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Dewey, Dilthey e Drama: um ensaio em

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de Victor Turner*

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HERBERT RODRIGUES JOHN C. DAWSEY
Mestrando em Antropologia Social pelo PPGAS/ Professor Livre-Docente do Departamento de
FFLCH-USP e membro do Núcleo de Antropo- Antropologia da FFLCH-USP e coordenador
logia da Performance e do Drama (NAPEDRA/ do Núcleo de Antropologia da Performance e
USP).** do Drama (NAPEDRA/USP).

De todos os estudos e ciências humanas, a que classi�camos hoje, dentro da tradição oci-
antropologia é a que está mais profundamen- dental, como “religiosos”, “morais”, “políticos”,
te enraizada na experiência social e subjeti- “estéticos”, “proverbiais”, “aforísticos”, de “sen-
va do investigador. Nela, toda avaliação tem so comum” etc., para ver como e em que medi-
como referência o sujeito, toda observação da essas conclusões iluminam ou se relacionam
é �nalmente apreendida “na batida do pul- com as nossas questões, di�culdades, proble-
so”. Evidentemente, muitas coisas podem ser mas, ou alegrias individuais do presente. Cada
mensuradas, consideradas, contadas e subme- movimento de fricção entre as madeiras duras
tidas à análise estatística. Porém, todos os atos e brandas da tradição e do presente é poten-
humanos estão impregnados de signi�cado, e cialmente dramático. Em caso de venerarmos
signi�cado é difícil de ser mensurado, embora ditos ancestrais, talvez seja preciso – conclui-
possa ser compreendido, mesmo que apenas mos com pesar – desfazer-nos das alegrias do
de modo fugaz e ambíguo. O signi�cado sur- presente ou abandonar a exploração sensível do
ge quando tentamos associar o que a cultura e que percebemos como desenvolvimentos sem
a língua cristalizaram a partir do passado com precedentes do entendimento humano mútuo
o que sentimos, desejamos e pensamos em re- e das formas relacionais.
lação ao instante presente da vida. Em outras Conseqüentemente, teremos o auto-sacrifí-
palavras, retomamos as conclusões que nossos cio por um ideal, se tivermos fé na autoridade
ancestrais estabeleceram como modos culturais de uma cultura herdada do passado. Mas se a
tragédia aprova essa postura, os novos cami-
* TURNER, Victor. 1986. “Dewey, Dilthey, and Dra- nhos de orientação para a modernidade podem
ma: An Essay in the Anthropology of Experience” In rejeitar o resultado do auto-sacrifício e sugerir
Turner, Victor W. & Bruner, Edward M. (eds.) �e alternativas que podem parecer problemáticas,
Anthropology of Experience. Urbana and Chicago,
pelo menos para um público geral ainda não
University of Illinois Press, pp. 33-44.
** Agradeço a Evelise Paulis, a André-Kees de Moraes
saído do confortável berço da tradição. Uma
Schouten e a Danilo Paiva Ramos pela colaboração experiência desse tipo é da própria natureza do
na tradução. drama – tanto do drama social, onde os con�i-

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tos são trabalhados na ação social, quanto do importante aspecto. Dewey (1934) sustentou
drama de palco, onde eles se espelham numa que as obras de arte, incluindo obras teatrais,
multiplicidade de enredos hipotéticos, símbo- são “celebrações, reconhecidas como tais, da
los, e enquadramentos estéticos experimentais. experiência cotidiana” (ordinary experience).
Entretanto, é possível que não haja nenhum Ele estava, evidentemente, rejeitando a tendên-
confronto absoluto entre o passado e o presen- cia nas sociedades capitalistas de colocar a arte
te, o passado coletivo e o presente pessoal e exis- num pedestal, separada da vida humana, mas
tencial. Todo antropólogo sabe que qualquer comercialmente valiosa dentro de normas es-
campo sociocultural coerente contém muitos tabelecidas por especialistas esotéricos. Dewey
princípios contraditórios, todos consagrados disse: “Até mesmo uma experiência simples, se
pela tradição. No teatro japonês, por exemplo, for uma experiência autêntica, é mais adequada
as versões Bunraku e Kabuki de Chushingura, para dar uma pista à natureza intrínseca da ex-
a famosa fábula dos quarenta e nove Rōnin, periência estética do que um objeto já colocado
mostram a tensão entre duas lealdades igual- à parte de qualquer outro modo de experiên-
mente axiomáticas, mas con�itantes – uma cia” (citado em McDermott 1981: 526). Tudo
para com o senhor feudal e outra para com a isso e mais a esse respeito encontra-se no seu
ordem imperial. A obediência a ambos poderia grande livro Art as Experience, publicado quan-
signi�car a morte aos detentores da vingança. do Dewey tinha setenta e cinco anos de idade.
A subordinação da lealdade feudal à lei do es- Em meu livro From Ritual to �eatre (1982:
tado poderia ter sido uma perda humilhante 17-18), ensaiei uma etimologia da palavra in-
de identidade social formada sob os princípios glesa “experiência”, derivando-a da base indo-
samurai de honra e de vergonha. Mas, algo européia *per-, “tentar, aventurar-se, arriscar”
subversivo e oculto ocorre no drama de palco. – podemos ver como seu duplo, “drama”, do
A burocracia Tokugawa, com sua extensa des- grego dran, “fazer”, espelha culturalmente o
personalização das relações, está sendo silen- “perigo” etimologicamente implicado na pala-
ciosamente respondida por gestos marcantes e vra “experiência”. O cognato germânico de per
complexos do teatro que rea�rmam as paixões relaciona experiência com “passagem”, “medo”
contra as legalizações – aquelas grandes paixões e “transporte”, porque p torna-se f na Lei de
que Samuel Coleridge, referindo-se aos heróis Grimm. O grego peraō relaciona experiência a
trágicos shakespearianos, declarou serem “ateus “passar através”, com implicações em ritos de
que acreditavam em nenhum futuro”. No en- passagem. Em grego e latim, experiência asso-
tanto, as paixões estão sob controle e chegam a cia-se a perigo, pirata e ex-per-imento.
uma honrosa consumação através de um ema- Há aqui uma dicotomia que Wilhelm Dil-
ranhado de meios tortuosos – e de modos que they (1979 [1914]: 210) imediatamente cap-
poderiam ter chocado Aldous Huxley, com seu tou na sua distinção entre mera “experiência” e
dito de que “maus meios não produzem bons “uma experiência”. A mera experiência é, sim-
�ns”. Isso, se ele não fosse um homem com ca- plesmente, a passiva resignação e aceitação dos
pacidade para a ironia e consciente das ambi- eventos. “Uma experiência”, como uma pedra
güidades éticas. num jardim de areia Zen, destaca-se da uni-
Passemos agora para a visão de John Dewey formidade da passagem das horas e dos anos e
sobre a experiência, da qual parcialmente com- forma aquilo que Dilthey chamou de uma “es-
partilho, mas que – devo parcialmente con- trutura da experiência”. Em outras palavras, ela
cluir – precisa ser superada em relação a um não tem um início ou um �m arbitrários, recor-

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tados do �uxo da temporalidade cronológica, cado naquilo que se apresentou de modo des-
mas tem o que Dewey chamou de “uma ini- concertante, seja através da dor ou do prazer, e
ciação e uma consumação”. Ao longo da vida, que converteu a mera experiência em uma ex-
cada um de nós já teve certas “experiências” periência. Tudo isso acontece quando tentamos
que foram formativas e transformativas, isto é, juntar passado e presente.
seqüências distinguíveis de eventos externos e É estruturalmente irrelevante se o passado
de reações internas a eles tais como iniciações é “real” ou “mítico”, “moral” ou “amoral”. A
em novos modos de vida (o primeiro dia na es- questão é se diretrizes signi�cativas emergem
cola, o primeiro emprego, entrada no exército, do encontro existencial na subjetividade, da-
cerimônia de casamento), aventuras amorosas, quilo que derivamos de estruturas ou unida-
o envolvimento naquilo que Emile Durkheim des de experiência prévias numa relação vital
chamou de “efervescência social” (uma campa- com a nova experiência. Isso é uma questão
nha política, uma declaração de guerra, uma de signi�cado, não meramente de valor, como
causa célèbre tais como o caso Dreyfus, o Water- Dilthey entendia esses termos. Para ele, o va-
gate, a crise dos reféns iranianos ou a Revolução lor pertencia essencialmente a uma experiência
Russa). Algumas dessas experiências formativas num presente consciente, em seu prazer afe-
são altamente pessoais, outras são partilhadas tivo ou no fracasso deste. Mas os valores não
com grupos aos quais pertencemos por nasci- estão signi�cativamente conectados, eles nos
mento ou escolha. Dilthey via tais experiências bombardeiam como amontoados aleatórios de
como tendo uma estrutura temporal ou proces- discórdias e harmonias. Cada valor nos ocupa
sual – elas são “processadas” através de estágios totalmente enquanto prevalece. No entanto,
distinguíveis. Além disso, elas envolveram em para Dilthey, os valores não têm “uma relação
suas estruturações, a cada momento e fase, não musical um com o outro”. É somente quando
simplesmente uma estruturação do pensamen- relacionamos a preocupante experiência atual
to, mas a totalidade do repertório vital humano com os resultados cumulativos de experiências
que inclui pensamento, vontade, desejo e sen- passadas – se não semelhantes, pelo menos re-
timento, sutil e variavelmente interpenetrante levantes e de potência correspondente – que
em muitos níveis. Uma navalha cognitiva de emerge o tipo de estrutura relacional chamada
Occam, reduzindo tudo a abstrações frias e “signi�cado”.
“sem sangue” (isso se pudermos visualizar uma Aqui, o cognitivo se auto-a�rma heroica-
navalha nesses termos), simplesmente não faria mente, pois na maioria das experiências, a emo-
nenhum sentido humano nesse caso. ção e o desejo têm preeminência no início, em
Essas experiências que interrompem o com- pulsos que repudiam todo o passado. Quando
portamento rotinizado e repetitivo – do qual uma guerra é declarada; quando encontramos o
elas irrompem –, iniciam-se com choques de mais desejável amor; quando fugimos do perigo
dor ou prazer. Tais choques são evocativos: físico; ou recusamos nos submeter a uma tare-
eles invocam precedentes e semelhanças de um fa necessária, mas desagradável –, estamos sob
passado consciente ou inconsciente – porque o poder do valor. É a heróica combinação de
o incomum tem suas tradições, assim como vontade e de pensamento que se opõe ao valor
o comum. Então, as emoções de experiências por meio do poder integrativo do signi�cado
passadas dão cor às imagens e esboços revividos relacional. Talvez o valor poderá se transformar
pelo choque no presente. Em seguida ocorre em signi�cado, mas terá de ser, primeiramente,
uma necessidade ansiosa de encontrar signi�- peneirado de maneira responsável. Na maioria

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das sociedades pré-industriais, essa busca árdua da mudança. A forma se apresenta sempre que
pelo signi�cado foi poderosamente reforçada um equilíbrio estável, embora em movimento,
pelos valores culturais coletivos que ofereciam seja alcançado” (citado em McDermott 1981:
às nossas faculdades cognitivas algum suporte 536). Ele argumenta que, mesmo no nível pré-
ancestral, o peso de um passado, senão ético, humano biológico, a vida de qualquer organis-
pelo menos legitimado consensualmente. Nos mo é enriquecida pelo estado de disparidade
dias de hoje, infelizmente, a cultura insiste que e resistência por qual passou com sucesso. A
devemos assumir o fardo pós-renascentista de oposição e o con�ito são superados e, de fato,
elaborar cada signi�cado por nós mesmos, um transformados “em aspectos diferenciados de
de cada vez, sem ajuda dos outros, a menos que uma vida potencializada e mais signi�cativa”.
escolhamos um sistema tecido por outro indi- Entre os humanos, o
víduo cuja legitimidade coletiva não é maior
que a nossa. Essa é, possivelmente, uma dife- ritmo da perda de integração com o meio am-
rença importante entre o teatro de hoje e os biente e a recuperação da união, não apenas
primeiros tipos de teatro, na medida em que persiste, mas torna-se consciente com ele; suas
o teatro se oferece como espelho cultural do condições são materiais a partir das quais ele ela-
processo de busca de signi�cado num nível bora propósitos. A emoção é o sinal consciente
público e generalizado. As primeiras formas de de uma ruptura, atual ou iminente. O desejo de
teatro transferiram o peso da responsabilidade restauração da união converte a mera emoção
de atribuição de signi�cado do indivíduo para em interesse por objetos como condição de re-
o grupo, embora o sofrimento trágico então te- alizar a harmonia. Com a realização, o material
nha resultado do terror físico do indivíduo, ou de re�exão é incorporado aos objetos como o
pelo menos da relutância extrema face ao dever seu signi�cado. Considerando-se que o artista
social cujo cumprimento poderia signi�car tor- tem um cuidado peculiar com a fase de experi-
mento físico ou mental e até a morte. ência em que a união é alcançada, ele não evita
Na visão de Dilthey, a experiência incita a os momentos de resistência e de tensão. Ele an-
expressão, ou a comunicação, com os outros. tes os cultiva, não por razões intrínsecas, mas
Somos seres sociais e queremos dizer o que por causa de suas potencialidades, trazendo para
aprendemos com a experiência. As artes depen- a consciência viva uma experiência que é total e
dem desse ímpeto para confessar e declamar. una. Em contraste com a pessoa cujo propósito
Os signi�cados obtidos às duras penas devem é estético, o cientista está interessado em proble-
ser ditos, pintados, dançados, dramatizados, mas, em situações em que a tensão entre a maté-
en�m, colocados em circulação. Aqui o ímpe- ria da observação e do pensamento é marcante.
to do pavão para exibir-se não se distingue da Claro, ele se interessa por sua resolução. Mas
necessidade ritualizada de se comunicar. O eu não se acomoda; passa para um outro proble-
e o não-eu, o ego e o não-ego, a auto-a�rmação ma fazendo uso de uma solução anteriormente
e o altruísmo, encontram-se e se fundem em obtida como quem busca um ponto de partida
comunicações signi�cativas. para novas investigações….
Subjacente a todas as artes, Dewey viu uma A diferença entre o esteta e o intelectual é,
conexão intrínseca entre a experiência, seja portanto, um dos lugares onde a ênfase recai
ela natural ou social, e a forma estética. Ele no ritmo constante que marca a interação das
escreveu: “há na natureza, mesmo que abaixo criaturas vivas com o seu ambiente. A questão
do nível da vida, algo além do mero �uxo e fundamental de ambas as ênfases na experiência

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é a mesma, como é também a sua forma geral. se encontra a verdadeira alegria e felicidade da
A idéia esquisita de que um artista não pensa e realização. Há também presente no trabalho de
de que um cientista não faz outra coisa senão Dewey o sentido de que o “tempo de consuma-
pensar é o resultado da conversão de uma dife- ção é também do recomeço” – qualquer tenta-
rença de andamento e de ênfase numa diferença tiva de prolongar o prazer de consumação para
de tipo. O pensador tem seu momento estético além de seu termo natural implica um tipo de
quando suas idéias deixam de ser meras idéias e retirada do mundo e, portanto, uma diminui-
transformam-se em signi�cados corpori�cados, ção e perda de vitalidade.
em objetos. O artista tem seus problemas e pensa A unidade de experiência de Dilthey enfati-
enquanto trabalha. Mas seu pensamento é mais za a cultura e a psicologia, pois ele viu a busca
imediatamente incorporado no objeto. Por con- pelo signi�cado e sua expressão na performan-
ta do distanciamento comparativo de seu �m, o ce como manifestações das fases de luta e con-
cientista opera com símbolos, palavras e signos sumação. Em Dewey, o processo de experiência
matemáticos. O artista realiza seu pensamento tendia mais para o biológico. No entanto, am-
nos próprios meios qualitativos com quais ele bos enfatizaram que a estética tem sua gênese
trabalha, e os termos situam-se tão próximos ao na experiência humana sensível e não procede
objeto que ele está produzindo que se fundem de um domínio ideal, ou de um reino platôni-
diretamente neste.… co de arquétipos superiores às atividades hu-
Considerando-se que o mundo real, o mundo manas vulgares que, supostamente, ele deveria
onde vivemos, é uma combinação de movi- avaliar e organizar. Para os dois �lósofos, as ar-
mento e culminação, de rupturas e reuniões, a tes, incluindo todos os gêneros de teatro, têm
experiência de uma criatura viva é capaz de ter suas origens nas cenas e objetos da experiência
uma qualidade estética. O ser vivo perde e re-es- humana, e não poderiam ser consideradas à
tabelece, de modo recorrente, o equilíbrio com parte deles. O belo é a �or consumada da bus-
o ambiente. O momento de passagem do distúrbio ca desordenada de signi�cado pelos homens e
para a harmonia é o mais intenso na vida. Num mulheres que vivem na complexidade plena
mundo acabado, não seria possível distinguir de sua mútua atração e repulsão na guerra, no
entre o sono e a vigília. Num mundo totalmen- culto, no sexo, na produção econômica e no
te perturbado, não seria possível sequer lutar mercado.
com as condições. Num mundo feito de acor- Como alguns sabem, tenho concentrado
do com os padrões daquele que conhecemos, os meu trabalho num tipo especí�co de unida-
momentos de realização pontuam a experiência de de experiência, a qual chamo de “drama
em intervalos rítmicos (citado em McDermott social”. Trata-se, em seus desdobramentos, de
1981: 536-537, grifos meus). uma forma proto-estética. Em muitas situa-
ções de pesquisa de campo em culturas nota-
A estética, então, refere-se àquelas fases que, velmente diferentes, na minha experiência de
numa dada estrutura ou unidade processual de vida em sociedades ocidentais, e em numerosos
experiência, ou constituem uma realização que documentos históricos, podemos claramente
atinge as profundezas do ser (como Dewey co- discernir o movimento de uma comunidade
loca) de quem tem uma experiência, ou consti- através do tempo como tomando uma forma
tuem os obstáculos e falhas que necessariamente à qual di�cilmente podemos negar o epíteto
fazem parte da alegre luta para alcançar a con- “dramático”. Uma pessoa ou sub-grupo quebra
sumação, além do prazer e do equilíbrio – onde uma regra, deliberadamente ou por compulsão

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interior, num contexto público. Os con�itos so�sticadas de etiqueta. Outras admitem o


entre os indivíduos, setores e facções seguem uso de violência organizada na crise ou como
à ruptura original, revelando embates ocultos ação reparadora, como se pode veri�car em
de caráter, interesses e ambições. Estes resultam exemplos tais como o holmgang dos islandeses
numa crise de unidade e continuidade do gru- (combate individual na ilha), a luta com varas
po, a menos que sejam rapidamente bloqueados dos Nuba do Sudão, e as recíprocas expedições
por uma ação pública reparadora, consensual- dos caçadores de cabeças dos povos da colina
mente empreendida por líderes, guardiões, ou Ilongot em Luzon. Georg Simmel, Lewis Co-
membros mais velhos do grupo social. A ação ser, Max Gluckman e outros indicaram como
reparadora é freqüentemente ritualizada e pode o con�ito – desde que colocado sob controle,
ser empreendida em nome da lei ou da religião. evitando-se o massacre e a guerra – pode inclu-
Os processos judiciais acentuam a razão e a sive realçar a “consciência de pertencimento” a
evidência; os processos religiosos enfatizam as um grupo. O con�ito força os antagonistas a
questões éticas, as maldições ocultas que ope- diagnosticarem as suas causas e, assim fazen-
ram através de bruxarias, ou a ira dos ancestrais do, a se tornarem plenamente conscientes dos
contra as quebras de tabu ou a impiedade dos princípios que os unem para além e acima das
vivos em relação aos mortos. Se um drama so- questões que os cindiram temporariamente.
cial percorrer seu curso completo, o resultado Como insistiu Durkheim, a lei precisa do cri-
(ou “consumação”, como Dewey diria) pode se me e a religião precisa do pecado para se torna-
manifestar através ou da restauração da paz e rem sistemas plenamente dinâmicos, porque,
“normalidade” entre os participantes ou do re- sem “o fazer”, sem a fricção social que acende a
conhecimento social de uma ruptura ou cisão consciência e a auto-consciência, a vida social
irremediável. seria passiva e até inerte.
Claro, esse modelo, como todos os mode- Essas considerações, acredito, levaram Bar-
los, está sujeito a muitas manipulações. Por bara Myerho� (1979) a distinguir “cerimônias
exemplo, a ação reparadora pode falhar, e nesse de�nitórias” de “dramas sociais”, que ela con-
caso haverá um retorno à fase da crise. Se a lei cebeu como um tipo de “auto-biogra�a” co-
e/ou os valores religiosos perderem sua e�cácia, letiva, um meio pelo qual um grupo cria sua
um faccionalismo contínuo e endêmico pode- identidade ao contar para si uma história sobre
rá contaminar a vida pública por longos perí- si mesmo, um processo ao longo do qual ganha
odos. Ou o fracasso de uma ação reparadora vida a “sua Identidade Determinada e De�ni-
numa comunidade local poderá levar a apelos da” (para citar William Blake). Aqui, no sen-
a instâncias superiores situadas em níveis mais tido diltheyniano, o signi�cado é engendrado
inclusivos de organização social – da aldeia ao pela articulação de problemas presentes a um
distrito à província à nação. Ou o ancien régi- rico passado étnico, que então é infundido nos
me pode ser rejeitado in toto, dando início à “feitos e provações” (frase de Dewey) da comu-
revolução. Nesse caso, o grupo poderá ser radi- nidade local. Alguns dramas sociais podem ser
calmente reestruturado, incluindo sua maqui- mais “de�nitórios” do que outros, isso é certo,
naria reparadora. mas muitos dramas sociais contêm, mesmo que
A cultura evidentemente afeta tais aspec- apenas implicitamente, meios de re�exividade
tos, como o estilo e o andamento do drama pública em seus processos reparadores. Ao ati-
social. Algumas culturas procuram retardar as vá-los, os grupos avaliam a sua situação atual: a
de�agrações de crise aberta elaborando regras natureza e a força de seus laços sociais, o poder

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de seus símbolos, a e�cácia de seus controles vida) contêm uma fase liminar, que fornece um
morais e legais, a sacralidade de suas tradições estágio1 (uso esse termo advertidamente) para
religiosas, e assim por diante. estruturas únicas de experiências (o Erlebnis de
O ponto que eu gostaria de ressaltar aqui é Dilthey) em meios isolados da vida mundana
que o mundo do teatro, como nós o conhece- e caracterizados pela presença de idéias ambí-
mos tanto na Ásia como no Ocidente, e a imen- guas, imagens monstruosas, símbolos sagrados,
sa variedade de sub-gêneros teatrais, derivam provações, humilhações, instruções paradoxais
não da imitação, consciente ou inconsciente, e esotéricas, a emergência de tipos simbólicos
da forma processual do drama social completo representados por palhaços e mascarados, in-
ou saciado – ruptura, crise, reparação, reinte- versões de gêneros, anonimatos e muitos ou-
gração, ou cisão (embora o modelo de tragédia tros fenômenos e processos que tenho descrito
de Aristóteles se assemelhe a esse movimento em outros textos como “liminares”. O limen,
seqüencial), mas especi�camente da terceira ou limiar2 – um termo emprestado da segun-
fase, reparação, e, especialmente, da reparação da das três fases dos ritos de passagem de van
como processo ritual. Os rituais reparadores Gennep – é uma terra-de-ninguém entre3 o
incluem adivinhações a respeito das causas es- passado estrutural e o futuro estrutural, tal
condidas de infortúnios, con�itos e doenças como antecipado pelo controle normativo da
(todos estes, em sociedades tribais, estando sociedade sobre o desenvolvimento biológico.
intimamente interconectados e diagnosticados Isso é ritualizado de muitas formas, mas fre-
como sendo gerados por ações de espíritos in- qüentemente os símbolos que expressam uma
visíveis, deidades, bruxos e feiticeiros), rituais identidade ambígua são encontrados numa va-
curativos (que podem freqüentemente envol- riedade expressiva de culturas: �guras andrógi-
ver episódios de possessão de espíritos, transe nas e teriomór�cas,4 combinações monstruosas
xamânico, mediunidade, e estados de transe de elementos retirados da cultura e da nature-
entre os pacientes que são os participantes de za, com alguns símbolos tais como cavernas,
um ritual), e os ritos iniciatórios relacionados representando nascimento e morte, útero e tú-
aos “rituais de a�ição”. Além disso, muitos dos mulo. Às vezes, falo sobre a fase liminar como
ritos que chamamos de “cerimônias de crise da algo que predomina no modo subjuntivo da
vida”, particularmente os de puberdade, casa- cultura, o modo do “talvez”, do “pode ser”, do
mento e morte, indicam, eles mesmos, uma es- “como se”, hipótese, fantasia, conjectura, dese-
pécie de ruptura na ordem costumeira da vida jo – dependendo de qual elemento da trindade
grupal, depois da qual muitos relacionamen- de cognição, afeto e vontade está situacional-
tos entre os membros do grupo devem mudar mente dominante. A vida cotidiana acontece
drasticamente, envolvendo muita competição no modo indicativo, em meio à expectativa
e con�itos potenciais, e até mesmo reais (por da operação invariante de causa e efeito, do
direitos de herança e sucessão, por mulheres, senso comum e racionalidade. A liminaridade
pelos dotes da noiva, lealdade ao clã ou à linha- pode talvez ser descrita como um caos frutí-
gem, entre outras coisas). Os rituais de crise da fero, um armazém de possibilidades, não uma
vida (assim, aliás, como os rituais sazonais) po-
dem ser chamados de “pro�láticos”, enquanto 1. Turner usa o termo stage, que também quer dizer
rituais de a�ição são “terapêuticos”. “palco” (N. da R.).
Todos esses processos rituais de “terceira- 2. Turner usa o termo threshold (N. da R.).
fase” ou “primeira-fase” (no caso de crise da 3. Turner usa a expressão betwixt and between (N. da R.).
4. Turner usa o termo theriomorphic (N. da R.).

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montagem aleatória, mas uma busca por novas se-sagrado, permite uma busca de tais fontes.
formas e estruturas, um processo de gestação, Uma fonte desse excessivo meta-poder é certa-
uma irrupção fetal de modos apropriados de mente o próprio corpo liberado e disciplinado,
existência pós-liminar. com seus múltiplos recursos não explorados
O teatro é uma dessas muitas herdeiras do de prazer, dor e expressão. Uma outra fonte
grande sistema multifacetado que chamamos encontra-se em nossos processos inconscien-
de “ritual tribal”, que abrange idéias e imagens tes, tais como os que ocorrem em estados de
do cosmos e do caos, interdigitando palhaços transe. Trata-se de fenômenos semelhantes aos
e suas folias com deuses e suas solenidades, e que freqüentemente encontrei na África, onde
fazendo uso de todos os códigos sensoriais para senhoras idosas, magras e mal-nutridas, entre
produzir sinfonias para além da música: o en- um cochilo ou outro, dançam, cantam e reali-
trelaçamento da dança, de diferentes tipos de zam atividades rituais durante dois ou três dias
linguagens corporais, canções, cânticos, formas e noites sem parar. Penso que um aumento no
arquitetônicas (templos e an�teatros), incensos, nível de estímulo social, a despeito de como é
oferendas, banquetes ritualizados, pinturas, ta- produzido, pode liberar fontes de energia nos
tuagens, circuncisões, escari�cações, e marca- participantes individuais. O recente trabalho
ções corporais de muitos tipos, a aplicação de sobre a neurobiologia do cérebro (ver d’Aquili,
loções e a ingestão de poções, a encenação de Laughlin & McManus 1979), mostra, entre
tramas míticos e heróicos retirados de tradições outras coisas, como as “técnicas de conduzir o
orais – e muito mais. Os rápidos avanços na ritual (incluindo condução sônica, por exem-
escala e complexidade da sociedade, particular- plo, com instrumentos de percussão) facilitam
mente após a industrialização, �zeram passar o domínio do hemisfério direito, resultando
essa con�guração liminar uni�cada pelo pris- em experiências atemporais, não-verbais, e ges-
ma da divisão do trabalho, com suas especia- talt, diferenciadas e únicas quando comparadas
lizações e pro�ssionalizações, reduzindo cada com as manifestações da funcionalidade do he-
um dos seus domínios sensoriais a um conjun- misfério esquerdo ou a alternação dos hemisfé-
to de gêneros de entretenimento que �orescem rios” (Lex 1979: 146).
no tempo de lazer da sociedade, não mais no Meu argumento tem sido que a antropolo-
lugar central de controle. Apesar do fato de que gia da experiência encontra, em certas formas
o pronunciado caráter sobrenatural do ritual recorrentes de experiência social – entre elas,
arcaico tem sido grandemente reduzido, há si- os dramas sociais –, fontes de forma estética,
nais, no presente, entre gêneros especializados incluindo o drama de palco. Mas o ritual e sua
amputados, de uma busca para recuperar algo progênie, com destaque às artes performati-
da experiência do numinoso, que se perdeu em vas, derivam do coração subjuntivo, liminar,
seu sparagmos, ou desmembramento. re�exivo e exploratório do drama social, onde
Claramente, como Dewey argumentou, a as estruturas de experiência grupal (Erlebnis)
forma estética do teatro é inerente à própria são copiadas, desmembradas, rememoradas,
vida sociocultural, mas o caráter re�exivo e te- remodeladas, e, de viva voz ou não, tornadas
rapêutico do teatro, cujas origens remontam à signi�cativas – mesmo quando, como acon-
fase reparadora do drama social, precisa recor- tece freqüentemente em culturas declinantes,
rer às fontes do poder freqüentemente inibidas “o signi�cado é de que não há signi�cado”. O
na vida do modo indicativo da sociedade. A verdadeiro teatro é a experiência da “vitalidade
criação de um espaço liminar separado, qua- intensi�cada”, para citar Dewey novamente.

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“Em seu auge, signi�ca a completa interpene- Referências bibliográ�cas


tração do eu e do mundo de eventos e objetos”
(citado em McDermott 1981: 540). Quando D’AQUILI, E. G., LAUGHLIN, JR., Charles D., and
isso acontece numa performance, o que pode McMANUS, John. (eds.). 1979. �e Spectrum of Ri-
tual. New York, Columbia University Press.
ser produzido é o que d’Aquili e Laughlin cha-
DEWEY, John. 1934. Art as Experience. New York, Min-
mam de um “fugaz estado de êxtase e sentido ton, Balch & Co.
de união (com duração freqüente de somente DILTHEY, Wilhelm. [1914]. Selected Writings. Ed. H.
alguns segundos) [que] pode ser descrito como P. Rickman. Cambridge, Cambridge University Press,
um arrepio – nada mais que isso – que desce 1976.
pelas costas até um certo ponto” (d’Aquili et LEX, Barbara. 1979. “�e Neurobiology of Ritual Tran-
ce”. In D’AQUILI, E. G., LAUGHLIN, JR., Charles
al. 1979: 177). Um senso de harmonia com
D., and McMANUS, John. (eds.). �e Spectrum of
o universo se evidencia e o planeta inteiro é Ritual. New York, Columbia University Press.
sentido como uma communitas. Esse arrepio, McDERMOTT, J. J. (ed.). 1981. �e Philosophy of John
contudo, deve ser conquistado, para tornar-se Dewey. New York, Putnam’s.
uma “consumação”. Isso, após lidar com um MYERHOFF, Barbara. 1979. Number Our Days. New
emaranhado de con�itos e desarmonias. É o York, Dutton.
TURNER, Victor. 1982. From Ritual to �eatre. New
teatro que melhor exempli�ca o dito de �o-
York, Performing Arts Journal Press.
mas Hardy: “se há um caminho para o melhor,
ele exige um olhar de frente para o pior”. As
transformações rituais ou teatrais não ocorre-
riam de outra forma.

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