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Centro de Artes
Departamento de Artes Plásticas
Florianópolis Florianópolis
2008 2008
Katia Medved Leite Nunes
Banca Examinadora
__________________________________________________________
Prof. Cleidi Marília C. De Albuquerque
Orientadora
Resumo
entre outras facetas que a vida moderna implica. Tais interesses reduzem arte tradicional clássica. Por sua concepção de beleza, porém, sua arte
sua respeitabilidade frente a críticos modernistas, que execram as muitas vezes é considerada ingênua e de menor valia, conforme destaca
atividades extra-artísticas de Hundertwasser. Os múltiplos interesses do Pierre Restany: “A verdade banal gera escândalo, particularmente em
artista traduzem a diversidade contemporânea típica do mundo Viena, segundo parece, e Hundertwasser adquiriu uma reputação
globalizado, abarcando do microcosmo da vida cotidiana ao sulfurosa de eterno beatnik ingênuo ou de bobo a jogar ao terrorismo
macrocosmo da obra artística. Fundamentalmente, não são seus mental.”5 Com uma personalidade individualista e narcisista,
interesses variados que ofendem os modernistas, mas suas atividades Hundertwasser nunca se desviou de seu caminho para tentar qualquer
sociais por si mesmas. Estas práticas constituem o âmago de sua rejeição aproximação com movimentos artísticos da arte tradicional. Entretanto,
pelo modernismo internacional. Uma vez compreendida a substância o individualismo e a relação entre arte e política surgem com força no
dessa rejeição, o desprezo mútuo dos protagonistas fica claro. contexto da segunda metade do século XX, e, neste aspecto,
Hundertwasser não considera a palavra “vanguarda” como sinônimo de Hundertwasser é pioneiro e encontra pontos em comum com outros
uma crítica externa à sociedade, mas utiliza a palavra em seu sentido artistas de sua época.
original de uma “vanguarda militar”, tropa de choque da cultura. É a arte estética inferior? O trabalho de Hundertwasser não se
encontra em sintonia com as principais necessidades e problemas de sua
A painter should be avant-garde, should be
in advance of the needs of our society and ecology 4 Um pintor deve ser vanguardista, deve estar à frente das necessidades de nossa
– which is in a state of crisis. A painter should act sociedade e ecologia – que está num estado de crise. Um pintor deve agir como
as an example against the consumer society. He exemplo contra a sociedade de consumo. Deve ser exemplo de como viver numa
should be an example of how to live in a wasteless sociedade de desperdícios. E o que o pintor faz? Faz o contrário. Respinga ao redor
society. And what does the painter do? He does the e desperdiça a pintura. Ele é pior desperdiçando um material valioso. Eu considero
contrary. He splashes around and wastes the paint. a pintura uma atividade religiosa; a substância da pintura é um material sagrado.
He is worse, wasting valuable stuff. I consider Deveria ser considerada como ouro. Deveria ser usada sabia- e inteligentemente.
painting a religious activity; the substance of paint Ao menos como o pão foi usado na guerra. Ser artista é uma maneira de ser, não
is a sacred material. It should be cared for like gold. somente o que você produz.
It should be used wisely and intelligently. At least 5 RESTANY, 2002, p. 18 e 19.
época? Sua concepção ideológica nos acrescenta algo? Tentarei dar Contexto Histórico
respostas a tais questionamentos a partir de uma análise criteriosa.
No primeiro capítulo apresento um panorama geral do contexto
histórico da segunda metade do século XX no âmbito artístico, O século XX foi caracterizado como a era dos extremos pelo
científico, social, político e especialmente ecológico. historiador Eric Hobsbawn. O termo extremos designa o caráter
O segundo capítulo é dedicado a Hundertwasser e sua teoria das dramático dos conflitos e transformações ocorridos nesse breve período
6
cinco peles que englobam o ser humano – epiderme, vestuário, casa do de tempo, o qual concentra duas guerras mundiais, revoluções sociais,
homem, meio social e identidade, meio global (ecologia e humanidade) ditaduras totalitárias – nazismo e fascismo, o desenvolvimento técnico-
–, bem como a relação do artista com estas, apresentando e analisando científico, a Guerra Fria, o progresso tecnológico, a ameaça nuclear e o
as soluções propostas pelo artista para a melhoria de todas as peles. desequilíbrio ecológico.
Em uma terceira etapa busco estruturar e analisar os resultados A ameaça ecológica impõe-se como fenômeno determinante
práticos alcançados por Hundertwasser. Seu principal objetivo, a nesse século. A ascensão burguesa, o sistema capitalista e o crescente
harmonia entre o ser humano e o mundo que o cerca, revela-se como o progresso científico, somados à contribuição do trabalho proletário,
caminho para a felicidade, que só será alcançado por meio do permitiram o desenvolvimento da indústria já desde o século XVIII.
entendimento da importância da beleza e do respeito à natureza, através Diante desta crescente industrialização, com ênfase na agilidade
da plena compreensão de todas as peles do ser humano. produtiva e quantitativa, vigorava o preceito de que o meio ambiente era
uma fonte inesgotável de recursos naturais à disposição do ser humano.
Ávido por progresso e explorador incansável dos recursos naturais, o ser
humano provocou vastos danos ecológicos à biosfera e à vida humana.
Uma visão de mundo obsoleta levou à escassez de recursos e à
degradação inconseqüente do meio ambiente, que, combinados ao
aumento populacional, denotam uma crise de percepção.
Foi somente a partir da década de 1960 que a conscientização
6 As cinco peles: organização esquemática tratando de todos os níveis da ecológica começou a ganhar importância. A consciência de que a
experiência humana, desenvolvida por Friedenreich Hundertwasser.
valores e nas ações. Uma mudança de paradigma para uma nova visão
de mundo tornava-se necessária com urgência. A ecologia aparecia em
cena com uma evolução em seus conceitos.
Fonte: SCHMIED, Wieland. Hundertwasser 1928-2000 Personality, apresenta uma visão de mundo holística, ecológica, que percebe o
Life, Work. Taschen, Köln, Germany: 2000. (p. 177) mundo como um todo integrado, onde tudo está interligado e é
interdependente. Tal visão evoluiu para a noção de ecologia profunda,
devastação ambiental nos levaria a conseqüências irreversíveis, criando termo cunhado no início da década de 1970 pelo filósofo norueguês
uma crise mundial que atingiria toda a vida no planeta, mobilizou Arnes Naess, que abrange os estudos das ecologias: humana, social,
ativistas de diferentes segmentos sociais: cientistas, ambientalistas, ambiental.
artistas, políticos e outros. As pesquisas científicas apontavam que A ecologia profunda interpreta o mundo como uma rede de
apesar dos estragos já causados pelo ser humano ao meio ambiente, fenômenos fundamentalmente interconectados e interdependentes,
ainda havia soluções viáveis à alteração deste quadro, mas estas reconhecendo o valor intrínseco de toda matéria viva ou não, sem
exigiriam mudanças radicais na nossa percepção, no pensamento, nos estabelecer qualquer distinção entre o ser humano e o meio ambiente
natural. experiência ecológica profunda de sermos parte da
teia da vida, então estaremos (em oposição a
Essa mudança de paradigma requer uma expansão nas nossas deveríamos estar) inclinados a cuidar de toda a
natureza viva. (CAPRA, 1996, p. 29)
percepções e valores. O antigo paradigma é baseado em valores
antropocêntricos, enquanto a ecologia profunda está alicerçada em O mundo da arte na década de 1960, igualmente defrontava-se
valores ecocêntricos. Todos os seres vivos estão conectados em uma com novos desafios, campos desconhecidos e inexplorados. Segundo
rede de interdependência. De tal percepção ecológica profunda emerge Gilles Lipovetsky7, em A Era do Vazio, é no decorrer desta década que
um novo sistema de ética. identificamos o fim do modernismo e o começo de uma cultura pós-
Ao não distinguir entre o ser humano e os outros seres vivos, a moderna. Após a grande ruptura modernista com os padrões
ecologia profunda qualifica o eu como parte inerente à natureza, estabelecidos desde a arte clássica, vivida na primeira metade do século,
estabelecendo uma nova postura em relação a sua preservação. a arte se aproximou da vida cotidiana, e encontrava-se diante de
possibilidades expressivas multiplicadas ao infinito. A regra passou a ser
Essa expansão do eu até a identificação a ausência de regras. A liberdade de expressão ampliou-se em conceitos,
com a natureza é a instrução básica da ecologia
profunda, como Arne Naess claramente reconhece: técnicas, materiais expressivos e suportes, conferindo abrangência tanto
O cuidado flui naturalmente se o eu é às possibilidades do campo criativo como à própria criação artística.
ampliado e aprofundado de modo que a proteção da
Natureza livre seja sentida e concebida como Neste contexto surge uma diversidade de correntes, estilos, escolas e
proteção de nós mesmos. ... Assim como não
precisamos de nenhuma moralidade para nos fazer movimentos artísticos. A Pop Art é um boom revolucionário que surge
respirar... [da mesma forma] se o seu eu, no sentido
amplo dessa palavra, abraçar um outro ser, você não nos EUA; Dubuffet cria seu conceito de L'art Brut, valorizando a obra
precisa de advertências morais para demonstrar
cuidado e afeição... você o faz por si mesmo, sem excluída do mercado da arte; Pierre Restany, em conjunto com Yves
sentir nenhuma pressão moral para fazê-lo. ... Se a
realidade é como é experimentada pelo eu ecológico, Klein, funda o grupo dos Nouveaux Réalistes; a Arte Povera é a
nosso comportamento, de maneira natural e bela,
segue normas de estrita ética ambientalista. novidade na Itália; surgem na cena artística: o conceito de Arte
Informal, o Expressionismo Abstrato, a Arte Existencial, o
O que isto implica é o fato de que o
vínculo entre uma percepção ecológica do mundo e
o comportamento correspondente não é uma 7 Gilles Lipovetsky (1944), filósofo francês, criador do conceito de
conexão lógica, mas psicológica. A lógica não nos hipermodernidade para designar a atualidade, dedica-se aos estudos desta sociedade
persuade de que deveríamos viver respeitando hipermoderna. É autor de livros como: A Era do Vazio, O Império do Efêmero,
certas normas, uma vez que somos parte integral da Metamorfoses da Cultura Liberal, Os Tempos Hipermodernos, A Sociedade Pós-
teia da vida. No entanto, se temos a percepção, ou a moralista.
Minimalismo, a Earth Art, a Land Art. O termo Arte Conceitual muito bem”, declara Alain Finkielkraut8 jogando com a máxima “Deus
concentra diversos destes grupos e movimentos, ao afirmar a idéia como está morto” de Nietzsche. Deus morto, neste contexto, refere-se à perda
elemento principal da obra de arte, e não mais a materialidade da obra. da unidade total, do valor absoluto, em prol de uma fragmentação
A tecnologia aliada à globalização e à indústria dá margem à exploração generalizada, que vem acontecendo desde o século XVIII.
de novos meios expressivos como a fotografia, a imagem digital e o Lipovetsky aponta o ativismo ecológico, surgido com
vídeo. Victor Vasarely dá inicío a experiências tecnológicas que tanta força na década de 1970, como conseqüência do narcisismo
resultam na Op Art. O corpo se torna objeto de exploração artística com característico do indivíduo pós-moderno, e, portanto, não devemos
a Body Art. Esse panorama diversificado inclui também artistas que não pensar que tal consciência ecológica seja consistente. Uma das
se engajaram em nenhum grupo, trilhando novos caminhos principais características desta nova sociedade que surge no pós-
individualmente. Joseph Beuys e Friedenreich Hundertwasser são modernismo, é a superficialidade generalizada. No âmbito da
exemplos; exploraram conceitos e dedicaram-se a explorações artísticas globalização, acontecimentos e informações atingem uma velocidade
independentes. Numa primeira instância estes artistas cultuaram ideais ímpar, o homem tem acesso direto a tudo e a todos, mas este
semelhantes; ambos demonstravam grande interesse pela “progresso” resulta em inevitável superficialidade.
conscientização ecológica, utilizando sua arte como instrumento O mundo entra numa nova era, um período de incógnita, a
político; entretanto, apesar de compartilharem este objetivo de sociedade pretere atitudes autoritárias e dirigistas, privilegiando
engajamento entre arte e política, no desenvolvimento de seus trabalhos democratização e a diversidade em todos os âmbitos da vida e da
trilharam caminhos bastante diferentes para expressar e afirmar tais cultura. Ocorre uma mudança de pressupostos cultural- e moralmente:
ideais.
Lipovetsky caracteriza o indivíduo da era pós-moderna como um Instala-se um novo estágio de
individualismo: o narcisismo designa o surgimento
personagem essencialmente individualista, hedonista e narcisista. E a era de um perfil inédito do indivíduo nas suas relações
consigo mesmo e com o seu corpo, com os outros,
mais próxima do niilismo (a negação de todos os valores), que Nietzsche com o mundo e com o tempo no momento em que o
“capitalismo” autoritário cede lugar a um
anunciou no século XIX. capitalismo hedonista e permissivo. A idade de
“Deus está morto, Marx também e eu não estou me sentindo
8 Alain Finkielkraut (1949), filósofo francês de origem polonesa, muito influenciado
pelos escritos de Hannah Arendt, analisa os estragos da modernidade e a
fragilização do meio social.
ouro do individualismo, concorrente no nível
econômico, sentimental no nível doméstico, Apesar de estarem começando a tomar
revolucionária nos níveis político e artístico, chega uma consciência parcial dos perigos mais evidentes
ao fim e um individualismo puro se desenvolve, que ameaçam o meio-ambiente natural de nossas
desembaraçado dos últimos valores sociais e morais sociedades, elas (as formações políticas e instâncias
que ainda coexistiam com o reino glorioso do homo executivas) geralmente se contentam em abordar o
oeconomicus, da família, da revolução e da arte; campo dos danos industriais e, ainda assim,
emancipada de qualquer enquadramento unicamente numa perspectiva tecnocrática, ao
transcendental, a própria esfera privada muda de passo que só uma articulação ético-política – a que
sentido, uma vez entregue aos desejos variáveis dos chamo ecosofia – entre os três registros ecológicos
indivíduos. Se a modernidade se identifica com o (o do meio-ambiente, o das relações sociais, e o da
espírito do empreendimento e com a esperança subjetividade humana) é que poderia esclarecer
futurista, é claro que, devido à sua indiferença convenientemente tais questões. (GUATTARI,
histórica o narcisismo inaugura a pós-modernidade, 2004, p. 08)
a última fase do homo aequalis. (LIPOVETSKY,
1993, p.32)
espectador quem faz a arte”. 14 Os surrealistas usaram o termo “automatismo” na década de 1920 para descrever a
A teoria do transautomatismo partiu de reflexões acerca do redação ou pintura espontânea, empreendida para expressar livremente as
atividades do subconsciente. Os surrealistas consideravam o automatismo uma
13 Sempre há um sistema de ordem superior, de inteligência criativa, e você tem que forma de se livrar de qualquer noção ou estilo artístico preconcebido para alcançar
caber neste sistema. Só aquele que é uma inteligência criativa sobreviverá. Isso a abordagem mais verdadeira e individual da expressão criativa. O surrealista
significa que nós somos umas congregações de Deuses. Este é nosso estado normal. francês André Masson foi o pioneiro do automatismo na arte com os seus desenhos
As pessoas são muito diferentes umas das outras. Elas já são já diferentes no “relâmpago”. Mais tarde, o automatismo foi adotado pelos expressionistas abstratos
nascimento. Todo mundo pode e deve ser criativo. Isso é uma lei da natureza. O de Nova York e serve para descrever o estilo de pintura de “ação” a mão livre de
mendigo torna-se um rei e o rei um mendigo. O que importa é o que você é e o que Jackson Pollock. (WOOD, 1998, p. 42)
você faz de si. É seu poder criativo. É muito fácil, nenhum problema. 15 SCHMIED, 2000, p. 80.
A principal premissa de Hundertwasser afirma que o que disposição de suas pinturas ao lado de flores e árvores, contra as paredes
entendemos por “ver” muitas vezes não compreende uma percepção das casas, entradas e escadarias, colocando um fragmento de casca ou
visual cognitiva; o “ver” não constitui um sentido amplamente folha próxima a elas, para ver como ficavam numa situação de
desenvolvido, segundo ele; na realidade, somos analfabetos no âmbito interatividade com a realidade visual da natureza.
visual, e geralmente só enxergamos e assimilamos coisas que já vimos
anteriormente. Assim, o dever da arte moderna seria ensinar as pessoas
a vislumbrar coisas novas, enxergar o mundo a partir de ângulos
inusitados. Hundertwasser acredita que o significado e o valor da obra
de arte estão relacionados à variedade e à qualidade das imagens
interiores e pensamentos que esta evoca no espectador. O status de uma
pintura, então, seria determinado pela riqueza de associações que ela é
capaz de despertar no público espectador participativo.
O caráter dessas associações pode ser bastante diferente; elas
podem estar relacionadas com coisas no presente, passado ou futuro,
podem dizer respeito ao visível e invisível, a objetos e idéias, memórias
e desejos, ao real e ao possível, a fatos e valores. Uma pintura pode nos
recordar de um cheiro, uma melodia, um momento específico, pessoas e
paisagens, pode gerar diferentes humores, liberar energias, nos
estimular à ação. Em seus trabalhos teóricos, Hundertwasser propôs-se a
reunir todas as possibilidades de associações e efeitos que uma pintura
pudesse exercer; queria definir os diferentes tipos de associações [06] Hundertwasser com suas pinturas, Viena
Fotografia: Alfred Schmid, 1989.
suscitadas pela obra ao ser observada e ordená-las em relação a certos
pontos de vista. Fonte: SCHMIED, Wieland. Hundertwasser
Um resultado prático de sua “Gramática do Ver” foi a 1928-2000 Personality, Life, Work. Taschen, Köln,
Germany: 2000. (p. 105)
Uma pintura é essencialmente imóvel, mas sua visualização é associativas ou seqüências de imagens em espectadores distintos, mas
um processo dinâmico. Entretanto, o dinamismo deve estar latente, também desencadeará filmes interiores amplamente divergentes no
encontrar-se implícito na obra pictórica para poder desencadear o mesmo espectador em ocasiões diferentes, conforme seu humor e
processo. É aqui que as coisas se tornam bastante complexas. Por um disposição específicos.
lado, cada pintura individual pode armazenar um número infinito de Deste ponto de vista, a função dos títulos17 dados por
pinturas imagéticas que, em observação prolongada, se revelarão ao Hundertwasser a suas obras pictóricas torna-se clara: eles são um tipo
espectador; por outro lado, a visualização, a recepção, pode tornar-se de contribuição adicional para o filme individual começar a rodar.
um processo criativo se o espectador responde à obra de arte com uma Vários títulos diferentes sugerem uma riqueza infinita de possibilidades
riqueza de imagens interiores de sua própria imaginação. A criação para o filme individual. Mas uma vez que o cinema individual começa a
artística por excelência seria uma pintura rica em imagens subjetivas e projetar suas próprias significações em relação à obra pictórica, lembrar
criativas frente a frente com um espectador com predisposição à dos títulos somente interfere na exibição do filme.
criatividade imaginativa e imune a automatismos culturais – então a O artista certa vez tentou identificar as várias fases de um filme
“série contínua infinita”16 de pinturas descrita por Hundertwasser de em formação: da projeção de associações, de qualidade variável, à
fato viria a se concretizar. formação de imagens interiores e pensamentos, seguidos por sua
Hundertwasser descreveu o processo de observação de uma conversão em energia, que vem a ser o retorno à vida real do
pintura e as imagens e pensamentos gerados por tal processo como espectador. O espectador torna-se, então, criativo. Mas mesmo assim o
“filme interior” ou “filme individual” e, ocasionalmente, até como filme em formação não precisa chegar a uma conclusão: como
“cinema individual”. Para realçar o papel ativo do espectador neste associações e outros produtos da imaginação, a criatividade das pessoas
processo, mais tarde denominou-o “filme formativo interior ou tem o potencial de desenvolver-se permanentemente. Mas:
individual” - referindo-se à profusão de imagens desvelando-se diante
do seu “olho interior”. “It would be pointless and impossible to
want to describe how the film continues",
Cada pintura contém não uma, mas infinitas possibilidades de
17 Os títulos conferidos às pinturas por Hundertwasser estavam vagamente ligados a
“filmes individuais”. Não apenas fará surgir diferentes correntes sua forma física e significação - cor e objeto que ele retratou. Normalmente tinham
mais de um título. Hundertwasser preferia nomeá-los sem um sentido óbvio para
estimular a criatividade imaginativa do espectador diante da obra, esta que nunca
16 SCHMIED, 2000, p. 81. possui somente uma significação, mas suscita múltiplas. (SCHMIED, 2000, p. 74)
Hundertwasser said. "Beyond these areas, life using strength and application and intellect, but
boundless, new perspectives open up for the in art these things produce absolutely no result.19
individual, a transautomatic formative film; but, ( HUNDERTWASSER in RAND, 2007, p. 29)
given the vastness of the space, in fact, it soon
comes up against the provisional and temporary
limits of our capabilities. The individual film Em 1959, ao fundar a Pintorarium, uma academia
therefore traces a steady, continuous course,
moving from the superficial world to the typical universal de todos os campos criativos, junto com Ernst Fuchs e Arnulf
and quasi-infinite space of true human
possibilities.18 (SCHMIED, 2000, p. 81)
Rainer, Hundertwasser igualmente reforça a importância que confere à
natureza no processual exercício criativo:
Quanto ao exercício artístico, Hundertwasser ainda retorna a
expor a importância que confere a este, comentando de seu processo Physical absence is a precondition for my
spiritual presence. If I were present in a master
criativo: class it would influence people and frighten them
out of expressing themselves. Of course, the
For me pictures are gateways through students influence each other. In the classroom
which – when I succeed – I can burst into a world there are plants and trees. They take my place, they
which is at once very close to us and very distant; a are the teachers. Sitting between plants and trees in
world to which we have no access. Where we find a room and being creative is very interesting
ourselves, but which we cannot perceive; a world because the students immediately compare their
which is opposed to the real world. Our parallel own creativity with the creativity of nature. Nature
world, from which, in a sense, we alienate grows according to very stable laws and patterns,
ourselves. And this is paradise. We are inside it, we and nature is always right – how the leaves come
are imprisoned in it, and yet some inexplicable out and how the trunk grows and how the bud
power denies it to us. comes out. Plants influence people, but when an
I have manage to open some windows artist is influenced by a plant's creativity then the
onto this world. How I have managed it is difficult
to explain. It certainly wasn't by force, not by 19 Para mim imagens são passagens pelas quais – quando eu sou bem sucedido –
selection, not by intelligence, not even exactly by posso entrar num mundo primeiramente muito fechado e distante de nós; um
intuition, but almost by a kind of sleepwalking. The mundo ao qual nós não temos nenhum acesso. Onde achamo-nos, mas não
work of an artist is very difficult, precisely because conseguimos perceber; um mundo que é oposto ao mundo real. Nosso mundo
it cannot be done with force, with diligence, or with paralelo, de que, num sentido, nós alienamo-nos. E isto é o paraíso. Nós estamos
intelligence. I mean, you can do everything else in dentro dele, nós somos presos a ele, e mesmo assim algum poder inexplicável o
nega a nós.
18 “Seria sem propósito e impossível querer descrever como o filme continua”, disse Eu consegui abrir algumas janelas sobre este mundo. Como administrei isso é
Hundertwasser. “Além destas áreas, ilimitadas, novas perspectivas aparecem ao difícil explicar. Certamente não foi por força, não por seleção, não por inteligência,
indivíduo, um filme formativo transautomático; mas, dada a vastidão do espaço, nem sequer exatamente por intuição, mas quase por um tipo de sonambulismo. O
aliás, logo batem de frente com os limites provisórios e temporários de nossas trabalho de um artista é muito difícil, precisamente porque não pode ser feito com
capacidades. O filme individual portanto traça um firme curso, contínuo, movendo- força, com diligência, nem com inteligência. Quero dizer, você pode fazer tudo
se do mundo superficial ao espaço típico e quase-infinito das verdadeiras mais na vida usando força e aplicação e intelecto, mas na arte estas coisas não
possibilidades humanas. produzem absolutamente nenhum resultado.
artist's own creativity will be almost perfect; he ( HUNDERTWASSER in SCHMIED, 2000, p. 83)
cannot fail – he follows the laws of vegetation in
creating paintings.20 (op. cit. , p. 75)
Hundertwasser expõe drásticas comparações: “Nós devemos, no
No “Manifesto do Bolor”, de 1958, Hundertwasser faz uso da mínimo, acabar com as pessoas ocupando aposentos minúsculos, como
teoria da criação transautomática para encorajar o homem a “cultivar galinhas e coelhos em seus viveiros.” E faz ainda algumas declarações
seu próprio bolor doméstico”; quebrando assim, a tendência ao arrojadas: “Nas, assim chamadas, favelas, só o corpo humano pode ser
distanciamento entre ser humano e natureza, resultante de uma pseudo- oprimido, mas na arquitetura que supostamente foi planejada para os
assepsia cultural. O artista propõe um retorno à participação do homem seres humanos, a alma do homem perece”22.
como ser biológico no ciclo orgânico da matéria. Começa a discorrer, então, sobre o que ele mais tarde
O “Manifesto do Bolor” começa, depois de uma declaração descreveria como “O Direito de Janela”: “O habitante de uma casa-
introdutória acerca da liberdade artística, com a afirmação: apartamento deve ter a liberdade de inclinar-se para fora de sua janela e
– tão longe quanto seus braços alcançarem – arranhar fora o reboco”.
Everyone should be able to build and as Semelhantemente, deve-lhe ser permitido “tomar um longo pincel” e
long as this freedom to build does not exist,
present-day planned architecture cannot be pintar tudo ao redor de sua janela.
considered art at all. Our architecture has
succumbed to the same censorship as paintings in O “Manifesto do Bolor” culmina no credo: “Somente quando
the Soviet Union. All that this has achieved is a few
detached and pitiable compromises by men of bad
arquitetos, pedreiros e habitantes formarem uma unidade, ou um na
conscience who work with straight rulers!21 mesma pessoa, nós poderemos falar de arquitetura. Todo o resto não é
20 Ausência física é uma condição prévia para minha presença espiritual. Se eu
estivesse presente numa classe magistral influenciaria as pessoas e os assustaria a
arquitetura, mas um ato criminoso que veio a assumir forma. Arquiteto/
expressarem-se. Naturalmente, os estudantes influenciam uns aos outros. Na sala de pedreiro/habitante são uma trindade como a Sagrada Trindade de Deus/
aula há plantas e árvores. Elas tomam o meu lugar, elas são os professores. Sentar
entre plantas e árvores em um quarto e ser criativo é muito interessante porque os Filho/Espírito Santo. A grande semelhança entre estas duas trindades,
estudantes imediatamente comparam sua própria criatividade com a criatividade de
natureza. A natureza cresce de acordo com leis muito estáveis e padrões, e a sua quase-identidade, deve ser anotada ...”23
natureza é sempre correta – como as folhas saem e como o tronco cresce e como o
broto sai. As plantas influenciam as pessoas, mas quando um artista é influenciado
pela criatividade de uma planta então a própria criatividade do artista será quase Soviética. Tudo o que isso alcançou foram alguns acordos desprendidos e
perfeita; ele não pode fracassar – ele segue as leis da vegetação em criar pinturas. lamentáveis por homens de má consciência que trabalham com réguas de linha
21 Todo mundo deveria estar apto à construir e já que esta liberdade para construir não reta!
existe, a arquitetura planejada atual não pode ser, absolutamente, ser considerada 22 RAND, 2007, p. 67.
arte. Nossa arquitetura sucumbiu à mesma censura que a pintura na União 23 RESTANY, 2002, p. 23.
encontram menos em casa nela, do que num desejo confortável de um
grupo de formigas estúpidas.”24
O slogan “A linha reta é atéia e imoral”25 torna-se a partir daqui
uma constante nos escritos teóricos do artista.
De tudo isso, Hundertwasser tira a conclusão prática:
uma padronização que coíbe o indivíduo. Neste sistema taylorista 32 de comunicação que permite a expressão da individualidade e do modo
produção, todos são afetados por três males, no que se refere à segunda como queremos ser percebidos pela sociedade. Ela traz em si sinais
pele: a uniformidade, a simetria e a tirania da moda. identificativos da identidade pessoal na mesma medida em que uma
associação, um grupo, um partido ou uma nação reconhecem-se em
A uniformidade do anonimato do vestuário sinais identificativos, por exemplo, sua bandeira.
traduz no homem a renúncia ao individualismo, ao
orgulho de usar uma segunda pele criativa, original
e diferente das outras. (RESTANY, 2002, p. 38) Os sinais identificativos de uma nação
encarnam a soma e a síntese de todas as identidades
Em contraposição a tal tendência, Hundertwasser confecciona individuais dos cidadãos que a compõem. Os
cidadãos reconhecem-se nesses sinais que são o
suas próprias roupas, dando-lhes caráter de passaporte social, testemunho da sua pertença à nação. A bandeira
atua como segunda pele da nação. (RESTANY,
aproveitando-as em sua riqueza de formas e cores, afirmando o direito à 2002, p. 39)
diversidade e à individualidade. A segunda pele, assim, mantém uma
relação direta com a quarta, o meio social e a identidade. A roupa não A segunda pele, aqui, assinala uma ligação mais profunda à
mais se limita a esconder, mas sim revela a subjetividade do ser humano quarta, ao dizer respeito não somente ao nível de consciência individual,
para o universo exterior, ao mesmo tempo em que favorece a mas também à identidade cultural, a um nível de consciência nacional.
Quanto à liberdade criativa de confeccionar sua própria
32 Relativo ao taylorismo, sistema de exploração industrial baseado nos princípios da
psicotécnica e de organização racional do trabalho, com o qual se procura alcançar indumentária, Hundertwasser coloca que a única condição imposta à
o máximo de rendimento com o mínimo de tempo e de atividade. (Dicionário
Aurélio, 1986, p. 1654) segunda pele refere-se à necessidade de conforto desta. “O luxo do
vestuário reside no seu conforto”33. De maneira que a liberdade criativa
encontra aqui um suporte para sua expressão, estimulando o potencial
criativo através do ato de confeccionar sua própria indumentária.
Exemplo de criatividade individual, Hundertwasser utiliza tecidos e
materiais dos mais variados, com um misto de estampas, cores e
formas. Suas sandálias home-made de inverno e de verão e sua boina
colorida tornaram-se conhecidas do público e encontram-se registradas
em inúmeras fotografias.
Fonte: RAND, Harry. Hundertwasser. Tanto em suas pinturas quanto em suas vestimentas e arquitetura,
Taschen, Köln, Germany: 2007. (p. 171) Hundertwasser preza o colorido, rejeitando o cinza e o monocromático.
33 RESTANY, 2002, p. 39. Sua moral da beleza aplica-se a todas as esferas potencialmente criativas
que cercam o homem. Elemento vital da beleza, ele atribuí ao colorido
um status sagrado. “As cores paradisíacas dos Céus”34.
pele. Desde seu nascimento o homem cria uma profunda ligação com No manifesto “O Teu Direito de Janela – O Teu Dever de Árvore”,
esse espaço físico. A casa mantém grande significação na vida do Hundertwasser apresenta uma proposta para solucionar o problema
homem, influenciando muito em seu desenvolvimento enquanto ser enfrentado nos espaços urbanos, com o estímulo à criação e à consciência
ecológica.
humano.
O “Direito de Janela” favorece o exercício da individualidade e a
Porque a casa é o nosso canto do mundo. capacidade de criação em nossas próprias esferas. Concede-nos a liberdade
Ela é, como se diz amiúde, o nosso primeiro
universo. É um verdadeiro cosmos. Um cosmos em de decorar a fachada ao redor das janelas de nossas casas de acordo com
toda a acepção do termo. (BACHELARD, 1993, p.
nossos desejos e gostos pessoais.
24)
expressão imaginativa, declarando guerra ao caráter funcional e à 36 Los von Loos (“Longe de Loos”) foi um manifesto ocorrido em Viena, Aústria, no
ano de 1968, onde Hundertwasser discursou nu contra a arquitetura retilínea
infertilidade da arquitetura moderna, desenvolvida na primeira metade estéril de Adolf Loos, arquiteto do início do século XX que defendia o
funcionalismo prático, boicotando os ornamentos característicos do Jugendstil.
do século XX. (RESTANY, 2002, p. 26)
A arquitetura moderna tem por objetivo uma renovação dos 37 Adolf Loos (1870 - 1933) foi um dos pioneiros da arquitetura moderna. Após seus
estudos em Dresden, passou três anos nos EUA, sofrendo influência sobretudo da
conceitos arquitetônicos até então desenvolvidos. Nela, a estruturação do escola de Chicago. Quando inaugurou seu ateliê de arquitetura em Viena, em 1896,
aplicou suas idéias estéticas às formas de construção. Foi pioneiro na negação do
espaço urbano caracteriza-se pela funcionalidade resultante do pensamento papel da intuição artística na procura de um estilo, confiando mais nas formas
fundamentais usadas pelo homem desde os seus primórdios. Precursor da nova
racional. O rompimento com a tradição histórica faz parte do discurso de
objetividade, procurou sempre a solução mais simples para seus projetos e métodos
alguns arquitetos modernos como Le Corbusier e Adolf Loos. de construção, empregando apenas ocasionalmente motivos ornamentais como
elementos articuladores. Em 1908 lança o livro Ornamento e Crime. Esta
Hundertwasser faz uma crítica clara e direta a este estilo concepção arquitetônica baseada na funcionalidade entrou em conflito aberto com a
“Secessão” de Viena. Suas obras mais célebres e importantes são a moradia Steiner
arquitetônico, que se estabeleceu durante o período modernista no mundo (1910) e a de Michaelplatz (1910-1911), em Viena, bem como a residência Tzara,
em Paris. (wikipedia.com)
é “um estado de alma”. Mesmo reproduzida em seu MANIFESTO
aspecto exterior, ela fala de uma intimidade.
YOUR WINDOW RIGHT, YOUR TREE DUTY
(BACHELARD, 1993, p. 84)
The window right
O “Dever de Árvore” tem por preocupação o nosso A resident must have the right to lean out of his
window and design everything his arm can reach on
relacionamento com a natureza. Exige que a natureza seja trazida às the wall outside just as it suits him. It will thus be
visible from afar to everyone in the street that
construções que criamos enquanto sociedade. Foi elaborado para someone lives there.
38 MANIFESTO
SEU DIREITO DE JANELA, SEU DEVER DE ÁRVORE
O direito de janela
Um habitante deve ter o direito de inclinar-se para fora da sua janela e transformar
tudo que seu braço pode alcançar na parede externa como lhe couber. Assim será
visível de longe a todo mundo na rua que alguém vive ali.
Seckau, 1958
Nós estamos sufocando em nossas cidades de poluição do ar e falta de oxigênio.
A vegetação que nos permite viver e respirar está sendo sistematicamente
destruída.
Nossa existência está perdendo sua dignidade.
Passamos caminhando pelo cinza, frentes de casas estéreis e não compreendemos
que fomos acometidos a celas de prisão.
Se desejamos sobreviver, cada um de nós deve agir.
Você mesmo deve projetar o design de seu ambiente.
Você não pode esperar pelas autoridades e pela permissão.
Suas paredes externas pertencem a você assim como sua roupa e o interior de seu
lar.
Qualquer tipo de design individual é melhor que a morte estéril. É seu direito
projetar suas janelas e, até onde seu braço alcançar, suas paredes externas como lhe [14] Tree Tenants,tinta e aquarela, 33x21cm, Viena,
couber. 1973.
Regulamentos que proibem ou colocam restrições neste direito de janela devem ser
ignorado.
É seu dever ajudar a vegetação em seus direitos com todo o meio disponível a você. Fonte: SCHMIED, Wieland. Hundertwasser
Natureza livre deve crescer onde quer que a chuva e a neve caiam; o que é branco 1928-2000 Personality, Life, Work. Taschen, Köln,
no inverno deve estar verde no verão. Germany: 2000. (p. 25)
Tudo na horizontal sob o céu aberto pertence a natureza.
As estradas e telhados devem ter árvores plantadas.
Deve ser possível respirar o ar da floresta na cidade outra vez.
O relacionamento homem-árvore deve assumir proporções religiosas. Nosso relacionamento com a natureza, com a vegetação,
Então enfim as pessoas entenderão a sentença: a linha reta é atéia particularmente com as árvores, deve ter uma conotação religiosa. O
Düsseldorf, 27, fevereiro de 1972.
próprio ciclo da vida: nascimento, crescimento, envelhecimento e Sob o céu aberto tudo na linha horizontal pertence à natureza; a
deterioração, constitui-se em um rito sagrado. Devemos respeitar plantas linha vertical pertence à humanidade. “A natureza livre deve crescer
como irmãos mais velhos que estavam aí antes de nós e que onde quer que a neve ou a chuva caiam, tudo que fica coberto de branco
provavelmente viverão além de nós. Somos visitantes convidados da no inverno deve estar verde no verão”40. Quando Hundertwasser fala
natureza e devemos comportar-nos de acordo. sobre retornar as terras apropriadas ilegalmente pelo homem à natureza,
A humanidade deve, após ter exercitado sua natureza destrutiva ele efetivamente refere-se a todas as superfícies horizontais. Sobre os
por tanto tempo, firmar um tratado de paz com a natureza. Esse tratado telhados deve haver vegetação para compensar a terra que foi retirada
de paz deve conter ao menos os seguintes pontos: para a construção pelas fundações da casa. Isso torna-se mais difícil com
ruas e praças públicas. Impossível querer cobri-las completamente com
−Devemos aprender a linguagem da natureza para podermos nos telhados cobertos por vegetação. Em contraste, e como um tipo de
comunicar com ela. contra-medida, a natureza prospera em introduzir-se nos “domínios” do
−Devemos viver em harmonia com as leis da natureza. homem quando as árvores-locatárias crescem para fora de janelas e
−“Devemos devolver à natureza qualquer terra da qual ilegalmente nos sacadas, estendendo-se para cima das paredes das casas, estipulando,
apropriamos”.39 assim, uma reivindicação à dimensão vertical. Desta maneira, as
−O ditado bíblico “Tenha domínio sobre a terra” deve ser revogado e árvores-locatárias exigem um tipo de “vingança” por toda a injustiça
substituído por uma aproximação mais cautelosa da natureza. cometida contra a natureza.
−As criações humanas e a natureza não devem mais ser opostas, mas
conduzidas a uma harmonia. Tree tenants are intended to symbolize the
profound reorientation of the coming epoch, when
−Devemos tolerar a vegetação espontânea. the vegetation and trees will once again be accorded
important status as man's partners. (…) Tree
−A sociedade humana deve outra vez tornar-se uma sociedade livre de Tenants pays rent in a more valuable currency than
a human tenant:
desperdícios. O que nós jogamos fora como desperdício deve ser
1. As an oxygen supplier
devolvido ao ciclo natural.
2. As a climatic regulator; extremes of heat and
cold, humidity and dryness are moderated
A arquitetura, conforme a visão da teoria das peles, deve ser essência. Ela deve ser um espaço onde podemos expressar nossos mais
adaptada organicamente ao homem e às necessidades deste, deve ser profundos desejos e medos, deve estar impregnada da essência do
feita “sob medida” como o são suas roupas, a segunda pele. A partir homem que a habita.
Fonte: RAND, Harry. Hundertwasser. Taschen, Köln, Germany: 2007. (p. 40)
[18] Children’s Day Centre, Frankfurt-Heddernheim,
2000.
Fotografia: Stephan Bröcher
Fonte: RESTANY, Pierre. Hundertwasser o Pintor-Rei das Cinco Peles. Taschen, Fonte: RESTANY, Pierre. Hundertwasser o Pintor-Rei das Cinco Peles. Taschen,
Köln, Alemanha: 2002. Köln, Alemanha: 2002.
Hundertwasser considera-se judeu, pintor, austríaco, cidadão
“It seems as if the flag contains another
cosmopolita de um mundo para o qual moldou a imagem de um espaço
flag,” Hundertwasser wrote in an accompanying
feliz na beleza. Para o mundo real, repleto de antagonismos e do text, “advancing, streaming, unrolling and opening
up in a strange and mysterious wind, a flag which is
contraste das consciências de identidade, como a situação belicosa no transformed into another dimension. It is an image
of how matter concentrates and turns into life.
Oriente Médio, o artista acredita no potencial da união dos símbolos (o Quantity is transformed into energy. It is a symbol
of the never ending cycle, a symbol for ever
crescente verde do Islã e a estrela azul de Davi) para alcançar a paz. Em renewing life.”60 (HUNDERTWASSER in
1978 Hundertwasser cria, então, a bandeira e um manifesto metafórico SCHMIED, 2000, p. 265)
Fonte: SCHMIED, Wieland. Hundertwasser 1928-2000 Personality, Life, Work. Fonte: SCHMIED, Wieland. Hundertwasser 1928-2000 Personality, Life, Work.
Taschen, Köln, Germany: 2000. (p. 271) Taschen, Köln, Germany: 2000. (p. 274)
Considerações Finais ecológica proporciona “lugares felizes” na medida em que produz bem
estar e resulta em convivência pacífica. Da mesma forma, a concepção
artística estética pretende captar a visão do artista e desencadear um
processo criativo de visualização que insira a própria arte como
A arte pela arte é uma aberração, a
arquitetura pela arquitetura é um crime. elemento estetizante por excelência no cotidiano das pessoas.
(HUNDERTWASSER in RESTANY, 2002, p. 43)
Muito embora a obra artística de Hundertwasser tenha raízes
Em síntese, Hundertwasser propõe a estetização sócio-ecológica reconhecíveis no Jugendstil austríaco, ornamental e de dimensão
como processo contínuo para o alcance da harmonia universal, a qual crepuscular frente à atmosfera do fin de siècle, liberta-se de qualquer
pressupõe o estado natural liberto de desvios culturais contrários ao decadentismo, ao preconizar estetização tanto no ativismo sócio-
bem-estar do indivíduo, da comunidade ou de nações. Nosso contexto ecológico como na criação artística e, ao final, na obra de arte em si,
cultural limita a criatividade ao prender-nos a estereótipos, clichês, respondendo a urgências imediatas com práticas possíveis que dizem
convenções. A arte estética por excelência nos libera destas amarras, respeito ao processo vital contínuo de sua contemporaneidade.
permitindo o exercício criativo livre e subjetivo conforme as Hundertwasser ocupa-se com detalhes, processos e soluções desde os
necessidades específicas do sujeito que a produz com a espontaneidade e aparentemente mais insignificantes aos de grande dimensão e monta.
a criatividade típicas do estado natural. O declarado engajamento da arte de Hundertwasser, de natureza
O que vem a ser a criação artística de Hundertwasser? A obra de estetizante, ao lançar mão da criação artística como recurso para chegar
arte finalizada? Compreendo o ativismo sócio-ecológico, ou seja, a a soluções frente a uma realidade globalizada e em degradação, implica
atuação prática contínua em defesa da ideologia estetizante, como parte em uma nova concepção de arte. Trata-se de uma arte engajada numa
integrante da obra de arte. Não se trata, portanto, de l'art pour l'art, na causa planetária que, em última instância, luta por uma conscientização
medida em que a luta contínua e pragmática processa transformações que assegure a continuidade da vida na Terra e o bem-estar a seus
práticas positivas, resultando em naturalidade, paz e bem estar tanto ao habitantes. Não se trata apenas de sobrevivência, mas de vivência com
indivíduo como à comunidade, à nação e ao planeta. Por que motivo beleza, e recursos naturais preservados.
essa seria a resultante? Segundo Hundertwasser, a estetização sócio- Defensor da subjetividade no que concerne ao indivíduo,
Hundertwasser posiciona-se igualmente a favor da preservação da humano e a arte como o meio indestrutível entre o homem criador e a
identidade própria de povos e nações. Quanto à ecologia, o artista natureza, que harmoniosamente une a existência à essência.
compreende como conceito planetário. Assim, a identidade de cada Contrário ao totalitarismo racionalista predominantemente
nação, sua autonomia, devem ser preservadas, mantendo-se sua funcional na cultura global propõe recursos qualitativos do empirismo
independência cultural. No entanto, o ativismo ambiental deve adotar naturista como alternativa.
uma visão internacional, sem fronteiras.