Você está na página 1de 5

Movimento - Ano 2 - N.

2 - Junho/95

Na área da educação física fala-se mui-


to, atualmente, sobre o corpo. Juntamente com
esse substantivo, imprime-se uma série de ad-
jetivos. Podemos aqui citar alguns: esbelto, sau-
dável, bonito, sensual, livre, flácido, feio, re-
primido, firme, mole, natural, holístico, moder-
no, consciente, inteiro, repugnante, prazeroso,
gordo, magro, etc. Os profissionais da educa-
ção física trabalham com o ser humano sobre e
através do seu corpo e lidam, por extensão, com
os adjetivos impressos no corpo. Por isso, tor-
na-se importante a reflexão sobre o tema.

Gostaríamos, inicialmente, de colocar


algumas questões: Como definir um corpo es-
belto? Como definir um corpo bonito, ou um
Os significados do corpo na cultura e as corpo atraente, ou um corpo consciente? Como
implicações para a Educação Física saber se o corpo já chegou ao estágio de liber-
dade tão sonhado? O que dizer, então, de um
corpo feminino flácido, gordo, considerado
deselegante nos dias de hoje, mas que era, há

Jocimar Daolio*

24
Movimento - Ano 2 - N. 2 - Junho/95

não muito tempo, considerado sensual e à cultura. Quando se fala do corpo livre, pare-
A cultura foi a
inspirava pintores renomados? O que dizer ce que se busca um corpo que não seja escra-
do conceito de saúde, associado vizado ou moldado pelas regras sociais. Ouvi- própria condição
antigamente a um corpo robusto, até mesmo mos até certos excessos como "liberar o lado de sobrevivência da
gordo, c atualmente relacionado a um corpo animal do corpo". Como se o corpo e o ho- espécie. Portanto,
magro? (Como se magro fosse sempre mem não fossem eminentemente culturais. pode-se dizer que a
sinônimo de saudável!) E o corpo já não tão Como se se quisesse achar um corpo ainda não natureza do
jovem, sobre o qual são impostos uma série atingido pela cultura ou anterior a ela. homem é ser um
de "consertos" e "reparos" para parecer ser cultural.
(não para ser) novo, tais como plásticas, O corpo é uma síntese da cultura, por-
cremes anti-rugas, dietas rejuvenescedoras, que expressa elementos específicos da socie-
ginásticas, esportes? Quem define esses dade da qual faz parte. O homem, através do
atributos a respeito do corpo? Quem de- seu corpo, vai assimilando e se apropriando dos
termina os critérios para se classificar o valores, normas e costumes sociais, num pro-
corpo num ou noutro grupo? cesso de inCORPOração (a palavra é signifi-
cativa). Mais do que um aprendizado intelec-
Para discutir com mais tual, o indivíduo adquire um conteúdo cultu-
profundidade estas questões, estamos ral, que se instala no seu corpo, no conjunto
utilizando um referencial cultural. Não de suas expressões.
podemos imaginar um ser humano que não
seja fruto da cultura e também não Cada gesto que fazemos, a forma como
podemos imaginar um corpo natural. nos sentamos, a maneira como caminhamos,
Portanto, qualquer adjetivo que se associe os costumes com o corpo da gestante (a men-
ao corpo é fruto de uma dinâmica cultural sagem hoje é que ela se movimente, ao contrá-
particular, e só faz sentido num grupo rio de poucos anos atrás), os cuidados com o
específico. O homem só chegou ao seu bebé... tudo é específico de uma determinada
estágio aluai de desenvolvimento devido cultura, que não é melhor nem pior que qual-
a um processo cultural de apropriação de quer outra. A forma de chutar, os cuidados
comportamentos e atitudes que, inclusive, higiênicos com o corpo, os esportes que se
foram transformando o seu componente praticam numa determinada época, num
biológico. Não é possível desvincular o determinado local, são influenciados pela
homem da cultura. O que o diferencia de cultura. As brincadeiras, os tipos de ginástica,
outros animais, principalmente, é a sua os cuidados estéticos com o corpo... enfim,
capacidade de produzir cultura. Cultura tudo é influenciado pela cultura. Numa
essa que não é um ornamento, um algo a multidão, pode-se notar certos
mais que se sobrepôs à natureza animal. A comportamentos corporais comuns, que
cultura foi a própria condição de caracterizam e padronizam um determinado
sobrevivência da espécie. Portanto, pode- povo. Aliás, como relata RODRIGUES
se dizer que a natureza do homem é ser um (1987), pode-se reconhecer um brasileiro num
ser cultural {GEERTZ, 1978). outro país pela sua forma de andar e
gesticular, sua postura, seus movimentos cor-
Infelizmente, no meio acadêmico e porais. Duas seleções de voleibol, jogando com
profissional da educação física, essa as mesmas regras e técnicas, e com sistemas
problemática ainda não é compreendida no táticos similares, possuem estilos diferentes,
âmbito de um conhecimento antropológico. um jeito característico de praticar o voleibol
A ênfase na formação profissional em ou o futebol, que reflete tradições culturais dis-
educação física ainda se refere ao homem e tintas.
ao seu corpo como entidades
primordialmente biológicas.' Temos Ao se pensar o corpo, pode-se incorrer
ouvido comentários sobre o corpo que no erro de encará-lo como puramente biológi-
embutem uma noção que separa a natureza co, um patrimônio universal, já que homens
da cultura. Quando se defende a procura por
um corpo natural, está se falando que é
possível encontrar um corpo pré-cultural,
ou que seja imune
25
Movimento - Ano 2 - N. 2 - Junho/95

de nacionalidades diferentes apresentam seme- pecífico que incide sobre toda e qualquer ativi-
lhanças físicas. Entretanto, para além das se- dade corporal o que impede de pensar o corpo
melhanças ou diferenças físicas, existe um con- como um dado biológico. O que define corpo é
junto de significados que cada sociedade escre- o seu significado, o fato dele ser produto da
ve nos corpos dos seus membros ao longo do cultura, ser construído diferentemente por cada
tempo, significados estes que definem o que é sociedade, e não as suas semelhanças biológi-
corpo de maneiras variadas. cas universais.

Estamos falando das técnicas corporais, Fica evidente, portanto, que o conjunto
que Marcel Mauss, um antropólogo francês, de posturas e movimentos corporais represen-
definiu, já na década de 30, como as maneiras tam valores e princípios culturais.
de se comportar de cada sociedade. Mauss con- Conseqüentemente, atuar no corpo implica em
siderou os gestos e os movimentos corporais atuar sobre a sociedade na qual este corpo está
como técnicas próprias da cultura, passíveis de inserido. Todas as práticas institucionais que
transmissão através das gerações e imbuídas de envolvem o corpo humano - e a Educação
significados específicos. Técnicas corporais Física faz parte delas - sejam elas
culturais, porque toda técnica é um hábito tra- educativas, recreativas, reabilitadoras ou
dicional , que passa de pai para filho, de gera- expressivas, devem ser pensadas neste
ção para geração. Segundo ele, só é possível contexto, a fim de que não se conceba sua
falar em técnica, por ser cultural (MAUSS, realização de forma reducionista, mas se
1974, v.2). considere o homem como sujeito da vida
social.
KOFES (1985), reforçando esse ponto de
vista, afirma que o corpo é expressão da cultu- Entretanto, os profissionais de educação
ra, portanto cada cultura vai se expressar atra- física, cotidianamente, utilizam o termo técni-
vés de diferentes corpos, porque se expressa ca não no sentido que o fez Mareei Mauss, de
diferentemente enquanto cultura. É nesse con- um ato cultural, mas como um conjunto de
texto que DAMATTA (1987) pôde afirmar que movimentos considerados sempre correios, pre-
existem tantos corpos quanto há sociedades. cisos, melhores do que outros. Nas aulas, o alu-
O corpo é uma no melhor é aquele que chega mais próximo da
O corpo humano não é um dado pura- técnica considerada certa pelo professor. Fala-
síntese da mente biológico sobre o qual a cultura impinge mos de um andar correto, de um correr ade-
cultura, porque especificidades. O corpo é fruto da interação quado, de uma postura melhor, de um corpo
expressa ele- natureza/cultura. Conceber o corpo como me- perfeito, desconsiderando, muitas vezes, que os
mentos específi- ramente biológico é pensá-lo - explícita ou im- movimentos são também culturais. A especifi-
cos da sociedade plicitamente - como natural e, cidade de raça humana é se apresentar e se dis-
da qual faz parte. consequentemente, entender a natureza do por através de grandes diferenças. Embora se
homem como anterior ou pré-requisito da apresentando diferentemente, os homens não
cultura. SANTOS (1990) critica os que perdem a condição de membros da espécie hu-
propõem a volta a um suposto corpo natural mana.
não atingido pela cultura. Segundo ele, não se
pode esquecer da natureza necessariamente Acreditamos já ser possível pensar no
social de uso do corpo, sendo possível duplo sentido do termo Cultura Corporal. No
somente pensar em novos usos do corpo, já primeiro, que rebatemos, se pressupõe uma úni-
que a cultura é passível de reinvenções e ca técnica sobre o corpo; a palavra cultura acaba
recriações. sendo usada como sinônimo de treinamento,
adestramento do corpo. É neste sentido que ter-
RODRIGUES afirma que "(...) nenhuma mos como culturismo e fisioculturismo são uti-
prática se realiza sobre o corpo sem que tenha, lizados, constituindo-se em mais um discurso
a suportá-la, um sentido genérico ou específi- sobre o corpo, apenas uma das técnicas sobre
co" (1986, p.64). É justamente esse sentido es- ele colocadas. Não a única, nem a melhor.

26
Movimento - Ano 2 - N. 2 - Junho/95

O sentido de Cultura Corporal que utili- fessores de Educação Física possuem? Que
zamos parte da definição ampla de Cultura e conjunto de significados a respeito do corpo
diz respeito ao conjunto de movimentos e hábi- possuem os freqüentadores de academias de
tos corporais de um grupo específico. E nessa ginástica? Qual é o universo simbólico a res-
concepção que se pode afirmar que não existe peito do corpo que técnicos esportivos possu-
um discurso puro do corpo. O corpo não fala em? Essas perguntas somente agora começam a
sobre o corpo, será apenas mais um discurso ser formuladas, ainda não sendo possível
sobre o corpo. Em uma dada época, num deter- respondê-las de forma mais profunda.
minado contexto, um discurso prevalece sobre
o outro. Em outros termos, não há corpo livre, A intenção destas reflexões foi somente a
mas discursos sobre corpo livre; não há corpo de alertar que os profissionais de educação
consciente, mas discursos sobre corpo consci- física, por trabalharem com o homem através
ente. KOFES (1985) discutiu de forma perti- do seu corpo, estão trabalhando com a cultura
nente esta questão do discurso do corpo X dis- impressa nesse corpo e expressa por ele. Por-
curso sobre o corpo, afirmando que é necessá- tanto, mexer no corpo é mexer na sociedade
rio manter as seguintes indagações quando se da qual esse corpo faz parte. O profissional
aborda esse tema: "(...) o que a sociedade está pode fazer isso de forma explícita, atento para
afirmando dos corpos? que corpos? que indivi- as conseqüências do seu trabalho, ou de forma
dualidades? que sociedades?"(p.57). implícita e inconseqüente. Parece-nos evidente
tentarmos estar atentos e conscientes em relação
Na Educação Física brasileira, atualmen- ao papel do corpo na cultura.
te, começa a ser utilizado o termo Cultura Cor-
poral em sentidos próximos daquele por nós REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
defendido. No livro Metodologia do Ensino de
Educação Física (BRACHT, V. et al. 1992, BETTI, M. Ensino de primeiro e segundo graus:
p.39) encontramos a seguinte referência: "(...) educação física para quê? Revista Brasi-
a materialidade corpórea foi historicamente leira de Ciências do Esporte, v.13, n.2,
construída e, portanto, existe uma cultura cor- p.282-7,1992.
poral, resultado de conhecimentos socialmen-
te produzidos e historicamente acumulados BRACHT, V. et al. Metodologia do ensino de
pela humanidade (...)". PEREIRA (1988) fala educação física. São Paulo, Cortez, 1992.
de uma cultura física como "(...) toda a parcela
da cultura universal que envolve o exercício DAMATTA, R. O corpo brasileiro. In: STRO-
físico, como a educação física, a ginástica, o trei- ZENBERG, I.(org.). De corpo e alma.
namento desportivo, a recreação físico-ativa, a Rio de Janeiro, Comunicação Contem-
dança etc."(p.20). Betti (1992) lembra que FEIO porânea, 1987.
(s.d.)2 já se referiu a uma cultura física como
parte de uma cultura geral, que contempla as GEERTZ, C. A interpretação das culturas. Rio
conquistas materiais e espirituais relacionadas de Janeiro, Zahar, 1978.
com os interesses físico-culturais da sociedade.
KOFES, S. E sobre o corpo, não é o próprio
A pesquisa antropológica, embora corpo que fala? Ou o discurso desse corpo
incipiente na área, pode ser útil na medida em sobre o qual se fala. In: BRUHNS,
que se preocupar com os discursos sobre o H.T.(org.). Conversando sobre o corpo.
corpo, ou, melhor dizendo, com as representa- Campinas, Papirus, 1985.
ções sociais que suportam as várias concep-
ções de corpo, concepções essas que justifi- MAUSS, M. Sociologia e antropologia. São
cam e orientam determinadas práticas profis- Paulo, EPU/EDUSP, 1974. 2v.
sionais num grupo específico e numa dada épo-
PEREIRA, F.M. Dialética da cultura física:
ca. Qual é a representação de corpo que os pro-
introdução à crítica da educação física,

27
Movimento - Ano 2 - N. 2 - Junho/95

do esporte e da recreação. São Paulo, causas e as conseqüências do processo de


Ícone, 1988. bíologização da educação física. Recomenda-
mos a leitura de nossa Dissertação de Mestrado,
RODRIGUES, J.C. Tabu do corpo. 4.ed. Rio intitulada "A Representação do Trabalho do
de Janeiro, Dois Pontos, 1986. Professor de Educação Física na Escola: Do
Corpo Matéria-prirna ao Corpo Cidadão", Es-
__. 0 corpo liberado? In: STROZENBERG, cola de Educação Física da USO. 1992.
I.(org.}. De corpo e alma. Rio de Janei-
2
ro, Comunicação Contemporânea, 1987. Feio, Noronha. Desporto e política: ensaios
para sua compreensão. Lisboa Compendium.
SANTOS, F.J.A. dos. Considerações sobre a s.d.
"corpolatria". Motrivivência, v .2, n.3, p.53-
4,1990. UNITERMOS
NOTAS
1
Não pretendemos, nesse trabalho, discutir as Educação Física – Cultura – Corpo

* Professor da Faculdade de Educação


Física da UNICAMP

28

Você também pode gostar