die freie Natur ist unsere Freiheit, 1984.

Fonte: SCHMIED, Wieland. Hundertwasser 1928-2000 Personality, Life, Work. Fonte: SCHMIED, Wieland. Hundertwasser 1928-2000 Personality, Life, Work.
Taschen, Köln, Germany: 2000. (p. 271) Taschen, Köln, Germany: 2000. (p. 274)
Considerações Finais ecológica proporciona “lugares felizes” na medida em que produz bem
estar e resulta em convivência pacífica. Da mesma forma, a concepção
artística estética pretende captar a visão do artista e desencadear um
processo criativo de visualização que insira a própria arte como
A arte pela arte é uma aberração, a
arquitetura pela arquitetura é um crime. elemento estetizante por excelência no cotidiano das pessoas.
(HUNDERTWASSER in RESTANY, 2002, p. 43)
Muito embora a obra artística de Hundertwasser tenha raízes
Em síntese, Hundertwasser propõe a estetização sócio-ecológica reconhecíveis no Jugendstil austríaco, ornamental e de dimensão
como processo contínuo para o alcance da harmonia universal, a qual crepuscular frente à atmosfera do fin de siècle, liberta-se de qualquer
pressupõe o estado natural liberto de desvios culturais contrários ao decadentismo, ao preconizar estetização tanto no ativismo sócio-
bem-estar do indivíduo, da comunidade ou de nações. Nosso contexto ecológico como na criação artística e, ao final, na obra de arte em si,
cultural limita a criatividade ao prender-nos a estereótipos, clichês, respondendo a urgências imediatas com práticas possíveis que dizem
convenções. A arte estética por excelência nos libera destas amarras, respeito ao processo vital contínuo de sua contemporaneidade.
permitindo o exercício criativo livre e subjetivo conforme as Hundertwasser ocupa-se com detalhes, processos e soluções desde os
necessidades específicas do sujeito que a produz com a espontaneidade e aparentemente mais insignificantes aos de grande dimensão e monta.
a criatividade típicas do estado natural. O declarado engajamento da arte de Hundertwasser, de natureza
O que vem a ser a criação artística de Hundertwasser? A obra de estetizante, ao lançar mão da criação artística como recurso para chegar
arte finalizada? Compreendo o ativismo sócio-ecológico, ou seja, a a soluções frente a uma realidade globalizada e em degradação, implica
atuação prática contínua em defesa da ideologia estetizante, como parte em uma nova concepção de arte. Trata-se de uma arte engajada numa
integrante da obra de arte. Não se trata, portanto, de l'art pour l'art, na causa planetária que, em última instância, luta por uma conscientização
medida em que a luta contínua e pragmática processa transformações que assegure a continuidade da vida na Terra e o bem-estar a seus
práticas positivas, resultando em naturalidade, paz e bem estar tanto ao habitantes. Não se trata apenas de sobrevivência, mas de vivência com
indivíduo como à comunidade, à nação e ao planeta. Por que motivo beleza, e recursos naturais preservados.
essa seria a resultante? Segundo Hundertwasser, a estetização sócio- Defensor da subjetividade no que concerne ao indivíduo,
Hundertwasser posiciona-se igualmente a favor da preservação da humano e a arte como o meio indestrutível entre o homem criador e a
identidade própria de povos e nações. Quanto à ecologia, o artista natureza, que harmoniosamente une a existência à essência.
compreende como conceito planetário. Assim, a identidade de cada Contrário ao totalitarismo racionalista predominantemente
nação, sua autonomia, devem ser preservadas, mantendo-se sua funcional na cultura global propõe recursos qualitativos do empirismo
independência cultural. No entanto, o ativismo ambiental deve adotar naturista como alternativa.
uma visão internacional, sem fronteiras.

Quanto à arte, Hundertwasser quebra convenções, ao preterir os À globalização de uma cultura


subserviente à economia, o pintor-rei opõe a
planos hierarquizados da perspectiva em favor da verticalidade analítica resistência compacta e coerente de um indivíduo
que resolve passar a vida a cultivar e enriquecer a
do olhar, de cima para baixo, o que resulta na imagem horizontal. Desta beleza de sua relação pessoal com o mundo: o
maneira, também na arte, apresenta uma visão global, analítica, com desenrolar da espiral concêntrica das cinco peles do
homem. (RESTANY, 2002, p. 95)
enfoque na multiplicidade de formas orgânicas, pormenores partes
integrantes da diversidade. Ou seja, o olhar de Hundertwasser sobre o
mundo é tão abrangente e detalhista quanto o olhar a partir do qual
executa sua arte pictórica.

Hundertwasser crê na educação para conseguir a sensibilização


das pessoas para a beleza através da arte, embora a complexa relação
homem-natureza aproxime-se de uma iminente catástrofe. Ainda assim
não perde a esperança:

Depois da catástrofe poder-se-á reconstruir


o mundo numa melhor harmonia natural graças a
mensagens como a minha. (HUNDERTWASSER
in RESTANY, 2002, p.93)

Aponta a estética generalizada como condição existencial do ser


[35] O Jardim dos Felizes Defuntos, óleo em madeira, 47x58.5 cm, Saint-Maurice
(Sena), 1953.

Fonte: RESTANY, Pierre. Hundertwasser o Pintor-Rei das Cinco Peles.


[36] Automobil mit roten Regentropfen II, aquarela 85x65cm
Taschen, Köln, Alemanha: 2002.
Venice, 1957.

Fonte: SCHMIED, Wieland. Hundertwasser 1928-2000 Personality, Life, Work.


Taschen, Köln, Germany: 2000. (p. 167)
Índice de Imagens [13] O projeto árvore-locatária, Via Manzoni, Hundertwasser, Milão,
1973
[14] Tree Tenants,tinta e aquarela, 33x21cm, Hundertwasser, Viena,
1973.
[01] Hundertwasser; Fotografia: Gerhard Krömer, 1985. [15] Redesign, Hundertwasser, Áustria, 1982.
[02] Rain of Blood is Falling Into the Garden, xilogravura japonesa, [16] Pintura sobre fotografia para o filme “Hundertwasser Regentag” de
43x55.5cm, Hundertwasser, 1973. Peter Schamoni, de 1971/1972. Aquarela sobre papel fotográfico,
[03] The Great Way, Hundertwasser, 1955. Hundertwasser.
[04] As Cinco Peles do Homem, desenho a tinta, 29.7x20.9 cm, [17] Children’s Day Centre, Frankfurt-Heddernheim, Hundertwasser,
Hundertwasser,Viena, 1998. 2000. Fotografia: Stephan Bröcher. (fachada)
[05] A Gramática do Ver, Hundertwasser, Paris, 1957. Primeira página. [18] Children’s Day Centre, Frankfurt-Heddernheim, Hundertwasser,
[06] Hundertwasser com suas pinturas, Viena. Fotografia: Alfred 2000. Fotografia: Stephan Bröcher.
Schmid, 1989. [19] Children’s Day Centre, Frankfurt-Heddernheim, Hundertwasser,
[07] Demonstração pública para a “alteração arquitetural” individual no 2000. Fotografia: Stephan Bröcher. (corredor)
Dormitório Internacional dos Estudantes, Hundertwasser, Viena, 1968. [20] Conjunto de selos postais comemorativos, desenhados para o WIPA
[08] Desenho informativo para a construção e uso da latrina de húmus, Exibição Internacional Filatélica 2000, Hundertwasser, Viena.
Hundertwasser, 1980. [21] Moedas, Hundertwasser, 1978; placas de licença de automóveis,
[09] Perfume de Húmus, técnica mista, 60.5x49.5 cm, Hundertwasser, Hundertwasser, 1988.
Algajola (Córsega) 1979. [22] Relógios “Time Drops”, Hundertwasser, 1989; cartões telefônicos
[10] Hundertwasser sempre usava pares de meia trocados, fotografia, para os correios austríacos, Hundertwasser, 1992.
1988. [23] Bandeira Koru para Nova Zelândia, Hundertwasser, 1983.
[11] Hundertwasser, fotografia, 1982. [24] Bandeira Uluru para Austrália, Hundertwasser, 1986.
[12] Os pés de Hundertwasser com sandálias home-made de inverno e [25] Desenho de uma carta de Hundertwasser para Alex Wade, do
verão, Fotografia: Augustin Dumage, 1950. esquema de purificação da água, Kaurinui, Hundertwasser, 1982.
[26] Cerimônia de plantação de árvores, Judiary Square, Washington, Bibliografia
Hundertwasser, 18 de novembro de 1980.
[27] Cartaz: Imagine Tomorrows World, Hundertwasser, 1998.
[28] Cartaz: Arche Noah 2000 - You Are a Guest of Nature Behave,
- BACHELARD, Gaston. A Poética do Espaço. São Paulo, SP: Martins
Hundertwasser, 1980/1981.
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[29] Cartaz: Conservation Week, New Zealand, Hundertwasser, 1974.
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[30] Cartaz Artists For Peace, Hundertwasser, 1982.
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[31] Cartaz: Save the Rain, Hundertwasser, 1983.
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[32] Cartaz: Among Trees You Are at Home, Hundertwasser, 1999.
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[33] Cartaz: Survival or Suicide - Rainforest, Hundertwasser, 1990.
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[34] Cartaz: Die freie Natur ist unsere Freiheit, Hundertwasser, 1984.
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