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A ANÁLISE DAS

POLÍTICAS PÚBLICAS
UNIVERSIDADE CATÓLICA DE PELOTAS
UCPEL

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Pierre Muller
Yves Surel

A ANÁLISE DAS
POLÍTICAS PÚBLICAS

Tradução de
Agemir Bavaresco e Alceu R. Ferraro

Coleção Desenvolvimento Social


3

Pelotas, 2002
EDUCAT

3
Obra originalmente publicada sob o título
L'analyse des politiques publiques
© 1998, Editions Montchrestien, E.J.A.
I.S.B.N. 2-7076-0668-5

© 2002 Agemir Bavaresco e Alceu R. Ferraro

Direitos desta edição reservados à


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PROJETO EDITORIAL
EDUCAT

EDITORAÇÃO ELETRÔNICA
Ana Gertrudes G. Cardoso

CAPA
Luis Fernando Giusti

ISBN 85-

M958a Muller, Pierre


A Análise das Políticas Públicas / Pierre Muller, Yves
Surel; [traduzido por] Agemir Bavaresco, Alceu R.
Ferraro. - Pelotas: Educat, 2002.
156p.

1. Políticas públicas I. Surel, Yves II. Bavaresco,


Agemir III. Ferraro, Alceu IV Título

CDD 361.61

Ficha catalográfica elaborada pela bibliotecária Cristiane de Freitas Chim


CRB 10/1233

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SUMÁRIO

INTRODUÇÃO ............................................................................. 7
O QUE É UMA POLÍTICA PÚBLICA? .................................... 10
UMA POLÍTICA PÚBLICA É UM CONSTRUCTO SOCIAL E UM
CONSTRUCTO DE PESQUISA .......................................................... 11
Uma política pública constrói um quadro normativo de ação 13
Uma política pública como expressão do poder público ........ 17
Uma política pública constitui uma ordem local .................... 19
OS PROBLEMAS POSTOS PELA ANÁLISE DAS POLÍTICAS PÚBLICAS .20
O sentido de uma política pública pode ser "explícito" ou
"implícito" ............................................................................... 21
Decisão e não decisão ............................................................ 22
Política pública e gasto público ............................................. 23
PARA ALÉM DA ABORDAGEM SEQÜENCIAL .................................. 25
TEORIAS DA AÇÃO PÚBLICA: NOVAS ABORDAGENS ... 30
DUAS CONCEPÇÕES TRADICIONAIS DO ESTADO ........................... 31
A abordagem estatal ou a sociedade produzida pelo Estado . 31
A abordagem pluralista ou o Estado produzido pela
sociedade ................................................................................ 35
As duas dimensões da ação do Estado.................................... 37
O NEO-INSTITUCIONALISMO ........................................................ 38
Os elementos fundamentais do neo-institucionalismo ............ 39
Os três neo-institucionalismos ................................................ 41
A ABORDAGEM COGNITIVA DAS POLÍTICAS PÚBLICAS ................. 44
Paradigma, sistemas de crença, referenciais ......................... 45
A produção das identidades .................................................... 47
As lógicas de poder ................................................................. 48
A GÊNESE DA AÇÃO PÚBLICA .............................................. 51
A PROBLEMATIZAÇÃO DOS FENÔMENOS SOCIAIS ......................... 53
A busca das causas ................................................................. 53
A construção de narrações ..................................................... 56
A INSCRIÇÃO NA AGENDA ............................................................ 64
Os prismas institucionais ........................................................ 64
A transformação “pública” do problema ............................... 67
JANELAS POLÍTICAS ..................................................................... 70

5
ATORES E REDES DE POLÍTICAS PÚBLICAS .................... 77
O PAPEL DOS ATORES NA PRODUÇÃO DAS POLÍTICAS PÚBLICAS ... 77
Os repertórios da ação e as fontes dos atores ........................ 79
Grupos de interesse e matrizes cognitivas .............................. 83
O papel específico da mídia .................................................... 85
REDES DE AÇÃO PÚBLICA E GOVERNANÇA ................................... 87
As policy networks .................................................................. 88
O conceito de governança ...................................................... 92
A UNIÃO EUROPÉIA: UM NOVO CONTEXTO DA AÇÃO PÚBLICA .... 95
RACIONALIDADE E IRRACIONALIDADE DA AÇÃO
PÚBLICA ........................................................................................ 99
DECISÃO INENCONTRÁVEL99
A indeterminação da decisão .................................................. 101
A decisão como processo ........................................................ 101
OS CONSTRANGIMENTOS DA DECISÃO ......................................... 104
O peso das regras ................................................................... 104
A decisão como desafio de poder ............................................ 106
O prisma burocrático.............................................................. 108
UMA RACIONALIDADE IMPROVÁVEL ........................................... 110
O modelo da decisão racional ................................................ 110
As críticas do modelo da racionalidade absoluta ................... 113
A DECISÃO COMO PROCESSO COGNITIVO ..................................... 117
A MUDANÇA DA AÇÃO PÚBLICA .......................................... 120
Incrementalismo e aprendizagem ........................................... 121
O incrementalismo .................................................................. 121
A aprendizagem ...................................................................... 124
O PESO DO PASSADO .................................................................... 129
A herança ................................................................................ 129
Os processos de path dependence ........................................... 131
CONJUNTURAS CRÍTICAS E MUDANÇAS DE PARADIGMAS ............. 137
Mudanças de paradigmas e mudanças de políticas ................ 137
As variáveis políticas e a abertura de “janelas” de
oportunidade ........................................................................... 143
BIBLIOGRAFIA ........................................................................... 147

6
INTRODUÇÃO

O Estado é, sem dúvida, o fenômeno político dominante


do século XX, o resultado de um lento movimento de ampliação
das estruturas e das prerrogativas estatais iniciadas com a
passagem do feudalismo em direção à modernidade (Tilly, 1975;
Bendix, 1977). Reivindicando, pouco a pouco, com sucesso uma
gama mais e mais ampliada de funções sociais, o Estado
constituiu-se assim numa forma de “lei do monopólio” (Elias,
1975) em torno de um aparelho burocrático encarregado de
missões mais e mais complexas de regulação social. Última e
maior fase desta dinâmica, o período contemporâneo (depois do
fim do segundo conflito mundial) viu a eclosão, depois a
generalização, do Estado-providência, cujas missões de proteção
social e de redistribuição das rendas pareceram inaugurar uma
nova forma de cidadania (Marshall 1950, Ewald 1986). O lugar
do Estado tornou-se, assim, determinante, sendo sua evolução
simbolicamente ritmada pela variação da taxa dos impostos
obrigatórios no PIB das nações.
Portanto, além deste processo de difusão, “o objeto
Estado” transformou-se também profundamente, a partir das
análises canônicas de Hegel, Marx ou Max Weber. Antes
encarnação da “razão na História”, “braço armado da burguesia”,
ou detentor do “monopólio da violência legítima”, o Estado é
hoje percebido no essencial através de sua ação, seja esta
considerada como positiva ou negativa. Por isso mesmo, estudar
a ação pública não consiste mais verdadeiramente (ver-se-á
mesmo se esta questão não perdeu todo seu sentido) em refletir
sobre o lugar e sobre a legitimidade do Estado, enquanto forma
política abstrata, mas em compreender as lógicas implementadas
nestas diferentes formas de intervenção sobre a sociedade, em
identificar os modos de relação existentes entre atores públicos e
privados e em compreender como a ação pública recobre as
dinâmicas imprecisas e evolutivas da fronteira entre Estado e
sociedade.

7
O descentramento do questionamento sobre o Estado
traduziu-se também, depois de uma vintena de anos, por uma
evolução de modos de compreender a ação pública. Enquanto
que, até então, (pelo menos na Europa), as abordagens
dominantes privilegiavam a dimensão puramente institucional e
administrativa, [daí em diante] apareceram, progressivamente,
outras perspectivas, outros métodos e instrumentos. Saídas de
horizontes disciplinares diferentes, nas fronteiras da sociologia e
da ciência política, essas novas visões se reagruparam hoje, no
essencial, ao redor da análise das políticas públicas.
Originalmente formulada nos Estados Unidos, como um conjunto
de dispositivos de pesquisa, que tinha por ambição fornecer as
receitas do “bom” governo, a policy analysis distanciou-se
progressivamente de sua orientação operacional para tornar-se
uma disciplina por inteiro da Ciência Política, progressivamente
autonomizada nas estruturas de ensino e de pesquisa.
Alimentando pouco a pouco um outro olhar sobre o Estado, a
análise das políticas públicas contribuiu desde então para mostrar
que o Estado não é (não é mais?) esta forma social absoluta na
história.
Enquanto que o movimento da formação do Estado
esteve indissoluvelmente ligado à constituição de “centros”
políticos, definidos sobre uma base nacional, que tiraram
progressivamente as “periferias” de uma grande parte de sua
autonomia (de modo especial pela monopolização da fiscalização
e do poder de decisão), o enfraquecimento destes “centros”
constitui uma das dinâmicas mais importantes do período
contemporâneo. Os Estados-Nações, na Europa em especial,
estão assim submetidos, hoje, na maior parte, a uma dupla
pressão da organização européia e da autonomização crescente
das comunidades políticas “locais”. Por isso, a própria forma do
Estado parece ultrapassada pelas lógicas econômicas (a
“globalização”), sociais e políticas, que não se restringem mais
ao quadro da nação, o que põe em definitivo o problema da
adequação entre o Estado e o espaço público.
A fim de compreender essas evoluções e de identificar as
lógicas de funcionamento do Estado, a ambição desta obra é,
essencialmente, propor ao leitor um guia de reflexão sobre o

8
Estado moderno em torno de um certo número de questões. Por
que intervém o Estado? Como a ação pública é decidida e
implementada? As decisões são o fruto de processos racionais?
Pode-se verdadeiramente medir a eficácia e o sentido da ação
pública? Quais tipos de trocas foram, pouco a pouco, instauradas
com os atores envolvidos? Enfim, em qual medida a ação pública
é evolutiva, quais são as regras que regem as transformações e a
mudança?
Para tentar responder a essas questões buscar-se-á, de
início, apresentar as grandes tendências da pesquisa em políticas
públicas e examinar as principais questões da disciplina (a
agenda, a decisão, a mudança...), valorizando uma abordagem
particular, a abordagem cognitiva das políticas públicas.
Considerando o tamanho da obra, não será possível, aqui, tratar
em detalhes os campos de análise específicos, como as políticas
locais ou as políticas européias (cf. Mabileau, 1991; Quermonne,
1994). Em termos mais gerais, experimentar-se-á mostrar que a
ação do Estado pode ser considerada como o lugar privilegiado
em que as sociedades modernas, enquanto sociedades complexas,
vão colocar o problema crucial de sua relação com o mundo
através da construção de paradigmas ou de referenciais, sendo
que este conjunto de matrizes cognitivas e normativas
intelectuais determina, ao mesmo tempo, os instrumentos graças
aos quais as sociedades agem sobre elas mesmas e os espaços de
sentido no interior das quais os grupos sociais vão interagir 1.

1
. Esta obra foi realizada no projeto do Centro Robert Schuman do
Instituto universitário europeu de Florença. Os autores agradecem
vivamente o senhor Yves Mény, diretor do Centro, assim como o corpo
de funcionários pela acolhida e as excelentes condições de trabalho de
que os autores se beneficiaram.

9
O QUE É UMA POLÍTICA PÚBLICA?

A primeira dificuldade com a qual se defronta a análise


das políticas públicas é o caráter polissêmico do termo “política”.
As coisas são mais simples para os autores de língua inglesa, pois
eles dispõem de termos diferentes para designar o que o francês
reúne sob a noção de política. Com efeito, este termo cobre, ao
mesmo tempo, a esfera da política (polity), a atividade política
(politics) e a ação pública (policies). A primeira faz a distinção
entre o mundo da política e a sociedade civil, podendo a fronteira
entre os dois, sempre fluida, variar segundo os lugares e as
épocas; a segunda designa a atividade política em geral (a
competição pela obtenção dos cargos políticos, o debate
partidário, as diversas formas de mobilização...); a terceira
acepção, enfim, designa o processo pelo qual são elaborados e
implementados programas de ação pública, isto é, dispositivos
político-administrativos coordenados em princípio em torno de
objetivos explícitos.
Estudar a ação pública é situar-se – principalmente – no
quadro da terceira acepção, a das políticas. O que não quer dizer,
evidentemente, que as outras dimensões deverão ser ignoradas e,
em particular, a dimensão da competição política. Colocar apenas
a ênfase na ação pública, antes que na competição política,
constitui um ângulo de abordagem diferente do enfoque
politológico clássico, porque, nesse caso, a atividade política é
primeiro analisada do ponto de vista dos outcomes, ao invés de
privilegiar seus inputs (Lacasse, Thoenig, 1996).
Por isso mesmo, a análise das políticas públicas não
procede, propriamente falando, de um recorte da esfera política,
privilegiando certas atividades e deixando outras de lado. É
próprio da análise das políticas, lançar um olhar diferente sobre a
ação pública em seu conjunto, colocando-se do ponto de vista
daquilo que se tornou centro de gravidade da esfera política, a
saber, a implementação das políticas públicas. O exemplo da

10
decisão tomada, na primavera de 1995, pelo Presidente da
República Jacques Chirac, de retomar os testes nucleares no
Pacífico, pode ilustrar, sob esse ponto de vista, a ambigüidade
das fronteiras, da mesma forma que a especificidade da análise
das políticas públicas. Com efeito, como duvidar que tal decisão,
emblemática da monarquia nuclear, é, por essência, política?
Mas, ao contrário, como não enxergar a extrema complexidade
técnica de uma tal decisão? O desafio da análise das políticas
públicas vai, portanto, muito além da compreensão dos
resultados de decisões do Estado. Trata-se, definitivamente, de
interrogar-se sobre o funcionamento da democracia, a partir do
momento em que a dimensão técnica (no sentido mais amplo do
termo) da ação pública aumenta fortemente, a tal ponto que
termina por colocar-se o problema da reintegração do cidadão na
“rede da decisão”[boucle de la décision].
Antes de apresentar os conceitos fundamentais da análise
das políticas, tentaremos avançar um pouco rumo à identificação
deste objeto particular que são as políticas públicas. Perceber-se-
á, então, que uma política é, ao mesmo tempo, um constructo
social e um constructo de pesquisa, a qual, por isso coloca
problemas difíceis de identificação e de interpretação, e que,
enfim, o desafio atual da pesquisa é o da constituição de um
quadro de análise sistêmica da ação pública, que possa
ultrapassar os limites da abordagem seqüencial.

Uma política pública é um constructo social


e um constructo de pesquisa

Todos nós temos idéia, de modo intuitivo, do que pode


ser uma política pública. Por exemplo, se buscamos definir os
contornos da política ambiental, poderemos começar pelo
levantamento do conjunto dos textos legislativos e reguladores
que dizem respeito ao setor. Contudo, descobriremos logo que a
ação do Ministério do Meio Ambiente não se limita à produção
de textos e que uma simples declaração do ministro,
questionando, por exemplo, tal ou qual categoria de “poluente”,

11
constitui um ato de força, que pode ter um impacto político e
social nada desprezível. Ao mesmo tempo, podem existir
políticas mesmo na ausência de uma estrutura ministerial
especializada: as políticas de meio ambiente existiam antes da
criação do ministério – ficando posta a questão de sua
denominação. Principalmente, quando um ministério existe,
percebe-se logo que a ação do mesmo não cobre a totalidade do
domínio pelo qual ele é responsável: assim, a maioria das
administrações, num momento ou noutro, põem em execução
ações que dizem respeito, às vezes muito diretamente, ao campo
do meio ambiente.
Tudo isso mostra que, contrário às aparências, a operação
que consiste em delimitar as “fronteiras” de uma política pública
é sempre um tanto aleatória, não devendo os contornos de uma
política ser considerados como um “dado”. Ao contrário, eles são
sempre suscetíveis de serem postos em questão, através de um
processo constante de redefinição da estrutura e, portanto, dos
limites dos campos políticos. No entanto, se é imperativo ter
consciência do caráter construtivo e evolutivo das políticas
públicas, não se deve fazer dessa questão da localização das
mesmas o único desafio da pesquisa, como se tende a fazer com
freqüência, quando se começa o estudo de um domínio da ação
pública. Assim, é provavelmente inútil perguntar-se
indefinidamente se a política ambiental ou a política agrícola
“existem” e quais são as sua fronteiras: é melhor tomar um
objeto de pesquisa mais modesto, que permita, se for o caso,
interrogar-se sobre os mecanismos de construção da ação pública
nesses setores.
É este o problema que Jones enfatiza quando afirma que
uma política é simplesmente uma “categoria analítica”: ela é o
produto tanto do trabalho de construção do seu objeto pelo
pesquisador, quanto da ação dos atores políticos (Jones, 1970).
Isto significa que a análise deverá levar em conta o fato de que a
existência ou não da política constitui um desafio para os atores
que, de acordo com a sua posição, tenderão a sobrevalorizar a
racionalidade da própria ação ou, ao contrário, a colocar em
causa a coerência, até a existência, da ação governamental.

12
Segue-se daí que não é preciso espantar-se com a
dificuldade que se tem para definir o que seja uma política
pública. Na literatura especializada, as definições vão desde a
qualificação mínima, “tudo o que o governo decide fazer ou não
fazer” (Howllet, Ramesh, 1995, p.4), até definições mais
completas, em que a política pública se apresenta como um
programa de ação governamental num setor da sociedade ou num
espaço geográfico: a saúde, a seguridade, os trabalhadores
imigrados, a cidade de Paris, a Comunidade européia, o oceano
Pacífico etc.” (Mény, Thoenig, 1989, p.130-131). Esse tipo de
definição apresenta a vantagem de colocar em foco a dimensão
pragmática da análise das políticas públicas: toda ação pública,
em qualquer nível que seja, e qualquer que seja o domínio a que
se refere, entra no campo da análise das políticas públicas. O
inconveniente dessas definições é a contrapartida desta
vantagem: se esta recobre a totalidade da ação pública, qual é o
interesse heurístico do conceito de política pública?
Na tentativa de ir mais longe, a maioria dos autores
propõem elementos que permitam especificar um pouco a noção
de política pública. Pode-se agrupar esses elementos sob três
grandes rubricas: uma política pública constitui um quadro
normativo de ação; ela combina elementos de força pública e
elementos de competência [expertise]; ela tende a constituir uma
ordem local.

Uma política pública constrói um quadro normativo de ação

Uma política pública é formada, inicialmente, por um


conjunto de medidas concretas que constituem a substância
“visível” da política. Esta substância pode ser constituída de
recursos: financeiros (os créditos atribuídos aos ministérios),
intelectuais (a competência que os atores das políticas são
capazes de mobilizar), reguladores (o fato de elaborar uma nova
regulamentação constitui um recurso novo para os tomadores de
decisão), materiais. Ela é também constituída de “produtos”, isto
é, de outputs reguladores (normativos), financeiros, físicos.
Tomemos, como exemplo, o conjunto das decisões, medidas e
ações do Estado em matéria de segurança rodoviária, que

13
constitui um verdadeiro inventário para a Prévert. Esta comporta,
de fato, uma multidão de textos reguladores em matéria de
circulação rodoviária (obrigação do uso do cinto de segurança,
criação da licença com base em pontuação...), a ação cotidiana
das forças da polícia e da gendarmaria para fazer respeitar o
código rodoviário, programas específicos voltados para a luta
contra o alcoolismo no volante, ações de informação nas escolas,
trabalhos de engenharia civil (programa de auto-estradas,
eliminação dos “pontos pretos”, melhoramento de
entroncamentos...).
Como se vê, todas essas decisões e ações constituem um
conjunto extremamente heteróclito que põe em jogo numerosos
atores pertencentes a múltiplas organizações, públicas ou
privadas, e que intervêm em diversos níveis. A questão que se
coloca, então, é a da coerência destes diferentes elementos. Com
efeito, se é quase certo que uma medida isolada não constitui
uma política pública, o que acontece quando se está diante de um
conjunto de medidas sem ligação aparente entre elas?
Encontram-se na literatura diversas maneiras de corte
possíveis. Os primeiros trabalhos da análise das políticas
públicas apoiaram-se, inicialmente, sobre as divisões canônicas
herdadas do direito e da ciência administrativa. Nessa
perspectiva tradicional, as políticas públicas se encontravam
delimitadas, segundo sua inscrição num território dado e/ou um
setor sócio-econômico, tornando-se esta última noção, pouco a
pouco, o principal modo de distinção. Ela mostrava, com efeito,
o interesse de estabelecer uma correspondência entre as divisões
ministeriais da ação do Estado e o tratamento de problemas
característicos de espaços sociais diferenciados por suas
atividades próprias, herdadas da divisão progressiva do trabalho
social descrita por Durkheim. A análise das políticas públicas
levava, desde então, ao estudo da ação pública nas distintas
esferas: industriais, sociais, culturais... De natureza
essencialmente descritiva, esse recorte, contudo, deixava de lado
alguns problemas importantes. Assim, esse modo de
diferenciação não permitia questionar a natureza evolutiva dos
vínculos entre os atores públicos e privados (Baraize, 1996), ou

14
ainda, o problema da coerência da ação do Estado num quadro
que não fosse pré-constituído.
Para remediar esses problemas, que diziam respeito
igualmente às divisões com base no modelo territorial (Smith,
1996; Faure, 1997; Le Galès, 1998), foram aplicados outros
critérios de diferenciação, mais consentâneos com o modo de
proceder sociológico. De modo especial a noção de sistema de
ação, tirada do arsenal conceptual da sociologia das
organizações, que repousa sobre a identificação de um espaço de
trocas, finalizado entre atores, constitutivo de relações de poder
em função dos recursos mobilizados (Crozier, Friedberg, 1977;
Zan, Ferrante, 1996). Retomada por Sabatier, esta perspectiva
geral permite distinguir subsistemas de políticas públicas, isto é,
“o grupo de pessoas e/ou de organizações que interagem de
maneira regular, em períodos superiores ou iguais a uma década,
com o objetivo de influenciar a formação e implementação de
políticas públicas dentro de um domínio dado” (Sabatier, 1997,
p. 15). Mesmo que o critério de definição não seja mais
verdadeiramente pré-constituído, ainda assim uma tal noção
deixa demasiado lugar para o “dado” e não permite que se
questione os determinantes e os princípios de constituição e de
evolução desses espaços de trocas onde se forma a ação do
Estado.
Para que se esteja na presença de uma política, é
necessário que seja igualmente definido, pelo menos como
tendência, um quadro geral de ação. Richard Rose propõe que,
para tal fim, se utilize a noção de programa de ação
governamental (Rose, 1985), definida como “uma combinação
específica de leis, de atribuições de créditos, de administrações e
de pessoal voltados para a realização de um conjunto de
objetivos mais ou menos claramente definidos” (Rose, Davies,
1994, p.54). O problema é que esta noção incontornável levanta
dificuldades consideráveis. Se é evidente que uma política é mais
do que uma coleção de decisões e de ações, é fácil constatar-se
que as inumeráveis declarações governamentais sobre a
necessidade de reduzir o desemprego, por exemplo, da mesma
forma que as decisões que as acompanham, não resultam
necessariamente na implantação de políticas de emprego.

15
Isto significa que, para que uma política pública “exista”,
é preciso que as diferentes declarações e/ou decisões sejam
reunidas por um quadro geral de ação que funcione como uma
estrutura de sentido, ou seja, que mobilize elementos de valor e
de conhecimento, assim como instrumentos de ação particulares,
com o fim de realizar objetivos construídos pelas trocas entre os
atores públicos e privados. Uma tal proposição, que pode parecer
trivial, levanta na realidade enormes dificuldades. Ela implica,
primeiramente, em tomar consciência do caráter normativo de
todo programa de ação pública. Isto significa que toda política
governamental se definirá, antes de tudo, como um conjunto de
fins a se atingir, como por exemplo “melhorar os rendimentos
dos agricultores”, “reduzir o desemprego dos jovens”, “elevar a
capacidade de ataque das forças armadas”... Tais fins, ou
objetivos, poderão estar mais ou menos explícitos nos textos e
nas decisões do governo (o preâmbulo de uma lei, por exemplo),
detalhando os objetivos estabelecidos pelo governo no setor em
questão. Às vezes, pelo contrário, os fins governamentais
permanecerão fluidos, até ambíguos. Isto significa que, também
lá, os objetivos da ação pública não são dados, mas devem
constituir o objeto de um trabalho de identificação e reconstrução
pelo pesquisador, através, por exemplo, do estudo das reuniões
interministeriais preparatórias à decisão ou dos debates
parlamentares.
Além do mais - segunda dificuldade - coloca-se a
questão de saber quem define as normas da ação pública: é o
governo, os partidos, os eleitores ou... o pesquisador que,
fazendo o estudo de uma política, vai, de modo mais ou menos
consciente, reconstruir a estrutura normativa do programa
governamental que ele observa? Qualquer que seja a resposta,
está claro, em todos os casos, que analisar a ação do Estado não
consiste, simplesmente, em se estudá-lo como aparelho político-
administrativo.
Em fim, terceira dificuldade, isto não quer dizer que,
para que haja política pública, todas as medidas em questão
devem ser reunidas num quadro normativo e cognitivo
perfeitamente coerente. Se tal fosse o caso, isto significaria dizer
que, sem dúvida, não existiria jamais “verdadeira ” política

16
pública. Pelo contrário, uma vez quer se queira compreender os
resultados da ação pública, é indispensável tomar-se consciência
do caráter intrinsecamente contraditório de toda política. Quando
se examinam as políticas de saúde, por vezes se encontram, por
exemplo, ações que encorajam o acompanhamento médico das
mulheres grávidas e, de forma paralela, medidas destinadas a
limitar as despesas médicas.
Evidentemente, pode-se mostrar que a contradição,
flagrante em determinado nível, é superável em outro (por
exemplo, ao esclarecer-se que o aumento das consultas médicas
para as mulheres grávidas permite diminuir a mortalidade
perinatal). Mas não é menos verdade que toda política pública se
caracteriza por contradições, até incoerências, que devem ser
levadas em conta, mas sem impedir que se defina o sentido das
condutas governamentais. Simplesmente, este sentido não é de
forma alguma unívoco, porque a realidade do mundo é, ela
mesma, contraditória, o que significa que os tomadores de
decisão são condenados a perseguir objetivos em si mesmos
contraditórios: promover a rentabilidade de certa empresa
pública e manter a paz social; freiar a inflação e reativar o
consumo...
O analista deve, portanto, manter-se à distância entre
duas posições extremas que constituem dois impasses para a
compreensão da ação pública. O primeiro consiste em considerar
que somente se está na presença de uma política pública a partir
do momento em que as ações e as decisões estudadas formam um
todo coerente, o que não acontece jamais. O segundo impasse
teórico e metodológico consiste em negar qualquer racionalidade
da ação pública, em vista das múltiplas incoerências que ela
manifesta. Para sair dessa dificuldade, o trabalho de análise deve
esforçar-se para colocar à luz as lógicas de ação e em ação as
lógicas de sentido no processo de elaboração e de implementação
das políticas.

Uma política pública como expressão do poder público

O problema aqui colocado repousa sobre a identificação


dos elementos que fundamentam a especificidade da ação do

17
Estado. Tradicionalmente, a resposta mais simples consiste em
colocar em destaque o fato de que uma política governamental
compreende elementos de decisão ou de alocação de recursos de
natureza mais ou menos autoritária ou coercitiva. Encontra-se
aqui a concepção weberiana do Estado como detentor de um
monopólio da violência física legítima. Bem entendido, essa
dimensão autoritária não aparece sempre em primeiro plano. Ao
lado de políticas que mobilizam de forma explícita elementos de
coerção física (defesa, segurança interna), em outras políticas,
como as políticas reguladoras, o uso da coerção não é mais que
potencial. Mais sutil, mesmo quando o uso da coerção não está
previsto, como no caso das políticas redistributivas por exemplo,
a ação governamental tende a constituir detentores de direito,
definindo critérios de renda para a obtenção de uma ajuda social.
Nisso as políticas governamentais estabelecem relações
dissimétricas entre o Estado, que modifica o ambiente jurídico
dos indivíduos, e os cidadãos, sejam estes últimos beneficiários
ou “vítimas” das regulamentações.
Na realidade, como sempre, as coisas não são tão
simples. Para começar, por causa da extensão contínua das
funções estatais ao longo da segunda metade do século XX,
pode-se perguntar até que ponto a dimensão coercitiva ou
autoritária das políticas públicas é sempre um critério
discriminante. Por exemplo, qual é a parte de coerção nas
escolhas públicas em matéria de ajuda à pesquisa científica ou na
decisão de financiar um novo programa espacial?
Além do mais - a análise das políticas públicas
contribuiu muito para demonstrá-lo - afirmar a especificidade da
ação do Estado não deve desembocar numa reificação do poder
público em um bloco homogêneo e autônomo. Mesmo se,
enquanto ato isolado, uma decisão é uma expressão do poder
público, permanece, em cada caso concreto, o problema da
identificação da fronteira entre espaço público e privado
(Habermas, 1987), bem como a demonstração das interações que
concorrem para a expressão do poder público. O prisma analítico
das políticas públicas deve, desse ponto de vista, tornar-se a
ocasião de uma interrogação constante sobre a natureza evolutiva
do Estado e das relações entre espaço público e privado.

18
Uma política pública constitui uma ordem local

Se uma política pública não deve ser simplesmente


considerada como um conjunto de decisões, é porque sua análise
permanece ligada ao estudo dos indivíduos e/ou grupos, que são
os atores, homens políticos, funcionários de todos os níveis,
grupos de interesse... Toda política pública assume, de fato, a
forma de um espaço de relações interorganizacionais que
ultrapassa a visão estritamente jurídica que se poderia ter a
respeito: uma política pública constitui uma “ordem local”, isto
é, um “constructo político relativamente autônomo que opera, em
seu nível, a regulação dos conflitos entre os interessados, e
assegura entre eles a articulação e a harmonização de seus
interesses e seus fins individuais, assim como dos interesses e
fins coletivos” (Friedberg, 1993).
Para estudar uma política pública, é preciso, portanto,
levar em conta o conjunto dos indivíduos, grupos ou
organizações cuja posição é afetada pela ação do Estado num
espaço dado, aquilo que Cobb e Elder puderam chamar o
“público” de uma política (Cobb, Elder, 1983). Retomemos o
exemplo da segurança rodoviária: esta política concerne
evidentemente aos automobilistas (cujo estatuto de grupo é
questionável), mas também aos fabricantes de automóveis, aos
mecânicos, às empresas de transporte de carga ou de pessoas. A
esses atores é preciso do mesmo modo acrescentar as empresas
de engenharia civil, que se beneficiam dos programas de obras
públicas, assim como, numa certa medida, o sistema hospitalar,
que é afetado de forma direta pelo problema da insegurança
rodoviária, como o mostram com regularidade as tomadas de
posição do corpo médico em prol do reforço de tal ou qual
dispositivo do código de trânsito.
Por isso mesmo, é claro que a noção de “público”
remete, na realidade, a situações muito diferentes, que
representam modalidades de participação peculiares aos
"beneficiários" de uma política, seja o conjunto dos atores
“envolvidos” pela elaboração ou a implementação de uma
política. Sob esse aspecto, colocam-se dois problemas que dizem

19
respeito ao grau de implicação desses beneficiários na ação
pública.
1. O modo e a intensidade dessa participação podem ser
muito variáveis de um espaço de ação a outro e/ou de um período
a outro. Com efeito, não há termo de comparação entre a
capacidade de influência dos fabricantes de automóveis e aquela
dos automobilistas, da mesma forma que a profissão agrícola
disporá de meios de influência bem superiores àqueles de que
dispõem os habitantes do mundo rural.
2. De maneira conexa, coloca-se a questão de saber quais
são os fatores que determinam essa capacidade de influência.
Esses fatores podem ser estruturais, quando dizem respeito à
posição do ator na divisão do trabalho própria ao setor. Eles
podem também depender da capacidade do grupo para constituir-
se ator coletivo e mobilizar recursos pertinentes. A aptidão de um
ator coletivo, para influir no conteúdo ou na implementação de
uma política pública, pode, com efeito, variar fortemente em
função do grau de mobilização que é capaz de suscitar, como o
mostram os exemplos das coordenações e associações de "sem
moradia" ou de "sem documentos" (Fillieule, Péchu, 1993).
Um dos desafios da análise da ação do Estado será,
assim, o de constituir e de construir o continuum dos modos de
ação dos grupos sociais no quadro das políticas públicas,
partindo dos grupos mais difusos, dos menos organizados, que
intervêm, eventualmente, no campo de certas políticas (e podem
até desaparecer por completo uma vez satisfeita a sua
reivindicação), até os grupos os mais estáveis que, à semelhança
dos agricultores, são capazes de colocar em prática relações de
tipo corporativista com as administrações competentes.

Os problemas postos pela análise


das políticas públicas

Além desta complexidade própria ao objeto “política


pública”, quase que inevitavelmente aparecem outros problemas
quando se quer estudar uma política.

20
O sentido de uma política pública pode ser "explícito" ou
"implícito"

A questão aqui posta é a de saber se o sentido de uma


política pública é necessariamente explicitado pelos tomadores
de decisão governamentais ou se outros atores intervêm na sua
determinação. Tal questão se coloca antes de tudo em virtude da
distância inevitável entre os objetivos de uma política tais quais
são definidos pelos tomadores de decisão e os resultados
constatados no momento da implementação. Por exemplo,
quando da guerra do Golfo, o fim oficial (explícito) da guerra era
por fim à ocupação do Kuwait pelo Iraque, mas era este o fim
efetivo? Uma coisa é certa: o resultado da guerra foi um
enfraquecimento durável do Iraque: era este o objetivo
procurado? O problema aqui posto é o do grau de elaboração dos
objetivos implícitos próprios a toda política. É sempre muito
difícil responder a esse tipo de questão, porque, quando
interrogamos os atores de uma política, sempre nos confrontamos
com fenômenos de reconstrução a posteriori: de um lado, os
atores são evidentemente incapazes de prever todas as
conseqüências de sua ação; de outro lado, o sentido de uma ação
se modifica na medida de sua implementação, e os atores
modificam de modo retrospectivo os seus fins em função dos
resultados da própria ação que estão em condições de observar e
avaliar.
É por isso que, sem dúvida, é útil distinguir, para a
análise, o sentido explícito de uma política, o qual é definido
através dos objetivos proclamados pelos tomadores de decisão
(quando eles existem) do sentido latente, que se revela
progressivamente ao longo de sua implementação: qual é o
sentido da privatização parcial da Air France posta em prática
pelo Governo Jospin em 1997? Preservar a companhia nacional
de uma privatização total ou preparar de fato uma futura
privatização julgada inevitável por numerosos observadores?
O trabalho do analista deve, portanto, levar em conta, ao
mesmo tempo, as intenções dos tomadores de decisão, mesmo se
estas são confusas, e os processos de construção do sentido na
prática ao longo da fase de desenvolvimento da ação pública. No

21
entanto, em todos os casos o pesquisador deverá cuidar para não
tomar o lugar dos atores da política na determinação do sentido
da política.

Decisão e não decisão

Esta questão é clássica na análise das políticas públicas


depois dos trabalhos de Bachrach e Baratz nos anos 60
(Bachrach, Baratz, 1963). Formulada grosseiramente, é a
seguinte: pode uma política consistir em não fazer nada? Por
exemplo, sabe-se que existiu durante muito tempo, na França, um
problema recorrente de alcoolismo ao volante (Laé, in CRESAL,
1993), mas a falta, durante um longo período, de medidas
destinadas a lutar contra esse flagelo pode ser considerada uma
política? Se o não agir acarreta, com freqüência, efeitos políticos
e sociais tão visíveis quanto uma ação em boa e devida forma,
não se deve, por isso, evidentemente, considerar que se está
diante de uma política toda vez que um governo não faz nada!
Quando se tenta sistematizar esta análise, pode-se
distinguir três casos possíveis em que a noção de não decisão
pode revelar-se útil para a compreensão da ação pública.
1. A não decisão intencional corresponde a uma situação
em que é possível mostrar que com certeza houve vontade da
parte dos atores político-administrativos de não decidir. O
exemplo da "decisão" tomada pelo governo francês em 1983 de
não sair do sistema monetário europeu é característico deste
ponto de vista (Favier, Martin-Rolland, 1990). Analisá-lo pode
permitir a reconstrução da racionalidade de uma não decisão da
mesma forma que sua história concreta, essencialmente através
de narrativas que os atores fazem das tomadas de posição a favor
ou contra a sustentação da moeda, dos encontros ou das reuniões
em que o problema foi debatido. Este exemplo mostra também
até que ponto uma não decisão pode ter imensas conseqüências
políticas e econômicas, sendo que esta marcou, na ocasião, uma
inflexão fundamental das políticas econômicas na França, com a
aceitação, depois jamais questionada, da coação européia e do
referencial de mercado e a implementação de uma política do
"franco forte".

22
2. A não decisão controvertida corresponde a uma
situação em que o problema em causa é objeto de controvérsia
pública muito viva, para que possa gerar as condições de
produção e/ou de legitimidade de uma ação pública. Pode tratar-
se de uma reivindicação sindical não satisfeita, ou ainda de um
problema não resolvido (a questão dos sem documentos) ou de
características cognitivas e normativas ambíguas (o alcoolismo
ao volante, a AIDS). Assim, quando se compara, como o tem
feito Michel Setbon, a emergência das políticas de luta contra a
AIDS na Europa (Setbon, 1993), vê-se que os elementos de não
decisão são centrais na análise que se pode fazer dos processos
que conduziram os diferentes países a levar em conta essa nova
doença, encontrando-se a ação do Estado por longo tempo
inibida, de fato, por conhecimentos científicos fracamente
estabelecidos e por investimentos conflitantes junto aos atores
envolvidos.
3. A não execução corresponde a um caso no qual uma
política, decidida num certo nível, deve ser objeto de decisões
específicas tomadas por um ou mais níveis político-
administrativos diferentes. O caso em questão é banal em todos
os Estados federados, nos quais o governo federal depende de
decisões tomadas (ou não tomadas) em nível regional ou
provincial (Pressman, Wildavsky, 1973). Mas este caso conheceu
novas aplicações com o desenvolvimento das políticas da União
européia, onde a implementação dessas políticas supõe,
geralmente, que as medidas sejam adotadas pelos Estados-
membros (Lequesne, 1993; Quermonne, 1994; Héritier, 1997).

Política pública e gasto público

Quando se procura avaliar a ação do Estado num setor


determinado, somos tentados a nos ater a um indicador
orçamentário e, particularmente, a considerar que uma política
será tanto mais importante - ou tanto mais eficaz - quanto mais
elevados forem os créditos que lhe são destinados. Ora, as
características da ação do Estado vão além dos indicadores
orçamentários, o que deve deixar de sobreaviso todo analista das
políticas públicas contra alguns erros freqüentemente cometidos:

23
1. O impacto de uma política não é necessariamente
proporcional às despesas que ela ocasiona. Sabe-se, por
exemplo, que o estado sanitário de uma população não é
diretamente proporcional às despesas de saúde, e que certos atos
médicos ou cirúrgicos são de um custo desproporcional em
relação ao número de vidas que eles permitem salvar (salvo, bem
entendido, para aqueles que são os beneficiários). Tudo vai
depender, aqui, dos critérios utilizados para medir a eficácia de
uma política. Mas se constata que os especialistas ou os
profissionais de um setor (médicos, engenheiros, professores...)
tenderão com freqüência a substituir os indicadores de meios por
indicadores de resultados, porque sua capacidade de influência
está diretamente ligada à dimensão desses meios.
2. Dentro da mesma ordem de idéias, não é porque uma
política custa pouco que seu impacto é fraco. É o caso,
particularmente, de todas as políticas de tipo regulador, que têm
por objeto modificar o quadro jurídico das diferentes atividades
sociais. Assim, por exemplo, a definição de uma nova forma
jurídica do empreendimento é suscetível de ter efeitos
consideráveis a um custo insignificante. O mesmo se verifica
com uma medida como a legislação da contracepção, cujo
impacto é imenso, sem proporção com o custo que ela possa ter
representado. É enfim o caso das políticas institucionais, que
fixam os quadros da atividade política e administrativa, como a
política de descentralização.
3. Enfim, qualquer que seja a natureza da política pública
estudada, é necessário levar em conta a sua dimensão simbólica
(Edelman, 1976). Encontrar-se-á, mais adiante, a importância
desta dimensão simbólica das políticas públicas, cujo impacto
passa também pela construção de imagens do mundo que
modificam a representação que os atores fazem do seu ambiente.
Assim, ninguém sabe exatamente que impacto real sobre a
população pode ter a primeira experiência de circulação alternada
experimentada em Paris em outubro de 1997. Em contrapartida,
mesmo que seja muito difícil medir com precisão, é certo que
essa decisão teve um impacto sobre a percepção do problema da
poluição do ar da parte dos parisienses.

24
Para além da abordagem seqüencial

Uma vez que se tenha tomado consciência desta


complexidade da ação pública, resta definir um quadro de análise
capaz de responder às exigências da pesquisa. A maior parte dos
estudos de políticas públicas foram, durante muito tempo,
estruturados pela abordagem seqüencial (Jones, 1970), que
permanece, aliás, um conjunto pertinente de meios heurísticos.
No essencial, ela consiste em separar as políticas em uma série
de seqüências de ação, que correspondem ao mesmo tempo a
uma descrição da realidade e à criação de um tipo ideal de ação
pública. Estas seqüências, geralmente em número de cinco ou
seis, permitem acompanhar o desenvolvimento de uma política,
através de um certo número de etapas (stagist approach). Ao
longo de cada uma dessas fases, tudo se passa como se os atores
participantes do processo político devessem resolver enigmas
sucessivos, sabendo que as respostas vão definir pouco a pouco
os contornos da política pública.
1. A colocação na agenda (agenda setting) leva os atores
a identificar e/ou a definir e/ou a construir o problema a tratar.
Ela marca as condições de gênese da ação pública e segue uma
multidão de caminhos possíveis, de acordo com o input inicial
(catástrofe natural, motim, revelação dos números do
desemprego... ).
2. A produção das soluções ou alternativas compreende a
procura de objetivos desejáveis e/ou adaptados ao problema
percebido (policy formulation).
3. A decisão no sentido próprio vem em seguida. Trata-
se, sem dúvida, da seqüência em princípio a mais visível, mas na
realidade é muito difícil isolá-la com precisão, na medida em que
ela ultrapassa o estrito quadro institucional.
4. A implementação (implementation) diz respeito à
execução (ou à não execução) prática das decisões elaboradas e
formalmente adotadas nas etapas anteriores.
5. A avaliação (policy evaluation) consiste em interrogar-
se, de diferentes modos, sobre o impacto do programa. "Quais
têm sido os efeitos da política decidida e implementada?" "Estes
efeitos correspondem aos efeitos esperados?" "É preciso

25
modificar a política, na sua concepção ou na sua
implementação?" São questões que balizam esta fase particular.
6. A conclusão do programa (program termination)
constitui uma seqüência muito controvertida entre os próprios
defensores da abordagem seqüencial, cobrindo de maneira
ambígua a questão da "extinção de uma política" e/ou da
realização dos objetivos fixados.
Nesse quadro geral, a abordagem seqüencial apresenta,
ao mesmo tempo, vantagens incontestáveis e inconvenientes
consideráveis. Seu primeiro trunfo é, sem dúvida, o fato de
propor um quadro simples de análise da ação pública, que
introduz um mínimo de ordem na complexidade das ações e
decisões que constituem uma política pública, complexidade esta
que pode aparecer no início como uma confusão indecifrável
para o observador. Assim como é proposto, este quadro é, com
efeito, ao mesmo tempo, suficientemente geral para dar conta de
toda política pública e permite formular questões pertinentes, que
levam a uma melhor compreensão daquilo que faz com que uma
política pública exista (ou não exista) como programa, ou seja,
como um "objeto" político, que tem um lógica própria,
identificável e suscetível de ser analisado.
A segunda vantagem da abordagem seqüencial, de um
modo particular na França, consiste em romper com as
representações da ação pública, construídas pelas elites
dirigentes, na medida em que ela permite substituir por uma
abordagem sociológica as representações jurídicas que
permanecem dominantes no universo de pensamento dos altos
responsáveis franceses. Esta sociologização do olhar sobre a ação
do Estado se encontra em diversos níveis: primiero, porque a
decisão, longe de ser apresentada como um ato individual que se
explica somente pela existência de competências em direito, é
analisada como um processo cujas determinações, ao menos em
parte, devem ser pesquisadas além da esfera de competência
jurídica dos tomadores públicos de decisão; a seguir, porque o
jogo dos atores nas diferentes fases não divide as clivagens que
estruturam a representação das elites administrativas e, em
especial, a clivagem decisão/execução.

26
Tudo isto mostra que a abordagem seqüencial é menos
limitada do que deixam pensar as críticas que às vezes lhe são
feitas. Em particular, esta perspectiva, mesmo se ela leva a uma
representação simplificada do real (o que, aliás, não é próprio
desde tipo de esquema), faz justiça à diversidade e à
complexidade das diferentes práticas que constituem uma
política pública, e por isso mesmo, à diversidade dos atores que
participam da ação pública.
Apesar dessas reais contribuições, permanece o fato de
que a abordagem seqüencial das políticas públicas apresenta
limites importantes que devem ser sublinhados. Os
inconvenientes mais evidentes desta abordagem dizem respeito à
visão por demais linear da ação pública que ela propõe. Ela pode
conduzir o analista pouco atento a subestimar o caráter muitas
vezes caótico das políticas públicas. Assim, não é raro que se
tenha que estudar um processo de decisão no momento em que a
fase de identificação do problema sequer teve lugar. Com
freqüência, indivíduos ou grupos são detentores de uma
"solução" a priori e procuram a ocasião para torná-la aceita. A
decisão tomada pelo governo francês em 1973, na seqüência do
primeiro choque do petróleo, de acelerar de forma considerável o
ritmo de construção de centrais nucleares corresponde
exatamente a este caso exemplar.
Se determinadas etapas podem ser inexistentes ou sua
ordem invertida (quando, por exemplo, a "definição" do
problema ocorre após a decisão), o seu encadeamento pode
também ser problemático. Com efeito, o processo de produção
do problema e a "escolha" das soluções não pára com a tomada
de decisão e a implementação. Ao contrário, cada decisão, cada
tomada de posição, cada elemento de interpretação na fase de
implementação provoca uma modificação do olhar dos atores
sobre o problema em causa. Na mesma ordem de idéias, a noção
de "conclusão" de uma política, mesmo acompanhada das
precauções de costume, permanece sobre um postulado
racionalista, segundo o qual uma política permite, mais ou
menos, a "resolução" do problema.
Desemboca-se, então, numa crítica mais ampla que, para
além da grade seqüencial propriamente dita, coloca o problema

27
da postura teórica da análise das políticas públicas sob este
ângulo. O que caracteriza esta abordagem canônica é, com efeito,
sua orientação problem solving: o conjunto dos mecanismos
sociopolíticos que se tenta descrever e cujo funcionamento se
procura compreender, são analisados pelo pesquisador em torno
da idéia de que o objeto das políticas é a solução de problemas,
devendo a política agrícola por exemplo resolver os problemas
dos camponeses, a política social enfrentar o problema da
pobreza etc. Esta postura tem duas conseqüências principais.
A primeira é a supervalorização da função de decisão das
políticas. Na perspectiva canônica, fazer uma política é,
inicialmente, de fato tomar decisões (boas se possível) e
implementá-las. Ora, com o risco de chocar o senso comum, é
necessário partir, ao contrário, da idéia segundo a qual as
políticas públicas não servem para "resolver" os problemas. Isto
não significa que os problemas são insolúveis, mas apenas que o
processo de "resolução" é muito mais complexo do que o faz
supor a abordagem seqüencial. Na realidade, os problemas são
"resolvidos" pelos próprios atores sociais através da
implementação de suas estratégias, a gestão de seus conflitos e,
sobretudo, através dos processos de aprendizagem que marcam
todo processo de ação pública. Nesse quadro, as políticas
públicas têm como característica fundamental construir e
transformar os espaços de sentido, no interior do quais os atores
vão colocar e (re-)definir os "seus" problemas, e "testar" em
definitivo as soluções que eles apóiam. Fazer uma política
pública não é, pois, "resolver" um problema, mas, sim, construir
uma nova representação dos problemas que implementam as
condições sociopolíticas de seu tratamento pela sociedade e
estrutura, dessa mesma forma, a ação do Estado.
Chega-se, então, à segunda conseqüência implicada pela
supervalorização da função do problem solving: as políticas
públicas não são somente espaços de confrontação entre decision
makers, mas constituem uma dimensão inteiramente à parte da
função política na sociedade. De um lado, como se viu, uma
política pública constitui uma ordem local, isto é, um sistema
concreto de ação no interior do qual os atores vão mobilizar
recursos diversos (técnicos, organizacionais...) a serviço de

28
estratégias complexas de poder, que visam a realizar os objetivos
mais ou menos explícitos e mais ou menos construídos.
Mas uma política pública é, também, fazer "política" por
outros meios, constituindo as políticas os elementos de um
processo mais global que corresponde a uma combinação de
regulação política e de legitimação na sociedade. Com efeito,
ater-se, como se fará aqui, aos processos de construção do
sentido, não é possível reduzir uma política a um conjunto de
estratégias organizacionais, mesmo se a análise dessas estratégias
é indispensável para compreender as formas concretas, os
mecanismos pelos quais o sentido é "fabricado". Ao contrário, é
necessário ultrapassar esse quadro restrito para mostrar que as
políticas públicas são, sem dúvida, um elemento de participação
política (Cobb, Elder, 1983) que completa, concorre e/ou
interage com os modos tradicionalmente consagrados que são o
voto ou a militância. Uma tal perspectiva permite, assim,
vincular as políticas, no sentido de policies, às dinâmicas e aos
atores que caracterizam a política (politics) e aos processos e às
interações que concorrem para a formação e a evolução da polity.

29
TEORIAS DA AÇÃO PÚBLICA:
NOVAS ABORDAGENS

A análise das políticas públicas mantém relações


complexas com a teoria e a sociologia do Estado (Badie,
Birnbaum, 1979). Se numerosos trabalhos se caracterizam, com
efeito, por um certo pragmatismo muito distante das teorizações
tradicionais, acompanhado de uma tendência à formulação de
proposições normativas, a análise das políticas públicas é, talvez,
um dos domínios da ciência política que mais tem contribuído,
ao longo dos últimos anos, para introduzir novas questões. É isso
que explica, sem dúvida, em parte, a ambivalência de seu
estatuto, enquanto disciplina, na ciência política hoje,
especialmente na França: logo acolhida como um domínio de
pesquisa em crescimento ao qual é de bom tom referir-se, ela
permanece, ao mesmo tempo, com freqüência percebida como
uma disciplina à parte, mantendo ligações pouco claras com a
ação, colocando em ação métodos bizarros e desenvolvendo
conceitos exóticos. Se não for possível, no quadro restrito desta
obra, passar em revista, com pormenores, uma literatura cada vez
mais abundante, poder-se-á, entretanto, propor um certo número
de hipóteses sobre as principais contribuições da análise das
políticas públicas à teoria e à sociologia do Estado.
Pode-se, de início, constatar que, até os anos de 1970,
duas grandes tradições científicas partilharam o campo da análise
do Estado, as abordagens estatal e pluralista. Produzidas por uma
longa história intelectual, ambas se fundavam sobre olhares
diferentes, sobre o Estado, mobilizando questionamentos e
instrumentos de análise distintos. As críticas que lhes foram
dirigidas, mais ou menos ligadas às análises que reivindicavam o
enfraquecimento progressivo do Estado, pareceram, em seguida,
relegar este objeto central da ciência política ao esquecimento da
história, em especial no seio da literatura anglo-saxônica. Como
o constatava Stephen Krasner, “os politicólogos escreviam sobre

30
o governo, o desenvolvimento político, os grupos de interesse, o
voto [...], mais ou menos tudo menos „o Estado‟ ” (Krasner,
1984, p. 223).
Portanto, depois de uma vintena de anos, a questão do
Estado voltou, essencialmente pelo viés da análise das políticas
públicas. Essa renovação parece tanto mais surpreendente porque
ela se situa num contexto global marcado pelo questionamento
do papel do Estado e de suas formas de intervenção tradicionais,
de modo especial no campo econômico (desregulamentação) e no
campo social (crise do Estado-providência). Apesar disso, esta
“redescoberta” do Estado, ligada em particular a certos trabalhos
iniciais de Theda Skocpol ou Charles Tilly (Skocpol, in Evans,
Rueschmeyer, Skocpol, 1985; Tilly, 1975), conduziu, desde
então, à emergência de novos instrumentos conceituais, entre os
quais serão apresentados de forma breve, aqui, o neo-
institucionalismo e a abordagem cognitiva das políticas públicas.
De inspirações diversas, essas novas abordagens começam com
efeito a desenhar os programas de pesquisa que, se eles não
fazem a unanimidade dos pesquisadores, longe disto, são
estimulantes o suficiente para suscitar debates e controvérsias.

Duas concepções tradicionais do Estado

Mesmo se as distinções operadas aqui não são sem


dúvida tão claras como parece, ao ponto de suscitar às vezes
cortes transversais, pode-se, entretanto, considerar que duas
grandes perspectivas têm, tradicionalmente, partilhado o campo
da teoria do Estado, a abordagem estatal e a abordagem
pluralista. A partir de perspectivas teóricas múltiplas, cada uma
dentre elas desenha, com efeito, modos de estruturação e de
hierarquização opostas, concernindo as relações entre a
sociedade e o Estado (Birnbaum, 1985).

A abordagem estatal ou a sociedade produzida pelo Estado

Sem dúvida, porque as concepções teóricas são, em


parte, determinadas pelos objetos aos quais elas se aplicam, a

31
abordagem estatal aparece no essencial como uma tradição
européia, mesmo se autores americanos (Wright Mills por
exemplo, Mills, 1956) puderam aí se encontrar. A origem
principal destas teorizações data do século XIX com a difusão
progressiva do Estado-nação e a extensão progressiva de
aparelhos político-administrativos, dispondo de poderes e de
competências sempre mais amplos (Rosanvallon, 1990). Elas
buscam suas fontes principais na filosofia alemã e no marxismo-
leninismo, antes de adquirirem uma orientação mais sociológica
com os trabalhos de Durkheim e de Weber. Tentar-se-á resumir,
de forma esquemática, esta visão de Estado através de alguns
problemas centrais postos por esta abordagem.
Em primeiro lugar, a interrogação inicial sobre as
condições de produção do Estado leva a maior parte dos autores
que se inscrevem nesta abordagem a postular que este último é o
resultado de uma relação dialética com a sociedade. Produzido
por ela, ele participa também na sua produção: a sociedade
moderna não existe sem Estado. Esta perspectiva acha o
essencial de sua fonte no pensamento hegeliano que vê o Estado
como a realização da sociedade civil na sua unidade, tornando-se
o Estado o lugar da “previdência universal” sem o qual a
sociedade não existe. Principal conseqüência desta centralidade
adquirida pelo Estado, [é que] as lógicas em ação no mesmo não
podem ser deduzidas das diferentes lógicas sociais. Como diz
Hegel com vigor, a ação do Estado transcende os múltiplos
interesses particulares da sociedade civil, para colaborar na
definição de um interesse comum, do qual se encontra a imagem
na noção francesa de interesse geral.
Depois de Hegel, Marx vai aparentemente inverter a
perspectiva da relação Estado-sociedade, estabelecendo que é a
luta de classes que explica o Estado e seu aparelho de repressão.
Na teoria marxista, é, portanto, a aparição das classes e suas lutas
constantes que explicam a gênese e a evolução do Estado, o que
significa que - como o escreve Lenin - o desaparecimento das
classes deve levar automaticamente “a extinção” do Estado. A
questão da autonomia do Estado parece, portanto, não se colocar,
de modo especial entre os exegetas da obra de Marx, os quais
verão, no essencial, o Estado como o simples instrumento da

32
classe dominante. Portanto, o pensamento do próprio Marx,
assim como certos escritos de Engels, atestam uma possível
autonomia do Estado, fundada sobre a constituição de recursos
próprios que sustentam principalmente a formação de um amplo
aparelho burocrático. Sobretudo, é a prática dos revolucionários
que se indentificam com o pensamento marxista, que vai fazer do
Estado, não mais o produto da sociedade, mas o vetor de sua
transformação, pela criação de uma ordem totalitária.
Fica, então, posta a questão da “função” do Estado, como
órgão separado, na e para a sociedade. Se esta “função” consiste
no essencial em assegurar a dominação de classe no esquema
marxista ortodoxo, esta problemática não se torna, sem dúvida,
pela primeira vez, um objeto de questionamento sociológico,
senão com os trabalhos de Durkheim. Numa perspectiva geral
marcada pela divisão crescente do trabalho social, o Estado
adquire então um estatuto e uma natureza diretamente indexados
à evolução social. Assim, para Durkheim, “mais as sociedades se
desenvolvem, mais o Estado se desenvolve; suas funções tornam-
se mais numerosas, penetram mais todas as outras funções
sociais que ele concentra e por isso mesmo unifica” (Durkheim,
1975, p. 170). Progressivamente autonomizado pelo efeito da
produção de regras e de órgãos separados, o Estado preenche
então uma função essencial assemelhada, numa perspectiva
orgânica, ao papel desempenhado pelo cérebro num indivíduo.
Órgão centralizado e racional por excelência, ele é, com efeito, o
único que assegura a coerência e a coordenação das funções
sociais para o exercício de um pensamento “meditado”.
Este pensamento do Estado autônomo encontra sua plena
aplicação com a obra de Weber, que coloca no centro de uma
análise focalizada sobre os objetos políticos o problema da
dominação. Estabelecendo uma tipologia da dominação que
distingue três tipos ideais (carismático, tradicional, racional),
Weber é conduzido a definir o Estado, numa perspectiva
evolucionista, como a forma do modo de dominação racional. A
aparição e a evolução do Estado são, com efeito, concebidos por
referência a um processo de racionalização essencialmente
marcado pela formação progressiva de um aparelho burocrático.
Nesta acepção, o Estado é então definido como “uma empresa

33
política de caráter institucional, logo que e na medida em que sua
direção administrativa reivindica com sucesso, na aplicação dos
regulamentos, o monopólio da força física legítima” (Weber,
1971, p. 57).
O conjunto destas abordagens forma o pedestal da maior
parte das teorias que valorizam o papel central do Estado nas
relações sociais. Sem entrar nos detalhes de uma longa história
da sociologia do Estado (Badie, Birnbaum, 1979), contentar-nos-
emos em mostrar que uma tal perspectiva pôde alimentar uma
corrente de análise particular quanto à natureza da intermediação
contemporânea entre Estado e grupos de interesse na produção
da ação pública, aquela do neo-corporativismo. Considerando a
centralidade do Estado e de sua natureza monopolística quanto
ao exercício da dominação, os defensores da abordagem neo-
corporativista ultrapassam entretanto o quadro institucional do
aparelho político-administrativo, para descrever a ação do Estado
como o produto de uma relação institucionalizada entre um
número limitado de atores públicos e privados (Schmitter, 1974;
Lehmbruch, Schmitter, 1979).
Como colocou Philippe Schmitter, o corporativismo
pode, então, ser definido “como um sistema de representação em
que as unidades constitutivas são organizadas num número
limitado de categorias singulares, obrigatórias, não competitivas,
hierarquizadas e funcionalmente diferenciadas, reconhecidas ou
autorizadas (se não criadas) pelo Estado e que se vêem
asseguradas de um monopólio deliberado de representação no
interior de suas respectivas categorias em troca do exercício de
certos controles sobre a seleção de seus líderes e sobre a
articulação das reivindicações e dos apoios” (Schmitter, 1974,
pp. 93-94). Aplicado, inicialmente, num nível macro-social, para
dar conta de certos tipos de organização político-institucional,
fundada sobre a relação tripartida entre o Estado, os sindicatos e
o patronato na regulação social e a produção de políticas
públicas, esta noção pôde ser, em seguida, utilizada de modo
mais sistemático num nível de análise mais restrita
(Hassenteufel, 1990). Centrada então na atualização das lógicas
corporativistas sectoriais (Jobert, Muller, 1987), a análise nem se
quer respeitava a abordagem estatal que mostra o papel eminente

34
das instâncias estatais no reconhecimento, e até na “produção” de
representantes dos interesses sociais, e em definitivo, na
produção mesma das políticas públicas. Ela mostrava, assim,
como a institucionalização das relações entre atores públicos e
privados, numa troca mais ou menos equilibrada, era constitutiva
da regulação do setor (Cf. para a agricultura na França, Muller,
1984).

A abordagem pluralista ou o Estado produzido pela sociedade

A abordagem pluralista permanece fortemente ligada aos


trabalhos americanos, centrados na análise dos processos de
decisão (Dahl, 1961). Ao contrário da abordagem estatal, ela
tende a se organizar ao redor da idéia, segundo a qual o Estado é
o resultado de processos sociais irredutíveis. Longe de modelar a
sociedade, o Estado é, pois, o produto da interação entre os
grupos livremente formados, e constitui uma forma de “véu”
totalmente permeável aos interesses e à competição dos grupos
que caracterizam as lógicas sociais. Mesmo se os defensores da
abordagem pluralista têm progressivamente afinado seu modelo
(Mc Farland, 1987), reconhecendo, por exemplo, a possibilidade
de uma desigualdade estrutural entre os grupos de interesse, ou
aceitando a idéia de que a ação administrativa podia contribuir
para reinterpretar, e até modificar o conteúdo das demandas
dirigidas ao Estado pelos grupos, o coração da abordagem
pluralista constitui sempre a referência dominante de uma
maioria de trabalhos americanos.
Esta perspectiva conduz, evidentemente, a conseqüências
importantes do ponto de vista da análise da ação pública. Para os
defensores do paradigma pluralista, o conteúdo de uma política
será o resultado das diferentes pressões exercidas pelos grupos de
interesse envolvidos. Por exemplo, uma política favorecendo um
tipo de combustível, com o fim de lutar contra a poluição, será a
resultante das pressões contraditórias de diferentes grupos de
interesses: construtores automobílisticos, ecologistas, usuários de
transportes públicos etc. O sentido desta política será, portanto,
buscar na capacidade dos grupos envolvidos mobilizar recursos,

35
exercer pressões ou impor sua visão do mundo, convertendo, por
fim, suas ações em decisões públicas.
Isso significa, da mesma forma, que os grupos de
interesse em questão “existem” independente de sua relação com
o Estado. Eles são o produto da concorrência que se exerce entre
os diferentes candidatos à representação das múltiplas
comunidades de pertença, que constituem a sociedade:
associações de defesa do meio ambiente, grupos feministas,
sindicatos, interesses econômicos, coalizões de “causa” ou
grupos de interesses se constituem livremente, confrontam-se
sobre um “mercado” da representação, entram em relação com o
Estado, seja por intermédio de seus representantes, seja por
intermédio de lobistas profissionais, para fazer valer seu ponto de
vista e traduzir seus interesses na legislação. Quanto à
burocracia, longe de representar uma força de previdência
universal, ela explode em grupos concorrentes que vão
confrontar-se mais ou menos abertamente, para fazer valer o
ponto de vista e os interesses dos diferentes serviços no processo
de decisão.
Numa tal perspectiva, a noção de interesse geral não tem
grande sentido, na medida em que a ação do Estado não é mais
que o resultado aleatório do livre afrontamento dos interesses
particulares. Uma tal abordagem alimenta, por isso mesmo, por
parte das análises inspiradas na sociologia de interesse e da
escola da escolha racional e do Public Choice (Downs, 1975;
Buchanan, Tullock, 1962; Riker, Ordershook, 1973). Num tal
esquema, os indivíduos são postulados a buscar a maximização
de seus interesses pela mobilização de fontes que podem
conduzir (mas não necessariamente) à ação coletiva (Olson,
1978). Nesta acepção geral, a ação pública é, no melhor dos
casos, difícil em razão da concorrência dos interesses, e até
negativa, quando ela interdita o livre funcionamento do mercado
político e a expressão das preferências dos atores.
Para além destas posições, às vezes até extremas, que
têm conduzido a reivindicar o desaparecimento do Estado, pode-
se sublinhar a proximidade intelectual inegável, que existe entre
a abordagem pluralista e os fundamentos da análise das políticas
públicas, tal qual ela foi definida pelos fundadores americanos

36
desta disciplina. Sobre diversos aspectos, com efeito, a análise
das políticas públicas pode tornar-se o oposto das abordagens
clássicas do Estado, mencionadas antes, alimentando-se da
abordagem pluralista. Ela o tem feito, inicialmente, “abrindo a
caixa preta” do aparelho político-administrativo. Na medida em
que o olhar que faz a análise das políticas públicas sobre o
Estado se aplica aos atores das políticas públicas e às estratégias
postas em ação, ele tem alimentado uma forma de
“desconstrução” do Estado, fazendo aparecer isso que as análises
“européias” haviam tendido a ocultar: a existência de uma
multiplicidade de racionalidades concorrentes no interior do
Estado, sustentadas por atores, cujos interesses não coincidem
necessariamente e, sobretudo, são distintos daquilo que poderia
ser o interesse geral.
A análise das políticas públicas tem, por isso mesmo,
introduzido uma ruptura com a concepção weberiana do Estado
(o Estado não é mais uma “máquina” a serviço do Príncipe, que
aplica sine ira et studio as vontades dos governantes), como com
a tradição marxista ortodoxa que fazia do Estado um instrumento
a serviço da classe dirigente (mesmo se pudéssemos sustentar
que a abordagem marxista possui, às vezes, elementos
paradoxalmente próximos das análises pluralistas). A bem da
verdade, para o analista das políticas, o Estado não existe, na
verdade, enquanto entidade global suscetível de um tratamento
específico. Somente sua ação é objeto da atenção do pesquisador
e se compreende nestas condições que uma das contribuições da
análise das políticas públicas seja o colocar em evidência os
múltiplos contatos que o Estado mantém com seu contexto.

As duas dimensões da ação do Estado

Se tentamos agora fazer a síntese dessas duas grandes


abordagens, percebemos que elas colocam o acento sobre duas
dimensões particulares do Estado que, se procurarmos pensá-las
de modo conjunto, permitem medir o caráter contraditório da
ação pública. A abordagem estatal conduz, assim, inicialmente, a
considerar o Estado na sua unidade e seu caráter irredutível à
ação dos atores que participam nas políticas públicas. Ela

37
permite, por isso mesmo, pensar o caráter global do Estado como
entidade que, de um modo ou de outro, exprime uma forma de
unidade da sociedade. Em todo caso, o Estado, nas sociedades
modernas, permanece o lugar onde é “construída” a
representação que a sociedade faz de si mesma, isto é a
representação de sua própria existência, enquanto sociedade
espacial e historicamente situada, e de sua relação com o mundo.
A abordagem pluralista, ao contrário, coloca o acento sobre o
caráter inelutavelmente societário do Estado, sobre a imersão das
políticas públicas na complexidade das relações sociais e,
sobretudo, sobre o caráter inelutavelmente contraditório da ação
pública que, submetida a uma multiplicidade de exigências
antagônicas, parece não ser senão o resultado improvável de uma
ausência de direção homogênea.
Isso significa que as duas abordagens exprimem, cada
uma a sua maneira, uma certa verdade do Estado e de sua ação,
porque o Estado exprime, ao mesmo tempo, a unidade e a
diversidade da sociedade, sua existência enquanto totalidade
pensada e sua tendência inevitável à explosão. Por esta razão, o
estudo da ação do Estado é, de certa maneira, condenado a abrir
um caminho difícil entre estas duas vias extremas, assim como o
tentaram duas novas abordagens forjadas ao longo dos anos
1980, testemunhando dois movimentos simétricos que permitem
sem dúvida melhor levar em conta a complexidade da ação
pública.

O neo-institucionalismo

Iniciado por um artigo de James March e Johan Olsen


(March, Olsen, 1984, depois 1989), o neo-institucionalismo foi
formulado com a intenção explícita de romper com as
abordagens behavioristas considerando as instituições como um
fator de “ordem” essencial, que definem os quadros onde se
desenvolvem os comportamentos individuais, a ação coletiva ou
as políticas públicas. Atenta também para não recair nos defeitos
descritivos do institucionalismo tradicional, centrado sobre o
estudo dos órgãos político-administrativos, a perspectiva neo-

38
institucionalista é posta como uma tentativa de “relativiza[r] a
dependência do sistema político em relação à sociedade a favor
de uma interdependência entre as instituições sociais e políticas
relativamente autônomas” (March, Olsen, 1984, p. 738). Por isso
mesmo, as instituições não são somente concebidas como um
“espelho” da sociedade ou o simples produto das lógicas
individuais, ainda mais que elas não são um fator exógeno ao
jogo dos atores, da seleção dos líderes e da distribuição dos
recursos. Elas formam ao contrário o quadro evolutivo dessas
interações, cujas formas e modalidades mudam de modo
progressivo pelo efeito mesmo destas interações.

Os elementos fundamentais do neo-institucionalismo

De modo mais preciso, o neo-institucionalismo leva a


colocar o acento sobre duas dimensões importantes da ação
pública nas sociedades complexas.
1. As instituições como fator de ordem. As regras, as
rotinas e os modos operatórios estandardizados são um fator de
ordem na atividade política, reduzindo o caráter caótico da
competição. Essas regras são em extremo variadas: regras
procedimentais, especificando o caminho a seguir, segundo as
circunstâncias; regras decisórias, determinando como os “inputs”
devem ser convertidos em “outputs”; regras de avaliação,
determinando segundo quais critérios devem ser medidos os
resultados; regras fixando a alocação da autoridade e das
responsabilidades, o recolhimento e a utilização de informações,
o acesso às diversas instituições e arenas políticas, a organização
da temporalidade da ação assim como a mudança das próprias
regras. Como afirmam March e Olsen, a existência de uma tal
multidão de regras não significa, entretanto, que a ação política é
completamente determinada, nem que os indivíduos estejam
presos nas rotinas (assim como a ausência de racionalidade nas
decisões não significa que os indivíduos tem um comportamento
irracional). Aliás, a existência de rotinas institucionalizadas não
produz necessariamente comportamentos rotineiros, porque as
regras são múltiplas (e freqüentemente contraditórias),
oferecendo assim aos atores numerosas ocasiões de escolha.

39
2. A política como interpretação do mundo. As regras
não são, portanto, somente “rotinas, procedimentos, convenções,
papéis, estratégias, formas organizacionais e tecnologias em
torno das quais a atividade política é construída”, mas também
“as crenças, paradigmas, códigos, culturas e saberes que rodeiam,
sustentam, elaboram e contradizem esses papéis e essas rotinas”
(March, Olsen, 1989, p. 22). Se as instituições são um fator de
ordem, elas contribuem igualmente para colocar em forma o
sentido que os atores dão à sua ação. De fato, uma tal abordagem
repousa assim sobre a idéia segundo a qual a política (e portanto,
as políticas) pode ser considerada como uma “interpretação da
vida”.
A propósito, a abordagem institucional participa da
colocação em questão da idéia segundo a qual as políticas devem
ser desde o início analisadas a partir de seus resultados
(outcomes). Para March e Olsen, “a política é considerada como
uma forma de educação, um lugar de descoberta, de elaboração e
de expressão do sentido, estabelecendo concepções partilhadas
(ou opostas) da experiência, dos valores e da natureza da
existência. Ela é simbólica, não no sentido recente dos símbolos,
como meios que permitem aos poderosos manipular os fracos,
mas antes, no sentido dos símbolos, como instrumento de uma
ordem interpretativa” (March, Olsen, 1989, p. 48). É por isso
que, para os defensores da abordagem neo-institucional, a
política não é somente fundada sobre a escolha (abordagem pela
escolha racional), mas também sobre os mecanismos de
construção e de interpretação do mundo, isoláveis nos processos,
mais que nos resultados das políticas públicas, e que determinam
“cartas mentais”, operando como os quadros da experiência e dos
redutores de incerteza (North, 1990).
Nesta abordagem neo-institucionalista aparece, assim,
uma dupla crítica das abordagens “canônicas” do paradigma
pluralista. A primeira concerne à relação entre os processos
saídos da sociedade civil (estratégias individuais ou micro-
sociais, grupos de interesse, setores...) e os processos estatais
(gênese das instituições e das políticas públicas): para os neo-
institucionalistas, as instituições não se deduzem dos
comportamentos e das estratégias individuais, mas repousam

40
sobre as lógicas próprias que é preciso analisar e compreender. A
segunda crítica concerne à questão do sentido: o sentido da ação
humana não é mais produzido, de modo autônomo e
decentralizado, pelos atores da sociedade civil, porque as
instituições (portanto o Estado e “suas” políticas) participam do
trabalho de interpretação e de explicação do mundo, sem o qual a
ação dos indivíduos é desprovida de sentido.
Simetricamente, a abordagem neo-institucionalista
recusa toda autonomia do Estado a respeito dos grupos sociais,
deslocando o olhar das estruturas político-administrativas para as
“instituições” (na acepção ampliada dada por March e Olsen)
como objeto pertinente de análise. São, portanto, as condições de
produção e de evolução das instituições (regras procedimentais,
dispositivos particulares, representação...) que formam os
questionamentos fundamentais, permitindo pensar em definitivo
“o Estado em interação” (Hassenteufel, 1995).

Os três neo-institucionalismos

Partindo desta orientação geral relativamente


homogênea, cuja gênese permanece ligada na essência às
características da sociologia americana, a corrente neo-
institucionalista deu lugar a diversos modos de declinação
possíveis, que conduziram certos autores a falar de três neo-
institucionalismos (Hall, Taylor, 1996; ver igualmente Stone,
1992).
1. O institucionalismo histórico. Esta abordagem está
essencialmente centrada na necessidade de apreender o Estado
em interação numa perspectiva de longo termo e pelo viés de
análises comparadas, permitindo estas duas orientações traçar as
“trajetórias” nacionais particulares (Steinmo, Thelen, Longstreth,
1992). Sobretudo, ultrapassando a ótica sincrônica característica
da sociologia estrutural-funcionalista, os analistas que se
apresentam como sendo dessa corrente, querem além do mais
colocar o Estado no centro da análise (Evans, Rueschemeyer,
Skocpol, 1985).
Resumindo os principais elementos constitutivos desta
abordagem, Hall e Taylor consideram que “os institucionalistas

41
históricos tendem, inicialmente, a conceptualizar a relação entre
as instituições e o comportamento individual em termos
relativamente abrangentes. Eles insistem, em segundo lugar,
sobre as assimetrias do poder, que decorrem da ação e do
desenvolvimento das instituições. Eles tendem, aliás, a ter uma
percepção do desenvolvimento institucional, que enfatiza a
dependência de caminho (path dependence) e das conseqüências
inesperadas. Eles estão, enfim, mais particularmente interessados
em associar a análise institucional à influência que outros tipos
de fatores, como as idéias, podem ter sobre os processos
políticos” (Hall, Taylor, 1996, p. 938).
Um dos principais conceitos, saídos desta abordagem
particular do neo-institucionalismo, é assim, como veremos mais
adiante, aquele da “dependência de caminho” (path dependence),
que descreve os caminhos evolutivos da ação pública em ligação
com os processos adaptativos que caracterizam a sociedade em
geral, assim como a natureza das trocas entre o Estado e os
grupos de interesse (Pierson, 1997). Seus principais terrenos de
pesquisa foram aplicados à análise das condições de produção e
dos quadros de evolução de políticas sociais, numa perspectiva
comparada (Immergut, 1992; Pierson, 1994), assim como às
políticas macro-econômicas (Hall, 1986, 1989, 1993).
2. O institucionalismo da escolha racional. Trata-se aqui
no essencial de uma declinação da perspectiva neo-
institucionalista, que busca integrar na escola da escolha racional
uma dimensão suplementar, centrada no papel das instituições
como redutoras de incerteza e fator determinante de produção e
de expressão das preferências dos atores sociais (Shepsle, 1989).
Inicialmente consagrada ao estudo das modalidades da decisão
no interior de órgãos político-administrativos precisos no
contexto americano, especialmente para o Congresso, esta
orientação da corrente neo-institucionalista se ampliou
progressivamente para outros objetos, como os Parlamentos na
Europa (Döring, 1995).
Lá ainda, Hall e Taylor distinguem quatro traços
característicos deste gênero de abordagem, que têm relação, ao
mesmo tempo, com os comportamentos dos atores pertinentes,
com a essência mesma do vínculo político, com o papel

42
fundamental das interações estratégicas e, enfim, com as
condições de gênese das instituições. Sobre o primeiro ponto, os
institucionalistas da escolha racional consideram com efeito que
“os atores interessados têm um conjunto determinado de
preferências e de gostos [...], comportam-se de maneira
totalmente instrumental a fim de maximizar as chances de
realização destas preferências, e o fazem de uma maneira muito
estratégica que pressupõe cálculos aprofundados” (Hall, Taylor,
1996, p. 944-945). Este postulado, típico da abordagem racional
clássica, corresponde igualmente a uma visão do vínculo político,
que faz dele um problema de ação coletiva a resolver pelos atores
através de seus interesses e preferências.
Mas, a estas orientações gerais, os defensores desta
corrente do neo-institucionalismo juntam a necessidade de
apreender as interações estratégicas dos atores (os cálculos dos
atores se superpõem às antecipações adaptativas e estratégicas
definidas na interação), assim como a convicção de que as
instituições nascem através do valor que lhes dão os atores. A
permanência de instituições se fundamenta, pois, sobre a afeição
que lhes dão os atores, especialmente porque elas são redutoras
de incerteza e conferem aos atores interessados satisfações
duráveis, que neutralizam a concorrência no campo em questão.
3. O institucionalismo sociológico. Última corrente,
enfim, aquela do institucionalismo sociológico, que se aplica na
essência a renovar, graças à abordagem neo-institucionalista,
certas orientações e conclusões da sociologia das organizações
(Powell, DiMaggio, 1991). Para Hall e Taylor, uma das
particularidades desta abordagem está no fato de ter-se
distanciado do postulado racionalista da sociologia das
organizações (as organizações aparecem para preencher as
funções de modo “eficaz”), para postular, ao contrário, que “a
maior parte destas formas e procedimentos poderiam ser vistos
como práticas particulares de um ponto de vista cultural,
semelhantes aos mitos e às cerimônias inventadas em numerosas
sociedades” (Hall, Taylor, 1996).
Por isso, a análise das organizações integra uma
dimensão que há muito tempo parecia constituir um dos pontos
fracos, a saber, a análise das variáveis culturais na apreensão das

43
condições de formação e de funcionamento das unidades
sociológicas que são as organizações. Disso decorre uma
perspectiva muito ampliada, que tende a ver os próprios fatores
culturais como instituições, o que valoriza a análise dos
elementos cognitivos que pesam sobre os comportamentos
individuais e determinam a legitimidade das organizações.
Através desta extrema diversidade, pode-se, pois,
interrogar sobre a unidade efetiva da corrente neo-
institucionalista. Mais que uma perspectiva teórica autônoma,
essa última parece, com efeito, constituir um ângulo de análise
específico, centrado sobre os objetos na aparência limitados, as
instituições, mas cujo sentido é na prática de tal forma ampliado,
que ele termina, às vezes, por englobar o conjunto das variáveis
sociológicas tradicionais. Seu uso numa perspectiva de pesquisa
chama, portanto, à prudência e a especificações precisas, a
vontade de pensar “o Estado em interação” numa perspectiva
histórica e geográfica comparada, constituindo deste ponto de
vista, sem dúvida, uma das orientações da pesquisa dentre as
mais promissoras (Hassenteufel, 1995).

A abordagem cognitiva das políticas públicas

Depois de uma dezena de anos, desenvolveu-se uma


corrente de análise, às vezes qualificada de abordagem cognitiva,
que se esforça por apreender as políticas públicas como matrizes
cognitivas e normativas, constituindo sistemas de interpretação
do real, no interior dos quais os diferentes atores públicos e
privados poderão inscrever sua ação. Apesar de certas diferenças,
tais pesquisas, que colocam o acento sobre o peso de idéias, de
preceitos gerais e de representações sobre a evolução social,
possuem, portanto, um ponto comum essencial, que é o de
estabelecer a importância das dinâmicas de construção social da
realidade na determinação dos quadros e das práticas socialmente
legítimas num instante preciso (Berger, Luckmann, 1986).
Ligada ao pressuposto do peso dos valores e da dimensão
simbólica em política, um tal ângulo de abordagem pode
alimentar um número crescente de trabalhos que estudam os

44
modos de ação do Estado. De maneira precoce, Murray Edelman
pode, assim, estabelecer a importância dos elementos simbólicos
e retóricos na determinação das políticas e dos usos da política
(Edelman, 1976). Outros autores, principalmente Giandomenico
Majone, interessam-se também pelas dinâmicas intrínsecas de
argumentação e de trocas simbólicas a respeito de práticas
estatais (Majone, 1989). De modo conexo, diversos trabalhos
resultaram na atualização de dinâmicas cognitivas de
aprendizagem na determinação da extensão e da evolução de
dispositivos da ação pública (Heclo, 1974; Wildavsky, 1979;
Rose, 1990,1991).
Três abordagens podem de modo especial ser isoladas
nesta corrente geral, marcada pela importância concedida aos
valores, às idéias e às representações no estudo das políticas
públicas. Formuladas em separado ao longo dos anos 1980, em
função de lógicas de posicionamento aliás diferentes, esses
modelos conceptuais repousam sobre as noções de paradigma
(Hall, 1993), de advocacy coalition (Sabatier, Jenkins-Smith,
1993), ou ainda sobre a noção de referencial (Jobert, Muller,
1987; Faure, Pollet, Warin, 1995).

Paradigma, sistemas de crença, referenciais

Apesar das diferenças, às vezes importantes, essas


conceptualizações apresentam a vantagem e o ponto comum de
incluir um questionamento em nível macro, que visa esclarecer a
influência exercida pelas normas sociais globais sobre os
comportamentos sociais e sobre as políticas públicas. Com efeito,
os três modelos repousam, fundamentalmente, sobre o papel
essencial desempenhado por aquilo que se qualificará aqui como
matrizes cognitivas e normativas, expressão genérica que integra
os paradigmas (Hall), os sistemas de crenças (Sabatier) e os
referenciais (Jobert, Muller). As três noções recobrem elementos
análogos, ainda que eles se prestem a diferentes recortes.
De modo muito simplificado, os diferentes modelos
propostos repousam, antes de tudo, sobre a convicção de que
existem valores e princípios gerais que definem isso que se
poderia chamar, na falta de melhor, “uma visão de mundo”

45
particular. Trata-se, no caso, de princípios abstratos, que definem
o campo dos possíveis e do dizível numa sociedade dada,
identificando e justificando a existência de diferenças entre
indivíduos e/ou grupos, hierarquizando um certo número de
dinâmicas sociais... No seu estudo de políticas macro-
econômicas, desenvolvidas na Inglaterra nos anos 1970 e 1980,
Peter Hall tinha assim identificado uma oscilação entre princípios
de inspiração keynesiana e princípios qualificados de
“monetaristas”. De maneira implícita, pode-se considerar que
funcionava em plano de fundo uma visão de mundo cada vez
diferente, colocando o indivíduo racional e responsável em
primeiro plano no segundo modelo, associado a uma forma de
darwinismo social simplista (“os melhores vencerão pelo efeito
benéfico do mercado e realizarão, assim, a prosperidade da
comunidade inteira”), reconhecendo, ao contrário, o paradigma
keynesiano, o dever da coletividade na correção dos males
inerentes às sociedades modernas, a partir de uma visão das
dinâmicas econômicas, recusando o caráter necessário e benéfico
dos livres ajustamentos do mercado.
Estas matrizes cognitivas comportam, em segundo lugar,
os princípios específicos, que declinam, de modo variável, os
princípios mais gerais. Por analogia com o esquema analítico
proposto por Kuhn (Kuhn, 1983), esta segunda camada cognitiva
e normativa permite, assim, operacionalizar os valores gerais,
num domínio e/ou numa política precisa e/ou num subsistema.
Ela levanta eixos de ação desejáveis, que determinam por parte,
em interação com o jogo dos interesses e o peso das instituições,
as estratégias dos atores. De modo complementar, a noção de
referencial setorial (Jobert, Muller, 1987) acrescenta a esta
dinâmica uma dimensão “espacial”, mostrando que a declinação
dos princípios gerais podem, igualmente, aplicar-se a definir
“uma imagem do setor, da disciplina ou da profissão” (Muller,
1994 a, p. 48).
O conjunto desses elementos cognitivos e normativos
determina também considerações práticas sobre os métodos e os
meios mais apropriados para realizar os valores e os objetivos
definidos. Peter Hall, sobre o mesmo exemplo das políticas
macroeconômicas, mostra que as técnicas empregadas variam

46
fortemente segundo o paradigma adotado, sendo que os
dispositivos de reativação do consumo pelo viés de uma política
orçamentária expansionista, característicos das orientações
keynesianas, opõem-se, por exemplo, aos controles das taxas e ao
uso geral da política monetária no quadro monetarista. A
mobilização de um certo número de instrumentos não se faz,
portanto, de maneira neutra, mas responde, ao contrário, a certos
imperativos normativos e práticos desenhados/definidos pelos
elementos precedentes.
Último nível enfim, o conjunto da matriz implica a
escolha de especificações instrumentais, que visa a animar os
instrumentos escolhidos numa direção precisa e coerente com as
indicações deduzidas dos outros elementos. Analisando o papel
dos aspectos secundários no interior dos sistemas de crença,
característicos de uma “coalizão de causa”, Paul Sabatier inclui
aí, por exemplo, as decisões menores que podem apoiar-se, no
interior de um programa particular, sobre as alocações
orçamentárias, as regras administrativas, as interpretações
estatutárias.
Portanto, numa palavra, é o conjunto dos elementos que
fazem sistema, que levanta assim mapas mentais particulares. O
interesse heurístico de distinguir estes diferentes componentes
repousa, essencialmente, sobre o fato de que eles permitem
isolar, analiticamente, os processos pelos quais são produzidas e
legitimadas as representações, as crenças, os comportamentos,
principalmente sob a forma de políticas públicas particulares no
caso do Estado.

A produção das identidades

Uma das principais implicações da existência de uma


matriz cognitiva e normativa, partilhada por um certo número de
atores, é, sem dúvida, a de alimentar junto a eles uma
“consciência coletiva”, dito de outro modo, um sentimento
subjetivo de pertença, produtor de uma identidade específica.
Atrás de um paradigma ou um referencial se encontra sempre,
com efeito, a gestão do vínculo entre os princípios gerais e os
princípios específicos, cuja articulação conseguida é produtora de

47
identidade. Realizando a adequação entre o imperativo global de
modernização e os princípios de funcionamento do setor
agrícola, os jovens agricultores, promotores da lei de 1960,
geraram e se apoiaram sobre uma imagem renovada de
agricultor, construção social que repousa, no caso, sobre a
produção de uma identidade de substituição para os indivíduos,
constitutiva de novos modos de definição do grupo na sociedade
(Muller, 1984).
A existência de uma matriz cognitiva e normativa é, por
isso mesmo, fonte de fronteiras, que constituem um grupo e/ou
uma organização e/ou um sub-sistema em si, mas ela está
igualmente na origem dos modos de articulação e de passagem
destas “clausuras”, que permitem aos defensores do paradigma
ou do referencial pensar em relação a um conjunto mais vasto. A
configuração da profissão médica, sob este aspecto, caracteriza-
se, exatamente, pela colocação de normas e de princípios de
constituição, que definem os limites legítimos do meio
profissional, assim como a natureza das relações com os outros
atores, pacientes, Estados, organismos de Seguridade social...
(Hassenteufel, 1997).
De modo emblemático, podem ser vistos mecanismos de
mobilização e/ou regeneração destes esquemas identitários
constitutivos de uma matriz cognitiva e normativa dada, em caso
de “crise” do paradigma determinante da política pública. O
exemplo da valorização progressiva das políticas do livro, em
detrimento das políticas da leitura dos anos 1980, é característico
deste ponto de vista. A crise econômica, que atingiu o campo
editorial nos anos 1970, tornou com efeito as políticas da leitura
parcialmente inadaptadas em relação às novas reivindicações
elaboradas pelos “editores”, reivindicações estas construídas em
referência à representação tradicionalmente legítima do setor e
percebida, então, como ameaçada, segundo a qual “o livro não é
um produto como os outros” (Surel, 1997 a).

As lógicas de poder

Num processo de construção de um paradigma ou de um


referencial, pode-se, além do mais, observar lógicas de poder.

48
Assim, logo que se examina a elaboração de uma política
pública, percebe-se com freqüência que o(s) representante(s) de
um grupo (os agricultores modernizados, as associações
ecologistas) instaura(m) da mesma forma uma relação de
leadership no setor, diretamente indexada à elaboração e/ou à
mobilização de uma matriz cognitiva e normativa particular.
O processo de construção de uma matriz cognitiva é, por
isso mesmo, um processo de poder pelo qual um ator faz valer e
afirma seus próprios interesses. Uma relação circular existe com
efeito entre lógicas de sentido e lógicas de poder, através da qual
o ator constrói o sentido que toma o leadership do setor que
afirma a sua hegemonia, tornando-se legitimo o referencial ou o
paradigma em conseqüência desta estabilização das relações de
força. A produção de uma matriz cognitiva não é, portanto, um
simples processo discursivo, mas uma dinâmica intimamente
ligada às interações e às relações de força que se cristalizam
pouco a pouco num setor e/ou num sub-sistema dado.
Ela alimenta, ao mesmo tempo, um processo de tomada
de palavra (produção do sentido) e um processo de tomada de
poder (estruturação de um campo de forças).
Assim a introdução da política de modernização da
agricultura, no início dos anos sessenta, permitiu a uma nova
geração de agricultores assumir a direção das organizações
agrícolas, da mesma forma que o pequeno núcleo dos
engenheiros da Indústria Airbus tomou o leadership do conjunto
do “sistema Airbus”, porque eles se tornaram os intérpretes do
mercado. Do mesmo modo, confrontados com uma grave crise
econômica que se acrescentava à transformação progressiva das
lógicas de funcionamento do mercado do livro, que ilustrava a
chegada de novos atores, certos editores franceses foram à fonte
de um paradigma de exceção do livro (“o livro não é um produto
como os outros”), gerando as tensões alimentadas pela
valorização das lógicas comerciais, preconizando o
reconhecimento das particularidades de seu setor, mas
assegurando também a manutenção de seu próprio estatuto no
setor do livro (Surel, 1997 a, 1997 b).
O leadership adquirido por um grupo de atores ou por
uma coalizão de causa precisa não significa, portanto, que as

49
trocas no interior do subsistema são neutralizadas, mas voltam a
colocar o acento sobre a existência de um quadro cognitivo no
interior do qual vão afrontar-se face a face os atores. Desse ponto
de vista, o debate acerca da globalização é inteiramente
emblemático: ao longo do debate, implementa-se um conjunto de
imagens (“a competição internacional”, os “riscos” da
imigração), de princípios de ação (a baixa do imposto é
“necessária” para manter a competitividade internacional), de
normas (é preciso aliviar o peso dos sistemas de proteção social)
ou de valores (o espírito de empresa, os valores do “privado”
face àqueles do “público”) que vai enquadrar o debate público e
constituir uma matriz cognitiva e normativa no interior da qual
vão se afrontar os atores.
Em definitivo, a abordagem cognitiva, como a
abordagem neo-institucionalista, busca ultrapassar o dilema do
determinismo e do voluntarismo, propondo uma grade de análise
que combina uma certa forma de determinismo estrutural (os
atores políticos não são totalmente livres de suas escolhas) e uma
certa forma de voluntarismo (as escolhas políticas não são
totalmente determinadas pelas suas estruturas). Enquanto as
diferentes correntes do neo-institucionalismo tentam tomar a
ação pública pelo prisma das instituições (no sentido amplo) que
determinam o funcionamento e a evolução, a abordagem
cognitiva, de seu lado, repousa sobre a idéia que uma política
pública opera como um vasto processo de interpretação do
mundo, ao longo do qual, pouco a pouco, uma visão do mundo
vai impor-se, vai ser aceita, depois reconhecida como
“verdadeira” pela maioria dos atores do setor, porque ela permite
aos atores compreender as transformações de seu contexto,
oferecendo-lhes um conjunto de relações e de interpretações
causais que lhes permitem decodificar, decifrar os
acontecimentos com os quais eles são confrontados.

50
A GÊNESE DA AÇÃO PÚBLICA
Um dos postulados dentre os mais bem estabelecidos das
ciências sociais repousa, sem dúvida, sobre a convicção que todo
fenômeno possui uma série de determinantes, cuja identificação e
explicação são necessárias para a boa compreensão do “fato”
social. Para esclarecer esta dinâmica, a análise das políticas
públicas apoia-se em três noções fundamentais ligadas por uma
seqüência básica: fenômenos sociais aparecem; eles se tornam
problemas dignos de atenção; sua resolução é atribuída ao
Estado. Enquanto os fenômenos sociais surgem mais
freqüentemente de modo caótico e imprevisível, a noção de
problema cobre uma realidade mais complexa e mais
estritamente definida, dependente das percepções cognitivas e
normativas ligadas a uma situação, constituindo a agenda o
conjunto dos problemas que chamam, em um instante (t), a
atenção e/ou a intervenção de um ou de diversos atores públicos
(Padioleau, 1982).
As primeiras obras especificamente consagradas aos
processos de colocação na agenda insistiam essencialemente
sobre o papel dos atores, no quadro de uma interrogação geral
relacionada com as dimensões da participação política nos
regimes democráticos (Cobb, Elder, 1972). Outras análises
focalizaram em paralelo os determinantes “objetivos” dos
problemas públicos, entre os quais se tem podido classificar as
catástrofes naturais ou os ciclos econômicos. Como a maior parte
das teses deterministas, esta apreensão das dinâmicas sociais foi,
entretanto, objeto de críticas fundadas sobre o caráter não linear
dos processos econômicos e políticos, encontrando-se esta visão
unificante confrontada além do mais com a variedade das formas
práticas de fenômenos supostos semelhantes, como a “reviravolta
liberal” (Jobert, 1994).
Retomando e juntando tais abordagens, a maior parte das
pesquisas atuais estão por conseguinte de bom grado orientadas

51
para a identificação e a explicação de uma pluralidade de modos
possíveis de gênese dos problemas públicos. Ao invés de apoiar-
se sobre o postulado de uma causa dominante, os trabalhos
recentes insistem com efeito sobre a complexidade e a
multiplicidade das relações causais que podem ser a fonte dos
problemas públicos. Howlett e Ramesh propõem assim chamar
de abordagem funnel of causality (Howlett, Ramesh, 1995), os
trabalhos que põem como premissa a necessária conjunção de
diferentes variáveis, incluindo, ao mesmo tempo, as variações do
contexto econômico e físico (as causas “objetivas” tradicionais),
a configuração das alianças como relações de forças num instante
dado, as matrizes cognitivas e normativas dominantes, as
características institucionais dos atores públicos envolvidos...
Nesta perspectiva, cada problema torna-se o resultado de um
processo sempre específico na trama destas variáveis
fundamentais.
No interior deste conjunto, uma dimensão parece,
entretanto, mais e mais valorizada e tende a integrar as outras
determinantes, a saber, o estudo das “narrações” ou das
explicações que os atores formulam a respeito dos fenômenos
sociais, a partir de seus próprios esquemas cognitivos e
normativos. A maior parte dos trabalhos contemporâneos
dedicam-se, assim, a revelar e a desconstruir a maneira como
atores elaboram as argumentações concorrentes, que visam a
definir um problema numa “linguagem” que corresponda a seus
valores, suas crenças, suas posições, seus interesses, as
características de sua organização... Neste quadro geral, a gênese
da ação pública é, então, dividida em três processos ideais, sob o
aspecto analítico distintos, que tratam respectivamente da
problematização dos fenômenos sociais, da inscrição formal na
agenda e da influência eventual das “janelas políticas”.

52
A problematização dos
fenômenos sociais

Todo fenômeno social aparece de maneira mais ou


menos aleatória e caótica, não podendo nenhuma regra precisa
determinar as condições e os processos de sua emergência. Disto
decorrem duas proposições complementares: (1) a
impossibilidade que existe de antecipar, até mesmo de classificar,
todos os fenômenos sociais, explica que não existe nada que seja,
por natureza, excluído de toda possibilidade de inscrição na
agenda política; (2) para tornar-se um problema capaz de
provocar a intervenção de um ator público, os fenômenos sociais
passam por uma série de prismas, agindo como tantos processos
de seleção, que modificam a natureza, a audiência, o sentido dos
fenômenos percebidos e contribuem para torná-los objetos
legítimos da ação pública. O conjunto destes primas corresponde
a uma fase de problematização, ao longo da qual um certo
número de atores vão ser levados a perceber uma situação como
“anormal” (“Os atores percebem uma separação entre o que é, o
que poderia ser ou o que deveria ser”: Padioleau, 1982, p. 25) e
vão qualificá-la de uma maneira particular, que pode ser
suscetível de chamar a atenção de um ator público.

A busca das causas

A percepção de um problema está ligada essencialmente


à busca, pelos atores, das causas possíveis da situação vivida
como problemática. Sejam eles públicos ou privados, os
indivíduos ou os grupos colocados diante de um fenômeno que
põe em jogo sua seguridade, seus interesses, seus valores... vão
com efeito buscar as razões que os levaram a uma tal situação. A
maior parte destas explicações mobilizam três tipos ideais de
causalidade (figura 1).

53
Figura 1: Três modelos de causalidade

Modelo nº 1: causalidade múltipla e simultânea


X1

X2 Y

Xn

Modelo nº 2: causalidade seqüencial


X1 X2 Xn Y

Modelo nº 3: causalidade intrincada

X1 Y

X2 Y

Fonte: esquema inspirado em Rochefort D., Cobb R., 1994.

O modelo nº 1 aplica-se à conjunção de fatores múltiplos


(X1, X2... Xn) que agem de maneira simultânea para produzir
um fenômeno Y. A esta causalidade sincrônica se junta um
segundo modelo possível, diacrônico desta vez, onde o
encadeamento de uma série de fatores chega seqüencialmente a
Y (modelo nº 2). Enfim, outra causalidade eventual, o
intrincamento de dois ou de diversos fatores na gênese do
fenômeno Y (modelo nº 3).
Esses tipos-ideais constituem três dinâmicas
fundamentais, que escondem, na prática, diferentes modos de
articulação. Uma catástrofe natural parece assim intuitivamente

54
ligada ao modelo nº 1. Trata-se de um acontecimento súbito, cujo
desenvolvimento se explica com mais freqüência a posteriori
pelo papel de diversos fatores conjugados. A inundação de
Vaison-la-Romaine, que aconteceu em 1992, pode ser assim
descrita como o resultado de uma conjunção de diversos
elementos: as excepcionais intempéries, uma previsão
insuficiente da gravidade das tempestades, a construção do
camping devastado sobre uma zona declarada há muito tempo
como sendo passível de inundação... Mas, em seguida, a
apresentação pelos atores envolvidos de elementos indiretos
mobilizou igualmente raciocínios derivados do modelo nº 3. A
busca das causas da catástrofe colocou assim à luz, pouco a
pouco, os elementos mais gerais, como a maneira pela qual
foram estabelecidos e controlados os planos de ocupação dos
solos ou, ainda, os problemas induzidos pela multiplicidade
crescente dos centros de decisão.
A maior parte dos fenômenos sociais que vão ser
percebidos como problemáticos resultam, assim, para os atores,
de lógicas simultâneas, cujo desenvolvimento no tempo tem
podido contribuir para a gravidade da situação, e que reenviam,
de maneira mais ou menos explícita, a diferentes níveis possíveis
de explicação. O problema da violência urbana vai, por exemplo,
eclodir por ocasião de um motim numa cidade, provocado pela
prisão de um adolescente, pela mobilização seguida de um grupo
particularmente vingativo e pela reação inadequada das forças da
polícia (modelo nº 1). Depois, muito rápido, outros tipos de
fatores vão ser colocados para explicar, como a lenta degradação
do habitat, que tem provocado a guetização do bairro junto de
uma comunidade sócio-econômica e/ou estrangeira particular
(modelo nº 2). Enfim, diferentes elementos subjacentes vão ser
“levantados” numa situação concreta, como a persistência do
desemprego, o racismo reinante, a crise do modelo de integração
republicana... (modelo nº 3).
Não existe, pois, univocidade na busca das causas, mas
uma busca de sentido levada pelos atores e/ou os analistas, que
mobiliza e seleciona alternadamente os diferentes registros de
inteligibilidade, a fim de conferir uma significação e/ou de dar
uma explicação a uma realidade caótica. Esta busca de causas

55
implica um trabalho cognitivo e normativo de seleção dos dados
pertinentes a partir de uma simplificação mais ou menos grande
dos componentes do fenômeno considerado, operação esta
determinada pelas grades de leitura particulares aos diferentes
atores.
Por isso mesmo, a extrema complexidade dos fenômenos
a interpretar explica que exista aí competição dos atores para
conferir a um fenômeno uma causalidade que pareça coerente
com seus interesses, seus valores, suas visões de mundo... E esta
competição toma, com maior freqüência, a forma de uma luta
sobre as narrações explicativas concorrentes propostas para um
mesmo fenômeno, luta no interior da qual os grupos e/ou os
indivíduos vão engajar seus recursos, iniciar aproximações em
função das relações de forças, e tentar, enfim, obter acesso à
agenda política efetiva.

A construção de narrações

Numa obra já clássica, John Kingdon, depois de ter


proposto reunir todas as operações sociais que contribuem para a
definição dos problemas num mesmo conjunto (problems
stream), estima que três tipos de processos, eventualmente
cumulativos, permitem conferir a certos fenômenos uma
visibilidade que vai iniciar sua transformação em problema
público: a evolução de um indicador dado (taxa de desemprego,
por exemplo), a eclosão de um acontecimento inesperado (uma
catástrofe natural) ou a “resposta” a uma iniciativa pública
anterior (Kingdon, 1984). Entretanto, com freqüência, esses
elementos desencadeadores não fazem mais que tornar público
um problema mais ou menos latente e permanecem dependentes
da recepção e do uso que vão fazer os atores envolvidos, sejam
eles públicos ou privados.
As percepções dos atores mais ou menos diretamente
envolvidos por um fenômeno específico vão, com efeito,
(re)definir esses elementos iniciais pela elaboração de diferentes
modos de explicação e pela formulação das narrações. Deborah
Stone, interrogando-se sobre os meios fundamentais da
colocação na agenda, propõe assim considerar as histórias

56
causais produzidas pelos atores acerca de um mesmo fenômeno
como uma das variáveis essenciais dos processos sociais que
conduzem a emergência de um problema (Stone, 1989). Se
retomado o exemplo das violências urbanas já citado, poder-se-á
aí descobrir uma variedade de narrações produzidas pelos
diferentes atores envolvidos, que vão qualificar o fenômeno num
sentido preciso, dito de outro modo, problematizá-lo sob uma
forma sempre específica. Se considerada, por exemplo, a posição
emitida pelo prefeito, tratar-se-á, sem nenhuma dúvida, para ele,
de um problema de ordem pública, provocado pelos
comportamentos manifestamente delinqüentes, amplificado pela
ausência de reforços policiais suficientes. O prefeito da cidade
denunciará com vigor a urbanização excessiva e a criação de
cidades dormitórios, pedindo ao Estado que intervenha através de
uma política urbana efetiva. Tomado por um representante de
associação de bairro, o acontecimento torna-se a manifestação de
problemas endêmicos, como aquele do desemprego, que alimenta
um sentimento de exclusão das comunidades estrangeiras. Ao
inverso, o presidente de um partido de extrema direita,
interessado em conferir ao problema uma significação nacional,
vai sublinhar a presença de imigrantes entre os amotinadores e
pedir um reforço das leis contra a imigração.
A produção de discursos concorrentes sobre um mesmo
fenômeno implica por isso mesmo uma competição sobre a
qualificação do problema sob um ângulo particular, que implica a
seleção das causas consideradas pertinentes, a formulação de
uma explicação conforme às “visões de mundo” dos atores
envolvidos e, enfim, a elaboração de propostas de resolução do
problema.
Ao mesmo tempo, cada narração determina uma
identidade e um papel particular aos diferentes atores envolvidos,
imputando uma responsabilidade direta ou indireta a um ou
diversos atores públicos. No caso dos motins urbanos já citado, o
representante da associação de bairro insistirá sobre o peso dos
problemas sociais, argumento que permite, ao mesmo tempo,
exonerar parcialmente os indivíduos na origem das agitações e
imputar a responsabilidade efetiva a outros atores. Ao inverso, o
presidente do partido de extrema direita, utilizando termos

57
conotados negativamente como “decadência”, inverterá a
perspectiva estimando que a vitima é a nação toda, ameaçada
pela intrusão dos indivíduos de origem estrangeira. A aposta
implícita desta concorrência entre as diferentes narrações é de
estruturar o campo das relações, de constituir alianças e de
elaborar objetivos estratégicos, que levem em conta a relação de
forças, da mesma forma que percepções dominantes
determinadas por um feixe de fatores de caráter cognitivo (a),
retórico (b) ou normativo(c).

a) Os fatores cognitivos
Na constituição das narrações, existe, com efeito, uma
multiplicidade de dinâmicas cognitivas que alimentam de
maneira sempre imperfeita as percepções dos atores. De uma
maneira geral, a importância da informação e dos instrumentos
mobilizados pelos atores públicos e privados no conhecimento
dos fenômenos sociais é freqüentemente assinalada como uma
variável essencial na definição do quadro, da natureza, e também
do “momento” da ação pública. Sublinha-se assim, bem seguido,
o papel, ao mesmo tempo ambivalente e determinante na
definição dos problemas, ocupado pelas estatísticas. Estas têm,
com efeito, uma função essencial de identificação e de medida
através da quantificação de um fenômeno construído segundo
critérios dados, mas também uma função de vigilância, situação
esta que pode tornar-se problemática logo que um limiar preciso
seja ultrapassado (Kingdon, 1984). Depois de alguns anos, a vida
pública assim como as obrigações determinadas ao Estado são, a
esse respeito, ritmadas pela evolução das cifras do desemprego
ou, mais recentemente, pela medida da poluição.
Para além da quantificação do fenômeno, a função de
vigilância pode determinar processos de emergência que Pierre
Favre qualificou de automáticos, no sentido em que “na ausência
de uma vontade de tomada do campo político por aqueles que
são confrontados com um problema, este aqui não penetra nisso
nem mesmo por um mecanismo autônomo de transmissão ”
(Favre, 1992, p. 8). A revelação de uma cota de alerta, atingida
pela poluição atmosférica nas principais cidades da França,
conduz assim hoje à emergência automática do problema, sem

58
mobilização necessária dos atores envolvidos. Tal dinâmica
apresenta ainda a característica suplementar de desembocar o
mais freqüentemente numa automaticidade na tomada de decisão,
provocando a emergência do problema, de maneira simultânea,
uma resposta dos atores públicos envolvidos. No caso da
poluição do ar, a revelação da ultrapassagem dos níveis de
poluição desemboca, assim, numa série de medidas
predeterminadas, tais como a limitação da velocidade de
circulação, a gratuidade provisória dos transportes coletivos, a
multiplicação dos controles dos veículos...
O conhecimento de um fenômeno é igualmente
dependente de outros fatores, como a transmissão da informação
pela mídia, a capacidade de recepção destes dados pelos
indivíduos ou pelos grupos potencialmente envolvidos, a aptidão
que têm certos atores públicos ou privados para controlar os
fluxos de informação... Neste sentido, o prisma cognitivo é
menos uma etapa inicial na problematização de um fenômeno
dado do que a parte mais imediatamente identificável das
diferentes operações que contribuem para marcar o problema
num sentido particular.

b) Os instrumentos retóricos
A definição do problema depende também de outros
fatores fundados sobre as condições de uso e de recepção das
figuras e instrumentos retóricos mobilizados pelos atores
envolvidos. Numerosos trabalhos revelaram, sob esse aspecto
preciso, até que ponto a “linguagem” utilizada constituía uma
dimensão importante da emergência, tanto na forma retórica,
quanto na substância da “mensagem” (Edelman, 1977; Stone,
1988; Majone, 1989). Interessando-se pelas formas de linguagem
mais comumente usadas pelos atores, Deborah Stone podia
distinguir, por exemplo, quatro modalidades essenciais de
argumentos: (1) a produção de histórias, que se apoia sobre as
narrações puramente explicativas; (2) as sinédoques que
consistem em tomar a parte pelo todo, um modo útil quando se
trata de generalizar os interesses particulares (por exemplo, logo
que os editores descrevem seus problemas como aqueles do
“livro” em geral); (3) as metáforas, que desenvolvem as

59
similitudes supostas entre diferentes elementos (a AIDS foi num
momento definida como um “câncer homossexual”); (4) as
ambigüidades, pelas quais diferentes significações são evocadas
de modo simultâneo. Essas diferentes figuras retóricas têm por
função conotar de forma mais ou menos consciente um
fenômeno de uma maneira particular, estabelecendo
principalmente conexões sugestivas, que vão definir um espaço
de sentido.
Mas, além da forma, a própria substância dos termos
empregados pode, da mesma maneira, preencher uma função de
etiquetagem, sendo certos tipos de registros discursivos nesse
sentido mais e mais valorizados. Certos trabalhos, por exemplo,
insistiram sobre o espaço ampliado da retórica técnica e do
discurso de competência na definição dos problemas, no interior
de um quadro geral aceitável e legítimo para o maiorb número de
atores possíveis (Restier-Melleray, 1990). [Há] outro tipo de
registro discursivo com freqüência mobilizado pelos atores, o
que se poderia denominar discurso de exceção, pelo qual os
indivíduos ou os grupos tendem a colocar antes a especificidade
de seus problemas (“nossa situação não é como as outras”) e a
necessária ação corretiva ou protetora que deve decorrer da parte
dos atores públicos. A colocação em destaque pelo governo
francês de uma “exceção cultural”, quando das negociações do
GATT, justificando a inserção de disposições derrogatórias no
novo tratado, que instituia a Organização mundial do comércio
(OMC), resultava de uma tal lógica de distinção um poderoso
instrumento federativo neste tipo de competição sobre a natureza
e o campo da ação pública.
Generalizando tais análises, certos trabalhos puderam
identificar a existência de símbolos avaliados em particular por
sua capacidade de gerar a adesão e de facilitar o acesso dos
problemas na agenda política, como, por exemplo, certas
temáticas intemporais (priorizar a liberdade) ou quaisquer
símbolos mais recentes e/ou efêmeros (promover o Estado de
direito).

60
c) A dimensão normativa

O conjunto destes elementos não esgota entretanto os


diferentes processos que determinam a construção das narrações.
Além da dimensão cognitiva e dos instrumentos retóricos
mobilizáveis, o papel dos valores, dito de outro modo, das
camadas mais abstratas das matrizes paradigmáticas existentes, é
fundamental na problematização dos fenômenos sociais. Aliás, a
maior parte dos elementos evocados são com mais freqüência
“enquadrados”, selecionados e determinados pelos efeitos de
etiquetagem e de (re-)definição que produzem os valores dos
atores envolvidos, valores que se poderia definir como “as
representações mais fundamentais [...] sobre o que é bom ou
mau, desejável ou a rejeitar” (Muller, in Faure, Pollet, Warin,
1995, p. 158).
A aparição da AIDS no início dos anos 1980, doença
desconhecida até lá, é característica, desse ponto de vista, dos
processos de construção social de um fenômeno preciso,
determinados, em parte, também pelo desenvolvimento dos
conhecimentos científicos (Favre, 1992; Setbon, 1993). Num
clima de relativo desconhecimento inicial, a AIDS pôde, assim,
ser qualificada de “câncer gay”, antes que a descoberta do vírus
abrisse uma fase de redefinição da doença graças à identificação
de seus modos de transmissão, sendo a AIDS desde então
comumente designada como uma pandemia transmissível por via
sangüínea ou sexual.
Esta identificação do fenômeno na linguagem científica
não devia, entretanto, impedir a produção de discursos
concorrentes, dependentes dos valores próprios aos atores mais
ou menos diretamente envolvidos. Mesmo após a descoberta do
vírus, alguns puderam assim qualificá-lo de “castigo divino” ou
de síndrome reveladora da permissividade das sociedades
contemporâneas. Longe de ser cristalizada pelos conhecimentos
científicos, a AIDS ficava assim sujeita a transformações e (re-)
qualificações determinadas por valores diferentes, mas
igualmente pelos recursos dos atores envolvidos e pela natureza
das relações de forças nos diferentes campos implicados. A

61
posição da Frente Nacional a respeito da AIDS, fundada sobre a
demonstração da existência de “patologias sociais”, era, assim,
em parte, o resultado de estratégias desenvolvidas pelo partido de
extrema direita no campo político, a produção de um discurso
aberrante, que pode até chegar à invenção de um vocabulário
concorrente (aidético...), visando a conservar a situação singular
da FN [Frente Nacional] no campo político (Mathiot, in Favre
(dir.), 1992).
Mas este exemplo da AIDS permite, do mesmo modo,
observar a emergência progressiva, com a definição do próprio
problema, de novos atores sociais e/ou de novos valores
dominantes. A aparição da doença, depois sua emergência como
problema público, forneceram com efeito a certos atores a
ocasião de eles mesmos se “constituírem” à volta desta situação
particular que representa a epidemia. Ao longo dos anos 1980, e
particularmente na França onde se observava uma ausência
relativa de associações e/ou de movimentos sociais encarregados
da defesa das minorias sexuais pôde-se ver, assim, formarem-se
grupos de interesse especializados. Inicialmente mobilizados pela
doença, certos atores e grupos sociais tenderam, especialmente, a
ultrapassar esse quadro restrito, para tentar valorizar de forma
mais geral a imagem das comunidades homossexuais nas
representações sociais.
Conseqüência induzida destes diferentes processos, as
mobilizações destes (novos) atores, as tomadas de posição
emitidas por representantes de grupos associativos, de instâncias
religiosas ou de partidos políticos, assim como as primeiras
respostas parciais emitidas pelo Estado (campanha de
informação, ajudas a pesquisa...), contribuíram igualmente para
modificar os valores socialmente dominantes em matéria de
comportamentos sexuais (fidelidade nas relações amorosas). Ao
invés de ser o simples produto de paradigmas existentes, que
conferem um significado particular a um fenômeno dado, a AIDS
foi, assim, a ocasião de uma transformação em cadeia dos
princípios, das crenças e dos valores ligados a um conjunto de
práticas sociais.
Tais processos provam a que ponto é importante analisar
a emergência de um problema e as condições de sua

62
problematização sobre um longo período. De problema marginal,
limitado a certas situações particulares ou a certos atores
mobilizados, o contexto tornou-se assim, por exemplo, num
espaço de trinta anos, um dos assuntos mais duravelmente
presentes na agenda. Esta ruptura é ligada a um feixe intrincado
de elementos explicativos: a transformação dos valores sociais
dominantes, que seriam no momento marcados por uma forma de
pós-materialismo (Inglehart, 1977), a mobilização de novos
grupos de interesses ou de indivíduos “empreendedores”
(associações ecológicas...), a existência de públicos mobilizáveis
(a elevação média da instrução que facilita a sensibilização frente
a um conjunto mais largo de problemas)...
Estas mudanças podem então determinar interpretações
diferenciadas no tempo de fenômenos que apresentam certas
similaridades. Num estudo recente, Cobb e Rochefort fazem um
paralelo entre as conseqüências diametralmente opostas de dois
acontecimentos similares, a prisão “forçada” de uma pessoa de
cor nos Estados Unidos: enquanto que o “espancamento” de um
soldado negro por um policial branco provoca “apenas” um
motim em 1943, ao contrário, o controle da polícia efetuado
contra Rodney King resultou por conseqüência num verdadeiro
incêndio na cidade de Los Angeles em 1992, por ocasião de um
processo favorável aos policiais o qual relançou o debate sobre o
lugar das minorias étnicas na sociedade americana (Rochefort,
Cobb, 1994).
Essas diferenças isoláveis no tempo podem aliás ser
todas também legitimamente buscadas no espaço, conforme a
perspectiva comparativa clássica. Os tratamentos particulares
aplicados às conseqüências do acidente da central nuclear de
Tchernobyl, se forem medidas, por exemplo, as diferenças de
percepção que têm caracterizado a recepção do problema na
Alemanha e na França, não se explicam unicamente pelo efeito
da maior proximidade geográfica da Alemanha em relação ao
foco da catástrofe. As valorizações opostas do meio em geral e
da energia nuclear em particular levantaram na oportunidade
quadros mentais específicos, conferindo à “nuvem de
Tchernobyl” um significado particular.

63
Mas, em definitivo, um dos elementos essenciais destas
operações de construção social dos fenômenos sociais reside na
colocação em jogo da responsabilidade presumida dos atores
políticos. Para tornar-se efetiva e praticamente um problema
público, um fenômeno dado deve ser submetido a um trabalho de
imputação, que associe à busca da causalidade, a identificação
dos atores públicos responsáveis, senão do próprio problema,
pelo menos de sua resolução. A obrigação atribuída ao Estado de
intervir não tem portanto nenhum caráter objetivo, mas é ela
própria o resultado do estado das interações entre os atores
públicos ou privados envolvidos, do espaço do pensável e dos
possíveis, definido por um contexto sócio-histórico preciso,
assim como da natureza anterior das ações públicas sobre
problemas análogos.

A inscrição na agenda

A diferença entre problematização e inscrição na agenda


recobre no essencial, no esquema de análise de Cobb e Elder, a
passagem da agenda sistêmica, a qual reúne todos os problemas
sociais relacionados de perto ou de longe aos atores públicos, à
agenda institucional, na qual os problemas constituem o objeto
de um primeiro verdadeiro tratamento pela busca de soluções e
de alternativas de escolha (um conjunto mais ou menos coerente
de soluções possíveis) para o problema percebido e construído
pelos atores envolvidos. Nesse quadro, o processo de
problematização vê-se prolongado e modificado pelos prismas
institucionais e cognitivos, que marcam a entrada dos fenômenos
percebidos no espaço de decisão.

Os prismas institucionais

Para ser inscrito na agenda, um problema deve estar


integrado de fato às formas e às lógicas de funcionamento do
aparelho político-administrativo, por vezes ao preço de
requalificações mais ou menos substanciais. Diferentes fatores
pesam sobre esta “tradução/traição” dos problemas sociais,

64
essencialmente as formas institucionais no sentido estrito, que
recobrem tanto as características “constitucionais” dos atores
político-administrativos como a importância de certos registros
particulares, especialmente jurídicos.
O fator mais imediato que é suscetível de pesar sobre a
colocação na agenda reside na influência das formas
institucionais próprias aos atores político-administrativos
envolvidos. Não é indiferente, com efeito, para as dinâmicas de
colocação na agenda, que a problematização se dirija ao
presidente, ao primeiro ministro, a um ministro, ao parlamento, a
uma coletividade local... Essas diferenças, que derivam das
divisões institucionais das competências, das relações
hierárquicas estabelecidas no interior do Estado, dos mecanismos
de controle definidos pelos textos constitucionais e
regulamentares, refletem-se nas especificidades de cada agenda
institucional.
Se certos assuntos importantes, tais como o desemprego
ou a reforma da Seguridade social, desde alguns anos, figuram
assim regular e simultaneamente nas agendas de diversas
instituições, outros problemas mais pontuais ou que tocam um
número mais limitado de pessoas, podem ser inscritos na agenda
de uma instituição particular, sem por isso suscitar a atenção ou a
interferência de outros atores públicos. Assim, a agenda do
Senado, ao lado de problemas igualmente presentes nas agendas
das instâncias executivas e da Assembléia nacional, comporta
uma série de assuntos com um caráter local mais acentuado,
constituindo os senadores uma via de transmissão privilegiada
para certos grupos de interesse locais.
A isso se juntam também mecanismos de seleção
mútuos, que podem determinar ritmos e modos de passagem de
um problema de uma instituição a outra (Döring, 1995). A
configuração institucional francesa, marcada por uma
predominância do executivo sobre as instâncias legislativas,
explica, assim, que a passagem prévia de um problema nas
instâncias governamentais, determina, freqüentemente, uma
inscrição na agenda parlamentar, quando a alternativa escolhida
necessita da adoção de um projeto de lei. O inverso não é sempre
verdadeiro, na medida em que a mobilização conseguida de um

65
ou de diversos parlamentares, pode não ser suficiente para
“alçar” ainda um pouco mais o problema até os níveis de decisão.
Esta adequação das problematizações às configurações
político-institucionais toma uma forma particular com a
importância do direito e da qualificação jurídica dos problemas.
Para que uma alternativa seja efetivamente posta, é preciso o
mais freqüentemente, com efeito, que ela tenha uma forma
jurídica “aceitável”, constituindo o direito um instrumento
privilegiado de ação e de regulação à disposição do Estado.
Tendo as regras e os ritmos de funcionamento dos processos
jurídicos suas lógicas próprias, acontece, em particular, que a
problematização seja submetida a um caminho específico. A
regulação jurídica, em especial pelo viés da evolução da
jurisprudência, provoca, com efeito, a produção autônoma de
alternativas freqüentemente alvejadas, que ganham em seguida
um destaque particular logo que o problema emerge por fim na
agenda política. Um estudo feito sobre a evolução do problema
do assédio sexual nos Estados Unidos mostra, assim, que esse
fenômeno torna-se um problema público no fim dos anos 1990,
precisamente quando a evolução da legislação tinha já
ultrapassado certas reivindicações dos atores (Paul, in Rochefort,
Cobb, 1994).
Em termos mais gerais, as características próprias aos
atores político-administrativos, em especial às lógicas
particulares que regem suas ações, podem ter um impacto
singular sobre a inscrição de problemas na agenda política,
quando se produz um fenômeno de captação de um problema
pelos atores públicos que, aí, vêem um recurso suplementar e um
vetor de legitimação. Foi esse o caso, por exemplo, do ministro
da Agricultura Edgar Pisani, quando da elaboração da lei sobre a
modernização da agricultura em 1962 (Muller, 1984); o caso do
professor Debré, quando da reforma dos hospitais nos anos 1960
(Jamous, 1969); ou ainda, o caso de Michèle Barzach com o
problema da AIDS em 1987 (Favre, 1992). Da mesma maneira
que certos atores sociais sustentam uma problematização
particular, esses indivíduos ou esses grupos sustentam por sua
vez uma alternativa dada no interior do aparelho político-

66
administrativo, determinando assim diretamente as dinâmicas de
inscrição na agenda institucional.
Como caso extremo desse tipo de processo descrito por
Pierre Favre, pode produzir-se um fenômeno de “imergência”
caracterizado por uma inversão das dinâmicas seqüenciais
tradicionais. O problema é aqui integralmente construído e
sustentado por atores político-administrativos, sem que apareça
qualquer reivindicação, nem qualquer mobilização dos atores
sociais envolvidos (Favre, 1992). O exemplo da problematização
de uma alternativa específica, o tratado de Maastricht e, de uma
maneira geral, a própria construção européia são casos
emblemáticos de soluções em busca de problema: no caso, a
inscrição desta alternativa na agenda institucional precede toda
forma de problematização na agenda sistêmica.
Estes prismas institucionais são tanto mais interessantes
de se considerar que parece assistir-se, hoje, a uma modificação
de sua configuração, com um duplo movimento de localização e
de europeização das políticas públicas (Muller, 1992). Essas
evoluções tomam duas formas essenciais: (1) a aparição de novas
agendas institucionais, agendas locais e européia, que tornam
ainda um pouco mais complexos e concorrentes os processos de
inscrição na agenda; (2) uma hierarquização e modos de seleção
diferentes, que estabelecem novas passarelas de um nível
institucional a outro. Assim, “a Europa aparece [...] mais e mais
como o lugar do debate, isto é o lugar estratégico, onde são
formulados os problemas e onde é definido o conjunto de
soluções que constitui o objeto mesmo do debate político”
(Muller, 1994 b, p. 67).

A transformação “pública” do problema

Além destes elementos jurídicos e constitucionais, o


ajustamento da agenda sistêmica e da agenda institucional faz-se
igualmente na dimensão cognitiva e normativa. Coloca-se, de
uma certa forma, o problema de uma formulação das
problematizações sob uma forma “inteligível” para o aparelho
político-administrativo. Com efeito, não é suficiente que a
problematização seja endereçada aos atores públicos

67
competentes, que ela respeite as hierarquias e, em certos casos,
os cânones da forma jurídica, na medida em que ela deve
igualmente satisfazer aos prismas cognitivos e normativos
característicos dos modos de funcionamento do espaço político.
A abordagem do sociólogo alemão Niklas Luhmann, que
coloca em evidência a existência de “códigos” peculiares a cada
subsistema social, é esclarecedora desse ponto de vista, enquanto
mostra como a diferenciação funcional acrescida das sociedades
contemporâneas pode suscitar a constituição, no interior de cada
subsistema social, de verdadeiras grades de interpretação, as
quais têm por função simplificar a complexidade do mundo todo,
regrando o funcionamento interno do subsistema (Luhmann,
1982). Nesta acepção, o subsistema político é creditado por
Luhmann de especificidades ligadas à sua função principal de
regulador dos outros sistemas sociais, funcionando aqui os
códigos em torno de quaisquer oposições binárias essenciais
(progressista/conservador, governo/oposição, legal/ilegal...).
Pode-se, pois, emitir a hipótese, para a inscrição na agenda, que
toda problematização deve poder ser “(re-)codificada” pelo
subsistema político, para poder dar lugar à produção de uma
alternativa verdadeira.
Apesar de seus limites (Papadopoulos, 1995), esta
conceptualização ilustra as especificidades e as variações de
percepção e de compreensão do mundo que caracterizam os
diferentes espaços sociais. Cada ator e cada espaço de interação
funcionam, de fato, segundo as lógicas cognitivas e normativas
que lhe são próprias, mas que são também mais ou menos fluidas
e mais ou menos permeáveis às influências exteriores. Se
quisermos apreender os fenômenos de modo dinâmico,
associando lógicas horizontais e verticais, poder-se-ia dizer que
se trata assim, para cada espaço de trocas (setorializado ou não),
de gerar uma “relação global/setorial” evolutiva, que toma, hoje,
especialmente a forma de uma gestão da adaptação à norma de
mercado (Jobert, Muller, 1987; Muller, 1994a). A inscrição de
um problema na agenda política torna-se, então, um jogo
complexo de lógicas cognitivas e normativas, associado às
modalidades de trocas entre os atores sociais, o qual visa, em
particular, a gerar essa “relação global/setorial”, integrando mais

68
ou menos perfeitamente os elementos de “código” característicos
do campo político.
Por isso mesmo, a inserção de um problema na agenda,
pelo fato de supor a integração de uma dose mínima destes
“códigos políticos”, é suscetível de modificar a substância
mesma da problematização formulada antes. Como nota Pierre
Favre, o campo político apresenta-se com efeito como um
“transmutador de problemas”, na medida em que “ele tende a
mudar a substância na operação mesma em que ele os toma sob
sua responsabilidade” (Favre, 1992, p. 33). Esta transmutação,
que permite assim esclarecer a natureza destes “códigos”, opera-
se o mais seguido por um efeito de generalização dos casos
particulares, pela integração dos valores ou das lógicas
diferentes, fundadas de modo especial sobre as exigências da
competição política, mas da mesma forma sobre os efeitos de
concorrência e de parasitismo que podem aparecer com a colusão
de outros problemas suscetíveis de inclusão na agenda. Esta
transformação, ou mais exatamente, esta “tradução” do
problema, quando de sua integração na agenda política, pode
exercer-se em diferentes níveis da matriz cognitiva e normativa
anteriormente formulada. Um ator público pode assim
perfeitamente admitir a legitimidade dos valores que estão no
princípio da identificação do problema, sem [por isso] admitir ou
poder aceitar outros aspectos. As reformas recentes das políticas
de imigração puderam entrar de acordo com um certo número de
princípios, com freqüência circunscritos a uma concepção
“republicana” dos imigrados, sem que fossem aceitas as
alternativas propostas por certos atores envolvidos, como, por
exemplo, a ambição de chegar a uma abertura total das fronteiras.
Esse problema “de inteligibilidade” explica,
igualmente, que seja, às vezes, “impossível” ao campo
político considerar, num momento dado, um problema
como dependente de sua ação. O caso da AIDS apresenta,
a esse respeito, traços característicos de um problema
surgido, ao menos numa primeira fase, de maneira
inesperada e “inadaptada” às coações institucionais e
normativas do aparelho político-administrativo (Favre,

69
1992; Setbon, 1993). As coações cognitivas e
organizacionais, assim como a incapacidade de identificar
numa etapa inicial as características da doença, podem, com
efeito, explicar as modalidades de emergência e de
inscrição relativamente tardia do problema na agenda. Logo
que os primeiros casos de AIDS apareceram, as estruturas
do ministério da Saúde, que tinham visto desaparecer os
serviços especializados em matéria de epidemiologia com a
extinção das últimas grandes epidemias, foram com efeito
incapazes de produzir as alternativas que, examinadas de
longe, parecem necessárias: controle da transfusão,
campanhas sistemáticas de informação...

Janelas políticas

Para além desta variedade de fatores institucionais e


cognitivos próprios do espaço das policies, certos autores
puderam colocar em evidência a importância dos ciclos
propriamente políticos e principalmente dos ciclos eleitorais, nos
processos de inscrição na agenda. Estando a par dos problemas e
das polícies, que reúnem as trocas e operações que concorrem na
definição das problematizações e das alternativas, junta-se assim,
segundo Kingdon, uma corrente política (political stream),
definida como um conjunto de elementos que compreende
“variações do estado de espírito nacional, alternâncias
parlamentares ou de administração e campanhas de pressão de
grupos de interesse”, elementos estes que transformam mais ou
menos substancialmente a natureza ou os atores do jogo político
(Kingdon, 1984, p. 21).
Para Kingdon, essas três correntes seguem, de ordinário,
desenvolvimentos e dinâmicas autônomas: “Os problemas são
identificados e definidos segundo motivações e critérios de
seleção próprios a essa corrente, existam ou não soluções para os
problemas e sejam ou não esses problemas sensíveis a
considerações políticas. Os acontecimentos políticos evoluem,

70
quanto a eles, segundo seu próprio calendário, em função de
regras que lhe são próprias, estejam elas ligadas ou não a
problemas e a proposições” (Kingdon, 1984, p. 210). Nesta
perspectiva, os problemas surgem de maneira relativamente
caótica, dependendo dos acontecimentos e das mobilizações
aleatórias dos atores, enquanto as alternativas são o fruto de um
jogo complexo que une, de maneira variável, atores públicos e
privados na busca de programas de ação pública, que podem ser
(não necessariamente) soluções. Do mesmo modo, a autonomia
crescente das dinâmicas políticas (Gaxie, 1993) explica que a
competição eleitoral tenha suas próprias regras de funcionamento
e uma temporalidade específica, sem conexão sistemática com o
funcionamento de rotina da administração ou as ações dos
resultados envolvidos.
A estes modos “ordinários” de funcionamento do Estado
no concreto e de seu ambiente podem, entretanto, opor-se
condições “extraordinárias” (Keeler, 1993). Estas se produzem
de modo esquemático, logo que essas três correntes se reúnem
por ocasião da abertura de uma “janela política”, remetendo
especialmente esta última expressão, segundo Kingdon, a uma
mudança brusca na opinião pública e/ou a uma alternância
eleitoral. Qualquer que seja a causa, estas “janelas” se
caracterizam em todos os casos pela abertura de um período de
maior receptividade da parte dos atores políticos. Kingdon
observa a este respeito que a aparição de uma tal “janela”
representa uma oportunidade para os atores mobilizados de
promover suas soluções preferidas ou de fazer voltar a atenção
sobre os problemas particulares” (Kingdon, 1984, p. 212). Por
isso mesmo, uma tal situação marcada pela reunião de três
correntes que, segundo Kingdon, estruturam os processos de
colocação na agenda, facilitam a emergência de
problematizações específicas, assim como a produção ou a
retomada de alternativas particulares. Ela encurta ou ultrapassa,
por conseguinte, as dinâmicas ligadas aos diferentes prismas
tradicionais pelos quais um problema é suposto passar antes de
ser inscrito na agenda.
Num trabalho comparativo ulterior, concentrado desta
vez nos ciclos eleitorais, John Keeler pode propor o aumento de

71
algumas variáveis suplementares, para precisar o conteúdo da
noção de “janela”, indexando especialmente a amplitude da
vitória eleitoral e a natureza de certos dados contextuais à
margem de manobra (“o tamanho da janela”), que deve
logicamente ser útil ao governo recém eleito ou reeleito (cf. uma
apresentação mais detalhada no capítulo 6). Se as duas variáveis
(mandato conferido ao governo e contexto de crise) se conjugam,
supõe-se que a janela mereça ser considerada, autorizando a
colocação na agenda de uma grande série de problemas e de
alternativas. Ao inverso, uma cumplicidade fraca destas duas
dinâmicas, ou a ausência dos dois elementos, limitam as
possibilidades de acesso à agenda como, depois, a capacidade de
ação dos governos. Qualificada por Keeler de “janela muito
grande”, a alternância política de 1981, na França, apresenta o
exemplo de uma situação marcada de modo preciso pelo
aprofundamento da crise econômica e por uma dupla vitória
eleitoral (eleições presidenciais e legislativas) dos socialistas.
Durante algumas semanas, a agenda governamental encontrou-se
desde então submergida pelas problematizações e alternativas,
mais ou menos recentes e mais ou menos associadas, que
iniciaram uma série de decisões importantes.
O ciclo eleitoral não é, entretanto, o único determinante
possível para a abertura da janela. Uma crise particularmente
grave, não conectada a um processo eleitoral, pode também
produzir de fato a abertura de uma “janela de oportunidade”. A
aparição de um conflito militar produz assim efeitos
ambivalentes para os governantes no poder, da mesma forma que
para os grupos de interesse, conferindo com freqüência uma
margem de manobra considerável aos governantes, mas sobre um
número limitado de problemas. Pudemos notar, quando da guerra
do Golfo, fenômenos de suspensão de um certo número de
mobilizações, não se prestando o contexto político à atenção
sustentada dos atores político-administrativos para as questões
que não dependiam direto do conflito.
Resumindo sua abordagem da colocação na agenda,
Cobb e Elder propuseram o seguinte esquema ideal,
característico da progressão de um problema até à agenda
institucional.

72
Características
Iniciador do problema

Amplificação
Problematização mediática Aumento Filtros
inicial do público instituc.

Fator Mobilização dos


desencadeador símbolos

Fonte: esquema adapatado de Cobb, Elder, 1972.

De maneira muito simplificada, a emergência de um


problema e sua colocação eventual na agenda depende, assim, de
uma interação inicial entre um ou diversos atores tomados de um
fenômeno dado (cf. capítulo seguinte sobre o papel dos atores),
às vezes por ocasião de um acontecimento desencadeador,
chegando esta dinâmica a uma primeira problematização. As
características cognitivas e normativas do problema assim posto,
da mesma forma como o modo como certos símbolos vão ser
utilizados pelos atores envolvidos, determinam, em seguida, as
condições de sua recepção junto aos públicos mais ou menos
amplos. A configuração de atores que se estruturou ao redor de
uma narração particular, intimamente ligada às fontes cognitivas
e normativas mobilizáveis, chega assim à cristalização provisória
de um espaço de trocas e de um espaço dos possíveis, que se
estreitam ainda e/ou se encontram redefinidos por ocasião da
passagem de um certo número de prismas institucionais,
marcados pela produção de alternativas. Ultrapassado este último
obstáculo, a problematização e seus atores envolvidos, sem
dúvida esgotados por este círculo infernal, acedem enfim ao
santuário tanto desejado, a agenda.
A análise da emergência e da inscrição na agenda tem
sido com freqüência criticada, a exemplo do conjunto da análise
seqüencial (Jones, 1970), por supor um modelo de exposição e de
explicação muito linear e determinista. Lembramos que as
seqüências isoladas são o mais seguido simples instrumentos
analíticos, um esquema ideal-típico de valor heurístico, junto ao

73
qual se pode e deve reaproximar, para adquirir um início de
inteligibilidade e de explicação, os casos concretos estudados.
Por isso mesmo, pode-se compreender que existam exemplos
onde a produção de alternativas tenha podido preceder toda
forma de problematização (assédio sexual nos Estados Unidos),
ou ainda, que o esquema ideal de Cobb e Elder possa dar lugar a
um encadeamento de seqüências mais complexo que a síntese
final de sua obra. No caso do problema da AIDS, por exemplo,
os prismas institucionais intervêm muito mais cedo, coagindo a
colocação na agenda em razão da inadequação da
problematização existente nas estruturas político-administrativas.
De um ponto de vista mais ambrangente, é claro que os
limites intrínsecos de toda apresentação seqüencial justificam
uma certa prudência: a emergência de um problema não assegura
necessariamente o tratamento efetivo do mesmo pelos atores
públicos. Segundo Pierre Favre, por exemplo, a emergência pode
revelar-se simplesmente “artificial”, situação na qual o “campo
político reage no seu conjunto com força, mas desaparecendo
logo toda referência à situação inicial” (Favre, 1992, p. 12). Num
tal caso, se houve problematização e produção de alternativas,
nenhuma decisão foi depois tomada. Mais ainda, não é sempre
unívoca a relação entre decisão e emergência, na medida em que
a produção de uma alternativa pode conduzir a uma decisão sem
urgência. De maneira inversa, se a intervenção do Estado é
efetiva, o caráter de urgência pode às vezes condicionar o campo
dos possíveis e determinar, ao menos parcialmente, a natureza da
decisão.

74
75
76
ATORES E REDES DE POLÍTICAS
PÚBLICAS

A construção das políticas públicas não é um processo


abstrato. Ela é, ao contrário, indissociável da ação dos indivíduos
ou dos grupos envolvidos, de sua capacidade de produzir
discursos concorrentes, de seus modos de mobilização. Ela
depende, também, da estrutura mais ou menos flutuante de suas
relações e das estratégias elaboradas nos contextos de ação
definidos em especial pelas estruturas institucionais, no interior
das quais tomam lugar as políticas públicas. Analisar a ação
pública conduz, portanto, necessariamente a uma reflexão sobre
as características evolutivas do espaço público e das dinâmicas
da ação coletiva.

O papel dos atores na produção


das políticas públicas

As primeiras análises gerais dos processos de emergência


das políticas públicas foram muito influenciadas pelo estudo do
lugar dos grupos e/ou dos indivíduos na formalização de
reivindicações submetidas à atenção dos poderes públicos.
(Schattschneider, 1960; Cobb, Elder, 1972). A obra de
Schattschneider em especial, The Semi-Sovereign People,
constituiu um ponto de partida que influenciou bastante as
pesquisas ulteriores insistindo sobre o papel que representaria um
número limitado de atores - essencialmente os principais grupos
de interesse - na formação, no desenvolvimento e na solução
eventual dos conflitos sociais.
No interior desta perspectiva geral, a maior parte dos
trabalhos se inclinaram desde logo sobre as modalidades de
participação dos atores envolvidos na emergência de um
problema e na estruturação dos modos de tratamento possíveis
deste mesmo problema pelos atores político-administrativos.

77
Cobb e Elder, por exemplo, colocaram em evidência dois
processos essenciais: (1) a escolha de um fenômeno preciso por
um ou diversos indivíduo(s) e/ou grupo(s), que confere ao
problema uma primeira qualificação (problematização inicial) e
uma primeira visibilidade; (2) um trabalho de mobilização,
fundado sobre a estruturação dos atores envolvidos, sobre a
busca de alianças pelo(s) iniciador(es) junto de públicos mais
amplos e sobre a vontade de suscitar uma reação do Estado,
todos fatores que transformam, pouco a pouco, a
problematização inicial em um problema preciso, aceitável e
justificável de um tratamento pelos atores político-
administrativos.
As ações empreendidas de longa data pelo Abade Pierre
em favor dos sem teto constituem, deste ponto de vista, um
exemplo característico de tais processos ideais. Na oportunidade,
por ocasião de um inverno em particular duro (acontecimento
desencadeador), um indivíduo valeu-se desde 1954, de um
fenômeno preciso, a existência de famílias alojadas em
verdadeiros casebres, para problematizar a questão sob o ângulo
do escândalo (Cf. o repertório de “escandalização” analisado por
Offerlé, 1998). Organizando, pouco a pouco, sua reivindicação,
especialmente sob a forma de uma associação especializada
sobre este desafio preciso, Emaús, o Abade Pierre buscou a partir
daí alianças com atores políticos, com outras organizações não
governamentais e públicos ampliados, tendo esta estratégia
modificado, pouco a pouco, a definição do problema (aumento
das reivindicações, generalização do problema sob o ângulo de
um direito a moradia....), que pode permitir o ressurgimento
recorrente do problema na agenda política.
Segundo Cobb e Elder, há quatro conjuntos de fatores
suscetíveis de determinar um acesso privilegiado dos grupos
envolvidos na agenda dos atores político-administrativos: (1) um
ator encarregado da decisão pode ser devedor a um grupo
particular ou identificar-se inteiramente como membro deste
grupo (um deputado exercendo antes uma atividade profissional
particular, por exemplo); (2) certos grupos têm fontes materiais,
simbólicas, organizacionais... superiores àquelas dos outros, o
que facilita a mobilização dos apoios junto dos atores públicos e

78
privados (Cf. o papel dos grandes construtores nos programas de
equipamento); (3) outros grupos são colocados numa posição
estratégica, que facilita a divulgação de seus problemas (caso dos
industriais ou dos agricultores por exemplo); (4) outros grupos
são socialmente valorizados nas representações e crenças
dominantes, o que legitima suas reivindicações junto a públicos
vastos e variados (agricultores, médicos...). Esse esquema geral,
fundado sobre o postulado de uma desigualdade de recursos entre
os indivíduos e/ou os grupos, significa, por isso mesmo, que
possa aí haver uma chance desigual de acesso de um problema à
agenda, não somente em função de suas propriedades intrínsecas
(conhecimento “efetivo” dos dados pertinentes, problema que
resulta de um espaço dos possíveis determinado pelos valores
dominantes....), mas da mesma forma em função da natureza dos
iniciadores da problematização e/ou dos públicos mobilizados.

Os repertórios da ação e as fontes dos atores

É possível distinguir diversos elementos nas


características dos atores que são suscetíveis de influenciar a
produção das políticas públicas. Pode-se discernir dois tipos de
fatores essenciais: os recursos e os repertórios de ação dos atores
envolvidos.
Os recursos podem ser definidos como as características
que conferem aos atores uma capacidade de agir, ou mais exato,
que lhes garantem um poder, contanto que esta última noção seja
entendida como um tipo particular de relação (classicamente, a
capacidade de A coagir B a fazer uma ação que B não teria feito
sem a intervenção de A). A natureza destes recursos varia de um
país a outro, de uma época a outra, até mesmo de uma esfera
social a outra, não podendo com efeito os recursos dos atores
aumentar senão nas relações que os engajam e nos contextos nos
quais eles operam. Não é por menos que certos elementos se
encontram, por vezes, na qualificação dos recursos de um grupo
dado, em especial o grau e o modo de organização do grupo, a
natureza de suas elites, o grau de institucionalização do grupo no
interior do aparelho político-administrativo, a capacidade de
definir de maneira mais ou menos autônoma seu próprio

79
interesse, característica esta dependente de uma variedade de
elementos históricos, situacionais, individuais, conjunturais...
próprios ao grupo de interesse.
Ao se pensar nos agricultores na França, pode
considerar-se como recursos característicos deste grupo uma
posição estratégica nas dinâmicas de produção (os agricultores
chamam à rivalidade sua função de “pais adotivos” da
sociedade), uma valorização social ligada à força das
comunidades rurais e à marca durável que elas deixaram tanto
nas instituições (Senado, Câmaras da agricultura...) como no
imaginário coletivo (fantasma recorrente do “viver na
campanha”), uma organização dos interesses sobre uma base
sindical relativamente homogênea junto à Federação nacional
dos sindicatos dos empreendedores agrícolas (FNSEA), o que
torna difícil toda penetração de atores dissidentes no sistema de
representação institucionalizado...
Quaisquer que sejam, os recursos são ao mesmo tempo
mobilizados no “interior” e no “exterior”, podendo as duas
lógicas combinarem-se, cumularem-se ou oporem-se, com o
especial objetivo de “fazer reconhecer e avalisar a existência
continuada do grupo, sua boa apresentação (crescer em
generalidade, evitar a desclassificação da causa em puro
interesse) e sua boa representação por seus porta-vozes” (Offerlé,
1998, p.76). Com efeito, o grupo deve com freqüência dar prova
de sua legitimidade e de sua capacidade de representar
“realmente” os interesses de seus membros, em especial pela sua
capacidade de fazer emergir “realmente” os problemas na agenda
e de garantir a efetividade das decisões tomadas quando da
implementação. Quanto mais um grupo assegurar assim a
divulgação regular, até continua, dos problemas percebidos como
importantes por seus membros, tanto mais sua legitimidade
resultará reforçada. Ao contrário, quando as organizações
consagradas se mostrarem incapazes de “assumir” os problemas
dos grupos que eles representam na agenda, elas terão toda
chance de ser ameaçadas por movimentos dissidentes mais ou
menos estruturados. O exemplo das “coordenações”, agregações
fluidas e efêmeras de interesses (Hassenteufel, 1991), pode a esse
respeito ser percebido como o sinal de uma tensão aumentada

80
entre as lógicas internas/externas, tensão identificável, em
particular, pela multiplicação dos grupos participantes nos
processos de colocação na agenda.
A mobilização destes diferentes recursos, quaisquer que
seja o grupo considerado, alimentará o mais seguido as ações
coletivas encarregadas de constituir o grupo na sua relação aos
outros atores sociais, e especialmente na sua relação com o
Estado. Tais modos de ação puderam ser reunidos sob o termo
genérico de repertórios da ação, dito de outro modo, o conjunto
dos meios implementados para exercer um poder, em geral sob a
forma de uma influência junto aos tomadores de decisões
públicas. Segundo Charles Tilly, trata-se, sem dúvida, de uma
metáfora, mais que de um conceito, mas o termo “repertório” não
permite nem mesmo construir com prudência (recusando toda
forma de postulado relativo à regularidade ou ao caráter
necessário e durável de um repertório dado...) “um modelo ou a
experiência acumulada de atores que se entrecruza com as
estratégias de autoridades, tornando um conjunto de meios
limitados de ação mais prático, mais atrativo e mais freqüente
que muitos outros meios que poderiam, em princípio, servir aos
mesmos interesses” (Tilly, 1984, p. 99). Um dos exemplos mais
estudados destes repertórios dominantes da ação coletiva está nas
diferentes formas de manifestação, nesses desfiles coletivos,
pacíficos e organizados, que conferem a um (dos) grupo(s) e/ou
um (dos) problema(s), uma “realidade” e uma visibilidade que
alimentam a interpelação dos poderes públicos (Favre, 1990;
Fillieule, 1997).
Esta mobilização dos recursos e repertórios da ação tem,
com freqüência, por objetivo, aumentar o “público” interessado
num problema e/ou numa reivindicação precisa. Com efeito,
Cobb e Elder puderam distinguir diversos tipos de “públicos”
possíveis, além dos “participantes” diretos nas dinâmicas de
“elevação” dos problemas e na implementação, “públicos” entre
os quais os “participantes” vão poder mobilizar seus apoios. Esta
distinção, fundada sobre o grau de interesse e/ou de participação
ativa dos “públicos” nesses diferentes processos de ação coletiva,
permite desenvolver quatro categorias principais: (1) os grupos
de identificação, capazes de associar seus próprios interesses, de

81
maneira estável e durável, aos atores os mais diretamente
envolvidos; (2) os grupos de atenção, cuja participação está mais
diretamente indexada ao problema preciso, antes de ser o fruto de
uma empatia durável como no caso precedente; (3) o público
atento, capaz de se mobilizar em intervalos regulares em função
de um interesse sustentado por diferentes problemas sociais; (4)
o público geral, o mais difícil de mobilizar, porque menos
informado e menos interessado nos problemas sociais.
Esta tipologia levanta certos esquemas possíveis daquilo
que os mesmos autores chamam de expansão do problema, ligada
ao aumento do público mobilizado. Reunir o máximo de apoios
possíveis, dito de outro modo, “fazer número”, não somente
junto dos atores mais diretamente envolvidos, mas também junto
a categorias mais amplas da população, permite assim conferir
uma visibilidade e uma “força” aumentadas ao problema em
questão, se comparada aos outros fenômenos sociais, suscetíveis
de chamar a atenção e/ou a intervenção dos atores públicos. No
caso dos problemas do livro, é interessante constatar por
exemplo, que a mobilização empreendida pela franja mediana da
profissão, próxima da imagem ideal do livro e de seus atores
legítimos (editores “literários” e pequenos livreiros tradicionais
no essencial) buscou inicialmente mobilizar os participantes
potenciais voltando-se para os editores, os livreiros e os
escritores. Uma vez que a estruturação do movimento se tornou
efetiva pela criação de uma associação a favor do preço único do
livro e do engajamento progressivo dos sindicatos profissionais,
esses mesmos atores buscaram, então, apoios junto aos públicos
potenciais (leitores, partidos políticos...), para apoiar suas
reivindicações junto dos atores político-administrativos.
Todavia, além da promoção de um problema dado, certos
trabalhos se ligaram, da mesma forma, à análise da influência de
certos veto grupos (Suleiman, 1987; Pierson, 1993; Hassenteufel,
1997). Antes de “colocar” um problema na agenda, certos atores
podem ao contrário fixar-se na rejeição de toda forma de
emergência de uma problematização dada, em especial quando
esta última é suscetível de modificar sua situação. O estudo de
Ezra Suleiman sobre os escrivães públicos na França mostra o
quanto esse grupo, por razões históricas precisas que

82
desembocaram numa estrutura particular e numa
institucionalização específica, é capaz de evitar toda emergência
de problematizações potencialmente ameaçadoras para seus
interesses. Formulando a propósito de tais atores a expressão
“inibidores da emergência”, Pierre Favre mostra o quanto certos
grupos (médicos especializados sobre a doença e associações
homossexuais) puderam tender, num período inicial, a se
apropriar do problema da AIDS, sendo assim impedida toda
forma de generalização e de emergência verdadeiras (Favre,
1992).

Grupos de interesse e matrizes cognitivas

Para além destes diferentes elementos, a abordagem


cognitiva das políticas públicas pode colocar em evidência os
vínculos estreitos existentes entre as configurações de atores e as
matrizes paradigmáticas concorrentes que gravitam ao redor de
um problema dado. Pode-se considerar, com efeito, que a fase de
colocação na agenda forma a etapa inicial, que não é, aliás,
necessariamente coroada de sucesso, de uma problematização
suscetível de resultar na formação de um paradigma de política
pública. É nesta fase de constituição do problema, que determina,
ao mesmo tempo, em parte, a configuração dos atores, dito de
outro modo, seus recursos, seus modos de estruturação e de ação,
assim como a natureza de suas relações, que se formam e/ou se
operacionalizam, com efeito, os valores, as representações e as
crenças que fundam uma matriz paradigmática particular. Além
disso, esta complexidade entre lógicas cognitivas e agregação
dos interesses é da mesma forma visível na fase de
implementação de uma política pública, cuja cristalização de um
paradigma parece dependente das confrontações e alianças que
caracterizam o sistema de ação pública quando é colocada em
prática uma dada decisão (Surel, 1997b).
Uma conceptualização destes mecanismos de
complexidade entre matriz cognitiva e sistema de ação foi
proposta por Michel Callon numa sociologia da tradução
inspirada de uma análise sócio-epistemológica (Callon, 1986;
Callon, Latour, 1991), que distingue quatro fases essenciais no

83
interior destes processos aleatórios de cristalização conjunta das
configurações de atores e de paradigmas dominantes. A primeira
etapa é qualificada de “problematização”, no sentido que se
forma “um sistema de alianças, nós dizemos de associações,
entre entidades, das quais ela define tanto a identidade como os
problemas que se interpõem entre elas e o que elas querem”
(Callon, 1986, p. 176). A construção do problema elaborada por
um ator particular dá com efeito, segundo ele, uma identidade
aos outros “participantes”, circunscrevendo ao mesmo tempo um
espaço cognitivo e normativo determinado. A vontade de
estabilizar esta dupla configuração chega, então, à
implementação de “dispositivos de estimulação” (segunda fase),
pelos quais o(s) ator(es) na origem de uma problematização dada
busca(m) alianças, que na hipótese em que elas são “aceitas” (os
atores se situam em relação à identidade e aos valores
circunscritos pela problematização original), abrem uma terceira
fase dita “de recrutamento”. Quando este conjunto de relações e
de representações, se encontra estabilizado, o processo global de
tradução conclui-se pela “mobilização” dos atores e da matriz
paradigmática assim fixada, começando o paradigma a estruturar
e a legitimar “efetivamente” as relações e as ações dos atores
envolvidos. O conjunto das dinâmicas que concorreram para a
emergência progressiva da AIDS como problema público pode,
desde então, ser lido pelo viés deste modelo explicativo, como a
dupla eclosão, iniciada por atores precisos (médicos, associações
homossexuais...), por configurações sociais e normativas
particulares.
Resta, entretanto, que uma das críticas oposta ao modelo
proposto por Callon se apóia na atenção centrada num paradigma
dominante em formação, que diminui a amplidão dos conflitos e
das lutas que precedem à cristalização aleatória e efêmera de uma
matriz particular, conflitos que são também orientados para a
busca do “poder” no sentido weberiano. Para evitar este
obstáculo é, desde logo, também desejável identificar,
especialmente pela análise das narrativas produzidas sobre um
fenômeno dado, quais são as matrizes cognitivas e normativas
concorrentes, sustentadas pelos atores, que visam impor uma
problematização particular. Tomando-se o caso da interrupção

84
voluntária da gravidez (Padioleau, 1982), poder-se-á assim
constatar a que ponto os discursos feitos pelos diferentes atores
sobre este desafio particular resultam de matrizes paradigmáticas
opostas. Neste caso, as explicações causais propostas são
fortemente determinadas, da parte de uns, pela defesa da
liberdade de escolha, essencialmente em referência a uma
imagem da mulher fundada sobre princípios igualitários,
adaptados a um processo social de libertação, enquanto que, da
parte de outros atores, que recusam a liberdade de escolha em
nome da preservação da vida, poder-se-á encontrar uma imagem
oposta da mulher, que se poderia qualificar de tradicional.
A interdependência entre configuração de atores e
matrizes paradigmáticas pode, igualmente, explicar como grupos,
dispondo de poucos recursos, tenham dificuldade de sustentar
suas reivindicações no interior do aparelho político-
administrativo. Na sua análise das políticas da leitura pública na
França, Marine de Lassalle pode assim descrever as ações das
bibliotecárias como resultantes de uma forma de “impotência”,
ligada aos recursos limitados das bibliotecárias como grupo de
interesse, assim como à incapacidade de articularem suas
reivindicações (construídas por referência à noção de “serviço
público”) com a extensão progressiva das normas de mercado,
incluído aí no interior do aparelho político-administrativo (de
Lassalle, 1996). Por isso mesmo, quanto mais um grupo é capaz
de alimentar a adesão a um paradigma do qual ele é o portador,
ou o “produtor”, tanto mais ele será capaz de introduzir seus
problemas na esfera pública. Simetricamente, sua tarefa será
tanto mais facilitada quanto mais sua própria “visão de mundo”
estiver próxima e/ou consiguir transformar os valores e as
crenças mais amplamente aceitas.

O papel específico da mídia

Neste quadro geral, uma categoria de atores, a mídia,


representa um papel particular, que apenas começa a ser
verdadeiramente apreendido na análise das políticas públicas
(Iyengar, 1991; Baumgartner, Jones, 1993). A natureza de sua
participação na emergência de um problema na agenda pode ser

85
apreciada em diferentes níveis. Poder-se-á inicialmente
considerar que a mídia faz um trabalho de seleção dos assuntos
pertinentes a seus olhos, isto é, aceitáveis em função de suas
próprias lógicas. Esta dinâmica talvez facilite o acesso de um
problema na agenda política, acelerando a difusão de uma
problematização particular. Aliás, a maior parte dos atores
individuais ou coletivos compreenderam muito bem que o acesso
à mídia pode tornar-se o preâmbulo necessário para a emergência
de um problema na agenda.
Em decorrência disso, a maior parte das “causas” que
aparecem tem tanto mais chances de obter uma certa audiência e
atenção dos atores político-administrativos, quanto mais elas se
apoiam sobre indivíduos “midiáticos”, tais como o Abade Pierre,
o comandante Cousteau ou ainda Irmã Emanuela. Neste quadro,
a mídia age, portanto, como amplificadora e difusora dos
conflitos, das reivindicações, das representações... produzidas ao
redor de um problema dado. Inversamente, a mídia pode
permanecer fechada a toda divulgação de um problema preciso, e
agir, então, como verdadeira “inibidora” da emergência,
conduzindo o trabalho de seleção das informações pertinentes à
rejeição dos fatos menos espetaculares, dos menos carregados de
representações conformes aos valores dominantes...
Esta inibição pode também se mover numa “traição” de
um problema preciso, em razão dos fenômenos de parasitismo
dos conflitos sociais produzidos pelas lógicas próprias à mídia.
Esse “parasitismo” pode tomar, por exemplo, a forma de uma
imposição de assuntos, de uma simplificação de discursos, de
uma confusão de dados pertinentes... Os problemas são
construídos pelo prisma da mídia, tanto que eles aproveitam de
uma midiatização como agente de amplificação de sua audiência.
A midiatização progressiva da AIDS é o exemplo de um caso
particularmente emblemático das ambigüidades que esconde esse
“prisma” da mídia. Para esse problema preciso, a produção de
informação tem sido no início precoce, especialmente a iniciativa
dos médicos especializados, preocupados em chamar a atenção
sobre as dificuldades de seu próprio trabalho e sobre as
características da doença. O tratamento da AIDS pela imprensa
tem sido, assim, relativamente estendido, facilitado em particular

86
pelo caráter sensacional, até escandaloso, que o assunto podia
revelar (descrição dos grupos de risco, revelação das
personalidades atingidas...). Mas, antes de ser o vetor neutro das
informações produzidas pelos médicos, às vezes contraditórias, é
verdade, no começo do fenômeno, as mídias têm, às vezes,
alimentado uma confusão no conhecimento da doença. Assim,
mesmo depois que um dos especialistas tivesse esclarecido,
quando de uma emissão televisionada, desde 1985, quais eram os
modos exclusivos de transmissão da doença (sangue, esperma,
gravidez...), diversos jornais continuaram a interrogar-se sobre a
existência eventual de outros caminhos de transmissão (Mercier,
in Favre, 1992).
A instrumentalização, ou a simples passagem pela mídia,
ficam entretanto sempre ambivalentes, pois não se trata mais de
um prisma neutro, nem de uma caixa de ressonância, nem de um
precursor, nem de um espaço cênico. A mídia contribui para
expandir e complexificar os processos de construção social da
realidade, e torna por isso mesmo ainda mais aleatória toda
constituição eventual de uma matriz paradigmática. Poder-se-á
igualmente observar que, no estado atual da pesquisa sobre o
papel da mídia, a atenção dirige-se mais para os modos de
produção da informação, a partir de análises de conteúdo dos
suportes escritos ou audiovisuais, negligenciando todo
questionamento verdadeiro sobre as condições e as modalidades
de recepção e de uso dessas informações (Gerstlé, 1992).

Redes de ação pública e governança

Além destes diferentes fatores, os processos que


determinam a ação do Estado são igualmente dependentes das
estruturas de intermediação institucionalizadas, que vão filtrar
por sua vez problematizações e alternativas. Um tal ângulo de
análise estabelece um vinculo entre a análise das políticas
públicas e a sociologia das elites, orientada em direção à
compreensão dos modos de funcionamento do Estado a partir de
uma análise “morfológica” de seus membros. Uma das obras
pioneiras sobre esse ponto, The Power Elite de C. W. Mills, pôde

87
assim emitir a hipótese de uma influência maior do complexo
militar-industrial americano no domínio dos assuntos legítimos
ao longo dos anos de 1950, controle esse sobre a agenda que
determina por isso mesmo tanto a natureza como as modalidades
da decisão (Mills, 1956). Todavia, os debates principais que
estruturaram a maior parte das pesquisas posteriores foram de
preferência orientados pela controvérsia já evocada entre
pluralismo e neo-corporativismo, que implica especialmente as
visões diferenciadas dos processos de inscrição na agenda e de
implementação das políticas públicas.
As críticas emitidas a seguir contra o paradigma
neocorporativista, em parte ligadas à crise dos regimes político-
insititucionais que pareciam caracterizar o modelo (Áustria
especialmente, Hassenteufel, 1991), terminaram na constituição
de uma corrente de pesquisa mais recente, ao redor da noção de
redes de política pública (Le Galès, Thatcher, 1995). Se a noção
de rede é clássica na sociologia, no domínio da análise da ação
pública ela tomou mais e mais importância ao longo dos anos
oitenta, até representar um dos domínios mais dinâmicos da
disciplina. Hoje, ela se integra numa reflexão mais ampla sobre a
noção de “governança”.

As policy networks

A irrupção deste modo de conceptualização resulta, em


parte, do fato que os instrumentos tradicionais pareciam dar
menos e menos conta de um certo número de transformações,
que afetaram recentemente as relações Estado/sociedade.
Segundo Kenis e Schneider, diversos elementos conjugados têm
agido neste sentido, especialmente o aumento do número e da
importância das “coletividades organizadas”, a intensificação da
setorialização e da diferenciação das políticas e das
administrações, a intervenção de um número sempre maior de
atores políticos no processo das políticas públicas (overcrowded
policy making, Richardson, Jordan, 1979), a extensão da empresa
e a amplidão do campo das políticas públicas, a decentralização
e/ou a fragmentação do Estado, o enfraquecimento das fronteiras
entre o público e o privado, a multiplicação de formas de

88
“governo privado” que participam nas políticas públicas ou
assumem funções de ordem “pública”, a “transnacionalização”
da política nacional e, enfim, a interdependência e a
complexidade crescentes das questões políticas e sociais, que
põem de maneira crucial a questão do acesso à informação e da
produção de competência (Kenis, Schneider, in Marin, Mayntz,
1991).
Segundo eles, a noção de rede constitui desde então uma
resposta (mesmo parcial) a essas questões, porque ela propõe um
esquema de interpretação das relações Estado-sociedade que
coloca o acento sobre o caráter horizontal e não hierárquico
destas relações, o caráter relativamente informal das trocas entre
os atores da rede, a ausência de fechamento que autoriza a
multiplicação das trocas periféricas e a combinação de recursos
técnicos (ligados à competência dos atores) e de recursos
políticos (ligados à posição dos atores no sistema político).
A noção de rede, que Rhodes e Marsh definem como
“um grupo ou um complexo de organizações, ligadas umas às
outras por dependências em termos de recursos, e que se
distingue dos outros grupos e complexos por diferenças na
estrutura desta dependência” (Rhodes, Marsch, in Le Galès,
Thatcher, 1995, p. 43), sugere, assim, uma imagem das relações
entre os grupos sociais e o Estado que toma suas distâncias em
relação às duas grandes abordagens evocadas precedentemente.
Contrária à visão estatista, a noção de policy network conduz a
relativizar a fronteira Estado-sociedade civil; ela coloca o acento
sobre a diversidade dos atores que participam na construção da
ação pública e sobre o caráter relativamente fluido dos grupos
assim constituídos. Simetricamente, em relação à abordagem
pluralista, a noção de rede introduz uma certa estabilidade nas
relações e oferece diferentes instrumentos analíticos para
compreender como são construídos esses espaços de encontro
entre atores públicos e privados.
Na realidade (isto é ao mesmo tempo seu interesse e sua
principal dificuldade), a noção de rede leva a configurações
muito diferentes que compreendem a totalidade das formas de
articulação entre os grupos sociais e o Estado. Assim, Rhodes e

89
Marsh (in Le Galès, Thatcher, 1995, p. 44) distinguem cinco
tipos de redes, do mais aberto ao mais fechado:
- a rede temática (issue network) (cf. igualmente Heclo,
1978) reagrupa atores em torno de um problema ou de uma
reivindicação, como a defesa de um projeto de lei relativo ao
meio ambiente. Os participantes da rede podem ser numerosos,
sua identidade é variável (membros podem se retirar, outros
entrar na rede) e a interdependência entre os participantes é
limitada ao tema em questão;
- a rede “de produtores” é organizada ao redor de um
interesse econômico particular que leva a relações de
interdependência relativamente limitadas;
- a rede intergovernamental designa o reagrupamento,
sobre o plano horizontal, de autoridades locais ou territoriais;
- a rede profissional (ou setorial) refere-se à existência de
profissionais organizados no plano vertical e fortemente unidos
ao redor de uma competência específica que valoriza o corte em
relação às outras redes;
- a comunidade de políticas públicas (policy community),
enfim, designa uma configuração estável, no interior da qual os
membros selecionados e interdependentes, ao mesmo tempo no
plano horizontal e no plano vertical, partilham um número
importante de recursos comuns e contribuem para a produção de
um output comum.
Os limites de uma tal tipologia aparecem logo: sua
extensão é tal, que ela acaba considerando como “rede” não
importa que forma de organização humana ligada, de perto ou de
longe, à decisão política e, por isso, seu caráter discriminante
corre o risco de se enfraquecer consideravelmente. Além do
mais, como o sublinham Rhodes e Marsh, a passagem de uma
categoria à outra não é evidente. É por isso que se pode seguir
esses dois autores, quando eles propõem focalizar a análise nas
duas extremidades da tipologia, isto é, considerar que as redes se
situarão “em algum lugar” entre a comunidade de política
pública e a rede temática, o que junta então de novo a oposição
canônica entre pluralismo e neo-corporativismo (Hassenteufel, in
Le Galès, Thatcher, 1995).

90
Apesar de seus limites, a noção de rede apresenta um
interesse heurístico tanto do ponto de vista da reflexão geral
sobre o Estado, como para a prática da própria pesquisa. Sobre o
plano geral, esta noção de rede permite, inicialmente, colocar a
ênfase sobre a diluição das fronteiras entre Estado e sociedade
civil. Ela mostra, no prolongamento da abordagem institucional,
que a ação pública não se desenvolve num meio social todo
fluido, sendo que as estruturas das configurações de atores não se
sobrepõem mais necessariamente às organizações públicas (os
ministérios) ou privadas (as empresas, os sindicatos) que balizam
o campo. No plano da prática da pesquisa, isso significa também
que uma das primeiras tarefas da análise de uma política pública
será de identificar os contornos da ou das redes que constituem o
campo estudado, de situar os atores (e prioritariamente os que
participam nas diversas redes), de analisar os princípios de
constituição dos agrupamentos e das lógicas de recorte do setor.
A este respeito, a utilização eficaz do conceito de rede
repousa sobre a consideração de diferentes fatores suplementares,
relacionados em especial à multiposição [multipositionnalité] dos
atores. Um ator dado, por exemplo um alto funcionário, um
responsável de empresa ou um responsável sindical, poderá
participar com efeito em diversas redes diferentes, operando, às
vezes, como um árbitro ou um “intermediário” (cf. a noção de
policy broker em Sabatier). Na confluência das lógicas de
interesse e das lógicas cognitivas que caracterizam um
subsistema dado, esses atores são, por isso mesmo, capazes de
transgredir as “fronteiras” admitidas entre os diferentes campos
e/ou os diferentes grupos envolvidos, de traduzir assim as
reivindicações dos atores em alternativa confiável de política
pública e de controlar, enfim, a aplicação efetiva. Esses atores,
verdadeiros empreendedores de políticas públicas, podem ter
surgido tanto da “sociedade civil” (cf. o caso do professor
Montanier para a AIDS) quanto do aparelho político-
administrativo (cf. o exemplo de Jack Lang para as políticas
culturais).
Mas esta interconexão entre redes diferentes pode ser
substituída por uma situação em que, no interior de uma mesma
rede, coexistem diversas lógicas, mais ou menos concorrentes,

91
que podem ser ativadas alternadamente. O “sistema Airbus”,
agrupa atores diferentes: os Estados, ou antes os diferentes
serviços e ministérios que participam na gestão de programas, os
industriais construtores dos subconjuntos, e o grupo de interesse
econômico Airbus Industrie que é encarregado da coordenação
do sistema e da comercialização dos aviões. O conjunto forma
uma configuração estável de atores que tornam possível
universos de sentidos diferentes (que são animados por lógicas
de ação heterogêneas), mas que têm em comum a gestão de um
desafio partilhado. Contudo, é surpreendente constatar que essa
rede (ou esta comunidade) muda de aspecto, conforme a entrada
que se escolhe para analisar o funcionamento: comunidade de
política pública responsável da política aeronáutica civil, rede de
produtores partilhando uma joint venture ou empresa comercial
intervindo no mercado concorrente. Conforme o ângulo sob o
qual se observa essa rede/comunidade, o lugar respectivo dos
atores e as lógicas de funcionamento que os animam se
modificam por conseguinte sensivelmente, e a imagem desta
forma social polimorfa varia com elas.
Enfim, como já se viu no caso da abordagem neo-
institucionalista, as redes de ação pública produzem sentido. Esta
idéia se encontra explicitamente no conceito - vizinho daquele de
rede - de “comunidade epistêmica” que Peter Haas define como
“uma rede de profissionais dispondo de uma competência
reconhecida no domínio particular (...)”. Os membros da
comunidade “partilham: 1) de uma mesma crença num conjunto
de normas e de princípios que permitem definir uma base
racional de valores (...), 2) das mesmas crenças causais que
decorrem de sua observação das práticas (...), 3) das mesmas
noções de validade, (...) para medir o peso e a validade de um
conhecimento no seu domínio de competência (...)” (Haas, 1992,
p. 3). Como o mostra Jeremy Richardson (Richardson, in Le
Galès, Thatcher, 1995), esta abordagem une especialmente as de
Kingdon e de Sabatier, para colocar em destaque as dimensões
cognitivas e normativas de ação nas redes de políticas públicas.

O conceito de governança

92
Na literatura recente a evolução das formas da ação
pública, das quais o desenvolvimento das redes constitui a
manifestação mais visível, tende com freqüência a ser resumida
em torno do conceito de governança. O termo é relativamente
antigo e, em inglês, ele permaneceu por longo tempo sinônimo
de governo, termo que, na literatura inglesa, é utilizado de
preferência ao conceito de Estado, para designar o conjunto dos
órgãos da ação pública. Depois que os economistas das
instituições o recolocaram em moda, designando, especialmente,
por esse termo, as diferentes formas de intervenção das firmas no
seu espaço sócio-econômico, diversos autores utilizaram o
conceito de governança para interpretar as mudanças que se
percebe hoje, de maneira mais ou menos confusa, nas formas da
ação pública (Mayntz, 1993; Jessop, 1995).
Patrick Le Galès resume assim essas interrogações,
insistindo sobre o efeito de obscurecimento provocado pelas
transformações das formas de interação entre atores das políticas
públicas. Para ele, com efeito, “reencontra-se na governança as
idéias de conduta, de pilotagem, de direção, mas sem o primado
atribuído ao Estado soberano. Colocar a questão da governança
sugere compreender a articulação dos diferentes tipos de
regulação sobre um território, ao mesmo tempo em termos de
integração política e social e em termos de capacidade de ação
(...). Colocar esta questão implica reexaminar as inter-relações
entre sociedade civil, Estado, mercado e as recomposições entre
essas diferentes esferas cujas fronteiras se obscurecem.
Nesta perspectiva mais global, e seguindo os trabalhos de
Renate Mayntz, Jean Leca parte da constatação segundo a qual o
exercício das funções governamentais é mais e mais difícil,
porque a tarefa que consiste em agregar as demandas sociais
contraditórias no contexto de uma sociedade pluralista tornou-se
quase insuperável. A tradução desta dificuldade toma, então, a
forma de um dilema entre a representatividade dos dirigentes e a
eficácia das políticas públicas: tudo se passa como se a
capacidade de ação do governo entrasse em contradição com a
necessidade de “prestar conta” aos eleitores cujas demandas são
sempre mais numerosas, contraditórias e dificilmente “legíveis”
(Leca, 1996).

93
A temática da governança, que Patrick Le Galès define
como “um processo de coordenação de atores, de grupos sociais,
de instituições para atingir os fins próprios discutidos e definidos
coletivamente nos meios fragmentados, incertos” (Le Galès,
1998), designa, portanto, um triplo problema que afeta hoje a
ação pública:
1. A densidade técnica e a complexidade da ação pública
crescem: as escolhas públicas necessitam levar em conta dados
que salientam universos científicos, técnicos, econômicos,
sociais ou políticos mais e mais heterogêneos. A integração pelos
atores políticos destes diferentes universos de sentido é cada vez
mais problemática.
2. O meio sócio-organizacional da ação pública é cada
vez mais móvel, fluido, incerto: cada decisão coloca, frente a
frente, atores de diversos estatutos cuja integração mistura a
fronteira público/privado. Além do mais, num contexto em que
se vê combinarem-se elementos de descentralização e fatores de
concentração das decisões, toda política pública toma a forma de
uma multi-level governance [governança multinível] (Hooghe,
1996), que enfraquece a capacidade de agir de um ator tomado
isoladamente.
3. A articulação entre os processos que salientam a
“política eleitoral”, isto é, os modos de seleção das elites
políticas, as formas do debate público, as condições da
competição para os postos de poder e a representação dos
cidadãos, de uma parte, e os processos que salientam a “política
dos problemas” - formulação dos problemas públicos e de suas
soluções, representação dos grupos de interesse, processos de
implementação da ação pública - de outra parte (sobre esta
distinção, cf. Leca, 1996, p. 345), é cada vez mais problemática.
Constata-se, em particular, que a relação é sempre mais frouxa
entre as exigências da competição eleitoral e as necessidades da
implementação das políticas públicas.
Nestas condições, a governança aparece como um modo
de governo (esse último termo sendo entendido no sentido
amplo), no qual a implementação da coerência da ação pública
(construção dos problemas públicos, das soluções consideradas e
das formas de sua implementação) não passa mais pela ação de

94
uma elite político-administrativa, relativamente homogênea e
centralizada (que tende a perder, de fato, seu relativo monopólio
na construção das matrizes cognitivas e normativas das políticas
públicas), mas pela implementação de formas de coordenação
multiníveis e multiatores cujo resultado, sempre incerto, depende
da capacidade dos atores públicos e privados em definir um
espaço de sentido comum, em mobilizar competências de origens
diversas e em implementar formas de responsabilização e de
legitimação das decisões, ao mesmo tempo no universo da
política eleitoral e no universo da política de problemas.
Considerando esta definição, ninguém se surpreenderá que a
União européia apareça como um dos lugares privilegiados onde
se desenvolvem essas novas formas de ação pública (Marks,
Scharpf, Streeck, Schmitter, 1996).

A União européia: um novo


contexto da ação pública

Se a influência da construção européia sobre as políticas


públicas nacionais tinha permanecido grande parte subterrânea
até estes últimos anos, suas conseqüências aparecem, de hoje em
diante, mais e mais claramente, à medida que elas modificam de
modo profundo o comportamento dos atores das políticas
públicas. Eles tomam consciência, com efeito, que nenhum
domínio da política pública pode na verdade ficar isolado em
relação ao processo europeu que constitui, de hoje em diante,
uma passagem obrigatória na estratégia dos funcionários, atores
políticos ou representantes de grupos de interesse, e que contribui
deste ponto de vista para sobredeterminar as dinâmicas
tradicionais de mobilização em torno das políticas públicas
(Muller, 1992).
Isso significa que se assiste à emergência progressiva de
um feixe de normas de ação comuns e de formas de ação pública
cuja produção escapa aos atores nacionais e que, portanto, vão
orientar de maneira decisiva as percepções e as condutas dos
atores das políticas públicas, em especial nas fases de mudança.

95
A referência crescente a um espaço europeu de políticas públicas
constitui, portanto, um desafio permanente para os sistemas
políticos nacionais que se vêem confrontados com a necessidade
de se adaptar a um ambiente normativo e estratégico que eles não
dominam senão em parte. Esta modificação intervém
particularmente em dois níveis: vê-se emergir novos lugares de
produção de matrizes cognitivas de referência; constata-se uma
evolução das relações entre a esfera política e a esfera das
políticas públicas.
Até o presente, os atores nacionais das políticas públicas
(políticos, funcionários, grupos de interesse...) possuíam
globalmente o domínio da formulação dos problemas, e
sobretudo de sua codificação: era no nível nacional que cada país
definia quais eram os problemas a tratar, e sob qual forma esse
tratamento iria ter lugar. Hoje é evidente que, em número de
domínios sempre maior, esse processo de definição dos
problemas, objeto de uma intervenção pública, é transferido e/ou
completado em nível europeu. É no contexto da governança
européia que vão ser formulados os termos e as condições da
ação pública, assim como as mobilizações dos beneficiários
envolvidos (Wallace, 1996; Richardson, 1996).
Assim, no que se refere ao sistema do preço único do
livro, instaurado pela lei de 10 de agosto de 1981, pode-se notar
que as dificuldades da implementação tem suscitado uma re-
emergência do problema na agenda comunitária ao longo do anos
1980, implicando o risco de desequilibrar o sistema de atores e o
paradigma da exceção do livro. Sendo os regimes de preço
diferentes de um país a outro, certos atores se haviam
aproveitado de lacunas do texto para contornar as disposições,
tendo a FNAC especialmente lançado em 1984 uma operação
batizada “Preços europeus”. Aproveitando-se do fato de que a lei
Lang não tinha previsto integrar as importações no seu
mecanismo, para comprar livros na França antes de exportá-los
para a Bélgica e de reimportá-los, a FNAC tinha podido fixar,
por este meio, preços inferiores ao desconto autorizado de -5%
sobre o preço definido pelos editores. Um tal exemplo mostra,
assim, que a dimensão européia aparecia como um novo recurso

96
para os atores envolvidos, alargando o quadro como o conteúdo
dos repertórios da ação coletiva.
Mas estas novas possibilidades abertas pelo espaço
comunitário implicam também o alargamento e a superposição
de configurações institucionais distintas. Sempre a respeito desse
mesmo exemplo da legislação sobre os preços do livro, certos
atores como os Centros Leclerc, descontentes com uma
regulamentação que interditava fazer do livro um produto de
demanda, recorreram à Corte de justiça das Comunidades
européias, alegando não respeito à livre concorrência no nível
comunitário, uma vez que o sistema do preço único instituía
coações suplementares para os distribuidores franceses. A
“sobrevida” da lei se deu então no interior das instituições
européias, incitando especialmente Lang a multiplicar as ações
de lobbyng junto aos governos estrangeiros.
Esta extensão da agenda comunitária e dos sistemas de
ação pública não significa, contudo que exista um consenso sobre
o tratamento dos problemas. Isso que não é verdadeiro em nível
nacional, é menos ainda em nível comunitário. Simplesmente, a
Europa parece ser de hoje em diante, mais e mais, o lugar do
debate, isto é, o lugar onde são formuladas e onde se afrontam as
diferentes qualificações dos problemas e onde é definido o
conjunto das soluções sobre as quais os diferentes atores vão
entrar em conflito ou em negociação. A Europa, de forma cada
vez mais clara, fixa assim os quadros intelectuais e normativos,
que determinam as grandes orientações das políticas públicas
(Jobert, 1994; Muller, 1994b) e modificam, pouco a pouco, um
certo número de políticas setoriais: políticas da concorrência
(Dumez, Jeunemaître, 1995), políticas industriais (Cohen, 1992),
pesquisa (Jourdain, 1995), políticas de desenvolvimento local
(Smith, 1996).
A questão que se coloca é, então, saber se esta situação é
provisória, ou se vamos assistir a uma transformação progressiva
das regras do jogo nacional por imitação do “método
comunitário”. Sem que, no momento, se possa falar de uma
verdadeira colocação em causa das formas de representação
corporativas nacionais, parece que o desenvolvimento de formas
de representações comunitárias mais competitivas e mais abertas

97
tende pouco a pouco a mudar as regras do jogo do diálogo entre
o Estado e os grupos, [jogo este] implicado nas negociações
nacionais. Pode-se especialmente perguntar se, em nível
nacional, não se multiplicam as situações onde os modos de
decisão tradicionais, fundados sobre a interface estabilizada entre
uma administração e representantes setoriais bem definidos,
cedem o lugar a formas de troca mais complexas, mais vagas,
mais competitivas, portanto mais instáveis, qualificadas como
“patchwork” por Adrienne Héritier (Héritier, 1997).
Para além das aleatoriedades conjunturais, ver-se-ia
assim em definitivo implementar-se um novo contexto de ação
pública, onde se definiriam as normas fundamentais em torno das
quais nossas sociedades vão pensar sua relação com o mundo. Se
esta hipótese fosse verificada, ela significaria que o sistema de
decisão/representação tal qual funciona no quadro das
instituições européias não faz senão exprimir, de maneira mais
clara em razão da especificidade da Europa como processo
político, as transformações das formas de representação nas
sociedades complexas e em particular a tendência à separação
entre a esfera das políticas públicas (isto é da produção de
competência legítima) e a esfera da representação política (isto é,
da constituição de um vínculo social de pertença entre o
indivíduo e a sociedade).
Nestas circunstâncias, é provável que as condições de
intervenção dos grupos de interesse nos sistemas de decisão
pública vão modificar-se. Pode-se pensar, em particular, que os
modos de representação de tipo corporativista (fundados sobre
uma interface estabilizada num espaço setorial entre uma
administração e um grupo que dispõe de um monopólio de
representação) correm o risco de ser mais e mais colocados em
causa, o que introduzirá, como se vê em Bruxelas, ao mesmo
tempo mais leveza, mais abertura, mas também mais incerteza e
mais opacidade nos sistemas de representação dos interesses e,
portanto, nas modalidades da mudança de política (Muller, 1996;
Muller, Rouault, 1997).

98
RACIONALIDADE E IRRACIONALIDADE
DA AÇÃO PÚBLICA

O momento da decisão sempre fascinou os analistas da


ação pública. Quando se analisa um processo de decisão, não se
pode deixar de ter o sentimento de que se penetra no coração da
atividade política, de que se vai colocar em evidência os
mecanismos mais fundamentais da ação do Estado. De fato,
certos estudos mais conhecidos no campo da análise das políticas
públicas, especialmente a obra de Allison sobre a crise dos
mísseis de Cuba, intitulado significativamente Essence of
Decision (Allison, 1972), buscam penetrar nos mistérios da
decisão. Esta fascinação dos pesquisadores explica-se,
essencialmente, pelo fato de que o momento de decisão introduz
sempre, de um modo ou de outro, uma descontinuidade
simultaneamente no tempo e no espaço: ruptura temporal, porque
a decisão aparece muitas vezes como o momento em que o
sistema de ação pública “balança” de uma lógica a outra, como
uma tipo de linha de divisão das águas que define um “antes” e
um “depois”; descontinuidade no espaço, porque esta ruptura
temporal é acompanhada sempre de uma reorganização do
sistema da ação pública: certos atores “ganham”, outros
“perdem”, outros ainda deixam a cena ou, ao contrário, nela
irrompem. Nesta perspectiva, a ambição do pesquisador é de
reconstituir as lógicas em ação no processo de decisão de modo a
identificar as variáveis que permitem explicar por que e como
têm sido efetuados tais ou quais escolhas públicas.

Decisão Inencontrável

Contrariamente à visão racional, que supõe a existência


de um tomador de decisão individual que tenha as informações
necessárias e seja capaz de identificar as alternativas disponíveis

99
num instante t, na realidade “não existem” nem o momento nem
os quadros ideais da decisão. Não é possível situar com precisão
de fato as fases e as dinâmicas, pelas quais o sistema “oscila”.
Assim, é impossível determinar, por exemplo, em qual
momento o programa Airbus foi lançado. As primeiras
“decisões” foram tomadas a partir de 1967, mas somente em
1971 o grupo de interesse econômico Airbus Industrie foi
oficialmente criado. É preciso ainda colocar-se de acordo sobre o
que se entende por “lançamento” do programa. O que tinha sido
decidido, entre 1967 e 1971, foi a colocação no mercado de um
avião franco-alemão de 250 lugares, que se chamou “Airbus”,
porque se tratava do primeiro correio de médio porte, grande
carregador. Entretanto, os atores envolvidos de forma mais ou
menos direta não tinham jamais “decidido” criar, na época,
aquilo que iria tornar-se o segundo construtor mundial de aviões
civis, dispondo de uma gama que cobria o conjunto de
necessidades das companhias aéreas: esta “decisão” não existe
senão a posteriori, quando as condições de desenvolvimento do
programa conduziram ao sucesso que hoje se conhece. Se é
verdade que no fim dos anos 1970, dez anos depois de seu
começo, a idéia, segundo a qual a Airbus Industrie teria tido
vocação para tornar-se um construtor de aviões generalista, era
fortemente contestada por certos atores da indústria aeronáutica
européia (Muller, 1989).
Poder-se-ia, assim, multiplicar os exemplos: John
Kennedy “decidiu” começar a guerra do Vietnã? Quando a
guerra da Algéria começou? Os negociadores que, por ocasião da
negociação da revisão dos acordos do GATT, resolveram incluir
as questões agrícolas na negociação tinham uma idéia da
importância da decisão? Tais exemplos ilustram, sucessivamente,
o fato de que, se os atores têm, em certos casos, o sentimento de
“fazer história”, em geral eles não têm, na realidade, consciência
(ou só parcialmente) das lógicas causais que vão desencadear-se
a partir de suas decisões, porque o sentido destas últimas não
aparece senão mais tarde.
Estes diferentes elementos necessitam, por isso mesmo,
levar em conta duas dimensões conexas essenciais para a análise

100
desta fase particular da ação pública, quais sejam, a
indeterminação fundamental da decisão e seu caráter dinâmico.

A indeterminação da decisão

Mesmo se as lógicas que operam na decisão não


apareçam senão a posteriori, não é preciso analisar o processo
decisório como um processo teleológico, cujo fim estaria contido
nas premissas. Ao contrário, a decisão é um processo cujo
resultado não é inevitável e nem sempre intencional. Quando o
processo de decisão está em andamento, abre-se uma fase de
indeterminação quanto ao resultado final. Aliás, trata-se ali, do
ponto de vista da postura de pesquisa, de uma diferença essencial
entre o analista das políticas públicas e o historiador; este se
recusa, em geral, a examinar seqüências históricas que não foram
produzidas.
Se o futuro não é escrito no momento da decisão, isso
significa também que o processo que se analisa não é senão
muito parcialmente intencional. Em outros termos, os atores da
decisão não “desejam” necessariamente o resultado que eles
produzem através de sua ação. Ao contrário, como se mostrará
mais adiante, sua visão do problema e das soluções buscadas é
muito parcial e fragmentária, e só excepcionalmente o resultado
corresponderá a suas expectativas, sabendo-se que estas também
estão sujeitas a reconstruções a posteriori em função do
resultado efetivamente perceptível do processo decisório.

A decisão como processo

Esta indeterminação fundamental explica igualmente que


não se deve considerar a decisão como um ato isolado. Ao
contrário, todos os exemplos evocados mostram que a decisão
toma a forma de um fluxo contínuo de decisões e de arranjos
pontuais, tomados em diferentes níveis do sistema de ação, que é
preciso analisar como um conjunto de processos decisórios. O
tipo de questionamento se transforma assim: não se trata mais,
com efeito, de partir à busca de uma decisão fundadora, nem de
se interrogar, de maneira ilusória, sobre a questão de saber quem

101
tomou a decisão e por que, mas de se perguntar como a análise
das lógicas em operação nos múltiplos fluxos decisórios permite
reconstruir, depois do fato, o encadeamento que conduz ao
resultado observado.
Nessas condições, compreende-se que, se certas grades
seqüenciais isolam a decisão como uma fase identificável, outras,
como aquela de Jones, desagregam a fase decisória numa série de
etapas distintas que destacam a dificuldade de perceber o
“momento” da decisão. Assim, para Jones, a etapa de
desenvolvimento do programa, que é a mais próxima da acepção
tradicionalmente ligada à noção de decisão, decompõe-se em
duas grandes fases: a formulação e a legitimação (Jones, 1970).
A formulação designa, inicialmente, a atividade de
escolha das respostas dadas a uma questão política. Por exemplo,
num contexto de crise dos sistemas de aposentadoria, poder-se-á
descrever o processo pelo qual as autoridades governamentais
vão tentar dar uma resposta ao problema. De forma concreta, este
esforço poderá ser traduzido por numerosas atividades
diferenciadas: estudos econômicos, relatórios de comissões ad
hoc, encontros informais, mesas redondas com os “parceiros
sociais”, contatos confidenciais... Todas as atividades devem
permitir aos tomadores de decisão sopesar as diferentes soluções
desejadas e avaliar-lhes os efeitos políticos, técnicos ou
financeiros.
Um dos aspectos mais importantes deste trabalho de
análise e de formulação das opções concerne à articulação entre
dimensão das politics e a dimensão das policies. Com efeito, uma
política pública pode parecer plausível, até desejável, sob um
plano técnico e completamente irrealizável do ponto de vista da
política eleitoral. Uma das dimensões do trabalho de formulação
é, portanto, precisamente, fazer face a esta situação de super-
escolha que caracteriza a decisão política, isto é, a necessidade
de integrar variáveis heterogêneas como as pressões técnicas, os
dados políticos, os aspectos diplomáticos ou militares etc.
Esta fase de seleção das opções gera, por isso mesmo,
muito seguido, uma extrema tensão junto aos tomadores de
decisão, sobretudo, evidentemente, se os desafios são percebidos
como vitais, como é o caso em período de crise, até de conflito

102
armado. Pode-se lembrar, aqui, a extraordinária tensão que
acompanhou as decisões tomadas pelo general de Gaulle, no
momento e na seqüência do movimento de maio de 1968. Ocorre
o mesmo para o que concerne ao período 1982-83 e à “decisão”
tomada de não sair do SME. É evidente, as fases de decisão não
são todas tão dramáticas. Mas elas não correspondem jamais à
imagem polida e linear, freqüentemente oferecida pelos atores
(quando eles querem mostrar a racionalidade de sua ação) ou
certos analistas (na perspectiva seqüencial pura). Como o
escrevem cruamente Yves Mény e Jean-Claude Thoenig, “as
autoridades públicas se agitam muito, mas elas nem sempre
sabem, no começo, por que elas correm, qual é o problema que
está em questão. Freqüentemente, no fim de sua correria elas,
finalmente, se dão conta de que estão de fato correndo” (Mény,
Thoenig, 1989, p. 201).
A fase de legitimação recobre, de sua parte, os
mecanismos que vão tornar aceitáveis as escolhas operadas pelo
governo. Com maior freqüência ela está intimamente ligada ao
processo decisório, a tal ponto que é muitas vezes difícil, na
realidade, distingui-la da fase de formulação. A legitimidade de
uma decisão governamental chega, assim, por exemplo, à sua
conformidade ao Estado de direito (ao menos para os Estados
que integram esta necessidade), o que significa que ela deve ter
sido tomada respeitando os procedimentos constitucionais e que
ela não deve transgredir a ordem jurídica existente. Mas o caráter
legítimo de uma decisão remete, também, à sua percepção pelos
interessados, decisão esta que deve ser percebida como aceitável,
senão justa. Há múltiplos exemplos de decisões que não sofreram
nenhuma contestação no plano jurídico, mas que acabaram
postas em questão, porque sua legitimidade era insuficiente na
opinião. Assim, a lei votada em 1984, que visava à reforma das
escolas privadas, era perfeitamente legítima de um ponto de vista
institucional (respeito ao procedimento legislativo por um
governo democraticamente eleito), mas se viu confrontada com
uma viva reação de uma parte da opinião.

103
Os constrangimentos da decisão

As características intrínsecas da decisão contradizem, por


isso mesmo, a imagem que os tomadores de decisão gostam de
dar deles mesmos, mostrando o peso dos múltiplos
constrangimentos que pesam sobre a escolha e afetam a
racionalidade suposta da ação pública. Três tipos de
constrangimentos essenciais se exercem sobre o tomador de
decisão de maneira mais ou menos cumulativa: as regras de
organização, as estratégias de poder e as rotinas burocráticas
(Mény, Thoenig, 1989, p. 214, e s.; Sfez, 1992).

O peso das regras

Se o respeito dos procedimentos, especialmente


constitucionais, representa uma fonte importante de legitimação,
esses mesmos procedimentos constituem igualmente um freio
importante à autonomia dos tomadores de decisão. Com efeito,
contrariamente ao que crêem com muita freqüência os dirigentes
políticos apenas eleitos, as decisões que eles têm que tomar não
se desenvolvem num espaço “virgem”, mas são, ao contrário,
estreitamente balizadas por um conjunto coercitivo de regras
formais e informais. As primeiras concernem aos procedimentos
que organizam as relações entre o legislativo e o executivo:
organização e datas de sessões parlamentares, regulamentação da
iniciativa em matéria legislativa... No caso francês, a adoção da
constituição de 1958, reforçando o lugar do executivo, provocou,
por exemplo, uma verdadeira reconfiguração dos circuitos de
decisão em proveito do Presidente da República e do Primeiro
ministro (Quermonne, Chagnollaud, 1996). O papel dos grupos
de pressão, centrados no Parlamento, ficou bem diminuído, em
proveito de novas formas de contato com os serviços dos
ministérios, situação radicalmente diferente daquela que
prevalece nos Estados Unidos, onde o Congresso é um ator
indispensável da decisão.
Aliás, nos sistemas federais, a questão da repartição das
competências entre o nível federal e o nível dos Estados

104
federados exerce uma coerção muito forte sobre a ação dos
tomadores de decisão, sendo que esse tipo de problema começa a
ser encontrado no interior da União européia. O que se chama, às
vezes, de “querelas de procedimento” não deve portanto ser
considerado como uma dimensão menor da ação pública, pois
elas podem ter uma influência decisiva sobre o timing de uma
reforma ou de uma política, levando com freqüência os atores
políticos a ultrapassarem o tempo que eles se deram para
implementar uma política e, por isso, a perder uma parte dos
benefícios políticos que esperavam.
Mas o mundo dos procedimentos não concerne somente
às regras formais de exercício do poder. Ele diz respeito,
também, ao conjunto dos modos operatórios da decisão:
funcionamento dos gabinetes, organização do trabalho entre os
diferentes ministérios competentes sobre um mesmo dossiê. Os
tomadores de decisão vêem-se assim confrontados com
numerosos obstáculos: uma falta de coordenação entre os
serviços fragilizará o controle político das autoridades
legitimamente eleitas; inversamente, um excesso de controle (de
modo especial da parte dos gabinetes) arriscará paralisar o
processo de decisão, produzindo decisões “fracas” no plano
técnico. Sobretudo, esta questão dos procedimentos diz respeito
tanto à realidade do trabalho governamental (circulação das
informações, repartição das competências...) quanto à imagem
que a opinião reterá. Ora, nesta função de “dar sentido” às
políticas, esse problema de percepção é crucial: todo governo
busca dar de si mesmo a imagem de uma máquina bem
lubrificada, funcionando sem dificuldade e respondendo às
expectativas dos cidadãos. Infelizmente, raros são os governos
que, num momento ou no outro, não são confrontados com estas
“mancadas” que vêm lembrar a extraordinária complexidade da
função política. Ora as próprias vitimas são elas mesmas os
responsáveis políticos que vêem sua cota de popularidade se
afundar. Ora as conseqüências são dramáticas para os cidadãos,
como no caso do sangue contaminado.
Mas, em todos os casos, compreende-se, com freqüência
cada vez maior, que os governos buscarão mostrar seu “método”,
suposto conciliar eficácia e vontade política ao serviço dos

105
cidadãos. Na realidade, é preciso, sobretudo, esclarecer que os
procedimentos de decisão constituem, queira-se ou não, um
mecanismo de pré-enquadramento da decisão, que tende a limitar
fortemente a autonomia do tomador de decisão e a reforçar os
riscos de corte entre os círculos de decisão e o eleitorado.

A decisão como desafio de poder

Todo o processo de decisão constitui um desafio em


torno do qual vão afrontar-se atores que desenvolvem estratégias
de poder mais ou menos antagônicas. “A decisão”, deste ponto
de vista, não se assemelha em nada ao resultado da reflexão
solitária de um indivíduo, mas a um verdadeiro campo de forças
compreendendo atores que obedecem a lógicas diferentes: atores
emergidos do campo político no sentido estrito (partidos, até
correntes e frações internas aos partidos, eleitos locais...), atores
administrativos (gabinetes, direções, escritórios, níveis
territoriais), grupos saídos da sociedade civil (empresas, grupos
de pressão, sindicatos ou movimentos “desorganizados”), campo
de forças que delimita o espaço da “política burocrática”
(Allison, 1972).
As dinâmicas internas deste espaço particular de ação
pública têm diferentes efeitos sobre a decisão. O primeiro, dentre
eles, é o de constituir a decisão um desafio coletivo, tomando o
processo de “escolha” a forma de um afrontamento, mais ou
menos vivo, entre os atores que vão desenvolver lógicas de ação
concorrentes. Por isso, as diferentes opções consideradas vão, de
certo modo, ser “marcadas” pelas estratégias dos diferentes
protagonistas da decisão. A escolha finalmente retida não será
mais, no limite, definida por suas características técnicas, mas
pelo fato de que ela era defendida por tal ministério, tal serviço
ou tal grupo de interesse, correspondendo a decisão final de uma
certa maneira à “vitória” deste ator. No caso da crise dos mísseis
de Cuba, Allison pode assim mostrar o afrontamento dos
diferentes protagonistas da decisão (especialmente o US Navy e
o US Air Force) no processo que devia desembocar, por fim, na
escolha do bloco naval.

106
Poder-se-ia assim multiplicar os exemplos: uma decisão
de implantação de um equipamento nuclear irá colocar face a
face os representantes do produtor de eletricidade, as autoridades
políticas locais e nacionais, as administrações encarregadas da
segurança nuclear, os serviços encarregados do desenvolvimento
econômico e, seguramente, os grupos de pressão antinucleares.
Cada um destes grupos vai construir uma lógica argumentativa,
visando orientar a decisão num sentido ou no outro. Mas é
evidente que um tal debate não é um debate técnico no sentido
estrito, mesmo se argumentos técnicos são trocados
permanentemente pelos diferentes protagonistas (Lascoumes,
1994), o que obriga o analista a identificar os diferentes
participantes no jogo do poder, a fim de colocar em evidência as
lógicas de ação das quais são elaboradores.
Por isso mesmo, a decisão tenderá com freqüência a
parecer um compromisso trabalhoso, obtido depois de uma longa
negociação, mesmo sobre assuntos aparentemente técnicos.
Assim, a decisão de vender armamentos a um país como Taiwan,
por exemplo, será o resultado de um compromisso difícil entre
diferentes administrações: o ministério das Relações estrangeiras
(preocupado em manter boas relações com a China) e o
ministério da Defesa (desejoso de sustentar a indústria de
armamento). Da mesma forma, no caso da crise dos mísseis de
Cuba, o processo de decisão pôde ser apresentado como uma
forma de compromisso entre os protagonistas da decisão.
A partir desta constatação, são considerados dois grandes
exemplos teóricos, que correspondem a duas modalidades de
organização da negociação: a decisão autoritária e a decisão
negociada. O primeiro modelo é característico do sistema
francês: para tentar libertar-se das pressões que fazem pesar
sobre ela os diferentes grupos interessados na decisão, a
autoridade governamental tenta impor as modalidades como
sendo o conteúdo da decisão. Depois de ter feito preparar, de
modo secreto, se possível, as decisões desejáveis, estas últimas
serão, por exemplo, apresentadas ao conjunto dos atores
envolvidos como sendo “para pegar ou largar”. Neste caso, o fim
dos tomadores de decisão é, mais uma vez, livrar-se dos efeitos
julgados perversos da política burocrática e retomar a “pureza”

107
da decisão não negociada. O modelo inverso, ao contrário,
remete à idéia da “mesa redonda” ou do fórum, no interior do
qual o conjunto dos atores interessados (seja em razão de sua
competência, seja porque a decisão toca seus interesses) são
convidados a dar sua opinião, sendo a decisão final apresentada
como uma “síntese” do conjunto das posições (Gaudin, 1996).
Esses dois modelos não existem, entretanto, senão em
teoria, remetendo a dois tipos ideais de decisão. Na realidade,
toda decisão tem, com efeito, sua parte de negociação, de
manipulação e de tomada de posição autoritária. Raros são os
casos de decisão autoritária, que não terminam in fine numa
negociação, sendo que o inesperado da primeira fase leva com
muita freqüência os atores a mudar suas percepções dos desafios.
Inversamente, numerosos são os processos negociados que, na
falta de acordo, acabam, por fim, numa decisão autoritária (a
menos que eles não terminem numa ausência de decisão). É
certo, em todo caso, que os jogos do poder conduzem sempre a
um resultado diferente daquele previsto, no começo, por aqueles
que iniciaram o processo de decisão. O caráter de
“indecidibilidade” [indécidabilité] do processo político, cujo
resultado nunca está contido nas premissas, precisa uma vez
mais reconstituir o encadeamento das lógicas entrecruzadas para
compreender as transformações de um processo de decisão que
não tem mais nada de linear.

O prisma burocrático

Entre os atores da decisão, as diferentes burocracias,


encarregadas de preparar e depois de implementar a decisão,
desempenham, além disso, um papel particular, que pôde
especialmente alimentar as análises críticas da escola do Public
Choice (Buchanan, Tullock, 1962). Em ligação com a
emergência progressiva do problema na agenda, cada
administração vai construir com efeito uma representação do
problema que lhe é específica, em função de sua história, de seu
lugar na divisão do trabalho político-administrativo, de sua
competência específica, das rivalidades tradicionais mantidas
com outros serviços... De um modo ou de outro, os diferentes

108
serviços que participam na decisão tenderão a integrar a defesa
de seus próprios interesses (enquanto segmento burocrático) à
visão que eles vão ser levados a construir do problema em
debate. Por isso mesmo, as administrações têm tendência a
esquecer as finalidades externas da ação pública (os fins
proclamados em benefício da coletividade: vencer o desemprego,
encorajar a indústria nacional, proteger o meio ambiente, ganhar
a guerra...) em proveito de finalidades internas, ligadas aos
interesses próprios da burocracia (multiplicar os inspetores do
trabalho, aumentar o peso do ministério da Indústria em relação
ao ministério das Finanças, reforçar o lugar das direções
regionais do Meio Ambiente, dar um lugar proeminente a tal
arma na resolução do conflito...) De uma certa maneira, os
“jogos” burocráticos vão operar assim como um prisma que vai
contribuir para pré-codificar a decisão.
Até uma data recente, o Exército francês tinha assim
conseguido participar na dissuasão nuclear pela implementação
de um míssil tático, o Pluton, que devia ser substituído por um
míssil mais competitivo, o Hades. O desmoronamento do bloco
comunista, que conduziu a uma revisão completa da conduta da
batalha aeroterrestre no teatro centro-Europeu, entretanto
conduziu a um questionamento do desenvolvimento deste míssil,
excluindo de fato o Exército do jogo da decisão nuclear. Um
pouco mais tarde, a Força Áerea viu-se igualmente “privada” de
uma parte da componente “ar” da força de dissuasão depois do
desmantelamento dos mísseis estratégicos do planalto de Albion.
Somente a Marinha nacional pôde preservar sua frota de
submarinos nucleares lançadores de mísseis. Um tal
redesdobramento das forças nucleares não se faz sem debates no
interior das forças armadas, sendo que as decisões finais tomadas
procedem tanto de uma análise “neutra” do novo dado
estratégico, como do afrontamento entre as três forças armadas,
para preservar ao máximo sua participação no que é percebido
como o coração do aparelho de defesa.
A análise do processo de decisão passa por uma dupla
tentativa de pesquisa. É preciso proceder inicialmente a uma
cartografia dos diferentes fóruns e arenas no interior dos quais se
desenvolvem os jogos de poder ligados a esse processo. Mas é

109
necessário também proceder a um tipo de desconstrução das
estratégias dos diferentes participantes no jogo da decisão, de
modo a identificar, para cada ator, as diferentes lógicas em ação
que permitem compreender as posições adotadas, as estratégias
argumentativas, as diferentes alianças etc. É esta tentativa que é
ilustrada, na França, pelos trabalhos clássicos de Jamous (1969),
Catherine Grémion (1979), Padioleau (1981) ou Thoenig (1987).
Uma tal desconstrução leva então, inevitavelmente, a colocar o
problema da racionalidade da ação pública.

Uma racionalidade improvável

A análise crítica da racionalidade da decisão é,


provavelmente, uma das contribuições mais importantes da
análise das políticas públicas para a compreensão da ação do
Estado, situando-se esta, “em qualquer parte”, entre o modelo da
racionalidade absoluta e a incoerência que ela parece, às vezes,
demonstrar. São os trabalhos criados por Herbert Simon que
abriram o caminho à crítica dos modelos clássicos da decisão,
colocando em questão, de maneira decisiva, as hipóteses sobre as
quais repousava o modelo da decisão racional (Simon, 1957;
March, Simon, 1964; Cyert, March, 1976; March, 1991), abrindo
assim outros campos e perspectivas de pesquisa.

O modelo da decisão racional

A racionalidade do tomador de decisão repousa


classicamente sobre diversas hipóteses conjuntas (Cf. Mény,
Thoenig, 1989, p. 205 e s.; Parsons, 1995, p. 271 e s.):
a) É possível isolar um só ator responsável pela decisão,
“o tomador de decisão”;
b) Este ator é capaz de definir, clara e duravelmente, as
preferências explicitas e hierarquizadas, que definem os objetivos
de ação desejáveis;
c) Ele é capaz de rejeitar o conjunto do espectro das
soluções possíveis, de avaliar as conseqüências em termos de
ganho e de perdas;

110
d) Enfim, ele está em condições de escolher só uma
solução, a partir de um conjunto de critérios objetivos e
hierarquizados, que repousam, em definitivo, sobre um critério
de escolha único e legítimo (reconhecido como justo). Aliás, o
tomador de decisão não modifica sua grade de avaliação ao longo
do processo de decisão.
O enunciado destas hipóteses leva, evidentemente, a pôr
em dúvida sua validade e, por isso, não é tão difícil colocar em
evidência as aporias às quais conduz o modelo da racionalidade
absoluta.
Como temos visto diversas vezes, a idéia de um tomador
de decisão único é, antes de tudo, um mito facilmente
falsificável. Mesmo se os responsáveis políticos possam tentar
fazer funcionar (“eu decidi que...”), a análise concreta dos
processos de decisão mostra, com efeito, que esses processos
funcionam de maneira sistêmica, sendo que uma pluralidade de
tomadores de decisão interagem permanentemente para um
resultado geralmente diferente daquele esperado.
Todos os estudos mostram que as preferências dos atores
não são jamais completamente explícitas, não sabendo os atores
das políticas públicas precisamente o que eles querem ou, mais
exatamente, desejando, com muita freqüência, alcançar diversas
coisas ao mesmo tempo. Um ator político desejará, assim, por
exemplo, fazer ao mesmo tempo a política que ele crê justa e
aquela que lhe dará mais chances de ser reeleito. Além do mais,
as preferências dos atores não são estáveis, evoluindo ao longo
de todo o processo de elaboração e de implementação da política.
Tudo se passa, então, como se os atores “descobrissem”, ao
menos em parte, o sentido de sua ação, durante esta mesma ação.
Sabe-se, por exemplo, que o problema da exclusão mudou de
sentido, na medida da implementação de instrumentos de ação
pública em favor dos grupos percebidos como desfavorecidos.
Centrados no começo sobre públicos em dificuldade devido a
limitações pessoais, esses instrumentos foram em seguida
maciçamente reorientados no sentido de uma luta contra o
desemprego e suas conseqüências, em particular o desemprego
de longa duração e o desemprego dos jovens.

111
Enfim, nenhum ator político está em condições de
rejeitar o conjunto do campo de informação, por razões que se
apóiam, ao mesmo tempo, nas suas capacidades cognitivas e na
estrutura do sistema de informação. Os atores das políticas
públicas se confrontam, de fato, com um fluxo contínuo de
informações de toda ordem que reenvia a universos de sentido
muito diferentes. Assim, pôde-se ver, em dezembro de 1997 e
janeiro de 1998, o Primeiro ministro e seus colaboradores, todos
ocupados em preparar o dossiê das 35 horas, bruscamente
confrontados com um fluxo de informações contraditórias:
ocupações de serviços públicos pelo desemprego, reações
caóticas da “maioria plural”, um choque de médio prazo (a luta
contra o desemprego) e de curto prazo (uma crise a gerir)... Os
problemas encontrados pelo governo nessa ocasião são
sintomáticos de uma dificuldade de selecionar as boas
informações no bom momento. Mais impressionante ainda é a
extraordinária paralisia que parece tomar conta da presidência da
República francesa no momento da queda do muro de Berlim.
Neste caso, vê-se claro que as matrizes cognitivas que permitiam
selecionar e decodificar o fluxo de informações não mais
funcionavam, num contexto marcado pelo desaparecimento do
clima de guerra fria. Esta abundância pode, então, facilmente (e o
paradoxo é somente aparente) transformar-se em raridade:
sepultados sob um grande número de informações, os atores não
sabem quais são as boas informações, aquelas que permitem dar
sentido à situação com a qual se defrontam.
Vê-se bem, nestas condições, que a informação, ou antes
a capacidade de obter as “boas” informações, está ligada ao
tempo: quanto mais rápida é a decisão, tanto mais difícil será
testar o sistema de informação de que se dispõe. É então que
arriscam aparecer os fenômenos clássicos de dissonância
cognitiva (Festinger, 1957), em que os tomadores de decisão
(como todo ser humano) tendem a não “ver” senão as
informações que correspondem a sua própria visão do mundo e
que vêm, portanto, confortar suas certezas. O que é verdadeiro
para os indivíduos, é também para as organizações: os diferentes
serviços que participam na decisão contribuem para filtrar e até
para construir a informação em benefício do tomador de decisão

112
política, o qual deverá, necessariamente, trabalhar a partir de
visões parciais, truncadas, até contraditórias, do problema que se
lhe apresenta.

As críticas do modelo da racionalidade absoluta

Compreende-se, nestas condições, que a realidade dos


processos de decisão esteja muito distanciada do modelo de
decisão racional. Como o mostra Simon, os tomadores de decisão
não afastam de fato senão um número restrito de hipóteses,
analisando-as [as restantes] de maneira seqüencial: eles são
incapazes de implementar a racionalidade sinóptica que
consistiria em avaliar, ao mesmo tempo, os diferentes exemplos.
Ao contrário, eles param no primeiro caso que satisfaz, o que
quer dizer que eles não vão buscar a solução “ótima” (como
definir um optimum, se as preferências são imprecisas, os
critérios contestados e as informações contraditórias?) mas uma
solução “satisfatória”. Por isso mesmo, os tomadores de decisão
vão seguidamente se fixar sobre uma solução “pivô” (Mény,
Thoenig, 1989, p. 311) e construir sua estratégia ao redor desta
posição.
Compreende-se, assim, por que os trabalhos de Simon
puderam dar um golpe definitivo à concepção tradicional da
racionalidade absoluta, introduzindo o conceito de racionalidade
limitada: eles não pretendem que os tomadores de decisão sejam
“irracionais” (eles não fazem não importa o quê), mas a
racionalidade de sua ação não é senão parcial, fragmentária,
limitada (todavia esta teoria da racionalidade limitada não coloca
em questão as abordagens fundadas sobre a hipótese da escolha
racional, que podem adaptar-se à uma concepção flexível de
racionalidade).
De uma certa maneira, o sucesso do modelo da
racionalidade limitada colocou em seguida os analistas da
decisão num embaraço (Urfalino, 1996). Do momento em que
não é mais possível explicar a decisão a partir de estratégias
relativamente simples de descrever, em função de quais variáveis
poder-se-á dar conta dos processos de tomada de decisão? É
necessário considerar que a sociologia da decisão “destruiu seu

113
objeto”, diluindo-o numa tomada de consciência da
complexidade dos processos em ação?
Este é, por vezes, o sentimento que se pode ter, quando
se examinam os modelos que se propõem ultrapassar a
abordagem fundada sobre a escolha racional. É o caso no que
concerne aos trabalhos de Lindblom (Lindblom, 1959, 1979) a
respeito da noção “de incrementalismo disjuntivo”. Esta
abordagem (descrita mais em detalhe no capítulo seguinte) toma
a contrapartida do processo ideal, tal qual ele transparece, por
exemplo, na abordagem seqüencial. A idéia base considera,
inicialmente, o processo de decisão uma forma de negociação e
de arranjo mútuo entre os atores. Isso significa que o
compromisso está no coração mesmo do processo, contrário à
idéia segundo a qual as decisões seriam “para pegar ou largar”. A
noção de incrementalismo busca, assim, descrever um processo
“passo a passo”, no qual o tomador de decisão, longe de buscar
apressar as coisas, numa sorte de lógica de ruptura, vai tentar
modificar, progressivamente e de maneira contínua, o sistema
sobre o qual quer intervir. Uma tal abordagem termina num
modelo de ação sensivelmente diferente, no qual o tomador de
decisão, longe de afirmar objetivos fixados uma vez por todas,
aceitará modificar seus objetivos em função das resistências que
ele encontra. Ele não hesitará, portanto, em fazer concessões, em
multiplicar as alianças, ao preço de revisar suas ambições, de
jogar com o tempo, o que supõe ser paciente. Seguidamente,
privilegiar-se-ão os procedimentos em detrimento dos objetivos,
da mesma forma que as soluções não serão buscadas senão em
função dos meios disponíveis.
Em relação às concepções fundadas sobre a decisão
racional, esta abordagem se aplica bem a um ambiente de tipo
pluralista, no qual o acesso aos circuitos da decisão é
(relativamente) aberto e pouco hierarquizado. A este respeito, ele
corresponde melhor à situação americana, ou à da União
européia, do que ao caso francês em que a capacidade de
participar na decisão fica ainda muito dependente de cadeias de
tipo corporativista mais ou menos institucionalisadas. Mais
geralmente, a contribuição das concepções de Lindblom é
colocar o acento sobre as características da decisão num

114
ambiente hipercomplexo: antes que tentar dominar todas as
variáveis (é impossível), é melhor adotar uma postura mais
modesta e reconhecer que a decisão não é possível senão no
limite. Reencontra-se aí essa questão do “método de governo”
que ressurge, na França, a cada mudança de Primeiro Ministro:
entre a necessidade de afirmar uma vontade política (fundada
sobre uma certa visão do “interesse geral”), que é uma
especificidade muito francesa, e os inevitáveis compromissos
para os quais são sempre pressionados, in fine, os tomadores de
decisão, é difícil encontrar a justa medida, como o mostram os
avatares do Plano Juppé ou, num contexto diferente, a impossível
fusão entre os construtores de aviões Dassault e Aéroespatiale.
Esta constatação não exclui a existência de situações de
“escolhas trágicas” (Urfalino, 1996) que vêem o tomador de
decisão (no singular neste caso) assumir os riscos de uma decisão
freqüentemente impopular: é Jacques Chirac decidindo a
retomada das experiências nucleares ou Helmut Kohl decidindo
manter a paridade entre as moedas das duas Alemanhas no
momento da reunificação. Mas estes exemplos, nos quais a visão
de um indivíduo contribui para simplificar a complexidade do
real, não correspondem senão a situações excepcionais.
A complexidade e a fluidez da maior parte das
conjunturas de decisão, e, portanto, a incerteza que acompanha
todo processo de tomada de decisão, são ainda melhor
sublinhadas por uma outra abordagem da decisão: o “modelo da
lixeira” (garbage can model), proposto por Cohen, March e
Olsen, constitui com efeito o ponto de chegada do processo de
desconstrução do modelo da decisão racional. O modelo é
aplicado por estes atores às situações “de anarquia organizada”
que correspondem a “organizações caraterizadas por preferências
incertas, uma tecnologia leve e uma participação flutuante”
(March, 1988, p. 163). As modalidades da tomada de decisão, em
tais organizações, seguem um desenvolvimento caótico definido,
por analogia com uma “lixeira”, pelo fato que os diferentes
elementos que constituem a decisão (problemas, soluções, atores,
ocasiões de escolha) parecem “jogados pelos participantes na
medida da sua aparição” (Ibid., p. 166). É assim que se vai
encontrar, na desordem, problemas de toda ordem (coletivos ou

115
pessoais, gerais ou específicos) colocados à atenção dos atores
envolvidos, soluções que não têm necessidade de problema para
serem propostas, participantes que “vão e vêm” e ocasiões de
escolha.
O exemplo mais freqüentemente citado é o dos sistemas
educativos (Musselin, 1997), mas pode-se, igualmente, aplicá-lo
sem dificuldade a sistemas relativamente fluídos como o GATT,
a União européia ou o consórcio Airbus Industrie. O grande
interesse do modelo é o de colocar a questão do “encadeamento”
dos elementos que compõem o sistema (a “lixeira”). Cohen,
March e Olsen mostram em particular, de modo convincente, que
não é necessário que um problema seja colocado para que os
atores avancem uma solução que eles irão tentar “colocar” na
ocasião da emergência de um problema.
A questão que se propõe então é saber como é possível
“decidir” em contextos tão flutuantes. Se é levada em conta a
provocação à qual os atores do modelo da lixeira não resistiram
de modo completo, dois elementos podem ser antecipados aqui.
Pode-se inicialmente mostrar que a decisão intervém a partir do
momento em que um ator (ou uma coalizão de atores) se revela
capaz de dominar, mesmo parcial e provisoriamente, os
determinantes da escolha, o que Kingdon mostrou, explicando
que uma política podia nascer da reunificação de três “correntes”
até aqui separadas (Kingdon, 1984). No nível de um programa
preciso, um tal tipo de processo está em ação, por exemplo, no
caso do consórcio Airbus: cada novo programa nasce, com
efeito, depois de uma fase de intensa incerteza em que se
entrecruzam lógicas políticas, industriais e comerciais, problemas
em diferentes níveis, atores animados por lógicas contraditórias
(Estados, indústrias, companhias clientes.....). Tem-se assim o
sentimento, em cada etapa, que o sistema de atores pode explodir
sob o peso destas contradições, de tal maneira as lógicas em ação
parecem incompatíveis. Mas, sempre, um ator chega a colher
uma oportunidade para reatar os fios da decisão.

116
A decisão como processo cognitivo

Para além de sua contribuição, que não é mais contestada


em suas grandes linhas, o problema destas abordagens críticas da
racionalidade apóia-se no fato de que, se elas previnem
eficazmente contra as aporias às quais conduz o modelo da
decisão racional, elas não permitem (ou muito dificilmente)
explicar por que tal decisão é tomada finalmente. É aliás por esta
razão que as abordagens fundadas sobre o ator racional - mesmo
corrigidas à luz das críticas de Simon -, encontram sempre tanto
sucesso junto aos pesquisadores. Tudo ocorre como se se tivesse
que escolher entre um modelo que repousa sobre hipóteses
contestáveis, a escolha racional, mas que dá resultados, porque
funciona a partir de variáveis mais ou menos observáveis, e um
modelo que corresponde melhor à realidade, mas de difícil
implementação, porque repousa sobre relações causais muito
complexas de analisar.
Um dos atrativos principais das novas abordagens da
análise das políticas públicas consiste, então, sob este ponto
preciso da decisão, em deslocar o questionamento sobre os
determinantes cognitivos, normativos e institucionais da escolha.
A abordagem cognitiva vai por exemplo além da tomada em
conta dos mecanismos de percepção da realidade próprios aos
indivíduos que participam no processo de decisão (Parsons,
1995, p. 357), na medida em que ela busca levar em conta os
mecanismos globais de formação dos sistemas de sentido que
determinam a percepção dos atores, articulando, assim, a
abordagem pelos atores a uma abordagem pelas estruturas
cognitivas. Do mesmo modo, antes de se focar sobre os
determinantes intrínsecos da decisão, o neo-institucionalismo se
aplicará a considerar as diferentes variáveis (reunidas sob o
termo genérico de instituições) que enquadram e determinam as
escolhas.
Para a abordagem cognitiva, o processo decisório vai
assim aparecer, antes de tudo, como um processo de construção
progressiva de uma representação do problema, das soluções e de
suas conseqüências. No caso da decisão (ou não decisão) de não

117
sair do SME tomada em 1983, o afrontamento entre os diferentes
atores que participaram desta crise terminou assim numa certa
representação do que era “possível” fazer ou não fazer. Duas
visões principais se opunham então: a maioria dos interlocutores
do Presidente e do Primeiro Ministro tendiam a valorizar a
autonomia da França na escolha de sua política econômica e
monetária. A minoria, ao contrário (ao redor de Michel Rocard e
Jacques Delors), dava-se conta de que, se a França quisesse
manter seu lugar no novo contexto internacional, precisava
aceitar os novos princípios das políticas orçamentárias, centrados
na luta contra a inflação, a defesa da moeda e a limitação dos
déficits.
Atrás destas duas teses, vê-se bem que se alinhavam dois
paradigmas econômicos diferentes. Os primeiros se situavam
claramente num paradigma de inspiração keynesiana, que
valorizava a capacidade dos Estados de regular as flutuações
econômicas graças a políticas anticíclicas. Ao contrário, seus
oponentes viam, no fracasso da retomada de 1981, a prova do
caráter ultrapassado do paradigma keynesiano, encontrando-se a
França forçada no seu ponto de vista a adotar as novas normas de
política econômica ligadas ao paradigma neoliberal. O
afrontamento não se apoiava, portanto, somente sobre medidas
concretas, mas também sobre visões globais do mundo, sendo
cada uma delas portadora de uma concepção diferente do papel
do Estado, de sua relação com o mercado. De acordo com o
paradigma que se tivesse por referência, uma mesma medida de
política econômica podia aparecer como justa, adequada, ou, ao
contrário, como completamente defasada e ineficaz.
Compreende-se melhor, então, a violência dos debates ao
longo deste período crítico. O que estava em questão era bem
mais que uma escolha de política econômica, uma vez que se
tratava igualmente de fazer triunfar uma visão da sociedade e,
portanto, uma visão do papel que os diferentes atores públicos
deviam aí jogar. O que era posto em causa era, em definitivo, a
carta cognitiva que estruturava a ação dos atores da decisão,
lembrando esse debate que se produzira 25 anos antes, quando os
modernizadores, impregnados do paradigma keynesiano e
partidários de uma intervenção vigorosa do Estado no sentido da

118
modernização da sociedade, se opunham às elites conservadoras
que defendiam uma visão mais tradicional da sociedade francesa
(Dulong, 1997).
Para além de uma estrita abordagem racional, que levaria
a considerar, no caso, que François Mitterand “sacrificou” a
autonomia da França, no domínio econômico e monetário, à sua
vontade de apoiar a construção da Europa, a abordagem
cognitiva permite assim abraçar um feixe de fatores muito mais
amplo. Considerando as variáveis evolutivas que pesaram sobre
essa escolha precisa, pode-se com efeito perguntar se o elemento
determinante não resultou na cristalização progressiva, no
interior da sociedade francesa e do Estado, do paradigma neo-
liberal, conseqüência especialmente das “anomalias” da política
de reativação adotada em 1981, que tinha provocado a “queda”
do paradigma keynesiano.
Uma tal análise não significa, portanto, que uma decisão
como aquela de 1983 se impôs sozinha sem um verdadeiro
trabalho sobre o sentido realizado por um certo número de atores
do poder. Ao contrário, é importante considerar, ainda uma vez,
o emaranhado entre lógicas de poder e lógicas de sentido, para
compreender como esse trabalho de (re-)construção social da
realidade pôde ter, por efeito, a modificação progressiva do
ambiente cognitivo dos atores e sua condução, pouco a pouco, a
religarem-se (até converterem-se) às novas matrizes cognitivas e
normativas. Nesta perspectiva, analisar uma decisão pública quer
dizer, portanto, em definitivo, compreender como - num contexto
de pressões (técnicas, econômicas, sociais, políticas...) das quais
não se conhece os limites (no momento da decisão) - um certo
número de atores vão construir e fazer aceitar uma matriz de
interpretação do real que, dando oportunidade aos diferentes
participantes de estabilizar sua relação com o mundo, vai
permitir fazer emergir e legitimar uma escolha pública.

119
A MUDANÇA DA AÇÃO PÚBLICA
As características da ação do Estado descritas antes
provam a que ponto as políticas são determinadas por um feixe
muito largo de elementos. A multiplicidade de sistemas de ação,
que variam em função dos setores, do momento e das seqüências
distintas da ação pública, o peso dos interesses, dos recursos e
dos valores engajados pelos atores públicos e privados, na
definição dos quadros, da extensão e das modalidades das
intervenções estatais, são, com efeito, tantos fatores que
conferem à ação pública um caráter eminentemente complexo.
Face a essas pressões potenciais, o leviatã estatal foi desde então
com freqüência apresentado como um conjunto monolítico mais
ou menos fechado sobre si mesmo, integrado a um jogo
complicado de inter-relações, que dominam imperfeitamente seu
ambiente, o que autoriza, no total, poucas modificações da ação
pública.
Apesar de tais conclusões, considerar as evoluções
possíveis da ação pública aparece como uma das pistas atuais
mais frutíferas das pesquisas neste domínio. Com efeito,
interrogar-se sobre as capacidades adaptativas dos dispositivos
de ação pública obriga a deslocar o interesse para assuntos um
tanto negligenciados até então, em especial o peso do passado na
determinação tanto dos quadros como das modalidades das
políticas atuais. Além da estabilidade aparente dos dispositivos
institucionais, um tal ângulo de abordagem necessita igualmente
integrar outras variáveis na análise, especialmente os valores, as
representações e as imagens próprias a um setor preciso, e
considerar a evolução das relações de força entre atores, no
interior de um subsistema dado. Para isso é necessário, por
conseqüência considerar um leque muito largo de elementos e de
variáveis, que justificam que um tal objeto, a mudança, seja, sem
dúvida, “uma das categorias que engloba tudo dentre as mais

120
acolhedoras de que dispõe a ciência política” (Dobry, 1992, p.
15).
Compreender e construir as lógicas de “mudança”,
entendido no sentido de ruptura, no interior de um subsistema de
ação pública dado, na distribuição dos recursos, nas relações de
forças provadas, nas instituições tradicionais ou nos esquemas
cognitivos legítimos, constitui uma das orientações maiores das
pesquisas sobre a ação pública. Do incrementalismo às
abordagens centradas sobre as mudanças de paradigma,
diferentes modos de apreensão do problema da mudança foram
construídos pela análise das políticas públicas, atestando a
pluralidade das formas de variação da ação do Estado.

Incrementalismo e aprendizagem

Nas primeiras análises da ação pública, a questão da


mudança ficava indexada às características da própria decisão,
seqüência esta que parecia poder sintetizar o conteúdo e as
evoluções da ação pública. Apoiando-se sobre as teses
desenvolvidas por Herbert Simon a respeito da racionalidade
limitada dos indivíduos e das organizações (Simon, 1957), os
trabalhos de Lindblom sobre os fundamentos da decisão foram
assim à fonte da noção de incrementalismo (Lindblom, 1959). O
balanço crítico endereçado a tais análises conduziu, entretanto, a
desenvolver, em seguida, abordagens um pouco mais otimistas
que descrevem as faculdades variáveis de aprendizagem dos
atores implicados na ação pública.

O incrementalismo

Levando em conta as pressões que pesam sobre a escolha


(falta e custo da informação, domínio imperfeito do ambiente e
das soluções disponíveis), já mostradas pelas teorias da
racionalidade limitada, Lindblom sustentou, com efeito, que as
decisões, quaisquer que sejam, provocam transformações

121
puramente marginais (icrementais) das políticas, em razão,
especialmente, das exigências de negociações e de mercancia,
que marcam as trocas sociais, em particular nos regimes
democráticos tradicionais.
Num artigo que estabelece o balanço de seu modelo
(Lindblom, 1979), Lindblom lembrou e precisou quais eram as
modalidades de escolha para os atores encarregados da decisão
na ótica desenhada pelo incrementalismo disjuntivo:
a) As alternativas de escolha são limitadas, na prática, às
soluções que parecem as mais familiares e, por isso mesmo, as
mais próximas do statu quo;
b) Produz-se um emaranhado entre os objetivos e/ou os
valores e/ou os dispositivos instrumentais que estão disponíveis.
A decisão não se faz, portanto, pela elaboração de uma estratégia
apoiada sobre os objetivos desejáveis, que resultaria depois na
adoção dos instrumentos adaptados. Ao contrário deste esquema
racionalista, os diferentes determinantes da decisão estão
consubstancialmente ligados uns aos outros, de tal sorte que as
possibilidades práticas parasitam os elementos normativos ou
cognitivos que podem pesar sobre a decisão;
c) Uma maior atenção é dispensada aos desequilíbrios a
resolver antes que aos fins “positivos”;
d) A decisão se caracteriza, essencialmente, por um
encadeamento de seqüências ensaio/erro, antes de chegar à
decisão final;
e) A análise se limita apenas a considerar um número
limitado de alternativas possíveis;
f) A decisão é fracionada entre uma multiplicidade de
atores, que partilham entre si as tarefas, não dispondo nenhum
ator do domínio do conjunto da cadeia, contrário aos postulados
da abordagem racional.
Em razão destes diferentes fatores, Lindblom estima, por
conseqüência, que os atores “se arranjam” (muddle through),
procedem seqüencialmente, e chegam, em definitivo, a uma
decisão minimalista, que não modifica, senão marginalmente, as
políticas envolvidas.
Esta orientação geral constituiu, há muito tempo, um dos
traços característicos da análise das políticas públicas. Ela deu

122
lugar a diversos trabalhos tornados célebres, atestando a
resistência dos dispositivos da ação pública a toda a forma de
mudança. Assim, as pesquisas de Aaron Wildavsky sobre o
processo orçamentário puderam mostrar que as variações da ação
pública, em termos só financeiros, são extremamente limitadas
(Wildavsky, 1975). A maior parte dos itens orçamentários são
com efeito reconduzidos sem a menor discussão cada ano,
enquanto que as novas destinações ou os créditos suplementares
não representam senão uma parte ínfima nas sucessivas leis de
finanças. Aplicando tais hipóteses ao estudo comparativo das
evoluções orçamentárias durante os anos 1960, Aaron Wildavsky
mostrava assim, no caso da Inglaterra e dos Estados Unidos, que
mais de 2/3 dos itens orçamentários conheciam variações
inferiores a +/- 10 % em relação ao ano precedente (69,8 % para
a Inglaterra e 67,1 % para os Estados Unidos).
A fraqueza de uma tal demonstração está entretanto no
seu grau muito elevado de generalização. Faz, com efeito, pouco
sentido fundar a análise sobre agregados tão amplos como
índices orçamentários, não reduzindo-se além do mais a ação
pública apenas aos recursos financeiros mobilizados pelos atores
político-administrativos. Assim, as políticas reguladoras, para
retomar a tipologia proposta por Lowi, centradas no
enquadramento jurídico de um certo número de atividades e de
comportamentos (Lowi, 1964), podem variar de forma
considerável, sem que as destinações orçamentárias sejam,
portanto, modificadas. No caso da lei Lang sobre o preço único
do livro, por exemplo, a introdução de uma regulamentação dos
preços não teve senão poucas incidências sobre a evolução do
orçamento da direção do Livro e da Leitura, mas ela não
modificou menos profundamente a percepção do lugar legítimo
do Estado nesse setor particular (Surel, 1997 b).
O incrementalismo aplica-se, sem dúvida, com maior
pertinência no nível da implementação das políticas públicas
num espaço restrito. Quando se considera a evolução de
programas pontuais, geralmente confiados a atores pouco
numerosos, poder-se-á constatar a existência conjugada da maior
parte dos fatores de coerção que explicam os arranjos
incrementais. Fraqueza das informações, domínio imperfeito do

123
ambiente, necessidade permanente de negociações.... são
facilmente identificáveis em nível de programas ou de
instituições particulares. As noções de racionalidade limitada e
de incrementalismo tendem igualmente a ser utilizadas, com
mais pertinência, para a análise dos subsistemas complexos,
marcados pela interpenetração de diferentes níveis de governo,
como é o caso para as políticas européias. A União européia, por
exemplo, não comporta instituições políticas centralizadas,
dispondo de um monopólio efetivo de coerção legítima como na
acepção tradicional do Estado definido por Weber. A
indeterminação das estruturas e dos fluxos sócio-políticos, tanto
do ponto de vista institucional como no quadro dos valores ou
dos interesses, desenha por conseqüência sistemas de ação
pública complexos, em que o incrementalismo parece a única
maneira possível de “fazer as políticas”.

A aprendizagem

Retomando o postulado da imobilidade relativa à ação


pública, mas numa versão mais otimista, diversos autores
puderam, na seqüência, desenvolver a noção de aprendizagem
(Heclo, 1974). Nesta acepção, se o Estado está sempre
confrontado com uma série complexa de fatores que entravam
sua ação ou, ao menos, o enquadram num feixe limitado de
possibilidades, não é menos verdade que a ação pública evolui
progressivamente graças a mecanismos de aprendizagem. Estes
se aplicam tanto ao conhecimento dos problemas a tratar, quanto
ao domínio dos instrumentos mobilizados, até mesmo à
aprendizagem da natureza dos vínculos e das relações de força
que caracterizam um subsistema dado.
Segundo Hall (Hall, 1993), a análise da ação pública sob
o ângulo da aprendizagem gira ao redor de três premissas:
1. O que determina com maior certeza uma política no
instante t, é a política em t-1. Os atores das políticas públicas se
fundamentam, com efeito, de modo privilegiado, sobre as lições
tiradas de suas experiências passadas. Funcionando sobre o modo

124
ensaio/erro, a ação pública se modifica em função dos resultados
e das apreciações relativas aos esquemas em vigor.
2. A aprendizagem supõe, além do mais, valorizar os
mecanismos de conhecimento no sentido estrito, o que tende a
salientar o papel dos peritos no interior e fora do governo. A
atenção da pesquisa está, portanto, centrada aqui sobre os
processos de constituição e de construção de uma perícia pelos
atores públicos, de preferência a toda outra variável (interesse,
valores...).
3. Por isso mesmo, último postulado, as abordagens em
termos de aprendizagem repousam sobre a idéia de uma
autonomia relativa do Estado em relação às pressões exteriores.
Elas descrevem com efeito um modo de funcionamento da ação
pública em recipiente fechado, ao menos relativamente, que
autoriza por conseqüência a aprendizagem num contexto mais ou
menos estável.
Em torno desta grade geral, Bennett e Howlett puderam
isolar três tipos de aprendizagem na literatura, aplicando-se cada
uma destas formas a objetos e a processos particulares (Bennett,
Howlett, 1992):
a) government learning: Trata-se aqui da aprendizagem
no sentido mais clássico do termo, que se aplica à análise dos
mecanismos adaptativos internos a uma instituição ou a um
segmento político-administrativo dado. O ajustamento dos
dispositivos instrumentais que caracterizam um programa preciso
constitui a ilustração clássica deste tipo de aprendizagem, por
exemplo quando novas sanções são adotadas para sobrecarregar
um dispositivo repressivo, ou quando certas taxas são elevadas,
para preencher certos déficits (cf. a evolução recente dos
levantamentos visando saldar a “dívida social”).
b) lesson-drawing: esse tipo de processo, analisado
especialmente por Richard Rose (Rose, 1991), aplica-se às
modificações mais vastas dos programas de governo. Não se trata
mais de mero ajustamento “técnico”, mas de uma reforma parcial
da apreensão do problema, assim como da natureza dos
dispositivos adotados.
c) social learning: última acepção enfim, “a
aprendizagem social”, que abraça uma categoria mais ampla de

125
atores (estrangeiros privados interessados e não mais somente
atores político-administrativos) e variáveis negligenciadas nos
outros tipos de análise (idéias, valores...). A aprendizagem une
aqui a descrição em termos de mudança de paradigma, que
convida a interrogar-se sobre as reavaliações normativas e
cognitivas que podem intervir num subsistema dado.
Mesmo se esta tipologia é útil, a última acepção nos
parece constituir um caso limite da noção de aprendizagem. Ela
remete com efeito, como se verá mais adiante, a dinâmicas de
transformação da ação pública que escapam amplamente às
lógicas incrementais ou aos processos de aprendizagem no
sentido estrito. Pelo contrário, as duas primeiras resumem melhor
os postulados e os campos de análise das abordagens centradas
na aprendizagem. Elas recortam o que Peter Hall chamou de
mudanças de primeira e de segunda ordem (Hall, 1993), que se
aplicam, no essencial, às modificações dos instrumentos e dos
métodos da ação pública. Por isso mesmo, tais processos de
mudança são concebidos de maneira positiva como
melhoramentos da ação pública com o objetivo de atingir fins
precisos. A constituição de uma competência progressiva é, de
maneira especial, percebida como um meio de melhor apreender
os problemas a tratar, de identificar de modo mais estrito os alvos
privilegiados da ação, assim como de definir de forma correta os
instrumentos adaptados (legislação, subvenção, campanhas de
prevenção). As evoluções sucessivas da renda mínima de
inserção (RMI) atestam, por exemplo, tais dinâmicas, sendo que
uma série de pesquisas permitiu avaliar os efeitos práticos deste
programa preciso, prelúdio de uma melhor focalização das
populações envolvidas, da adjunção de dispositivos de
acompanhamento com o objetivo de facilitar a reinserção.
Por isso, as abordagens no sentido de aprendizagem
estão com freqüência ligadas aos objetivos e aos dispositivos
tradicionais da avaliação (Monnier, 1992; Spenlehauer, 1995).
Esta é, com efeito, tradicionalmente definida como “a atividade
de recolha, de análise e de interpretação da informação que
envolve a implementação e o impacto da medida que visa agir
sobre uma situação social, assim como a preparação de medidas
novas” (Leca, 1993, p. 165). O efeito esperado repousa, portanto,

126
sobre a apreciação dos erros da ação pública, tendo como
vontade subjacente remediar estes disfuncionamentos ou estas
apreensões inadequadas do problema, para chegar a um melhor
resultado.
De acordo com estas concepções originais, tanto a
avaliação, como a aprendizagem que se presume decorrer da
mesma ultrapassaram, entretanto, o único quadro institucional da
ação pública para mostrar que tais dinâmicas adaptativas não se
exercem somente em termos de competência e de conhecimentos
técnicos, mas podem recobrir também modificações práticas e
comportamentos dos estrangeiros envolvidos.
Uma tal vontade de alargamento sublinha, por isso
mesmo, alguns dos limites principais da aprendizagem. Por longo
tempo construídas por referência a uma impermeabilidade,
mesmo relativa, das instâncias político-administrativas, as
abordagens em termos de aprendizagem tendem cada vez mais a
integrar conceptualizações mais adaptadas à complexidade e às
características do jogo político. Noções tais como as de “redes”,
de “arenas”, de “fóruns” ou ainda de “coligações” introduzem,
por exemplo, um grau de análise suplementar mostrando o
intrincado de um grande número de atores e de variáveis no
estudo dos processos de mudança da ação pública. Mais que uma
simples adaptação incremental, o mais das vezes limitada aos
instrumentos característicos de um subsistema dado, a
aprendizagem torna-se, então, sinônimo de novos espaços de
ação a encontrar, de redes a tecer, de recursos a valorizar,
levando em conta, em especial, o peso do passado sobre a ação
pública presente.

127
128
O PESO DO PASSADO
Durante muito tempo orientada pela pesquisa de
explicações causais, puramente sincrônicas, a sociologia tende
hoje a integrar uma dimensão histórica cada vez mais importante.
Na linha dos trabalhos de Norbert Elias, de Charles Tilly ou de
Theda Skocpol especialmente, uma nova corrente parece com
efeito se desenvolver sob o termo genérico de “sociologia
histórica” (Déloye, 1996), que visa, ao mesmo tempo, ultrapassar
as clivagens disciplinares consagradas e alimentar um olhar
diferente sobre os objetos e as abordagens tradicionais da
sociologia. Sem ser tão original quanto pode aí parecer
inicialmente (o caminho inverso, da história à sociologia, foi
empreendido de longa data pela corrente historiográfica iniciada
pela École des Annales), este processo apresenta, contudo, o
interesse, para nosso propósito, de ter alimentado perspectivas de
pesquisa centradas sobre o processo de formação e de evolução
dos objetos públicos, e em especial das políticas públicas. Ela
convida, especialmente, a um corte do objeto a analisar
(instituições, programas, atores...), que necessita apreender o
desenvolvimento de uma política sobre um lapso de tempo
relativamente longo (Sabatier propõe assim que se fixe, como
limite, um decênio ao menos. Sabatier, Jenkins-Smith, 1993).

A herança

Um certo número de análises, que integram esta


dimensão histórica, insistem, acima de tudo, sobre o peso das
políticas anteriores e as possibilidades de escolha oferecidas aos
atores públicos. Mais que o domínio imperfeito do ambiente e
das informações úteis ou que a complexidade das relações
particulares num subsistema dado (fatores de coerção que não
são por isso negligenciados), é então a herança deixada pelos
governos precedentes que aparece como o fator determinante
para as mudanças possíveis da ação pública (Cf. a noção de

129
herança - inheritance, Rose, 1990, Rose, Davies, 1994, ou a
noção de legado - legacy, Collier, Collier, 1991).
Analisando a evolução dos programas do Estado
britânico depois da guerra de 1945, Rose mostra quanto as
possibilidades de escolha são limitadas para as políticas
anteriores. Tomando o exemplo das diferentes legislações em
vigor no momento da tomada de poder de Margaret Thatcher em
1979, Rose mostra que mais da metade das leis (56,6 %) foram
votadas antes de 1945, sendo que só o período que compreende o
reino da rainha Vitória (1837-1901) viu que 26 % das leis então
elaboradas permaneciam efetivas 80 anos mais tarde (Rose,
1990, p. 266).
A principal razão desta impermeabilidade relativa à
mudança da ação pública repousa, segundo Rose, sobre o peso
acumulado das coerções, especialmente de origem institucional,
que caracterizam os programas públicos e pesam sobre os atores
político-administrativos. Para ele, com efeito, “os engajamentos
tomados pelo passado não podem ser evitados pelo governo do
momento, uma vez que eles são encaixados no direito público e
nas instituições e executados pelos funcionários” (Rose, Davies,
1994, p. 12). Aliás, a maior parte dos programas, uma vez
implementados, seguem um desenvolvimento autônomo que
constitui, em si mesmo, um obstáculo a toda reavaliação
posterior. Assim, os dispositivos de proteção social continuaram
a funcionar por muito tempo, segundo os mesmos princípios e as
mesmas modalidades da época de sua criação, precisamente
quando o número de beneficiários tinha aumentado
consideravelmente, e o ambiente sócio-econômico tinha evoluído
muito. A mudança da ação pública tem, portanto, o mais
freqüentemente, nesta acepção, um caráter mecânico,
impulsionado pela lógica inerente aos próprios programas.
Uma das críticas que se pode fazer ao modelo e à
tentativa de Rose é de se concentrar nos programas de governo e
de sustentar, implicitamente, uma visão restritiva do problema
que reúne as conclusões tradicionais do incrementalismo. Daí
resultam análises centradas, essencialmente, nas condições de
escolha em detrimento de objetos mais vastos, incluindo

130
especialmente o papel dos estrangeiros envolvidos, dos valores e
representações legítimas num momento dado.

Os processos de path dependence

No estudo da ação pública, a dimensão histórica gerou


igualmente, como se viu, uma corrente particular do neo-
institucionalismo, chamada institucionalismo histórico, orientada
principalmente pelo estudo da sóciogênese dos dispositivos de
ação pública, assim como dos princípios, dos valores, dos modos
de ação e das relação de força que os caracterizam. No interior
desta orientação geral, a noção mais conhecida é, sem dúvida,
aquela de “dependência do caminho” (path dependence), que
descreve a existência de movimentos cumulativos que
cristalizam os sistemas de ação e as configurações institucionais
próprias a um sistema dado e que determinam um caminho
preciso de ação pública. Integrando na análise do político uma
conceptualização tirada da economia e aplicada antes a outros
terrenos “políticos” (Collier, Collier, 1991), Paul Pierson
especialmente (Pierson, 1993, 1996, 1997) desenvolveu análises
para caracterizar os elementos pelos quais a dimensão temporal
influencia a ação pública, encontrando, na mesma ocasião, uma
tradição sociológica fundada sobre o estudo de cadeias causais
que apontam para uma dimensão temporal (Stinchcombe, 1968).
Na origem, a path dependence inspira-se na noção
econômica de rendimentos crescentes (increasing returns),
conjunto de mecanismos que alimentam uma dinâmica
cumulativa caracterizada por quatro elementos principais:
1. A impredicabilidade: se os acontecimentos fundadores
têm um grande impacto, permanece de fato impossível predizer
os estados finais do processo engajado.
2. A inflexibilidade: quanto mais se avança num processo
dado, tanto mais difícil é escolher as novas opções. Não se pode
mudar de caminho (path).
3. A não-ergodicidade [non-ergodicité]: esta noção
implica que os acidentes de percurso, que aparecem ao longo de
um processo, não podem ser ignorados. Tornam-se ao contrário

131
marcas, que modificam de maneira variável a dinâmica engajada.
Por isso mesmo esta não pode reencontrar uma situação já
conhecida. Ela segue uma evolução e não um ciclo.
4. A ineficiência potencial do caminho tomado: uma vez
iniciado um processo, nada garante que um optimum, ou ao
menos uma solução eficaz, serão encontrados. A alternativa
escolhida não é, sistematicamente, aquela que teria introduzido
os melhores resultados.
No domínio econômico, uma tal teorização pôde explicar
a desigualdade persistente do desenvolvimento econômico
segundo as zonas geográficas pelo efeito da vantagem
comparativa da qual ainda se beneficiam os países que se
lançaram de maneira precoce na revolução industrial. Outro
exemplo: os trabalhos feitos nos Estados Unidos por economistas
como Sabel, buscaram mostrar que o enraizamento do fordismo,
modo de organização da economia que se tornou
progressivamente dominante no campo da produção de massa, da
especialização das tarefas..., devia-se mais à estrutura de
distribuição do capital nos Estados Unidos e na Inglaterra, do que
a seu suposto caráter de avanço técnico (Piore, Sabel, 1984).
Todo “caminho” tomado tende, por conseqüência, a se cristalizar
e a tornar-se cada vez mais coercitivo na medida de seu
desenvolvimento.
Segundo Pierson, algumas condições parecem favoráveis
à eclosão de um processo cumulativo deste tipo. Existem, antes
de tudo, processos de rotinização, pelos quais os atores se
habituam a trabalhar num quadro preciso, fixando-se em modos
de fazer ou de pensar. A evolução progressiva das práticas num
eixo determinado constitui por isso mesmo uma repressão brutal
a todo questionamento, mas também um meio de melhorar o que
é imperfeitamente dominado na origem. Aliás, os efeitos de
coordenação, igualmente qualificados pelo vocábulo
“externalidades de rede”, tocam os atores que gravitam em torno
do Estado, grupos de interesse, partidos políticos, sindicatos,
mídia..., e que estão intimamente ligados às dinâmicas
estabelecidas. Enfim, acrescentam-se a esses dois fatores
antecipações adaptativas junto aos atores periféricos. Em torno
de um processo dado, ninguém quer ficar marginalizado, mas

132
orienta-se, ao contrário, em direção ao caminho que parece o
mais produtivo ou o mais seguido.
Consciente de que a integração de uma conceptualização
procedente da economia põe problemas de operacionalização em
ciência política, Pierson mostra também que as características
próprias ao político reforçam a pertinência de tais modos de
análise (Pierson, 1997, p. 23 e s.). Diversos fatores justificam,
com efeito, segundo ele, que os processos de path dependence
sejam ainda mais aplicáveis aos objetos políticos que às
dinâmicas econômicas.
1. O campo político caracteriza-se, antes de tudo, por
uma extrema densidade institucional, que decorre de uma
multiplicidade de regras de procedimento, de legislações
complexas nos diferentes campos sociais, constituindo além do
mais os dispositivos de ação pública constrangimentos à ação e
aos comportamentos dos atores.
2. Retomando uma das primícias do incrementalismo
postas por Lindblom, Pierson insiste sobre a natureza
eminentemente coletiva do campo político. A título de exemplo,
a maior parte dos bens públicos produzidos pelo Estado são de
essência coletiva, não se prestando portanto a uma “consumação”
individual. Por isso mesmo, no espaço político, mais ainda que
alhures, “os atores devem sempre adaptar seu comportamento,
antecipando a maneira como se prevê que os atores irão
comportar-se (Pierson, 1997, p. 27). Esta característica torna
então todo processo político dependente de regateios,
ajustamentos recíprocos e outros compromissos.
3. Enfim, Pierson insiste sobre a complexidade e a
opacidade inerentes ao político. Reencontrando ainda uma vez
algumas das expectativas do incrementalismo e da racionalidade
limitada, mas numa perspectiva ao mesmo tempo ampliada e
centrada numa definição bastante estrita das instituições, ele
mostra, com efeito, até que ponto a fraqueza da informação útil, a
dificuldade de definir objetivos unívocos, ou ainda, o horizonte
de curto prazo, com freqüência indexado sobre os ritmos
eleitorais, são fatores de coação. Para o que concerne, por
exemplo, aos objetivos da ação pública, o intricado dos
interesses, a pluralidade dos princípios e dos valores assumidos

133
pelos atores constituem obstáculos a toda verdadeira
racionalidade.
Levando em conta essas diferentes características,
Pierson mostra em definitivo que a sedimentação progressiva das
políticas públicas exercidas por um aparelho burocrático cada
vez mais ampliado e heterogêneo, constitui o modo de evolução
mais provável da ação pública, introduzindo por isso mesmo
obstáculos a toda forma de mudança de envergadura. Inseridos
num espaço de ação complexo, os atores estão intimamente
ligados aos processos estabelecidos, que servem seus interesses
e/ou satisfazem algumas de suas expectativas e/ou enquadram e
justificam seus comportamentos num espaço restrito, operando
assim esses processos também como redutores de incerteza. Mais
que ser definitivamente descartada, a hipótese de mudança da
ação pública deve, então, ser pensada em relação a este feixe
intrincado de elementos, tomando a evolução da ação pública
com mais freqüência uma forma diretamente indexada ao peso
das diferentes variáveis sedimentadas e institucionalizadas pelo
viés destes processos de path dependence.
Uma tal teorização pôde ser aplicada por Pierson ao
estudo das reformas dos Estados-providência na Inglaterra e nos
Estados Unidos (Pierson, 1994). Estudando o efeito potencial
devastador dos programas conservadores ultra-liberais sobre os
quais Thatcher e Reagan se elegeram em 1979 e 1980, Pierson
mostra que as reformas efetivamente assumidas tiveram, em
definitivo, repercussões muito menos importantes que o previsto.
Longe de chegar a um desmantelamento dos Estados-providência
nos dois países, os programas adotados pelos governos
conservadores tiveram que se confrontar com um conjunto
bastante complexo de coações e de prismas, que os despojaram
em grande parte de seu impacto deletéreo. No exemplo dos
Estados Unidos, Pierson sublinha assim a conjunção de
elementos institucionais no sentido amplo, que serviram de
contrapeso às orientações proclamadas: as relações conflituais
entre o Congresso e o Presidente, o papel das administrações
envolvidas ou ainda as pressões exercidas pelos estrangeiros
envolvidos (sindicatos, associações de aposentados).

134
De modo conexo, Pierson sublinha igualmente, no
interior dos processos de path dependence, o papel essencial
desempenhado pelas “cartas mentais” dos atores, inspirando-se
nos trabalhos de Douglas North (North, 1990), eles mesmos
ligados a certas pesquisas clássicas da psicologia cognitiva ou da
antropologia (Andler, 1992; Geertz, 1964). Para além dos
dispositivos apenas institucionais, os processos cumulativos
descritos antes determinam, com efeito, estruturas cognitivas
específicas, que ajudam na compreensão do real e facilitam assim
toda forma de ação. Na medida em que participam de
mecanismos de construção social da realidade, as matrizes
cognitivas e normativas dominantes num momento dado num
sub-sistema de ação pública mantêm então uma certa
estabilidade, ao menos no seu período “normal” (cf. infra).
Definindo as fronteiras legítimas da ação pública, valorizando
certos atores político-administrativos e certas categorias de
estrangeiros envolvidos, os referenciais e outros paradigmas
funcionam como redutores de incerteza e determinam certos
eixos de evolução para as políticas públicas.
Um tal esquema de análise permite, do mesmo modo,
descrever e analisar os vínculos existentes entre essas ancoragens
institucionais cumuladas e o enraizamento de trocas particulares
entre o Estado e os estrangeiros envolvidos. Patrick Hassenteufel
pôde especialmente mostrar a esse respeito em que medida a
maneira como se constitui “o Estado em interação”
(Hassenteufel, 1995) é suscetível de influir na evolução da ação
pública. Analisando conjuntamente os programas empreendidos
por diferentes governos para remediar os déficits constantes dos
dispositivos de proteção social, ele pôde chegar assim a
demonstrar quanto as diferenças existente entre a França, a
Alemanha e a Inglaterra são indexadas à natureza de trocas
pouco a pouco formalizadas entre os médicos e os atores
político-administrativos em cada um destes países (Hassenteufel,
1997).
Nesta perspectiva geral, traçada pela noção de path
dependence, poder-se-á igualmente compreender como um
elemento novo, que perturbe o funcionamento tradicional das
administrações e mesmo do sistema de ação existente entre

135
atores públicos e privados, pode conduzir a uma verdadeira
cegueira da ação pública. Fortemente dependentes dos hábitos
enraizados, das estruturas e princípios pouco a pouco
cristalizados e das relações de força institucionalizadas, os atores
de um subsistema dado da ação pública poderão, com efeito,
verem-se confrontados, às vezes, com fenômenos que eles não
“compreendem” e/ou não sabem tratar. Visceralmente fixados
aos princípios e aos instrumentos deduzidos do keynesianismo na
conduta das políticas macro-econômicas, certos governos
produziram por exemplo “respostas” errôneas à crise econômica
dos anos 1970 (Hall, in Steinmo, Thelen, Longstreth, 1992).

136
CONJUNTURAS CRÍTICAS E
MUDANÇAS DE PARADIGMAS

Entretanto, a evolução de uma política não se faz


unicamente de maneira linear. Contrariamente ao que a noção de
path dependence pode deixar supor na sua concepção restritiva, a
ação pública não segue com efeito um continuum cumulativo
mecânico, mas parece, ao contrário, marcada por uma alternância
de fases relativamente estáveis e de períodos de mudanças mais
conseqüentes. Inspirando-se em teorias formuladas na biologia,
Stephen Drasner propunha, assim, empregar a noção de
punctuated equilibrium (Krasner, 1984), que se poderia traduzir
pela expressão “equilíbrio pontual” ou “equilíbrio pontuado”,
para descrever esta sucessão aleatória de seqüências estáveis e de
“conjunturas críticas” (Collier, Collier, 1991; Dobry, 1992).
Um certo número de conceptualizações se fixam, então,
na análise dos processos de mudança não incrementados. É,
especialmente, o caso do esquema desenvolvido por Peter Hall,
que se inspira nos trabalhos de epistemologia histórica de Kuhn,
que coloca a ênfase sobre duas noções conexas, as crises da ação
pública (ou crises de políticas) e as mudanças de paradigmas, e
permite descrever e compreender essa sucessão de fases de
rupturas e de equilíbrios efêmeros.

Mudanças de paradigmas e
mudanças de políticas

Poder-se-á considerar que há crise de políticas (Muller,


Surel, 1996), quando as matrizes cognitivas e normativas
legítimas e/ou a configuração institucional e/ou o equilíbrio das
relações de forças até aí experimentadas são postas em questão
pela acumulação de anomalias no subsistema de política pública
considerado. Por “anomalia”, retomando nisso a noção
desenvolvida por Kuhn, entender-se-ão os problemas surgidos no

137
subsistema, que não chegam a ser interpretados e “tratados” pelas
configurações cognitivas e normativas e pelo sistema de ação
estabelecidos.
As anomalias podem ser de diversos tipos. Assim, a
evolução do desemprego suscitou, por exemplo, a irrupção de
uma categoria de pessoas que é difícil de integrar no interior dos
dispositivos existentes. O aumento do desemprego de longa
duração “criou” especialmente os desempregados em fim de
direitos, de reinserção cada vez mais difícil no mercado do
trabalho. A evolução sócio-econômica tornou então inoperantes
os dispositivos clássicos de identificação e de tratamento das
pessoas atingidas por uma não atividade durável.
Qualquer que seja a forma ou a origem, uma “anomalia”
se apresenta, entretanto, sempre como um fenômeno ou uma
série de fenômenos percebidos como sendo problemáticos pelos
atores envolvidos, públicos e/ou privados, no interior de um
subsistema particular. Ela necessita por conseqüência de
ajustamentos mais ou menos substanciais da matriz cognitiva e
normativa legítima que determina os quadros e as modalidades
da ação pública, assim como dos equilíbrios institucionais e da
natureza das trocas sociais.
Inspirando-se nos trabalhos de Peter Hall, Howlett e
Ramesh estimam que as mudanças de paradigmas seguem,
freqüentemente, a seqüência seguinte:

Etapas Características do processo

138
1. Período Fase de estabilidade da matriz institucionalizada,
“normal” em que os ajustamentos tem um caráter
incremental (mudanças de primeira e de segunda
ordem), geralmente por iniciativa de grupos
restritos de peritos e de funcionários.
2. Acumulação As evoluções isoláveis no “mundo real” não
das “anomalias” chegam a ser antecipadas nem mesmo explicadas
pela matriz cognitiva e normativa dominante e
legítima. Esta seqüência marca os inícios da crise
de paradigma ou a crise de políticas.
3. Experimentações Tentativas foram feitas para melhorar o
paradigma em vigor, a fim de levar em conta as
“anomalias” encontradas.
4. Fragmentação A configuração dos atores, ligada ao paradigma
da autoridade até aí legítimo, encontra-se desacreditada e
enfraquecida no interior do subsistema afetado.
5. Contestação Produzidas e/ou encorajadas pela crise do
paradigma anterior, matrizes cognitivas e
normativas concorrentes, assumidas por
configurações de atores distintas, alimentam o
debate público.
6. Depois de um período mais ou menos longo,
Institucionalização com maior freqüência caracterizado por uma
do novo paradigma cristalização progressiva do novo paradigma
seguindo um processo de path dependence, a
coalizão de atores tornada dominante assegura
progressivamente seu poder, o que se traduz por
uma modificação substancial da ação pública
(mudança de terceira ordem).
Fontes: inspirado de Howlett, Ramesh, 1995, p. 191. Cf.
igualmente Kuhn, 1983; Hall, 1993; Mercier in CRESH, 1993;
Surel, in Faure, Pollet, Warin, 1995.

Esta sucessão de fases permite construir analiticamente


as dinâmicas isoladas por Krasner e dar um conteúdo à noção de
“mudança”. Esta pôde ser utilizada nos diversos casos precisos,
em particular para o exame das transformações da ação pública,
produzidas nos anos 1980, com a adoção de princípios
monetaristas. Analisando, por diversas vezes, a evolução das

139
políticas macro-econômicas durante este período, Peter Hall
mostrou assim que os princípios e os valores que determinam
tanto o campo como as modalidades de ação do Estado em
matéria econômica se viram profundamente modificados com a
irrupção do novo paradigma (Hall, 1989, 1993). Quando os
preceitos de inspiração keynesiana (intervencionismo econômico,
políticas anticíclicas por pilotagem orçamentária, sustentação da
demanda, proteção social) haviam determinado em grande parte
as lógicas de ação do Estado desde 1945, a crise econômica
resultante dos dois choques do petróleo produziu um certo
número “de anomalias” que precipitaram a “crise” do paradigma
keynesiano.
Examinando, por exemplo, as primeiras respostas
adotadas na Inglaterra para remediar as conseqüências do
primeiro choque do petróleo, Hall mostra em particular que a
vinculação visceral dos principais atores político-administrativos
às representações e aos preceitos assumidos pelo keynesianismo,
esteve na origem de “respostas” mecânicas que terminaram por
fracassar. A acumulação das “anomalias” acelerou por isso
mesmo a dupla cristalização de um paradigma concorrente e de
uma configuração de atores, que devia, pouco a pouco, consagrar
a opção monetarista. Com a chegada dos governos conservadores
britânico e americano, no começo dos anos 1980, formaram-se,
com efeito, outras visões da economia, marcadas pela
consagração das lógicas de mercado, que provocaram, pouco a
pouco, a redefinição das fronteiras legítimas da ação estatal, a
valorização de um certo número de atores sociais (yuppies,
empreendedores) e o uso obrigatório de outros instrumentos de
intervenção (manipulação das taxas de juros para controlar a
massa monetária e a inflação, desregulamentação dos mercados,
encorajamento à liberação das trocas internacionais...).
Tornado dominante, o paradigma monetarista ou
referencial de mercado levaria então a modificar, aos poucos a
maior parte dos subsistemas da ação pública, “somatórios” de um
certo modo de se posicionar em relação a estas novas normas de
ação consagradas pela ação governamental. Assim, para o que
concerne às políticas do livro na França, pode-se constatar a
formalização progressiva de uma matriz cognitiva e normativa

140
adaptada a esse campo de políticas precisas, que decorria em
parte do crescimento das lógicas de mercado no setor da edição.
Preocupados em assegurar ao livro um estatuto social particular,
um certo número de autores se mobilizaram em torno de uma
crença específica, “o livro não é um produto como os outros”,
que seguia as normas de mercado de uma maneira adaptada às
estruturas, às representações tradicionais dos autores do livro.
Mesmo reconhecendo o caráter comercial e “industrial” de sua
atividade (“o livro é um produto...”), esses autores e essa matriz
operacionalizaram o paradigma global sob a forma de uma
exceção do livro (“... não como os outros”), consagrada em 1981
pela adoção da lei Lang sobre o preço único do livro (Surel,
1997a, 1997b). A apresentação pelos países europeus, quando
das negociações do GATT, da “exceção cultural”, constitui um
outro exemplo desta adaptação de um subsistema particular às
transformações dos princípios e valores globais.
Às vezes criticada pelo seu caráter a priori determinista,
a noção de paradigma coloca, portanto, em evidência o caráter
conflitivo e aleatório da gestação e da evolução das matrizes
cognitivas e normativas. Longe de ser hegemônica, uma matriz
cognitiva e normativa evolui, com efeito, o mais freqüentemente,
num subsistema de ação marcado por uma forma de pluralismo
das coalizões dos atores e dos esquemas cognitivos e normativos.
Já presente junto a Kuhn, esta perspectiva foi retomada numa
grande medida por Paul Sabatier no seu modelo de advocacy
coalition (Sabatier, Jenkins-Smith, 1993; Sabatier, 1997;
Bergeron, Surel, Valluy, 1998). Postulando que as coalizões dos
atores pertencentes a um subsistema dado estão fundadas
precisamente sobre a partilha pelos atores de sistemas de crenças,
Sabatier mostra que cada espaço de ação pública é atravessado
pela competição de diferentes coalizões de causa ligadas a
diferentes sistemas de crenças. A título de exemplo, a ação
pública em matéria de ambiente parece ter-se recentemente
caracterizado pela confrontação entre uma coalização
“econômica” e uma coalização “ambiental”, portadoras de
valores diferentes e de princípios de ação estatal concorrentes.
Certas questões, mesmo assim, permanecem sem
resposta, pelo menos no imediato, essencialmente para o que

141
concerne à gênese, à forma e aos vetores do paradigma
dominante. A matriz cognitiva e normativa que determina a ação
pública num instante preciso é, assim, um compromisso
encontrado entre matrizes concorrentes ou torna-se dominante
uma dentre elas, e com ela, a coalização de atores que a assume e
a defende? Como são produzidos e veiculados esses esquemas
cognitivos e normativos que fazem sistema e determinam sejam
as representações, sejam as ações dos atores de um subsistema
dado? Que ligações pode-se estabelecer entre idéias, interesses e
instituições na produção e na mudança da ação pública?
Um certo número de trabalhos recentes tentaram
melhorar ou modificar as abordagens cognitivas e normativas,
mostrando, por exemplo, o peso das interações próprias num
subsistema dado. Na sua análise das políticas fiscais em nível
europeu, Claudio Radaelli sustenta, assim, que a modificação da
estrutura dos esquemas cognitivos e normativos se opera o mais
freqüentemente na própria operação em que eles são mobilizados
e/ou definidos e/ou instrumentalizados pelos atores (Radaelli,
1998). Longe de serem elementos exteriores às trocas
conflitantes entre atores envolvidos, as matrizes cognitivas e
normativas são, ao contrário, marcadas por usos e declinações
extremamente variáveis de um subsistema a outro e de um
momento a outro. Intuição confirmada pelos trabalhos de Jobert,
ou de Baumgartner e Jones (Jobert, 1994; Baumgartner, Jones,
1993), que insistem sobre as arenas, fóruns e “pontos de
encontro”, dito de outro modo os “lugares” de mobilização das
matrizes cognitivas e normativas.
De maneira conexa a esta reinserção dos usos sociais,
intimamente ligados aos mecanismos de construção social da
realidade, certas hipóteses complementares são concebíveis no
conteúdo e na formalização das matrizes cognitivas e normativas.
Longe de fazer tábua rasa do passado, um paradigma ou um
referencial recompõe, assim, às vezes, elementos antigos de um
outro modo, buscando no repertório particular a um subsistema
preciso. Aliás, um paradigma ou um referencial não se instaura
de maneira súbita e unívoca. Mais do que reformar
imediatamente o subsistema e os esquemas normativos e
cognitivos legítimos, ele baliza com efeito os conflitos e as ações

142
públicas vindouras. De um certo modo, e reencontra-se aqui a
conceptualização proposta por Pierson, o enraizamento
progressivo do paradigma constitui, então, um processo de path
dependence, não fazendo o paradigma mais do que fornecer as
indicações iniciais na orientação e as fronteiras do caminho
tomado pela ação pública. Esse movimento de path dependence
modifica, por sua vez, a substância mesma da matriz cognitiva e
normativa, na medida em que esta se encontra confrontada com
os prismas institucionais próprios a cada subsistema considerado
e às mobilizações conflitantes dos atores pertinentes.
Uma tal inversão da acepção original da noção de path
dependence permite especialmente chegar a uma
problematização diferente dos mecanismos de implementação da
ação pública. É claro depois de muito tempo que a
implementação é uma fase problemática, na medida em que ela
constitui a busca da decisão e das ações coletivas com outros
meios, até de outros atores (Padioleau, 1982). Mas, se é
apreendida em relação às dinâmicas de uma mudança de
paradigma, poder-se-á formular a hipótese suplementar que se
trata de uma fase privilegiada, relativamente isolável de um
ponto de vista analítico, de cristalização progressiva da matriz
cognitiva e normativa, tornada formalmente legítima, quando da
decisão. Para que esse paradigma se torne realmente dominante,
é preciso com efeito que ele não seja somente a justificação
explícita ou prática da decisão, mas que ele determine
efetivamente no fim das contas a ação pública e os
comportamentos dos atores envolvidos nas suas dimensões mais
concretas.

As variáveis políticas e a abertura de


“janelas” de oportunidade

Esses processos de mudança não-incrementais parecem,


todavia, dependentes de condições particulares que determinam
um funcionamento “extraordinário” do campo político (Keeler,
1993). A noção mais útil desse ponto de vista, para se pensar

143
essas fases de “suspensão” das condições ordinárias da ação do
Estado, continua a ser, sem dúvida, a conceptualização proposta
por John Kingdon (apresentada no capítulo 3), que descreve a
abertura aleatória de “janelas políticas” (Kingdon, 1984). O
interesse principal do modelo de Kingdon reside com efeito na
apresentação das fases de junção das dinâmicas próprias a cada
uma das correntes que, criando uma “janela política”, suspendem
o funcionamento ordinário das instituições e dos atores políticos
e tornam possíveis mudanças de políticas públicas específicas.
Esta noção levanta, assim, as condições favoráveis à abertura de
um período mais ou menos longo em que as capacidades de ação
dos atores político-administrativos e dos estrangeiros envolvidos
se encontram temporariamente ampliados, permitindo
refundições mais ou menos substanciais das políticas públicas.
Prolongando o esquema de análise de Kingdon, Keeler
pôde em seguida tentar identificar mais precisamente os critérios
favoráveis à abertura de uma janela política (Keeler, 1993).
Segundo ele, duas séries de variáveis parecem essenciais, a saber,
o tamanho do mandato conferido ao governo e/ou uma crise,
definida como um descontentamento da opinião pública, um
sentimento de medo, de importantes perturbações sociais ou das
ameaças à seguridade da nação. Essas duas categorias de fatores
alimentam dois tipos de mecanismo distintos, suscetíveis de
deixar uma certa margem de manobra ao governo:
1. Os mecanismos de mandato (madate mechanisms),
que repousam sobre a conjunção de dinâmicas político-
institucionais favoráveis aos (novos) titulares dos postos de
poder, e que se dividem em diversos processos desigualmente
presentes em cada caso concreto: um mecanismo de autorização
(o governo dispõe de uma legitimidade mais ou menos durável
que “o autoriza” a agir), um mecanismo de tomada de poder dos
postos institucionais, geralmente pelo viés de um sucesso
eleitoral, e enfim, um mecanismo de pressão partidária, pelo qual
o partido majoritário tende a exercer uma pressão sobre os atores
do executivo saído de suas próprias fileiras para realizar o
programa previsto.
2. Mecanismos de crise (crises mechanisms), que
favorecem iniciativas reformistas importantes. Uma

144
desvalorização importante dos governantes no poder,
considerados como sendo incapazes de resolver a crise, até tidos
como diretamente responsáveis, conduz, por exemplo, a
transferir as expectativas do eleitorado em direção à oposição
e/ou a novas idéias. Keeler nota, em seguida, que a crise alimenta
um mecanismo de urgência, que incita os atores a responder o
mais rapidamente possível aos problemas percebidos. Enfim, um
mecanismo de medo pode do mesmo modo operar,
independentemente ou em ligação com os atores dinâmicos,
sendo, em geral, este “medo” ressentido o fruto de mobilizações,
às vezes violentas, engendradas pela crise.
Esta análise permite então, efetivamente, reintroduzir
variáveis políticas, no sentido de politics, na análise das políticas
públicas. Longe de ser um espaço separado, em que as dinâmicas
de produção e de reprodução da ação pública seguiam eixos de
desenvolvimento puramente endógenos e mecânicos, o Estado se
encontra com efeito, por esse viés, reinvestido de uma dimensão
política que tinha às vezes desaparecido. Longe de defender o
ressurgimento de qualquer voluntarismo, tais análises têm por
isso mesmo como interesse principal mostrar que os processos
propriamente políticos podem determinar variações substanciais
da ação pública.
Esta grade de análise permite ilustrar as dinâmicas em
ação, quando da alternância política de 1981, que tinha
conduzido à adoção de um número “extraordinariamente”
elevado de reformas. Keeler mostra que se tratava, no caso, do
mandato mais elevado confiado a um governo sob a Vª
República. Dispondo de alavancas institucionais, os novos
governantes ascederam ainda ao poder num contexto de crise
econômica vivamente percebido pela opinião pública e que tinha
contribuído, em grande parte, para o descrédito do governo
precedente. Enfim, o governo socialista dispunha de um
programa reformista muito amplo, fruto de mais ou menos 30
anos de oposição e da recomposição progressiva da esquerda.
Todos os elementos estavam desde então conjugados para que se
produzissem mudanças políticas, que testemunham em certos
setores verdadeiras mudanças de paradigma (pena de morte,
nacionalização, descentralização...), até que a “janela” não se

145
feche, pouco a pouco, sob o efeito conjugado do aprofundamento
da crise, do fracasso das primeiras medidas de desenvolvimento
adotadas em 1981 e das transformações próprias do governo
socialista.
A pluralidade das abordagens que existe no interior da
análise das políticas públicas para o estudo dos modos de
mudança da ação do Estado, convida assim, em definitivo, a
defender um uso o mais freqüentemente conjugado dessas
dinâmicas descritas pelas noções de incrementalismo, de
aprendizagem ou de mudanças de paradigma. A ação do Estado
não segue, com efeito, uma evolução linear, tanto mais que ela
não se caracteriza por “reparações” periódicas. Ela segue, ao
contrário, ritmos variáveis, resultantes de uma sucessão aleatória
de fases “normais”, marcadas por uma estabilidade relativa, e de
momentos de ruptura mais ou menos substanciais e mais ou
menos duráveis. Pensar a mudança da ação pública requer ainda
que se considere uma variedade extrema de elementos
desigualmente pertinentes em cada caso concreto. A criação de
uma nova instituição político-administativa e/ou a modificação
de uma legislação e/ou a transformação das destinações
orçamentárias próprias a um subsistema dado da ação pública,
necessitam considerar ao mesmo tempo a evolução e a
configuração das interações entre atores públicos e privados, a
influência dos fatores institucionais (no sentido mais tradicional),
os modos de mobilização dos estrangeiros envolvidos, o impacto
de matrizes cognitivas e normativas concorrentes, ou ainda o
peso de dinâmicas propriamente políticas. Pensar a mudança
significa pois, no fundo, estudar a ação do Estado de uma
maneira diferente em relação às abordagens tradicionais da
análise das políticas públicas.

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