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MESA DE BILHAR

Gui Deal

Era noite e a respiração do menino estava muito ofegante. Mais uma vez, ele se
controlava para não chorar, pois não queria chamar a atenção de ninguém. Não tinha
mais esperança de que pudessem lhe ajudar. Engoliu as lágrimas e evitou fazer qualquer
barulho. Ou seria pior.
Tentava ser forte, mas a solidão o deixava completamente inquieto.
A única coisa que ele tinha certeza, em meio a tantos pensamentos, era que não
podia deixar seu pai encontrá-lo. Não depois do ocorrido. Tinha pouca noção de quanto
tempo passou desde a última vez que esteve com o pai. Aquele homem era imprevisível,
principalmente com relação aos castigos. Se pudesse, queria nunca mais encontrá-lo.
Na sua fuga, o primeiro lugar que pensou em se esconder foi debaixo da mesa
de bilhar – na sala de jogos. Ela estava coberta com um lençol branco, muito encardido.
Havia um motivo para a sua escolha. Em diversas ocasiões, ele brincou ali, naquele
local, transformando o espaço em uma cabana. Mas o cheiro de mofo do lençol tinha
piorado.
O que achava mais estranho no pai era aquele homem não ser sempre
agressivo. Havia ocasiões em que até chegava a demonstrar um mínimo de afetividade,
mas isso passava tão rápido, que não permitia qualquer tipo de aproximação. Eram as
oscilações de humor que mais amedrontavam a criança, pois nunca conseguia adivinhar
quando haveria serenidade ou, pelo contrário, quando ele sofreria com aquelas
explosões de fúria. E aumentaram depois do funeral.
O falecimento da esposa deixou o pai muito abalado. O menino, muito
pequeno, mal se recordava dos momentos passados ao lado da mãe. O pai destruiu todas
as fotos em que ela aparecia, fazendo com que ficasse faltando um referencial para
ambos. Gostava de imaginar como seria bom ter passado mais tempo ao lado dela.
Mas os pensamentos o assombravam.
Tudo tinha acontecido de modo repentino.
Antes, naquele dia, tinha levado mais uma surra.
Já tinha perdido a conta de quantas vezes o pai o havia machucado.
Não queria pensar nisso, mas não conseguia evitar. E continuou lembrando.
Normalmente, o menino brincava em seu quarto. Mas o pai havia saído e ele
decidiu levar alguns brinquedos até a longa escada que dava acesso ao primeiro andar.
Ela era curva e feita de carvalho, o mesmo material utilizado no piso de quase toda a
casa. Quando os adultos andavam, era normal que o assoalho cedesse um pouco e
rangesse. Ele utilizava isso a seu favor, para perceber quando alguém estivesse se
aproximando. Também achava interessante que, com o seu peso, a movimentação fosse
bem silenciosa. Esta característica, no seu entendimento, o tornava especial. Era a única
criança da casa.
Quando acabou de armar o palco da brincadeira do dia, seu pai chegou, antes do
habitual. Na ânsia de recolher tudo, começou a pegar os carrinhos de metal que estavam
enfileirados, um a um, no parapeito da escada. Já estava acabando quando, sem querer,
encostou em um vaso de cerâmica que ficava posicionado na lateral.
O som da queda daquele objeto foi inesquecível.
Bastou o pai passar por ali, para que toda a sua fúria fosse despertada. Como
se, em questão de segundos, o pai deixasse de ser ele mesmo e assumisse uma outra
identidade, muito mais violenta. Pegou o filho pelo braço e deu uma surra, que parecia
interminável. Em um completo descontrole emocional, colocou para fora toda a sua ira.
Foi nesse momento que o filho escapuliu de suas mãos e rolou escada abaixo.
A queda foi tão longa que o menino conseguiu se lembrar da mãe.
Depois de cair e permanecer deitado ao pé da escada, o menino aproveitou uma
distração do pai e saiu desesperado, em direção à sala de jogos. Entrou e fechou a porta,
silenciosamente, não deixando ninguém perceber a sua manobra de fuga. Escondeu-se,
debaixo da mesa, e ficou parado.
Acabou que o tempo foi passando, a noite caiu e ninguém apareceu.
Embaixo da mesa, ficou vigiando a movimentação na sala vazia e acreditou
que ninguém pensaria em procurar por ele ali. Poderia permanecer seguro.
Sem ter muitas opções, ficou bem quietinho, no escuro – e engoliu o choro.
A sala de jogos era ampla, úmida e aparentava certo abandono, principalmente
devido às teias de aranha. No alto, um lustre de cristal pendia do teto, repleto de
detalhes retorcidos. As paredes eram revestidas com madeira e alguns papéis, um pouco
rasgados. O tom pálido dos desenhos de rosas vermelhas, sobrepostas, fazia grafismos
em espiral. Nas laterais, do teto ao chão, longas cortinas cobriam parcialmente as
janelas de vitrais, deixando alguma claridade entrar, mesmo à noite. Não havia nenhum
quadro na parede e o único relógio da sala estava parado.
A mesa de bilhar, as demais mesas redondas e as caixas de madeira, com
objetos, foram arrastadas para um canto e estavam cobertas com diversos lençóis.
Quando seu pai adquiriu aquela casa, acabou comprando boa parte do antigo mobiliário,
que incluía os móveis da sala de jogos. Os vizinhos comentavam que alguma coisa
esquisita tinha acontecido aos antigos moradores, bem naquele cômodo, embora não
entrassem em muitos detalhes. Na verdade, podia ser boato, pois a casa tinha sido
vendida por herdeiros. Os antigos proprietários faleceram antes da venda.
Deitado de bruços, debaixo da mesa, o menino permanecia no escuro. Seu
corpo estava bem machucado e a cabeça ainda estava latejando. Às vezes, achava que a
dor ficava diferente, passando a incomodá-lo de uma outra forma, como se todo o corpo
doesse. Não tinha sono e seus pensamentos estavam muito confusos, de uma maneira
estranha, como se não conseguisse fixar a sua atenção em nada por muito tempo. Nem
parecia que sua cabana tinha sido ali. De vez em quando, ele mudava de posição.
Depois que a noite avançou, imaginou que o pai havia desistido de procurá-lo,
deixando a busca para o dia seguinte. O silêncio da madrugada fez crescer os ruídos.
Podia ouvir o som da própria respiração – difícil de acalmar, devido à tensão
acumulada.
Em certos momentos, parecia que o rosto do pai vinha na sua imaginação.
Sem perceber, ele demonstrava uma determinação incomum para a sua idade,
buscando forças para permanecer imóvel e silencioso naquele ambiente hostil.
Estava entretido com seus pensamentos quando ouviu um ruído – passos no
teto.
O quarto do menino ficava localizado sobre a sala de jogos.
As batidas do seu coração aceleraram imediatamente.
O medo de que o estivesse procurando retornou com toda força.
Com os pensamentos desconexos, se lembrou de sua queda na escada.
E os passos continuaram.
Aqueles passos suaves, mas perceptíveis, o assustavam de uma forma tão
instintiva que não conseguia alterar o foco dos seus pensamentos, mudando de assunto.
E sofria tentando evitar aquela situação.
Um turbilhão de memórias alimentou sua angústia e tumultuou sua preocupação.
Lembrou dos castigos em que permanecia parado, de frente para a parede.
Passou a imaginar o pai furioso, à procura dele, com um cinto nas mãos.
Quando começou a deixar de lado as hipóteses absurdas, outro barulho ecoou.
Uma mistura de sentimentos passou a dominá-lo: medo, ansiedade, curiosidade
e até uma vontade de não ter saído da cama naquele dia. Nunca tinha reparado que
podia pensar em tantas coisas ao mesmo tempo. A movimentação de suas ideias o
absorveu de tal forma que ele chegou a esquecer as dores do corpo. Nem teve mais
vontade de chorar e só queria sumir.
Tudo o que o torturava estava representado, naquele momento, pela pessoa que
andava no seu quarto, em plena madrugada. Estava tão confuso que decidiu parar de
pensar no assunto, torcendo para que o silêncio voltasse ao normal.
No segundo andar, os passos foram em direção à janela do quarto.
Decidiu levantar o lençol que cobria a mesa de bilhar e olhar ao redor.
Nada mudara na sala de jogos, exceto as vibrações que vinham do teto.
Descontrolado, se contorceu em calafrios. Suas pernas tremiam e seu corpo
cambaleava para os lados, em espasmos involuntários. Balançava muito, dos pés à
cabeça, e um vazio tomou conta do seu estômago.
Outro ruído.
Tomou uma resolução: tinha que esquecer o que estava acontecendo no quarto.
Não se interessava mais por aquela pessoa, nem pelas suas intenções – queria
desaparecer. Tudo parecia rodar ao seu redor e sua visão o enganava: estava vendo
cores na escuridão.
Mais um som.
Agora, no andar de cima, os passos foram em direção à porta do quarto.
Começou, então, a arquitetar um plano de fuga da casa – algo que fosse rápido.
Mas não conseguia pensar em nenhum lugar para ir. Teria que pegar mais algumas
roupas, mas elas estavam no quarto. Teve certeza que acabaria sendo descoberto e que
nenhum lugar da casa era seguro. Imaginou uma fuga tão espetacular que ninguém
perceberia. Estava tão absorto em possibilidades, que não se deu conta da passagem do
tempo. Quando deu por si, ouviu o som de passos suaves vindo pelo corredor do
primeiro andar, bem direção daquela sala.
Não conseguia acreditar.
Os passos prosseguiram, um a um, até parar na frente da porta da sala de jogos.
Em um segundo, que durou uma eternidade, o coração do menino parou.
Pensou que nada daquilo era realidade e que, talvez, estivesse em um pesadelo.
O silêncio que se seguiu, depois disso, também foi horrível – ele não conseguia olhar,
nem piscar, nem respirar. Só tinha certeza que alguém estava parado bem diante da
porta. Uma presença.
Na confusão mental que se seguiu, o menino passou a ouvir um som de
zumbido. Era algo muito fino e contínuo, cuja fonte emanava do outro lado daquela
porta fechada. Parecia diferente de tudo o que já tinha ouvido e hipnotizava o seu
íntimo.
Era preciso que não fosse notado, no seu esconderijo. Passou a rezar para que
aquela pessoa o deixasse em paz e fosse embora. A porta se abriu.
Em um transe, ficou aguardando a próxima movimentação. O ranger do
assoalho foi ouvido na sala e o estranho zumbido aumentou – de uma forma
angustiante.
Ele estremeceu e mais um arrepio percorreu o seu corpo.
Por alguns segundos só havia o zumbido.
Teve certeza de que era um sonho terrível.
E uma voz ecoou, chamando pelo seu nome.
Continuou quieto, de olhos bem fechados.
A voz ordenou que ele deixasse o seu abrigo.
Percebeu que não tinha mais forças para lutar. E obedeceu.
Apertando os olhos, só conseguiu delinear a sombra de um homem na
escuridão. Era um adulto e não se parecia com nenhum morador daquela casa.
O menino não conseguia acreditar que nada estivesse realmente acontecendo.
Aquele zumbido lembrava uma interferência sonora e as coisas estavam bem diferentes.
As interações com aquele homem transcorriam de modo inexplicável – ele ouvia o som
daquela voz, nos seus pensamentos, mas as palavras não pareciam estar sendo
articuladas. E as respostas do menino eram emanadas da mesma forma, sem articulação.
Parecia que todos os pensamentos da criança estavam expostos, enquanto
aquele homem conseguia manter os seus segredos. Teve certeza que não se parecia com
ninguém que já tivesse visto, anteriormente, durante toda a sua vida.
Sentiu que o estranho exigia que o acompanhasse – e ambos saíram da sala.
O corredor estava escuro, mas conseguia delinear as sombras de todos os
móveis. Olhou para os dois lados e prosseguiu do seu jeito, sem produzir quase nenhum
som. Ambos foram na direção da porta da casa, caminhando normalmente.
Quando estavam próximos da entrada da casa, algo chamou atenção do
menino: a silhueta de outro adulto, de pé, no início da longa escada curva. O vulto
estava parado, exatamente onde o menino tinha caído, naquele dia, após levar uma surra
do pai.
Também não se parecia com ninguém que o menino conhecesse.
O menino evitou pensar e prosseguiu, silenciosamente, apenas observando, até
que os três se encontraram, na base da escada. Os dois adultos o olharam de um modo
significante, mas ele não entendeu exatamente o que ambos queriam lhe dizer.
Apenas sentia o zumbido latejando na mente – e a vibração ganhou força.
O segundo homem afastou-se para o lado e o menino finalmente compreendeu.
No chão, ao pé da escada, havia uma criança deitada – era ele próprio.
Lá fora, a escuridão, sem estrelas, tinha uma atmosfera pesada. Como um véu.
A noite inteira.
O tempo passava, mas quase nada se movia.
Apenas sombras, deslizando no cemitério. Bem ao lado da floresta.
Havia flores, mas mal eram percebidas.
Só uma coruja crocitava na amendoeira – e seus galhos cobriam a solidão.
O desespero, adormecido, estava debaixo do solo.
Naquilo que jaz sem ter paz.
Alguém precisava chorar, mas ninguém tinha lágrimas.
Alguém precisava rezar.
A fé tinha sido carcomida.
E tudo se resumia ao mistério.
Um morcego colidiu contra a vidraça de uma das janelas da casa e, como se
fosse uma alma perdida, o vento continuou gemendo.

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