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A amizade nevada

Foi numa ilha, mais ao norte de onde vivo. Quer dizer, seria uma ilha, se há muito
os homens, em vez de fazer um aterro, tivessem feito uma ponte para chegar lá. Com o
aterro, os homens do passado mataram o conceito de ilha, talvez os homens do futuro o
ressuscitem de novo. Alguns dizem ser muito caro, outros dizem que casas afundarão se
a natureza voltar a ser o que era, mas isso é outro assunto. O que quero dizer é que
nessa ilha, ou nessa ilha que foi um dia, num domingo qualquer, bem cheio de chuva, a
amizade nevou. Foi um acontecimento que beira o estranho, que margeia mesmo o
fantástico, a amizade de quatro pessoas nevou sobre e dentro de seus corpos.
A primavera já tinha chegado. Esperava-se o sol, daqueles que habitam as
canções, só que ao norte de onde vivo, a chuva é uma constante, um desabamento que
as nuvens entregam às pessoas como uma segunda pele. Nesse domingo não foi
diferente. Tudo o que se poderia fazer numa ilha nos foi proibido: andar pela praia,
visionar pessoas andando pela praia, invejar surfistas, recolher conchas como se fossem
artefatos salvadores, subir em pedras, desvendar a saudade de uma praia, a grandeza de
outra. Talvez até semear-se, ou afundar-se na areia, feito caranguejo, numa enseada
próxima. Coisas banais, mas que somente o sol tem a chave para libertar. É como se a
infância desses atos fosse liberta apenas pelo calor, pelos amarelos e azuis plenos de
uma dia seco.
A chuva traz o recolhimento, traz redes, cobertores, risos e a comunicação ampla
de amigos que se reúnem para comer, beber, e falar de fronteiras, bordas, idas e vindas
ao passado, ao futuro, às escolhas. Falam de perdas e acertos, enquanto bebem uma
caipirinha cuja receita aprenderam na véspera: a caipirinha nevada. E bebem, e bebem e
falam e a neve com sabor de vodca, limão e leite condensado lhes invade garganta,
estômago, veias, alma. E nevam-se como se fossem crianças no Alasca, na Groenlândia
ou alguma ilha na Antártica. Olham o mar à distância, lamentam-se um tanto diante da
impossibilidade de não poder sair de casa, mas é mais para manter o discurso da
normalidade, mais para saberem-se comuns, algo que não são, não depois de nevar,
extensos, intensos, copo após copo. Vento e chuva acasalavam-se lá fora. Eles
acasalavam-se em suas palavras e vinculavam-se ainda mais dentro daquela casa.
As horas estendem-se como todas as horas, porém dentro deles algo andava com
mais vagar, com mais compadecimento por todos aqueles instantes que logo acabariam.
Logo eles teriam que voltar à segunda-feira, às vidas individuais, logo teriam que sair da
ilha, e serem continente de novo. É natural, disseram-se. E combinaram outros encontros,
outras neves doces servidas em taças. E preencheram-se com algo raro nesses tempos
de agora: uma amizade nevada.

Rubens da Cunha

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