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CENTRO EDUCACIONAL ANÍSIO TEIXEIRA

Ensino Médio
1 ª série – Matéria: Filosofia
Prof: Ottávio Rodrigues

Porém o ter sede em si jamais será o desejo seja do que


for, senão o da sua natureza, a mera bebida, e, por sua
Tripartição da Alma na República de Platão vez, o ter fome é-o da comida.
— Assim, cada desejo em si é apenas o desejo de cada
Referência objeto em vista do qual se originou, e o desejo de uma
PLATÃO, República, IV, 437b-441c coisa determinada depende desta ou daquela qualidade
Trad. Maria Helena Rocha Pereira (Ed. Calouste adicional.
Gulbenkian) — Que ninguém nos venha perturbar inadvertidamente,
pretendendo que ninguém tem desejo de uma bebida que
— Ora pois — prossegui eu — estabelecerás que acenar não seja boa, nem de comida que não seja de qualidade.
com a cabeça, ou abaná-la, desejar receber alguma coisa Porque, na verdade, toda a gente tem desejo do que é
ou recusá-la, chamar a si ou repelir, tudo isto é contrário bom. Se, pois, a sede é um desejo, sê-lo-á de uma bebida
entre si, quer se trate de ações, quer de estados – pois ou de qualquer outra coisa que seja boa, e assim nos
nesse ponto não há diferença alguma? outros casos.
— São contrários — replicou ele. — Parece-me que quem tal dissesse teria talvez certa
— Pois quê? — prossegui — Ter sede e ter fome, e os razão.
apetites de um modo geral, e bem assim o desejar e o — Contudo, todo o objeto em relação com outros, em
querer — tudo isto, não o incluirias na classe que determinadas qualidades, está em relação, ao que me
acabamos de referir? Por exemplo, não dirás sempre que parece, com determinado objeto; ao passo que, em si
a alma do que deseja procura o objeto dos seus desejos, mesmo, só está consigo.
ou chama a si o que queria que lhe sucedesse, ou ainda, — Não percebi.
na medida em que queria que qualquer coisa lhe fosse — Não percebeste — perguntei eu — que o que é o
dada, faz sinal de assentimento, em resposta a si mesma, maior não o é senão na qualidade de maior que alguma
como a si mesma, como se alguém a interrogasse, na sua coisa?
procura de o obter? — Absolutamente.
— Direi, sim. — Do que é, portanto, menor?
— Pois então! Não incluiremos o não querer e não — Sim.
consentir nem desejar entre o rejeitar, repelir de si e tudo — E o que é muito maior, é-o do que o que é muito
o mais que é contrário aos anteriores? menor? Ou não?
— Como não? — É.
— Sendo assim, diremos que existe uma classe dos — E o que foi maior, foi maior do que o que era menor, e
desejos e os mais evidentes dentre eles designá-los-emos o que há de ser maior, do que o que há de ser menor?
por sede e fome? — Então porque não?
— Di-lo-emos — respondeu ele. — E relativamente ao mais em face do menos, ao dobro
— Não é um, o da bebida, e outro o da comida? ante a metade, e assim por diante, e também ao mais
— É. pesado ante o mais leve, ao mais veloz ante o mais lento,
— Ora pois, a sede, enquanto tal, seria um desejo, na e ainda ao quente perante o frio e todas as outras coisas
alma, de qualquer coisa mais do que o que nós semelhantes a estas, porventura não será assim?
dissemos? Assim, a sede é sede de bebida quente ou fria, — Absolutamente.
de muita ou de pouca, ou, numa palavra, de que espécie (…)
de bebida; Ou, se à sede se adicionar o calor, produz-se — E a sede — prossegui — não a situarás na categoria,
o desejo do frio, e se se juntar frio, o do quente? Ou se, que de facto tem, das coisas relativas? Ora a sede é
devido à presença de sede em grande abundância, esta relativa...
for grande, causará o desejo de beber em grande — Situo, sim — acudiu ele —. É relativa à bebida.
quantidade, e, se for pequena, em pequena porção?
— Ora tal sede é relativa a tal bebida. Em todo o caso, a lado de fora da muralha norte, percebendo que havia
sede em si não é relativa a muita ou pouca bebida, boa cadáveres que jaziam junto do carrasco, teve um grande
ou má, numa palavra, a uma bebida determinada, mas a desejo de os ver, ao mesmo tempo que isso lhe era
sede em si é, por natureza, relativa apenas à bebida em insuportável e se desviava; durante algum tempo lutou
si. consigo mesmo e velou o rosto; por fim, vencido pelo
— Exatamente. desejo, abriu muito os olhos e correu em direção aos
— Logo, a alma do sequioso, na medida em que sente a cadáveres, exclamando: «Aqui tendes, gênios do mal,
sede, não quer outra coisa que não seja beber, é essa a saciai-vos deste belo espetáculo!»
sua aspiração, esse o seu impulso. — Também ouvi contar isso.
— É evidente. — Esta história, contudo, mostra que, por vezes, a cólera
— Por conseguinte, se, quando tem sede, alguma coisa a luta contra os desejos, como sendo coisas distintas.
puxa, encontrar-se-á nela algo de distinto que tem sede e — De facto, mostra.
que a leva, como um animal selvagem, a beber. — Ora já em muitas outras ocasiões sentimos que,
Efetivamente — já o dissemos — o mesmo sujeito, na quando as paixões forçam o homem contra a sua razão,
mesma parte e relativamente ao mesmo objeto, não pode ele se censura a si mesmo, se irrita com aquilo que,
produzir ao mesmo tempo resultados contrários. dentro de si, o força, e que, como se houvesse dois
— Pois não. contendores em luta, a cólera se toma aliada da sua razão.
— Da mesma maneira, julgo eu, que não seria bem dizer Mas não creio que digas que ela se associa aos desejos,
que, no arqueiro, as mãos dele afastam e puxam o arco quando, tendo a razão determinado que não se devia
ao mesmo tempo, mas sim que uma das mãos afasta, e a proceder contra ela, alguma vez te foi possível sentir
outra puxa. estas reações em ti, nem tão pouco nos outros.
— Absolutamente. — Por Zeus que não!
— Diremos além disso que há pessoas que, quando têm — E então quando uma pessoa julga que comete uma
sede, recusam beber? injustiça? Quanto mais nobre for, tanto menos pode
— Sim, há muitas, que o fazem muitas vezes. encolerizar-se, ainda que passe fome, frio e qualquer
— Então que se dirá acerca delas? Que na alma delas outro sofrimento no gênero, por parte daquele que,
não está presente o elemento que impele mas sim o que segundo ele julga, lhe inflige este tratamento com justiça,
impede de beber, o qual é distinto do que impele e e, como digo, não consente em despertar a sua cólera
superintende nele? contra ele.
— É o que me parece. — É verdade — confirmou ele.
— Porventura o elemento que impede tais atos não —E agora, se uma pessoa se considerar vítima de um a
provém, quando existe, do raciocínio, ao passo que o injustiça? Acaso não ferve e se irrita e luta do lado que
que impele e arrasta deriva de estados especiais e entende ser justo — quer passe fome, quer frio, e todos
mórbidos? os sofrimentos dessa espécie, aguentando firme; e vence,
— Acho que sim. sem desistir da sua nobre indignação, antes de executar o
— Não é, portanto, sem razão que consideraremos que seu propósito ou morrer, ou de ser chamado e acalmado
são dois elementos, distintos um do outro, chamando pela razão que nele existe — como um cão pelo seu
àquele pelo qual ela raciocina, o elemento racional da pastor?
alma, e aquele pelo qual ama, tem fome e sede e esvoaça — A comparação com o que dizes está perfeita. Pois na
em volta de outros desejos, o elemento irracional c da nossa cidade colocamos auxiliares, submetidos aos
concupiscência, companheiro de certas satisfações e chefes, como cães aos pastores.
desejos. — Entendes perfeitamente o que eu quero dizer. Mas,
— Não; é natural que pensemos assim. além disso, vais pensar ainda neste ponto.
— Por conseguinte — prossegui eu — vamos distinguir — Qual?
na alma a presença destes dois elementos. Porém o da — Que relativamente ao elemento irascível, é o contrário
ira, pelo qual nos irritamos, será um terceiro, ou da do que nos parecia há pouco. De fato, julgávamos então
mesma natureza de algum destes dois? que se aproximava do elemento de concupiscência, ao
— Talvez seja da do segundo, o da concupiscência. passo que agora afirmamos que está muito longe disso;
— Uma vez ouvi uma história a que dou crédito: de preferência, toma armas pela razão, quando há luta na
Leôncio, filho de Agláion, ao regressar do Pireu, pelo alma.
— Exatamente. — Não é difícil que se mostre. Até nas crianças qualquer
— Porventura será diferente da razão, ou uma qualquer pessoa pode ver que, mal nascem, são logo cheias de
das suas formas, de maneira que haverá na alma, não irascibilidade, ao passo que a razão, alguns nunca a
três, mas dois elementos, o racional e o concupiscível? alcançam, segundo me parece, e a maioria, só tarde.
Ou tal como, na cidade, esta se compunha de três classes — Dizes bem, por Zeus! Até nos animais selvagens
— a negociante, a auxiliar e a deliberativa — também qualquer pessoa pode ver que é como tu dizes. Além
na alma a terceira servia este elemento irascível, auxiliar disso, também é testemunho o verso de Homero que
do racional por natureza, quando não foi corrompido por referimos acima; batendo no peito, censurou o seu
uma má educação? coração. É bem claro que Homero imaginou aqui um
— É forçoso que seja o terceiro. princípio a repreender o outro: o que raciocinou sobre o
— Sim — confirmei eu — se ele se revelar diferente do que é melhor e o que é pior ao que se irrita sem razão.
racional, como já se mostrou distinto do concupiscível. — O que dizes é absolutamente exato.

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