Você está na página 1de 384

CARTAS A LUCÍLIO

Lúcio Aneu Séneca

Tradução, Prefácio e Notas de


J. A. SEGURADO E CAMPOS

2.ª edição

. PUCRS/BCE

11111111111111111 11111
0.784.409-6
SERVIÇO DE EDUCAÇÃO EBOLSAS
·FUNDAÇÃO CALOUSTE GULBENKIAN
PRESERVE SUA FONTE
DE CONHECIMENTO

0 @)
Tradução
do original latino intitulado
L. ANNAEI SENECAE AD LUCILIUM EPISTULAE MORALES
segundo o texto da Oxford University Press, 1965
INTRODUÇÃO
-·1
u~ A '~-
·'.i j n i\
Qôlô){~Co;,.--·]..---·\·
As Cartas a Lucílio - Epistulae morales ad Lucilium
são geralmente consideradas a obra mais importante
:,.~ ..
de quantas subsistem da autoria de Lúcio Aneu Séneca.
Tal importância deriva de circunstâncias várias: o facto
de se situarem cronologicamente entre as produções da
última fase da vida do autor e reflectirem, portanto, a
forma mais amadurecida do seu pensamento; o facto de
essa fase da vida de Séneca (que iria culminar no suicídio)
se ter revestido de formas especialmente dramáticas que
encontram eco, mais ou menos explícito, no texto; o facto
de, pela sua pr6pria amplitude, ,. conterem uma soma de
reflexões sobre enorme variedade de problemas, na sua
totalidade de carácter ético; o facto de tais reflexões, con-
quanto assentes num quadro te6rico perfeitamente delimi-
tado e coerente, se revestirem de um carácter extremamente
prático, isto é, de constituirem uma análise de situações
concretas e de apreciações de grande agudeza sobre a natu-
reza e o comportamento humanos; o facto de o quadro
Reservados todos os direitos de acordo com a lei epistolar escolhido pelo autor para a sua exposição (quer
se pense, como estamos em crer, que as Cartas represen-
Edição da tam uma correspondência efectiva mantida por Séneca
FUNDAÇÃO CALOUSTE GULBENKIAN
Av. de Berna - Lisboa
com o seu destinatário, quer, como alguns entendem, que
2004 apenas resultam de uma mera ficção literária) se prestar

V
à inclusão de numerosos elementos informativos sobre a célebre cidade arrasada pela erupção do Vesúvio no ano
múltiplos aspectos da vida e da civilização romanas; o 79 da nossa era. Em dois passos das Epistulae Séneca
facto, enfim, de a natureza dos problemas que suscitam .e refere a sua passagem pela cidade, e em ambos os casos
discutem se revestir de uma pertinência transcendente à escreve: a tua querida cidade de Pompeias. O argumento
época em que foram redigidas e oferecer uma viva fonte não é imperioso, mas é altamente plausível que o filósofo use
de meditação para quem pretenda questionar-se sobre os tal expressão por Pompeias ser a terra natal de Lucílio, ou,
valores da sociedade em que se insere. pelo menos, por este lhe estar associado por algum motivo
Foi, aliás, este último aspecto aquele que acima de muito particu/,ar.
tudo nos determinou a empreender a tradução das Car- Não é conhecida a data do seu nascimento, que, no
tas: a persuasão de que a leitura de Séneca pode ser nos entanto, não havia de andar muito longe da de Séneca.
dias de hoje de uma utilidade prática evidente como pre- Em 26,7 Séneca dirige-se ao amigo dizendo-lhe: tu és
cioso auxiliar no entendimento da natureza humana e mais novo do que eu, mas em 35,2 diz que as idades de
na determinação dos valores da existência. Por esta razão ambos não distavam muito uma da outra.
a Introdução que vai seguir-se não constitui de forma Socialmente Lucílio pertencia à chsse dos cavaleiros
alguma um estudo da filosofia estóica em geral, nem do (equites), não por nascimento, mas certamente porque as
pensamento de Séneca em particular: existem publicadas suas actividades, o zelo posto nas missões confiadas, as ami-
excelentes obras num e noutro âmbito para as quais, na zades de algum aristocrata (o próprio Séneca?) levaram o
bibliografia, remeteremos o leitor interessado. Trata-se imperador a distingui-lo com a sua promoção a eques.
tão só de uma chamada de atenção para alguns pontos Pelo menos é o que pode deduzir-se de um passo em que
que nos parece de importância conhecer previamente Séneca diz que foi a indústria de Lucílio que lhe conseguiu
antes de iniciar a leitura das Cartas. Por isso mesmo evitá- a nomeação para a classe equestre.
mos aqui todo o aparato erudito: informações biográficas, O certo é que Lucílio, graças ao seu talento e diligên-
apoio bibliográfico, referências textuais, considerações filo- cia, conseguiu tornar-se uma personagem de certo desta-
sóficas. Toda essa matéria surgirá, quando tal for perti- que na sociedade romana, para o que de alguma forma
nente, nas notas que acompanham a tradução. A nossa teria contribuído a sua actividade literária, como adiante
Introdução, em suma, para mantermos o quadro sene- veremos. As esperanças de Lucílio poder continuar a fazer
quiano do texto, será apenas uma "Carta ao Leitor das carreira não seriam exíguas, como certamente não o seriam
Cartas a Lucílio".' as probabilidades de o conseguir. Tanto assim é que, quando
O destinatário das Epistulae deve a sua imortalidade Séneca, num momento decisivo da sua vida - quando o
à amizade que o uniu a Séneca, a quem se deve prati- filósofo se entrega ao otium, à contemplação filosófica, à
camente tudo o que sabemos sobre ele. produção literária - o aconselha energicamente a não se
Aparentemente, Lucílio, de seu nome completo Gaio deixar enredar nas malhas dos compromissos sociais e
Lucílio Júnior, era natural de Pompeias, na Campânia, políticos e, pelo contrário, o exorta a seguir o seu exemplo

VI VII
e a dedicar-se a tempo inteiro à filosofia, Lucílio opõe potencialidades latentes. Esse guia era mesmo tanto mais
resistência, uma resistência tenaz que Séneca combate com necessário quanto Lucílio, ao que parece, iniciara a prepa-
não menor tenacidade numa luta que, aliás, acabaria por ração filosófica pela via do epicurismo. Ora é bem conhe-
vencer. cido como as duas correntes filosóficas - epicurismo e
No período em que se situa a correspondência entre estoicismo - são a perfeita antítese uma da outra,
Séneca e Lucílio encontrava-se este a desempenhar o cargo opondo-se como o positivo e o negativo de um mesmo
de procurator imperial na Sicília, cargo que podemos supor retrato. Todavia tal como se verifica no exemplo sugerido,
ter sido o culminar da carreira, uma vez que as últimas se muitas são as diferenças, muitas são igualmente as
cartas de Séneca dão a entender que Lucílio decidira semelhanças entre as duas posições: consequentemente
finalmente seguir os conselhos do seu mestre e amigo e Séneca, numa prática corrente entre os estóicos, utiliza nas
entrar também ele na vida do otium. Do resto da vida de suas primeiras cartas todo um arsenal de máximas e refle-
Lucílio nada mais se sabe; ignora-se igualmente a data da xões extraídos da obra de Epicuro, que, naturalmente, inter-
sua morte, embora seja plausível pensar que de alguma preta depois em sentido estóico, e assim, gradualmente,
forma ele possa ter sido envolvido na mesma desgraça em vai aproximando Lucílio das posições características da
que Séneca incorreu. Escola.
Para além destes pormenores de carácter biográfico, A par de notáveis qualidades morais, não era Lucílio
devemos também a Séneca um entusiástico elogio das vir- destituído de qualidades intelectuais apreciáveis. Ao inte-
tudes morais demonstradas por Lucílio numa fase histórica resse pela formação filosófica juntava ele a inclinação para
(os principados de Calígula e de Claúdio, as intrigas que a literatura, que praticava com méritos, parece, assinalá-
grassavam na corte deste último, sobretudo nos tempos de veis. A sua obra pereceu quase por inteiro, apenas dele
Messalina, etc.) altamente propícia a todas as formas de cor- restando como certo alguns vérsos isolados citados por
rupção e baixeza moral. Aliás, só assim se explica que Séneca em termos elogiosos. Para além destes fragmentos
Séneca tenha tomado a decisão de encarregar-se da direc- indubitáveis, há quem lhe tenha querido atribuir algumas
ção espiritual de Lucílio. Séneca era altamente exigente na obras subsistentes, no todo ou em parte, e cuja autoria
escolha dos seus discípulos, só aceitando encarregàr-se da permanece desconhecida. É o caso do conhecido poema
orientação moral de alguém em quem reconhecesse por Aetna. Sabemos por Séneca (79,5) que Lucílio escreveu (ou
indícios seguros uma vocação filosófica inata. Lucílio pos- estava escrevendo quando Séneca lhe dirigiu esta carta)
suia, a julgar pelo que nos diz Séneca, essa vocação, possuía um poema sobre o vulcão da Sicília, mas nada indica que
um carácter firme e corajoso, insensível à bajulação, não o poema de Lucílio e o Aetna conservado sejam um e o
se deixando impressionar pelos perigos da "polícia polí- mesmo texto. Aliás, no mesmo passo da carta 79 Séneca
tica" dos príncipes, em suma tinha uma tendência natural menciona o facto de o tema de Etna já ter tentado a
para a prática da uirtus, apenas carecendo de um guia musa de três escritores da envergadura de Vergílio, Ovídio
firme e capaz que desenvolvesse e trouxesse à superfície as e Cornélia Severo, e fá-lo para sublinhar o mérito de

VIII IX
Lucílio em ir tratar por sua vez um tema já desenvolvido As cartas a Lucílio não foram as únicas que Séneca
por aqueles poetas. De resto, Lucílio parece que pretende- escreveu e publicou. Diversas fontes, entre elas o próprio
ria estudar o Etna de um ponto de vista cientifico, na Séneca, dão -nos conta de muitas outras cartas dirigidas a
sequência de interesses por temas de ordem física bem outros destinatários. Todas elas se perderam. Em contra-
atestados pelo facto de Séneca lhe dedicar a sua obra partida conserva-se uma colecção de cartas pretensamente
"Questões Naturais" (Naturales Quaestiones). trocadas entre Séneca e S. Paulo, decerto devida ao facto
Também tem havido quem pretenda pôr no crédito de Séneca ser bastas vezes citado com apreço por diversos
de Lucílio, como escritor, outras obras: um fragmento épico Padres da Igreja, que no filósofo viam um justificado pre-
centrado sobre a batalha de Áctio, que modernamente se cursor das doutrinas cristãs.
costuma atribuir a um poeta amigo de Ovídio, Gaio Rabírio; Se é certo que as cartas datam da última fase da vida de
e não faltou quem quisesse ver nele o autor da pretexta Séneca, o conhecimento com Lucílio já vinha sem dúvida
Octailia. Naturalmente que estas tentativas de avolumar a de longe, e de longe vinha também a intenção de Séneca
obra conservada de Lucílio não têm qualquer fundamento converter o amigo à doutrina estóica. Podemos supor que
sólido. Por isso será mais prudente limitarmo-nos a acei- o ensino ministrado a Lucílio se processou durante algum
tar como produção seguramente luciliana apenas os ·versos tempo apenas por via oral. Mas Lucílio, na prossecução da
que dele cita Séneca, a pessoa decerto mais abalizada para sua carreira pública veio a ser destacado para a Sicília, e a
conhecer a totalidade da sua obra. partir desse momento a direcção espiritual só poderia con-
As Epistulae morales ad Lucilium não devem ser con- tinuar por meio da escrita. O afastamento físico dos dois
sideradas como uma obra exclusivamente filosófica, uma amigos foi assim a motivação imediata para a produção
das cartas.
correspondência fictícia dirigida a um destinatário fictício
Que as Epistulae são uma correspondência inequí-
apenas para fugir à técnica da exposição teórica, em suma,
voca e não uma mera forma literária pode ser compro-
um artifício meramente literário. É certo que a forma lite-
vado por uma inúmera série de pormenores, de que apenas
rária da epístola teórica (filosófica ou não) tinha preceden- daremos uma diminuta exemplificação. Abundam nelas
tes na literatura antiga, e quanto ao que fosse uma cor- notações concretas, tais como as frequentes fórmulas com
respondência real entre amigos e familiares, centrada sobre que Séneca acusa a recepção das cartas de Lucílio ou
a troca de informações pontuais podemos ter uma ideia se refere ao prazer que experimenta ao lê-las; não menos
pela leitura da carta VII de Platão ou pelos vários volu- vezes também alude à insistência de Lucílio em que a
mes da correspondência de Cícero. As cartas de Séneca troca de epístolas seja mais frequente; numa outra carta
situam-se, digamos, a meio caminho entre o primeiro e o Séneca limita-se a dizer que recebeu uma obra escrita por
segundo dos tipos de cartas referidos: são uma correspon- Lucílio e que reserva para outra oportunidade pronun-
dência real entre dois amigos em que, na quase totalidade ciar-se sobre os seus méritos; noutra, nega-se a escrever
dos casos, são desenvolvidos por Séneca diversos proble- cartas simplesmente circunstanciais, como fazem muitos
mas de índole filosófica. que se limitam cerimoniosamente a falar do tempo.

X XI
Destarte é perfeitamente natural que as cartas conte- objectivo: converter o amigo às teses estóicas, levá-lo gra-
nham referências a numerosos casos da vida pessoal de dualmente a dominar os princípios teóricos da Escola e a
dois amigos ou alusão a pormenores da vida quotidiana da ser capaz de os aplicar na vida prática, sobretudo a libertar-
·Roma coeva. Exemplos do primeiro ponto temo-los, por -se dos condicionalismos de ordem social e política, a adqui-
exemplo, nas cartas em que Séneca fala a Lucílio de rir a uirtus e a aproximar-se tanto quanto possível do
algum amigo comum com quem se encontrou, da morte ideal do sábio. Por outras palavras, as cartas a Lucílio são
de um outro amigo de Lucílio e que este deplora com textos de direcção espiritual, exercícios de meditação mais
mais intensidade do que convém a um estóico; repetida- do que exposições de ordem e finalidade meramente teó-
mente alude Séneca a passeios que realiza, a estadas que rica, o que, todavia, não significa que Séneca se exima,
faz em alguma das suas propriedades (numa delas encon- quando é caso disso, a discutir amplamente problemas de
trando um velho escravo, seu companheiro de brincadeiras índole teórica.
na infância, cujo aspecto decrépito o leva a pensar na Para cumprir uma tal finalidade a carta apresenta-se
própria velhice e na morte certamente próxima), a via- como um veículo ideal. Séneca nunca foi muito dado, pelo
gens por mar (por exemplo uma em que foi apanhado menos como escritor, à exposição de teorias desligadas da
por uma tempestade e teve de lançar-se à água e alcançar realidade; bem ao contrário, a teoria sempre lhe interessou
a terra a nado); numa carta descreve uma visita que fez à apenas na medida em que era susceptível de aplicação, em
an,tiga vila de Cipião Africano, cuja nobre austeridade des- que podia ser interiorizada e moldar de forma indelével a
creve com complacência; noutra aproveita o facto de Lucí- conduta do homem. Mesmo nos seus tratados puramente
lio se encontrar na Sicília para pedir ao amigo certas teóricos conhecidos por Dialogi a ligação da teoria à prá-
informações geográficas sobre a ilha, decerto destinadas à tica nunca é perdida de vista, e, forçando um pouco,
inclusão em algum trabalho de natureza científica; noutra quase podíamos dizer que os 'tratados são cartas mais
ainda menciona os seus problemas de saúde, aos quais só extensas e as cartas tratados mais reduzidos. A carta é o
dá atenção para satisfazer a vontade de sua mulher Pau- veículo por excelência, porquanto Séneca parte sempre para
lina. Os exemplos poderiam multiplicar-se. Quanto ao a sua exposição de um pormenor de natureza muito con-
segundo ponto pode ler-se a descrição da viagem que creta que utiliza como pretexto para o desenvolvimento
Séneca fez de Baias a Nápoles, a descrição condenatória de um argumento teórico. Um simples exemplo bastará
dos brutais espectáculos do circo, ou ainda a pitoresca nar- para elucidar este ponto. Séneca inicia a carta 91 relatando
ração da poluição sonora a que está sujeito um infeliz que a Lucílio o terrível incêndio que reduziu a escombros a
habite nas proximidades de um balneário público. antes próspera cidade de Lião. A catástrofe afligiu de modo
Muito embora sendo, como acabamos de verificar, uma violento um amigo comum, natural da cidade sinistrada, e
correspondência efectiva, as cartas a Lucílio têm, no entanto, deixou-o moralmente arrasado. Este acontecimento será
uma motivação profunda que transcende a mera transmis- suficiente para suscitar a reflexão que Séneca vai em seguida
são de notícias e troca de informações. Séneca tem um desenvolver: as catástrofes (incêndios, sismos, inundações)

XII XIII
inserem-se na ordem natural das coisas; guiando-se pela contradições, de momentâneas fraquezas, mas também de
razão o homem deve conformar-se com as leis da natu- sempre renovado e fortificado esforço na vida árdua da
reza, e não rebelar-se contra elas; as calamidades naturais sabedoria. O estoicismo não é uma filosofia para fracos:
não são em si mesmas males nem bens, pois o único mal quem disso não esteja convencido acompanhe a carreira
e o único bem são o mal e bem morais, e tudo o mais é de Lucílio e verificará por si que só à custa de muito
indiferente. E assim, servindo-se dum caso realmente esforço (mesmo físico!), de constante meditação e de um
ocorrido, Séneca ensina a Lucílio o que se deve pensar férreo exercício da vontade será possível a alguém apro-
sobre o mal e o bem, e, simultaneamente, indica-lhe o ximar-se da imagem do sapiens tal como Séneca, com
modo correcto de agir nas circunstâncias. Numa outra alguma rigidez resultante de um certo "retorno às ori-
carta, partindo de um evento ou de uma máxima dife- gens", o concebeu.
rente, Séneca não se coibirá de novamente desenvolver Tal como os seus restantes tratados, também as cartas
este tema, de resto um daqueles em que com maior fre- de Séneca a Lucílio, para além dos traços já apontados e
quência reflecte: todo o mal e todo bem são exclusiva- que fazem delas cartas autênticas, revelam com maior ou
mente de carácter moral. menor intensidade a influência da diatribe cínica em alguns
Vemos por conseguinte que o ensino de Séneca não aspectos da sua estrutura. Antes de mais na sua imediata
assume um carácter sistemático, os problemas são tratados e visível função moralizante: cada carta é uma exortação
ou porque um sucesso exterior os sugeriu, ou porque o
a a que o destinatário adapte como sua esta ou aquela
próprio Lucílio pediu expressamente a Séneca que tratasse
ideia, este ou aquele princípio, se comporte em determi-
este ou aquele ponto. Não possui igualmente índole dog-
nada situação concreta deste ou daquele modo. Não seria
mática, antes se agarra sempre à realidade, e, mais signi-
inexacto dizer, portanto, que cada carta (umas mais do
ficativamente, vai sempre acompanhando a evolução do
discípulo, fazendo o ponto da situação, insistindo nos tópi- que outras, naturalmente) se poderá considerar uma ver-
cos em que aquele revela maiores dificuldades, criticando-o dadeira suasoria e, como tal, se reveste dos aspectos for-
quafzdo fraqueja nas suas convicções ou se deixa momenta- mais que caractérizam o género.
neamente seduzir por falsas opiniões, louvando-o quando Entre os mais nítidos abunda o chamado interlocutor
dá provas seguras de progresso, sugerindo-lhe continua- fictício. O processo é bem conhecido, tanto das suasoriae
mente, nessas ocasiões, novos temas de meditação, acom- propriamente ditas, como ainda dos textos filosóficos (não
panhando sempre a teoria_ç_om_exemplos muito ~one<retos, só de Séneca) e também do discurso satírico (que aliás
sempre mantendo a tensão, nunca contemporizando com as também resulta em certa medida da influência d_iatríbica).
convenções, nunca admitindo entorses aos princípios. Um Consiste o processo em o autor imaginar que uma sua
dos motivos de interesse deste corpus epistolar consiste afirmação é objectada por alguém (precisamente um inter-
mesmo em que através dele podemos ir acompanhando a locutor fictício, uma pura criação sua), objecção essa que
progressão de Lucílio, feita de sobressaltos, de dúvidas e lhe dá oportunidade para retomar a sua ideia inicial, compro-

XIV XV
vá-la com novos argumentos ou ilustrá-la com nova e Cícero ou Catão (um dos exempla mais frequentemente
mais impressionante exemplificação. Daí a abundância com utilizados por Séneca), ou ainda Alexandre da Macedónia,
que nos textos de Séneca figuram fórmulas do tipo dicunt Aníbal, Júlio César e Augusto, para só referir as mais
("dizem alguns"), dicis ou dices ("dizes" ou "dirás tu"), familiares; também não faltam personagens da fábula, tais
fórmulas a que evidentemente Séneca faz seguir um volu- como Dédalo ou Ulisses; e ainda figuras anónimas, humil-
moso caudal de contra-argumentação. Nas Epistulae o pro- des no seu anonimato mas grandes na coragem, tais como
cesso torna-se um tanto incómodo, porquanto, sendo as o gladiador que preferiu o suicídio a servir de espectáculo à
cartas, por definição, uma conversa entre Séneca e o amigo, brutalidade do público circence. Muitos tipos humanos estão
fórmula como dizes tu que... deixa-nos muitas vezes igualmente representados por uma extensa galeria de figu-
na dúvida se a objecção teria sido realmente formulada ras cujo nome apenas nos é conhecido pelas cartas mas de
por útcílio na carta a que Séneca está dando resposta ou se, cuja historicidade não há motivos para duvidar, como o
como a segunda pessoa do singular é uma das possibilida- inesquecível Servílio Vátia.
des que o latim tem de exprimir o sujeito indeterminado, Frequentemente estas figuras são protagonistas de
a objecção deverá ser posta na conta de um interlocutor pequenas anedotas características, umas vezes como exem-
fictício, que é como quem diz, será uma objecção imagi- plos a imitar, outras como exemplos a condenar, sempre
nada pelo próprio autor para fazer progredir a demons- com um intuito inequivocamente moralizante. Em caso
tração do ponto em causa. Se às vezes é possível estarmos algum deixa Séneca de pronunciar o seu juízo de valor
seguros de que foi realmente Lucílio quem levantou o sobre a personagem aludida ou o acontecimento narrado,
problema a que Séneca vai dar resposta, outras (talvez a pelo que as citações, as anedotas, os exemplos históricos
maioria) devemos estar perante um mero interlocutor fic- ou literários nunca devem ser entendidos como manifesta-
tício. É pena que se verifique esta ambiguidade, pois se ções de erudição estéril ou éomo simples ornatos de
pudéssemos estar certos das questões levantadas por Lucí- composição.
lio estaríamos em melhor situação para ajuizar dos reais Refira-se enfim como influência diatríbica o emprego
avanços que o discípulo de Séneca ia efectivamente fazendo abundante de· máximas, próprias ou alheias, cunhadas para
ou das dificuldades que a iniciação no estoicismo lhe sus- o efeito ou extraídas da obra de filósofos (como Epicuro)
citava. ou de poetas (como Publílio Siro ou Vergílio), nas quais
Também releva da diatribe o uso contínuo de exem- Séneca sintetiza sob uma forma poeticamente marcante e,
plos (exempla) concretos para ilustrar cada afirmação ou portanto facilmente conservável na memória alguma grande
cada problema. As Epistulae estão cheias de personagens verdade de índole moral. São legião as máximas que seria
cuja atitude nesta ou naquela circunstância é proposta como possível retirar da obra do filósofo, em geral, e em parti-
exemplo a admirar e a seguir, ou, pelo contrário, a censu- cular das cartas a Lucílio; a Idade Média, época durante a
rar. Algumas dessas personagens são figuras históricas bem qual Séneca figurou entre os autores mais lidos e aprecia-
conhecidas de numerosas fontes, tais como Sócrates, Platão, dos, fê-lo sem rebuços, e chegaram até nós amplos reposi-

XVI XVII

~· ~ ( - ·.
tórios de tais máximas pacientemente recolhidas pelos mon- que a palavra "humanidades" tão bem exprime. Tal não
ges medievais. Diga-se, contudo, que a preocupação de significa que a retórica, no seu aspecto técnico, não pudesse
Séneca em cunhar sentenças formalmente peifeitas obe- estar ao serviço do artifício e da mentira, como o Cícero-
dece mais a um propósito de utilidade prática (um verso advogado o sabia melhor do que ninguém. Mas apesar de
bem composto e sintético memoriza-se mais facilmente do tudo Cícero não concebia que mesmo a filosofia pudesse
que uma longa e difusa exposição) do que a uma finali- ser transmitida eficazmente sem arte, o mesmo é dizer,
dade estética: a estética cumpria uma função exclusiva- sem retórica.
mente ancilar, nunca surgindo como um valor em si. Séneca nunca se pronunciou sobre a matéria de uma
Confirma esta ideia o facto de Séneca nunca ter dado forma sistemática, embora não faltem nos seus textos passos
demasiado relevo à retórica, o que em parte viria a motivar em que se refira mais ou menos detidamente a questões
o juízo fortemente negativo que sobre ele Jaz Quintiliano. de ordem retórica ou mesmo linguística. De certo modo a
Por obediência à tradição' (é sabido o peso que a obra de sua posição pode considerar-se intermédia entre o rigo-
Aristóteles teve sobre os pensadores posteriores), não dei- rismo da Stoa antiga e a predilecção romana pela arte da
xou o estoicismo antigo de dar, no seu plano de partição palavra. Não esqueçamos que o filósofo iniciou a sua car-
da filosofia, um lugar à retórica, um lugar subordinado, de reira como orador, e, mais, orador famoso . Muitos dos
resto, como parte do esquema organizativo da lógica. Todavia seus textos demonstram à saciedade que ele dominava a
nunca se preocuparam com ela enquanto arte específica do técnica, embora afectasse um altivo desprezo pela retórica;
discurso, mera técnica de persuasão situada à margem, tradicional. Para ele a filosofia era um assunto demasiado
quando não em posição fronteira à moral. Zenão e os sério para que valesse a pena perder tempo enredado em
seus sucessores interessam-se obviamente pela propagação problemas de composição, em ornatos de estilo, em longa
da "verdade'~ ao passo que a retórica visa a convencer o escolha vocabular em detrimento do essencial: as ideias.
auditório da "sua" verdade, que não é forçosamente "a" No entanto, Séneca não deixava de reconhecer a relevân-
verdade. O estoicismo antigo rejeita consequentemente tudo cia que a forma literária pode ter na transmissão de uma
quanto não passe de eloquência balofa, de "ruído'~ de arti- doutrina. Por exemplo, uma verdade filosófica torna-se mais
fício. Quando falam de retórica fazem-no, não no sentido evidente e memoriza-se melhor se for expressa numa forma
habitual do termo, mas antes implicando a forma de expri- sentenciosa, ou se for transmitida em verso, de modo que
mir linguísticamente a verdade. . a própria beleza poética alicia o potencial ouvinte a dar
Quando Séneca escreve, já a retórica tinha uma bri- maior atenção ao discurso. Tal explica que Séneca, que
lhante tradição em Roma, ilustrada prática e teoricamente de não apreciava grandemente o teatro, tenha escrito diversas
forma superior por Cícero. Este, como orador eminente tragédias em que as ideias básicas, os motivos fundamen-
que era, dava da retórica uma imagem elevada em que se tais são de inspiração estóica: dada a predilecção do público
aliavam harmonicamente a técnica mais apurada com a romano pela arte cénica, o filósofo decide-se a comunicar
mais larga cultura gera4 formando um conjunto indissociável a esse público alguns princípios essenciais mediante uma

XVIII XIX
forma literária que ele sabe capaz de atrair as atenções e nalismo histérico e se prepara um tresloucado genocídio.
de assegurar que alguns desses princípios se gravem no Como é possível explicar semelhante contradição ?"
espírito dos espectadores. Nunca Séneca exprimiu de uma forma tão nítida a
Não espanta, por conseguinte, que a prosa senequiana, discrepância verificável entre a cultura entendida e prati-
com o seu ritmo desigual, as suas frases nervosas e curtas, cada como mera soma de conhecimentos e a "incultura"
as suas sentenças abundantes, a sua composição irregular de facto existente nas relações entre os homens, quer se
(desenvolvimentos prometidos que não ocorrem, progra- trate das relações dos indivíduos entre si, do poder e do
mas anunciados e não cumpridos, reiteração de temas já povo, ou das nações umas com as outras. Mas, mutatis
anteriormente tratados, recurso excessivo a neologismos mutandis, é este um problema que subjaz em maior ou
ou a vocábulos arcaicos e vulgares, etc.), tão nos antípodas menor grau a todos os seus escritos. Quando ·ele, por
do classicismo ciceroniano, incorressem como incorreram exemplo, se interroga sobre que interesse pode ter conhe-
no fundo desagrado de um Quintiliano, que o considera cer se Homero foi ou não mais antigo do que Hesíodo, se
um autor tanto menos de imitar quanto era precisamente Hécuba foi mais nova ou mais velha do que Helena ou
um dos mais imitados pelos seus contemporâneos. Apesar que idade tinham Aquiles e Pátroclo, não é isto o mesmo
de tudo Quintiliano não deixa de reconhecer, e di-lo, a utili- que questionar o significado de uma cultura entendida
dade que os escritos de Séneca podem ter para a formação como erudição estéril em detrimento de uma cultura autên-
moral dos jovens romanos. Lamenta, isso sim, é que a emu- tica, assimilada, interiorizada e traduzida numa vivência -
lação que Séneca suscita precisamente entre os jovens se no mais amplo sentido da palavra - humanista?
processe a nível formal, ·com a imitação de um estilo irre- Séneca, talvez num grau mais intenso do que qualquer
gular, sem que se verifique também no que respeita à eleva- outro pensador, é um homem "em situação". Salvo nos
ção dos princípios contidos nas irregularidades desse estilo. últimos tempos da sua existência sempre viveu plenamente
No seu livro Über den Ungehorsam, referindo-se aos inserido na vida e participou nos problemas da Roma do
nossos tempos, escreveu Erich Fromm: tempo, numa carreira ímpar em que conheceu a fama
"É indubitável que nunca como hoje está tão difundido como orador, quase foi vítima de um crime político, sofreu
no mundo o conhecimento das grandes ideias da humani- o exílio ainda em consequência de intrigas políticas, regres-
dade. Nunca, contudo, foi a sua influência também tão sou em triunfo e durante alguns anos exerceu na prática o
diminuta. Os pensamentos de Platão e Aristóteles, dos poder, para conhecer enfim a desgraça e vir a ser cons-
Profetas e de Cristo, de Espinoza e de Kant são hoje
trangido ao suicídio para evitar a execução por alegada
conhecidos por milhões de pessoas cultas na Europa e na
participação numa conjura para derrubar o imperador. A
América. Eles são ensinados em inúmeras Escolas, sobre
sua filosofia, portanto, não é fruto de uma meditação abs-
alguns deles fazem-se prédicas em todo o mundo nas
tracta realizada em qualquer hipermundo, mas sim. resul-
Igrejas de todas as confissões. E tudo isto se verifica simul-
taneamente num mundo em que se presta obediência aos tado de uma luta de todos os dias contra as imposições do
prinápios de um egoísmo sem limites, se cultiva um nacio- momento, contra a fortuna e a adversidade, contra as

XX XXI
próprias fraquezas, o inimigo mais difícil de vencer! Daí meramente intelectual, mas que, pelo contrário, se apre-
que Séneca tenha entendido a sua vida e a sua filosofia senta como uma tare/a ingente e extremamente séria, como
como um combate quotidiano contra o mundo e contra si um acto de que depende todo o sentido da sua existência.
mesmo; uma abundância de passos confirma que a filosofia Subjacente a cada desenvolvimento de Séneca sobre as
é vista como uma militia e o filósofo como um soldado sem- matérias que vai explicando a Lucílio está sempre pre-
pre em pé de guerra. Mas não apenas a sua própria vida sente uma questão: para que serve debater este problema,
Séneca concebia como uma luta: também o é a de todos em que é que este ponto interessa à formação moral?
os homens, só que muitos, talvez a maioria, se abandona Esta, a formação moral, é para Séneca o ponto axial a que
sem resistência às ideias feitas e aos falsos valores impos- tudo o mais está subordinado. Não cativam o seu inte-
tos pela sociedade, sendo vencidos antes mesmo de lutarem. resse as especulações teóricas de teor apenas intelectual,
Quer isto dizer que, talvez n~m grau mais intenso do nem a cultura o atrai se não for traduzível em vivência;
que para qualquer outro pensador, seja indispensável conhe- por esta razão, não obstante domine a matéria, rejeita
cer a fundo a biografia de Séneca, determinar com o categoricamente as elocubrações lógicas que encontrava subtil-
máximo rigor possível a data de cada uma das suas obras mente debatidas nas obras dos antigos mestres, não se
e as circunstâncias em que foi c~mposta, bem como a coibindo de censurar, por vezes com .aspereza, um Zenão,
personalidade do destinatário imediato delas. No que um Crisipo ou um Posidónio; pelo contrário entusiasma-se
concerne às Epistulae estamos satisfatoriamente informa- pelos problemas de física por estes lhe servirem de pre-
dos: sabemos que são fruto de um período em que Séneca texto a conclusões de ordem moral, mas já se insurge
contra a tecnologia precisamente pela sua indiferença ética.
já tinha perdido por completo as ilusões sobre a possibili-
Para Séneca a filosofia, dissemos, exige a sua transmuta-
dade de influenciar num sentido positivo a orientação política
ção em vivência, isto é, concretizando com um exemplo, só
de Nero e em que, consequentemente, a sua única preocu-
é válido saber em que consiste o bem supremo se na nossa
pação se traduzia em consolidar a sua própria formação
vida diária agirmos em função desse conhecimento. Memorizar
moral e filosófica, assim como a do seu amigo Lucílio e, uma doxografia - conhecer o que é o bem supremo segundo
extensivamente, através da publicação das cartas, a do maior Platão, Aristóteles, Zenão, Epicuro ou Cleantes - e prati-
número possível de leitores. Séneca sabe que a sua vida carmos as nossas acções sem referência directa à interioriza-
está chegando ao fim, se aproxima o momento de fazer o ção desse conhecimento é um processo inteiramente estéril.
balanço da sua existência, de fixar as metas que um filó- A filosofia torna-se assim uma prática austera que, se não
sofo deve tentar atingir, de determinar o método a seguir torna o homem materialmente feliz segundo o conceito
para alcançar o seu objectivo. Desta sorte a filosofia con- vulgar de felicidade (felicitas), lhe dá em contrapartida
tida nas Epistulae tem um cunho de urgência vital que se uma forma superior de felicidade, talvez devessemos antes
não limita à discussão de questões casuísticas (embora por dizer beatitude (uita beata), que se aproxima do ideal per-
vezes Séneca, até por solicitação de Lucílio, não possa seguido pelos místicos orientais ou mesmo por certos pen-
fugir a elas), que não prossegue uma marcha de cariz sadores cristãos menos ortodoxos. Séneca, não é demais

XXII XXIII
repeti-lo, nunca perde de vista a situação concreta do homem aos instintos que nos levam a comer, a beber, a satisfazer,
na multiplicidade das suas relações sociais e políticas, na 1. enfim, aquilo a que chamamos "as necessidades naturais",
interioridade da sua existência peculiar. Neste sentido fun- entre as quais se inclui, naturalmente o instinto de conserva-
damentadamente assevera o Pe. Manuel Antunes que ele é ção. Obviamente estamos aqui perante um conceito "inferior"
o "filósofo da condição humana", não por se preocupar do que seja a natureza, e não é neste sentido que Séneca
em determinar especulativamente os traços que definem exorta Lucílio (e através dele todos os seus leitores) a segui-la.
essa condição humana, mas essencialmente por pretender Passando a um nível "superior" Séneca vai procurar
conferir ao homem uma orientação concreta que lhe seja qual, de entre os seus dados naturais, é aquele que consti-
de utilidade em todos os momentos da sua vida. Daí cer- tui o "bem" específico do homem. Investigando os traços
tos textos que à mentalidade tecnológica de hoje podem que aproximam e separam o homem dos restantes animais
merecer o epíteto (que se pretende depreciativo) de "morali- Séneca considera que, enquanto as necessidades naturais são
zantes". A importância desses textos para o pensamento idênticas para todos, existe algo que é exclusivo do homem,
de Séneca é contudo, imensa, na medida em que consis- e esse será o seu '1bem" específico: a razão. Logo seguir a
tem em meditações sobre as problemáticas mais imediatas natureza toma um sentido diferente do que a expressão
da vida de qualquer um: por exemplo, como reagir perante possui quando aplicada aos animais: para o homem signi-
a morte de um ente querido, como encarar as obrigações ficará única e exclusivamente viver de acordo com os dita-
de natureza social, que valor atribuir aos bens materiais, mes da razão.
como agir perante pessoas de estratos sociais diferentes, Mas o homem, queira-se ou não, é um animal, pelo
que aparentemente, ao incitá-lo a seguir a natureza, está a
como valorizar a aaividade política, como entender o que
cair-se numa contradição: por um lado exorta-se o homem
seja o progresso, como julgar as chamadas "conquistas
a segui-la, por outro toda a marcha da filosofia estóica
tecnológicas", como educar as crianças, como formar os
•. (Séneca muito especialmente) visa a ultrapassar, a vencer
jovens, que conceito fazer do que seja a cultura, etc., etc.
a natureza humana. Dito de outro modo: sendo a razão o
Frequentemente encontramos no texto das cartas uma bem particular do homem deveríamos ser levados a pen-
exortação básica, que Séneca repete à saciedade: é impe- sar que ele vive naturalmente segundo a razão, e portanto
rioso "seguir a natureza" (sequi naturam). Dado que uma segundo a natureza, o que evidentemente se não verifica, e
injunção semelhante se encontra também em textos epicu- daí a urgência de vencer o modo humano de ser para que
ristas importa definir em que sentido Séneca, como estóico, seja possível cumprir o ideal de viver segundo a natureza.
entende a expressão, pois daí decorrerá o seu conceito da Séneca resolve esta dificuldade distinguindo uma dupla
condição humana. natureza na alma humana: uma inferior na qual dominam
O filósofo distingue dois sentidos elementares contidos . os instintos, as paixões (affectus), outra superior que cons-
no conceito de "seguir a natureza". Por um lado considerá titui o domínio próprio da razão (ratio). Toda a questão
a "natureza" biológica, comum ao homem e aos animais, e está, por conseguinte, em atingir um nível em que seja a
nesta instância seguir a natureza significa apenas obedecer 1}4tureza "superior" a exercer o seu domínio sobre a "inferior".

XXIV xxv
Todo o homem tem, enquanto animal, necessidades natu- belecer uma minuciosa hierarquização das "virtudes", dis-
rais de nível inferior, e obviamente tem de responder a tinguit quais as fundamentais, quais as subordinadas e qual
essas carências, mas somente na medida em que a razão a articulação entre elas, enveredando, assim, por um caminho
decida como, quando e até que ponto elas devem ser intelectual talvez mais "científico" mas, sem dúvida, de
satisfeitas. Podem surgir situações em que a razão, em menor interesse prático. Sempre fiel à realidade concreta,
nome da natureza superior, rejeite precisamente a satisfa- porém, Séneca rejeita essa via, limitando-se a considerar a
ção das necessidades naturais, mesmo uma tão imperiosa virtude, por assim dizer, em bloco, sem se preocupar se
como o instinto de conservação. esta virtude particular é mais ou menos virtude do que ·
Podemos assim dizer que o bem específico do homem aquela outra. O seu escopo é levar o orientando à prática
- a razão - existe como potência em todo o ser humano, da virtude, simplesmente, numa intenção pedagógica em
mas para se realizar plenamente importa subjugar o mundo que, como sempre, o importante é o valor real do ensino
das paixões, isto é, viver segundo a natureza humana para a formação moral e não o luxo inteleaual da informação.
implica, senão eliminar, pelo menos manter sob severo Do seguir a natureza conforme a razão, ou, dito por
controlo todo um conjunto de instintos naturais ao homem outras palavras, da prática da virtude decorre para o homem
enquanto animal: exige-se a transformação da potência a obtenção da felicidade (uita beata), a qual é para o
em acto. A actualização da razão é aquilo a que Séneca homem o supremo bem (summum bonum). Conforme o
chama a virtude (uirtus). Em última análise a virtude leitor certamente infere, a felicidade para Séneca nada tem
identifica-se com a razão, dada a oposição diametral que a ver com a obtenção de bens materiais, nem com a posi-
existe entre virtude e paixão por um lado, entre razão e ção social ou o poder que se exerce. A felicidade, como
paixão, por outro. supremo bem, reside apenas no_,bem moral (honestum), o
Assim se completa a identificação entre estes três termos qual pode implicar (e geralmente fá-lo) precisamente a
básicos do pensamento de Séneca (virtude, razão, natu- rejeição daquilo que o vulgo tem como "bens". O bem
reza), e assim chegamos a entender o que o filósofo pre- moral também carece de um certo sentido estético que o
tende quando aponta como objectivo supremo do homem termo grego corresponde ( ro KaÀÓv) de certo modo
sequi naturam: a natureza humana tem de específico o ser conota. O bem moral, para o estoicismo, e muito particu-
dotada de razão; a razão existente potencialmente em cada larmente para Séneca, é dotado de uma severidade sem
ser humano actualiza-se como virtude, pelo que, para o complacências, de uma austeridade a toda a prova, de um
homem, seguir a natureza será, exclusivamente, viver "aristocratismo" que o tornam de realização extremamente
segundo a razão, praticar a virtude. difícil e, para a maioria, talvez até pouco atraente. Trata-se,
Daqui decorre uma consequência extremamente impor- todavia, de um ideal que em épocas históricas determina-
tante para a compreensão da obra de Séneca. O filósofo das e para certas personalidades concretas constitui a única
poderia, na esteira dos antigos mestres do estoicismo, de/esa contra os condicionalismos exteriores. Uma dessas
enveredar pelo caminho da casuística e dedicar-se a esta- personalidades foi precisamente Séneca: os altos e baixos

XXVI XXVII
da sua carreira, as múltiplas situações difíceis em que se exemplo, gastronómicos), a obediência exclusiva às paixões
viu envolvido levaram-no a constantemente meditar sobre de toda a ordem, tais como as vemos representadas nas
os problemas reais que a vida põe. Os seus escritos, além tragédias do próprio Séneca ou nas sátiras de Pérsio, tudo
de serem uma forma de difundir no público as suas ideias isto fazia da sociedade romana uma sociedade doente, à
e de assim realizar (l}Tf!:à tare/a pedagógiêd'J.(que sempre deriva, presa fácil de charlatães e adivinhos (como os
esteve na mira do estok is;;;,o): sito ta,,;;,bém uma/;;~ -·ie ·-;~ astrólogos), aberta a toda a espécie de cultos religiosos que
educ~r ; s/ p;6pnõ;·;i~- ~;ercícios espirituais que propõe propusessem aos seus aderentes qualquer espécie de salvação.
tanto para si como para os outros, são meditações sobre Ora um enfermo, seja ele um homem ou uma socie-
as ocorrências da sua existência, são uma forma de fixar dade, deve procurar tratar-se, e foi isso o que Séneca pre-
as suas ideias, de assegurar para si uma estabilidade, uma tendeu fazer infatigavelmente, não apenas diagnosticando
constância assente na fidelidade aos princípios, um método com precisão a moléstia, mas ainda propondo criteriosa-
para atingir a identidade consigo próprio, para ser sempre mente o remédio. Um homem que, em vez de obedecer à f
igual a si mesmo, para, como ele diz, "querer e não que- razão, se torna escravo das paixões é, obviamente, uma !
rer sempre a mesma coisa" (idem uelle et idem nolle). criatura doente, precisamente porque nela se não desen-
A filosofia senequiana surge, assim, não como mera volveu, se não actualizou a virtude que todos possuímos
especulação, mas sobretudo como uma verdadeira terapia em potência. Um homem em quem a razão (e, portanto, a
que o pensador procura aplicar tanto em si próprio como virtude) não passa a acto é um ser defeituoso. Há, conse-
nos outros. fcom grande poder de observação, Séneca quentemente, que chamar-lhe a atenção para o seu mal,
detectou ag!;J,a e pertinentemente aquilo a que podería- apontando as respectivas causas e propondo o tratamento
mos chamar o mal du siecle da R oma de então, e que em adequado. É ao filósofo que cabe desempenhar tal tare/a,
síntese seria possível definir com a deriva de uma socie-
como se um médico fosse, e como tal entendeu Séneca a
dade carente de valores] Por um lado uma prosperidade
sua missão. A nteriormente referimos que o filósofo conce-
económica acentuada (apesar da crise financeira do fim do
bia a vida e a actividade filosófica como uma' luta; nova
principado de Nero), uma estabilidade política e social que
certas guerras de fronteira ou um ou outro levantamento abordagem permitirá r:Jj__rmar que ele ~"!!~~~"f!~ .iiJI.<Jiiq,
de gladiadores nas províncias não chegavam para pertur- C?J'!!O Uma f arma de medleznã; -meaz~;;;,,.Cf. /Ítf.S .fll'!!ltf~. !J4JJ±~
bar, um nível cultural e artístico de grande sofisticação, ;aj~enie, "pó.rqi:t~Iõ-~ -;;;;ue d,;'Ç?.;:p;,
f!pf_ caf~~~t:..ff!JJ L
de .
tudo (á;;-mpànhêidõ. uma -;;õ~~ ciiié ·dê--:;à10rêi'~ o;~is;, niH;;n~- ~~: ~á1à!·~:mó·;~r,1 :~~l~g~tt, p o_r _Seftif!fa.:_ pq,,r:cuL c.aJI?-~
de que-õi "êspectdc~los .dÔd;~;-'Sffo-;;;;;-;z;s si; õ-;nã;-;·a/ goria dos indiferentes.
obras dos grandes autores do tempo como Lucano, Pérsio A doenÇd ai que -enÍermava a sociedade romana, embora
e o próprio Séneca a decidida denúncia. A ausência q§ podendo revestir aspectos múltiplos, era na base muito
.Qpj<:_ç_!JJ!f?.L l':!f!!riores para .a:...~~jpência, a âns/;-Je; ;;;;Jida simples de definir: tendo a alma uma dupla natureza
dos J; e.n! .~r:z~t_o/:_~-~/j,=·õL~;C~!.s_qi_={e- tQ_jg:~;_~~~~-':.~j_~}p;r (uma "parte" superior que nos equipara aos deuses, uma

XXVIII XXIX
"parte" inferior que nos mantém ao nível dos animais) o homem para todo o homem, prevalece o dever do homem
romano médio (e não só o romano, evidentemente) limita enquanto cidadão para com os seus concidadãos, para com
a sua existência ao nível inferior, onde dominam, como os membros da sua classe social, da sua família, do seu
vimos, os instintos, as paixões. Em contrapartida, todas as grupo político, da sua pátria. O mesmo relativismo se
correntes filosóficas visavam a libertar o homem do domí- verifica no que à amizade concerne, que inclusivamente
nio das paixões e a proporcionar-lhe uma f arma superior pode chegar a limitar-se à designação de uma afinidade
de "felicidade". {jJ. esse estado de vivência superior_
.
de_qug_... política, de partido, em que a amizade como supremo
as paixões estão excluídas chamavam os grego's..}1._m)f)wx; ,\ valor moral carece por completo de cabimento.
Séneca designa-a por tranquillitas animi (tranquilidade · d;" Nada disto se verifica em Séneca. O filósofo de Cór-
alma, título, aliás de um dos seus tratados). A função do dova é um homem do absoluto, não se contenta com os
filósofo, portanto, consistirá basicamente em ajudar o meros valores relativos vigentes na sociedade, os quais,
"paciente" a obter essa tranquilidade que entregue a si precisamente por serem relativos, não devem ser tomados
mesmo não consegue alcançar, mais, de que· as tendências como verdadeiros valores. fá dever ou a amizade tal com:o
da sociedade decisivamente o afastam. Séneca os entende são àbsolutos morais, independentes_
Temos, portanto, a filosofia cumprind_o o papel de das classes sociais, da nação, dos laços familiares, da riquez~J
uma pedagogia e também o de uma J~rapia,-)implicando Assim é que Séneca pode falar como fala, por exemplo,
este termo um maior empenhamento do--sabto no desem- dos escravos. Às vezes critica-se Séneca por não ter levado
penho da sua m,,ifsão do que uma tarefa meramente peda- as suas ideias às últimas consequências e não ter chegado
gógica exigiria. fA filosofia deve curar os males da alma, e a pôr em causa o próprio sistema da escravatura. Tal tipo
não somente dqinir em que eles consistem~ Um "doente" de críticas padece de anacronismo: pense-se nos séculos
renitente pode saber em que consiste o ;u mal e nem que foi preciso ainda atravessar para que o esclavagismo
por isso decidir-se à cura; pode dizer, como a Medeia de viesse a ser oficialmente erradicado. No seu enquadramento
Ovídio, uideo meliora proboque, deteriora sequor. Se tal histórico, dizer como o fez Séneca que o escravo é um
suceder, a filosofia terá falhada o seu objectivo. homem, que um escravo e um homem livre podem ser
Destas considerações decorre a nova inflexão dada por amigos, que um escravo é tão capaz como um homem
Séneca a dois conceitos básicos do pensamento romano: o livre de prestar um benefício ao seu semelhante, e sobre-
conceito de officium (literalmente, "dever") e o conceito tudo(proclamar que um escravo que viva segundo a razão
de amicitia literalmente, "amizade"). Ambos os conceitos e pratique a virtude é incomensuravelmente mais livre do
servem de título a duas obras filosóficas de Cícero, o De que o mais nobre dos cidadãos romanos que se submeta
Officiis ("Sobre os deveres") e o De Amicitia ("Sobre a às paixões, é uma tomada de posição verdadeiramente
amizade"). Em Cícero, porém, sobressai o valor social de revolucionária) Se outro mérito o estoicismo não tivesse,
ambos os conceitos, isto é, mais do que o dever de todo o bastaria o facto de o vermos praticado com igual elevação

xxx XXXI
moral por um aristocrata romano (Séneca), um antigo eventualmente o seu discípulo tenha, sem prejuízo de pos-
escravo (Epicteto) ou um imperador (Marco Aurélio) para teriormente o procurar atrair para os princípio1.JYl Escola.
lhe grangear um lugar à parte na sucessão das correntes Aliás, já atrás vimos como Séneca lidava com(Lucíli~ antigo
filosóficas do mundo antigo. epicurista, não atacando Epicuro, antes dele "ê[Íc!,ndo'jieri-
Dissemos em parágrafo anterior que a natureza humana s~;n;:;ã;; idênticos aos seus próprios, ou pelo menos interpre-
tinha em si algo que a equiparava aos animais e algo que tando-os à luz do estoicismo, sem adaptar uma atitude
a igualava à natureza divina. Será altura oportuna, a fim depreciativa ou dogmática em relação aos seus adversários
de evitar qualquer espécie de mal entendido, para esclare- filosóficos. Neste sentido P<!c±e... cf,ize,r-s_e_qt,t_e_t_od_os. Q.l.' .estói-
cer o que significam para os estóicos os deuses (ou um CQ L ~ã_o . 'f!l:Onoteís~as, porque n_enhum deles qceita .º Poli-
deus, ou Deus); tal precisão é muito particularmente neces- teísmo da religião tradicional, mas _deverá evitar diz€r-se
sária no caso de Séneca, em cuja obra palavras como deus, que são monoteístas no .. sentido_ em que S(i fqla de _rr;,ono-
deuses, divino, divindade ou similares ocorrem com extrema teísmo judaico, cristão ou islqrrt;ic_q, ~ ., ._,; ·
frequência. Dito de outra forma, torna-se necessário entrar - O deus dos estóicos não é mais do que o equivalente , ·;( ;.' /
no domínio da teologia estóica. De facto, nenhuma obra
4t!CJ.tfi.f~. i.~i-~q-~f()"ir;_~;.·~ft.glp{l:,.:~~~~{~:~d.2.;1!.~JJ.~;~~, (d j . ' ' •
de exegese sobre o estoicismo se exime a dedicar algumas anima mundi mundia a que já se referia Aristóteles). Por l.. rj .: •
páginas a este ponto. No entanto, se autores há que pre-
isso não nos devemos espantar por num texto célebre das
tent(lem vincar o panteísmo destes pensadores, outros con-
Naturales Quaestiones Séneca propor toda uma série de
sideram-nos materialistas; não falta também quem veja
equivalências linguísticas para a expressão do mesmo con-
neles monoteístas, nem quem entenda o estoicismo mais
ceito: Júpiter é o guia e o guardião do universo (rector
como uma religião, uma crença, do que, na essência, uma
filosofia. Não será, portanto, inútil chamar a atenção para custosque uniuersi), a alma e o, espírito do mundo (ani- /
alguns pontos que ajudem o leitor a situar-se quando, no mus ac spiritus mundi), o senhor e criador de toda esta
decorrer da leitura das cartas, deparar com alguma das máquina (operis huius dorp.in~_? ~t artifex); mas não erra- i
muitas ocorrências do termo deus. remos se lhe chamarmo/:.'.de.~tif!_p::,_ (f~tlJ!Il);·;ou "causa das '1
Comecemos por eliminar a questão (falsa) monoteís- causas" (causa causarum);
.--·- ..._
também .estaríamos
.-".· ' --.. . ._ certos se lh e li
mo/ politeísmo. Não é de atribuir qualquer valor especial chamássemos, "providência" (prouidentia),) nas igualmente !
--- ~·~~~··· ····· - ---~--- ·-~--· !
ao aparecimento de nomes divinos como Júpiter ou outros; não nos enganaríamos se lhe dessemas o nome de "natu- /
1
primeiro, porque tanto Séneca como os seus predecessores reza" (natura) ou "mundo" (mundus). Falar, como alguns
são muito claros a este respeito, e quando dizem Júpiter, o fazem, de uma certa religiosidade inerente ao pensa-
ou Neptuno, não pretendem referir-se ao deus do panteão mento de Séneca apenas estará correcto se nos entender-
tradicional; segundo, e isto é especialmente válido no caso mos quanto ao sentido da palavra: religiosidade" enquanto
de Séneca, porque o estóico, na sua função de pedagogo, Séneca concebe o homem como um com a natureza, e
obedece ao princípio axial de respeitar as crenças que não à margem e menos ainda acima dela, enquanto pensa

XXXII XXXIII
que o homem deve entender a· natureza e nela se inte- Se bem atentarmos no que Séneca nos diz em passos
grar, e não exercer domínio sobre ela, respeitá-la e não diversos das cartas estamos em crer que a contradição se
destruí-la; "religiosidade" enquanto sentido de transcen- resolverá por si. O caso é que em grande medida o homem
dência, atitude contemplativa. Mas não cremos que se deva é determinado: ninguém escolhe a forma do corpo, a
falar em religiosidade de Séneca se dermos ao termo qual- agudeza dos sentidos, as potencialidades físicas, tal como
quer conotação de cariz cultua!, de crença em alguma divin- ninguém escolhe o lugar e o momento de nascer ou (em
dade transcendente ao mundo, de prática de alguma forma princípio) de morrer. Isto é um dadg_ de facto contra o
de prece, ou de outras manifestações similares. qual nada pode a vontade humana. éJ.liberdade, porém,
No que toca ao materialismo, é inegável que, em certo assume-se no modo como cada homem vive as determi-
sentido, os estóicos (e Séneca não é excepção) são efecti- nações que lhe são impostas ~ela natureza (ou pelo des-
vamente materialistas, não por postularem a matéria com tino, o que significa o mesmo2JNuma frase famosa, Séneca
exclusão de todo o elemento espiritual, mas por entende- escreveu: ducunt uolentem fata, nolentem trahunt "o des-
rem que tudo, inclusive o espírito, é de natureza material. tino guia quem o segue de bom grado, mas arrasta quem
No universo contínuo que é o seu, em que tudo age sobre se recusa a segui-lo". Neste verso sumariza-se claramente
tudo, tal acção de tudo sobre tudo só é pensável se tudo o seu pensamento sobre este problema: aquelas determi-
for de natureza corpórea, material. O espírito é um corpo, nações que nos são impostas pela natureza, tais como a
a alma é um corpo, "deus" é um corpo; neste sentido, nossa condição de mortais ou a situação num mundo sujeito
sim, é lícito dizer que os estóicos são materialistas, mas já a cataclismos naturais, temos de as aceitar com magnani-
não o será pretender fazer deles quaisquer precursores de
midade, sem revolta, pois de forma alguma temos a pos-
filosofias de cariz positivista.
sibilidade, a "liberdade" de lhes fugir; está, todavia, na
De incidência neste capítulo é também importante e
nossa mão a forma como reagimos a essas contingências
controversa a questão do conceito estóico de "destino". O
inevitáveis. Por exemplo, é um facto que nós nascemos
termo não é cómodo, e possui hoje Cf!.!f!.!-~C.ºF'ºtações que
nos parece não existirem no termo(latino_~at:Jfri;'1Quando nesta ou naquela época, neste ou naquele lugar: porquê
se fala em "destino" é praticamente inéviiâvel levantar-se insurgir-nos contra o "destino" que nos fez nascer roma-
a questão de como pode o homem ser livre (e em Séneca I, nos e não gregos, escravos e não cidadãos livres, homens
o conceito de "liberdade" é de grande relevância) num e não mulheres, baixos e atarracados em vez de altos e de
mundo submetido ao mais estrito determinismo. De facto porte atlético? A razão diz-nos que contra isto nada há a
parece haver uma contradição insanável entre determinismo fazer: porquê lamentarmos irracionalmente o que o "des-
e liberdade, e não falta quem veja na firmeza com que tino" nos deu em sorte? Agindo ao revés do que a ratio
Séneca aceita o determinismo e defende a liberdade do nos diz estaremos a ser "estúpidos" (stulti), e "estúpido" é
homem um fruto de certa falta de sistematização, de rigor do todo aquele que não desenvolveu em si as potencialidades
seu pensamento, resultado de muitas leituras, que fariam da da natureza humana, cujo traço essencial é, como vimos, a
sua filosofia uma espécie de eclectismo sem consistência real. razão. O cúmulo da estultícia seria cair naquilo a que

XXXIV xxxv
Séneca chama o taedium uitae "o horror à vida". Ao con- nações derivadas do fatum escapam realmente à classifica-
trário do que às vezes se supõe, o estoicismo não ignora a ção bom/mau/indiferente, já o mesmo se não dá quando
"alegria de viver", mas tem dela um entendimento não falamos da fortuna. Não tem sentido dizer que a nossa
semelhante ao do vulgo. condição de mortais é moralmente boa ou má, ou nem
A par do conceito de "destino ': deparamos continua- uma coisa nem outra; a mortalidade simplesmente é, sem
mente em Séneca com um outro conceito aparentemente mais. Já faz sentido, todavia, afirmar que a condição social
similar, o de "fortuna" (fortuna). Na verdade, embora por do homem livre ou do escravo são ambas moralmente
vezes se afigure que as duas ideias se recobrem (nem indiferentes, tudo dependendo do que o homem livre ou o
sempre Séneca escreve com um rigor terminológico irre- escravo façam dela. E já acima sublinhámos que para Séneca
preensível), elas são distintas: enquanto o fatum circuns- nada impedia que um escravo fosse mais livre do que um
-~rf!1/~__,C?S. •~r:a._ço! e_ssen~iais. d;q [t.aiu~"eza . -h~;;;;n~ . (~.g.; . a cidadão livre, desdg que aquele, ao contrário deste, se orien-
condição mortal), a fortuna implica as circunstâncias. exte- tasse pela razão/ Daqui decorre uma diferença de formula -
riores que nos determinam (u.g., o sermos bonitos o"u ção que ocorre ·~m Séneca e que é elucidativa a este res-
feiai,· nascermos ricos ou pobres, etc.). Num caso e noutro peito: ao passo que nós sequimur fatum "seguimos de
o homem não é "livre" de escolher a sua sorte, mas bom grado o destino': o que implica uma atitude activa,
enquanto aquilo que nos é imposto pela fatum está para racional, de aceitação do irrecusável, pelo contrário prae-
lá de toda a determinação moral, já o mesmo se não veri- bemur fortunae "estamos sujeitos à fortuna", em princípio
fica com o que nos é dado pela fortuna. numa posição passiva perante um mundo de indiferentes,
/ Para o estoicismo, todas as coisas são passíveis de uma ··, mas susceptível de, pela razão, pela virtude, pela unicidade
·. tríplice classificação de ordem moral: uma coisa só pode do bem moral, ser por nós dominada e transformada em
\ ser ou "boa", ou "má" ou "indiferente". Tudo quanto se "bem". Por isso mesmo pode Séneca (e outros autores de
, confarme com o bem moral será bom; tudo o que contra- obediência estóica) falar em amor fati "amor pelo des-
• rie o bem moral será mau; toda a coisa que apenas seja tino ': mas já seria destituído de sentido falar em amor
, boa ou má em função do uso que dela fizermos, e não fortunae "amor pela fortuna' Jm suma, se o homem não
1
em si mesma, será indiferente. Concretizando, a virtude é livre de escolher o seu faturo nem a sua fortuna, é, por
será obviamente um bem (será mesmo o único bem); o um lado, dotado da razão que lhe dita a obediência ao
vício (que é o contrário da virtude), será obviamente um fatum e dispõe, por outro, da liberdade de transformar
mal (será mesmo o único mal); uma coisa como a riqueza uma fortuna moralmente indiferente num verdadeiro bem.
e a força física que tanto pode ser utilizada para praticar Da consideração da elassificação de tudo em três gran-
o bem como para praticar o mal, entrará na categoria dos . des categorias - ( ás coisas boas, ~s e indiferentes - ~)
indiferentes. chegamos naturalmente a'"óutrÕ pontÓ d e enôrme impor-
Retomando a oposição fatum/fortuna no âmbito desta tância para Séneca, decorrente da ocorrência constante de
classificação, poderá verificar-se que, enquanto as determi- vocábulos como sapiens (que traduzimos por "sábio") ou

XX.XVI XX.XVII
sapientia (que vertemos por "sabedoria"), ou seja, ao con- essa escala proclamada coincide ou não com os valores
ceito que o filósofo faz do que seja o homem superior, determinados pela filosofia, isto é, pela razão.
que mais não é do que o homem autêntico, o homem na Vimos que o critério único que Séneca admite para a
sua completude ontológica e ética. atribuição de um valor a qualquer coisa reside na sua
Esta tripartição não é naturalmente criação de Séneca, "bondade" moral. Para o filósofo o bem moral não se
pois todos os antigos estóicos a ela se referem. Não será, limita a ser o bem supremo, mais do que isso, é o único
porém, exagerado dizer que ela tem para Séneca uma bem. Neste ponto Séneca é intransigente, talvez mais do
relevância particular, pois é somente em função dela que que os seus predecessores do antigo estoicismo, e certa-
se torna possível atribuir valores. Para já, a própria opção mente muito mais do que os pensadores do chamado
pela filosofia é em si mesma uma atribuição de valor. "estoicismo médio". [Eara ele só tem valor qualquer coisa
Além disso, sendo a filosofia de Séneca mais uma obra de - um objecto, uma acção, uma ideia, uma ocupação inte-
acção pedagógica e de direcção espiritual do que um puro lectual - que vise a obtenção do bem mor~ que se pro-
pensamento especulativo, torna-se evidente que a primeira ponha tornar o homem melhor do que er~A dicotomia
consideração a fazer consiste precisamente na fixação de entre o honestum (o bem moral), que se identifica com a
uma escala universal e rigorosa de valores: sem estes não ratio (razão) e a uirtus (virtude), e o uitium (o mal moral,
há pedagogia ou percurso espiritual minimamente válidos. o mal por excelência) é absoluta. Absoluta também será
A primeira opção a fazer pelo sujeito ético consiste consequentemente a dicotomia entre o homem moralmente
em decidir se se deseja seguir a via da razão (ratio) ou se perfeito (o sapiens "sábio") e o homem moralmente imper-
prefere atender à opinião vulgar (opinio). Por natureza feito (o stultus, insipiens, literalmente, "estúpido, não-sábio").
todo o homem é potencialmente dotado de razão, mas Surge, porém, aqui um escolho: ,se qualquer coisa é passí-
tudo o que existe potencialmente requer condições f avorá- vel de ser boa, má ou indiferente, porque é que o homem
veis para poder passar a acto; se tais condições favoráveis só poderá ser bom (virtuoso, racional, sábio) ou mau (vicio-
se não verificarem uma coisa existente em potência jamais so, irracional, estúpido)? Não será necessário criar uma
se actualizará. Sucede ainda que o homem, na condução da terceira categoria de homens, a que por paralelismo pode-
sua vida, tem de começar por determinar o que deseja ou ríamos chamar "indiferentes", onde coubessem todos aque-
não fazer segundo a atribuição de valores. Toda a socie- les que não são, em termos absolutos, nem "bons" nem
dade possui, explícita ou implicitamente, uma escala de "maus"?
valores (na maioria dos casos o que se verifica é a exis- Para os antigos estóicos, que abordaram o problema
tência de uma escala de valores implícita, não confessada, com o máximo rigor, a resposta é decididamente negativa.
que se mascara atrás de um sistema de valores explícitos Um homem ou é sábio, ou não é, sem que haja qualquer
não praticados). Aquilo a que Séneca chama a communis alternativa. Por muito próximo que alguém se encontre da
opinio, a "opinião vulgar': proclama naturalmente a sua condição ideal de sábio, ainda que seja ínfima a diferença
escala de valores. Ao filósofo cabe distinguir em que medida que o separa de tal condição, esse alguém entrará necessa-

XXXVIII XXXIX
riamente no grupo dos "estultos': dos "insipientes". Este admite gradações en't,re estes dois extremos. Um homem
rigorismo faz obrigatoriamente com que o sábio estóico pode não ser absolutamente "bom': "sábio" (e Séneca afirma
seja uma espécie de Übermensch, um tipo puramente idea4 que esse ideal apenas muito raramente tem sido atingido
ou pelo menos tão raro como a fénix. É o infinito mate- na vida rea4 embora haja alguns exemplos, como Sócrates
mático, um limite para que se pode tender mas que neces- ou Catão), mas, embora permanecendo "insipiente", pode,
sariamente nunca será atingível. Ocorre pensar-se que o no entanto tender para a "bondade". Por outras palavras,
estoicismo seja uma filosofia verdadeiramente desumana, enquanto as categorias de "bom" e de "mau" são absolu-
na medida em que propõe como ideal atingir uma meta tas, imutáveis, polarmente opostas, o homem tem a pos-
por definição inatingível! sibilidade de, usando a razão, procurar aproximar-se do
Conscientes da validade desta crítica, pensadores como tipo ideal do sábio. Uma primeira etapa consistirá no
Panécio ou Posidónio procuraram, por assim dizer, "huma- reconhecimento de que apenas os valores estabelecidos pela
nizar" o retrato ideal do sábio, pondo-o ao alcance, senão filosofia são efectivamente valores admissíveis e na rejei-
de qualquer um, pelo menos de uma boa percentagem de ção dos valores propostos pela communis opinio. Em seguida
homens medianamente dotados. Para tanto, abandonaram procurará tanto quanto possível pôr em prática na sua
o rigor da distinção entre o bem e o ma4 incluindo entre acção esses valores e assim ir-se gradualmente aproximando
os bens muitas coisas que para os estóicos antigos (e, do modelo ideal. Um "não sábio" pode progredir na via
como veremos, para Séneca) entravam, se tanto, na cate- da sapiência, partindo de inícios modestos poderá alcançar
goria dos indiferentes. Assim, por exemplo, Posidónio con- um ponto em que, continuando embora "não sábio", será
siderava digno do nome de sábio um homem cujo saber irreversível a marcha. Para Séneca, portanto, a condição de
fosse essencialmente de cariz tecnológico ou julgava como sábio não se atinge instantaneamente, num momento, diga-
boa uma ocupação intelectual que não visasse expressa- mos, de "iluminação': mas implica uma continuidade de
mente a formação mora4 como a matemática (o que Séneca esforço, uma aplicação incessante e, sobretudo, um férreo
lhe criticou asperamente). Tal crítica por parte de Séneca exercício da "vontade".
constitui, por um lado o retorno a uma certa ortodoxia, a Estamos perante um ponto em que, mais do que em
um certo rigorismo extremo do estoicismo antigo miti- nenhum outro, Séneca se mostra um pensador tipicamente
gado pelos estóicos "médios': mas por outro lado revela-se romano e profundamente original. Ocasionalmente aponta-
igualmente como um aperfeiçoamento da posição da antiga -se o conceito grego de Oiávow como possível modelo
Stoa, tornando-a mais humana, sem, no entanto, lhe dimi- para o conceito romano (e senequiano) de uoluntas ("von-
nuir o rigor. tade"). Uma diferença considerável existe, todavia. Enquanto
Como os antigos, Séneca é definitivo: todo o homem para o grego o conceito é puramente intelectua4 o mesmo
ou é "bom" ou é "mau"; estes dois termos determinam não se verifica no caso dos pensadores romanos. Isto é, o
duas categorias absolutas, que, por serem absolutas, se podem pensamento grego concebe o querer como consequência
ter como limites. Mas, ao contrário dos antigos, Séneca inevitável do conhecer: para Platão, todo o mal é resul-

XL XLI
tado da ignorância; quem conhece o bem tem, por força um sábio; com perfeito sentido das próprias limitações,
de praticá-lo. Para os romanos tal concepção é inexacta: é sempre capaz de autocrítica, o filósofo exerce a sua medi-
perfeitamente possível saber teoricamente o que é o bem tação e pratica a filosofia tanto para ajudar os outros
e, apesar disso, continuar a praticar o mal, como faz a quanto para se ajudar a si mesmo. Comprazem-se muitos
ovidiana Medeia do célebre passo atrás citado. O impor- biógrafos de Séneca ou historiadores da filosofia em assi-
tante, portanto, é conseguir a adequação entre o bem que nalar a discrepância entre a nobreza da moral de/endida
se conhece e o bem que se quer praticar. por Séneca nos seus escritos e certas fraquezas condená-
Nas suas meditações sobre a vontade está o ponto veis da sua conduta pessoal: pode dizer-se que é tinta
culminante da obra de Séneca. A mera consideração teó- gasta em má causa, pois, melhor do que ninguém, Séneca
rica da dicotomia bem/mal, sábio/não sábio de modo algum estava ciente de tal discrepância. Toda a sua vida foi uma
o satizfaz. Sempre apegado ao concreto, sempre tendo em luta constante no sentido de colmatar esse fosso, e não
vista a função eminentemente prática da filosofia, Séneca será inexacto dizer que nos últimos anos da sua vida,
situa-se preferencialmente na análise do domínio dos indi- nomeadamente no período em que redigia as cartas a
ferentes, pois apenas aqui se torna possível ao homem Lucílio, Séneca saíu vencedor dessa luta. Somente a morte
exercitar a razão e pôr em acção a vontade. O homem permite fazer um balanço correcto do que valeu a vida de
absolutamente mau, tal como o homem absolutamente bom um homem. Como afirma o Pe. Manuel Antunes, Séneca
(o sábio) situam-se em planos que não admitem mudança. "graças aos seus mestres do Pórtico e graças aos seus
O homem absolutamente mau assemelha-se a um doente também mestres do Jardim, graças à sua intuição e graças
atingido por uma doença incurável perante a qual toda a ao seu longo e lento exercício meditativo, (... ) foi trans-
medicina é impotente; o homem absolutamente bom assemelha- formando o pessimismo em optimismo, o trágico em liber-
-se a um deus que não carece por definição de quaisquer dade e a inquietude em serenidade". E não é, afinal, a
cuidados médicos. É, consequentemente, o homem vulgar, obtenção da serenidade - a tranquillitas animi - o fim
situado entre os dois extremos, aquele a quem pode apro- último da sabedoria?
veitar o exercício da filosofia, é a esse homem que o filó- Toda a vida não é mais do que uma preparação para
sofo deve dedicar a sua atenção e ministrar os seus ensi- a morte, já o asseveravam os Gregos, nomeadamente Sócra-
namentos. Nalguns casos favoráveis (e podemos supor que tes. A consideração da morte, meta inevitável e universal,
tal teria sido o caso de Séneca em relação a Lucílio) o é uma preocupação constante para Séneca. Continuamente
filósofo logrará conseguir que o seu discípulo, embora não ecoa nas cartas o apelo à meditatio mortis, não como
tendo atingido o grau de sábio, pelo menos tenha progre- exercício mórbido e quase masoquista impeditivo da ale-
dido o suficiente para se ter a certeza de que não retrocederá. gria de viver, mas precisamente como forma de permitir
Assim agiu Séneca em relação a Lucílio, e certamente a distinção entre o que é valor e o que o não é e de
também em relação a outros discípulos; mais, assim agiu lograr uma alegria de vida feita de serenidade, nos antí-
ele em relação a si próprio. Nunca Séneca se considerou podas das meras satisfações materiais.. A alegria (gaudium)

XLII XLIII
não se confunde com o prazer (uoluptas); a alegria é um oriundos de filósofos de tendências tão opostas como os
estado interior que nada tem a ver com os falsos "bens" estóicos e os epicuristas. A confirmar a justeza aparente
em que a sociedade - communis opinio - se reconhece. desta visão está a possibilidade de detectar e isolar os
A meditação sobre a morte mais não é do que o instru- elementos provenientes do estoicismo daqueles que são
mento que permite ao homem a transformação da uolup- oriundos de outras tendências ou deste ou daquele pensa-
tas em gaudium. Essa transformação conseguiu-a Séneca dor individual.
no termo da vida: ele próprio seria o primeiro a reconhe- Em contraste com este dado factual deparamos com a
cer que, se em vários períodos da sua existência viveu ocorrência frequente nos texto de Séneca de passos em
mal, soube pelo menos, no momento decisivo, morrer que ele reivindica a sua originalidade, nega todas as ten-
bem. Tal resultado ficou a devê-lo exclusivamente à nunca dências dogmáticas, rejeita Zenão e aproxima-se de Epi-
interrupta prática da filosofia, ao exercício quotidiano da curo, insere uma ideia de Platão num desenvolvimento de
meditação, e acima de tudo à afirmação categórica da vontade. base estóica, critica, às vezes asperamente, as vozes mais
Uma análise de referência positivista não deixará de autorizadas da Escola, em suma, recusa todo o argumento
investigar até que ponto o pensamento de Séneca se reveste derivado da autoridade e reclama o direito de pensar pela
de originalidade, tanto mais que ele é confessadamente própria cabeça. Como conciliar então estes dois dados ins-
adepto de uma filosofia que já encontrou formada, e não critos ambos nos textos?
criador de qualquer novo sistema. Tudo depende afinal do que se entender por originali-
Quais as "fontes" utilizadas por Séneca nos seus escri- dade. Se por tal considerarmos a criação ex nihilo de
tos, e nomeadamente nas Epistulae? A lista dos autores todos os elementos do seu pensamento é evidente ao mais
referidos no texto é considerável (e certamente não com- leigo que a filosofia de Séneca não é original. Mas se,
porta a totalidade dos que Séneca conheceu), desde filóso- olhando o problema por outro prisma, tendermos a bus-
fos a poetas e oradores das mais variadas tendências. Se car a originalidade no modo particular como o filósofo
nos fixarmos apenas na lista dos filósofos, nela encontra- vive o seu pensamento a questão revestirá um aspecto
mos os antigos mestres do Pórtico (Zenão, Cleantes, Cri- diferente. Adaptando esta óptica verifica-se infrutuoso todo
sipo ), os pensadores do estoicismo "médio" (Panécio e o estudo que se faça das fontes de Séneca, pois a vivência
Posidónio ), vários outros adeptos da Stoa, Sócrates, Platão pessoal da sua filosofia é, por definição, algo que se encontra
e Aristóteles, mestres não identificados individualmente mas na vida do próprio filósofo, nas relações que ao longo dos
apenas pelo nome da escola (cínicos, cirenaicos, peripatéti- anos foi mantendo com ela, no modo como esta, em cada
cos), pensadores romanos (Cícero, os Sêxtios), os mestres momento da sua existência, determinou a sua acção e deu
da juventude de Séneca (Papírio Fabiano, Demétrio), e forma às suas atitudes. Afirma I. Hadot que a indepen-
não fica esgotado o elenco. Daqui pensar-se que a filosofia dência tão frequentemente reivindicada por Séneca deve
de Séneca não passa de uma espécie de "mosaico': de um ser encarada mais como expressão de uma disposição inte-
eclectismo mal assimilado em que coabitam pensamentos rior do que como originalidade filosófica propriamente dita.

XLIV XLV
Cremos ser exaçta esta afirmação. A independência de obriga à contínua meditatio mortis, porquanto num mundo
Séneca é, de facto, interior, resultante da interacção entre feito de convenções e constrangimentos de toda a ordem
a vida e o pensamento, é uma conquista gradual que só a morte surge como a única forma possível de assegurar a
no momento de escolher a morte se revelou em toda a liberdade. É de notar, quanto a este ponto, a abundância
sua amplitude; mais do que naquilo que pensou, está na de textos em que Séneca fala sobre o suicídio e a defesa
forma como o pensou. que faz, sob certas condições, desta forma de abandonar a
Não quer isto dizer que seja totalmente impossível existência. Séneca é, em certa medida, um apologista do
reconhecer elementos de originalidade, no sentido tradi- suicídio, até porque é talvez a única situação em que o
cional, na obra da Séneca, em especial nas Epistulae. homem se pode mostrar total e absolutamente livre. Como
Na base de todo o pensamento senequiano está a ele diz numa das Epistulae, nenhum homem é livre de
delimitação rigorosa do bem e do mal que, para o filósofo, escolher o momento de nascer, mas cada um tem a liber-
se situa unicamente na esfera da moral. Daqui decorre dade de escolher o momento em que quer morrer. No
tudo o que ele exprime sobre o valor da actividade inte- entanto não defende o suicídio em quaisquer circunstân-
lectual, sobre a investigação científica, sobre o progresso cias, mas exclusivamente quando o continuar vivo só é
tecnológico. Nestes pontos Séneca é do mais extremo rigor: possível com o abandono do bem moral. Por isso Séneca
o progresso tecnológico não é realmente progresso, por- só aceita o suicídio, por exemplo no caso de uma doença
quanto situado na esfera material, e toda a forma de pro- incurável, se a doença é de molde a obnubilar a razão,
gresso material é estritamente independente do progresso mas já não o aceita se o objectivo for unicamente o de
moral, o único a merecer este nome; a investigação cientí- evitar a dor física. Mas fundamentalmente Séneca de/ende
fica não deve visar qualquer forma de domínio sobre a a morte voluntária quando as condições exteriores, nomea-
natureza, mas tão só um cada vez maior conhecimento da damente as condições de ordem -política, tornarem impos-
mesma que permita uma também cada vez maior integra- sível a vida com dignidade, isto é, conduzida em estrita
ção nela do homem, e quanto às diversas formas de acti- obediência aos valores morais.
vidade intelectual só possuem sentido se, de alguma maneira, E já que falámos de política, impõe-se assinalar, como
tenderem para o aperfeiçoamento moral e não apenas traço original de Séneca, a importância que no seu pen-
para a acumulação de conhecimentos estéreis. samento reveste esta área da actividade humana. Uma
O fim último, portanto, de todo o pensamento é a precisão neste capítulo é tanto mais necessária quanto nas
obtenção daquela serenidade de espírito, daquela tranquilli- cartas que dirige a Lucílio, Séneca está constantemente a
tas animi que permite ao homem a independência em negar o valor da acção política e a aconselhar o amigo a
relação quer aos constrangimentos sociais, quer às obriga- renunciar à carreira. Na realidade os mestres antigos do
ções políticas, quer à tirania da communis opinio, quer Pórtico de/endiam a participação do homem, e nomeada-
ainda à obediência acrítica aos dogmas da própria escola mente do filósofo, na vida da cidade, conquanto se não
filosófica. Em última análise a busca da independência saiba que algum deles tenha pessoalmente desempenhado

XLVI 4 XLVII
funções políticas. Séneca, porém, levou a sério a injunção mam as posições de Séneca de algumas formas do pensa-
dos antigos mestres e quer pela escrita quer pela acção foi mento oriental e mesmo da de certos místicos. De entre
um participante activo da política romana. Textos como o elas salientamos a forte disciplina física que Séneca defende
Da cólera ou o Da clemência, até mesmo a Consolação a (e obviamente pratica), e que se evidencia pela recusa das
Políbio ou a Sátira à morte de Cláudio têm, entre outras, "comodidades da civilização" ou dos requintes gastronómi-
uma forte motivação de ordem política. Quando, após a cos. Não se trata de qualquer tipo de "mortificação da
morte de Cláudio e o acesso de Nero ao poder, Séneca carne" como forma de expiação de pecados (a noção de
orientou a política romana a título de conselheiro do jovem "pecado" em sentido cristão não existe para Séneca), mas
imperador, fé-lo porque pensou ter nas mãos uma opor- de uma forma de exercício da vontade e de uma necessi-
tunidade única de agir, através da política, sobre a vida dade de libertar o espírito e torná-lo mais ágil e robusto.
moral de Roma. Só que as realidades do poder e o idea- Aliada à concomitante prática da meditação, a austeridade
lismo da filosofia uma vez mais se mostraram inconciliá- física lembra-nos (embora seja difícil determinar se esta-
veis, e o resultado foi Séneca ter de acabar por afastar-se mos perante um caso de influência ou de simples coinci-
do exercício de um poder que cada vez mais lhe escapava. dência de propósitos) das técnicas indianas do yoga.
Daí que ele tenha afirmado no seu breve escrito Sobre o Também merece realce, na sequência de um ponto já
ócio, em resposta precisamente a uma objecção de Lucílio atrás aflorado (a comparação entre o filósofo e o médico),
que estranhava ver Séneca, contrariamente aos princípios a preocupação manifestada por Séneca pela análise da rea-
da Escola, defender o afastamento do sábio da vida pública: lidade psicológica dos seus "pacientes': não, insistimos, uma
o sábio só deve participar na vida política se o puder análise de tipo meramente científico, mas antes de carác-
fazer dentro da maior dignidade e se a sua acção tiver ter terapêutico: o filósofo interessa-se pelos mecanismos
hipóteses de ser benéfica para a comunidade; se, pelo con- que ditam o comportamento, por exemplo de Lucílio, para
trário, as condições forem tais que o sábio só possa estar pela sua análise ser capaz de detectar a "doença" e propor
na política com o abandono da moral, então deverá retirar- a aplicação de um "tratamento". Será arriscado ver assim
-se. Tais condições impuseram o afastamento de Séneca, e em Séneca um precursor da psicanálise?
constituíram o cenário em que escreveu as Epistulae morales Finalmente refiramos o que Séneca pensa sobre o pro-
ad Lucilium. Não há, pois, contradição, apenas a necessi- blema da acção. Por tudo quanto ficou dito já se viu que
dade de salvaguardar a independência e a dignidade moral Séneca nega qualquer valor à acção em si mesma. O valor
ameaçadas. da acção radica no seu fundamento ético: fazer um benefí-
Mas o traço mais original do pensamento senequiano, cio, orientar, ensinar, meditar, praticar austeridades físicas,
como já temos dito, está na insistência em que a filosofia só vale se praticado com um propósito moral. Viver com
é para ser vivida e nunca se deve limitar a uma acumula- austeridade apenas para grangear fama de filósofo na socie-
ção de conhecimentos desprovidos de valor moral. A vivên- f
dade é por completo condenável. Séneca apenas propugna
cia da filosofia implica uma série de técnicas que aproxi- a acção quando ela é o resultado de um compromisso

XLVIII XLIX
ético. Isto significa que importa distinguir no pensamento
senequiano o que seja acção, não-acção e inacção. Sobre-
tudo não se caia na tentação de confundir não-acção (otium)
com inacção. No que toca às duas últimas categorias, enquanto
não-acção significa renúncia à acção como valor, capaz de
se sobrepor a considerações de ordem moral, inacção não BIBLIOGRAFIA
passa de preguiça quer física quer intelectual e egoísmo
as.sente no _mais crasso materialismo. Para o filósofo a
primeira transparece no otium que pode ser altamente
benéfico, mesmo para a sociedade; a segunda é por com-
pleto estéril. Como diz o filósofo chinês Lao Tse, "do não
agir é que resulta toda a acção': enquanto da acção enten- TEXTO
dida como valor em si somente decorre a confusão, o caos
e a perversão dos valores. A edição que nos serviu de base para a nossa tradução
foi a de Reynolds :
L. Annaei Senacae ad Lucilium Epistulae Morales
recognouit et adnotatione critica instruxit L. D. Reynolds
(Oxford Classical Texts), Oxford University Press 1965.
Muito raramente, num· ou noutro passo devidamente
identificado nas notas, seguimos o texto da Colection des
Universités de France: Séneque, Lettres à Lucilius, texte
• ! \
établi par François Préchac et traduit par Henri Noblot,
Paris, Société d'Édition Les Belles Lettres, 1945-1964 (reim-
pressões várias), ou de algum outro editor citado no apa-
rato crítico da edição Reynolds.

ESTUDOS
A bibliografia sobre o esto1c1smo em geral e sobre
Séneca em particular é extremamente vasta, e não cessa
de crescer. Cada ano assiste ao aparecimento de algumas
largas dezenas de títulos, variamente importantes, quer
sob a forma de livros ou de artigos de revistas e enciclo-

L LI
pédias. Seria manifestamente impossível e excessivo sobre- in A. N. R. W. [=Aufstieg und Nierdergang der romis-
carregar esta tradução das Cartas a Lucílio com uma biblio- chen Welt], I, 4, pp. 3-42.
grafia, já não dizemos exaustiva, pois para tanto seria Sobre a obra de Séneca em geral, vista em correlação
necessário um volume de proporções idênticas às do texto, com a sua biografia, pode ler-se o livro de Marc Rozelaar ,
mas pelo menos razoavelmente completa. O leitor even- Seneca, Eine Gesamtdarstellung, Amsterdam, Hakkert, 1976
tualmente interessado encontrará nos volumes de L'Année e a obra de Pierre Grimal Séneque ou la conscience de
Philologique toda a informação pertinente. Acresce que l'empire, Paris, Les Belles Lettres, 1978; excelente visão de
muitas das obras abaixo enumeradas são acompanhadas de conjunto, embora por vezes de/endendo posições algo polé-
amplas e criteriosamente escolhidas listas de obras a con- micas (por exemplo ao considerar a correspondência entre
sultar. Limitamo-nos por isso a sugerir alguns textos par- Séneca e Lucílio como uma mera ficção literária), o estudo
ticularmente relevantes. de Karlhans Abel Seneca. Leben und Leistung" in A. N.
11

Sobre o estoicismo em geral são imprescindíveis: a R. W., II, 32.2, [Berlin, de Gruyter, 1985] pp. 653-775
colectânea dos fragmentos dos antigos Mestres: Stoicorum (importante bibliografia). Embora já antigo, é, no entanto,
Veterum Fragmenta preparada por Hans von Arnim ainda estimulante pela novidade das suas posições o artigo
[Stuttgart, B. G. Teubner, 1965 (repr.)], que citamos pela 11
do historiador Arnaldo Momigliano Seneca between poli-
sigla S. V. F. seguida do número do volume em algaris-
tical and contemplative life" (conferência realizada em 1950
mos romanos e do número do fragmento em algarismos
árabes; e o estudo, ainda hoje a mais completa obra de mas só publicada no volume de ensaios Quarto contributo
conjunto sobre esta corrente filosófica, de Max Pohlenz alla storia degli studi classici e del mondo antico, Roma,
DIE STOA - Geschichte einer geistigen Bewegung, Got- 1969, pp. 239-256).
tingen, Vandenhoeck & Ruprecht, 1970 [4.ª repr.] Sobre Séneca filósofo, além dos capítulos pertinentes
Úteis ainda os volumes de F. H. Sandbach The Stoics, das obras citadas, podem ler-se:
London, Chatto & Windus, 1975; de Ludwig Edelstein Pierre Grimal, Séneque, sa vie, son oeuvre avec un
The Meaning of Stoicism, Cambridge, Mass., Harvard exposé de sa philosophie, Paris, P. V. F., 1966 (3.ª ed.);
Vniversity Press, 1966 [repr. 1968),' de ]. M. Rist Stoic Estudios sobre Séneca - ponencias e comunicaciones,
Philosophy, Cambridge, at the University Press, 1969; a Octava semana espanola de filosofia, Madrid, C. S. I. C., 1966;
colectânea de artigos de vários especialistas sobre pontos Gregor Maurach (ed.), Seneca als Philosoph, Darms-
diversos da filosofia estóica organizada pelo mesmo ]. M, tàdt, Wissenschaftliche Buchgesellschaft, 1975; o volume
Rist The Stoics, Berkeley and Los Angeles, University of
paralelo Senecas Tragodien [ibid. 1972], editado por Eckard
California Press, 1978; de A . A . Long Hellenistic Philo-
Lefevre, contém alguns artigos dedicados aos aspectos filo-
sophy - Stoics, Epicureans, Sceptics, London, Duckworth,
[1974]. Sobre os problemas decorrentes da introdução e sóficos das tragédias senequianas.
adaptação do estoicismo em Roma veja-se o artigo de Em português, é merecedor de uma leitura o ensaio,
Gérard Verbeke "Le stoicisme, une philosophie sans frontieres" pequeno em tamanho, mas estimulante pela reflexão, do

UI LIII
Padre Manuel Antunes "Séneca, filósofo da condição
humana", in Grandes contemporâneos, Lisboa, Verbo,
[1973], pp. 11 -20.
Sobre a incidência política do pensamento senequiano
merece uma leitura a tese de Fernando Prieto El pensa-
miento político de Séneca, Madrid, Revista de Occidente, LIVRO I
1977.
Finalmente recomendamos a leitura de uma obra de (Cartas 1-12)
Ilsetraut Hadot, Seneca und die griechisch-romische Tradi-
tion der Seelenleitung, Berlin, de Gruyter, 1969, indispen-
sáv~l para entender os objectivos de Séneca como filósofo 1
não meramente teórico, mas antes como pedagogo, como Procede deste modo, caro Lucílio: reclama o direito de 1
maitre à penser, ou ainda, conforme alguém já lhe cha- dispores de ti, concentra e aproveita todo o tempo que até
mou, director de consciência, bem como para compreender
agora te era roubado, te era subtraído, que te fugia das
a razão de ser de certas aparentes contradições no pensa-
mãos. Convence-te de que as coisas são tal como as des-
mento do filósofo e para avaliar na sua justa medida o
crevo : uma parte do tempo é-nos tomada, outra parte vai-
carácter da sua originalidade e importância.
-se sem darmos por isso, outra deixamo-la escapar. Mas o
pior de tudo é o tempo desperdiçado por negligência. Se
bem reparares, durante grande parte da vida agimos mal,
durante a maior parte não agimos nada, durante toda a
vida agimos inutilmente. ,
1
Podes indicar-me alguém que dê o justo valor ao tempo 2
(
\ aproveite bem o seu dia e pense que diariamente morre '
~ um pouco? É um erro imaginar que a morte está à nossa
~ frente : grande parte dela já pertence ao passado, toda a
1
l nossa vida pretérita é já do domínio da morte!
'. Procede, portanto, caro Lucílio, conforme dizes: preen-
!1 che todas as tuas horas! Se tomares nas mãos o dia de
! ho!e conseguirás .depender m~nos ?º dia de amanhã. De Í'
1 adiamento em adiamento, a vida vai-se passando. 1
/

\ Nada nos pertence, Lucílio, só o tempo é mesmo nossa. 3


A natureza concedeu-nos a posse desta coisa transitória e

uv 1
evanescente da qual quem quer que seja nos pode expul- 2
sar. É tão grande a insensatez dos homens que aceitam
Tanto aquilo que me escreves como o que oiço dizer 1
prestar contas de tudo quanto - mau grado o seu valor
mínimo, ou nulo, e pelo menos certamente recuperável - de ti fazem-me ter boas esperanças a teu respeito: não
lhes é emprestado, mas ninguém se julga na obrigação de viajas continuamente nem te deixas agitar por constantes
justificar o tempo que recebeu, apesar de este ser o único deslocações. Um semelhante deambular é indício duma
bem que, por maior que seja a nossa gratidão, nunca alma doente: eu, de facto,[ entendo que o primeiro sinal '
podemos restituir. de um espírito .. bem formado con_§,iste em ser capaz de
4 Talvez te apeteça perguntar como procedo eu, que te parar e de ~~hlt~~--~~Psig~-~~sm~~Aroma, porém, atenção, 2
dou todos estes preceitos. Dir-te-ei com franqueza: como não vá essa 'ru; l~iw~~~Iê· ·};;Ó;;;~;o; autores e de volumes
alguém que vive bem, mas sem esbanjamento. Tenho as de toda a espécie arrastar algo de indecisão e de instabili-
minhas contas em dia! Não te posso dizer que nunca dade. Importa que te fixes em determinados pensadores,
perco tempo, mas sei dizer-te quanto, porquê e de que que te nutras das suas ideias, se na verdade queres que
modo o perco. Posso prestar contas da minha pobreza. A
alguma coisa permaneça definitivamente no teu espírito.
mim, porém, sucede-me o mesmo que a muitos que, sem
Estar em todo o lado é o mesmo que não estar em parte
culpa própria, ficaram reduzidos à miséria: todos perdoam,
alguma! Ora a quem passa a vida em viagens acontece ter
mas ninguém ajuda.
5 Que mais há a dizer? Não considero pobre aquele a muitos conhecimentos fortuitos, mas nenhum amigo ver-
quem basta o poucochinho que tem. Prefiro, contudo, que dadeiro; o mesmo sucede logicamente àqueles que não se
tu preserves os teus bens e que o comeces a fazer quanto aplicam intimamente ao estudo de um pensador, mas sim
antes. Conforme diziam os nossos maiores, "já vem tarde percorrem todos de passagem·· e a correr. Um alimento 3
a poupança quando o vinho está no fundo." 1 É que o que que mal é ingerido imediatamente é "devolvido'', não
fica no fundo, além de ser muito pouco, são apenas as aproveita nem dá força ao corpo; igualmente .nada preju-
borras! dica tanto a saúde como a frequente mudança de medica-
mentos; uma ferida não cicatriza quando se lhe aplicam
Adeus 2 tentativamente diversos remédios; uma planta nunca se
robustece se continuamente a mudamos de lugar; nada
enfim, por muito útil, conserva a utilidade em contínua
mudança. Demasiada abundância de livros é fonte de dis-
' Tradução quase literal de Hesíodo, Op., 369: éitt>.T, li'ev 7rvl!µév1 cjmliw.
' Todas as cartas terminam com a fórmula de saudação Vale (lit. "passa
persão; assim, como não poderás ler tudo quanto possuis,
bem!") "Adeus!". Dada esta indicação, dispensámo-nos de aqui em diante de
contenta-te em possuir apenas o que possas ler. Dirás tu: 4
repetir o "adeus" no termo de cada carta. "Mas sinto vontade de folhear ora este livro, ora aquele."

2 3
Provar muita coisa é sintoma de estômago embotado; carta deste-lhe e recusaste-lhe o título de "amigo". Ora
quando são muitos e variados os pratos, só fazem mal em bem: se tu usaste esta palavra não no seu verdadeiro sen-
vez de alimentar. Lê, portanto, constantemente autores de tido mas antes em sentido genérico, e lhe chamaste "amigo"
confiança e quando seruires vontade de passar a outros, tal como a todos os candidatos nós chamamos "respeitá-
t
regressa aos primeiros. .._Reflecte. todos os dias em qualquer ··' veis cidadãos'', ou como às pessoas que encontramos e
texto que te auxilie a encarar a indigência, a morte, ou ! cujo nome nos não ocorre, cumprimentamos como "senhor
fulano" ainda é aceitável; se consideras, porém, "amigo"
2
qualquer outra calamidade; quando tiveres percorrido diver- (
alguém em quem não confias tanto como em ti próprio,
sos textos, escolhe um passo que alimente a tua meditação ',
então cometes um erro grave e mostras não conhecer
5 durante o d~É isso o que eu mesmo faço : de muita / bem o significado da verdadeira amizade.
coisa que li retenho uma _,.c;erta máxima. A minha máxima Delibera em comum com o teu amigo mas começa
de hoje encontrei-a em(~picii~o )(é um hábito percorrer os por formular sobre ele um juízo correcto: após o início da
acampamentos alheios, não- cô.mo desertor, mas sim como amizade, há que ter confiança. Antes, sim, é que se deve
batedor!). Diz ele: "É um bem desejável conservar a ale- ajuizar. Confundem as obrigações inerentes a este princí-
6 gria em plena pobreza" 3• E com razão, pois se há alegria pio aqueles que, ao contrário dos ensinamentos de Teo-
não pode haver pobreza: não é pobre quem tem pouco, frasto,4 formulam juízos depois de iniciada a amizade, e
mas sim quem deseja mais. Que importa o que temos no não estabelecem relações de amizade depois de formula-
cofre, ou nos celeiros, quantas cabeças de gado ou quanto rem juízos. Pensa longamente se alguém é digno de que o
capital a juros, se fizermos as contas não ao que possuí- incluas no número dos teus amigos; quando decidires incluí-
-lo, então recebe-o de coração aberto e fala com ele com
mos, mas ao que queremos possuir? Queres saber qual a
tanto à-vontade como contigo próprio.
justa medida das riquezas? Primeiro: aquilo que é neces-
Pelo teu lado, vive de tal maneira que não tenhas de 3
sário; segundo: aquilo que é suficiente! confiar a ti mesmo nada que não pudesses confiar até a
um inimigo pessoal; como, todavia, há certas coisas que,
3 por hábito, são consideradas íntimas, compartilha com o
teu amigo todos os teus cuidados, todos os teus pensa-
1 Dizes-me que entregaste a carta a um amigo teu, para mentos. Se o considerares um amigo leal, é isso o que
me trazer, mas em seguida aconselhas-me a não trocar farás. Pessoas há que, no terror de serem enganadas, como
impressões com ele sobre quanto te diz respeito, pois que ensinaram os outros a enganá-las e pelas suas suspei-
nem tu próprio o costumas fazer. Quer dizer, na mesma tas justificaram as faltas dos outros. Que motivo pode

3 4
Epicuro, fr. 475 Usener. Teofrasto, fr. 74 Wimmer.

4 5
levar-me a medir as minhas palavras diante de um amigo? 4
Que motivo pode levar-me a não me considerar diante Prossegue a vida que encetaste, apressa-te quanto pude- 1
4 dele como se estivesse sozinho? Há quem conte ao pri~ res, para mais tempo te ser dado usufruir de um espírito
meiro passante aquilo que apenas se deve confiar aos correcto e equilibrado. Mesmo enquanto o corriges e equi-
amigos, e confie aos ouvidos de qualquer um o segredo libras podes ir usufruindo dele; a contemplação de uma
que o consome; a outros, pelo contrário, repugna dar alma livre de toda a mácula e resplandecente, todavia, é
conhecimento ainda aos amigos mais íntimos e, se pudes- um prazer de natureza bem superior!
sem, não confiando sequer em si mesmos, interiorizariam Ainda te lembras, certamente, da alegria que sentiste 2
tanto quanto possível todo o segredo. Não devemos fazer quando, despindo a toga pretexta, vestiste a toga viril 6 e
uma coisa nem outra; qualquer delas - ou confiar em fizeste a tua entrada no foro. Prepara-te para uma alegria
todos ou não confiar em ninguém - é um erro; apenas ainda maior quando te despojares do espírito pueril e,
diria que a primeira é um erro mais honroso, e a segunda, graças à filosofia, entrares no círculo dos homens. Até
mais seguro. esse momento, perdura em nós, não naturalmente a infân-
5 Deste modo, são igualmente censuráveis quer os que cia, mas sim a mentalidade infantil, o que é muito pior. E
andam sempre inquietos quer os que vivem em perpétua pior ainda é que já temos a autoridade da velhice mas
calma. De facto, não é diligência o comprazimento com a mantemos vícios de crianças; não só de crianças, mas
confusão mas apenas correria de um espírito sobreexci- mesmo de recém-nascidos, pois as crianças temem coisas
tado; e não é calma a recusa de todo o movimento como sem importância e os recém-nascidos coisas inexistentes;
6 se fosse uma doença mas apenas indolência e moleza. Por nós, tememos umas e outras.
isso devemos conservar bem presente aquela descrição que Persevera, pois, e compreeqderás que há coisas que 3
encontrei na obra de Pompónio: "houve quem se refu- são tanto menos de temer quanto maior é o temor que
giasse na escuridão com a ideia de que tudo quanto está inspiram!
em plena luz é marcado pela confusão. " 5 Nenhum mal é verdadeiramente grande quando é o
Há que dosear as duas coisas: importa agir mesmo último. A morte aproxima-se de ti. Ela seria, de facto,
mantendo a calma, importa manter a calma mesmo quando temível se pudesse estar sempre contigo; na realidade,
se age. Confronta a tua atitude com a da natureza: esta te porém, a lei natural é que ela ou não te atinja ou te
dirá que criou igualmente o dia e a noite.

(~;A toga pretexta, decorada com uma banda de cor púrputa, era usada pelos
jovens até à idade de dezasseis anos, altura em que, reconbecida a sua maiori-
dade e capacidade de aceder aos direitos plenos de cidadão, passavam a usar a
5
Cf. Ribbeck 3, Com. Rom. Frag. p. 307 (Pompónio Bononiense); para toga viril, inteiramente branca. A substituição, portanto, da toga pretexta pela
outros (por ex. Fickert) o fr. será de atribuir a Pompónio Segundo. toga viril é um indício de matutidade.

6 7
4 ultrapasse. "É difícil" - dirás - "levar o espírito a con- passara sem perigo. Pensa que um ladrão, um inimigo, 8
seguir desprezar a vida." Mas tu não vês como, continua- pode enterrar-te uma adaga na garganta; e se alguém
mente, ela é desprezada por motivos fúteis? É um que se mais poderoso o não fizer, qualquer escravo terá sobre ti
enforca diante da porta da amante, é um servo que se atira poder de vida ou de morte. Podes estar certo disto: quem
do telliado abaixo para deixar de aturar os rallios do senhor, despreza a própria vida é absoluto senhor da tua! Passa
é um escravo fugitivo que, para não ser recapturado, se em revista os casos dos que morreram às mãos dos seus
trespassa com um punhal! Pois bem, achas que a virtude servos ou violentamente e às daras, ou através de algum
é incapaz de conseguir aquilo que um terror pânico con- ardil e verificarás que a ira dos escravos não fez menor
segue? Ninguém pode obter uma vida segura se conti- número de vítimas que a dos reis! Que te importa, por-
nuamente pensar em prolongá-la, se considerar entre os tanto, o poder daqueles que receias se qualquer um poderá
bens mais preciosos um grande número de anos. fazer aquilo mesmo que tu receias ? Se, porventura, caíres 9
5 Medita diariamente nisto, para seres capaz de abando- nas mãos do inimigo, o vencedor dar-te-á o destino que,
nar a vida com serenidade de espírito: muitos são os que afinal de contas, será sempre o teu! Porque te enganas a
se agarram a ela como pessoas arrastadas pela corrente, ti mesmo e só agora ~ dás conta daquilo que, desde sem- I
que jogam a mão aos cardos e aos rochedos!( Muitos há que,// pre, é o teu destino?l._fica certo: caminhas para a morte ;
andam miseravelmente à deriva entre o medo da mort~ desde que nasceste! Estas reflexões, ou outras similares, ,!(
e os toFmentos da vida, sem querer viver nem saber devemos ter sempre no espírito, se queremos aguardar --
,._r_norrer. } -----·- --- com serenidade aquela última hora, cujo temor enche todas
6 --5~--queres ter uma vida agradável deixa de preocupar- as outras de sobressalto.]
-te com ela! Nenhum objecto dá bem estar ao seu pos- Para finalizar esta carta, aqui te deixo uma max1ma 10
suidor senão quando este está preparado para ficar sem que li hoje, e que também ela.. foi colliida num jardim
ele; e nenhuma coisa mais facilmente podemos perder do allieio: "uma verdadeira riqueza é a pobreza conforme à
7 que aquela que é irrecuperável depois de perdida. Anima- lei natural." 7 Sabes quais os limites que a lei natural nos
-te, pois, e ganha coragem contra aquilo que é inevitável impõe? Não passar fome, nem sede, nem dor. Para evitar
mesmo aos mais poderosos) A vida de Pompeio veio a a fome e a sede não é necessário frequentar a casa dos
estar nas mãos de um pupilo e de um eunuco; a de grandes senhores, nem suportar o seu ar carrancudo, ou a
Crasso, nas do Parto cruel e orgullioso. Gaio César man- sua ofensiva bondade, não é preciso correr riscos no mar
dou o tribuno Dextra matar Lépido, e ele próprio veio a ou ir em expedições bélicas: aquilo de que a natureza
ser morto por Quérea. A ninguém a fortuna elevou a tal
ponto que se livrasse das ameaças que fazia impender
sobre os outros. Não confies na calmaria presente: o estado 7
Epicuro, fr. 477 Usener. A mesma máxima vem citada quase ipsis uerbis
do mar altera-se dum momento para o outro e no mesmo em 27, 9. Cf. ainda idêntica ideia, retomada com expressão também quase idên-
dia um barco pode naufragar lá mesmo onde há pouco tica, em 119, 7.

8 9
r--
11 necessita está perto, está à nossa mão] É o supérfluo que . ,,- ·-· A 'prkei-;; coisa que a filosofia nos garante é o senso · 4
nos faz envelhecer nos quartéis, que '-~os leva até terras .·: '. . comum, a humanidade, o espírito de comunidade, coisas
estranhas! O indispensável está ao nosso alcance. Aquele · ' · de cuja prática _nos afastará uma vida demasiado diferente. .
que sabe viver em paz com a pobreza, esse, é verdadei- Devemos.. precave~~ii.ós, não -vão os nossos . aêtos, que dese-
ramente rico. ''7 jamos merecedores de admiração, tornar-se antes ridículos
)
e odiosos.
/Õ nosso ob.jectivo é, primacialmente, viver de acordo
5
!ora
co~· a natureza. é antinatural torturar o próprio corpo,
repelir os cuid~dos elementares de higiene, procurar a
1 Estudas perseverantemente e deixando tudo o mais sujidade e tomar alimentos não apenas humildes mas
apenas te aplicas ao teu quotidiano aperfeiçoamento: apro- repugnantes, repelentes. Assim como é luxo e gula só 5
vo-te com satisfação, e não só te aconselho, como te peço desejar iguarias sofisticadas, assim também é loucura evitar
que continues assim. E mais te aconselho a que não proce- as habituais que se conseguem sem grande dispêndio. A
das como aqueles que mais pretendem dar nas vistas do filosofia exige frugalidade, não suplícios, e a frugalidade
que aperfeiçoar-se: evita tudo quanto se torna notado quer não necessita de ser desordenada. Há um meio termo que
2 na tua pessoa, quer no teu estilo de vida. O aspecto des- eu preconizo: que a nossa vida seja um equilíbrio entre o
cuidado, o cabelo por cortar, a barba por fazer, o ódio modo de vida superior e o vulgar; que todos olhem a
afectado ao dinheiro, a cama no chão, são formas defor- nossa vida como algo acima do normal, mas sem que
madas de ambição que tu deves recusar. O próprio nome sejamos uns estranhos para eles.
da filosofia, ainda que sem atitudes ostentatórias, já causa "Que dizes? Então nós havemos de fazer o mesmo 6
por si má vontade! O que seria, então, se nos começás- que os outros? Entre nós e éles não haverá diferença
semos a afastar dos comuns hábitos de vida. Sejamos no alguma?"
Íntimo absolutamente diferentes, embora na aparência A maior possível: a um · exame mais atento ver-se-á
3 vivamos como os demais. Não usemos togas esplendoro- como diferimos do vulgar e quem entrar na nossa casa
sas, nem tão pouco sórdidas; não tenhamos pratas cinze- admirar-nos-á mais a nós do que à nossa mobília. Um
ladas com incrustações de ouro maciço, nem tão pouco espírito superior é capaz de usar utensílios de barro como
consideremos sinal de frugalidade a ausência completa de se fossem de prata, mas não é inferior aquele que usa os
ouro e prata. Devemos agir de modo a que, em compara- de prata como se fossem de barro. Dá provas, contudo, de
ção com os outros, a nossa vida seja, não diametralmente um espírito imperfeito aquele que não sabe suportar a
oposta, mas sim melhor. De outro modo poremos em riqueza.
fuga e afastaremos de nós aqueles que desejamos corrigir, Mas quero partilhar contigo o pequeno lucro que tirei 7
acabaremos por conseguir que não nos imitem em nada do dia de hoje. Li no nosso Hecatão que pôr termo aos
por receio de nos deverem imitar em tudo. desejos é proveitoso como remédio aos nossos temores.

10 11
Diz ele: "deixarás de ter medo quando deixares de ter ciam ignorados: já é motivo para felicitar certos doentes o
esperança" 8• Perguntarás tu como é possível conciliar duas facto de eles próprios se reconhecerem doentes.
coisas tão diversas. Mas é assim mesmo, amigo Lucílio: Desejaria compartilhar contigo esta súbita mudança 2
embora pareçam dissociadas, elas estão interligadas. Assim operada em mim. Começaria então a ter uma mais segura
i
como uma mesma cadeia acorrenta o guarda e o prisio- " confiança na nossa amizade que nem a esperança, ou o
neiro, assim aquelas, embora parecendo dissemelhantes, medo, ou a busca da utilidade, pode quebrar, numa ami-
caminham lado a lado: à esperança segue-se sempre o zade daquelas com a qual, e pela qual, os homens podem
8 medo. Nem é de admirar que assim seja: ambos caracte- morrer. Posso citar-te muitos que, embora tendo amigos, 3
rizam um espírito hesitante, preocupado na expectativa do careceram de amizade: ora tal caso não pode dar-se quando
futuro. A causa principal de ambos é que não nos ligamos uma igual vontade de só desejar o bem liga dois espíritos
ao momento presente antes dirigimos o nosso pensamento em comunhão. E como não ser assim, se eles sabem que
para um momento distante e assim é que a capacidade de tudo é comum entre ambos e principalmente a adversidade?
prever, o melhor bem da condição humana, se vem a Tu não podes conceber de ·quanta importância se 4
9 transformar num mal. As feras fogem aos perigos que reveste para mim cada dia. "Compartilha comigo tudo
vêem mas assim que fugiram recobram a segurança. Nós cuja eficácia experimentaste" - dirás tu. Eu não desejo
tanto nos _torturamos com o futuro como com o passado. outra coisa senão transmitir-te toda a minha experiência:
Muitos dos nossos bens acabam por ser nocivos: a memó-
ria reactualiza a tortura do medo, a previsão antecipa-a;
(apr~nder dá-me sobretud? prazer porque m~ torna apto. ªl
J ensinar! E nada, por mwto elevado e proveitoso que se1a, i
apenas com o presente ninguém pode ser infeliz! 1 alguma vez me deleitará se guardar apenas para mim o j
i seu conhecimento. Se a sabedoria só me for concedida na ;
condição de a guardar para rriim, sem a compartilhar, ,;
6 então rejeitá-la-ei: nenhum bem há cuja posse não parti- ·
lhada dê satisfação.
1 Verifico, Lucílio, que não apenas me estou corrigindo, Vou, pois, enviar-te os livros que utilizei, é para não 5
antes me estou transfigurando. Não garanto, nem sequer perderes tempo à procura dos passos mais úteis, eu assinalá-
espero, que nada já reste em mim sem necessitar de -los-ei, de modo que encontres de imediato aqueles que
mudança! Como não hei-de eu ter ainda muito que deva me merecem aprovação e respeito.
ser refreado, ou diminuído, ou elevado? Mas já é uma Uma conversa de viva voz ser-te-á, contudo, mais útil
prova de que o espírito alcançou um degrau superior o do que um discurso escrito. Deves vir mesmo ver como
facto de reconhecer os defeitos que até então permane- as coisas se passam, primeiro porque geralmente se dá
mais crédito aos olhos do que aos ouvidos, segundo, por-
que , a_y!~~.t!av.§§ _qe, fÇp~l!:i_<?s__é ]<?Ega - -~t~~'is. A~~e~~lp- -
8
Hecarão, fr. 25 Fowler. plos -
é curta ....e -·eficaz.
-- _,,. .,- -
,,

12 13
f'- ·-
6 1Cleantes nunca teria revivificado o ensino de Zenão se longada enfermidade. É-nos prejudicial o convívio com muita 2
apenas fosse seu ouvinte; não, ele participou da vida do gente: não há ninguém que nos não pegue qualquer vício,
mestre, penetrou os seus segredos, observou até que ponto nos contagie, nos contamine sem nós darmos por isso.
ele vivia de acordo com a sua doutrina)>latão, Aristóteles, Por isso, quanto maior é a massa a que nos juntamos,
todos os filósofos que depois se cindÍtam em diversas tanto maior é o perigo. E nada há tão nocivo aos bons
escolas, aprenderam mais da vida que das palavras de costumes como ficar a assistir a algum espectáculo, pois é\
Sócrates. Não foi a escola, mas sim a convivência de Epi- pela via do prazer que os vícios se nos insinuam mais )
curo que fez de Metrodoro, de Hermarco, de Polieno, (. facilmente. I
grandes homens. E não quero a tua presença apenas para Que pensas tu que eu quero dizer? Que regresso mais 3
que tu aproveites, mas também para que me aproveites: avaro, mais ambicioso, mais propenso ao luxo? Mais do
ambos poderemos ser muito úteis um ao outro! que isso: venho mais cruel e mais desumano de ter estado
7 Por agora, como te devo o meu pequeno presente diá- em contacto com os homens. Fui casualmente assistir ao
rio, aqui tens uma máxima que hoje encontrei com prazer espectáculo do meio-dia, à ·espera de encontrar algo de
em Hecatão.9 "Queres saber o que lucrei hoje? Começei a ligeiro, de divertido, algo que descansasse os olhares dos
ser amigo de mim próprio." Muito lucrou, deste modo homens da vista do sangue humano. Foi o contrário que
nunca estará sozinho. Um tal amigo, fica sabendo, toda a encontrei : todas as lutas anteriormente realizadas foram
gente o pode ter! actos de misericórdia; a · esta hora, sem artifícios alguns, o
que há são puros homicídios. Os lutadores não têm pro-
tecção alguma; todo o seu corpo está patente aos golpes, e
7 · nenhum golpe é desferido em vão. Muitos espectadores 4

1 r Queres saber qual é a coisa que com maior empenho


deves evitar? A multidão! Ainda não estás em estado de
preferem isto aos combates entre pares de gladiadores
normais, e favoritos do público. E como não hão-de prefe-
rir? Não há elmo nem escudo que se oponha ao ferro do
frequentá-la em segurança. Eu confesso-te sem rodeios a adversário! Armas defensivas para quê? Técnica para quê?
minha própria fraqueza: nunca regresso com o mesmo Tudo isso só serve para retardar a morte. Atiram-se
carácter com que saí de casa; algo do que já pusera em homens aos leões e ursos de manhã, aos próprios espec-
ordem é alterado, algo do que já conseguira eliminar, tadores ao meio-dia! Os assassinos enfrentam aqueles que
1
regressa! p mesmo que sucede aos doentes que uma longa os hão-de assassinar, e cada vencedor é reservado para
debilidaáe' não deixa ir a parte .alguma sem recaída, nos morrer mais tarde. Para estes lutadores a única saída é a
acontece, a nós, cujo espírito se está refazendo de uma pro- morte. Matam-nos a ferro e fogo. É isto o que se passa
nos intervalos do circo. "Mas este homem cometeu um 5
crime, um homicídio". E então? Se ele matou alguém,
9 Hecatão, fr. 26 Fowler. mereceu o castigo por que está passando; mas tu, infeliz,

14 15
o que fizeste para merecer ver isto? "Mata, fere, queima! aqueles que tu possas tornar melhores. Há que usar _,.., de
Porque se lança ele tão debilmente contra o ferro do reciprocidade: enquanto se ensina aprende-se tambémj Por 9
adversário? Porque mata ele o outro com tão pouca reso- vão desejo de tornares conhecido o teu talento não ·'aeves
lução? Levem-nos ao combate à chicotada, recebam fron - misturar-te com o público a ponto de desejares fazer lei-
talmente os golpes um do outro com o peito descoberto!" turas ou participar em debates. Aconselhar-te-ia a fazê-lo
Interrompe-se o espectáculo: "enforquem alguns homens se tivesses mercadoria adequada a esta gente; mas entre
entretanto, para fazer qualquer coisa". Ora bem, não com- ela não há quem pudesse entender-te. É possível que casu-
preendeis que os maus exemplos redundam em prejuízo almente apareça um ou outro de cuja formação e educação
daqueles que os dão? Agradecei aos deuses imortais por te devas encarregar até o elevares ao teu nível./ "Mas
terdes de ensinar a crueldade a quem não a pode apren- então, em proveito de quem estudei eu?" Não tenhas
der por si. receio: se tiveres estudado em teu proveito não terás per-
6 Há que subtrair à influência do vulgo o ânimo fraco e dido o tempo/ ·
pouco firme na virtude: facilmente se passa para o lado E para que os meus estudos de hoje não tenham sido 10
do maior número. Sócrates, Catão, Lélio - uma multidão só em meu proveito, vou-te citar três pensamentos notá-
inteiramente antagónica poderia abalar o seu carácter. veis que encontrei, mais ou menos com o mesmo sentido.
Digo-te mais: mesmo nós 10 - e se nós nos esforçamos Um servirá para pagar o tributo desta carta, os outros
por robustecer o nosso carácter! - , nenhum de nós seria d~is recebe-os como adia~tamento.Wirma Demócrito: "um
capaz de fazer frente à avalanche dos vícios no meio de so homem vale para mim um pbt7ó, um povo vale tanto
7 uma turba. Um só exemplo de luxo ou de avareza basta como um só homem" 11 • Também tinha razão aquele autor 11
para provocar muito mal: um companheiro de mesa de (sobre cuja identidade se discute) que, ao perguntarem-lhe
gosto sofisticado acaba por nos tirar a energia e austeri- por que se aplicava com tanto émpenho num tratado que
dade, um vizinho rico excita os nossos desejos, um amigo seria acessível a tão poucos, respondeu: "para mim, basta-me
perverso propaga a sua peste por muito puros e simples que sejam poucos, basta-me que haja só um leitor, basta-me
que sejamos: que pensas tu que sucederá àqueles costumes que não haja nenhum". Em terceiro lugar há este dito
para que nos arrasta a multidão? É forçoso ou que os notável de Epicuro, em carta dirigida a um dos seus com-
8 imites, ou que os odeies. Ambas as atitudes, porém, são panheiros de estudos: "eu não escrevi isto para muitos,
de evitar: nem te deves assemelhar aos maus porque são mas sim para ti; contemplarmo-nos um ao outro é espec-
muitos~em tornar-te inimigo de muitos porque são dife-
I
táculo suficiente". 12
:.{
rentes. LRefugia-te em ti próprio quanto puderes; dá-te . \
com aqueles que te possam tornar melhor, convive com '

11
Demócrito, fr. 302 a Diels-Kranz.
10 12
Nós, entenda-se os seguidores do estoicismo. Epiruro, fr. 208 Usener.

16 17
12 Estes pensamentos, caro Lucílio, tens que interiorizá-los, útil; passo ao papel alguns conselhos, salutares como as
para reprimir o prazer oriundo do aplauso da multidão. receitas dos remédios úteis, - conselhos que sei serem
Quando muitos te cobrirem de louvores, verifica se ainda eficazes por tê-los experimentado nas minhas próprias feri-
tens motivo de agrado ante ti próprio, já que és homem das, as quais, se ainda não estão completamente saradas,
que muitos possam entender! Os teus autênticos bens são deixaram pelo menos de me torturar. Indico aos outros o 3
apenas do foro íntimo. caminho justo, que eu próprio só tarde encontrei, cansado
de atalhos. Vou gritando: "Evitai tudo quanto agrade ao
vulgo, tudo quanto o acaso proporciona; diante de qual-
8 quer bem fortuito parai com desconfiança e receio: tam-
bém a caça ou o peixe se deixa enganar por esperanças
1 Uma objecção tua: falaciosas. Julgais que se trata de benesses da sorte? São
"Então tu mandas-me evitar a multidão, conservar- armadilhas! Quem quer que deseje passar a vida em segu-
-me retirado, contentar-me com a minha consciência? Que rança evite quanto possa estes benefícios escorregadios nos
é feito daquelas vossas máximas que nos objurgam a mor- quais, pobres de nós, até nisto nos enganamos: ao julgar
rer em plena acção?" 13 possuí-los, deixamo-nos apanhar! Esta corrida leva-nos para 4
Bom, ao que parece eu estou-te aconselhando a inér- o abismo; a única saída para uma vida "elevada", é a
cia? Se eu me recolhi em casa e fechei as portas foi para queda! E mais: nem sequer poderemos parar quando a
poder ser útil ;i um maior número. Nem um único dia fortuna começa a desviar-nos da rota certa, nem ao menos
me chega ao fim na ociosidade; parte da noite, reservo-a ir a pique, cair instantaneamente: não, a fortuna não nos
para os meus estudos; não me disponho ao sono .,.--- su- faz tropeçar, derruba-nos, esmaga-nos. Prossegui, pois, um 5
cumbo a ele, e deixo repousar sobre o meu trabalho os estilo de vida correcto e saudável, comprazendo o corpo
2 olhos cansados da vigília e já prestes a cerrar-se. Retirei- apenas na medida do indispensável à boa saúde. Mas há
-me não só dos homens, como dos negócios, começando que tratá-lo com dureza, para ele obedecer sem custo ao
com os meus próprios: estou trabalhando para a posteri- espírito: limite-se a comida a matar a fome, a bebida a
dade. Vou compondo alguma coisa que lhe possa vir a ser extinguir a sede, a roupa a afastar o frio, a casa a servir
de abrigo contra as intempéries. Que a habitação seja feita
de ramos ou de pedras coloridas importadas de longe, é
13 Ao contrário dos epicuristas, que defendiam para o filósofo a vida à mar-
pormenor sem interesse: ficai sabendo que para abrigar
gem das obrigações políticas e sociais, os estóicos aconselhavam a participação um homem tão bom é o colmo como o ouro! Desprezai
acciva do sábio na vida da cidade. Isto explica, em boa parte pelo menos, a tudo quanto, com supérfluo trabalho, se acrescenta para
importante carreira pública do próprio Séneca. As condições sócio-políticas podem ornamento e decoração; pensai que só o espmto merece
ser cais, conrudo, que obriguem o sábio a recolher-se à vida escritamente pri-
vada, como fez Séneca a partir de 62. Sobre o assunto, v. o que Séneca diz no admiração, e para um grande espírito nada há que seja
seu tratado de otio. grande."

18 19


6 Ao formular estas reflexões, tanto para mim próprio aquele ponto que estive a discutir atrás, ou seja, que não
como para a posteridade, não te parece que estou a ser ~t'.vem~s . ter por nosso aquilo que o acaso nos dá:
~ < • • ~ ~ -- .... --- • • ~ "'.' .... , ' •• ~
--~
mais útil do que se comparecesse como consultor numa
Nada nos pertence daquilo que o acaso nos traz 15 •
citação judiciária, se imprimisse o meu sinete no fim dum
testamento, ou se fosse ao senado dar o meu voto e o A mesma ideia exprimiste tu, bem me lembro, num verso 10
meu apoio a um candidato qualquer? Acredita: os que não menos brilhante e conciso:
mais fazem são os que menos parecem fazer, pois tratam Não é verdadeiramente teu o que é teu por dom
ao mesmo tempo dos planos humano e divino. da sorte/ 16
7 Mas já é altura de terminar e como tenho por hábito
há que en:iar ~ brinde com esta carta. Não me per-í ' Não me esqueço também de outro verso teu melhor ainda:
tence, o bnnde. ITenho andado a respigar Epicuro, e dele Bem que se pode dar, pode também tirar-se 17•
li hoje esta frasel: "Deves ser servo da filosofia se preten-
des obter a verdadeira liberdade"14• Não será posto de lado Mas isto já não faz parte do brinde: só te devolvo o que
quem a ela se entregar confiadamente: logo ela lhe pres- é teu.
tará os seus benefícios. É nesta entrega total à filosofia
que consiste a liberdade. 9
8 Talvez me queiras perguntar por que razão te cito eu
Estás com interesse em saber se Epicuro tem razão 1
tantas belas máximas de Epicuro, em -vez de as extrair
quando, numa das suas cartas, censura aqueles que afir-
dos nossos autores. Por que motivo, porém, deveremos.-, ;
mam que o sábio se contenta consigo mesmo e, por isso,
considerá-las de Epicuro, e não propriedade de todo~LJ l
não tem necessidade de amigos ~. Esta crítica fá-la Epicuro
1

Quantos poetas há que já disseram o que os filósofos Ó~ J


a Estilbão e a outros para quem o máximo bem consiste
já disseram também ou hão-de dizer um dia! Nem preciso
na impassibilidade do espírito. Cairemos na ambiguidade 2
de recorrer aos trágicos, ou às nossas pretextas (peças
se pretendermos à pressa traduzir &mi()Eux. por um só
estas que possuem uma certa seriedade que as coloca a
vocábulo e usarmos o termo "impaciência"; pode suceder
meio caminho entre as comédias e as tragédias): até nos...
que se entenda o contrário daquilo que pretendemos signi-
mimos, que quantidade se não encontra de versos excelen-
ficar. Nós pretendemos aludir a alguém capaz de repelir o
tes! Quantos versos não escreveu Publílio dignos de per-
sentimento da dor, mas a palavra pode entender-se como
9 sonagens de coturno, e não de gente descalça! Vou citar-te
um verso dele que trata matéria filosófica, e precisamente
15
Publílio Siro, fr. A 1 Meyer.
16
Lucílio Júnior, fr. 1 Morei.
17
Lucílio Júnior, fr. 2 Morei.
18
14
Epicuro, fr. 199 Usener. Epicuro, fr. 174 Usener.

20 21
significando a incapacidade de suportá-la 19• Pensa, portanto, amizades, em lugar do amigo perdido depressa arran-
se não seria preferível falarmos em ·~-~l~-C:.~.~~i~~~de do jaria outro. Como é que rapidamente ele conseguirá conci- 6
ânimo'', ou em "ânimo situado para lá de todo o sofri'- liar outro amigo? Dir-to-ei, se estiveres de acordo em que
3 .~en~~-;; /À difere~Ç~ e~tre' ~ '"~o~s·â '~scàíá'~ê. â"defes" e' que te pague já a minha dívida e que, quanto a esta carta,
·o sã°bÍo,'" na nossa concepção, embora o sinta, <j,omina fiquemos com as contas em dia. Diz Hecatão: "vou indi-
todo o sofrimento, na deles, nem sequer o sente. i Entre car-te uma receita para o amor que dispensa o recurso a
DQLe.. aj~_S, ._~~}.~te._1:!.,_tg· j)~f1~Õ-.c~-~ g~ 2~~i9~cont~1;1tª:.s.e filtros, ervas ou fórmulas de feiticeira: se queres ser amado,
consigo próprio. Tal não implica que, embora se baste a si ama/'120 Não apenas a prática de uma amizade antiga e
próprio, eÍ~ ~ão deseje ter um amigo, um vizinho, um firme traz consigo grande prazer, mas também o início e
4 companheiro. E até que ponto se contenta consigo mesmo a conciliação de uma nova. A mesma diferença que há 7
mostra-o o facto de, por vezes, se contentar com uma entre o agricultor que ceifa a seara e o que a semeia,
parte de si. Se uma doença, se um inimigo lhe cortarem existe entre aquele que já conciliou e o que está conci-
uma mão, se qualquer acidente lhe roubar um olho, ou liando um amigo. O filósofo Átalo costumava dizer que é
mesmo os dois, ele contentar-se-á com o que lhe resta, e mais agradável fazer do que ter um amigo, "tal como ao
conservará tanta alegria de espírito depois de mutilado e pintor dá mais prazer pintar do que terminar o quadro".
estropiado como tinha quando possuia um corpo válido. A atenção dada à pintura a realizar encontra na respectiva
No entanto, embora não se queixe da sua mutilação, pre- ocupação um imenso prazer, o qual já não toca tão inten-
5 fere não a sofrer. É neste sentido que o sábio se contenta samente o artista quando afasta as mãos da obra termi-
consigo mesmo{ não que deseje, mas sim que possa pres- nada. Neste caso ele goza o fruto da sua arte; enquanto
cindir de amigo~;} E ao dizer "que possa" entendo que pintava, porém', saboreava a própria arte. Se a adolescên-
suportará com firmeza de ânimo a perda de algum. Na cia dos filhos é mais rica em · promessas cumpridas, o
realidade ele nunca estará sem qualquer amigo pois tem a certo é que é mais doce a sua infância.
possibilidade de rapidamente reparar a falta de algum. Tal Mas voltemos à nossa questão. O sábio, embora se 8
como Fídias, se perdesse uma estátua, imediatamente escul- baste a si mesmo, deseja no entanto ter um amígo, quanto
piria outra, assim o sábio, verdadeiro especialista em fazer mais não seja para exercer a amizade, para que uma tão
grande virtude não fique inactiva; não (como na mesma
carta afirmava Epicuro) "para ter alguém que o ajude na
doença e o socorra se for encarcerado ou cair na misé~

\\ ' 9 O termo grego <hráow:l' (Apatheia, donde o port. apatia) significa literal-
2
ria" 1, mas, pelo contrário, para ter alguém a quem ajude
mente "ausência de sofrimento". O seu corresp:mdente latino, porém, reveste,
como diz Séneca, alguma ambiguidade : impatientia, de facto, tanto pode entender-
-se etimologicamente como significando "ausência de sofrimento" (tal como
20
o vocábulo grego) como também ter o sentido de "incapacidade para aceitar o Hecatão, fr. 27 Fowler.
21
sofrimento" (e este sentido explica o port. impaciência). Epicuro, fr. 175 Usener.

22 23
na doença, alguém que, caso seja capturado, possa libertar deve ser desejada por si mesma". Pelo contrário, nada
das prisões inimigas. Quem só cuida de si e procura ami- importa mais demonstrar, porquanto, se deve ser desejada
zades com fins egoístas não pensa correctamente. Tal como por si mesma, então pode aceder a ela precisamente aquele
começou assim acabará: arranjou um amigo para o auxi- homem que se basta a si próprio. "Aceder a ela de que
liar contra a prisão, mas assim que os ferros rangerem tal modo?" Do mesmo modo que à contemplação de um
9 amigo evaporar-se-á! Amizades deste tipo chama-se-lhes objecto belo: nem movido por baixo interesse, nem receoso
correntemente "oportunistas"{ alguém que seja tomado por dos caprichos da fortuna. Conciliá-la com vista às situações
amigo por motivo da s~~ Útilidade deixará de agradar favoráveis, significa despojar a amizade da sua majestade
quando deixar de ser útil. ! Por isso mesmo grande cópia própria.
de amigos rodeia os ricaçÕs, enquanto a solidão é apaná- "O sábio basta-se a si mesmo." Amigo Lucílio, muita 13
gio dos arruinados; os amigos fogem de onde são postos à gente interpreta incorrectamente esta máxima, afastando o
prova; daí todos estes tristes exemplos de deserções ou sábio do mundo que o rodeia e reduzindo-o aos limites do
traições ocasionadas pelo medo. Necessariamente nestas seu corpo. Por conseguinte é imprescindível distinguir bem
amizades o princípio e o fim estão em completo acordo: o que significa, e qual o alcance desta frase: o sábio basta-
quem começou a ser amigo por conveniência, deixa de o -se a si mesmo para viver uma vida feliz, não simples-
ser também por conveniência; {qualquer interesse prevale- mente para viver, na medida em que para viver carece de
cerá contra a amizade se nela seprocurar outro interesse muita coisa, mas para ter uma vida feliz basta-lhe possuir
que não ela própria./ um espírito são, elevado e indiferente à f~r,~y,n~: Vou 14
10 "Para quê arra,,;J~r então um amigo?" Para ter alguém citar-te também uma análise apresentada po(CrisipÔ~, Diz 1
por quem possa morrer, alguém que possa acompanhar ele que o sábio não carece de nada, conquanto-prêÕse de I
ao exílio, alguém por quem me arrisque e ofereça à morte. muitas coisas: "o insensato, pelá. contrário, não precisa de ;
\
"Isso" a que aludis e que tem em vista o interesse, que nada (precisamente porque não sabe o uso correcto de ;
considera as vantagens práticas, isso não é amizade, é 22
nada), no entanto carece de tudo" • O sábio precisa das j
11 uma negociata ! A paixão amorosa tem indubitavelmente mãos, dos olhos, de muita coisa necessária à vida quoti-
algo de semelhante com a amizade, a ponto de a poder- diana, mas não carece de coisa alguma : _:~_E.~m,e~m
mos considerar uma amizade levada até à loucura. Pois necessidade, ser sábio implica não ter necessidade de na_d_l!,
quem há que se apaixone por motivos de interesse, de I>;~i;W-@~mo:-OObõrãse-bastéa-sTprõpriõ-:-·p;~ci~; de 15
ambição, de glória? É o amor que por si mesmo, abs- ter amigos; deseja mesmo tê-los no maior número possí-
traindo de tudo o mais, faz o espírito arder com o desejo vel, mas não para viver uma vida feliz, pois é capaz de
da beleza, de mistura com uma certa esperança de afecto ter uma vida feliz mesmo sem amigos. O ·bem supremo
recíproco. Ora bem, será possível que de uma causa mais
12 elevada resulte um afecto moralmente condenável? "Não
se trata agora" - dirás tu - "de saber se a amizade 22
Crisipo, in S.V.F., III, 674.

24 25
não vai buscar instrumentos auxiliares fora de si mesmo; de tudo feliz, Estilbão partia, quando Demétrio, aquele que
está concentrado em si, reside inteiramente em si; se das cidades destruídas tomou o cognome de Poliorcetes,
for buscar ao exterior alguma parte de si, principiará a lhe perguntou se havia perdido alguma coisa. Resposta do
16 submeter-se à sorte. "Como será eventualmente a vida do filósofo: "não, todos os meus bens estão aqui comigo".
sábio se tombar no cativeiro, isolado e sem amigos, se for Isto é que é ser um homem forte e indomável, capaz de 19
abandonado no meio dum povo estranho, se errar pelo vencer a própria vitória do seu inimigo! "Nada perdi",
oceano em longas travessias, se for parar a um local disse ele; e com isto forçou Demétrio a duvidar do seu
deserto?" Será como a vida de Júpiter: quando o universo triunfo. "Todos os meus bens estão aqui comigo": ,'!jlJ.S-
se dissolver e todos os deuses se confundirem na unidade, !kª' · _ll: _.Y.:irm.4~,_ _!J._. PD,!~~~~~~'. ·.~~!~2~PJ?!~.~-Jª-C!Q _ g~JJ.[Q_ çop.­
quando gradualmente a natureza for perdendo o movi- side,rar C01Il()_)?em algo que .s~ _ PÇS?.ê.-~{Q.ef.. Nós admira-
mento, ele repousará em si mesmo, todo entregue ao seu mos certos ani~~is ' cipâze~ de atravessarem as chamas
pensamento23• O mesmo fará o sábio: fechar-se-á dentro sem nada sofrer; quanto mais admirável é um homem
17 de si, estará na presença de si próprio. Enquanto lhe for capaz de passar ileso e inatacável por entre as armas, a
possível ordenar a vida à sua vontade, ele basta-se a si destruição, o fogo! Estás vendo como pode ser mais fácil
mesmo, mas contrai matrimónio; basta-se a si mesmo, vencer um povo int~j&g . gQ ...9.l1~ - ~--4.1_1~co homem? Esta
mas procria filhos; basta-se a si mesmo, mas deixaria de simples frase faz d~Estilbão um estóico,) capaz, ele tam-
viver se o não pudesse fazer entre os homens. Não é bém, de preservar os 'seüfl5ens-eiiffê _õ ,,incêndio total da
qualquer consideração utilitária que o incita à amizade, é cidade. Basta-se a si mesmo: esta a fronteira que coloca à
sim uma disposição natural; tal como existe em nós uma sua felicidade.
atracção inata para outras coisas, assim existe para a ami- Não penses que só nós somos capazes de proferir 20
zade. .[al como é a natureza que gera o horror à solidão e sentenças sublimes. O próprió Épicuro, o crítico de Estil-
a procura de companhia, que atrai o homem para o seu bão, disse uma frase semelhante; aceita-a como presente
semelhante, também é um instinto natural que nos leva a
-~"'"!
meu, apesar de por hoje já ter pago o tributo. "0!,.<!_1'!':..
18 procurar arranjar amizades. /Conquanto seja amicíssimo dos .f..Q'!1S...i4.ey-g_ dim~1!:1flOX fJL~€1!:LÍ!..€1'1§___1E:_€f'!!!iLq#{lnd.o..i.. fJ!1Jflf)_r
seus amigos e os coloque"';'' par, ou, tantas vezes, acima de cf,e .t.gdg . o,, 1J?:~nd ...P..i.-~H€. -.h.Or.f?€.1!7;,, ..~, ."!'!!!-.!:"nd"
.. . ?g~!!!<!.:..n24 Ou, se
si mesmo, nem por isso o sábio deixará que tudo quanto preferires a mesma coisa dita de outra maneira (pois é
para ele é bem dependa do exterior, e fará suas as pala- <fredso ríabitu~EI}}Ç-nos a c~11~.id.~t~..9-2!~!ido _s.~m-E~~­
vras de Estilbão, desse Estilbão que Epicuro tanto ataca na .ri:?.~!~~2i~-!LRJilªYiãsI::-;;indigente é o homem que . se
sua cart~fj\ sua cidade fora tomada, os filhos e a mulher não julga imensamente feliz mesmo que seja imperador
pereceram, tudo era pasto das chamas; sozinho; e apesar do mundo". E para que vejas como este pensamento foi 21

23
Cf. Crisipo, in S.V.F., II, 1065 - Alusão à teoria estóica da conflagração. 24
Epicuro, fr. 474 Usener.

26 27
ditado pela natureza à sabedoria popular citar-te-ei este Quando alguém se encontra dominado pela dor ou 2
verso dum poeta cómico: pelo medo, costumamos vigiá-lo, não vá ele fazer mau uso
da sua solidão. Pessoas de pouco discernimento não devem
não é feliz o homem que se não julga feliz 25 • ficar entregues a si próprias: ou tomam decisões erradas,
22 Que importa, de facto, a situação em que te encontras se ou assumem atitudes perigosas, para os outros ou para si
tu a considerares má? "Como é isso? Então se um ricaço mesmas, ou se deixam guiar por propósitos desonestos;
desonesto, se um homem senhor de muitos escravos mas tudo quanto o medo ou o pudor lhes escondia no ânimo
escravo ainda de mais, disser: "eu sou feliz!", o facto de vem ao de cima, provoca o atrevimento, agudiza a sensua-
pronunciar esta frase fará dele um homem feliz?" Não, o lidade, desperta a cólera. Em suma, a única vantagem da
que interessa não é o que ele diz, mas o que sente e o solidão - não confiar segredos, não temer denúncias - o
que sente continuamente e não num dia qualquer. E não insensato perde-a, pois é ele próprio que se trai.
receies que tão afortunada situação possa ser apanágio de Vê assim que esperanças tenho a teu respeito, ou
um ser indigno: -~Q ..Q .s.áb!Q._~~- çonten1a_ çom o que .J~ro, melhor, que confiança (pois a "esperança" refere-se a um
~<?.sl.º-~--os
,_ ..,.,..
jQ~fl~~tQ~-- sofrem qe---·.·--- descontentaQi~ót~
.--·· -.-_,. ,,,_ .
~~nsigo
... .,,...._...."'"""'· -. . . . ....
..,..,.~ -~-.--··~ ~
bem ainda incerto) tenho em ti, a ponto de não conhecer
mesmos. ninguém cuja companhia te seja preferível à tua própria.
Recordo-me da energia com que pronunciavas certas máxi- 3
mas, e de como estas estavam cheias de vigor; como eu
10 me congratulei desde logo, dizendo: "estas frases não vêm
1 É assim como te digo, não mudo de opinião: evita as somente da boca, são palavras que assentam em base
multidões, evita os pequenos grupos, evita mesmo os indi- sólida; este homem não é um indivíduo vulgar, é sim
víduos isolados. Não conheço ninguém com quem goste alguém que visa a salvação"! Fafa e age sempre com esse 4
de te ver em comunicação. Repara, porém, no juízo que propósito, atenta a que coisa alguma te desanime. Pede
faço a teu respeito: ouso confiar-te a ti mesmo. Segundo aos deuses que te libertem dos teus votos de antigamente
corre, Crates, um discípulo daquele Estilbão de que te falei e formula outros inteiramente novos: pede-lhes sabedoria,
na carta anterior, viu um dia um jovem passeando sozi- pede-lhes impecável saúde de espírito, e só depois tam-
nho e perguntou-lhe o que fazia, assim isolado. O jovem bém a do corpo. Porque não hás-de formular tais votos
respondeu: "Falo comigo mesmo." Então Crates retorquiu: com frequência? Pede sem receio à divindade que lhes dê
"Tem cuidado, toma bem atenção no que fazes: olha que seguimento : nada pedirás que não esteja em seu poder !
estás falando com um homem de mau carácter." Para terminar esta carta com a pequena oferenda do 5
costume, aqui tens esta verdade que colhi em Atenodoro:
"podes estar certo de que te libertaste totalmente das pai-
25
xões quando chegares ao ponto de não pedires aos deuses
Ribbeck3, com. pai!. inc., 77 (p. 147); Meyer atribui o verso a Publílio Siro
(= N 61); Bücheler pensa que se trata de um verso grego traduzido por Séneca. senão o que fores capaz de pedir em voz alta!" Mas como

28 29
é grande, no geral, a insensatez dos homens que, murmu- fadiga ou de calor; outros, quando se aprestam para dis-
rando, dirigem aos deuses as mais sórdidas preces! Calam- cursar, ficam sem força nas pernas, a outros batem os
-se se alguém as tentar ouvir mas dizem à divindade dentes, entaramela-se a língua, colam-se os lábios. Contra
palavras que não querem que outro homem escute. Repara, isto não há técnica ou prática que valha; a natureza exerce
portanto, se não será salutar este preceito: vive com os os seus direitos e mesmo às pessoas mais firmes faz sen-
homens como se a divindade te observasse; fala com a tir essa sua debilidade. Entre tais debilidades pode incluir- 3
divindade como se os homens te escutassem. -se a tendência para corar, capaz de ocorrer subitamente
mesmo às pessoas mais austeras. É, todavia, mais frequente
nos jovens, que têm o sangue mais quente e o rosto mais
11
delicado; no entanto também se verifica nas pessoas
maduras ou velhas. Há homens que nunca são tão temí-
1 Estivemos conversando, o teu amigo e eu, e esta pri-
veis como quando ruborizados, como se o facto signifi-
meira conversa revelou-me o seu bom carácter, deu-me a
casse que perderam toda a vergonha. Sula, por exemplo, 4
conhecer quanto nele há de ânimo, de inteligência, mesmo
nunca era tão violento como quando o sangue lhe afluía
já de progresso no campo filosófico. Como que me deu a
ao rosto. Nada era mais instável do que o rosto de Pom-
provar aquilo que virá a ser no futuro, tanto mais que a
peio o qual, quando falava em público, especialmente na
conversação não fora preparada, mas correu de improviso.
assembleia popular, corava sempre. Lembro-me de ver
Enquanto procurava dominar-se, só a custo reprimiu a
Fabiano, ao comparecer como testemunha ante o senado,
timidez - indício positivo, tratando-se dum jovem - , o
ficar todo corado, sinal de pudor que lhe convinha maravi-
que prova como era sentido o rubor que lhe cobriu o
lhosamente. Ora o facto não resulta de qualquer defeito 5
rosto. Creio bem que, mesmo quando obtiver a autocon-
intelectual, mas sim do inesperado duma situação, que pode,
fiança e se libertar de todos os seus vícios, até quando for
senão inibir, pelo menos perturbar os inexperientes que,
já um sábio, nunca perderá a tendência para corar. Nenhu-
por natureza, tendem a ruborizar-se com facilidade. Assim
ma sabedoria, de facto, nos poderá libertar de certas fra-
como há pessoas de sangue calmo, outras há que o têm
quezas físicas naturais 26 : tendências inatas, congénitas, a
vivo e ágil, capaz de afluir rapidamente ao rosto. Tais 6
2 prática pode abrandá-las, nunca suprimi-las. Há homens,
fenómenos, conforme disse, não há sabedoria que os
mesmo muitíssimos senhores de si, que, em presença do
suprima; doutro modo a sabedoria, se pudesse erradicar
público, se cobrem de suor como se estivessem mortos de
todos os defeitos, teria um poder absoluto sobre a natu-
reza. Aquilo que nos foi dado pelos condicionalismos do
nascimento e da constituição física, por muito que, longa-
26
mente, o espírito tenha trabalhado por aperfeiçoar-se, nunca
No texto latino ocorre: natura/ia corporis aut animi uitia "defeitos natu-
rais do corpo ou do espírito"; na tradução, a exemplo da maioria dos editores, nos abandonará, são fenómenos que não podemos impe-
eliminou-se a expressão aut animi, segundo correcção proposta por Madvig. dir, nem simultaneamente, podemos provocar. Os actores 7

30 31
de teatro, os quais devem imitar paixões, exprimir medo e vida, cujas palavras, cujo rosto, enfim, espelho da própria
ansiedade, denotar tristeza, servem-se, para imitar a ver- alma, sejam do teu agrado. Contempla-o sempre, ou como
gonha, destes artifícios: baixar o rosto, mastigar as pala- teu vigilante, ou como teu modelo. Temos necessidade,
vras, manter os olhos fixos no chão. Corar, todavia, é repito, de alguém por cujo carácter procuremos afinar o
coisa que são incapazes de fazer! O rubor nem se impede, nosso: riscos tortos só se corrigem com a régua! /
nem se provoca deliberadamente. Contra fenómenos deste
género a sabedoria nada garante, nada consegue; são fenó-
menos naturais, ocorrem sem nós querermos, esvaem-se
12
sem nós querermos. Para onde quer que me vire, vejo indícios da minha 1
8 Esta carta já está reclamando o brinde final. Cá vai velhice. Tinha ido à minha quinta nos arredores e queixa-
ele! É bem útil e salutar esta máxima que pretendo ver va-me das despesas a fazer com uma casa em ruínas. O
~
11
gravada no teu espírito: devemos eleger um homem de feitor diz-me que o mal não está em falta de cuidados
bem como modelo e tê-lo sempre diante dos olhos, de seus, simplesmente a casa é velha. Ora esta casa cresceu
modo a vivermos como se ele nos observasse, a proce- entre as minhas mãos: como não estarei eu, se tão podres
9 dermos como se ele visse os noss__oJ _qç_!.Qf." 27• Este preceito, '. estão estas pedras da minha idade? Irritado, aproveito a 2
caro Lucílio, foi enunciado por \gpi~!o,') que assim nos ! primeira ocasião para me zangar com o homem. "Parece"
e
dota de um vigilante, de um pedagogo; com razão, pois - digo-lhe eu - "que estes plátanos não são cuidados.
grande parte das faltas não seria cometida se ante os fal- Não têm folhas nenhumas ! Olha como os ramos estão
tosos se erguesse uma testemunha. Que a nossa alma, nodosos e ressequidos, como os troncos estão macilentos e
portanto, tenha um modelo a quem venere e graças a cuja sujos! Isto não aconteceria se as árvores fossem escavadas
autoridade torne mais nobre mesmo o seu mais íntimo e regadas!". O homem jura pelo meu Génio28 que faz
recesso. Feliz o homem que, não apenas pela sua pre- tudo o que é preciso, que toma todos os cuidados necessá-
sença, mas até só pela sua imagem torna os outros me- rios: elas é que já são velhotas! Aqui entre nós, fora eu
lhores! Feliz o homem capaz de ter por alguém tanto que as plantara, eu que vira brotar as suas primeiras folhas.
respeito que a simples lembrança do modelo basta para Virei-me para a porta. "Quem é este?" - perguntei. 3
lhe dar ordem e harmonia espiritual! Quem for capaz de "Este velho decrépito que, com toda a razão, puseram
ter por alguém um tal respeito, em breve inspirará por junto da porta? Onde foste desencantar este indivíduo?
10 seu turno respeito idêntico. Escolhe, por exemplo, Catão;
se este te parecer demasiado rígido, escolhe Lélio, que é
28
homem de espírito mais maleável. Escolhe alguém cuja Na religião romana, o Génio [ Genius] era uma das divindades domésticas
(a par dos Lares e dos Penates) individualmente associada a cada homem: cada
homem possuía o seu Genius, tal como cada mulher possuía uma contrapartida
feminina, a sua Juno. Especialmente venerado era, em cada casa, o Genius do
27
Epicuro, fr. 210 Usener. chefe de família, simbolizado por uma serpente pintada no altar.

32 33
Que ideia foi essa de ir buscar um morto que não é Bom, ter a morte diante dos olhos é coisa que tanto
nosso?" Diz-me o velho: "Então não me conheces? Eu deve fazer um velho como um jovem (já que ela nos não
sou Felicião, a quem tu costumavas oferecer bonecos 29, sou chama por ordem de idades); além disso, não há ninguém
o filho do teu feitor Filosito, o teu companheiro prefe- tão velho que não tenha direito a esperar um dia mais.
rido". "Belo" - digo eu - "este está doido; catraio, e Aliás, um dia é um degrau na vida. Toda a nossa existên-
ainda por cima armado em meu companheiro preferido! cia consta de partes, de círculos concêntricos em que os
Até está correcto: já lhe estão caindo todos os dentes! ..." maiores abarcam os menores : há um círculo que os abarca
4 Fico em dívida com a minha quinta: para onde quer e rodeia a todos (este é o que contém todo o tempo do
que me virava fazia-me dar conta da minha velhice. Pois nascimento à morte); há outro que delimita os anos da
abracemo-la, apreciemo-la: se a soubermos usar, a velhice adolescência; outro que dentro da sua órbita rodeia os
é uma fonte de prazer. Os frutos tornam-se mais agradá- anos da infância; além disso, cada ano de per si contém
veis quando estão a ficar passados; é no seu termo que as subdivisões do tempo, de cuja combinação resulta a
mais brilha a graça da infância; aos bebedores, o último nossa vida; um mês está contido num círculo menor; um
copo é que dá mais prazer, aquele que culmina e dá o dia tem um perímetro ainda mais curto, mas mesmo ele
último impulso à embriaguez; aquilo que cada prazer tem tem um princípio e um fim, uma origem e um termo.
5 de mais saboroso é guardado para o fim. É extremamente Por isso dizia Heraclito, o filósofo que deveu a fama à sua 7
agradável esta idade, já tendente para o fim embora ainda linguagem obscura, "que qualquer dia é igual a todos os
não a tombar; estar prestes a atingir a beira do telhado, outros" 30•
acho que é situação dotada dos seus encantos; ou pelo Esta ideia foi expressa por outros, cada qual da sua
menos, em vez de encantos, bastará a simples ausência de maneira. Disse um que é igual em número de horas, e
com razão, pois, se um dia é, um espaço de tempo de
necessidades. Como é bom já ter cansado os nossos dese-
vinte e quatro horas, necessariamente todos os dias são
jos, tê-los abandonado.
iguais entre si : a noite tem a mais o que o dia tem a
6 "Mas é penoso" - dirás - "ter a morte diante dos
11
menos. Disse um outro que todos os dias são iguais na
olhos.
sua aparência geral, porquanto nada há num enorme espaço
de tempo que se não possa encontrar num único dia - a
luz e as trevas; no constante alternar do universo, tudo
( 29 Por ocasião das Saturnais (Saturnalia), antigas festas do calendário romano isto aparece multiplicado, mas não diferente, ... 31 apenas
\ celebradas por volta de 17 de Dezembro de cada ano em honra de Saturno, era numas vezes mais curto, noutras mais dilatado. Organize- 8
l costume haver troca de presentes entre amigos, e mesmo, como é aqui o caso, mos, portanto, cada dia como se fosse o final da batalha,
/ entre senhores e escravos (por ex. os livros XIII e XN de Marcial recolhem
/ uma colecção de epigramas apensos pelo poeta a presentes oferecidos por essas
'\ festas). Neste período, os escravos gozavam em relação aos seus senhores de
uma grande liberdade, como pode verificar-se, u.g., na sátira 7 do livro II de 30 Heraclito fr. 106 Diels-Kranz.
31
Horácio (diálogo entre o Poeta e o seu escravo Davo). O texto apresenta aqui uma lacuna.

34 35
como se fosse o limite, o termo da nossa vida. Pacúvio, Dirás tu: "Essa frase é de Epicuro; para quê recorrer 11
que usufruía da Síria como se lhe pertencesse de direito 32, à propriedade alheia?" Tudo quanto é verdade, pertence-
depois de a si mesmo se ter celebrado com libações e -me. E vou continuar a citar-te Epicuro para qq~ todos
. -·· ··· - ·~-· -- "l . ' • • - • . ~ - -· • - -;.. _..

sumptuosos banquetes fúnebres, fazia-se transportar do quantos jur~g.i ~ pe!~s _pal~-yras .e .se inte.res~~fil,__ .Q~º-J~t?!ª
festim para o quarto entre as palmas dos seus "amigui- id~ii ~m;s--peio ~eu autor2 fiqu~l}.1. .~aben9çi _ gu,e_ jls_ i~~ja~
9 nhos" que cantavam em coro: /3E/3{wrm, /3E/3[wrm 33. Todos corrêct~s - ~ãõ "pertenÇa' de t~d~s. . .-
os dias fez o seu próprio funeral. Ora o que ele fazia com
·~ .... ____ "' _..,. --...-· .............. - '"'.,. -- ,,.. _._. ,...- -' ,._,.. -

a consciência pesada façamo-lo nós com ela tranquila, e ao


irmos dormir digamos, com satisfação e alegria,
vivi, cumpri o curso que a fortuna me deu 34 •
Se a divindade nos conceder o novo dia, aceitemo-lo com
alegria. O mais feliz dos homens, o dono seguro de si pró-
prio é aquele que aguarda sem ansiedade o dia seguinte. Quem
quotidianamente diz: "vivi"!, quotidianamente ficará a lucrar.
10 Mas já é altura de fechar esta carta. - "Olá! Então e
ela vem sem me trazer brinde?" - Não te assustes: vai
levar qualquer coisa. Qualquer coisa, não: muita coisa. Que
há, na verdade, de mais notável que esta frase que eu aqui
incluo para ti? "É um mal viver na necessidade, mas não
há qualquer necessidade de viver na necessidade." 35 Como
não seria assim? Em todo o lado estão patentes as vias
para a liberdade: muitas, curtas e fáceis. Agradeçamos à
divindade o facto de ninguém poder ser obrigado a per-
manecer vivo: é-nos possível dar um pontapé na própria
necessidade.

32
O governador efecrivo da Síria, nomeado por Tibério, era Élio Lâmia,
que, impedido de sair de Roma pelo Imperador, administrava a província por
intermédio do seu legado Paaívio (d. Tácito, Anais, VI, 27 e I, 80).
33 '7á viveu, já viveu!" (isto é, "está morto"!)
34
Vergílio, Aen, IV, 653.
35
Epicuro, fr. 487 Usener.

36 37
LIVRO II

(Cartas 13-21)

13
Sei que tens muita força de anuno. Mesmo antes de 1
começares a aprender os nossos preceitos, tão salutares e
tão capazes de nos fazerem afrontar vitoriosamente as
situações mais duras, já te comprazias em fazer face à for-
tuna. Muito mais animoso estás agora depois que iniciaste
com ela a luta corpo a corpo e experimentaste as tuas
próprias forças; na realidade, apenas podemos confiar na
nossa força quando aqui e ali deparamos com várias difi-
culdades, sobretudo quando uma vez por outra nos atin-
gem muito de perto. É assim que se vê até onde chega a
verdadeira coragem, aquela que nunca abdicará do seu livre
arbítrio; tal situação é a verdadeira pedra de toque do
nosso ânimo. Um atleta que nunca foi ferido é incapaz de 2
afrontar o combate de ânimo alto. Só aquele que viu cor-
rer o próprio sangue, que sentiu os dentes rangerem sob
os golpes, que, lançado por terra, suportou sobre o corpo
o peso do adversário sem, embora abatido, nunca deixar
abater o ânimo, só aquele que se ergue com mais energia
de cada vez que é derrubado pode descer à arena com
esperança de vencer. Prosseguindo com este símile, direi 3
que já várias vezes a fortuna te deitou ao chão sem que te
confessasses vencido; pelo contrário, ergueste-te de novo e

39

:; -=- .~ ·~ ·'"'-: ..
retomaste a luta com energia dobrada. A virtude autên- lamentam? Por que motivo estremecem, porque receiam
tica ganha novas forças de cada vez que sofre um golpe. que os contagie, como se uma desgraça se pudesse trans-
4 Se estás de acordo, contudo, dar-te-ei conselhos que . te mitir? O que me aflige é um mal real, ou é antes, somente,
ajudarão a reforçar o teu vigor. Mais numerosos são, Lucí- um "mal de opinião"? Pergunta a ti mesmo: "será que
lio, o~ nqssos_~temores__qµ~ ~s nÓssa§ .verdadeiras afliçõe~; e sofro e me aflijo sem motivo, que imagino um mal onde
~"ai~-· frequ'e~t~~~rÍte nos -ail~Ía a . no$~~- iiri~ginaçã9 dq não existe?"
que·- a· -realida}l,e._Não- te e~toÚ falando em linguage~ de Estou a ouvir a tua pergunta: "Mas como hei-de eu 7
,~···
_ ... . .. · .. -· ·· ,.......,.;< •
esfoicó:· inas sim em linguagem menos rigorosa. O que saber se o que me atormenta é imaginário ou é real?"
nós, estóicos, de facto afirmamos é que tudo o que nos Aqui tens a receita! Os nossos tormentos existem ou no
suscita murmúrios e suspiros não tem a mínima impor- presente, ou no futuro, ou em ambos. Sobre o presente é
tância e só merece desprezo. Deixemos, portanto, as fácil ajuizar. O teu corpo está são e escorreito, não foste
grandes frases, ·que, todavia, - ó deuses!, - são bem vítima de qualquer violência física: pois amanhã logo se
verdadeiras. Dar-te-ei somente este preceito: não sejas des- verá o que sucede, por hoje não há qualquer problema.
graçado antes de tempo, pois o que tu temes como coisa ''.Mas há-de haver!" - dirás tu. qr~ ,rep~a St:_ ~C::.1!.1:2§ .!()!llilt 8
iminente talvez nunca venha a suceder; pelo menos, é como ,iirgµ!.11en~9§ ~v@slc:>~ . 9s_ m~le~. fl:i!lt~o~! _ O pânico que
5 certo que ainda não sucedeu! Certas coisas angustiam-nos nos toma apenas provém de suspeitas, de ilusões. É como
mais do que há razão para tal; outras angustiam-nos antes na guerra: um boato basta para dar como perdida a bata-
que haja razão; outras angustiam-nos sem a mínima razão. lha; um mero boato faz dum homem um vencido! É
Isto é, ou exageramos o nosso sofrimento, ou o sentimos assim mesmo, amigo Lucílio: aceitamos de chofre a opi-
por antecipação, ou apenas o imaginamos! nião vulgar. Não observamos nem analisamos criticamente
Este ponto é controverso e sujeito a discussão: dis- as causas dos nossos temores; énchemo-nos de medo e
cutamo-lo desde já. Aquilo que eu considero sem impor- largamos a fugir como aqueles soldados que saem do
tância poderás tu afirmar ser extremamente doloroso: sei acampamento por verem ao longe a poeira levantada por
bem que há homens capazes de rir sob o chicote enquanto um rebanho, como aqueles a quem um boató anónimo
outros gemem a uma simples bofetada. Veremos mais enche de pânico. As angústias ilusórias são mesmo mais 9
tarde se estas situações se impõem devido à sua gravidade perturbadoras, não sei porquê! As autênticas ainda man-
intrínseca ou se o fazem por causa da nossa debilidade. têm certos limites; as incertas, porém, dão toda a margem
6 Por agora toma atenção a este conselho. Quando tiveres à às conjecturas e fazem perder o norte aos ânimos medro-
tua volta pessoas empenhadas em persuadir-te de que és sos. Não há tipo de terror tão funesto, tão incontrolável
um desgraçado pensa bem, não nas palavras que ouves, ~~_.Q_pâ..9ic2;_2~~i J11~(): ..f~~-~n~i~~ ~..:iz~9:~ ~ ~P~ni~º
mas sim naquilo que tu próprio sentes; analisa a tua g_~~ .!1;. S:2.!EP1~.J?.~-~~. A?alisemos, portanto, a situação 10
capacidade de resistência e, pois és o melhor conhecedor com o máximo ·cuidado. E natural que no futuro nos
de ti mesmo, interroga-te: "Qual a razão por que eles me suceda um mal qualquer: o facto é que de momento ainda

40 41
não existe. E quanta coisa não sucede sem nós esperar- lhor e acredita no que preferires. Ainda que o medo dis-
mos! Quanta coisa nós esperamos que nunca sucede! Mesmo ponha de mais argumentos, mesmo assim toma de prefe-
que seja certo um mal futuro, para quê começar a sofrer rência este partido: não te deixes perturbar, pensa imediata-
antecipadamente? Logo sofrerás quando ele chegar; por mente que a maior parte dos homens, sem que qualquer
11 agora, pensa em coisas mais agradáveis. Assim irás apro- mal os aflija nem os venha a atingir como coisa inevitá-
veitando o teu tempo: já é uma vantagem! Muitas cir-
vel, se deixam ir à deriva guiados pelas suas paixões.
cunstâncias podem surgir que suspendam, eliminem ou
Ninguém resiste ao próprio impulso que tomou, ninguém
desviem sobre outro um perigo próximo, ou mesmo já
iminente. Um incêndio pode permitir-nos a fuga; um edi- sabe adequar o seu medo à realidade. Ninguém sabe dizer
fício que tomba em ruínas pode depositar-nos no chão, que o medo é mau conselheiro, que gera falsas ideias, ou
ilesos; uma espada prestes a degolar-nos pode ser des- acredita nelas. Deixamo-nos guiar ao sabor do vento; re-
viada; e há quem tenha sobrevivido ao carrasco que lhe ceamos o ambíguo como se fosse indiscutível; não agimos
fora designado. A adversidade também tem a sua incons- com conta, peso e medida, uma simples inquietação logo
tância. Talvez nos atinja, ou talvez não; entretanto está se transforma em terror!
longe: pensemos em coisas mais alegres! Até sinto vergonha de usar contigo esta linguagem e 14
12 Frequentemente, sem que ocorra qualquer sinal anun- de te confortar com conselhos tão banais. Um homem
ciador de algum mal futuro, o nosso espírito cria ideias vulgar dirá: "Talvez este mal não ocorra!" Tu, porém,
falsas. É uma palavra ambígua que se interpreta no sen- deves dizer: "E se ocorrer, qual é o problema? Veremos
tido mais desfavorável; é uma ofensa, mais grave que na qual de nós se deixará vencer! Talvez um mal venha em
realidade é, que se atribui a alguém, pensando-se não até
meu benefício, talvez uma mort~ assim enobreça a minha
que ponto esse alguém está irado, mas sim o que ele
vida." Foi a cicuta que deu grandeza a Sócrates! Tira a
poderá fazer se estiver irado! A vida perde qualquer sen-
tido, a desgraça não conhecerá qualquer limite se nos Catão o gládio com que assegurou a sua liberdade, e tirar-
pusermos a recear tudo quanto pode acontecer. Ajude-te -lhe-ás grande parte da sua glória! Já estou, porém, a exor- 15
neste ponto a tua capacidade de discernimento, e afasta tar-t'e há demasiado tempo, quando tu necessitas mais de
para longe, com · força de ânimo, mesmo um medo moti- conselhos práticos que de exortações. Não te estou con-
vado. Se o não conseguires, então combate um vício com duzindo por uma via contrária à tua natureza: tu nas-
outro vício, e contrabalança o medo com a esperança. Por ceste dotado para este tipo de filosofia. Mais uma razão
muito certos que sejam os nossos temores, mais certo para acrescentares e ilustrares as boas qualidades que já
ainda é que um dia o que tememos há-de cessar, tal como são tuas.
13 o que esperamos nos virá a decepcionar. Pondera, por- Mas é tempo de terminar esta carta. Só falta imprimir 16
tanto, os motivos de esperança e de medo, e sempre que nela o sinete, isto é, citar alguma máxima importante
as coisas te apareçam todas como ambíguas, age pelo me- sobre a qual tu medites.

42 43
rrEntre outros defeitos, a insensatez tem ainda mais corpo. Tenhamos com ele o maior cuidado, mas na dispo-
este: está sempre no início da vida." 1 Pondera no que sição de o atirar às chamas quando a razão, a dignidade, a
significa esta frase, Lucílio, meu amigo caro entre todos ! lealdade assim o exigirem. De qualquer modo evitemos 3
Verás como é repugnante a inconstância dos homens que quanto possível mesmo os incómodos, e não somente os
todos os dias constroem novos fundamentos para a sua perigos, coloquemo-nos em lugar seguro mas reflectindo
vida, e que mesmo à beira da morte concebem novas desde logo nos meios como afastar os motivos de temor.
17 esperanças. Observa-os um por um: encontrarás alguns Tais motivos, se bem me lembro, são de três tipos: podemos
velhos que, com o máximo empenho, enveredam pela temer a indigência, ou as doenças, ou as violências perpe-
intriga política, pelas grandes expedições, pela vida dos tradas pelos poderosos. De todos eles nada nos abala mais 4
negócios. Que há de mais repugnante do que um velho do que os males ocasionados pela prepotência alheia, já
iniciando uma nova vida? Não acrescentaria o nome do que ocorrem acompanhados de imenso estrépito e agita-
autor desta frase se não se desse o facto de ela ser pouco ção. As calamidades naturais que referi, indigência e doença,
conhecida e não pertencer ao número das máximas divul- surgem silenciosamente e não incutem terror através da
gadas de '. gii_i9i~õ"" que eu me tenho permitido citar e vista ou do ouvido; o terceiro tipo de desgraça ocorre
adoptar como minhas! entre grande alarido, faz a sua aparição entre armas, chamas,
cadeias e bandos de feras treinadas para rasgar aos homens
as entranhas. Imagina, neste momento, o cárcere, as cru- 5
14 zes, os cavaletes, os ganchos 2, o pau que atravessa todo o
corpo e acaba por sair pela boca, os carros lançados em
1 Admito que é inata em nós a estima pelo próprio direcções opostas que despedaçam os membros, a célebre
corpo, admito que temos o dever de cuidar dele. Não túnica revestida e entretecida de matérias inflamáveis e
nego que devamos dar:!_he atenção, mas nego que deva- tudo o mais que a crueldade foi ainda capaz de inventar.
mos ser seus escravos. {Será escravo de muitos quem for Não é, portanto, de admirar se o perigo que mais receio 6
escravo do próprio corpí), quem temer por ele em dema- inspira é este, que se apresenta sob tanta variedade de
2 sia, quem tudo fizer em função dele. Devemos proceder formas e rodeado de aparato terrível. Tal qual como a
não como quem vive no interesse do corpo mas sim- tortura é tanto mais eficaz quanto mais instrumentos dolo-
plesmente como quem não pode viver sem ele~Um exces- rosos exibir (e assim vence pela vista homens que resis-
sivo interesse pelo corpo inquieta-nos com temo7es, carrega- tiriam ao sofrimento), também daqueles receios que nos
-nos de apreensões, expõe-nos aos insultos; o bem moral
torna-se desprezível para aqueles que amam em excesso o
2
Os ganchos aqui referidos eram os que se usavam para arrastar os corpos
dos supliciados até junto às Gemoniae scalae "as escadas dos gemidos", donde
1
Epicuro, fr. 494 Usener. depois eram lançados ao Tibre.

44 45
afligem e abatem o ânimo, os mais eficazes são aqueles mesmo que condená-la. Há, por conseguinte, que tomar 9
que se fazem ver. Há outras calamidades não menos gra- todos os cuidados para nos precavermos do vulgo. Para
ves - por exemplo a fome, a sede, as úlceras, a febre começar, não devemos ter ambições: competição gera con-
que parece queimar as entranhas - , mas que se não flito! Em segundo lugar não devemos possuir nada capaz
vêm, que não chamam a atenção, que se não exibem; de ser aliciante para um eventual salteador: não ostentes
aquelas outras, ao contrário, são como as guerras violentas, quanto possível sobre ti o que possa ser tomado como
que nos vencem pelo seu aparato visível. espólio! Ninguém chega a matar o seu semelhante por
7 Tomemos, por isso, precauções para evitarmos ser ofen- puro prazer de matar, ou, pelo menos, muito poucos;
sivos. Por vezes é de todo o povo que nos devemos pre- mais numerosos são os que o fazem por cálculo do que
caver; outras vezes, quando o governo da cidade passa na por ódio. Qualquer ladrão deixa em paz quem nada tem;
sua maior parte pelo senado, são os seus membros que mesmo numa estrada infestada o pobre nada tem a temer.
importa conciliar; outras, são homens que, a título pessoal, .\
..--- \ Há seguidamente três cois~~-q_ue;, .s.:~~~~"?..~~~5?_.P!:_~vér­ 10
receberam do povo o poder que exercem contra o próprio bio, se devem evitar: , o ódio, a inveja, o desprezo.) O
povo. Tê-los a todos como amigos seria ingente tarefa; modo de consegui-lo, só 'sáoêêi.Õri~--pode' iiidica-lõ:" É," na a
basta que os não tenhamos por inimigos. O sábio, conse- verdade, difícil conseguir o equilíbrio, e por isso importa
quentemente, não provocará as iras dos poderosos, antes ter cuidado, não vá o medo da inveja fazer-nos incorrer
as esquivará, tal como no mar procuramos esquivar as no desprezo ou o receio de pisar os outros parecer signifi-
tempestades. Quando foste à Sicília tiveste de atravessar o car que os outros nos possam pisar. O poder de inspirar
8 mar. Se o piloto· é temerário não cuida dos perigos do temor tem sido para muitos causa de temor! Retiremo-
austro 3, o vento que agita o mar da Sicília e provoca os -nos com precaução de todas as frentes: tão perigoso é ser
remoínhos, nem se aproxima da margem à sua esquerda, desprezado como i~irar suspeitas. A solução é procurar 11
antes navega por entre os turbilhões causados por Caríb- refúgio na filosofia/ a prática do seu estudo exerce, já não
dis. Um outro mais prudente inquere dos conhecedores do digo sobre as pessoás de bem, mas mesmo sobre as não
local o sentido das correntes ou os indícios a tirar das muito más, um efeito semelhante ao das insígnias sacer-
nuvens, e dirigirá a sua rota longe daquelas paragens tão dotais. A eloquência forense, ou mesmo outra modalidade
tristemente .famosas pelos seus vórtices. Idêntico método de eloquência que actue sobre as massas, gera inimizades;
usará o sábio: evita a perniciosa companhia dos poderosos a filosofia arte pacífica e concentrada sobre si mesmo, não
......~ --''"''- -'"'·-->- ,...1... "'., . __ .,. _. _. ~..- ...~~~---· ......~•.,_,__, - . . ~ -- ....·-· ~··..~- ·-" ' -"'"' ~-·•""' ç-.... __.. ,... ,,.. .-.~-·-··. . ....--~ -·-">··-....
mas tomando - ~~~tela ·p~;~·- não 'aparenta; · evitá:la; em pode incorrer no desprezo, ela que, mesmo entre gente
irãõ.aê ·part;ci ·-segur;nÇa resíde em ,não'ã- buscar;nós de inculta, leva a palma a todas as outras artes. Nunca a
forma demasiado evidente, pois fugir de alguma coisa é o perversidade ganhará tanta força, nunca se encarniçará tanto
contra a virtude, que o nome da filosofia não permaneça
como algo venerável e sagrado. De resto, só com tranqui-
3 Vento sul. lidade e modéstia se pode praticar a filosofia.

46 47
12 Aqui objectarás tu: "Pois quê, então achas que M. lente saúde. Por vezes um navio pode afundar-se no porto:
Catão praticou com modéstia a filosofia, ele que se atreveu mas o que pensas tu não lhe sucederia no mar alto? A
a votar contra a guerra civil? Que ousou entremeter-se quantos perigos não ficaria mais exposto um homem de
entre os dois generais entregues à fúria das armas? Que, múltiplas actividades e empreendimentos se o próprio ócio
enquanto uns invectivavam Pompeio e outros César, ousou não garante a segurança? Ocasionalmente são vitimados
13 condená-los a ambos?" Pode discutir-se se, numa ocasião inocentes (quem o nega?), mas é mais frequente que o
daquelas, o sábio deveria ou não participar na vida polí- sejam culpados. Um esgrimista é atingido sob a armadura: \
tica. Que objectivo visava Marco Carão? Já não estava em tal não diminui a sua habilidade/Álém disso o sábio pode /
causa a liberdade, perdida de há muito. A questão era responsabilizar-se pelas suas dedSões, não pelo sucesso das 1
saber se o dono do Estado seria César ou Pompeio: que mesmas. Se o início depende de nós, o resultado depende \ 16
interessava a Carão essa disputa? Nenhum dos dois parti- da fortuna, sem que por isso eu lhe confira direitos a /
dos era o seu! Escolhia-se um ditador: que lhe importava julgar-me. "Mas assim poderás sofrer vexames, ou graves /
a ele qual seria o vencedor? Era possível que viesse a contrariedades.~: Um salteador pode matar-me; condenar- }
vencer o melhor, mas seria impossível que o pior não -me, isso não! r' ~ ,J
fosse o vitorioso! Mas estou-me referindo aos últimos Neste mómento estendes a mão para receber o tributo 17
tempos de Carão. Quanto aos anos precedentes, em que o diário. Vou encher-te as mãos de ouro e já que falei em
Estado era disputado pela violência, também não eram ouro aprende a maneira de tirares dele o mais compleço
próprios para aceitar a participação do sábio. Que outra proveito. "Aquele que melhor goza da riqueza é o que
coisa fez Carão senão vociferar palavras que ninguém ouvia, menos necessita da riqueza." 4 "Qual o autor?" - pergun-
nesses dias em que ora era levado pelas mãos da populaça tas. Para veres até que ponto sou tolerante decidi citar-te
e, exposto aos seus escravos, era arrastado à força para autores alheios: a frase é de Epiéuro, ou de Metrodoro, ou
fora do foro, ou cónduzido do senado até ao cárcere? de algum outro pensador lá dessa seita. Mas que interesse 18
14 Posteriormente havemos de ver se o sábio deve ou tem o nome do autor se ele falou para benefício de todos?
não dar a sua colaboração ao Estado. Por agora chamo a Quem necessita de riqueza está em ânsias por ela; ora
tua atenção para aqueles estóicos que, vivendo à margem ninguém goza um bem que é fonte de preocupações. Pro-
da política, se dedicaram ao estudo da condução da vida e cura sempre acrescentar-lhe qualquer coisa, e enquanto
do estabelecimento dos direitos humanos sem incorrerem pensa em aumentá-la, esquece-se de tirar dela partido.
ao desagrado dos poderosos. O sábio não deve perturbar Confere as contas, gasta as !ages do foro, compulsa os
os costumes do vulgo nem levar uma vida estranha de registos dos juros: em vez do dono dos bens, torna-se
15 molde a atrair sobre si as atenções. "Queres dizer que, guarda-livros!
usando esse sistema, ele estará sempre em segurança?"
Não te posso garantir isso, tal como não te posso garantir
que uma vida regrada implique necessariamente uma exce- 4
Epicuro, epist. 3, p. 63, 19-20 Usener.

48 49
15 o fôlego e deixa-nos incapazes de atenção e de aplicação a
um trabalho intelectual intenso; por outro, o excesso de·
1 Costumavam os antigos (e o uso conservou-se até ao alimentos limita-nos a inteligência. Como mestres de cul-
meu tempo) escrever logo a seguir à epígrafe das cartas tura física recrutam-se escravos da pior extracção, homens
estas palavras: "Se estás de boa saúde, tanto melhor; eu que dividem o tempo entre o óleo6 e o vinho - e que
estou de boa saúde." Quanto a nós teremos antes razões consideram bem sucedido o seu dia se transpiraram muito
para dizer: "se te aplicas à filosofia, tanto melhor"! De e se em compensação do suor derramado ingeriram bebi-
facto é na filosofia que reside a saúde verdadeira. Sem ela, das em quantidade equivalente, e tanto mais eficazes se
a alma estará doente e mesmo o corpo, embora dotado de consumidas em jejum! Beber e suar: vida de quem sofre
grande robustez, terá somente a saúde própria dos demen- do estômago!
2 tes, dos frenéticos. 5 Cultiva, portanto, em primeiro lugar a Há exercícios fáceis e breves que fatigam o corpo 4
saúde da alma, e só em segundo lugar a do corpo; esta rapidamente· e nos poupam tempo. Tais exercícios mere-
última, aliás, não te dará grande trabalho se o teu objec- cem sobretudo a nossa atenção: a corrida, os exercícios
tivo apenas for gozar de boa saúde. A ginástica destinada com halteres, os vários tipos de salto - em altura, em
a desenvolver a musculatura dos braços, do pescoço, do comprimento, o salto a que eu chamaria "à moda dos
tórax, é uma insensatez totalmente imprópria dum homem Sálios" 7, ou aquele outro que, em linguagem provocante,
de cultura: ainda que sejas bem sucedido na eliminação da diria "o passo dos tintureiros" 8• Escolhe algum destes exer-
adiposidade e no crescimento da musculatura nunca igua- cícios, cuja execução não é difícil 9. Seja qual for o teu pre- 5
larás nem a força nem o peso de um boi gordo! Pensa ferido, não deixes de passar depressa do corpo para a
também que quanto mais volumoso for o corpo mais alma: a esta, dá-lhe exercício dia e noite. O exercício físico
entravada e menos ágil se torna a alma. Por isso mesmo,
limita quanto puderes o volume do teu corpo e dá o
3 máximo espaço à tua alma! Vários inconvenientes se ofe- 6
O óleo com que os atletas untavam o ·corpo antes dos exercícios físicos,
recem a quem se preocupa em excesso com o físico: por nomeadamente a luta.
7
O Colégio dos Sálios, confraria de sacerdotes consagrados ao culto do deus
um lado o esforço exigido pelos próprios exercícios tira-nos Marte, realizava anualmente no mês de Março uma procissão pelas ruas de
Roma batendo nuns escudos sagrados que transportavam consigo (os ancilia) ,
dançando uma dança guerreira ritual e entoando em honra do deus hinos cujo
texto, na época de Quintiliano, já nem os próprios celebrantes compreendiam.
5 8
Uma das ideias em que Séneca não se cansa de insistir é a oposição entre O "passo dos tintureiros", ou seja, o pisar dos tecidos imersos em grandes
os adeptos da filosofia, ou seja, aqueles que, com maior ou menor dificuldade, tanques, não deveria diferir muito do antigo processo de espremer as uvas
tentam aproximar-se do ideal do "sábio" (sapiens) estóico, e a grande massa dos calcando-as em vastos recipientes.
9
stulti, os "insensatos, estúpidos, incultos, dementes''. Deverá entender-se que Tradução conjectura!; a corruptela que o texto apresenta neste passo, objecto
Séneca, ao usar o adjectivo stultus ("estúpido") não está a fazer qualquer pres- de diversas tentativas de correcção, ainda não foi sanada de modo a obter o
suposição sobre a inteligência do visado, mas cão somente a sublinhar o seu consenso geral. De qualquer forma, o sentido não deverá ser muito diferente do
afastamento em relação ao modelo ideal da Escola. que escrevemos.

50 51
não te exigirá grande esforço; o da alma, nem o frio ou o momento, admoesta os teus vícios ora com mais entu-
6 calor o interrompe, nem mesmo a velhice. Cultiva, por siasmo, ora com mais calma, conforme a orientação que a
conseguinte, um bem que vai melhorando com a idade! tua própria voz te aconselhar. E quando dominares a tua
Não te digo que estejas sempre debruçado sobre um livro entoação e a pretenderes tornar mais tranquila, faz com
ou um bloco de apontamentos; é preciso dar à alma algum que ela desça gradualmente, e não de chofre; conserva um
descanso, de modo tal, porém, que não perca a firmeza, registo médio, sem aquelas bruscas alterações de tom pró-
apenas repouse um pouco. prio de campónios iletrados. De facto, não é para exerci-
Andar de liteira, obriga a movimentar o corpo e não tar a voz que fazemos estes exercícios mas para que atra-
prejudica a actividade intelectual: poderás ler, ditar, con- vés dela nos exercitemos nós!
versar, ouvir, - coisa, aliás, que o caminhar a pé também Já te libertei duma preocupação de certa importância: 9
7 te não impede de fazer. Não deverás também desprezar a uma pequena oferta - um dito grego - vai agora juntar-
educação da voz, conquanto eu te aconselhe a não a eleva- -se ao benefício que já te fiz. Aqui tens um preceito notá-
res gradualmente, e segundo modulações determinadas, para vel : "A vida do insensato carece de atractivos e abunda
depois desceres ao registo grave. Pode ser também que te em temores, já que está totalmente orientada para o
venha à ideia aprenderes o modo correcto de marchar!? futuro" 11 • Perguntas-me quem é o autor: é o mesmo que
Pois nesse caso podes socorrer-te desses homens a quem anteriormente. O que imaginas tu que se entende por
a fome ensinou novos ofícios: algum deles te corrigirá o "a vida do insensato"? A vida de Baba ou de Isião? Nada
ritmo da marcha, outro observar-te-á a boca enquanto disso. É da nossa vida que se trata; é de nós, que não
comes, enfim, a tantos pormenores estarão atentos quan- pensamos em como é agradável não ter de pedir seja o
tos a tua paciência crédula permitir à sua audácia! que for, em como é sublime sentirmo-nos satisfeitos e
Certamente não irás exercitar a voz começando de independentes da fortuna. Pensa continuamente, Lucílio, 10
imediato aos gritos no tom mais agudo que puderes! O em todos os bens que já conseguiste obter; e quando
que é natural é ir elevando a voz a pouco e pouco, tal reparares naqueles que te levam vantagem, atenta igual-
como, no tribunal, os oradores começam por falar em tom mente em todos os que estão abaixo de ti. Se quiseres
de conversa até passarem aos grandes clamores; ninguém mostrar-te grato para com os deuses e para com o que a
começa desde logo por implorar a benevolência dos Quiri- · vida te deu, pensa no grande número daqueles a quem te
8 tes 10 ! Assim sendo, e de acordo com a tua disposição de superiorizaste. Mais: que te importam os outros, se te
superiorizaste a ti mesmo?! Marca um limite para lá do 11
qual não passes, ainda que o pretendesses! Afasta duma
10
vez por todas o desejo desses bens tão ilusórios, que até é
Quirires são os cidadãos romanos na plenirude dos seus direiros civis. A
captatio beneuolentiae (o apelo à benevolência do povo romano) ocorria, por
norma, no rermo do discurso, quando o orador, depois de devidamenre exposra
a sua argumenração, recorria à emoção a fim de conciliar o favor da assembleia. 11
Epicuro, fr. 491 Usener.

52 53
preferível apenas desejá-los sem os obter! De resto, se mas não confio ainda totalmente. Aliás quero que tu faças
neles existisse algo de concreto, eles inevitavelmente nos o mesmo comigo, ou seja, que não acredites no que te
saciariam; o que se passa de facto é que quanto mais os digo com excessiva prontidão. Observa-te a ti mesmo,
saboreamos mais lhes sentimos a sede. Afastemos de nós analisa-te de vários ângulos, estuda-te. Acima de tudo veri-
essas miragens sedutoras: tudo aquilo que se encontra nas fica se progrediste no estudo da filosofia ou no teu pró-
incertezas do futuro, por que motivo me será mais vanta- prio modo de vida. A filosofia não é uma habilidade para 3
joso consegui-lo da fortuna, do que eu próprio disso pres- exibir em público, não se destina a servir de espectáculo;
cindir? E porque não prescindir? Para quê esquecer-me da a filosofia não consiste em palavras, mas em acções. O
fragilidade humana e pôr-me a acumular bens? Para quê seu fim não consiste em fazer-nos passar o tempo com
penar por eles? Este dia será o meu último dia; e se alguma distracção, nem em libertar o ócio do tédio. O
acaso o não for decerto que o meu fim já não está distante! objectivo da. filosofia consiste em dar forma e estrutura à
nossa alma, em ensinar-nos um rumo na vida, em orien-
tar os nossos actos, em apontar-nos o que devemos fazer
16 ou pôr de lado, em sentar-se ao leme e fixar a rota de
quem flutua à deriva entre escolhos. Sem ela ninguém
1 Tenho a certeza, Lucílio, que é para ti uma verdade pode viver sem temor, ninguém pode viver em segurança.
evidente que ninguém pode alcançar uma vida, já não A toda a hora nos vemos em inúmeras situações em que
digo feliz, mas nem sequer aceitável sem praticar o estudo carecemos de um conselho: pois é a filosofia que no-lo
da filosofia; além disso, uma vida feliz é produto de uma pode dar. Haverá quem diga: "De que me serve a filoso-
sabedoria totalmente realizada, ao passo que para ter uma fia se existe o destino? De que me serve ela se há um 4
vida aceitável basta a iniciação filosófica. Uma verdade deus que tudo dirige? De que me serve ela se tudo obe-
evidente, todavia, deve ser confirmada e interiorizada bem dece ao acaso? De facto, tão impossível é alterar o que
no íntimo através da meditação quotidiana: é mais traba- está predeterminado como tomar providências em relação
lhoso, de facto, ·manter firmes os nossos propósitos do que ao que é incerto, pois ou as minhas decisões já foram
fazer propósitos honestos. É imprescindível persistir, é antecipadas por um deus que me indicou como agir, ou
preciso robustecer num esforço permanente as nossas ideias, então é a fortuna que nada deixa entregue ao meu arbítrio".
se queremos que se tranforme em sabedoria o que apenas Qualquer que seja, caro Lucílio, o valor destes argu- 5
era boa vontade. mentas, e mesmo que todos sejam válidos, devemos prati-
2 Por esta razão não precisas de gastar comigo tantas car a filosofia. Quer nos determine a lei inexorável do
palavras nem de fazer tão longas profissões de fé: eu sei destino, quer algum deus moderador do universo ordene
que tu já progrediste bastante. Sei bem de que fonte nas- todos os acontecimentos, quer seja o acaso que, desorde-
cem as tuas palavras, que nem são fingidas nem exagera- nadamente, empurre aos baldões o curso da vida humana,
das. Dir-te-ei, contudo, o que penso: espero muito de ti, a filosofia deverá proteger-nos. Ela nos incitará a obedecer

54 55
espontaneamente à divindade, a resistir a pé firme à for- falsas opm10es não conhecem limite algum, porquanto a
tuna; ela nos ensinará a seguir a divindade, ou a suportar falsidade não tem termo. Quem caminha por uma estrada
6 o acaso. Mas não é agora oportuno começar a discutir os chega sempre ao fim; o erro, esse não conhece medida.
limites do nosso arbfrrio no caso de haver uma providên- Afasta-te, portanto, dos vãos desejos. Quando quiseres saber
cia ordenadora, de o curso do destino nos arrastar manie- se o teu desejo é de origem natural, ou se provém de
tados, ou de predominarem as ocorrências súbitas e casuais. falsa opinião, vê se ele pode encontrar um limite: se, por
Agora regresso ao meu ponto de partida : aconselhar-te muito que obtenhas, é sempre mais o que te falta ainda
com todo o empenho que nunca deixes esmorecer ou obter, então podes ter a certeza de que é um desejo não
esfriar o ímpeto que te vai na alma. Conserva-o, dá-lhe natural.
forma, de modo a que esse ímpeto de hoje se torne con-
figuração permanente da tua alma.
7 Se bem te conheço, desde o início estás à procura do 17
presentinho que esta carta te leva: sacode-a bem, e encon-
trá-lo-ás. Não te admires da minha generosidade: até agora Se és sábio, melhor, se quiseres ser sábio, deixa-te de 1
estou sendo pródigo... de bens alheios. Mas porquê dizer fantasias e aplica as tuas forças a fim de atingires quanto
"alheios"? Qualquer boa máxima, seja qual for o autor, é antes a perfeição espiritual. Se algo te impede de avançar,
minha propriedade. Aqui tens, pois, outra sentença de liberta-te, corta o mal pela raiz. "O que me impede" -
Epicuro: "Se viveres conforme a natureza, nunca serás dizes tu - "é o património familiar; quero dispor as coi-
pobre; se viveres conforme a opinião do vulgo, nunca sas de modo que possa viver do rendimento, sem que a
8 serás rico" 12• As exigências da natureza são exíguas; imen- pobreza me seja um fardo, ou eu me torne um fardo para
sas, as da opinião do vulgo. Pode acumular-se nas tuas alguém". Ao falares assim pareces-me não dar conta de 2
mãos a riqueza de muitos milionários; pode a fortuna dar- todos os recursos à disposição do bem em que estás pen-
-te um nível económico superior ao normal, cobrir-te de sando. Quero dizer, tu percebes o ponto essencial - a
ouro, vestir-te de púrpura, elevar-te a um tal grau de luxo suprema utilidade da filosofia - , mas ainda não distin-
e requinte que caminhes sobre mármores, sem nunca veres gues com suficiente clareza os pontos de pormenor; ainda
um grão de terra; pode vir a ser-te possível calcar aos pés não sabes quanto ela nos pode ajudar em qualquer altura
a riqueza, e não só possuí-la; podes ainda acrescentar está- e, para usar os termos de Cícero, "corre em nosso auxí-
tuas, e pinturas, e tudo quanto as artes do luxo sabem lio"13 nas situações mais graves, como de resto o faz mesmo
9 produzir: tudo isto só te ensinará a desejar ainda mais. Os em situações banais. Faz o que te digo, pede conselho à
desejos naturais são limitados; aqueles que são gerados por filosofia, e ela te convencerá a não te importares com as

12 13
Epicuro, fr. 201 Usener. Cícero, Hort., fr. 98 p. 326 Mueller.

56 57
3 contas! É esse então o teu problema, é por isso que adias tar até a fome! Quantas cidades cercadas não a aguentaram,
a tua formação : para não teres de recear a pobreza! E sem esperanças de outra recompensa para o seu sofri-
não será a pobreza desejável? Muitos há a quem a riqueza mento para além de evitar sujeitar-se ao arbítrio dos ven-
impediu de dedicar-se à filosofia. A pobreza não é obstá- cedores? A recompensa que te promete a filosofia é de
culo, não é motivo de angústias. O pobre, quando ouve os longe superior: a liberdade permanente, a ausência de receio
clarins soarem, sabe que o caso lhe não respeita; quando quer ante os homens, quer ante os deuses. Para alcançar
ouve gritar por água, procura o meio de escapar ao fogo, tal recompensa não achas que vale a pena suportar até a
sem cuidar dos objectos a salvar; se tem de viajar por fome? Houve exércitos que experimentaram a mais com- 7
mar, não provoca bulício no porto nem faz com que a pleta carência, vivendo de raízes, matando a fome com
escolta dum único viajante encha de estrépito o cais; não coisas que só até o mencioná-las repugna; e aguentaram
tem à sua volta uma multidão de escravos para cujo sus- tudo para defender um reino - bem podes espantar-te
tento seja preciso recorrer à fertilidade de regiões longín- - estrangeiro! 14 Para libertar a alma das paixões haverá
4 quas. Não tem problema sustentar meia-dúzia de estôma- quem hesite em suportar a pobreza? Não há qualquer
gos de hábitos saudáveis e sem outra ambição senão serem aquisição prévia a fazer: pode chegar-se à filosofia mesmo
saciados. A fome contenta-se com pouco, os paladares sem viático ! Pois quê, depois de teres tudo o mais é que 8
requintados é que têm grandes exigências. A pobreza pretendes adquirir a sabedoria? Ela será apenas mais um
limita-se a satisfazer as necessidades mais prementes: por- objecto na tua vida, será, por assim dizer, um mero aces-
que deverás tu recusá-la como companheira, se até os sório? Ora bem: se tu já possuis alguma coisa começa a
5 ricos de bom senso lhe adaptam os hábitos? Se quiseres filosofar (doutro modo como saberás se as tuas posses não
estar livre para cuidares da alma deverás ser pobre, ou são já demasiadas?); se nada possuis, procura a filosofia
fazer vida de pobre. O estudo da filosofia não dará fruto antes de mais nada. "Mas faltar-me-ão recursos indispen-
se não adaptares uma vida frugal; ora a frugalidade não sáveis". Para começar, não poderão faltar-te recursos, por- 9
passa de pobreza voluntária. Deixa-te, portanto, de pretex- que as exigências naturais são mínimas e o sábio adapta-
tos: "Ainda não tenho o rendimento suficiente; quando o -se ao que é natural. Se se vir reduzido às mais extremas
obtiver, dedicar-me-ei inteiramente à filosofia" . Ora é carências, nesse caso abandonará a vida e deixará de ser
precisamente a filosofia que tu deves obter antes de mais um fardo para si próprio. Se dispuser dos recursos míni-
nada, em vez de a adiares, de a deixares para o fim; é mos indispensáveis à conservação da vida, usará esses
por ela que tens de começar. "Quero arranjar primeiro os recursos e, sem se preocupar nem angustiar para além do
meios de que viver". O que deves é aprender a "arranjar- indispensável, dará o "quanto baste" ao estômago e aos
-te" a ti mesmo: se algo te impede de viver bem, nada te
6 pode impedir de morrer bem. Não há qualquer razão
para que a pobreza, ou mesmo a indigência, nos afaste da 14
Em de ira 3, 20, 2 Séneca relata como os soldados de Cambises, devido à
filosofia. Para obtermos os seus benefícios devemos supor- imprevidência do rei, se viram forçados até a comer sola amolecida ao fogo.

58 59
músatlos; observando as fadigas dos ricaços, a agitação 18
sem freio da corrida às riquezas, o sábio, tranquilo e con-
10 tente, rir-se-á, dizendo: "Para quê adiares a tua própria Estamos em Dezembro: a cidade está coberta de suor! 1
formação? Estás à espera de receberes juros, de tirares A ostentação desregrada invadiu toda a vida colectiva.
lucro de alguma operação comercial, de seres contemplado Fazem-se estrepitosamente enormes preparativos, como se
no testamento dum velho rico, quando podes tornar-te existisse alguma diferença entre o período das Saturnais e
rico instantaneamente? A sabedoria pôe a riqueza à tua os dias úteis. O facto é que não há qualquer diferença, e
mão: ao mostrar que é supérflua, está como que a oferecer- por isso mesmo acho que tem toda a razão quem afirma
-ta!". Mas estas considerações convirão melhor a outros; tú que se Dezembro em tempos foi um mês, agora é um
estás mais perto da gente abastada. Se mudares de época, ano inteiro! 16
serás rico em excesso, em todas as épocas uma só coisa Se estivesses aqui ao pé, de boa vontade trocaria 2
permanece idêntica - aquilo que é bastante. impressões contigo sobre qual te parece a atitude a adap-
11 Já podia terminar aqui esta carta se não tivesse criado tar: ou não alterar em nada os nossos hábitos quotidianos,
em ti certos maus hábitos! Aos reis Partos, ninguém os ou então, para nos não julgarem contrários aos costumes
pode ir saudar sem levar uma oferenda; a ti, não posso da maioria, darmos algo de animação ao jantar e abster-
dizer adeus sem um presente!. .. Pois bem, vou saldar a mo-nos de usar a toga. Na realidade, enquanto antiga-
dívida com um dito de Epicuro : mente "mudávamos de roupa" em situações de grande
"Conquistar riqueza tem sido para muitos não o fim, agitação e de calamidades públicas, agora fazêmo-lo em
mas apenas a troca de miséria." 15 atenção aos prazeres e aos dias de festa! 17 Se bem te 3
12 Não é de admirar! O vício não está nas coisas, está conheço, no caso de teres de actuar como árbitro, não
na própria alma. O mesmo defeito que nos faz achar
insuportável a pobreza faz com que achemos a riqueza
insuportável! Podes deitar um enfermo num leito de
16 As Saturnais (v. livro I nota 29) comportavam elementos que em parte
madeira ou num leito de ouro, não há alteração, pois para
correspondem às nossas festas de Natal (a troca de presentes) e em parte (a
onde quer que o leves ele levará consigo a sua enfermi- licenciosidade) se aproximam do Carnaval. Na Apocol., Séneca diz que Cláudio
dade; do mesmo modo nada se altera se uma alma doente "qual príncipe de Carnaval, celebrava o mês de Saturno durante o ano inteiro"
viver na riqueza ou na pobreza: o seu vício segui-la-á (8.2), e mais adiante comenta a tristeza dos adeptos do imperador falecido
dizendo: "eu bem vos dizia que o Carnaval não havia de durar sempre!" (12.2).
sempre. 17 Antigamente, trocava-se a toga pelo trajo militar em períodos de guerra

("agitação"), ou por roupa de luto ("calamidades"); agora, só se usa roupa de


festa, em especial adequada para os banquetes! Cf. Marcial, V, 79: "Durante um
só banquete, ó Zoilo, levantaste-te onze vezes, para onze vezes ires trocar a
túnica festiva, não fosse a tua veste ficar húmida de suor ou uma corrente de ar
fazer mal à tua cútis! Por que é que eu janto contigo, ó Zoilo, e não fico a
15
Epicuro, fr. 479 Usener. suar? Porque a minha única veste dá-me frescura que baste!"

60 61
consentirias que fôssemos nem totalmente semelhantes nem ços supérfluos para serem capazes de afrontar as necessi-
totalmente diferentes da multidão de barrete frígio. 18 A dades reais. Se não queres que um homem entre em
menos que consideremos dever ser sobretudo exigentes pânico perante uma situação concreta, treina-o antes que
com a nossa alma em dias festivos, e sermos os únicos a tal situação ocorra. Este princípio foi posto em prática por
renunciar aos prazeres numa ocasião em que toda a gente aqueles que todos os meses imitavam uma situação de
se lhes entrega. Será de facto uma prova segura de fir- pobreza a tal ponto que atingiram quase a miséria extrema,
meza de ânimo não acompanhar, não se deixar guiar por na intenção de nunca terem de recear o que de uma vez
4 um ambiente aliciador de concessões à volúpia. Se é indí- por todas aprendessem a suportar. Não penses que me 7
cio de maior constância mantermo-nos inteiramente sóbrios estou referindo aos jantares à moda de Tímon, aos cubícu-
em meio de uma multidão ébria a ponto de vomitar, será los miseráveis e a tudo o mais que os ricos, entediados da
mais moderada a nossa atitude se nos não situarmos à própria riqueza, fazem gala em aceitar. Não, eu quero
margem, não nos tornando notados nem nos deixando autenticidade na tua enxerga, no teu saio grosseiro, no teu
absorver na turba, isto é, se fizermos a mesma coisa mas pão duro e intragável! Leva esta vida uns três ou quatro
com uma diferente disposição de espírito. Afinal de con- dias, ocasionalmente mesmo por períodos mais longos, a
tas, é possível participar numa festa sem cair no deboche! título, não de capricho, mas de experiência. Então, Lucílio,
5 Tenho, aliás, tanta vontade de pôr à prova a tua fir- podes crer que terás a satisfação de ver como matas a
meza de alma que, com base nos preceitos de filósofos fome com dois asses 19, de compreender que, para viver
ilustres, forjaria este outro preceito destinado à tua pessoa: em segurança, não precisamos da fortuna para nada!
fixa alguns dias intercalados nos quais mates a fome com Mesmo quando hostil, a fortuna não nos nega o que é
alimentos exíguos e vulgares, e te vistas com roupa o estritamente necessário. Procedendo assim, de resto, não 8
mais possível grosseira, de modo a comentares para ti há razão para pensares que fazés uma grande coisa (fazes
6 próprio: "era então disto que eu tinha medo?" A alma apenas o mesmo que muitos milhares de escravos, que
deve preparar-se para as dificuldades durante os períodos muitos milhares de pobres): apenas te dá direito a gabares-
de tranquilidade, deve-se fortalecer contra as injúrias da -te o facto de o não fazeres por coacção, o facto de te ser
fortuna nos períodos em que ela nos sorri. Os soldados fácil suportar para sempre aquilo que experimentaste oca-
fazem manobras em tempos de paz, constroem paliçadas sionalmente~ Treinemo-nos esgrimindo contra o poste: para
mesmo sem haver inimigos, treinam-se através de esfor- a fortuna nos não encontrar impreparados, façamos com
que a pobreza se nos torne familiar. Seremos ricos com

18
O barrete frígio (pilleus) era usado especialmente nos dias de festa
19
(nomeadamente nas Sarurnais); aos escravos libertos dava-se usualmente um É, naturalmente, impossível tentar uma equivalência entre as moedas
destes barretes, como sinal da sua nova condição de homens livres, e é a este romanas e valores acruais. De qualquer modo "dois asses" é uma importância
hábito que Séneca aqui faz alusão. ridícula, tal como nós poderíamos dizer "dois tostões".

62 63
muito maior tranquilidade se soubermos que não custa Nenhum outro homem é digno de um deus senão 13
9 nada ser pobre! O grande mestre do prazer que foi Epi- aquele que desprezou a riqueza. Não que eu te proíba a
curo tinha alguns dias fixos em que nunca comia à sua sua posse, o que pretendo é que a possuas sem ansiedade;
vontade, para observar se algum detrimento daí resultava e isto apenas o conseguirás se te convenceres que podes
ao completo e consumado prazer, até que ponto tal detri- viver feliz sem ela, se a olhares como coisa que a todo o
mento se fazia sentir, e também para ver se merecia momento pode desaparecer!
grandemente a pena eliminá-lo. Pelo menos é o que ele Mas já é tempo de começar a dobrar esta carta. "Pri- 14
diz na carta que escreveu a Polieno datada do arcontado meiro" - dizes tu - "paga o que deves". Vou remeter-te
de Carino20 ; gaba-se mesmo que pode alimentar-se por para Epicuro, e ele que te faça o pagamento! "Uma cólera
menos de um asse, enquanto Metrodoro, ainda num estado desmesurada gera a loucura" 22 • É importante darmo-nos
10 não tão avançado, necessita de um asse inteiro. Julgas que
conta até que ponto isto é verdade: todos temos escravos,
este tipo de alimentação produz só saciedade? Produz
todos temos inimigos. Todas as pessoas são susceptíveis 15
também prazer, não um prazer ligeiro e fugaz que conti-
de arder ao fogo desta paixão, que tanto pode nascer do
nuamente se tem de espevitar, mas antes um prazer cons-
tante e fixo. Não que seja agradável viver de água, de amor como do ódio, e que não menos ocorre em situações
polenta, de uma migalha de pão de centeio; mas é um sérias do que entre jogos e brincadeiras. Não interessa
prazer supremo conseguir sentir prazer em tais alimentos sequer a importância do motivo que a gera, mas sim em
e atingir assim um estado ao abrigo de toda e qualquer que tipo de carácter ela se produz. Do mesmo modo não
11 injustiça da fortuna. Na prisão é mais abundante a comida; importa se um fogo é grande, mas sim em que matéria
o carrasco alimenta com menos parcimónia os condenados ele pega. Construções extremamente sólidas podem per-
à pena capital. Vê então quanta grandeza de alma há em manecer incólumes, enquanto matérias secas e inflamáveis
sujeitar-se voluntariamente a uma alimentação tão parca fazem uma faísca transformar-se em incêndio. É assim
que mesmo os condenados à morte não estão a ela redu- mesmo, caro Lucílio: o resultado duma cólera extrema é a
zidos! Tal atitude equivale a despojar a fortuna das suas insânia, e por isso há que evitar a cólera, não tanto por
12 armas! Começa, pois, amigo Lucílio, a imitar os hábitos obediência à moderação, como para conservar a sanidade
destes filósofos, e fixa alguns dias em que renuncies aos mental!
teus bens e te habitues a viver com o mínimo indispensá-
vel. Começa a manter relações com a pobreza:
19
não te esquives, meu hóspede, a desprezar a riqueza,
Fico sempre muito alegre quando recebo cartas tuas. 1
mostra-te digno de um deus / 21
Elas enchem-me de esperança e mais do que promessas já

20
Epicuro, fr. 158 Usener.
21 22
Vergílio, Aen., VIII, 364-5. Epicuro, fr. 484 Usener.

64 65
me trazem certezas a teu respeito. Continua assim, é o lembrar-te com desgosto? Os clientes? Nenhum te procu-
que te peço com toda a insistência! E que coisa melhor eu rava a ti mas a algo que tu possuías ! Os clientes de outro
poderia pedir para um amigo senão aquilo que lhe peço tempo buscavam a amizade, hoje só buscam o proveito!
para seu próprio benefício? Se isso te for possível vai-te Basta que o velho patrono, sentindo-se iludido, altere o
subtraindo a essas tuas ocupações; se não, corta com elas testamento, e a saudação matinal irá ser feita a outra
de vez! Já perdemos tempo demasiado; comecemos, atin- porta. Uma coisa valiosa não pode comprar-se por pouco:
2 gida a velhice, a preparar a nossa bagagem! Em que pode considera, portanto, se preferes desistir de ti mesmo ou
isso atrair-nos a hostilidade? Vivemos no meio das vagas, apenas de parte do que tu eras! Era bom que pudesses 5
morramos ao menos no porto. Eu não te aconselharia a envelhecer dentro dos limites modestos do teu nascimento,
fazeres um título de glória do teu ócio: 23 não deverás . era bom que a fortuna não te tivesse elevado a tal ponto!
vangloriar-te dele, nem igualmente .mantê-lo oculto. Por Uma rápida e bem sucedida carreira apartou-te para longe
isso também te não obrigo, à força de condenar as loucu- das perspectivas de uma vida salutar: uma província a
ras da humanidade, a desejar que vivas na mais total obs- administrar, um cargo de procurador, as novas missões
curidade. Faz de modo a que o teu ócio, sem atrair as que logicamente seriam de esperar! Cargos ainda mais
3 atenções, não passe totalmente despercebido. Deixa que os importantes estarão à tua espera, e depois outros ainda.
outros, aqueles que ainda não tomaram uma decisão a Até quando? Porquê esperar até não haver mais postos
esse respeito, determinem se desejam passar ou não a sua que desejes ocupar? Tal momento nunca chegará! Segundo 6
vida na obscuridade. Tu já não tens essa liberdade: a força a nossa escola, o destino tece-se a partir dum nexo infindo
do teu talento, a elegância dos teus escritos, as tuas rela- de causas; idêntico é o ne~o das ambições: cada uma gera
ções de amizade com a melhor nobreza colocaram-te sob sempre mais outra! Estás metido numa vida que, por si
o olhar do público. És uma personalidade conhecida. Ainda mesma, nunca porá um termo ·à miséria da tua servidão.
que te retirasses e te escondesses no mais remoto luga- Retira de sob o jugo o teu pescoço magoado: é preferível
4 rejo, o teu passado impor-te-ia à notoriedade! Não pode- que to cortem de uma vez a que to sobrecarreguem sem-
rás viver no meio das trevas: muito do teu esplendor pre! Se te retirares para a vida privada, terás tudo em 7
antigo te seguirá para onde quer que fujas! Poderás, con- escala reduzida, mas o que tiveres chegará para te cumu-
tudo, reivindicar uma vida retirada sem concitares o ódio lar; presentemente, todos os bens e honras que se acumu-
de ninguém e sem que a tua alma sinta saudades ou larem sobre ti não bastam para te saciar. O que preferes
remorsos. Afinal, o que abandonarás tu de que possas tu : uma indigência que te sacia ou uma abundância que te
deixa esfomeado? O sucesso é, não só ambicioso, como
também exposto às ambições alheias; enquanto nada for
23 O "ócio" em sentido romano significa o abandono das ocupações públicas,
bastante para ti, também tu não bastarás para satisfazer
especialmente da participação na vida política, e não deve em caso algum os outros! Perguntar-me-ás qual o modo de saires dessa
confundir-se com "ociosidade". Cf. livro I, nota 13. vida? ! Seja de que modo for! Pensa nos perigos em que 8

66 67
incorreste por dinheiro, nos esforços que te custaram os um dito de Epicuro. Aqui vai: "Pensa primeiro em com-
teus cargos!... Para obteres o teu ócio também tens de panhia de quem comes e bebes, e não naquilo que vais
arriscar-te, a menos que prefiras envelhecer entre as ansie- comer e beber; refeição sem amigos, é vida de leão ou de
dades das procuradorias primeiro, dos cargos urbanos em 26
lobo!" Esta situação só será a tua se te retirares da vida 11
seguida, no meio da agitação e das sucessivas tempestades pública; se o não fizeres, terás muitos companheiros de
de problemas que, embora levando uma vida severa e mesa, cujos nomes o escravo escolherá da lista dos clientes
tranquila, nunca conseguirás evitar! Que importam, de facto, que te vão saudar; é um erro, porém, procurar os amigos
as tuas pretensões a uma vida tranquila se o teu próprio
no átrio e pô-los à prova na sala dos banquetes! Pior mal
sucesso ta não permite? E o que te sucederá se consenti-
não sucede ao homem público e obcecado pelos seus negó-
res que esse sucesso ainda aumente mais? Quanto mais
cios do que tomar como amigos aqueles que o não olham
aumentar o teu êxito, mais aumentarão os teus receios!
como amigo! Um tal homem pensa que as suas prodigali-
9 Gostaria de citar-te aqui uma frase de Mecenas, uma ver-
dade que ele disse no auge do seu prestígio: dades conseguem granjear-lhe simpatias, quando, na reali-
dade, os outros quanto mais lhe devem, mais o odeiam:
24
é a própria altitude que fulmina os cumes ! quem pouco deve é devedor, quem deve muito é inimigo!
"Pois quê? Então os nossos benefícios não nos conquistam 12
Para o caso de me perguntares em que livro escreveu
amizades?" Conquistam, sim, mas quando há possibilidade
estas palavras, digo-te já: foi no Prometeu 25 • Ele pretendia
de escolher os beneficiários, quando os benefícios são bem
dizer "que faz os cumes serem fulminados". Pois bem,
aplicados, e não espalhados ao acaso. Por conseguinte,
haveria algum poder neste mundo que te tornasse capaz
de usar tão tola linguagem? Mecenas foi um homem de enquanto ainda estás começando a ser dono de ti mesmo,
talento, que poderia ter sido um notável expoente da elo- obedece a este conselho dos sábios: considera que nesta
quência romana se o seu próprio sucesso não tivesse feito matéria é muito mais importante a pessoa do beneficiário
dele um homem sem vigor, um castrado! Aqui tens o que do que o montante do benefício!
te espera se não começares desde já a colher as velas e a
aproximar-te da costa! Mecenas só o fez tarde demais ...
10 Eu bem podia dar por saldada a minha conta com 20
esta citação de Mecenas, mas, se bem te conheço, tu irias
descompor-me: só aceitas que te pague em moeda nova e Se estás bem de saúde, se te consideras digno de seres 1
bem cunhada! Sendo assim, há que pagar a dívida com um dia senhor de ti mesmo, fico contente. Será minha a
glória, se porventura te subtrair a esse mar de incertezas
onde erras, sem esperança, à deriva. Há, porém, uma
24
Mecenas, fr. 10 Lunderstedt.
25
Não se sabe a que tipo de obra corresponderia este título. Talvez uma
tragédia? 26
Epicuro, fr. 542 Usener.

68 69
coisa que te peço, . meu caro Lucílio, com todo o empenho: nem, se o fez, permanece fiel ao seu propósito, antes pre-
interioriza a filosofia no mais íntimo de ti mesmo e fun- tende ir mais além; e não se trata apenas de mudar de
damenta a avaliação do teu progresso não em palavras objectivo, acaba-se por voltar atrás e de novo cair na
que digas ou escrevas, mas sim na tua firmeza de ânimo situação anteriormente rejeitada e condenada. Em suma, 5
e na diminuição dos teus desejos; comprova as palavras deixando as antigas definições de sabedoria e abarcando
2 com os actos ! Diferente é o propósito dos declamadores numa fórmula todo o ciclo da vida humana, acho que
que pretendem ganhar o aplauso da assistência, diferente seria bastante dizer isto: a sabedoria consiste em querer, e
é também o dos conferencistas que atraem a atenção dos em não querer, sempre a mesma coisa. Não é necessário
jovens e dos ociosos pela variedade dos temas ou pela acrescentar, como condição, que devemos querer o que é
elegância da exposição; a filosofia, essa, ensina a agir, não justo, porque só é possível querer sempre a mesma coisa
a falar, exige de cada qual que viva segundo as suas leis, se essa coisa for justa. Ora sucede que as pessoas ignoram 6
de modo que a vida não contradiga as palavras, nem o que querem excepto no próprio momento do querer;
sequer se contradiga a si mesma; importa que todas as ninguém determina de uma vez por todas o que deve
nossas acções sejam do mesmo teor. O maior dever - e querer ou não querer; todos os dias se muda de opinião,
também o melhor sintoma __:_ da sabedoria é a concor- mudança por vezes diametralmente oposta; para muitos,
dância entre as palavras e os actos, o sábio será em todas em suma, a vida não passa de um jogo! Quanto a ti,
as circunstâncias plenamente igual a si próprio. "Mas quem mantém-te fiel ao propósito que adoptaste, e assim' conse-
será capaz de atingir um tal nível?" Poucos, decerto, mas guirás talvez atingir o ponto máximo, ou pelo menos um
mesmo assim, alguns! Não escondo que a empresa é difí- ponto tal que apenas tu compreenderás não ser ainda o
cil; nem te digo que o sábio avançará sempre ao mesmo máximo.
3 ritmo, embora o rumo sempre seja o mesmo. Auto-analisa- "O que será então feito de tóda esta gente que forma 7
-te, portanto, e verifica se há discordância entre a tua a minha casa quando essa casa deixar de existir?" Quando
roupa e a tua casa, se és pródigo para contigo mas mes- toda essa gente deixar de se alimentar à tua custa, passará
quinho para com os teus, se é frugal a tua ceia mas a fazê-lo à sua própria; e tu, aquilo que nunca conseguirás
luxuosa a tua habitação. Adopta de uma vez por todas saber através das tuas benesses, sabê-lo-ás graças à tua
uma regra de conduta na vida e faz com que toda a tua pobreza: esta manterá junto de ti os amigos verdadeiros,
vida se conforme com essa regra. Há pessoas que se enquanto os que te procuravam não por ti mas pelos teus
retraem em casa e que se expandem sem inibições fora bens se irão embora. Não é exacto que basta isto para
dela; semelhante variedade de atitudes é viciosa, é indício nos fazer amar a pobreza - o mostrar-nos quem de
de um espírito hesitante que ainda não achou o seu ritmo facto nos ama? Quando virá o dia em que ninguém te
4 próprio. Posso explicar-te, aliás, donde provém esta incons- mentirá para te ser agradável?! Dirige, pois, as tuas medi- 8
tância, esta divergência entre os propósitos e as acções. A tações, os teus esforços, as tuas opções para este objectivo -
causa é que ninguém fixa nitidamente aquilo que quer - viveres contente contigo próprio e com os bens que de

70 71
ti provêm, - e deixa a cargo da divindade todos os teus verificar se este no fundo não gosta da pobreza e se
outros votos. Poderá haver uma felicidade mais ao nosso aquele no fundo não gosta mesmo de ser rico. A enxerga
alcance? Reduz-te a uma posição humilde de que te não e os andrajos não são indício seguro de uma mentalidade
seja possível decair. Para te ajudar a fazer isto mais ani- superior senão quando é evidente que eles são motivados
mosamente servirá o tributo desta carta, que prontamente por uma opção, e não suportados por necessidade. Mais 12
te vou oferecer. ainda, um carácter nobre não procura apressadamente a
9 Podes olhar-me de revés à vontade: ainda desta vez miséria por ser uma situação preferível; prepara-se, porém,
será Epicuro o encarregado de saldar a minha dívida! Diz para ela com uma situação fácil de aguentar. E é efecti-
ele: "Acredita no que te digo, as tuas palavras ganharão vamente fácil, Lucílio, e mesmo agradável, quando acede-
maior força se dormires numa enxerga e te vestires de mos a ela depois de uma meditação já vinda de longe. Há
andrajos, pois deste modo atestarás na prática que as tuas na pobreza uma coisa indispensável para termos alegria: a
palavras não são apenas palavras!" 27 Eu sou forçado a dar segurança. Julgo, por conseguinte, ser necessário fazer o 13
outra atenção ao que diz o nosso Demétrio porque o vi que, conforme já te disse noutra carta,28 alguns grandes
seminu, deitado numa coisa a que seria exagero chamar homens fizeram várias vezes: reservar alguns dias para,
enxerga: um tal homem não ensina a verdade, dá teste- vivendo numa pobreza imaginária, nos prepararmos para a
munho dela! verdadeira. Coisa tanto mais necessária quanto nós, amole-
10 "Pois quê?" - dirás tu. - "Não é possível sentir cidos pela vida fácil, consideramos tudo como duro e
desprezo pelas riquezas que temos na nossa posse?" Claro penoso. Há que despertar do sono a nossa alma, há que
que é possível. Um homem que as veja à sua volta, que espicaçá-la, há que mostrar-lhe como é exíguo o que a
longamente se admire como elas chegaram até si, que se natureza nos concedeu. Ninguém nasce rico; no momento
ria delas e as tenha como suas, não porque as sinta como de vir à luz temos de contentar-rios com uma fralda e um
tais, mas por "ouvir dizer" - tal homem é um espírito pouco de leite: e é a partir de tais começos que chegamos
superior. É altamente importante não nos deixarmos cor- a pensar que um reino é estreito para nós!. ..
romper pela vizinhança da riqueza; viver como pobre no
meio da riqueza é indício de grandeza de alma.
11 ªNão sei" - objectarás - "como tal homem poderia 21
suportar a pobreza se nela caísse de repente." Também eu
não sei, Epicuro, como o teu pobre fanfarrão desprezaria Pensas que te dão problemas essas pessoas de que 1
a riqueza se nela caísse de repente! Por isso mesmo, num falas na tua carta? O maior problema vem de ti mesmo,
caso e noutro, importa averiguar a verdadeira intenção; e tu é que te prejudicas a ti próprio. Não estás certo do que
, ~.

27
Epicuro, fr. 206 Usener. 28
· V. supra carta 18, 5 ss.

72 73
pretendes, tens mais facilidade em louvar do que em pra- de Cícero que não deixam esquecer o nome de Ático. De
ticar a virtude, e embora saibas onde reside a felicidade nada lhe serviria ter tido como genro Agripa, como
não ousas aproximar-te dela. O que te retém, afinal? Vou "genro-neto" 30 Tibério, como bisneto Druso César; no meio
dizer-to, já que tu pareces não ter do caso uma noção de tão ilustres nomes, o nome de Ático permaneceria
clara. Tu atribuis uma certa grandeza ao tipo de vida que esquecido se Cícero o não tivesse ligado para sempre ao
deverás abandonar; embora tenhas uma antevisão da vida seu. Um dia passará sobre nós toda a profundidade do 5
sábia e tranquila a que irás aceder, o brilho aparente da tempo; apenas uns quantos génios se elevarão de entre a
vida mundana continua a atrair-te, como se o facto de massa e, antes de algum dia mergulharem também no
abandonares a sociedade equivalesse a caíres numa vida de mesmo silêncio, resistirão ao esquecimento e manterão vivo
2 obscuridade completa. Estás enganado, Lucílio: passar da o seu nome! O mesmo que Epicuro prometeu ao seu amigo,
vida mundana à vida da sabedoria é uma ascensão! A luz eu to prometo a ti, Lucílio: a posteridade há-de recordar-
distingue-se do reflexo por ter a sua origem em si mesma, -se de mim, hei-de fazer com que alguns nomes perdurem
enquanto o reflexo brilha com luz alheia; a mesma dife- por estarem ligados ao meu. O grande Vergílio prometeu
rença separa os dois tipos de vida: a vida mundana tira o a imortalidade a dois dos seus heróis, e cumpriu a promessa:
seu brilho de circunstâncias exteriores, e o mínimo obstá-
Feliz par de heróis.' Se algum poder tiverem os meus
culo imediatamente a torna sombria; a vida do sábio, essa
versos, nunca a posteridade esquecerá o vosso nome,
brilha com a sua própria luminosidade! Os teus estudos .
enquanto a casa de Eneias se erguer sobre o rochedo
3 farão de ti um homem ilustre e famoso. Posso citar-te
firme do Capitólio, e o senado de Roma conservar o
como exemplo um caso passado com Epicuro. Numa carta
seu império.' 31
a Idomeneu, que então era ministro do poder real e encar-
regado de importantes responsabilidades, Epicuro, para o Todos aqueles que a fortuna pôs 'em evidência, que se dis- 6
afastar dessa vida de ilusória grandeza e o aliciar para a tinguiram como agentes e partícipes de um poder alheio,
glória certa e firme da sabedoria, disse-lhe: "Se estás inte- somente gozaram de reputação e viram as suas casas chei-
ressado na glória, as minhas cartas dar-te-ão renome supe- as de visitantes enquanto em posição de destaque: assim
rior a esses cargos que tu procuras - e que tornam a tua que desapareceram, rapidamente foram esquecidos. Em con-
4 pessoa tão procurada.'" 29 Será que Epicuro se enganou?
Quem conheceria hoje Idomeneu se o filósofo o não citasse
na sua correspondência? Todos os grandes da corte, todos
JO Talvez este termo seja uma monstruosidade linguística, mas exprime a
os sátrapas, o próprio rei que concedeu o cargo a Idome- relação de parentesco a que Séneca alude: Tibério foi casado com uma neta de
neu, jazem no mais profundo esquecimento. São as cartas Ático, logo era seu ..genro-neto". Aliás, a formação do nome em latim é absolu-
tamente lógica: progener (genro-neto) está para gener (genro) tal como prone-
pos (bisneto) está para nepos (neto). E, de resto, em português também há
expressões como sobrinho-neto! Por que não também genro-neto?
29 Epicuro, fr. 132 Usener. 31
Vergílio, Aen., IX, 446-9.

74 75
trapartida, o apreço que se dá aos homens de génio cresce jardim de Epicuro, ao ler a inscrição da entrada: "Visi-
sempre; e não são apenas eles que recebem homenagens, tante, terás aqui uma agradável estadia, pois aqui o bem
mas tudo quanto está ligado à sua memória. supremo é o prazer!" - , encontrarás à tua disposição o
7 Não será em vão que a minha carta mencionou o guardião dessa morada, um homem acolhedor, amável, que
nome de Idomeneu: será ele o encarregado de pagar o te apresentará uma malga de polenta e te servirá água à
meu tributo. Foi em carta a Idomeneu que Epicuro escre- discrição, inquirindo sempre se te agrada a recepção. E
veu aquela nobilíssima máxima em que o aconselhava a dir-te-á: "Este humilde jardim não desperta apetites, antes
não seguir a via comum e ilusória para enriquecer Píto- os sacia; não aumenta a sede à força de bebidas excessi-
cles: "Se quiseres - disse Epicuro - enriquecer Pítocles, vas, antes a acalma de um modo natural e salutar. São
não aumentes o seu património, diminui antes os seus estes os prazeres que me fizeram chegar a velho!" Estou-me 11
8 desejos. " 32 Esta sentença é demasiado clara para necessitar referindo a desejos que se ~ão contentam de consolações
de comentários e demasiado eloquente para carecer de verbais, que necessitam, portanto, de algo concreto para se
adornos. Apenas te faço notar que não deves entendê-la satisfazerem. Quanto aos desejos incontrolados mas
somente em referência à riqueza: a sua verdade mantém- que é possível adiar, e mesmo refrear e reprimir, faço-te
-se se a aplicares a outras circunstâncias. Se quiseres fazer notar um ponto que é válido para todos eles: o prazer
de Pítocles um homem respeitável, não deves acrescentar que originam pode ser natural, mas não é necessário. É
as suas honras, mas diminuir os seus desejos; se quiseres um prazer a que tu só darás satisfação se quiseres. O estô-
que Pítocles envelheça tendo uma vida sempre cheia, não mago não se contenta com sentenças: reclama, e exige ser
deves acrescentar-lhe anos de vida, mas sim diminuir os satisfeito. Não é, todavia, um credor muito exigente: ir-se-
9 seus desejos. Não julgues que estas sentenças são proprie- -á embora com pouco desde que lhe dês apenas o que
dade de Epicuro: elas pertencem a todos! Em matéria de deves, e não tudo quanto podes. '
filosofia entendo que se pode proceder como no senado:
se alguém faz uma proposta que me agrada apenas em
parte, mando-o dividir a proposta em alíneas, e dou o
meu voto à alínea que aprovo!
Eu cito de tanto melhor vontade os ditos notáveis de
Epicuro para fazer entender àqueles que seguem a sua
doutrina na esperança perversa de encontrarem nela um
manto que lhes proteja os vícios, como em todo o lado é
10 necessário levar uma vida honesta. Ao chegar ao pequeno

" Epicuro, fr. 135 Usener.

76 77

-' ~ " , ~ ...... )


~ -- ;_ . ,
LIVRO III

(Cartas 22-29)

22
Já percebeste que deves subtrair-te a essas tuàs ocupa- 1
ções ilusórias e nocivas, mas ignoras ainda o modo de o
conseguir. Ora há coisas que só estando presente te posso
indicar! O médico também não pode determinar por carta
a hora adequada para a alimentação ou para o banho: tem
de tomar o pulso ao doente. Diz um antigo provérbio que
o gladiador só forma o seu plano na arena a partir da
observação do rosto do adversário, do modo como move
os braços, da própria postura do corpo. Observações sobre 2
os costumes, sobre os deveres, ,é possível fazê-las de um
modo geral e por escrito; são conselhos que se podem dar
não só a ausentes, como até à posteridade.1 Mas a maneira
e a ocasião de tomar uma decisão concreta, isso ninguém
pode aconselhá-lo à distância, é forçoso deliberar em face
das próprias circunstâncias. Para captar a oportunidade no 3
momento justo é preciso não só estar presente, como
estar atento. Põe-te, por conseguinte na expectativa, e assim
que surpreenderes a oportunidade agarra-a com toda a

1
Deste faao podem servir de exemplo as obras de Cícero "Sobre os Deve-
res" (De officiis) ou de Séneca "Sobre os Benefícios" (De beneficiis).

79
rapidez, com toda a energia, e liberta-te definitivamente devemos tomar qualquer atitude senão quando encontrarmos
desses teus falaciosos deveres! Repara bem no conselho o momento certo para o fazer; mas quando ocorrer esse
que te dou: em meu entender tens de libertar-te desse momento tão longamente desejado, há que saltar logo
tipo de vida, ou de deixar a vida, sem mais. Mas penso a agarrá-lo! Se nos preparamos para a fuga, diz ele, não
também que deves proceder gradualmente, que é preferí- poderemos deitar-nos a dormir; e mesmo para as situa-
vel desatar do que cortar os laços em que, para teu mal, ções mais difíceis haverá sempre esperança de salvação se
te enredaste, na condição, porém, de estares disposto a nem nos precipitarmos antes de tempo, nem hesitarmos
cortá-los se não houver maneira alguma de os desatar. quando chegar a hora. Imagino que desejarás agora conhe-
Ninguém é tão medroso que prefira estar sempre em cer a posição dos estóicos. Ninguém terá autoridade para 7
4 desequil..tbrio a cair de uma vez por todas. Entretanto, e lançar-lhes a acusação de temeridade: os estóicos são mais
para começar, não te metas em mais trabalhos; contenta- prudentes ainda do que corajoso~.
-te com as ocupações a que te comprometeste, ou, como Possivelmente esperarias que te dissessem: "É uma
pareces preferir dizer, a que as circunstâncias te compro- vergonha ceder ao peso das responsabilidades; cumpre com
meteram. Não deves abalançar-te a novas tarefas, ou então os deveres de que foste incumbido. Um homem forte e
não terás mais pretextos para acusar as circunstâncias! valoroso não foge ao seu dever, antes pelo contrário, as
Dizeres, como é habitual: "Não podia fazer de outro modo, próprias dificuldades aumentam a sua força de ânimo!"
embora o não quisesse, a necessidade a isso me obrigava!': Sim, estas serão as palavras dos estóicos enquanto valer a 8
não passa de falsas desculpas. Ninguém é obrigado a pro- pena mantermo-nos firmes no nosso posto, enquanto não
curar a felicidade a passo de corrida; já é qualquer coisa formos constrangidos a fazer ou a suportar nada que seja
que, embora não lutemos contra ela, pelo menos paremos indigno de um homem de bem. Se não for este o caso, o
e não nos deixemos levar pela fortuna! estóico não se arruinará num esforço indigno e ultrajante,
5 Não vais ofender-te se eu, não me limitando a acon- não se manterá activo apenas para se manter activo! Não
selhar-te, invocar em meu auxílio a autoridade de outros, fará sequer aquilo que esperarias vê-lo fazer, ou seja,
mais experimentados do que eu, a cuja opinião me arrimo aguentar permanentemente o embate das grandes mano-
sempre que me vejo forçado a tomar uma decisão? ! Vais bras políticas. Quando o estóico se der conta de que está
ler uma carta de Epicuro dedicada precisamente a este envolvido numa situação opressiva, dúbia, ambígua deve
problema, a carta a ldomeneu. Epicuro exorta o amigo a recuar; não voltar as costas, mas sim retirar-se gradual-
despojar-se de todo o seu poder tão rápido quanto possí- mente para lugar seguro. Não é difícil, caro Lucílio, fugir 9
vel, antes que intervenha alguma força maior e o prive da às ocupações quando se não atribui qualquer valor aos
6 liberdade de retirar-se. 2 Acrescenta, no entanto, que não benefícios dessas ocupações. Quem se deixa enlear e reter
por elas fá-lo em virtude deste raciocínio: "Ai de mim!
Então hei-de renunciar a tão belas promessas? Hei-de reti-
2
Epicuro, fr. 133 Usener. rar-me antes de fazer a colheita? Hei-de ver-me abando-

80 81
nado pelos meus clientes, sem escolta para a minha liteira, Já tinha gravado o meu sinete nesta carta; tenho agora 13
sem visitantes no meu vestíbulo?" Aqui tens aquilo de de a reabrir, para que ela chegue às tuas mãos com a
que os homens se recusam a prescindir: ainda que abomi- pequena dádiva habitual, isto é, levando consigo alguma
nem as misérias da vida pública, adoram as suas recom- esplêndida sentença. E veio-me à ideia uma máxima em
10 pensas! Queixam-se da própria ambição como quem se que não sei se é mais de admirar a veracidade ou a elo-
queixa de uma amante: se analisarmos o que lhes vai na quência. De quem? De Epicuro: como vês, continuo a
alma, o que encontramos não é ódio, mas apenas um pas- explorar a casa alheia. Aqui vai ela: "Não há ninguém 14
sageiro ressentimento! Penetra no íntimo destes homens que não abandone esta vida como se tivesse acabado de
que deploram a carreira por eles próprios escolhida, que entrar nela/" 3 Observa quem tu quiseres, jovem, velho,
falam em retirar-se de uma situação sem a qual não podem homem de meia idade: em todos encontrarás por igual o
passar e verificarás que, no fundo, eles se mantêm volun- medo perante a morte e a ignorância perante a vida.
tariamente numa actividade que, ao ouvi-los, pareceria só Ninguém dá por acabado o que quer que seja, todos adiam
11 lhes trazer amarguras e contrariedades! Acredita-me, Lucí- os seus interesses para o futuro. Nada me quadra tanto
lio: poucos são os homens dominados pela servidão, mas nesta máxima como a acusação de infantilismo feita aos
muitos os que deliberadamente se submetem a ela. Quanto velhos. Epicuro diz que todos estamos ao abandonar a 15
a ti, se a tua intenção é libertar-te dos entraves, se estás vida no mesmo ponto em que estávamos ao nascer. Não
é exacto: somos piores ao morrer do que ao nascer. E
sinceramente disposto a abraçar a liberdade, se adias o
nisto o defeito é nosso, não da natureza. Esta teria direito
corte com a vida pública apenas para te precaveres contra
a queixar-se de nós: "Que é isto? Eu gerei-vos sem ambi-
qualquer preocupação futura, então poderás contar com o
ções, sem medos, sem superstições, sem maldade, sem
aplauso de todos os seguidores do estoicismo. Todos os
qualquer outro vício do mesmo jaez. Sai, portanto, tal
Zenões e Crisipos te aconselharão a modéstia, a honesti-
como entrastes!" Um homem que esteja tão seguro no 16
12 dade, o culto do teu próprio bem. Se, porém, as tuas hesi- momento de morrer como estava ao nascer, esse homem
tações se devem à preocupação de calcular os bens a pre- alcançou a sabedoria! Mas o que se passa é que, quando o
servar e o montante de dinheiro com que prover ao teu perigo se aproxima, trememos de medo, o nosso ânimo
ócio, então, nunca conseguirás escapar: ninguém se salva perturba-se, altera-se-nos a cor do rosto, tombam-nos dos
de um naufrágio com a bagagem às costas! Eleva-te a olhos lágrimas perfeitamente inúteis. Que vergonha, deixar-
uma forma de vida superior graças ao favor dos deuses, mo-nos tomar pela angústia ao atingirmos o limiar da
mas não daquele favor que eles fazem quando, de rosto segurança eterna! A razão é que, vazios por completo dos 17
sereno e afável, concedem aos homens benesses esplendo- verdadeiros bens, lamentamos então o desperdício da vida!
rosas mas maléficas, com a única desculpa .de que tais
favores - fontes de angústia e de tortura - são dados
para satisfazer os votos dos fiéis! 3 Epicuro, fr. 495 Usener.

82 83
Nenhwna parte dela permanece nas nossas mãos: a vida nuviam o rosto, mas são superficiais. A menos que enten-
passou por nós, escoou-se! Ninguém se preocupa em viver das que estar alegre é estar a rir! Não, a alma deve estar
bem, mas sim em durar muito, quando afinal viver bem desperta, confiante, acima das contingências. Acredita-me, 4
está ao alcance de todos, ao passo que durar muito não a verdadeira alegria é wna coisa muito séria. Julgas tu que
está ao de ninguém. se pode pensar em desprezar a morte, em abrir as portas
à pobreza, em refrear os prazeres, em exercitar a capaci-
dade de suportar a dor - e tudo isto sem franzir a testa,
23 sempre com o rosto, como diriam os nossos jovens pre-
tensiosos, descontraído? Quem interioriza estes pensamen-
1 Não penses que te escrevo para dizer como o inverno, tos alcança uma grande alegria, mas de ar pouco sorri-
que, aliás, foi curto e pouco rigoroso, se portou bem con- dente! O meu desejo é que tu possuas uma alegria deste
nosco, ou como a primavera está desagradável, ou como Ó tipo. Quando algwn dia souberes de que fonte emana essa
frio chegou fora de tempo! Isso são frioleiras próprias de alegria, nunca mais ela deixará de te acompanhar. Os 5
quem fala por falar. Eu só escrevo aquilo que sinto ter filões dos metais ligeiros encontram-se à superfície, mas
utilidade, quer para ti, quer para mim. Que outra coisa os metais mais preciosos são aqueles cujos veios se encon-
posso, portanto, fazer além de incitar-te à conquista da tram mais fundo e que, por isso mesmo, compensam
sabedoria? Queres saber qual o fundamento da sabedoria? muito mais quem os explora. Os prazeres com que o
Não tirar satisfação de coisas vãs. Falei em fundamento: vulgo se deleita são ligeiros e superficiais, toda a alegria
2 na realidade é o ponto culminante. Só atinge o ponto de importação carece de fundamento. A alegria de que
supremo quem sabe em que consiste a verdadeira satisfa- estou falando e à qual me esforço por fazer-te aceder, essa
ção, quem não deixa a sua felicidade ao arbítrio dos outros. é de natureza constante, e tánto mais dilatada, quanto
Fica sempre angustiado e inseguro de si o homem que se mais íntima. Peço-te, Lucílio amigo, age da única maneira 6
deixa solicitar por toda e qualquer esperança, ainda que ao possível para obteres a felicidade: repele e despreza aque-
seu alcance, ainda que fácil de realizar, ainda que nunca les bens que só brilham por fora, que dependem das
3 esse homem tenha sido iludido nas suas expectativas. O promessas de fulano ou das benesses de cicrano. Faz do
que tens a fazer antes de mais, caro Lucílio, é aprender a verdadeiro bem o teu alvo, busca a alegria dentro de ti.
ser alegre. Estás a pensar que eu ·te quero privar de mui- Que significa "dentro de ti" ? Significa que a felicidade se
tos prazeres ao afastar de ti os bens fortuitos, ao entender origina em ti mesmo, na melhor parte de ti mesmo. Este
que devemos subtrair-nos ao doce canto das sereias que é nosso corpo, embora sem ele nada possamos fazer, conside-
a esperança? Pelo contrário, o meu desejo é que nunca te ra-o como wn utensílio, indispensável, sim, mas não valio-
falte a alegria. O meu desejo é que a alegria habite sem- so. O corpo alicia-nos para prazeres ilusórios, de curta
pre em tua casa; e fá-lo-á, se começar a habitar dentro de duração, prazeres que nos repugnam mal terminam e que,
ti. Os outros tipos de alegria não satisfazem a alma; desa- se não forem doseados com extrema moderação, acabam

84 85
por se tornar no seu contrário. Assim mesmo: o prazer uma explicação. O que se passa é que tais homens têm
está à beira de um precipício, e transforma-se em dor se permanentemente uma vida incompleta, pois quando se
não for gozado segundo a justa medida. Por outro lado, é está ainda no início da vida não se pode estar já prepa-
difícil guardar a justa medida daquilo que se nos afigura rado para a morte. Devemos agir de modo a que em
um bem. Ora o desejo do verdadeiro bem está ao abrigo qualquer altura já tenhamos vivido o bastante, coisa fora
7 deste risco. Se queres saber em que consiste e donde pro- do alcance de quem está sempre procurando um rumo
vém o verdadeiro bem, vou dizer-to: consiste na boa cons- para a sua vida. E não penses que são poucos os homens · 11
ciência, nos propósitos honestos, nas acções justas, no nestas circunstâncias: são praticamente todos! Há mesmo
desprezo pelos bens fortuitos, no ritmo tranquilo e cons- quem comece a viver na hora em que devia morrer.
tante de uma vida que trilha um único caminho. Aqueles Parece-te estranho? Pois vou dizer-te uma coisa aparen-
que estão continuamente a mudar de intenções e não temente ainda mais estranha: há homens que deixaram de
apenas a mudar, mas a deixarem-se arrastar ao sabor do viver antes mesmo de t,erem começado!
acaso, como poderão apoiar-se em alguma certeza perma-
8 nente se eles próprios são hesitantes e instáveis? Raros
são os homens que conseguem ordenar reflectidamente a 24
sua vida. Os outros, à maneira de destroços arrastados por
um rio, em vez de caminharem deixam-se levar à deriva. Dizes-me que te preocupa qual será o resultado de um 1
Se a corrente é fraca ficam parados na água quase estag- processo intentado contra ti por um inimigo furibundo e
nada, se é forte, são arrastados com violência; a uns, julgas que eu poderei persuadir-te a teres melhores pen-
deixa-os a corrente em seco ao abrandar junto à margem, samentos e a te deixares embalar por esperanças lisonjei-
a outros, um fluxo impetuoso acaba por lançá-los no mar. ras. Mas para quê estares a sofrer antecipadamente com
Por isso mesmo é que nós devemos fixar de uma vez por os teus males, que aliás se farão sentir bem depressa, e a
todas o que queremos e manter-nos firmes nesse propósito. estragares o presente com o medo do futuro? É pura
9 É chegado o momento de pagar a minha dívida. Pode- estupidez, lá pelo facto de um dia teres de ser infeliz,
rei fazê-lo citando um dito do teu caro Epicuro com o começares a ser infeliz desde já. Mas vou procurar incutir- 2
qual darei por desobrigada esta carta: "É lamentável estar- -te calma por outra via. Se queres libertar-te de toda e
-se perpetuamente no começo da vida.''4 Talvez a mesma qualquer angústia, imagina que sucede mesmo aquilo que
ideia se possa exprimir com mais clareza desta outra forma: receias venha a suceder, e, seja qual for esse mal, avalia
"Vivem mal os homens que estão sempre começando a bem a sua extensão e toma simultaneamente o peso aos
10 viver". Não entendes porquê? De facto esta frase exige teus receios. Depressa perceberás que o objecto do teu
medo ou é de pouca monta, ou de curta duração. Se para 3
. ganhares coragem necessitas de exemplos, não custa muito
4
Epicuro, fr. 493 Usener. arranjá-los: em qualquer época os há com abundância.

86 87
Em qualquer período da história, seja romana seja de é a suscitá-los. Teve mais facilidade Porsena em perdoar a
outras nações, depararás com homens dotados de sereni- Múcio a tentativa de assassínio, do que Múcio em desculpar
dade filosófica, ou ao menos capazes de corajosos arreba- a si próprio o fracasso.
tamentos. Supõe que és condenado: o mais grave que te Sei o que vais dizer: "Essas histórias são repisadas em 6
pode suceder é seres exilado ou preso. Há algo de mais todas as escolas; quando daqui a pouco tratarmos o pro-
terrível do que ser torturado pelo fogo, ou sofrer uma blema do desprezo pela morte, já sei que me virás com a
morte violenta? Passa em revista todas as possíveis situa- história de Catão!" E porque não hei-de contar-te o que
ções, evoca a imagem de todos os que já por elas passa- foi a sua última noite, passada a ler um texto de Platão
ram sem tremer. O problema não é descobrir exemplos, com a espada à cabeceira do leito? Para a sua hora
4 mas sim escolhê-los. Rutílio suportou a sua condenação suprema Catão precavera-se com estes dois instrumentos:
fazendo notar que o que lamentava no processo não era o o primeiro garantia-lhe a vontade, o segundo a possibili-
resultado, mas a injustiça. Metelo sujeitou-se ao exílio com dade de morrer. Tomadas todas as providências, aquelas
coragem,· Rutílio até com alegria! O primeiro concedeu à que poderiam ser tomadas numa situação sem saída pos-
República o favor de regressar a Roma, o segundo trans- sível, Catão arranjou-se de modo a que a ninguém cou-
mitiu a sua recusa de regressar a Sula, o ditador a quem besse o direito de matá-lo ou a possibilidade de salvá-lo.
então ninguém ousava recusar o que quer que fosse. Sócra- Desembainhando a espada, que até esse momento guar- 7
tes discutia filosofia na prisão e embora alguns amigos dara pura de sangue humano, exclamou: "Foram infrutífe-
quisessem libertá-lo ele negou-se a sair; ficou no cárcere ras, Fortuna, as tuas tentativas de obstar aos meus propó-
para exemplo de que não devemos recear essas duas coisas sitos. Não combati até hoje pela minha própria liberdade,
5 que tanto assustam os homens: a morte e a prisão. Múcio mas pela da pátria; todo o meu esforço tendeu, não a
colocou a própria mão sobre as brasas. Suportar o fogo é viver livre, mas a viver entre hómens livres. E agora que
doloroso, e mais doloroso ainda se impomos esse tormento já não há esperança para o género humano, Catão irá
a nós próprios. E no entanto Múcio, um homem inculto, acolher-se a lugar seguro." Desferiu depois em si mesmo 8
desprovido de quaisquer preceitos filosóficos que o de- um golpe mortal; os médicos ligaram-lhe a ferida, mas
fendessem contra a dor e a morte, dotado somente da sua Catão, perdendo sangue, perdendo as forças mas guardando
energia de militar, puniu-se a si mesmo pelo fracasso da a mesma energia de ânimo, mais irado já consigo do que
sua empresa. Ficou observando a pé firme a mão con- com César, levou à ferida as mãos nuas e, mais do que
sumir-se no braseiro inimigo; e nem sequer foi ele quem abrir-lhe caminho, expulsou de si a sua alma nobilíssima,
a retirou, já queimada até aos ossos, foi o próprio inimigo que tanto desprezo sentia por toda e qualquer forma de
quem afastou dele o braseiro. Na sua expedição ao acam- poder!
pamento etrusco Múcio podia ter sido mais afortunado, Não estou a coligir exemplos apenas para aguçar o 9
mais valente, nunca. Vê, pois, como a autêntica coragem é engenho, mas para que te sirvam de exortação contra
mais expedita a afrontar os perigos do que a crueldade o aquele que imaginamos ser o mais terrível dos males. As

88 10 89
minhas exortações tornar-se-ão mais fáceis se te demons- ção, a urnca coisa temível é o teu próprio temor. Con- 13
trar que não são apenas os heróis a desprezar o momento nosco passa-se o mesmo fenómeno habitual nas crianças
de exalar o último suspiro, mas que até mesmo homens (o que bem comprova que nós não passamos de crianças
pusilânimes são capazes em certas situações de se elevar grandes): elas assustam-se quando vêem mascaradas as
ao nível dos mais valorosos no momento decisivo. Foi pessoas a quem amam, a quem estão habituadas, com
este o caso de Cipião, sogro de Gneu Pompeio. Arrastado quem brincam. Pois o que nós temos a fazer é tirar a
para a costa de África por ventos contrários, ao ver o seu máscara, não só às pessoas, como às coisas, e restituir a
navio ocupado pelos inimigos, trespassou-se com a espada, cada uma o seu rosto próprio! Para quê essa exibição de 14
e, quando aqueles lhe perguntaram o que era feito do gládios e fogueiras, essa multidão de carrascos que se agita
10 general, respondeu: "O general está são e salvo!" Estas à tua volta? Despoja-te desse aparato sob o qual te ocultas
palavras fizeram dele o émulo dos seus maiores e permi- para assustar os insensatos: tu és apenas a morte, aquela
tiram a perpetuação da glória dada pelo destino aos Cipiões morte que ainda há pouco o meu escravo, a minha escrava
nas terras de África. Se foi glorioso derrotar Cartago, mais afrontaram sem temor! Para quê essa outra exibição, em
ainda o foi derrotar a morte. "O general está são e salvo": grande estilo, de chibatas e mesas de tortura? Para quê
que forma de morrer haveria mais digna de um general, e todo esse cortejo de instrumentos especializados cada um
11 de um general das tropas de Catão? Não vou remeter-te em esquartejar a sua parte do corpo, todas essas máquinas
para os livros de história, não vou enumerar todos os destinadas a reduzir um homem a pedaços? Afasta todo
homens, e muitos são, que através dos tempos têm demons- esse aparato visual que nos deixa mudos de medo, põe
trado desprezo pela morte. Considera apenas a nossa época, termo aos gemidos e aos ais, aos agudos gritos de dor
de cuja moleza e volúpia amargamente nos queixamos. suscitados pelo tormento: tu és apenas a dor, aquela mesma
Em todas as ordens sociais, em todos os graus de fortuna, dor que o gotoso aguenta sem , gritar, que o doente do
em todos os níveis etários te saltarão à vista muitos estômago suporta enquanto come os mais delicados man-
homens que puseram fim aos seus males com a morte. jares, que a jovem parturiente sofre enquanto dá à luz! Se
Acredita no que te digo, Lucílio: não só não devemos te posso suportar, és uma dor ligeira, se não posso, serás
recear a morte, como a ela devemos o termo dos nossos uma dor breve!
12 receios! Ouve, pois, com calma as ameaças desse teu ini- Medita continuamente nestas máximas, que aliás tens 15
migo! E embora a consciência te diga que deves estar con- ouvido com frequência, e que tu próprio muitas vezes tens
fiante, como no processo intervêm muitos factores de repetido. Deves, porém, comprovar pela experiência a vera-
ordem externa, ainda que esperes te seja feita justiça, cidade do que tens ouvido e do que tu mesmo tens dito.
prepara-te para a hipótese de vires a ser vítima da maior A pior crítica que nos podem fazer é a acusação de repe-
injustiça! Acima de tudo nunca te esqueças disto: não dês tirmos as sentenças da filosofia sem pormos em prática os
a menor importância ao aparato exterior, analisa com cui- seus ensinamentos. Não vais dizer-me que só agora repa-
dado todos os factores em jogo, e verás que, na tua situa- raste que és um ser sujeito à morte, ao exílio ou à dor?!

90 91
Estamos su1e1tos a tudo isso desde o nascimento: pense- de fantasmas com túnicas cobrindo esqueletos descarnados.
mos, portanto, que nos vai mesmo suceder tudo quanto é A morte, ou nos consome totalmente, ou nos despoja de
16 susceptível de nos suceder. Estou certo de que já tens alguma coisa. Na segunda hipótese, privados do peso do
seguido este meu conselho. Não quero é deixar de exortar- corpo, resta-nos a melhor parte de nós mesmos. Se somos
totalmente consumidos, então não resta mais nada, tanto
-te agora a que não deixes a tua angústia presente tomar-te
a parte boa quanto a parte má são-nos retiradas igual-
conta do espírito, pois de contrário este acobardar-se-á e
mente. Dá-me licença que cite neste ponto um verso teu, 19
mostrar-se-á pouco vigoroso na altura decisiva. Desvia a
mas sem deixar primeiro de lembrar-te que deves pensar
atenção desse problema individual para os problemas
que o escreveste tanto para uso dos outros como para uso
comuns a todos. Repete a ti próprio que tens um corpo próprio. É indecente dizer uma coisa e pensar outra; muito
mortal e frágil, exposto a mil e uma dores, que não ape- mais indecente será escrever uma coisa em que se não
nas as ocasionadas por agressões ou prepotências dos pode- acredita! Lembro-me que um dia tu desenvolveste esta
rosos: os próprios prazeres degeneram em sofrimentos, os ideia, que nós, homens, não caímos na morte de repente,
banquetes são causa de indigestões, a embriaguês provoca antes avançamos gradualmente para ela. Morremos dia- 20
o entorpecimento e o descontrolo dos nervos, a sensuali- riamente, já que diariamente ficamos privados de uma parte
dade é origem de deformações nos pés, nas mãos, em da vida; por isso mesmo, à medida que nós crescemos a
17 todas as articulações. Vou empobrecer: serão mais nume- nossa vida vai decrescendo. Começamos por perder a infância,
rosos os meus semelhantes. Vou ser exilado: imaginar-me- depois a adolescência, depois a juventude. Todo o tempo
-ei nascido no local do meu exílio. Vou ser amarrado: e que decorreu até ontem é tempo irrecuperável; o próprio
então, será que agora tenho os movimentos livres, eu, que dia em que estamos hoje, compartilhamo-lo com a morte.
a natureza criou amarrado a este peso que é o meu pró- Não é a última gota que esvazi_çi a clepsidra, mas toda a
prio corpo? Vou morrer: quer dizer, vou deixar de poder água que anteriormente foi escorrendo; do mesmo modo
estar doente, de poder ser amarrado, vou deixar de estar não é a hora final em que deixamos de existir a única que
sujeito à morte! constitui a morte, mas sim a única que a cons~a. Atingi-
18 Não sou tão tolo que me vá pôr a repetir o refrão mos a morte nessa hora, mas já de há muito caminhávamos
dos epicuristas 5: que é infundado o medo dos infernos, para ela. Ao descreveres esta situação com a tua eloquência 21
que não há roda alguma sobre a qual Ixíon seja arrastado, habitual, sempre notável, mas nunca tão sublime como quando
que não há qualquer monte por onde Sísifo empurre com pões a palavra ao serviço da verdade, escreveste este verso:
os ombros o rochedo, que não há ninguém cujas vísceras
possam diariamente renascer e ser comidas! Ninguém é "a morte vem gradualmente, a que nos leva é a
infantil ao ponto de ter medo de Cérbero, das trevas, ou morte última! "6

6 Lucílio júnior, Fr. 3 Morei.


5
Epicuro, fr. 341 Usener.

92 93
Acho melhor que leias as tuas palavras do que esta minha fenómeno da morte existe uma inconsiderada tendência de
carta. Verificarás como aquela morte que nos enche de espírito capaz de dominar frequentemente quer homens
medo é apenas a última, mas não a única! animosos e de carácter firme, quer gente sem força e sem
22 Estou a ver o que procuras: queres saber qual a vaio- coragem; só que enquanto os primeiros sentem desprezo
rosa máxima, qual o útil preceito filosófico que eu escolhi pela vida, os outros não lhe suportam o peso. Muitas pes- 26
para inserir nesta carta. Vou enviar-te uma coisa decor- soas fartam-se de fazer e ver sempre a mesma coisa e são
rente da própria matéria que tenho estado a tratar. Epi- assim levadas a sentir, não ódio, mas náusea pela vida.
curo não censura com menos vigor os homens ansiosos Aliás, até a própria filosofia nos pode conduzir a essa
pela morte do que os que dela se mostram receosos. Diz náusea quando nos diz: "Até quando aguentaremos sem-
ele: "É ridículo correr para a morte por aborrecimento à pre o mesmo? Nunca faremos outra coisa senão acordar e
vida, quando é o tipo de vida assumido que provoca a adormecer, comer e sentir fome, ter frio e calor?! Coisa
23 vontade de correr para a morte. "7 E num outro passo alguma tem um termo, está tudo urdido em círculo, tudo
escreve: "Que coisa mais ridícula é o desejo da morte, se sucede alternadamente sem parar: a noite põe termo
quando é o medo da morte que enche a vida de inquieta- ao dia, e o dia à ,noite, o verão vai findar no outono, ao
ção!"ª Podes juntar a estas, outra situação não menos ridí- outono segue-se o inverno, que por seu turno é destro -
cula: 9 é tão grande a insensatez, direi mesmo a loucura nado pela primavera; tudo passa para regressar novamente.
dos homens, que alguns há até que se suicidam... por Não realizamos nada de novo, não vemos nada de novo:
24 medo de morrer!... Se meditares em algum destes tópicos e aqui reside por vezes a causa da náusea!" Muitos são os
ganharás força de ânimo para suportar quer a morte quer que pensam que a vida, não sendo dura, é supérflua.
a vida. Em ambos os sentidos devemos receber incita-
mento e firmeza, para que nem amemos demasiado a
vida nem a odiemos em excesso. Mesmo quando a razão 25
aconselhar a pôr termo à própria vida, nunca uma tal
25 decisão deve ser tomada impensada e impulsivamente. Um O tratamento adequado aos nossos dois àmigos tem 1
homem corajoso e sábio não deverá fugir da vida, mas de usar métodos completamente diferentes. De facto,
sim sair dela; acima de tudo importa evitar uma paixão enquanto os vícios de um deles carecem de correcção, os
que tem assaltado muita gente: a paixão pela morte. Como do outro exigem ser travados à força. Dir-te-ei com toda a
em relação a outros assuntos, também em relação ao franqueza: só serei na realidade seu amigo se for violento
com ele! "Ora essa!" - dirás tu. - "Pensas que podes
manter sob o teu controlo um discípulo de quarenta anos?
7
Repara que já atingiu uma idade dura e intratável, insus-
Epicuro, fr. 496 Usener.
8
Epicuro, fr. 498 Usener. ceptível de correcção. Só é possível moldar almas ainda
9
Epicuro, fr. 497 Usener. jovens." Pois bem, eu ignoro se vou ser bem sucedido, 2

94 95
mas prefiro não obter êxito a faltar ao meu dever. De sofo a frase que vou inserir na presente carta. Ei-la: "Pro- 5
resto não devemos perder a esperança de sarar uma doen- cede em tudo como se Epicuro te estivesse observando!" 11
ça mesmo prolongada, se nos mostrarmos firmes ante os É útil, sem dúvida, termos acima de nós um mestre,
desmandos dos doentes, se os forçarmos a fazer e a alguém cuja aprovação procuremos, alguém que, por assim
aguentar muita coisa contra a própria vontade. Mesmo dizer, participe dos nossos pensamentos. De longe mais
em relação ao nosso outro amigo eu não tenho demasia- importante será viver como se estivéssemos sempre perante
das esperanças, a não ser o facto de ele ainda corar quando o olhar de algum homem de bem; eu já me darei por
comete alguma falta. Há que cultivar esse sentimento de satisfeito se tu agires sempre como se estivesses a ser
vergonha, o qual, enquanto permanecer na sua alma, nos observado, uma vez que a solidão é conselheira de todos
dará bons motivos para ter esperança. Quanto ao nosso os vícios. Quando tiveres progredido a ponto de teres o 6
"veterano'', tenho de tratá-lo com mais parcimónia, não vá maior respeito por ti próprio, então poderás dispensar o
3 ele desesperar de si mesmo. Nenhuma ocasião foi mais pedagogo. Por enquanto, acolhe-te à protecção de alguma
propícia para me encarregar dele do que agora que os autoridade: pode ser o grande Catão, ou Cipião, ou Lélio,
seus vícios estão em descanso, e ele se assemelha a um ou outro qualquer, daqueles em cuja presença mesmo os
homem reconvertido. A outros, este divórcio dos seus vícios homens mais depravados reprimiam os seus vícios. Isto
pode parecer definitivo, mas eu não me convenço com enquanto estás fazendo de ti um homem em cuja pre-
palavras: sei que os vícios, de momento adormecidos mas sença não ouses prevaricar. Quanto tiveres atingido este
não dominados, hão-de regressar, e com juros elevados! nível, quando começares a sentir respeito por ti mesmo,
Vou aplicar o meu tempo a tentar dominá-los, mas só então eu começarei a permitir que faças aquilo que Epi-
depois de experimentar saberei se pode ou não conseguir- curo igualmente aconselha: "Refugia-te dentro de ti pró-
-se algum sucesso. prio, em especial quando fores fórçado a estar no meio da
4 Quanto a ti, continua, como até agora, a mostrar-te multidão. " 12 É bom que te tornes diferente da maioria, 7
animoso e a diminuir as tuas bagagens! 10 Nada do que desde que possas refugiar-te com segurança dentro de ti
possuímos nos é estritamente necessário. Regressemos à mesmo. Repara no comum das pessoas: todas teriam mais
lei da natureza, e teremos riquezas em abundância. Aquilo proveito na companhia de alguém que não fossem elas
de que carecemos, ou é gratuito ou de baixo preço: a próprias! "Refugia-te dentro de ti próprio, em especial
·natureza contenta-se com pão e água! Ora ninguém é tão quando fores forçado a estar no meio da multidão!" -
pobre que não possa obter estes dois bens; e quem a eles mas só se tu fores um homem de bem, tranquilo, mode-
limitar os seus apetites poderá rivalizar em felicidade com rado. Doutra maneira deves procurar refúgio na multidão
o próprio Júpiter, conforme diz Epicuro. Será deste filór

11
Epicuro, fr. 211 Usener.
12
10
Epicuro, fr. 602. Usener. Epicuro, fr. 209 Usener.

96 97
e fugir de ti mesmo, escapando assim à presença íntima nos abala e derruba de um só golpe, vai-nos corroendo,
de um homem sem carácter. vai, cada dia que passa, roubando um pouco às nossas for-
ças." Então haverá melhor forma de morrer do que irmo-
-nos desfazendo, natural e gradualmente, até chegarmos ao
26 fim? Não quero dizer que um golpe súbito e uma morte
repentina sejam qualquer coisa de mal; somente afirmo
1 Dizia-te eu, não há muito, que já estava à vista da que ir perecendo a pouco e pouco é um modo mais suave
velhice; agora creio bem já ter deixado a velhice lá para de morrer. Eu, pelo menos, como se já estivesse próximo
trás de mim! À minha idade, ou pelo menos ao meu o momento decisivo, esse dia supremo que há-de pronun-
corpo, já será adequada outra designação, pois "velhice" é ciar o juízo definitivo sobre toda a minha vida, vou-me
o nome que se dá ao período da vida em que o homem observando e dizendo a mim mesmo estas palavras: "Tudo 5
está, embora cansado, ainda não gasto de todo. Inclui-me, o que até agora fiz ou disse, de nada vale; não passam de
portanto, no número dos decrépitos já prestes a atingir o fracos e falaciosos garantes da minha alma, disfarçados
2 fim. Há, porém, uma coisa que te peço tomes em consi- entre inúmeros adornos. O que eu tiver feito de útil, fica-
deração: é que não sinto na alma as injúrias da idade, rei a devê-lo à morte. Por conseguinte, preparo-me sem
conquanto as sinta no corpo. Somente envelheceram os receios para aquele dia em que, sem artifícios ou disfarces,
meus vícios, tal como o corpo auxiliar desses vícios. O hei-de ajuizar sobre mim mesmo, se apenas digo grandes
meu espírito conserva-se vigoroso e mostra-se contente de frases ou se as sinto, se todas as palavras corajosas que
\ já pouco ter de se ocupar com o corpo, isto é, já alijou proferi contra a Fortuna foram ou não algo mais do que
uma grande parte do seu fardo. Mostra-se exultante, e fingimento ou mascarada! Não interessa a apreciação dos 6
discute comigo o problema da velhice, a qual diz ser para outros: é sempre incerta, há sempre divisão de opiniões.
3 ele "a flor da idade"! Acreditemos nele, deixemo-lo gozar Não interessam os estudos realizados durante a vida:
os seus bens específicos. Agora ordena-me que medite, somente a morte pronunciará sobre nós o juízo definitivo.
que saiba discernir, neste meu actual estilo de vida tran- Esta é a minha opinião: as disputas filosóficàs, os coló-
quilo e modesto, a parte que cabe à filosofia e aquela que quios literários, as máximas recolhidas nos textos dos sábi-
cabe à idade, que observe com atenção tudo quanto já não os, as conversas eruditas - nada disto revela a verdadeira
posso e tudo quanto já não quero fazer, considerando força da alma! Até os mais medrosos são capazes de
como indesejável aquilo que já me não é possível fazer. valentes discursos... O que de facto foi conseguido só se
De facto, qual o motivo de queixa, qual o prejuízo que notará no momento de exalar a alma. Por mim, aceito as
vem de se ter acabado aquilo que, um dia ou outro, teria condições, e não temo o juízo decisivo." Aqui tens as 7
4 mesmo de acabar? Sei qual a tua objecção: "É um prejuízo palavras que digo a mim mesmo, mas toma-as como se
enorme sentirmo-nos diminuídos, depauperados, desfeitos, também fossem dirigidas a ti. És mais novo do que eu,
para em;pregar o termo exacto. A velhice, é um facto, não mas isso não importa: o que conta não são os anos. Não

98 99
sé sabe quando e onde a morte te espera; espera tu, por- te poderes armar em director da consciência alheia?" Objec-
tanto, a qualquer momento por ela! ção justa, a tua; eu, contudo, não sou tão descarado que,
8 Já estava a terminar, já a minha mão se aprontava doente eu próprio, me aplique a dar remédio aos outros !
para a fórmula final; devo, no entanto, contar as moedas É como companheiro de sanatório que eu falo contigo da
e dar a esta carta o seu viático! Mesmo que eu te não nossa comum enfermidade e te dou parte dos medicamen-
diga a quem vou pedir o dinheiro emprestado, tu já calcu- tos que uso. Escuta, portanto, as minhas palavras como se
las a que cofre vou bater... Mas espera por mim mais um
me estivesses ouvindo a falar com os meus botões; é
pouco e eu passarei a pagar-te do meu bolso! Entretanto
como se eu te permitisse o acesso aos meus segredos e
o banqueiro será Epicuro, o qual nos aconselha a "meditar
discutisse comigo mesmo na tua presença. Aqui tens o 2
na morte" 13 , ou a "atribuir a maior importância à apren-
que eu repito sem cessar a mim próprio:
dizagem da morte", se porventura a mesma ideia se nos
"Pensa na idade que tens, Séneca, e sentirás vergonha
9 torna mais clara usando esta última fórmula. Talvez tu
julgues supérfluo aprender uma coisa que só utilizamos por teres as mesmas vontades e objectivos que tinhas em jovem
uma vez! Mas por isso mesmo é que devemos meditar Já que está próximo o dia da tua morte, vê se consegues
nela: temos sempre que estudar uma coisa que não pode- ao menos que os teus vícios morram antes de ti. Desfaz-
10 mos testar se já sabemos! "Medita na morte!": com estas -te desses prazeres desordenados de que só a muito custo
palavras Epicuro manda-nos meditar na liberdade. Um te verás livre: tais prazeres não são mais nocivos antes do
homem que aprendeu a morrer esquece o que seja a servi- que depois de satisfeitos. Podemos não ser surpreendidos
dão: está acima, melhor dizendo, está fora do alcance de todo na altura de cometer um crime, mas nem por isso a
\ e qualquer poder! Que lhe importam o cárcere, os guardas, angústia nos abandona. Com os prazeres ilícitos é o mesmo:
as cadeias, se tem diante de si uma porta sempre aberta? depois de os satisfazermos, ficamos com o remorso. Não
Uma única cadeia nos tem manietados: o amor pela vida. são prazeres constantes e durádouros; mesmo que não
Não o abafemos de todo, mas diminuamo-lo de modo a sejam nocivos, são pelo menos efémeros. Procura antes 3
que, se as circunstâncias o exigirem, nada nos detenha ou um bem que seja de facto duradouro, e o único nestas
impeça de estarmos preparados para fazer imediatamente condições é aquele que a alma consegue extrair de si pró-
o que, mais tarde ou mais cedo, teremos mesmo de fazer. pria. Unicamente a virtude nos proporciona uma alegria
perene e inabalável. Algum obstáculo que intervenha tem
27 tanta consistência como as nuvens que se movem abaixo
do sol sem nunca poderem ocultar por completo a sua
1 "Quem és tu para me dar conselhos? Acaso já te luz!"
aconselhaste a ti próprio, já corrigiste o teu carácter, para Quando nos será dado aceder a uma tal alegria? Se 4
bem que não tenhamos estado parados, é hora de apres-
sarmos o passo. Ainda resta muito trabalho a fazer. Se
13
Epicuro, fr. 205 Usener. desejas atingir este objectivo, careces de muita atenção da

100 101
minha parte, mas também de bastante esforço da tua. A pidos, e, consequentemente, seu adulador (seu crítico tam-
5 virtude não se conquista por procuração. A mera erudição bém, pois este atributo é sempre concomitante dos dois
pode servir-se de auxiliares. Lembro-me ainda de um ricaço, primeiros), aconselhou-o a comprar novos escravos para
Calvísio Sabino, de sua graça! Este homem tinha os bens acabarem a frase que ele deixava em meio! Sabino repli-
de fortuna e a inteligência próprias de um liberto. Nunca cou que cada escravo lhe ficava por milhares e milhares
vi ninguém tão exageradamente favorecido pela sorte. A de sestércios; diz-lhe o outro: "Terias gasto menos dinheiro
sua memória era tão má que de vez em quando até se tivesses comprado uma biblioteca!" O nosso homem,
esquecia os nomes de Ulisses, de Aquiles ou de Príamo, porém, continuou convencido de que ter em casa alguém
embora todos conheçam os seus nomes tão bem como erudito era o mesmo que ser erudito ele próprio!. ..
nós conhecemos os nomes dos nossos pedagogos. Nenhum Satélio tentou também convencer Sabino a praticar luta 8
nomenclador 14 senil, daqueles que já não sabem o nome livre, embora ele fosse um homem doente, pálido, enfe-
às pessoas e dizem o que lhes vem à cabeça, citaria tão zado. "Mas como é isso possível, se eu mal me aguento
erradamente os apelidos de família como Sabino fazia aos nas pernas?" - dizia Sabino. "Não me venhas com essa,
6 Troianos e aos Aqueus! Apesar disto ele queria fazer-se por favor!" - replicou o outro. "Então para que servem
passar por erudito. E aqui tens o método que congemi- todos estes robustos escravos que tu tens?"
nou: comprou a peso de ouro uma série de escravos, um Um espírito virtuoso não é coisa que se peça empres-
que sabia Homero de cor, outro, Hesíodo, e mais nove a tada ou se possa comprar! E mesmo que existisse à venda,
quem encarregou de decorar os poetas líricos.15 Que tais receio bem que não encontrasse comprador... O vício, esse
escravos lhe tivessem custado uma fortuna não é de admi- todos os dias tem quem o adquira.
rar: não os encontrou assim tal qual, teve de os mandar Mas já é tempo de pagar-te o que devo e despedir- 9
treinar expressamente. Mal conseguiu dar por pronta esta -me. "A verdadeira riqueza consiste na pobreza capaz de
tropa toda, desatou a massacrar os seus convidados. Os prover à satisfação do que por lei da natureza necessita-
escravos sentavam-se-lhe aos pés; quando queria citar mos."16 Epicuro repetiu incansavelmente esta máxima, mas
alguns versos, ele pedia que lhos soprassem... mas conti- nunca é demais repetir uma coisa que nunca se aprende
nuamente falhava-lhe a memória a meio de uma palavra! devidamente. A certos doentes basta que se lhes indique
7 Então Satélio Quadrado, parasita habitual de ricaços estú- os remédios; outros têm de ser obrigados a tomá-los!

14
O nomenclador (/at. nomenclator) era um escravo especialmente encarre-
gado de lembrar ao senhor os nomes dos clientes que lhe vinham apresentar os
cumprimentos matinais (e receber a respectiva espórtula!). As suas funções,
vemo-las pitorescamente descritas em Juvenal, 1, 97 ss.
15 16 Epicuro, fr. 477 Usener. Cf. supra a carta 4.10 em que a mesma máxima
Os nove poetas líricos gregos do cânone alexandrino : Álcman Estesícoro
Íbico, Alceu, Safo, Anacreonte, Sim6nides, Píndaro e Baquílides. ' ' é citada com ligeira variação textual.

102 103
28 exerce mais pressão. O que quer que faças redunda em
teu prejuízo, esse teu contínuo movimento só te faz mal·
1
é como fazeres andar um doente às voltas! Agora quand~ 4
Pensas que só a ti isso sucedeu; admiras-te, como se
fosse um caso raro, de após uma tão grande viagem ·e
te tiveres libertado da angústia, nessa altura, qualquer
uma tão grande variedade de locais visitados não teres
mudança de local te será agradável: podes ir parar aos
conseguido dissipar essa tristeza que te pesa na alma!?
confins da terra, podes ir dar a um canto perdido na bar-
Deves é mudar de alma, não de clima. Ainda que atraves-
bárie, que essa terra, seja qual for, se te mostrará hospita-
ses a vastidão do mar, ainda que, como diz o nosso Vergílio,
17 leira! Interessa é a disposição de espírito com que partes,
as costas, as cidades desapareçam no horizonte,
e não o local a que chegas. Por isso mesmo não devemos -
2 os teus vícios seguir-te-ão onde quer que tu vás. Do mesmo
afeiçoar-nos demasiado a nenhuma terra em especial.
se queixou um dia alguém a Sócrates: "Porquê admirar-te
Temos de viver com esta convicção: não nascemos desti-
da inutilidade das tuas viagens," - foi a resposta, - "se
nados a nenhlim lugar particular, a nossa pátria é o mundo
para todo o lado levas a mesma disposição? A causa que
inteiro! Quando te tiveres convencido desta verdade, dei- 5
te aflige é exactamente a mesma que te leva a partir!" De
xará de espantar-te a inutilidade de andares de terra em
facto, em que pode ajudar a mudança de local, ou o conhe-
terra, levando para cada uma o tédio que tinhas à partida.
cimento de novas paisagens e cidades? Toda essa agitação
Se ~e persuadires de que toda a terra te pertence, o pri-
carece de sentido. Andares de um lado para o outro não
meiro ponto em que parares agradar-te-á de imediato. O
te ajuda em nada, porque andas sempre na tua própria
que tu fazes agora não é viajar, mas sim andar à deriva, a
companhia. Tens de alijar o peso que tens na alma; antes
saltar de um lado para o outro, quando na realidade o que
3 disso não há terra alguma que te possa dar prazer! Pensa
tu pretendes - viver segundo a virtude - podes conse-
que a tua actual disposição de espírito é idêntica à da
gui-lo em qualquer sítio. Conhecés algum local mais cheio 6
Sibila descrita pelo nosso Vergílio, excitada, fora de si,
I de agitação do que o foro? Pois, se for necessário, mesmo
possuída de uma força anímica vinda do exterior:
aí se pode viver com tranquilidade. Claro que, havendo
a Sibila corre impetuosamente, tenta expulsar do peito
P?ssibilidade de escolha, eu preferiria ir para longe da
a força divina que o enche/18
Andas daqui para ali tentando expulsar essa angústia inte- vista, quanto mais da vizinhança do foro! Certos climas
rior, que, o teu incessante deambular apenas consegue muito rudes põem em perigo a saúde mais robusta; do
agravar. E como num navio: se a carga está imóvel pouco mesmo modo certos locais são pouco próprios para um
se faz sentir, mas se anda a rebolar de um lado para o espírito, virtuoso sim, mas ainda pouco firme, ainda em
1
outro ao acaso faz tombar o barco para o lado onde vias de aperfeiçoamento. Não concordo com aqueles que 7
se atiram para o meio das vagas e que, levando uma vida
de agitação, lutam diariamente, com a maior coragem,
17
Vergílio, Aen., III, 72. contra as dificuldades da situação. Tal tipo de vjda, o sábio
18
Vergílio, Aen., VI, 78-9. pode suportá-lo, mas não escolhê-lo; preferirá viver em

104 11 105
paz, e não em conflito. É que pouco adianta ter alijado os indiferentemente todos os passantes, tinham o direito de
8 próprios vícios para andar a combater os alheios. Poderá proceder assim. Qual o resultado de arengar a surdos ou a
objectar-se que à volta de Sócrates se juntaram trinta tira- mudos, de nascença, ou por doença? "Para quê" - objec- 2
nos e não conseguiram vergar-lhe o ânimo. Mas que tarás tu - "poupar as palavras? São de graça! Eu não
importa o número dos senhores? A escravidão é só uma. posso saber se vou ser útil àquele a quem dou os meus
E quem a tem em desprezo será sempre um homem conselhos, mas serei de certeza útil a alguém se prodigali-
livre, por muito gran'de que seja a multidão dos poderosos! zar conselhos a muitos. Sejamos liberais a socorrer os
9 É tempo de terminar esta carta, mas primeiro tenho outros: à força de tentar, é impossível que uma vez por
de pagar a portagem! "O começo da cura é a autocons- outra não tenhamos sucesso!"
ciência do erro " 19• Creio que Epicuro tem toda a razão ao Meu caro Lucílio, aí está uma coisa que, em meu . 3
dizer isto. De facto, quem não tem consciência de errar, entender, um homem de valor não deve fazer! A proceder
não pode querer emendar-se, Antes da correcção deve sur- assim a sua autoridade como que se dilui e perde peso em
10 gir a noção do erro. Certos indivíduos há que se gabam face daqueles que, sendo menos desperdiçada, poderia aju-
dos seus vícios: como imaginar que pode pensar em dar a corrigir-se. Um bom arqueiro não é o que acerta
curar-se gente que toma os próprios defeitos como virtu- algumas vezes, mas sim o que só ocasionalmente falha;
des? Por isso mesmo, tanto quanto possas, acusa-te, move uma arte não é válida quando atinge o seu objectivo por
processos a ti mesmo. Começa por fazeres ante ti próprio acaso. Ora a sabedoria é uma arte: deve atingir um alvo
o papel de acusador, depois o de juiz, só depois o de seguro, escolher discípulos capazes de aperfeiçoamento e
advogado de defesa; e uma vez por outra aplica uma pena afastar-se dos casos desesperados, embora não de chofre e
a ti mesmo! sem tentar um último remédio, mesmo sem nenhuma
/
esperança.
Eu ainda não desesperei do nosso Marcelino. É um 4
29 homem que ainda pode salvar-se, · desde que lhe deitemos
1 Perguntas-me como vai e o que faz o nosso amigo a mão urgentemente. o perigo é ele arrastar consigo quem
Marcelino. Ele vem pouco a minha casa, pela pura e sim- lhe deitar a mão! Marcelino tem um espírito muito vigo-
ples razão de que tem medo de ouvir a verdade. Desse roso, embora com tendência para o mal. De qualquer
perigo, aliás, está ele livre, pois eu acho que se não deve . modo vou arriscar-me a esse perigo e atrever-me a apontar-
dizê-la senão a quem está disposto a ouvi-la. Por essa -lhe os seus defeitos. Ele procederá como de costume, recor- 5
razão se tem posto em causa se Diógenes, bem como os rendo às suas pilhérias capazes de fazerem rir mesmo
outros cínicos, que falavam sem peias e admoestavam quem está de luto, troçará de si próprio primeiro, da
nossa escola em seguida, e atalhará de imediato tudo quanto
eu lhe disser. Passará em revista as escolas filosóficas e
l9 Epicuro, fr. 522 Usener. imputará aos filósofos os subornos que recebem, as aman-

106 107
6 tes, o prazer da mesa; indicar-me-á um que comete adul- pois em casos de doença grave um bom período de acal-
tério, outro que frequenta a taberna, outro, a corte; mia é quase equivalente à saúde.
apontar-me-á Aríston, o alegre filósofo que dá as suas Enquanto eu me preparo para cuidar do nosso amigo, 9
lições de liteira, a altura melhor que escolheu para cum- tu, que tens capacidade e sabes de que base partiste, e por
prir as suas obrigações ... Tanto que quando alguém per- isso compreendes qual o alvo a atingir, vai corrigindo o
guntou a que escola pertencia, Escauro respondeu: "Peri- teu modo de ser, vai ganhando coragem, vai-te robuste-
patético é que não é, de certeza/" 20 Também a esse homem cendo contra os teus receios; não passes em revista todos
notável que é Júlio Grecino perguntaram o que pensava quantos podem inspirar-te medo. Não seria estupidez ter
de Aríston. "Não posso dizer, não sei do que ele é capaz medo da multidão num local onde só se pode passar um
quando anda a pé!", respondeu, como se o interrogassem a um? Pois também não são muitos os que têm possibili-
sobre um essedário. 21 dade de assassinar-te, ainda que muitos de tal te ameaças-
7 Em suma, lançar-me-á em cara esses charlatães que sem. A natureza dispôs as coisas de maneira que só uma
mais honestos seriam abandonando a filosofia do que ten- pessoa nos poderá matar, tal como só uma nos deu a
tando vendê-la. Decidi, contudo, sujeitar-me às suas graço- vida.
las: ele far-me-á talvez rir, mas pode ser que eu o faça Se não fosses muito rigoroso, bem poderias isentar-me 10
chorar, e se ele teimar no riso, então eu, tanto quanto é do último pagamento; mas eu não vou ser mesquinho
agora que a dívida está no fim! Aí tens o que te devo.
possível quando as coisas vão mal, alegrar-me-ei por ao
"Nunca pretendi agradar ao vulgo; daquilo que eu sei o
menos lhe ter cabido em sorte um tipo de loucura bem
vulgo não gosta, daquilo que o vulgo gosta não quero eu
disposta! Esta hilariedade, porém, não dura muito: repara
saber." 22 Quem é o autor? Pareces pensar que eu ignoro 11
e verás que em breve espaço de tempo as mesmas pes-
que pessoa é o meu discípulo!. .. É Epicuro; mas o mesmo
8 soas riem e entram em fúria com igual intensidade. Estou
te dirão os mestres de todas as outras escolas, peripatéti-
decidido a abordar Marcelino e a mostrar-lhe como ele cos, académicos, estóicos, cínicos. Como pode de facto
valia tanto mais quanto menos caía no agrado de muitos. agradar ao vulgo alguém a quem só a virtude agrada?
Se não conseguir eliminar-lhe os vícios, pelo menos refreá- Não se conquista o favor popular por processos limpos.
-los-ei; não cessarão, mas tornar-se-ão menos frequentes; Terás de igualar-te primeiro ao vulgo, que só te aprovará
ou até talvez cessem se criarem o hábito de ser menos quando te considerar um dos seus. Ora para a tua forma-
frequentes. Mesmo este resultado não seria despiciendo, ção a opinião que tenhas sobre ti mesmo importa muito
mais do que a dos outros. A amizade de pessoas dúbias só
se concilia por processos dúbios. Em que te ajudará nisto 12
20
Os peripatéticos receberam este nome devido ao hábito de Aristóteles, o
fundador da Escola, disrutir com os seus discípulos caminhando de um lado para
o outro (em grego rrEpmoirúv). Aríston nunca poderia, por isso ser peripatético!
22
21
Essedário: gladiador que combatia em carro de guerra (esseda). Epiruro, fr. 187 Usener.

108 109
a filosofia, essa arte excelsa que a tudo sobreleva? Preci-
samente em levar-te a querer agradar mais a ti do que ao
vulgo, a avaliar a qualidade, e não o número, das pessoas
que emitem juízos sobre ti, a viver sem temor dos deuses
ou dos homens, a poder vencer a adversidade ou a pôr-lhe
cobro. Por outro lado, se eu te vir andar famoso nas LIVRO IV
bocas do mundo, se à rua entrada, como à de histriões no
palco, ressoarem vivas e palmas, se por toda a cidade (Cartas 30-41)
mulheres e crianças te tecerem louvores, como não hei-de
eu lamentar-te, sabendo como sei qual a via para se obter
tal favor?! 30
Fui há pouco visitar Aufídio Basso: encontrei esse exce- 1
lente homem alquebrado, lutando contra a idade. O peso
dos anos, porém, já é excessivo para a sua parca energia:
a velhice carrega sobre ele com todas as forças. Tu sabes
que ele foi sempre um homem de compleição enfermiça e
débil; durante algum tempo lá foi aguentando, melhor
diria, escorando o seu corpo; agora, subitamente, desistiu.
Tal como num navio que mete água se pode calafetar 2
uma ou outra fenda mas, quando a madeira começa a
deslocar-se e a ceder em muitos pontos, é impossível
impedir que o casco se desfaça, também é possível durante
algum tempo aguentar e amparar· a fraqueza de um corpo
senil. Quando, porém, como num edifício em ruína, todas
as juntas se desagregam, e enquanto umas são reparadas
há outras que se desconjuntam, a única coisa a fazer é
arranjar modo de sair. O nosso Basso, contudo, é homem 3
de ânimo forte: a filosofia dá-lhe a possibilidade de man-
ter a alegria com a morte diante dos olhos, de estar forte
e contente seja qual for o estado físico, de não perder a
força da alma quando se esvai a do corpo. Um bom
piloto navega mesmo com a vela rasgada e, se os mastros
forem derrubados, ainda assim escora os restos do barco

110 111
até ao fim da viagem. O mesmo faz o nosso amigo que eles próprios ainda estavam longe de olhar sem receio.
Basso: aguarda o fim com um ânimo, com um aspecto Basso, contudo, merece-me o maior crédito, já que se trata
que, caso aguardasse a morte de outra pessoa, julgaríamos de um homem que fala da sua morte próxima. Dir-te-ei a 8
4 excesso de insensibilidade. É da maior importância, Lucílio, minha opinião: considero que o próprio momento da morte
e deve ser aprendida com tempo, a capacidade de morrer dá ao homem mais coragem do que a simples vizinhança
com coragem quando chegar a nossa hora inevitável. Outros da morte. A presença imediata da morte, de facto, até
modos de morrer conservam em si algo de esperança: mesmo aos tímidos dá a coragem de não evitar o inevitá-
uma doença cura-se, um incêndio apaga-se, um desaba- vel. Assim é que um gladiador, mesmo muito pouco valo-
mento que parecia ir esmagar-nos deixa-nos em pé; o roso durante todo o combate, oferece a garganta ao adver-
mar lança para terra incólumes aqueles mesmos que, com sário e ajuda-o a mergulhar o gládio hesitante. Mas aquela ·
igual força, havia engolido; o soldado refreia o gládio no morte, inevitável sim, mas que ainda se vem aproximando,
momento em que já está prestes a degolar a vítima. Mas exige uma firmeza de ânimo constante, mais rara, e ape-
o homem a quem a velhice conduziu às portas da morte, nas ao alcance do sábio. Por isso mesmo era com o maior 9
esse não tem qualquer esperança, em seu favor ninguém agrado que ouvia Basso pronunciar uma opinião como que
poderá interceder. Não há nenhuma outra maneira de decisiva sobre a morte, e explicar a sua natureza como
5 morrer, nem também tão prolongada. O nosso Basso alguém que a observou muito de perto. Acreditarias melhor,
dava-me a ideia de acompanhar o seu próprio funeral, de imagino, com mais convicção, em alguém que tivesse res-
fazer o seu enterro, de viver como sobrevivente de si suscitado e que, por experiência própria, te dissesse que
mesmo, de suportar o seu próprio luto com sabedoria. De na morte nada existe de mal; quanto à perturbação cau-
facto, ele discorre muito sobre a morte, e fá-lo expressa- sada pela aproximação da morte, isso ninguém to poderá
mente para nos persuadir de que, se neste capítulo algo descrever melhor do que aque1es a quem ela saiu ao
há que cause transtorno ou receio, tal será culpa do mori- caminho, que a viram aproximar-se e se dispuseram a
bundo, não da morte em si; nem nela, nem depois dela, acolhê-la. Entre estes poderás incluir Basso, o qual nos 10
6 algo existe que nos cause sofrimento. Consequentemente, não deixa laborar em erro. Diz ele que tão grande estultí-
tão insensato é quem receia o que nunca sofrerá, como o cia é temer a morte como temer a velhice, pois assim
que receia o que nunca há-de sentir. Haverá alguém que como a velhice se sucede à idade madura, assim se sucede
admita que havemos de sentir uma coisa que precisamente a morte à velhice. Não querer morrer é o mesmo que ter
consiste em deixarmos de sentir? "A morte" - diz ele - querido não viver: a vida foi-nos dada com a morte como
"está a tal ponto para lá de ser um mal que até está para termo para o qual caminhamos. Como não é então insen-
7 lá de todo o receio dos males." Sei que estas verdades já sato temê-la? O que é certo, aguarda-se; só o que é dúbio
muitas vezes foram ditas, e muitas serão reditas, mas se teme. A morte tem um carácter de inexorabilidade 11
nunca me pareceram tão Úteis quando as lia nos textos ou igual para todos, inflexível: quem poderá queixar-se de
as ouvia dizer a homens que negavam dever recear-se o existir em condições que são idênticas para todos? O pri-

112 113
meiro elemento da equidade é a igualdade. É supérfluo suspiro não fosse de forma alguma doloroso; 1 se acaso o
defender neste momento a causa da natureza, a qual pre- fosse, um pouco de alívio encontraria na sua própria bre-
tendeu que a nossa lei geral fosse igual à sua própria: vidade, pois nenhuma dor de facto grande pode ser muito
tudo quanto a natureza formou, ela o decompõe, tudo prolongada. De resto, mesmo no momento da separação
12 quanto decompôs, de novo o volta a formar. E se a da alma e do corpo, ainda que muito dolorosa, haveria de
alguém cabe em sorte ser lentamente mandado embora lembrar-se que depois dessa dor nunca mais sentiria dor
pela velhice, isto é, não ser privado da vida repentina- alguma. Estava igualmente convencido de que a alma de
mente mas sim excluído dela a pouco e pouco, oh!, como um velho já se encontrava junto à boca, pelo que pouca
esse alguém deve dar graças a todos os deuses por ter força bastaria para a separar do corpo. "O fogo, quando
atingido saciado o repouso necessário a todo o homem, encontra pasto favorável, só se extingue com água, ou
mas grato sobretudo a quem vem cansado! Podes ver quando tudo tomba em ruínas, mas se carece de alimento
alguns homens que desejam a morte, e mesmo com maior apaga-se espontaneamente." Tais palavras, meu caro Lucí- 15
calor do que aquele com que habitualmente desejamos a lio, satisfaz-me imenso ouvi-las, não porque sejam para
vida. Nem sei bem quais considere de maior estímulo mim novidade, mas porque me são confiadas num momen-
para nós, se aqueles que anseiam pela morte, se aqueles to decisivo. Quer isto dizer que eu nunca vi ninguém no
que a aguardam com·- rosto alegre e sereno; na realidade, o momento de cortar o fio dos seus dias? Vi, é um facto,
desejo dos primeiros nasce por vezes dum movimento mas considero mais significativa a atitude de quem atinge
repentino de cólera e indignação, ao passo que a tranqui- a morte sem ódio pela vida, de quem acolhe a morte em
vez de a solicitar. Dizia ele também que a angústia perante 16
lidade dos segundos provém de uma reflexão bem pen-
a morte é fruto de nós mesmos, por nos deixarmos inva-
sada. Pode chegar-se ao momento de morrer por um
dir pelo terror quando já a julgamos próxima. 2 Mas de
movimento de ira; mas acolher com alegria a aproxima-
quem não está ela próxima, pronta como está a atingir-
ção da morte só o pode fazer quem de há muito se pre-
-nos em qualquer lugar, a qualquer momento? "Repare-
parou para ela.
mos" - acrescentava Basso - "como, no instante em
13 Confesso-te que vários motivos concorreram para tor- que alguma causa de morte parece atingir-nos, muitas
nar mais frequentes as minhas visitas a este meu amigo: outras causas há ainda mais próximas das quais não sen-
saber se o encontraria constantemente com a mesma cora- timos receio." Há uma guerra, a presença do inimigo é 17
gem, ou se porventura o seu vigor de ânimo diminuiria ameaça de morte breve; surge uma congestão, e a morte é
concomitantemente com a robustez física. O facto é que o antecipada. Se quisermos estabelecer uma distinção entre
seu ânimo revigorava, à maneira dos condutores de carros
cuja alegria se torna mais manifesta quando, após a sétima
14 volta, estão prestes a atingir a meta. Fiel aos princípios de 1
Epicuro, fr. 503 Usener.
Epicuro, dizia ele que, para começar, esperava que o último 2
Epicuro, ibidem.

114 115
4
os motivos do nosso medo, veremos que uns são reais, usada por Ulisses nos seus companheiros. A voz temida
outros aparentes. O que tememos não é a morte, mas sim pelos marinheiros, embora sedutora, não era a voz de
o pensar na morte; dela própria separa-nos sempre uma todo o mundo; aquela de que nós devemos precaver-nos
pequena distância. Por isso, se devemos temer a morte, não provém de um recife, mas ressoa nos quatro cantos
então devemos temê-la sempre, porque em qualquer idade da terra. Passa, por conseguinte, ao largo não apenas de
estamos sujeitos a ela. um local tornado suspeito pela sua traiçoeira sedução, mas
18 Mas devo precaver-me, não vás tu odiar tanto como a de todas as cidades. Mostra-te surdo aos conselhos dos que
própria morte uma carta assim tão grande. Vou terminar, mais te querem bem: com boas intenções, apenas te dese-
portanto. Quanto a ti, vai sempre pensando na morte, jam mal. Se quiseres ser feliz, pede aos deuses que nada
para a não receares nunca! 3 do que para ti desejam se realize. Esses bens que gosta- 3
riam de ver acumulados sobre a tua pessoa não são bens
reais; existe somente um bem, causa e fundamento da
31 felicidade: a autoconfiança. Para a obteres só tens um
caminho: negar qualquer importância ao trabalho, ou seja,
1 Estou reconhecendo o meu Lucílio: já começa a mostrar- considerá-lo como incluído no número daquelas coisas que
-se tal como prometia vir a ser. Prossegue com essa dis- em si não são boas nem más. 5 De facto, é impossível
posição de espírito que te permite desprezar todos os suceder que uma mesma coisa seja alternadamente boa e
bens vulgares e tender apenas para o sumo bem: não pre- má, fácil de suportar e assustadora. O trabalho não é um 4
tendo sequer que te tornes maior ou melhor do que te bem. O que é então um bem? O desprezo pelo trabalho
esforçavas por ser. A tua preparação de base era bastante em si mesmo. Por isso eu censuro toda a actividade vazia
ambiciosa: procura, portanto, atingir somente o alvo que de sentido. Mas quando o esforÇo visa a obtenção da vir-
te tinhas proposto e põe em prática os princípios que já tude, nesse caso, quanto maior for a energia dispendida,
2 interiorizaste. Em suma, para seres sábio, bastar-te-á man~ quanto menores o cansaço e as concessões ao repouso,
teres os ouvidos fechados; só que não será suficiente usar tanto maior será a minha admiração e o méu grito de
cera: necessitarás de uma matéria mais densa do que a incitamento: "Assim mesmo, coragem! Ânimo, tenta atin-

3 4
Ao contrário do que sucedia nas cartas precedentes, Séneca deixa a partir Alusão ao famoso episódio das Sereias (Odiss., XII, 142 ss.).
de agora de encerrar as suas epístolas com a citação de uma máxima de Epi- 5
Não será inútil sublinhar que não estamos perante nenhum incitamento à
curo. Fê-lo, a princípio, na convicção de que lhe seria mais fácil converter Lucí- ociosidade! Trata-se, sim, de negar que o trabalho, qualquer actividade em si
lio ao estoicismo se começasse por alimentar a meditação com pensamentos _epi- não é um bem se não visar a obtenção da virtude, e menos ainda serão um
curistas, embora interpretados em sentido estóico. De aqui em diante, contudo, bem os frutos materiais do trabalho. Toda a acção que não renha em vista o
Séneca roma a conversão do amigo como um dado adquirido, pelo que se consi- bem supremo não é em si boa nem má, pertencendo por isso ao vasto número
dera desobrigado de recorrer à seara alheia ! dos "indiferentes".

116 117
5 gir o rume de um só fôlego!" O trabalho serve de estí- asma tarefas duras e difíceis, deve dizer a st própria:
mulo às almas nobres. Não deves, todavia, limitar as tuas "Porque páras? Não é digno de um homem recear o
ambições aos votos que os teus pais faziam para ti em suor."
pequeno; de resto seria ridículo um homem como tu, que Resta-me acrescentar que, para a virtude ser perfeita, 8
atingiu na sua carreira os postos mais altos, continuar a é preciso que a nossa vida, em todas as circunstâncias,
incomodar os deuses! Para que precisas tu de lhes pedir mantenha uma linha de rumo constante e em inteira coe-
seja o que for ? Constrói a tua própria felicidade, o que rência consigo mesma, o que apenas poderemos conseguir
facilmente farás desde que entendas isto: é bom tudo o através da ciência, do conhecimento das coisas humanas e
que implica a virtude, é mal tudo o que incluir a presença divinas. Aqui reside o supremo bem; se atingires este
do vício. Nada é susceptÍvel de brilhar se não estiver ponto deixarás de ser um suplicante, para te tornares
banhado de luz, nada é sombrio se não estiver envolto em amigo íntimo dos deuses!
trevas ou situado à sombra de qualquer objecto escuro; "Mas como se chega a esse ponto?" Não é preciso 9
para haver calor é preciso recorrer ao fogo, para haver atravessares os Alpes Peninos ou Graios nem os desertos
frio é preciso expor as coisas ao ar; da mesma maneira, o da Candávia; não terás de cruzar as Sirtes, nem Cila ou
que faz as coisas virtuosas ou condenáveis é apenas a pre- Caríbdis - por onde aliás passaste por causa dessa tua
6 sença da virtude ou do vício, respectivamente. Em que insignificante procuradoria. Desta vez o caminho é segu{o,
consiste o bem? Na ciência. 6 Em que consiste o mal? Na é ameno, e a natureza deu-te qualidades para o empreen-
ignorância. O sábio, esse superior artista da filosofia, saberá deres, qualidades que, se não desistires a meio, te farão
rejeitar ou escolher o que for oportuno, mas sem sentir chegar à meta como homem igual a um deus. O que te 10
temor pelo que rejeita, nem admiração pelo que escolhe; fará igual a um deus não é o dinheiro, porque um deus
para tanto basta que ele possua uma alma nobre e firme. nada possui. A toga pretexta também não, porque Deus é
Proíbo que te deixes abater ou deprimir! Não basta sequer nu. Nem a fama, nem a ostentação da tua pessoa, ou a
que não rejeites o trabalho: tens de exigi-lo! propaganda do teu nome espalhada entre os povos: Deus,
7 "Que dizes?" - objectarás. - "Não é de rejeitar um ninguém o conhece, muitos pensam mal dele, e impune-
trabalho fútil, supérfluo, suscitado por motivos pouco ele- mente. Não será a multidão de escravos que transporta a
vados?" tua liteira pelas ruas da cidade ou pelas estradas: Deus,
Não é, como também o não é um trabalho aplicado a t:sse ente superior e potentíssimo, põe, ele próprio, todo o
objectos cheios de beleza. O que interessa é a capacidade universo em movimento. Não serão sequer a beleza ou a
de resistência da alma, e esta deve procurar com entusi- força que te tornarão feliz: com a velhice ambas desapare-
cem. Devemos procurar algo que se não deteriore com o 11
tempo, nem conheça o menor obstáculo. Somente a alma
6
Entenda-se "ciência" no sentido que Séneca (como o estoicismo em geral) está nestas condições, desde que virtuosa, boa, elevada.
dá ao termo: "ciência das coisas divinas e humanas", "sabedoria'', "sageza". Um deus morando num corpo humano - aqui está a

118 119
designação justa para essa alma. Uma alma assim tanto ção, mas temo que te estorvem a marcha. Dificultarem-
pode encontrar-se num cavaleiro romano, como num liber- -nos o avanço é um prejuízo de monta: é como se, apesar
to, como num escravo! O que são, na realidade, um "cava- da tremenda brevidade desta vida que a nossa inconstância
leiro romano", um "liberto", um "escravo"? Apenas nomes, ainda torna mais breve, estivéssemos de momento a
derivados da ambição e da injustiça humanas. Para subir momento a dar os primeiros passos. Reduzimos a vida a
ao céu pode partir-se de qualquer canto. Ergue-te, pois, migalhas, fazêmo-la em bocadinhos... Avança, portanto, meu 3
caro Lucílio, pensa quanto maior seria a tua velocidade se
mostra-te tu também digno de um deus.7
algum inimigo corresse atrás de ti, se suspeitasses que um
Para o conseguires, de nada serve o ouro ou a prata: com esquadrão de cavalaria se aproximava seguindo a pista dos
estes materiais é impossível modelar a imagem da divin- fugitivos. É isto mesmo o que sucede: estás a ser perse-
dade. Pensa que os deuses, no tempo em que nos escuta- guido. Anda mais rápido, foge, põe-te em segurança; pensa
vam, eram representados em figuras de barro! ainda como será admirável consumarmos a vida antes de
morrer, e podermos depois aguardar em segurança o que
nos restar para viver, sem nada mais desejarmos já para
32 nós mesmos, gozando a plena posse de uma vida feliz,
uma vida que, embora se prolongue, não poderá ser mais
1 A toda a gente que vem lá das tuas bandas eu per- feliz do que já é. Quando virá o tempo em que tu perce- 4
gunto por ti, procuro saber como vais, onde e com quem bas como o tempo já te não diz respeito, em que atinjas
costumas dar-te. Não podes enganar-me: estou na tua a mais completa tranquilidade, indiferente ao dia de ama-
companhia. Vive como se todos os teus actos me fossem nhã, perfeitamente satisfeito da vida que já tiveste! Sabes
relatados, ou melhor, como se eu próprio assistisse a eles. o que toma os homens ávidos· do futuro? O facto de
Daquilo que oiço dizer de ti sabes o que me dá mais nenhum conseguir realizar-se! Os teus progenitores deseja-
satisfação? É não ouvir dizer nada, uma vez que a maior ram para ti certos bens; eu, pelo contrário, o que te
parte daqueles que eu interrogo ignora o que tu andas a desejo é a capacidade de sentir desprezo por tlido aquilo
2 fazer. Aí está uma coisa salutar, não te relacionares com que os outros te desejaram em abundância! Os desejos dos
pessoas de índole e objectivos distintos dos teus. Tenho a teus familiares amontoavam pilhas de moedas, para faze-
convicção de que essas pessoas não poderiam desviar-te e rem de ti um homem rico, esquecidos de que, para te
de que tu manterias os teus propósitos ainda que uma darem a ti, teriam de tirar a outros. O que eu te desejo é 5
multidão te rodeasse e procurasse dissuadir-te de o fazeres. o domínio sobre ti mesmo, é que o teu espírito, atormen-
Quero eu dizer: não receio que te façam mudar de direc- tado por pensamentos inconstantes, acabe por se afirmar
e ganhar convicções sólidas, e se sinta contente de . si
mesmo; é, em suma, que, uma vez compreendida a natu-
7
Vergílio , Aen., VIII, 364-5 (cf. supra carta 18, 12). reza do verdadeiro bem (e compreendê-la é possuí-la!), o

120 12 121
teu espmto não careça de prolongar a sua existência. O é contínua a matéria de que, em outros, se fazem as cita-
homem que consegue realizar a sua vida está, de uma vez ções. Entre nós não há artifícios de publicidade, não enga-
por todas, acima de todas as contingências, está desmobili- namos o cliente, fazendo-o entrar para que ele nada
zado, é um homem livre! encontre de valor senão o que estava exposto na montra:
deixamos que cada um tome o modelo que lhe aprouver.
lmagiQ.a que nós pretendemos separar do conjunto 4
33 l máximas isoladas. A quem as vamos atribuir? A Zenão, a
Cleantes, a Crisipo, a Panécio, a Posidónio? Nós não vive-
1 Desejas que nesta série de cartas eu vá inserindo tam- mos em monarquia: cada um conserva a sua autonomia.
bém, como nas anteriores, algumas máximas dos nossos Entre os epicuristas, os ditos de Hermarco, os ditos de
mestres. Eles não perderam tempo com floreados: toda a Metrodoro, são todos reconduzíveis ao mestre. Toda e
sua obra em conjunto está cheia de vigor. Fica sabendo qualquer máxima alguma vez proferida nessa escola filosó-
que uma obra da qual emergem frases notáveis é de valor fica foi inspirada e motivada por um só homem.
desigual: não nos quedamos de admiração ante uma árvore Ainda que o tentemos, repito, não é possível de uma
2 quando toda a floresta cresceu até à mesma altura. Máxi- tal massa de textos, todos do mesmo nível, extrair qual-
mas do mesmo tipo - quer a poesia quer a história quer dito:
estão cheias delas! Por isso eu não quero que tu as consi-
só o pobre é que conta as suas ovelhas 9•
deres como sendo de Epicuro: elas são do domínio público,
e são sobretudo do nosso domínio; tornam-se, contudo, Onde quer que lances os olhos encontrarás frases dignas
mais notadas na obra de Epicuro porque ocorrem muito de chamarem a atenção, não fora o caso de o texto estar
raramente, porque são inesperadas, porque é curioso encon- todo à mesma altura.
trar uma máxima enérgica num homem que costumava Perde, por conseguinte, a esperança de poderes sabo- 5
pregar a indolência. Muitos, de facto, pensam assim: nas rear em excertos o talento dos nossos maiores mestres:
minhas mãos Epicuro surge cheio de energia, mau grado terás de estudar, e voltar a estudar, as obras inteiras. A
as mangas da túnica; coragem, capacidade, espírito pronto teoria vai-se desenvolvendo continuamente, a obra de génio
ao combate, tanto podem encontrar-se entre os Persas vai-se construindo a partir dos seus elementos, de modo
3 como nos povos de túnica curta8. Não vale a pena, por- que nenhum se pode retirar sem que o conjunto se des-
tanto, pedires-me máximas e citações: nos nossos autores faça. Não te impeço de examinar os pormenores, desde
que seja na mesma pessoa; pensa, porém, que não é bela
a mulher de quem se gabam as pernas ou os braços, mas
8
sim aquela que, pela beleza do conjunto, impede que se dê
As largas mangas da túnica de Epicuro ou as amplas vestés dos Persas e
de outros povos orientais são olhadas pelo romano Séneca, homem de "túnica
curta'" como todos os seus concidadãos, indícios de personalidade efeminada e
voluptuosa. '' Ovíd io, Met., XIII, 824.

122 123
6 atenção aos pormenores isolados. Mas se quiseres fazer memória" é reter o que alguma vez se memorizou; "saber'',
excertos, não vou armar contigo em agiota - colhe a pelo contrário, é fazer nosso o que aprendemos, sem estar
mãos ambas! A quantidade de máximas que poderás encon- dependentes de um modelo nem olhar constantemente
trar em qualquer página é enorme: apanha-as a eito, não para o mestre. - "Este pensamento é de Zenão, este 9
precisas de rebuscar. Os pensamentos não saltam um a outro de Cleantes. " Deixa que algo se interponha entre ti
um, espraiam-se gradualmente; formam um todo contínuo e o livro. Até quando permanecerás estudante? É altura
e interligado. Não duvido que os excertos possam ser de ensinares também.
úteis a pessoas ainda inexperientes e abordando o texto, Porque razão hei-de eu ir ouvir aquilo que posso ler?
por assim dizer, do exterior: é mais fácil reter uma frase Há quem diga: "É muito melhor uma lição de viva voz."
7 isolada, concisa, cunhada em forma quase poética. É por Sim, mas não a de uma voz que se limita a reproduzir
isso que damos a estudar às crianças máximas, entre as palavras alheias, fazendo como que ofício de estenógrafo.
quais as do tipo que os Gregos chamam "crias 10 ", pois o Junta a isto o facto de estes que nunca assumem a 10
espírito infantil, incapaz ainda de abarcar matéria mais tutela de si próprios, por um lado reproduzirem os seus
vasta, pode entendê-las perfeitamente. Mas que um homem antecessores em questões em que cada um sempre se afas-
de formação já avançada se ponha a colher "florzinhas", a tou do seu próprio antecessor, e por outro reproduzirem-
apoiar-se na lembrança de meia-dúzia de citações das mais -nos em pontos que ainda estão a ser investigados. Ora
divulgadas, isso é uma vergonha: já é altura de confiar nunca faremos novas descobertas se nos contentarmos com
nas pr~pria~ forças. Diga as suas sentenças, não memorize o que já foi descoberto. Além disso, quem segue· um autor
as alheias. E uma vergonha que um homem já velho, ou nunca descobre nada, nem sequer tal pretende. Quer isto 11
próximo da velhice, tenha uma sabedoria de compêndio! dizer que eu me recuso a percorrer vias já trilhadas? Não,
"Zenão diz assim." - E tu, que dizes? "Cleantes eu irei pela estrada antiga, mas se descobrir outra mais
afirma... " E tu, que afirmas? Até quando andarás sob as curta e melhor, aplaná-la-ei. Os autores que nos precede-
ordens de outro? Dá tu as ordens, diz algo digno de ram nesta via filosófica não são nossos donos, são nossos
8 memória, afirma alguma coisa por tua conta! Por isso guias. A verdade está à disposição de todos, ninguém tem
penso que todos quantos, recolhidos à sombra alheia, o exclusivo dela. Grande parte da verdade caberá aos pós-
permanecem intérpretes e nunca se afirmam como auto- teros descobri-la.
res, não possuem um carácter elevado, pois nunca ousam
fazer nada do que longamente andaram estudando. Fazem 34
exercícios de memória com textos alheios. Mas "ter na
memória" e "saber" são duas coisas diferentes. "Ter na Sinto-me pleno de exaltação, sinto que a velhice perde 1
peso e ganha forças sempre que vejo, em quanto fazes e
escreves, até que ponto tu (que já te retiraras do vulgo)
10
Cria (termo retórico) = xpda "sentença, máxima, dito de espírito".
fazes progressos sobre ti próprio. Se o prazer que o agri-

124 125
cultor sente pela árvore, culmina quando ela dá fruto, se a outra razão não houver, continua a progredir pelo menos
alegria do pastor lhe vem das crias do seu rebanho, se para aprenderes a amar. Apressa-te, pois, enquanto podes 2
qualquer homem sente no filho que criou como que a ser-me proveitoso, não vá a tua aprendizagem redundar
própria adolescência, nós, educadores espirituais, que pen- em benefício de outro qualquer! ... Eu já estou antevendo o
sas tu que sentiremos ao ver subitamente adultos os espí- resultado, já imagino como nós dois havemos de ter uma
2 ritos de que tomámos conta ainda débeis? Tu estás ligado só alma, e sei que o que a minha idade já perdeu em
a mim, és obra minha. Quando eu vi a natureza do teu vigor poderá recebê-lo da tua, embora não muito distante.
carácter, deitei-te a mão, aconselhei-te, estimulei-te, e não Mas eu quero ter a alegria de ver, só por si, o teu aper-
te deixei avançar com lentidão, fiz-te de imediato ir para feiçoamento. Aqueles a quem amamos, mesmo quando 3
3 a frente. "E então? - dirás. Tem sido essa a minha von- ausentes são uma fonte de alegria para nós, se bem que
tade!" Sim, isso já significa muito, e não apenas no sen- ligeira e evanescente. A vista, a presença, a conversa de
tido em que se diz que o começo é só por si metade da viva voz têm algo de prazer, sobretudo se não vemos
obra. Esta questão está dependente da vontade, e por isso apenas quem queremos, mas ainda como o queremos.
uma grande parte de bondade consiste em querermos ser Associa-te a mim, portanto, suprema recompensa do meu
bons. Sabes o que eu chamo ser bom: ser de uma bon- esforço; pensa, o que poderá revigorar-te o propósito, que
dade perfeita, absoluta, tal que nenhuma violência ou tu és mortal, e que eu sou um velho. Vem depressa até 4
4 imposição nos possa forçar a ser maus. Prevejo que tu mim, mas chega primeiro até ti mesmo! Progride, sempre
serás assim, se perseverares, se te aplicares, se agires de com este máximo objectivo: obteres uma perfeita constân-
forma a que os teus acros estejam em total coerência com cia. Quando quiseres verificar se fizeste algum progresso,
as tuas palavras e que uns e outros sejam moldados na indaga se a tua vontade de hoje é idêntica à de ontem:
mesma forma. Não segue o caminho da verdade aquele uma mudança de vontade é indício de que a alma anda à
cujos actos discordam do que afirma. deriva, aparecendo aqui ou ali conforme a levar o vento!
O que está fixo e bem agarrado ao chão não erra ao
acaso: o mesmo sucede ao sábio consumado, e, por vezes,
35 mesmo àquele que ainda se encontra em fase de aperfei-
1 Ao incitar-te insistentemente ao estudo da filosofia çoamento. A diferença entre ambos reside em que o segun-
estou trabalhando em meu proveito: é que eu pretendo do, embora sem mudar de posição, oscila na sua base,
ter um amigo, e não poderei consegui-lo se tu não conti- enquanto o primeiro nem sequer oscila.
nuares a cultivar-te como tens feito. Neste momento tens
-'
estima por mim, mas ainda não és meu amigo. "Que
dizes? Então uma coisa não implica a outra?" Não, são 36
mesmo coisas muito diferentes, porque, se a amizade é Incita esse teu amigo a animosamente não ligar impor- 1
sempre proveitosa, o amor pode por vezes ser nocivo. Se tância a quem o censura por se acolher à obscuridade da

126 127
vida privada, por desistir das suas grandezas, por ter pre- embeber-se nos estudos liberais, não aqueles estudos de
11
ferido a tranquilidade a tudo o mais, apesar de poder que um conhecimento superficial nos basta , mas aqueles
ainda avançar na sua carreira. Mostra a essa gente que ele outros com os quais devemos mesmo impregnar a nossa
trata diariamente dos próprios interesses da forma mais alma. É esta a altura própria para aprender. "Que dizes? 4
útil. Aqueles que pela sua posição elevada suscitam a inveja Há então, alguma hora em que não devamos aprender?"
geral nunca vivem em terreno firme: uns são derrubados, Não há; somente, se em qualquer idade é correcto nós
outros caem por si. Esse tipo de felicidade nunca conhece estudarmos, já nem em todas é próprio aprender as pri-
a calma, antes se excita sempre a si mesma. Desperta em meiras letras. Um velho na escola primária é vergonhoso
cada um ideias de vários tipos, move os homens cada qual e ridículo: devemos é adquirir em jovens os conhecimen-
em sua direcção, lança uns numa vida de excessos, outros tos a utilizar na velhice! Em suma, será uma tarefa da
numa vida de luxúria, a uns enche-os de orgulho, a outros maior utilidade para ti aperfeiçoares tanto quanto possível
2 de moleza, mas a todos igualmente destrói. Dirás tu: "Há, o carácter do teu amigo; costuma dizer-se destes benefícios
todavia, quem aguente bem uma felicidade desse género". que tanto devem solicitar-se como prestar-se; é indubitável
Pois há, assim como há quem aguente bem o vinho. Por que são benefícios de primeira grandeza, tão Úteis quando
isso não existe o mínimo fundamento para te deixares se prestam como quando se aceitam. De resto, o teu 5
amigo já não é livre de recuar: ele comprometeu-se. E é
persuadir que alguém é feliz pelo facto de viver rodeado
menos escandaloso declarar falência ante um credor do
de clientes; os clientes não buscam nele senão o mesmo
que ante as boas esperanças prometidas ... Para pagar uma
que buscam num lago: beber até fartar e deixar a água
11
dívida em dinheiro o comerciante depende de que o mar
suja! 0 vulgo julgá-lo-á um homem sem valor, sem acti-
permita terminar com sucesso a expedição, o agricultor
vidade!" Bem, mas tu sabes como há pessoas que usam está dependente da fertilidade _da terra cultivada e dos
incorrectamente a linguagem e dizem tudo ao contrário. caprichos do clima; para pagar a sua, o teu amigo somente
Anteriormente diziam-no um homem feliz. Pois bem, será pode recorrer à própria vontade. A fortuna não tem poder
que ele era mesmo feliz? Pode haver quem o julgue um sobre o carácter. Ele que forme o ' carácter de modo a que 6
homem de carácter demasiado duro e sombrio, isso não a sua alma atinja na maior tranquilidade aquele estado de
me preocupa minimamente. Dizia Aríston que preferia perfeição no qual já nada lhe pode causar nem detrimento
um jovem taciturno aos jovens risonhos e bem acolhidos nem proveito, antes se conserva inalterável, aconteça o
na sociedade. Também um vinho que a princípio parece que acontecer: se lhe forem proporcionados alguns bens
espesso e áspero acaba por tornar-se excelente, enquanto próprios do vulgo, ele elevar-se-á acima dos seus perten-
aquele que na pipa nos parece agradável não suporta o ces, se o acaso o privar de alguns destes, ou mesmo de
envelhecimento. Não te importes, portanto, que lhe cha- todos, não ficará diminuído por isso.
mem taciturno, que o digam desinteressado em progredir
na vida: com o passar do tempo essa taciturnidade dará
bons frutos, desde que ele continue a praticar a virtude, a 11
Sobre a posição de Séneca acerca dos esrudos liberais v. a carta 88.

128 129
7 Se o nosso homem fosse natural da Pártia, logo em sem o prévio esquecimento da vida passada! Noutra opor- 11
garoto teria começado a retesar o arco; se nascesse na tunidade explicar-te-ei mais detidamente de que modo tudo
12
Germânia, ainda criànça começaria a lançar o dardo ligeiro; aquilo que nos parece ser destruído apenas se transforma •
se tivesse nascido no tempo dos nossos avós teria apren- Deve resignar-se a partir de bom grado todo aquele que
dido a montar e a lutar com o inimigo corpo a corpo. está certo de um dia regressar. Observa o ciclo dos fenó-
Cada povo tem o seu método específico, que recomenda, e menos que continuamente se repetem: verás que neste
8 mesmo impõe, aos seus jovens. Qual o tema de meditação mundo nada se extingue de todo, antes alternadamente
adequado para o nosso homem? Que o melhor remédio tudo se esconde e ressurge. O verão termina, mas o pró-
contra todas as armas, contra todos os tipos de inimigo, ximo ano trará um novo verão; o inverno finda, mas os
consiste no desprezo pela morte! Ninguém duvida de que seus meses próprios trá-lo-ão de volta; a noite oculta o
a morte tenha em si algo de assustador e contrário ao sol, mas em breve o dia expulsará a noite. No seu curso
nosso sentimento natural, que nos conduz a amar a vida. os astros voltam a percorrer o espaço por que já passa-
De facto não seria necessário prepararmo-nos insistente- ram; continuamente uma parte do céu está em movimento
mente para uma situação em direcção à qual caminhásse- ascendente e a outra em movimento descendente.
mos por um instinto natural, semelhante ao instinto de Vou terminar acrescentando apenas esta reflexão: as
9 conservação que todos possuimos. Ninguém necessita de crianças de colo e os idiotas não têm medo da morte; não
aprender a, se for necessário, deitar-se de boa vontade seria uma vergonha que a razão nos não proporcionasse a
num leito de rosas! Pelo contrário, é preciso um treino mesma imperturbabilidade a que chegam aqueles por
rigoroso para que alguém se mantenha firme sob a tor- carência de razão?
tura, para que, em caso de necessidade, fique em pé mesmo
ferido, de sentinela ao acampamento, sem encostar-se 37
sequer à lança, pois numa situação destas o mais frágil
ponto de apoio torna-se propício ao sono. A morte não O laço mais forte a prender-te à prática da virtude é 1
tem em si nada de nocivo, porquanto uma coisa, para ser este: comprometeste-te a ser um homem de bem, confirmaste-
10 nociva, deve primeiro existir! Se tens assim um tão grande -o por um juramento. Se te disserem que se trata de uma
desejo de uma vida mais longa, pensa então que nada militância ligeira e fácil estão troçando de ti. Não pre-
daquilo que se escapa aos nossos olhos para mergulhar na tendo enganar-te. Quer na mais nobre quer na mais
natureza (da qual tudo proveio e à qual tudo em breve vil das carreiras 13 a fórmula de compromisso é idêntica:
há-de regressar) se destrói por completo; as coisas cessam,
mas não se perdem; a morte - que nos enche de terror,
que nós nos recusamos a aceitar - interrompe a vida, " Não existe entre as cartas conservadas nenhuma em que Séneca retome e
mas não lhe põe termo; virá um dia em que novamente exponha sistematicamente esta questão.
11
veremos a luz, num regresso à vida que muitos recusariam A mais nobre: a prática da filosofia; a mais vil: a de gladiador.

130 131
jurar submeter-se "ao fogo, às cadeias, à morte pelas esteja sujeito, sujeita-te tu à razão; dirigirás muitos outros,
2 armas". No caso dos homens que alugam os seus braços à se a ti te dirigir a razão. Ela te dirá o que deves empreen-
arena do circo, comendo e bebendo do que lhes rende essa der, e de que maneira; assim não serás surpreendido pelos
sangrenta brutalidade, pretende conseguir-se que eles se acontecimentos. Tu não podes apontar-me alguém que saiba 5
submetam à violência mesmo contra vontade; no teu caso, de que modo começou a querer aquilo que quer. E por-
que tu te submetas a ela voluntária e alegremente. Os quê? Porque o comum das pessoas não é levada pela
gladiadores podem jogar fora as armas e apelar para a reflexão, mas arrastada por impulsos. A fortuna cai sobre
clemência do público; tu não poderás lançar fora as tuas nós não menos vezes do que nós caimos sobre ela. A
nem implorar que te concedam a vida: terás de morrer indignidade não está em "irmos'', mas em "sermos leva-
sem te curvares, sem te deixares vencer. De que te valerá, dos'', em perguntarmos de súbito, surpreendidos, no meio
aliás, a concessão de uns quantos dias, de uns quantos de um turbilhão de acontecimentos: "Mas como é que eu
anos a mais? Nós, estóicos, não podemos ser desmobiliza- vim parar aqui?"
3 dos! "De que m odo então" - perguntas tu - "consegui-
rei libertar-me?" Tu não podes escapar ao inevitável, mas
podes vencê-lo! 38
Abre-se caminho à força 14 , Tens toda a razão em exigir que tornemos mais fre- 1
e esse caminho será a filosofia a indicar-to. Dedica-te a quente esta nossa troca de cartas. A conversação é sobre-
ela, se de facto queres salvar-te, se queres viver seguro e maneira útil, porquanto se grava no espírito a pouco e
feliz, se queres, enfim, e isso é o fundamental, ser livre. pouco; os discursos preparados e pronunciados perante
4 Não há outro modo de conseguires tudo isto. A ignorân- um auditório, se se revestem de mais aparato, carecem de
cia 15 é uma coisa vil, abjecta, indigna, servil, sujeita a inú- familiariedade. Digamos que a filosofia é um bom conse-
meras e violentíssimas paixões. Destes insuportáveis tira- lho: ora ninguém dá conselhos em público! Uma vez por
nos que são as paixões - e que ora nos governam outra pode ser necessário usar um estilo, digamos assim,
alternadamente, ora em conjunto - te libertará a sabedo- oratório, quando se trata de obrigar a decidir-se alguém
ria, a única liberdade autêntica. Para chegar à sabedoria, que está hesitante; mas quando pretendemos não incutir
um só caminho e em linha reera; não há que errar; em alguém a vontade de aprender, mas sim transmitir
avança em passo firme e constante. Se queres que tudo te ensinamentos, então é preferível recorrer a palavras mais
despretensiosas, que penetram e se gravam na ideia com
mais facilidade. De facto, o que é necessário não é a
14
Vergílio, Aen.. II, 494. abundância, mas sim a eficácia das palavras. Devemos 2
15
Recorde-se que por "ignorância'º não deve entender-se meramente a ausência
de conhecimentos, mas antes o estado de quem voluntária ou involuntariamente distribuí-las como se fossem sementes; ora uma semente,
vive à margem dos princípios morais estabelecidos pela filosofia. O "ignorante", ainda que minúscula, se cai em terra favorável, multiplica
ou "insensato", é a antítese do ideal do "sábio" estóico. as suas energias e alcança, de exígua que era, dimensões

132 133
assaz consideráveis. O mesmo sucede com a razão. À ocupar um lugar tu próprio nessa lista, pois o que há de
primeira vista não parece ter grande raio de acção; mas à melhor numa alma nobre é deixar-se tentar por uma acti-
medida que vai agindo ganha força. As nossas palavras vidade virtuosa. Nenhum homem de espírito elevado sente
são breves, mas se o nosso espírito as acolher favoravel- atracção por ocupações vis e abjectas; em contrapartida, a
mente, elas enrijarão e florescerão. É como te digo, a contemplação da verdadeira grandeza atrai e eleva até si.
condição das nossas sentenças é semelhante à das semen- A chama ergue-se na vertical, incapaz de manter-se ras- 3
tes: os frutos são numerosos, as dimensões muito reduzi- teira, de deixar-se abaixar, tanto como é incapaz de estar
das! Basta apenas, como já disse, que um espírito propício parada; do mesmo modo o nosso espírito está sempre em
as entenda e as interiorize; se assim for, em breve esse movimento, e é mesmo tanto mais ágil e ardente quanto
espírito estará por sua vez a produzir muitas outras, mais mais nobre for. Feliz daquele que orientou esse movimento
numerosas mesmo do que as recebidas. natural no sentido da virtude: com isso pôs-se definitiva-
mente a salvo dos ataques da fortuna e obteve o meio de
moderar a prosperidade, aliviar a adversidade e menospre-
39 zar aquilo que o comum dos mortais admira. Uma grande 4
1 Descansa que hei-de escrever um tratado de filosofia, alma distingue-se por desprezar a grandeza, e por preferir
bem sistematizado e sintetizado, conforme tu me pedes. a justa medida aos excessos, já que a primeira se limita ao
Em todo o caso vê se não te será mais útil continuar com que é útil e indispensável à vida, enquanto os últimos se
o nosso método habitual em vez de empregar estes volu- tornam nocivos pelo próprio facto de serem supérfluos. É
mes a que agora se chama vulgarmente "manuais" e a assim que a fertilidade excessiva prejudica as searas, os
que antigamente, quando ainda se falava latim, se dava o colmos partem-se com o peso e a demasiada abundância
nome de "compêndios". O primeiro método é sobretudo de grão não chega a amadurecer. ,O mesmo ocorre com as
indispensável a quem está em fase de aprendizagem, o almas corroídas por um bem estar desmesurado, do qual
segundo, a quem já conhece a matéria, porquanto aquele usam em prejuízo não só dos outros como de si próprias.
dá os ensinamentos, este apenas fornece os tópicos. De Nenhum inimigo inflingiu a alguém golpes tão duros como 5
qualquer modo encher-te-ei de textos segundo ambos os aqueles que certas pessoas sofrem ocasionados pelos pró-
métodos. E tu não me reclames este ou aquele ponto: prios prazeres. Só uma coisa pode desculpar a imoderação,
2 quem recorre a um perito é porque não é perito! Em a louca voluptuosidade de tal gente: é que sofrem a con-
suma, eu escreverei tudo o que pretendes, mas cá à minha sequência dos seus actos. Não é sem razão, aliás, que uma
maneira; entretanto tens à tua disposição muitos autores, tal loucura se apodera delas: o desejo de ultrapassar os
cujos escritos, aliás, não sei até que ponto estão bem sis- limites naturais descamba necessariamente na desmesura.
tematizados. Pega no catálogo dos filósofos: não será pre- A necessidade natural tetn o seu termo próprio, enquanto
ciso mais para te entusiasmar, vendo quantos homens as necessidades artificiais derivadas do prazer nunca conhe-
andaram a trabalhar em teu proveito. Desejarás certamente cem limitações. A utilidade serve de medida ao que é 6

134 135
indispensável; mas por que padrão aferir o qu~ é supér- cuja dicção, tal como a própria vida, deve ser metodica-
fluo? Por conseguinte, muitós afundam-se em prazeres sem mente ordenada; e não pode haver ordem quando se fazem
os quais, uma vez transformados em hábito, já não podem as coisas com precipitação. Por isso mesmo é que Homero
passar; são estes os mais deploráveis de todos, pois se atribuiu ao seu orador jovem uma eloquência cerrada, sem
deixaram chegar a um ponto tal em que se lhes tornou pausas, que lhe vinha aos lábios como se de flocos de
indispensável uma coisa que começou por ser apenas neve se tratasse; ao orador ancião, porém, a palavra fluía
supérflua. Em vez de os desfrutar, tornam-se escravos do calma e mais doce do que o mel 16• Fica sabendo: esse 3
prazer; e, para cúmulo da desgraça, acabam por amar modo de falar atabalhoado e impetuoso está muito bem
aquilo mesmo que os torna desgraçados. Atinge-se assim o para um charlatão, mas não para um homem que pre-
cume da infelicidade: a degradação torna-se, de prazer, em tende tratar - e ensinar! - um assunto importante e
condição natural; quando os vícios se transformam eni sério. Um filósofo, penso eu, nem deve falar a conta-gotas
hábito deixa de ser possível a aplicação de qualquer remédio. nem a correr; não deve obrigar-nos a apurar os ouvidos,
tal como não deverá atordoá-los. Um modo de falar indo-
lente e sem vigor diminui a atenção dos ouvintes, enfas-
40
tiados pela lentidão, pelas interrupções constantes; no
1 Agradeço-te a frequência com que me escreves, pois é entanto, uma palavra que se faz esperar retém-se mais
esse o único meio de que dispões para vires à minha pre- facilmente do que uma que voa e mal se ouve. Por outro
sença. Nunca recebo uma carta tua sem que, imediata- lado, os filósofos devem transmitir preceitos aos discípu-
mente, fiquemos na companhia um do outro. Se nós gos- los; ora não é verdadeiramente transmitido um preceito
tamos de contemplar os retratos de amigos ausentes como dado a fugir. Acrescenta ainda que um estilo orientado 4
forma de renovar saudosas recordações, como consolação para a verdade não deve ocupar~se de ornatos e de figu-
ainda que ilusória e fugaz, como não havemos de gostar ras. A eloquência vulgar, essa não se orienta minimamente
de receber uma correspondência que nos traz a marca para a verdade. O seu propósito é agitar a multidão, atrair
autêntica, a escrita pessoal de um amigo ausente? A mão auditores pouco cultivados graças a impetuosas tiradas; não
de um amigo gravada na folha da carta permite-nos quase se presta a uma análise cuidada, é feita de arrebatamentos.
sentir a sua presença - aquilo, afinal, que sobretudo nos Como pode então servir para governar os espíritos uma
interessa no encontro directo. eloquência incapaz de governar-se a si própria? Mais ainda:
2 Dizes na tua carta que foste ouvir as conferências do um estilo oratório que visa a transformação das mentali-
filósofo Serapião aquando da sua passagem pela Sicília. dades deve descer até ao mais fundo de nós mesmos, pois
"As palavras saem-lhe em catadupa, a sua dicção não é
uniforme, os vocábulos como que se empurram e atrope- 'I
lam; são palavras a mais para que uma só garganta lhes 1 16
Ilíada, III, 222 (sobre a eloquência de Ulisses, o "orador jovem") !, 249,
possa dar vazante!" Não posso aprovar isso num filósofo, (sobre Nestor, o "0rador ancião").

136 13 137
os remédios só são profícuos quando a sua acção se pro- inexperiente? Quando o desejo de se exibir ou a paixão
5 longa. O estilo comum é feito de vazio inútil, faz barulho irrefreável do orador o levarem a falar com agitação,
mas carece de vigor. Ora o que eu necessito é de apazi- mesmo assim a sua velocidade de dicção não deve ser
guar os meus receios, de dominar as paixões que se exci- tanta que impeça o auditório de acompanhá-lo. Só farás 9
tam, de eliminar os meus erros, de reprimir a minha bem, portanto, se evitares escutar esses "filósofos" a quem
luxúria, de aniquilar a minha avareza: qual destas tarefas interessa mais a quantidade do que a qualidade do que
pode ser feita de repelão? Qual é o médico que trata os dizem. Se tal for necessário, andarás bem falando como
seus doentes de passagem? E nem ao menos se pode sen- P. Vinício. "E como falava ele?" 17 Quando perguntaram a
tir prazer perante uma tal .verborreia estrepitosa e desor- Asélio como achava a dicção de Vínício a resposta foi:
6 denada! Há muitos truques que julgaríamos impossíveis "Arrastada!" Gémino Valério, por seu lado, comentou:
antes de os ter visto realizar; com estes prestidigitadores "Não percebo como chamam eloquente a este homem!
de palavras, basta ouvi-los uma vez para ficarmos a Não é capaz de dizer três palavras de seguida!...." Mas tu,
conhecê-los. O que há neles que se possa querer aprender porque não haverias de preferir falar como Vinício? Por 10
ou imitar? Que juízo se pode fazer sobre o espírito de medo de que te aparecesse algum brincalhão, como aquele
homens cujo estilo não passa de palavreado sem ordem e que, vendo Vinício a arrancar as palavras uma a uma
7 sem freio? Quando corremos por uma ladeira abaixo não como se, em vez de falar, estivesse a ditar, comentou:
conseguimos deter-nos onde queríamos, mas, levados invo- "Diz qualquer coisa! Quando te decides a dizer alguma
17
luntariamente pela força da velocidade adquirida, vamos coisa? " Quanto ao estilo "em passo de corrida" de
parar mais longe do que desejávamos; do mesmo modo a Q. Hatério, o mais célebre orador da sua época, gostaria
elocução apressada não só é incapaz de dominar-se a si que qualquer homem sensato o evitasse o mais possível.
mesma, como está aquém da dignidade da filosofia, a qual Hatério não tinha hesitações, nâ'~ fazia pausas: começava
deve ir "colocando'', e não "atirando", o seu discurso, numa a falar e acabava, tudo de um fôlego!
8 marcha calma e segura. "Que dizes? Então a filosofia não De resto, entendo que certos estilos podem ser mais 11
pode ocasionalmente usar um estilo mais arrebatado?" Claro ou menos convenientes conforme os povos. Entre os Gre-
que pode, mas sem prejuízo da sua dignidade moral, que gos, por exemplo, já este estilo seria admissível, ao passo
é comprometida precisamente por uma eloquência violenta que nós temos o hábito de fazer pausas mesmo ao escre-
e demasiado brutal. O estilo filosófico deve ter força, mas ver. Até mesmo o nosso Cícero, o homem que elevou ao
sem perder a moderação; deve ser um rio a fluir, e não cume a eloquência romana, andava a passo. O estilo roma-
uma torrente! Mesmo num orador me custaria a aceitar no é mais circunspecto; sabe avaliar o seu valor, e subme-
uma tal velocidade de elocução, incapaz de retomar o curso te-se à avaliação dos outros. Fabiano, homem notável tanto 12
das ideias, espraiando-se sem qualquer retenção. Como
poderia, aliás, um juiz seguir a linha da argumentação,
sobretudo se fosse um homem pouco dotado e ainda 17
Todo o texto, entre estes dois pontos, é pouco seguro'

138 139
pela integridade da sua vida como pelos seus conhecimen- como se assim nos fosse mais fácil sermos atendidos: a
tos, e também pela eloquência (mas esta qualidade só divindade está perto de ti, está contigo, está dentro de ti!
após as outras se deve considerar), sabia discutir com É verdade, Lucílio, dentro de nós reside um espírito divino 2
à-vontade, mais do que com entusiasmo; da sua linguagem que observa e rege os nossos actos, bons e maus; e con-
poderia dizer-se que era fácil, não que era veloz. Tal faci- forme for por nós tratado assim ele próprio nos trata.
lidade, eu aceito-a, mas não a exijo, da parte de um sábio. Sem a divindade ninguém pode ser um homem de bem;
Desde que o seu discurso se desenvolva sem entraves, ou será que alguém pode elevar-se acima da fortuna sem
prefiro que decorra com calma e não com excessiva abun- auxílio divino? As decisões grandiosas e justas, é a divin-
13 dância. Tenho tanta mais razão para afastar-te deste vício dade que as inspira. Em todo o homem de bem,
da oratória quanto mais vejo que não poderás atingir a qual seja o deus, ignora-se, mas existe um deus/ 18
eloquência sem perda do respeito que deves a ti mesmo: Se penetrares num bosque cheio de velhas árvores, de 3
terás de assumir um ar natural, não prestar atenção ao altura fora do comum e tais que a densidade dos ramos
que dizes pois fugindo à tua vigilância, o teu ímpeto ora- entrelaçados uns nos outros oculta a vista do céu, a pró-
tório levar-te-á a dizer muita coisa que gostarias de poder pria grandeza do arvoredo, a solidão do lugar, a visão
14 não ter dito. Repito que nunca alcançarás a eloquência magnífica dessa sombra tão densa e contínua no meio da
sem menosprezo da tua dignidade. Além do mais é uma planura, tudo te fará sentir a presença divina. Se vires
arte que exige treino diário, ou seja, em vez de te ocupa- uma montanha como que suspensa sobre uma caverna
res de coisas, passarias a ocupar-te de palavras! E ainda escavada na rocha, não pela mão do homem, mas roída
que as palavras te não faltassem e te ocorressem ao espí- por causas naturais até formar um enorme espaço, a tua
rito sem o menor esforço da tua parte, mesmo assim alma será atingida por uma certa aura de religioso misté-
haveria que tomar as rédeas ao discurso, pois a um sábio rio. Nós rodeamos de veneração' as nascentes dos grandes
tanto convém uma apresentação bastante modesta como rios; a irrupção súbita de um grande caudal brotando das
uma linguagem concisa e sem audácias. Para terminar, a entranhas da terra é assinalada por altares; são objecto de
súmula dos meus conselhos é esta: sê lento a falar! culto as fontes de água termal; a opacidade ou a profun-
didade imensa de certos lagos deram-lhes carácter sagrado.
Se vires um homem intrépido no meio do perigo, insen- 4
41 sível aos desejos vulgares, feliz no meio da adversidade,
1 É uma empresa excelente e salutar a tua, se de facto, tranquilo em plena procela, contemplando os outros ho-
conforme me escreves, continuas a avançar rumo à sabe- mens do alto, olhando os deuses de igual para igual -
doria, a essa sabedoria que, por estar ao teu alcance obtê- acaso não sentirás por um tal homem uma onda de vene-
-la, seria estupidez ir suplicar aos templos. Não é preciso
elevar as mãos ao céu nem pedir ao ministro do culto que
18
Vergílio, Aen., VIII, 352.
nos deixe formular votos ao ouvido da estátua do deus,

140 141
ração ? Não dirás: "Há aqui algo de superior, de demasiado enrola sob o peso dos cachos; ou será que alguém aprecia-
elevado para poder considerar-se equivalente ao miserável ria mais uma videira de que pendessem uvas de ouro e
5 corpo em que está encerrado!"? Sobre esse homem desceu folhas de ouro? A virtude própria da videira é a fecundi-
uma força divina; a sua alma sublime, com perfeito domí- dade; similarmente, no homem o que devemos admirar é
nio sobre si, que passa pelas coisas sem descer ao seu aquilo que lhe é peculiar. Alguém possui um belo grupo
nível, que se ri dos temores e dos desejos vulgares, é uma de escravos, uma casa magnífica, vastas terras de cultura,
alma movida por uma energia celeste. Uma alma desta abundante capital a render: nada disto está nele próprio,
natureza não pode perdurar sem auxílio divino; e por isso mas apenas à sua volta. No homem, enalteçamos só aquilo 8
mesmo pertence, pela sua parte mais sublime, ao lugar que se lhe não pode tirar, nem dar, aquilo que é especí-
donde proveio. Os raios do sol atingem, é certo, a terra, fico do homem. Queres saber o que é? É a alma, e, na
mas estão no lugar donde emanam; do mesmo modo essa alma, uma razão perfeita 19• O homem é, de facto, um
alma excelsa e divina, descida até nós para nos fazer animal possuidor de razão; por conseguinte, se um homem
conhecer de mais perto a divindade, embora estando na consegue a realização do fim para que nasceu, o seu bem
nossa companhia, mantém-se ligada às suas origens. Ema- específico atinge a consumação. A razão não exige do
nação celeste, é para o céu que olha e se dirige, e está homem mais do que esta coisa facílima: viver segundo a
6 entre nós sabendo que na realidade paira acima de nós. O sua própria natureza! O que torna este objectivo difícil de
que caracteriza então esta alma? O facto de não brilhar atingir é a 1oucura generalizada que nos leva a empurrar-
senão graças aos seus bens próprios. Que há de mais mo-nos uns · aos outros na direcção do vício. E como recon-
estulto do que admirar num homem aquilo que lhe é duzir ao caminho da salvação homens a quem ninguém
exterior? Onde há maior loucura do que na admiração por consegue deter, e a quem o vulgo ainda mais acicata? ...
coisas que, de um momento para o outro, podem mudar
de proprietário? Um cavalo não é melhor por ter um
freio de ouro. Não é similar a atitude do leão que entra
na arena de juba dourada, já cansado pelos tratos que
levou até submeter-se à imposição de ornamentos, e a do
leão sem ornatos, mas conservando intacto o seu vigor.
Este surge cheio de impetuosa violência, tal qual como a ...
natureza o quis, belo na sua bravura, sem outro orna-
mento para além do terror que inspira, bem superior ao
7 outro leão, amolecido e coberto de folhas douradas! Nin-
guém deve vangloriar-se senão do que lhe pertence. O
que gostamos na videira é de ver-lhe os sarmentos carre- '" Ratin perfecta: a razão levada ao máximo das suas potencialidades,
gados de fruto, é vê-la fazer tombar as estacas em que se identificando-se com a "v irtude".

142 143
LIVRO V

(Cartas 42- 52)

42
Então esse cavalheiro conseguiu convencer-te de que 1
era um homem de bem?! Olha que um homem de bem
não é coisa que surja e se reconheça por tal assim tão
depressa! E sabes o que eu entendo aqui por "homem de
bem"? Apenas o de segunda categoria, porque o de pri-
meira é como a fénix, que só aparece uma em quinhentos
anos. Não é de espantar que as coisas de facto grandes,
surjam com tão grandes intervalos: as mesquinhas, as que
se destinam ao vulgo, essas fá-las a fortuna nascer conti-
nuamente, as verdadeiramente ádmiráveis, pelo contrário,
notabilizam-se pela sua própria raridade. Esse indivíduo 2
ainda está muito distante de ser o que apregoa. Se ele
soubesse o que é um homem de bem não se julgaria já
como tal, e talvez até perdesse a esperança de vir a sê-lo.
"Mas ele tem má opinião sobre as pessoas más". O mesmo
fazem as pessoas más: nenhum castigo maior atinge
os perversos do que o desagrado que inspiram a si mes-
mos. "Ele odeia aqueles que usam imoderadamente de 3
uma súbita situação de grande poderio". Ele fará o mesmo
quando tiver um poderio idêntico. Muitos há que, por fra-
queza, parecem não ter vícios; mas se ganharem confiança
nas próprias forças, os seus vícios não serão menos ousa-

145
dos do que os dos outros, já postos em evidência por cir- verdade que a nada damos menos valor do que a nós
cunstâncias favoráveis. Ainda carecem de meios para dar próprios! Façamos, portanto, em todas as nossas decisões 8
4 largas à perversidade. Semelhantemente, uma serpente, e actos, o mesmo que fazemos ao abordar qualquer ven-
mesmo venenosa, pode ser agarrada enquanto entorpecida dedor: perguntemos o preço da mercadoria que desejamos.
pelo frio: não que ela careça de veneno, mas porque está Frequentemente pagamos ao mais alto preço algo por que
em letargia. A muitos, para que a crueldade, a ambição, a nada deveríamos dar. Posso indicar-te muitos bens cuja
luxúria atinja o nível dos piores, apenas falta o favor da aquisição, mesmo por oferta, nos custa a liberdade : sería-
fortuna. Verás que outra coisa eles não desejam se lhes mos donos de nós próprios se não fôssemos possuidores
5 deres o poder de fazer quanto querem. Lembras-te daquele de tais bens. Deves meditar no que te digo, quer se trate 9
outro indivíduo que tu garantias ser-te inteiramente dedi- de lucros quer de despesas. "Este objecto vai estragar-se."
cado? Eu disse-te que ele não era de confiança, que era Ora, é uma coisa exterior; tão facilmente passarás sem ela
instável, que tu o seguravas, não pelo pé, mas por uma como passaste antes de a ter. Se tiveste esse objecto bas-
asa; enganei-me, apenas o seguravas por uma pena, e ele tante tempo, perde-lo depois de saciado; se pouco tempo,
deixou-ta na mão e fugiu. Estás lembrado das partidas que perde-lo antes de te habituares a ele. "Ganharás menos
te fez em seguida, de tudo o que tentou contra ti e acabou dinheiro." E menos preocupações, também. "Será menor o 10
por cair sobre ele próprio. Não entendia que, colocando teu crédito." Igualmente será menor a inveja. Atenta em
os outros em perigo, ficava ele próprio em perigo. Não todos esses pretensos bens que nos dão a volta ao juízo e
pensava como eram dificultosas as suas pretensões, mesmo cuja perda nos ocasiona imensas lágrimas: verás que não
que não fossem supérfluas. somos afectados por nenhum prejuízo autêntico, mas ape-
6 Por isso mesmo devemos verificar como naquelas pre- nas pela ideia de um prejuízo. É uma perda que não sen-
tensões que com enorme esforço pretendemos realizar, ou . timos, apenas imaginamos. Quém é dono de si próprio
não existe vantagem alguma ou há sobretudo desvanta- não pode perder nada. Mas quantos são os que sabem ser
gens: umas são supérfluas, outras não merecem tanto . donos de si próprios?!
esforço. Nós, porém, não olhamos até ao fundo e por isso
nos parece de graça o que na realidade custa um altíssimo
7 preço. Por aqui se vê bem a nossa estupidez: apenas jul-
43
gamos comprar aquilo que nos custa dinheiro, enquanto Estás desejoso de saber como tive conhecimento do 1
consideramos gratuito o que pagamos com a nossa pró- caso, quem me contou essa ideia tua que tu nunca con-
pria pessoa. Coisas que não quereríamos comprar se em taste a ninguém? Foi aquele ser que quase tudo sabe: o
troca devêssemos dar a nossa casa, ou uma quinta de boato. "O quê?" - dizes tu - "Eu sou assim tão impor-
recreio, ou de rendimento, estamos inteiramente dispostos tante para dar azo a boatos?" Não deves medir-te em
a obtê-las a troco de ansiedades e de perigos, para tal relação à distância que te separa de Roma, mas sim em
sacrificando a honra, a liberdade, o tempo. A tal ponto é relação ao lugar onde resides. Qualquer objecto que sobres- 2

146 147
saia entre os objectos vizinhos só é grande no local onde possível ao homem. Se ·outras vantagens, além de si mes-
sobressai. A grandeza não tem medida certa, é a compara- ma, a filosofia possui, entre elas se contará a indiferença
ção que a torna maior ou menor. Um barco que parece pelas árvores genealógicas: se buscarmos as mais remotas
enorme no rio é minúsculo em pleno mar; um leme pode origens, veremos que todo o homem descende dos deuses.
ser grande para uma embarcação e pequeno para outra. Tu és um cavaleiro romano, e foi graças à tua actividade 2
3 Na província onde estás, por muito pouco que estimes o que chegaste a essa ordem. Muitos há, todavia, a quem as
teu valor, és uma personalidade. Todos procuram saber catorze filas 1 permanecem inacessíveis, nem todos têm
como vives, como jantas, como dormes, e por isso mesmo entrada no Senado, até os quartéis escolhem com minúcia
tens de dar mais atenção ao teu estilo de vida. Considera- aqueles que são admitidos a participar nos duros perigos
-te um homem feliz quando puderes viver sob olhos do da milícia: a sabedoria, pelo contrário, está ao alcance de
público, quando as paredes da tua casa te protegerem sem todos, para ela todos somos de nascimento nobre. A filo-
te ocultar, paredes essas que a maioria imagina existirem sofia não rejeita nem elege ninguém: a sua luz brilha para
não para que vivamos mais protegidos, mas para que todos. Sócrates nunca foi patrício; Cleantes andou acarre- 3
4 prevariquemos mais às escondidas. Vou dizer-te uma coisa tando água, contratado para regar um jardim; Platão não
pela qual poderás avaliar o nosso estilo de vida: raro será chegou à filosofia por ser nobre, ela é que o enobreceu.
aquele que é capaz de viver com as portas abertas. Os Por que razão perderás tu a esperança de vir a ter uma
porteiros foram inventados pela má consciência, não pela sorte idêntica? Todos estes homens serão os teus antepas-
vaidade; a nossa vida é tal que verem-nos de surpresa sados, desde que o teu comportamento seja digno deles. E
equivale a colherem-nos em flagrante delito. De que vale sê-lo-á, se começares por te convencer de que ninguém te
então fecharmo-nos em casa, ao abrigo dos olhos e dos excederá em nobreza. Qualquer de nós possui o mesmo 4
5 ouvidos alheios? A boa consciência exige o testemunho número de avós, ninguém há ruja origem se não perca na
dos outros, a má vive em contínua ansiedade mesmo na memória dos tempos. Diz Platão que todo o rei descénde
solidão. Se os teus actos são honestos, deixa que todos os de escravos, que todo o escravo é descendente de reis 2• As
conheçam; se são vergonhosos, para que serve ocultá-los diferentes condições sociais foram confundidas por longa
dos outros quando tu próprio os conheces? Desgraçado série de perturbações, todas a fortuna elevou ou abateu.
serás tu se desprezares o teu próprio testemunho! Qual é o homem de natureza nobre? Aquele que pela 5
natureza foi dotado para a virtude. Apenas este ponto
44 importa ter em consideração. Quanto ao resto, se fores

Aí estás de novo a portar-te como um garoto, a queixar-


1 -te de seres pouco dotado pela natureza, a princípio, pela
1
A lex Roscia thearalis, do ano 68, reservava as primeiras catorze filas do
fortuna em seguida, quando afinal está na tua mão distingui-
teatro a seguir à orquestra para os membros da ordem equestre.
res-te do vulgar e ergueres-te ao máximo de felicidade 2
Cf. Platão, Teeteto, 174 d, e ss.

148 149
invocar a antiguidade, não há família que não tenha antes for metódica, se apenas for variada torna-se um mero
de si o vazio. Desde a primeira origem do mundo até aos divertimento. Quem deseja chegar à meta que se propôs
nossos dias a humanidade percorreu uma série alternada deve seguir um só caminho, e não vaguear por vários: de
de grandeza e decadência. Um átrio cheio de bustos ene- outro modo não viaja, deixa-se ir ao acaso. Vais respon- 2
grecidos pelo fumo não faz de ninguém um nobre. Nenhum der-me que me não pedes conselhos, mas sim que te
homem viveu para nos dar glória, nada do que nos pre- mande livros. Eu estou disposto a enviar-te todos quantos
cedeu no tempo nos pertence. A alma é que nos dá a possuo, disposto mesmo a esvaziar todo o meu armazém!
nobreza, uma nobreza a que qualquer um pode aceder,
Eu mesmo, se pudesse, iria até aí, e, se não fosse a firme
6 independentemente da sua condição social. Imagina que
esperança de que em breve te libertarás do teu cargo,
não és um cavaleiro romano mas sim um liberto: está na
empreenderia, apesar de velho, essa viagem, sem que dela
tua mão conseguir que entre gente de origem livre o
único homem livre sejas tu. "Mas como?" - peguntarás. me pudessem impedir Caríbdis, Cila e as suas fabulosas
Basta que não avalies os bens e os males segundo o crité- águas. Faria a travessia, fá-la-ia até a nado, desde que me
rio do vulgo: deves verificar, não donde eles provêm, mas fosse possível abraçar-te e ir avaliar pessoalmente os teus
sim para que fim tendem. Tudo o que possa contribuir progressos espirituais.
para a obtenção de uma vida feliz será um bem de pleno Adiante ! Pelo facto de me pedires que te envie as 3
direito, já que não pode degradar-se até tornar-se um mal. minhas obras não vou imaginar-me um talento literário,
7 Toda a gente, contudo, ambiciona ter uma vida feliz; por- como não iria imaginar-me uma beleza se porventura
que sucede então que quase todos falham o alvo? Pelo pedisses que te enviasse o meu retrato. Sei que disseste
facto de se tornar por felicidade o que não passa de um isso por boa vontade, não por madura reflexão e se, acaso,
meio para atingir; por isso, quanto mais a buscam, mais resulta de uma reflexão foi porque a boa vontade ta ditou.
dela se afastam. O cúmulo da felicidade consiste numa
Seja qual for o valor dos meus escritos, lê-os como obra 4
perfeita segurança, ·numa inabalável confiança no seu valor;
de um homem em busca da verdade, não detentor dela,
ora o que as pessoas fazem é arranjar motivos de preocu-
pação, é percorrer a traiçoeira estrada da vida ajoujadas de mas em busca contínua e tenaz. Não alienei os meus
pesados fardos. Deste modo vão-se sempre distanciando direitos a favor de ninguém, não tenho gravado o nome
cada vez mais da meta que procuram alcançar, e quanto de nenhum proprietário. Confio, e muito, no pensamento
mais se esforçam por atingi-la mais se embaraçam e dos grandes homens, mas reivindico o meu direito pró-
retrocedem. Sucede-lhes como a alguém que corra num prio de pensar. De resto eles não nos legaram verdades
labirinto: a própria velocidade faz perder o norte. acabadas, mas sim sujeitas à investigação; e porventura
teriam descoberto o essencial se não tivessem investigado
45 também temas supérfluos. Mas gastaram tempo imenso 5
1 Queixas-te de teres aí falta de livros. Não interessa a em jogos de palavras, em discussões capciosas que aguçam
quantidade, mas sim a qualidade: a leitura é proveitosa se inutilmente o engenho. Construimos argumentos tortuosos,

150 151
empregamos termos de significação ambígua, finalmente ilusionistas: toda a graça está no próprio truque. Explique-
desatamos toda a trama! 3 Temos assim tanto tempo livre? -se como ele se faz, e todo o interesse se vai. O mesmo
Já sabemos como encarar a vida e a morte? O que deve- direi destas "artimanhas" (pois que melhor nome haverá
mos procurar, com todas as forças, é o modo de nos não para os sofismas?): não nos prejudica ignorá-las, nada nos
deixarmos enganar pelas coisas, e não pelas palavras. adianta conhecê-las.
6 Para quê analisar as diferenças entre palavras sinónimas, De resto, se estiveres interessado em analisar ambi- 9
que não causam dificuldade a ninguém a não ser em dis- guidades vocabulares, verifica antes que "homem feliz" não
cussões de escola? As coisas enganam-nos: aprendamos a é aquele que o vulgo entende por tal, ou seja, um homem
observá-las. Tomamos por bens coisas que o não são, de grandes recursos monetários; é, sim, aquele para quem
desejamos hoje o contrário do que desejámos ontem, os todo o bem reside na própria alma, é o homem sereno,
nossos anseios contradizem-se; contradizem-se as nossas magnânimo, que pisa aos pés os interesses vulgares, que
7 decisões. Como a adulação se assemelha à amizade! E não só admira no homem aquilo que faz a sua qualidade de
apenas a imita, como ainda a supera e ultrapassa; aceita- homem, que segue as lições da natureza, se conforma com
mo-la de ouvidos receptivos e gratos, e ela aí vem pene- as suas leis, e vive segundo o que ela prescreve; é o
trar-nos até ao íntimo, seduzindo-nos por aquilo mesmo homem a quem força alguma despojará dos seus bens
a
que torna nociva. Pois bem, aprendamos a distinguir a próprios, o homem capaz de fazer do próprio mal um
amizade da sua imitação. Um amável inimigo aproxima-se bem, seguro do seu pensamemto, inabalável, intrépido; é
de mim dando-se como amigo; os vícios vêm-nos ao o homem a quem a força pode abalar, mas nunca desviar
encontro sob o nome de virtudes: chama-se à temeridade da sua rota; a quem a fortuna, apontando contra ele as
coragem, à cobardia dá-se o nome de moderação, o medro- mais duras armas com a maior violência, pode arranhar,
so faz figura de homem cauteloso. É em casos destes que mas nunca ferir, e mesmo assim 'raramente, porquanto os
corremos risco de cair em erro: é a casos destes que dardos da sorte, que afligem em geral a humanidade, fazem
8 devemos atribuir as designações exactas. Se perguntarmos ricochete contra ele à maneira do granizo que, batendo no
a alguém se tem cornos, ninguém será tão estúpido que tecto, salta e se derrete sem causar qualquer dario ao ocu-
vá levar a mão à testa; nem, por outro lado, tão imbecil pante da casa.
ou obtuso que precise de uma subtil argumentação para se Para que me fazes perder tempo com o argumento a 10
convencer se os tem ou não. Tais subtilezas enganam-nos, que chamas "o mentiroso", sobre o qual já tanto se tem
mas inocentemente, como as tigelas e as pedrinhas dos escrito?" Toda a vida, em meu entender, é uma mentira:

1 O problema do "mentiroso" é enunciado por Cícero conforme segue: "Se

afirmas que és mentiroso e dizes a verdade, estás a mentir. De facto, tu dizes


·' Sobre a pouca conta em que Séneca tinha certas investigações lógicas, até que mentes, e dizes a verdade: logo estás a mentir" (Cícero, Acad. Pr., II 96)
dos próprios estóicos, cf. por exemplo as cartas 48, 49, 83, parágrafo 9 e Logo a seguir, comenta Cícero: "Estes problemas foram levantados por Crisipo,
seguintes. sem que nem ele próprio os tenha podido solucionar" (v. S.V.F., II, 282).

152 14 153
já que és tão engenhoso, critica-a e recondu-la ao caminho me tentou a prolongar a leitura. E podes compreender
da verdade. Ela considera como necessárias coisas que em como me foi grata a sua linguagem se te disser que é de
grande parte não passam de supérfluas; e mesmo as que leitura fácil, muito embora exceda as dimensões habituais
não são supérfluas não contribuem em nada para nos dar das minhas obras e das tuas, parecendo à primeira vista
bem estar e felicidade. Pelo facto de ser necessária, uma um volume de Tito Lívio ou de Epicuro 5• O certo é que o
coisa não é, desde logo, um bem; ou então degradamos o agrado da leitura tomou por completo conta de mim, e li-
conceito de "bem'', dando este nome ao pão, à polenta e a -o até ao fim sem mais delongas. O sol atraía-me, a fome
11 tudo o mais imprescindível à vida. Tudo que é bem, é, dava sinal de si, as nuvens ameaçavam-me: nada me
por isso mesmo, necessário, mas o que é necessário não é
impediu de concluir uma leitura, que me encheu não só
forçosamente um bem: há muita coisa necessária e, simul-
de prazer como de alegria. "Que talento, que força de 2
taneamente, de baixo nível. Ninguém é tão ignorante da
alma tem este homem! Diria até "que rasgos de entu-
dignidade do bem que degrade o conceito ao nível dos
siasmo" se, acaso, ora escrevesse com mais calma, ora com
12 objectos de uso diário. Pois bem, não seria melhor que te
mais calor". Mas não, não eram rasgos de entusiasmo, era
aplicasses antes a mostrar todo o tempo que se perde na
busca de superfluidades, a apontar como tanta gente des- uma inspiração contínua. O teu estilo de composição é
perdiça a vida na busca do que não passa de meios auxi- cheio de virilidade, de propriedade, o que não exclui, oca-
liares? Observa os indivíduos, considera a sociedade: todos sionalmente, e no momento exacto, uma expressão mais
13 vivem em função do amanhã! Não sabes que mal há branda. Tens um estilo elevado, directo; mantém-no, con-
nisto? O maior possível. Essa gente não vive, espera viver, serva-o assim. É certo que o assunto também ajudou; por
e vai adiando tudo. Ainda que lhe déssemos toda a aten- isso mesmo há que escolher um tema abundante, que
ção a vida ultrapassar-nos-ia; se andarmos assim à deriva, atraia e desperte a imaginação.
ela passa por nós como uma estranha; termina com o Dir-te-ei mais sobre o teu livro quando o tiver relido. 4
nosso último dia, mas vai-se quotidianamente perdendo. Por agora a minha opiniãó não é ainda firme; é como se
Mas para não exceder a dimensão normal de uma tivesse ouvido, não lido. Permite ·que o analise com cui-
carta, que não deve encher a mão esquerda do leitor, adia- dado. Não tens que recear: apenas te direi a verdade.
rei para outra altura esta discussão com os dialécticos, Considera-te um homem feliz, pois mesmo de tão longe
gente em excesso subtil, e cuja única preocupação é esta, e não há razão para que te mintam, como tantas vezes se
apenas esta! faz: mesmo sem motivo, mente-se por hábito! 6

46
5 Qualquer deste autores se distinguia não apenas pelo número das suas

1 Chegou-me às mãos aquele teu livro que me havias obras, mas também pelo volume das mesmas.
6
Infelizmente, nem se conservou o volume de Lucílio, cujo conteúdo se
prometido. Na intenção de o ler com mais vagar, limitei- ignora, nem qualquer carta de Séneca em que a promessa de discutir minucio-
-me a abri-lo, como que para prová-lo. Ele mesmo, porém, samente a obra fosse cumprida.

154 155
47 não falo dos tratamentos cruéis, desumanos que lhes são
inflingidos, como se eles não fossem homens, mas bestas
1 Foi com prazer que ouvi dizer a pessoas vindas .de de carga. Quando jantamos estendidos no leito há um
junto de ti que vives com os teus escravos como se fos- escravo para limpar os escarros, outro para, de gatas,
sem teus familiares. Isso só atesta que .és um espírito bem andar apanhando o vomitado dos convivas ébrios. Outro 6
formado e culto. "São escravos.}} Não, são homens. "São destina-se a trinchar aves de alto preço; e com a sua mão
escravos.}} Não, são camaradas. "São escravos.}} Não, são hábil, por cortes exactos desde o peito até à mitra, vai
amigos mais humildes. "São escravos.}} Não, são compa- fazendo a ave em bocados. Desgraçado, cuja vida não tem
nheiros de servidão, se pensares que rodos estamos sujei- outro fim que não seja trinchar aves! Só que talvez ainda
2 tos aos mesmos golpes da fortuna. Por isso me parece seja mais miserável o senhor que nisso o adextrou para
ridículo achar desonroso jantar na companhia de um servir o seu prazer, do que o escravo forçado a adextrar-
escravo. Pois não é apenas fruto de extrema vaidade o -se. Outro caso é o do escanção: vestido e pintado como 7
hábito de os senhores jantarem rodeados de uma multidão uma mulher, luta contra a própria idade. Não o deixam
de escravos em pé? O senhor come mais do que tem crescer, forçam-no a manter-se criança, e, apesar do seu
necessidade, com gula desmedida sobrecarrega um estômago físico de soldado, todo depilado a unguento ou à pinça,
dilatado e já tão desabituado das suas funções de estômago passa a noite em claro ao serviço da embriaguês e da
que deita tudo fora com mais trabalho ainda do que teve lubricidade do senhor: serve-lhe de homem no quaito, de
3 a ingerir. Entretanto, os infelizes escravos nem sequer garoto na sala de jantar! Outro, o do encarregado de ins- 8
podem mover os lábios para falar: o mínimo murmúrio é peccionar os convivas, um infeliz que passa o tempo a
punido à chibatada, e nem ruídos casuais - tosse, espirro notar quais os que, pela capacidade de adulação ou pela
ou soluço - estão ao abrigo do chicote; qualquer barulho intemperança de apetite, ou de linguagem, voltarão a ser
que interrompa o silêncio do senhor é duramente punido; convidados no dia seguinte. Outro ainda o dos chefes da
4 passam toda a noite em pé, sem comer, sem falar. O cozinha, a quem incumbe conhecer em pormenor o pala-
resultado é que esses escravos a quem se proíbe falar em dar do senhor, quais os alimentos que lhe excitam a vora-
frente do senhor, falam depois mal dele pelas costas. ·cidade, quais os pratos de cujo aspecto ele gosta, quais
Antigamente, quando os escravos conversavam, não só na aqueles que, pela novidade, poderão despertar a sua gula
presença, mas com o senhor, quando não se lhes cosia a entorpecida, quais os de que já está farto, quais os que lhe
boca, eles estavam prontos a arriscar a vida pelo senhor, a apetece comer em cada dia. Mas jantar com eles, isso o
desviar sobre si próprios qualquer perigo que o ameaçasse; senhor não admite; consideraria uma ofensa aos seus per-
conversavam às refeições, mas calavam-se quando tortura- gaminhos sentar-se com um escravo à mesma mesa. Jus-
dos. Surgiu depois aquele ditado, sinal da mesma arrogân- tiça divina! Quantos senhores não provêm da classe servil!
5 eia: tantos são os inimigos quantos os escravos. Não, eles Eu vi parado à porta de Calisto o seu antigo dono, vi o 9
não o são, nós é que fazemos deles nossos inimigos. E já mesmo homem que lhe pusera o escrito ao pescoço, que

156 157
o mandara ser vendido entre os escravos de refugo, ser Neste ponto toda a gente da alta irá protestar contra
retido à entrada enquanto outros passavam. O antigo mim: "Isso seria o cúmulo da baixeza, da vergonha!" Mas
escravo, enviado por ele à primeira decúria, aquela em essa mesma gente vou eu encontrá-la a beijar a mão aos
que os pregoeiros ainda estão treinando a voz, pagava-lhe escravos dos outros! Não vedes o que faziam os nossos 14
agora na mesma moeda: mandou-o por sua vez embora, maiores para colocar os senhores ao abrigo do ódio e os
não o julgando digno de ser recebido. O senhor vendera escravos ao abrigo da injúria? Ao senhor chamavam "pai
Calisto, mas quantos favores não teve o mesmo senhor de de família" e aos escravos, uso que aliás ainda perdura nos
comprar a Calisto! mimos 7, "pessoas de família". Além disso instituíram um
10 Pensa bem como esse homem que chamas teu escravo dia feriado no qual era, não só lícito, como obrigatório
nasceu da mesma semente que tu, goza do mesmo céu, que escravos e senhores tomassem as refeições em con-
respira, vive e morre tal como tu. Tanto direito tens tu a junto8; atribuíram-lhes ainda cargos honoríficos na admi-
olhá-lo como homem livre como ele a olhar-te como nistração da casa ou na distribuição da justiça, fazendo
escravo. Aquando do desastre de Varo, muitos homens de assim da casa uma república em ponto pequeno. "Queres 15
ilustre ascendência, que aspiravam a entrar no senado dizer que devo pôr todos os meus escravos à mesa
mediante a carreira das armas, foram vítimas da fortuna: comigo?" Não, tal como não pões todos os homens livres.
um veio a ser pastor, outro guardador de choupanas. Vê
Mas não penses que eu excluo este ou aquele por exerce-
se deves então desprezar uma condição social em que tu
rem tarefas mais grosseiras, por exemplo, este por tratar
mesmo podes tombar no próprio momento em que a
das mulas, aquele por tratar dos bois. Eu não julgo os
cobres de desprezo!
11 Não pretendo meter-me por um terreno muito vasto escravos pelas suas tarefas, mas pela sua conduta moral: a
e compor uma dissertação sobre o tratamento a dar aos conduta é cada um que a determina, as tarefas, essas,
escravos, com quem em geral nos mostramos soberbos, distribui-as o acaso. Alguns devérão jantar contigo porque
cruéis e injuriosos no mais alto grau. Muito concisamente, são dignos de ti, outros para que o sejam; algo de servil
o meu preceito é este: vive com o teu inferior como gos- que persista neles devido às suas relações com gente baixa,
tarias que o teu superior vivesse contigo. Sempre que te a convivência com pessoas de bem acabará por o eliminar.
vier à cabeça todo o poder de que gozas em relação a um Não há razão, caro Lucílio, para só buscares amigos no 16
escravo, recorda-te que outro tanto poder tem o teu senhor foro ou no senado: se olhares com atenção encontrá-los-ás
12 sobre ti. "Mas eu não pertenço a nenhum senhor!" - em tua casa. Muitas vezes um bom material permanece
dirás. Ainda não é tarde, talvez ainda venhas a pertencer.
Ignoras com que idade Hécuba, Creso, a mãe de Dario,
13 Platão, Diógenes se viram reduzidos à escravidão? Usa de 7 O mimo era uma representação teatral, comportando dança, pantomina e

clemência para com o teu escravo, de afabilidade mesmo, acompanhamento musical que no séc. 1 a.C. se transformou numa espécie de
farsa (ou rev ista) com certa crítica p:>lítica e social. Entre os autores de mimos
admite-o nas tuas conversas, nas tuas deliberações, nas distinguiu-se Publílio Siro, citado frequentemente por Séneca.
tuas refeições. 8
O fest ival das Sarurnais.

158 159
inutilizado por falta de quem o trabalhe. Tenta, pois, e vê apenas os castigares verbalmente: só os irracionais é que
o resultado. Tal como é estupidez comprar um cavalo são ensinados a chicote. Nem tudo quanto nos atinge nos
inspeccionando, não o animal, mas sim a sela e o freio, fere; é a nossa vida de luxo que nos torna propensos à
assim é o cúmulo da estupidez julgar um homem pela ira, a ponto de a mínima contrariedade gerar uma explo-
roupa ou pela condição social, que, de resto, é tão exterior são de cólera. Criamos em nós próprios uma soberba de 20
17 a nós como a roupa. "É um escravo." Mas pode ter alma reis. E os reis, por seu lado, esquecendo-se do próprio
de homem livre. "É um escravo." Mas em que é que isso poder e da fraqueza dos outros, enfurecem-se e lançam-se
o diminui? Aponta-me alguém que o não seja: este é como feras, como se tivessem recebido alguma ofensa,
escravo da sensualidade, aquele da avareza, aquele outro da quando a grandeza da própria fortuna os mantém ao
ambição, todos são escravos da esperança, todos o são do abrigo total das ofensas. Eles bem sabem que é assim, só
medo. Posso mostrar-te um antigo cônsul sujeito ao mando que buscam todas as oportunidades para fazer mal. Sentir-
de uma velhota, um ricalhaço submetido a uma criadita, -se lesados é para eles um meio de poderem lesar os
posso apontar-te jovens filhos de nobilíssimas famílias que outros.
se fazem escravos de bailarinos: nenhuma servidão é mais Não quero demorar-te mais tempo; tu não careces já 21
degradante do que a voluntariamente assumida. Aí tens a das minhas exortações. Entre outras, a moralidade tem
razão por que não deves deixar que os nossos tolos te ainda esta vantagem: satisfaz-se de si mesma, permanece
impeçam de seres agradável para com os teus escravos, sempre idêntica. A maldade, essa, é instável, está constan-
em vez de os tratares com altiva superioridade. É preferí- temente a mudar, a tornar-se, não menos gravosa, mas
vel inspirar respeito do que medo. apenas diferente.
18 Haverá neste momento quem diga que eu pretendo
dar aos escravos o barrete de libertos 9 e fazer descer os
senhores do seu pedestal pelo facto de ter afirmado "ser 48
preferível para o senhor inspirar respeito do que medo".
"Pois quê?" - dirão. - "Que nos respeitem como se À carta que me enviaste durante a tua viagem, tão 1
fossem nossos clientes, nossos protegidos?" Quem assim longa como a própria viagem, responderei mais tarde:
fala não se lembra que não é pouco para os senhores tenho de me concentrar e analisar com cuidado os conse-
aquilo que basta à divindade. Quem é respeitado é tam- lhos a dar-te. Tu mesmo, ao fazeres essa consulta, delibe-
bém amado, ao passo que o amor nunca pode ir de par raste longamente se me havias de consultar. Outro tanto
19 com o medo. Emendo, portanto, que fazes muitÍssimo devo eu fazer, e com mais razão, já que é preciso mais
bem em não querer inspirar medo aos teus escravos, em tempo para resolver um problema do que para apresentá-
-lo. T amo mais ainda quanto uma coisa são os teus inte-
resses, outra os meus. Mas não estou eu outra vez a falar 2
'' Cf. livro II, nota 18. como um epicurista? Os meus interesses coincidem com

160 161
os teus; de outra forma não seria teu amigo, se não con- Rato é um dissílabo; ora o rato rói o queijo; logo um 6
siderasse como meu tudo o que a ti diz respeito. A ami- dissílabo rói o queijo 10 • Imagina que eu sou incapaz de
zade estabelece entre nós uma comunhão total de interes- resolver esta questão: que perigo me sobrevém desta minha
ses; nem a felicidade nem a adversidade são fenómenos incapacidade? Que prejuízo? Se calhar tenho de acautelar-
individuais: vivemos para a comunidade. Não é mesmo -me, não vá dar com a ratoeira cheia de sílabas, ou não
possível alguém viver feliz se apenas se preocupar con- vá algum livro, se eu me descuidar, comer-me o queijo
sigo, se reduzir tudo às suas próprias conveniências: tem todo! Talvez ainda seja mais engenhoso este outro silo-
de viver para os outros quem quiser viver para si mesmo. gismo: Rato é um dissílabo; um dissílabo não rói o queijo;
3 A convivência, - observada com nobre e contínuo empe- logo o rato não rói o queijo. Oh! que infantilidades! É 7
nho, - que nos insere como homens entre outros homens para chegar a este estado que franzimos os sobrolhos e
e admite a existência de algo comum a todo o género deixamos crescer a barba? É isto que, de rosto severo e
humano, é da maior importância para o desenvolvimento pálido, nós vamos ensinar? Se queres saber o que a filoso-
daquela convivência mais íntima - a amizade - de que fia traz de útil à humanidade, dir-te-ei: os seus preceitos.
eu há pouco falava. Quem tiver muito de comum com os Há homens que estão às portas da morte, outros a quem
outros homens, terá tudo em comum com o seu amigo. a miséria atormenta, outros a quem tortura a riqueza,
4 Aqui está, Lucílio, homem bom entre os bons, o que própria ou alheia; uns afligem-se com a má sorte, outros
eu prefiro que me expliquem os nossos doutos mestres, desejariam escapar aos excessos de bem estar; uns são
detestados pelos homens, outros pelos deuses. Para quê
ou seja, quais os deveres que eu tenho para com um
fazer frioleiras daquelas? Não é altura de brincar: importa 8
amigo ou para com qualquer homem, em vez de me
é ajudar os desgraçados. Prometeste prestar auxílio aos
ensinarem todos os matizes da palavra "amigo" ou todos
náufragos, aos cativos, aos doentes, aos miseráveis, aos
os significados da palavra "homem". A sabedoria e a
condenados sobre cujo pescoço já impende o machado:
estultícia seguem por caminhos opostos. Que caminho será porque te distrais? Que vais fazer? Este homem está cheio
o meu? Que direcção devo seguir? Para um, todo o homem de medo: em vez de brincar ajuda-o a libertar-se dos seus
é um amigo, para outro o amigo deixa de contar como temores 11 • De todo o lado, todos erguem para ti as mãos,
homem; este procura conseguir um amigo, aquele fazer-se pedem qualquer auxílio para a sua vida sem rumo e sem
amigo de outrem: e assim se torturam as palavras e se futuro, toda a sua esperança de socorro está em ti; pedem-
5 desfiam as sílabas! Quase parece que, se não construir -te que os libertes do turbilhão que os consome, que mos-
raciocínios cheios de subtileza e rematar com uma conclu- tres a clara luz da verdade a quem anda perdido à deriva.
são falsa um erro assente em premissas verdadeiras, nunca
poderei distinguir o que devo evitar e o que devo fazer. 10
Em latim "rato" diz-se mus, pelo que no original o queijo é roído por
Que vergonha! Já velhos, pormo-nos a brincar com um uma sílaba apenas, e não por um dissílabo !
assunto tão sério ! 11
Tradução conjectura!, dada a corruptela do texto.

162 163
9 Diz-lhes o que para a natureza é necessano e o que é com que garantíeis que os meus olhos deixariam de impres-
supérfluo, como é fácil obedecer às suas leis, como é agra- sionar-se com o brilho do ouro ou das armas, e que eu
dável e sem problemas a vida daqueles que as seguem, e seria capaz de calcar aos pés, com inabalável firmeza, tudo
como, pelo contrário, é dura e complicada a vida dos que quanto os outros desejam ou receiam? Porque desceis agora
confiam mais na opinião do que na natureza... * * * 12 a essas minúcias de gramático? Que dizeis?
...desde que primeiro lhes ensines que fracção dos seus
Assim se sobe aos astros? 15
males elas (se. as disputas dialécticas) podem aliviar. Em
que é que estes estudos nos livram dos desejos ou os Aquilo que a filosofia me prometeu foi tornar-me igual à
moderam? Já seria bom que esses sofistas se limitassem a divindade. Foi esse o convite que recebi. Por isso vim.
não servir; mas o facto é que são mesmo nocivos. Quando Respeite-se, portanto, a palavra dada.
quiseres poderei demonstrar-te à evidência que um carác- Meu caro Lucílio, subtrai-te quanto possível a essas 12
ter bem dotado que se entregue a estas subtilezas fica subtilezas, a essas argúcias dos filósofos. À boa formação
10 atrofiado, debilitado. Até me causa vergonha dizer que do espírito convém a clareza e a simplicidade. Ainda que
armas ou que treinos estes mestres dão aos discípulos que nos restasse muito tempo de vida, haveria que poupá-lo
desejam aprender a lutar contra a fortuna! ... 13 É por esta com cuidado, de modo a bastar ao indispensável. Grande
via que se atinge o supremo bem? É pela via destes estultícia seria aprender inutilidades apesar de uma tão
"dado isto, ou dado aquilo" filosóficos, subtilezas vergo- grande escassez de tempo!
nhosas e inúteis mesmo para os causídicos versados nos
éditos do pretor? 11 Quando interrogais alguém de modo a, 49
conscientemente, fazê-lo cair em erro, o que é que na rea-
lidade fazeis senão dar a entender que ele perdeu o pro- Lembrarmo-nos de um amigo só porque a contempla- 1
cesso? Mas o que a uns faz o pretor, a outros faz a filoso- ção de um determinado local no-lo traz à memória signi-
11 fia: restitui à posse dos seus direitos. Porque vos afastais fica, meu caro Lucílio, uma certa indolência e indiferença
das vossas grandes promessas, das vossas solenes palavras, do espírito. É, no entanto, verdade, que a vista de um
sítio familiar desperta, por vezes, saudades bem enraizadas
na nossa alma; não é uma recordação apagada que ressus-
12
O texco apresenta aqui uma lacuna, sem que nenhuma das várias tentati- cita, é uma lembrança ténue que se aviva. O caso assemelha-
vas propostas para a colmatar se imponha decisivamente.
15 -se ao das pessoas que perderam alguém querido: a dor
A vida do filósofo é equiparada por Séneca a uma verdadeira militância,
donde a abundância de imagens e sím iles tirados da linguagem castrense para vai-se mitigando com o tempo, mas a presença do escravo
descrever o aprendizado e a prática da sabedoria. favorito do falecido, a vista da sua roupa ou da sua casa
11
· As expressões condicionais do tipo "dado X. então Y", habituais no racio-
cínio silogístico, ocorrem também com frequência na linguagem jurídica (daí a
referência aos "editos do pretor", ou seja, do magistrado encarregado da aplica-
~-ão da justiça). " Vergílio, Aen., IX, 641.

164 165
reavivam-na. A minha recente passagem pela Campânia, pouco", contudo, representa uma boa parte da nossa curta
em especial por Nápoles e pela tua querida Pompeias ,
16
existência, da qual, não o esqueçamos, em breve nos vere-
despertaram em mim incríveis saudades tuas: os meus mos privados. Habitualmente não me parecia tão veloz a
olhos enchem-se com a tua imagem. Em momentos des- passagem do tempo; agora, porém, parece-me incrivelmente
tes é que eu sinto a tua partida: revejo-te embebido em rápida, talvez porque sinto aproximar-se o fim, talvez
lágrimas, tentando a custo refrear uma emoção que se expan- porque passei a dar-lhe atenção e a avaliar o desgaste que
dia no próprio momento em que tentavas sufocá-la. em mim provoca.
2 Parece-me ter perdido a tua companhia ainda há pouco. Por isso mesmo me causa indignação ver como as 5
Mas se nos pusermos a recordar, o que é que não sucedeu pessoas gastam em futilidades a maior parte de uma vida
"ainda há pouco"? Ainda há pouco era eu um adolescente que, mesmo dispendida com a maior parcimónia, não seria
que assistia às aulas de Socião, o filósofo; foi ainda há bastante para as coisas essenciais. Dizia Cícero que nunca
pouco que comecei a minha carreira de advogado; foi teria tempo para ler os poetas líricos ainda que a sua vida
ainda há pouco que perdi, primeiro a vontade, depois a duplicasse; o mesmo direi eu dos dialécticos, cuja insensa-
possibilidade de prossegui-la. A velocidade do tempo é tez ainda é mais confrangedora, pois se aqueles são fúteis
infinita, e só quando olhamos para o passado, é que temos deliberadamente, estes estão convencidos de que fazem obra
consciência disso. O tempo ilude quem se aplica ao mo- útil. Não nego que se deva dar uma olhadela ao estudo da 6
mento presente, de tal modo é insensível a passagem do dialéctica, mas uma olhadela apenas, uma saudação, por
3 seu curso vertiginoso. Queres saber porquê? Porque todo assim dizer, feita cá de longe e com este único propósito:
o tempo passado se acumula num mesmo lugar; todo o o de não tomarmos o que não passa de palavreado como
passado é contemplado em bloco, forma uma totalidade; se fosse a expressão de algum grande e profundo pensa-
todo ele se precipita no mesmo abismo. De resto, não é mento. Para quê deixares-te tórturar por um problema
possível delimitar grandes intervalos nesta nossa vida tão que é mais correcto ignorar do que tentar resolver? Quem
breve. A existência humana é um ponto, é menos que um faz uma viagem tranquila e sem pressas pode ir coleccio-
ponto. Só por troça é que a natureza deu a tão diminuta nando lembranças, mas quando o inimigo ataca, quando o
existência a aparência de uma grande duração, dividindo-a soldado tem ordem de marcha, a urgência da situação
em infância, em adolescência, em juventude, em período obriga a deitar fora tudo o que se coleccionara nos tempos
de transição da juventude à velhice, finalmente em velhice. de lazer. Não tenho vagar para exercitar a minha sagaci- 7
4 Tantos períodos num tão exíguo espaço de tempo! Ainda dade na análise de expressões de significado ambíguo.
há pouco me despedi de ti quando partiste. Este "há Vê todos os povos aliados, vê as fortalezas que, de
portas encerradas, aguçam as espadas. 17

16
Pompeias, (do latim Pompeü), forma correcra em português do nome da
cidade vulgarmente (mas indevidamente) conhecida por Pompeia.
17
Vergílio, Aen., VIII, 385-6.

166 167
É meu dever escutar corajosamente todo este estrépito pouco. Quando for a adormecer diz-me: "Olha que podes
8 guerreiro que me rodeiá. Todos me considerariam louco, e não acordar!"; quando acordar diz-me: "Olha que podes não
com razão, se, enquanto velhos e mulheres acarretam voltar a dormir!" Diz-me, ao sair de casa, que poderei não regres-
pedras para reforço das muralhas, enquanto os homens sar; diz-me ao regressar que poderei não voltar a sair.
armados aguardam ou reclamam diante das portas ordem Estás enganado se pensas que apenas numa viagem por 11
de sortida, enquanto os dardos inimigos se cravam, vi- mar é mínima a distância entre a vida e a morte; em
brando, nos batentes, enquanto o próprio solo estremece qualquer lugar o espaço que as separa é igualmente dimi-
com as escavações dos sabotadores, eu me deixasse ficar nuto. Nem em todas as situações a vizinhança da morte é
sentado e quieto, meditando em silogismos do tipo: "Tu tão visível, mas em todas é igualmente próxima. Ilumina
possuis aquilo que não perdeste; ora tu não perdeste os as minhas trevas, e mais facilmente me transmitirás um
. , ou outras subti·1ezas cons-
cornos; l ogo tu tens cornos JJ/18 ensinamento para o qual estou preparado. A natureza
9 truídas segundo este delirante modelo. Também tu me dotou-nos com aptidão para aprender, deu-nos uma razão,
deverias considerar demente se me visses ocupado com imperfeita, mas capaz de aperfeiçoamento. Discute comigo 12
problemas destes: é que eu também estou sustentando um sobre a justiça, a piedade, a austeridade, os dois tipos de
cerco! Só que, num cerco real, o perigo seria proveniente castidade, aquela que não atenta contra o pudor alheio e
do exterior, haveria uma muralha a separar-me do ini- aquela que respeita o pudor próprio 19• Se aceitares não me
migo. No cerco de que falo, todavia, as armas mortais conduzir por atalhos, mais facilmente atingirei o alvo que
estão dentro de mim. Por isso não tenho vagar para pretendo. Como diz o poeta trágico,
bagatelas, estou ocupado com tarefa mais importante. Como
10 hei-de agir? A morte persegue-me, a vida escapa-se-me. "é simples o discurso da verdade" 20 ;
Aconselha-me o que fazer nesta situação, indica-me como por isso mesmo não devemos complicá-lo. Nada será mais
conseguir que nem eu fuja da morte, nem a vida fuja de prejudicial a quem tem propósitos elevados do que a fala-
mim. Dá-me coragem para encarar as dificuldades, para ciosa subtileza da dialéctica.
afrontar o inevitável; torna-me menos angustiante a falta
de tempo. Diz-me que o que a vida tem de bom não é a 50
sua duração, mas sim o modo como a empregamos; diz- Recebi a tua carta muitos meses depois de ma teres 1
-me que é possível (e é mesmo o que sucede as mais enviado. Julguei, por isso, que seria inútil perguntar ao
das vezes) viver-se longamente e, mesmo assim, viver-se mensageiro como ia a tua vida. Era preciso que ele tivesse

18
Sobre o argumento "do cornudo" veja-se Diógenes Laércio, 2, 108 e 7,
"' Sobre os dois tipos de castidade veja-se a carra 94, 15 (o pudor alheio) e
187. Séneca rraduz lireralmenre o rexro original grego que D. L. reproduz no 94, 26 (o pudor próprio).
segundo dos passos cirados. -" Eurípides, Fenícias, 469.

168 15 169
uma memória de ferro para se recordar. De resto, espero culdade recuperamos a saúde. E mesmo que já tenhamos
que tu já vivas de modo tal que, onde quer que estejas, eu iniciado o tratamento, quando nos será possível levar de
possa sempre saber como vai a tua vida. Em que consiste, vencida a enorme virulência de tão numerosas enfermida-
de facto, a tua vida senão em te aperfeiçoares um pouco des? Nem sequer solicitamos a presença do médico, quando
cada dia, em te libertares de um ou outro erro, em enten- afinal é mais fácil tratar uma doença ainda no início.
deres bem como os vícios que imputas às coisas estão afi- Almas ainda frescas e inexperientes obedecem sem tardar
nal dentro de ti? Certos vícios, temos o hábito de atribuí- a quem lhes indique o justo caminho. Só é difícil recondu- 5
-los aos condicionalismos do lugar e do tempo, mas o zir à via da natureza quem deliberadamente dela se apar-
certo é que, para onde quer que vamos, esses vícios nos tou. Parece que temos vergonha de aprender a sabedoria!
2 acompanham. Sabes que Harpaste, a boba da minha pri- Pelos deuses, se acharmos que é vergonhoso buscar um
meira mulher, continua em minha casa, pois o testamento mestre, então podemos perder a esperança de obter as
obrigava-me a assumir esse encargo. Pessoalmente não vantagens da sabedoria por obra do acaso. A sabedoria só
sinto o menor interesse por estas pobres criaturas; se pre- se obtém pelo esforço. Para dizer a verdade, nem sequer é
cisar de um bobo para me divertir não preciso de ir necessário grande esforço se, como disse, começarmos a
buscá-lo muito longe: troço de mim mesmo! Ora a boba formar e a corrigir a nossa alma antes que as más ten-
perdeu subitamente a vista. Podes não acreditar, mas a dências cristalizem. Mas mesmo já empedernidas, nem 6
verdade é que a infeliz não percebe que está cega. De vez assim eu desespero: com esforço persistente, com cuidados
em quando pede ao escravo que a trata que a leve para aturados e intensos, todas as más tendências serão venci-
3 outra sala, porque a casa está toda às escuras!. Nesta das. Podemos aprumar toros de madeira, por muito tortos
mulher faz-nos rir uma coisa que, espero que o entendas, que estejam; por meio de calor é possível endireitar pran-
sucede com a generalidade das pessoas: ninguém se dá chas curvas e adaptar a sua forrÍ1a natural às nossas con-
conta da própria avareza, da própria ambição. Os cegos, veniências. Com muito mais facilidade se pode dar forma
ao menos, ainda pedem a alguém que os guie; nós anda- à alma, essa entidade flexível, mais maleável que qualquer
mos aos tropeções, não queremos quem nos guie, e vamos líquido. De facto o que é a alma senão uma espécie de
repetindo: "Não sou eu que sou ambicioso, o que sucede é sopro dotado de certa consistência? Ora tu podes observar
que é impossível ter outro estilo de vida em Roma; eu como o ar é mais elástico que as outras espécies de maté-
não sou amante do luxo, a cidade é que me obriga a toda ria precisamente por ser a mais subtil. Não há, pois, Lucí- 7
esta despesa; não é por culpa minha que me deixo enco- lio, motivo para desesperares de nós pelo facto de a mal-
lerizar facilmente, que ainda não acertei com um rumo dade nos dominar, nos possuir mesmo há tanto tempo:
certo na vida: isso é apenas o fruto da juventude"! ninguém atingiu a sabedoria sem primeiro passar pela
4 Para quê iludirmo-nos? O nosso mal não vem do insensatez! Todos temos o inimigo dentro de casa: apren-
exterior, está dentro de nós, enraizado nas nossas vísceras, der as virtudes equivale a desaprender os vícios. Com 8
e, como ignoramos o mal de que sofremos, só com difi- tanto maior vontade nos devemos aplicar a emendar-nos:

170 171
uma vez aprendidos, os bens da sabedoria permanecem homem honesto, do que outros; não porque sinta repug-
para sempre na nossa posse. A virtude nunca se esquece. nância por uma ou outra cor, mas porque acha esta ou
As plantas crescem com dificuldade num solo inadequado, aquela pouco própria para quem fez voto de austeridade.
e por isso será fácil arrancá-las, eliminá-las; mas colocadas Com as terras sucede o mesmo: o sábio, ou mesmo o
num terreno apropriado ganham raízes firmes. A virtude homem que tende para a sabedoria 21 , recusará estabelecer-
está de acordo com a natureza; os vícios, esses, são como -se naquelas que considera impróprias para os bons costu-
9 plantas daninhas e nocivas. As virtudes adquiridas não mes. Alguém que queira levar uma vida retirada não irá 3
podem ser extirpadas, é com facilidade que as podemos escolher Canopo, embora nenhuma lei nos impeça de ser
conservar; adquiri-las, contudo, é tarefa árdua, portanto é austeros em Canopo, ou mesmo em Báias, que está trans-
próprio de um espírito fraco e doente recear experiências formada num autêntico antro de vícios. Aqui a vida de
desconhecidas. Obriguemos, portanto, esse espírito a dar prazer não conhece restrições, é perfeitamente desbragada,
os primeiros passos. Passada esta fase o tratamento deixa como se a própria cidade exigisse uma taxa de imorali-
de amargar e torna-se mesmo, enquanto se processa a dade! Para morar devemos escolher um lugar saudável 4
cura, uma fonte de prazer. Com os remédios do corpo o tanto para o corpo como para o carácter. Eu não gostaria
prazer só chega depois da cura; a filosofia, pelo contrário, de viver rodeado de carrascos ou de tabernas! Que neces-
é salutar e saborosa simultaneamente. sidade tenho eu de ver bêbados caminhando à beira-mar
aos baldões, as orgias de barco ou de lagos ecoando com
cantos e orquestras, de ver, enfim, todo o desregramento
51 que a vida de. prazer faz. gala em cometer e ostentar?
1 Cada um faz como pode, Lucílio amigo ! Tu estás aí Devemos evitar o mais possível tudo o que possa excitar 5
ao pé do Etna, a famosíssima montanha da Sicília, à qual os nossos vícios. Devemos endurecer a alma, mantendo-a
Messala, ou Válgio (encontrei o adjectivo em ambos) ape- afastada de todas as seduções de prazer. Um quartel, de
lidou de "única", nunca percebi porquê. Há muitas regiões inverno bastou para amolecer Aníbal; este homem que
vulcânicas, não só montanhosas, que é o caso mais fre- atravessara indómito as neves dos Alpes sucumbiu às mole-
quente talvez devido à tendência que o fogo tem para zas da Campânia: vencedor na guerra, foi vencido pelos
subir, mas mesmo regiões de planície. Eu por mim, à vícios 22 • A nossa vida é também um combate, é uma 6
falta de melhor, contentei-me com Báias, onde aliás che- expedição guerreira em que nunca nos podemos entregar
guei num dia para partir no seguinte. Báias é uma terra a
evitar, pois apesar dos seus dons naturais, transformou-se
21 Note-se a gradação: o "sábio", o "homem de bem" de primeira categoria,
num lugar onde reina a vida de prazer.
"é como a fénix, que só aparece uma em quinhentos anos" (carta 42,1); é um
2 "Que dizes? Então há locais que nos devem inspirar modelo ideal de que procura aproximar-se "o homem que tende para a sabedo-
repugnância?" Não é isso. O que eu quero dizer é que há ria", que é, afinal, o caso de Lucílio, e do próprio Séneca.
12 Sobre Aníbal e a dolce vita de Cápua v. Tito Lívio, XXIII, 18,10 ss.
certos tipos de vestuário mais adequados ao sábio, ao

172 173
ao repouso e ao lazer. Primeiro que tudo devemos derro- Quem atender a estas reflexões deve forçosamente 10
tar os prazeres que, como vês, são capazes de dominar escolher para residir locais sérios e austeros. Um clima
mesmo os ânimos mais duros. Quem tiver a noção .do excessivamente doce efemina os ânimos; as características
esforço exigido pela vida da sabedoria compreenderá que geográficas contribuem indiscutivelmente para, em certa
esta luta não se vence através da sensualidade e da medida, diminuir a robustez. As azémolas que endurece-
moleza 23 . Que me interessam esses banhos quentes, essas ram os cascos em pisos ásperos são capazes de percorrer
estufas em que se concentra um ar seco que faz destilar o qualquer caminho; os animais criados em pastagens de
7 corpo? Todo o suor deve provir do trabalho. Se agíssemos terra mole e húmida depressa se vão abaixo. O melhor
segundo o exemplo de Aníbal, se interrompêssemos o soldado é o oriundo das regiões montanhosas; o homem
curso das operações bélicas para ir aquecer o corpo no da cidade, o escravo nascido em casa 2'1, esses são uns fra-
banho, toda a gente nos censuraria com razão essa ino- cos. A mão que passou do arado para as armas aguenta
portuna preguiça, perigosa para um vencedor, quanto mais qualquer trabalho; o atleta que se treina com o corpo
para quem ainda anda atrás da vitória! A nossa expedição coberto de óleo sucumbe ao primeiro embate. Um ambiente 11
é mais dura que a dos soldados cartagineses: recuemos, e geográfico mais duro dá firmeza ao ânimo e torna-o apto
será maior o perigo, avancemos, e será maior o esforço! a grandes empresas. Seria preferível para Cipião passar o
8 A fortuna declarou-me guerra. Eu não obedeço às suas exílio em Liturno do que em Báias: à queda de um tal
ordens, não aceito o seu jugo, mais, pretendo mantê-la à homem não é justo dar tão voluptuoso retiro! Os primei-
distância, o que implica ainda maior coragem. Não posso ros homens em cujas mãos a fortuna do povo romano
deixar que a alma amoleça; se fizer concessões ao prazer, colocou o seu destino - C. Mário, Cn. Pompeio, César -
terei de fazê-las à dor, ao cansaço, à pobreza; a ambição e edificaram, é certo, as suas vilas na região de Báias, mas
a ira quererão tomar conta de mim; ver-me-ei dilacerado, foram construí-las no alto dos' montes: pareciam assim
9 despedaçado entre inúmeras paixões. A liberdade é a nossa mais dignas de homens de armas, colocadas em sítios
meta, é o prémio das nossas canseiras. Sabes em que con- donde completamente dominavam a planície vizinha.
siste a liberdade? Em não ser escravo de nada, de nenhuma Observa a posição que eles escolheram, vê os locais em
necessidade, de nenhum acaso; em lutar de igual para que elevaram as suas casas e considera o seu aspecto:
igual com a fortuna. Se algum dia eu sentir que ela tem mais te parecerão fortalezas do que vivendas. Julgas que 12
mais força do que eu, mesmo assim essa força será inútil. alguma vez M. Carão iria viver nessa cidade para contar
Nunca me deixarei vencer: a morte será o meu recurso. quantas mundanas lhe passavam diante dos olhos de bar-
quinho, para contemplar todas as embarcações pintadas de

1
·' Cf. Katha-Upanishad, I, 3,14: "Th e sharp edge o/ a razor is difficult to
1·1 O escravo nascido na casa do senhor (uerna), por oposição ao escravo
pass over; thus the wise say the path (to the Se!/) is hard" (trad. F. Max Mül-
ler, in The Sacred Books o/ the East, voL XV - The Upanishads, part II). prisioneiro de guerra.

174 175
diversas cores, para ver todo o lago coberto de pétalas de sair do remoinho; é necessário alguém que estenda a mão
rosa e ouvir durante a noite o barulho das serenatas? Não e ajude a pisar terra firme. Diz Epicuro que certos homens 3
é verdade que Catão preferiria deitar-se numa trincheira conseguiram atingir a verdade sem qualquer auxílio, des-
cavada por suas mãos para passar uma única noite? E bravando eles mesmos o seu caminho 26 ; para esses, que se
quem, se for homem a sério, não preferirá ser despertado elevaram a si próprios espontaneamente, vão os seus
do sono por um clarim guerreiro do que por uma canção? maiores louvores. Outros há, contudo, que necessitam de
13 Mas já chega de diatribe contra Báias; contra os vícios, apoio externo: são incapazes de marchar se não tiverem
porém, nunca ela será excessiva. Contra estes, Lucílio, peço- um guia, mas, tendo-o, avançarão animosamente. Entre os
-te que movas uma guerra sem quartel. Os vícios também homens deste tipo Epicuro inclui Metrodoro. São espíritos
não teriam mercê contigo. Repele todas as paixões que te apreciáveis, embora, por assim dizer, de segunda escolha.
dilaceram o coração; se outra maneira não houver de as Nós não pertencemos aos espíritos de primeira escolha, e
arrancar, melhor te seria que, juntamente com elas, arran- devemos dar-nos por felizes se formos aceites entre os de
casses também o coração! Combate sobretudo os prazeres, segunda. De resto não se deve menosprezar alguém que
trata-os como os teus piores inimigos. Tal como os ladrões se salva graças à ajuda dos outros, pois querer ser salvo
a quem os egípcios chamam cpiÀrf ros 25 , eles só nos abra- não é questão de somenos importância. Além dos men- 4
çam para melhor nos estrangularem. cionados, poderás encontrar ainda um tipo de homens que
igualmente não deve ser tomado em pouca conta: trata-se
daqueles que, por coacção, podem ser compelidos a seguir
52 o caminho do bem, que necessitam, não já apenas de um
1 Que tendência é esta, Lucílio, que nos desvia do rumo guia, mas sim de alguém que os ampare e mesmo, passe
pretendido, que nos empurra para o ponto donde preten- a palavra, que os force. Estes serão os de terceira escolha.
demos sair? Que debate se desenrola na nossa alma e nos Se quiseres um exemplo deste tipo, Epicuro indicar-te-á
impede de manter uma vontade firme? Andamos à deriva Hermarco 27 • Se os do tipo anterior mereciam as felicita-
entre resoluções contrárias; não conseguimos ser fiéis a ções de Epicuro, os deste suscitavam antes a sua admira-
2 uma vontade livre, absoluta, constante. Dirás tu que é ção; de facto, embora uns e outros atingissem idêntico
prova de insensatez não ter um propósito contínuo, um objectivo, os últimos são mais de louvar por se defronta-
interesse permanente. Mas dessa insensatez como e quando rem com matéria mais difícil. Imagina por exemplo que 5
nos conseguiremos libertar? Por si só, ninguém conseguirá se constroem dois edifícios iguais, ambos altos e soberbos.
Um dos arquitectos tem à sua disposição um terreno de

" No original cptÀ:rín:.<; (phi!etas), segundo uma conjectura de Muret que


21
pressupile um jogo de palavras entre <P'l/À'l/TrÍ<> "ladrão" e cpLÀ'l/rrÍ'> "amante'', ' Epin1ro, fr. 192 Usener.
27
facilitado pela pronúncia tardia do 'I/ como i. Epicuro, ibidem.

176 177
qualidade onde a obra pode avançar sem problemas. O multidão, eles tenham por objectivo conseguir o aperfei-
outro vê-se a braços com um solo mole e friável e só à çoamento tanto do auditório como de si próprios, e não
custa de imenso esforço consegue atingir uma base sólida sejam movidos por propósitos interesseiros. Não há nada
onde assentar as fundações do edifício. Para o observador, mais vil do que um filósofo em busca de aplausos! Será
28
a obra do primeiro****** ; quanto ao segundo, a parte que algum doente dá palmas ao cirurgião que o opera?
mais importante e difícil do seu trabalho fica oculta. Guardai um silêncio respeitoso, recebei de bom grado a 10
6 Semelhantemente, enquanto certos espíritos são abertos e cura que a filosofia vos dá. Se soltardes exclamações,
receptivos, outros precisam, como soe dizer-se, de se.r interpretá-las-ei como um gemido provocado por sentirdes
modelados à mão, de gastarem nas fundações o melhor do o dedo na ferida dos vossos vícios. A vossa intenção é
seu esforço. Por essa razão eu considero mais afortunado mostrar-vos atentos e abalados pela grandeza do assunto?
o homem que não teve problemas com o seu carácter, Muito bem: mas se a vossa ideia é exprimir um juízo de
mas acho mais digno de apreço o que teve de vencer os valor sobre quem vale mais do que vós, como posso eu
seus defeitos naturais para alcançar a sabedoria, ou melhor, . permitir-vos os aplausos? Os discípulos de Pitágoras eram
para se elevar até ela à força de pulso. obrigados ao silêncio durante cinco anos: julgas que, pas-
7 Fica sabendo que o nosso espírito é deste último tipo: sado o prazo, eles tinham logo licença para falar e aplaudir?
duro e trabalhoso. Caminhamos através de obstáculos. Que perfeita loucura a do homem que termina a sua 11
Lutemos, portanto, sem temer pedir o auxílio alheio. Per- conferência sorrindo satisfeito entre os aplausos dos igno-
guntarás: "Mas a quem, a quem hei-de pedir auxílio?" Se rantes! Que satisfação te podem dar os aplausos de gente
queres um conselho, dirige-te aos antigos, que estão dis- que tu não tens motivo para aplaudir? Fabiano costumava
poníveis: para nos auxiliar tanto podemos recorrer aos dissertar em público, mas era escutado com respeito. Se
8 vivos como aos mortos. De entre os vivos, ·devemos esco- por vezes se fazia ouvir o aplausó da assistência, tal aplauso
lher não aqueles que têm o verbo fácil e corrente, que era provocado pela elevação da matéria, e não pela com-
repisam lugares comuns e se exibem em círculos restritos, posição brilhante e harmoniosa do discurso. Tem de haver 12
mas sim os que comprovam as suas palavras com os pró- uma diferença entre os aplausos no teatro e na escola:
prios actos e ensinam o que devemos evitar sem nunca mesmo a aplaudir há que guardar a justa medida. Se bem
serem apanhados a fazer o que condenam. Em suma, observarmos, os mais pequenos pormenores podem ser
escolhe para teu mestre alguém que te mereça admiração elucidativos, em qualquer situação. Por exemplo, o mínimo
9 pelas acções e não pelas palavras. Isto não quer dizer que gesto pode servir de indício da moralidade das pessoas.
eu te proíba de escutar aqueles filósofos que têm o hábito Assim, o homem depravado denuncia-se pelo modo de
de dissertar em público, desde que no contacto com a andar, pelos gestos, por um aparte ocasional, pelo levar
do dedo à testa, pelo revirar dos olhos; o aldrabão trai-se
pelo modo de rir, o louco, pelo rosto e pelas atitudes.
28
Lacuna. Todos estes defeitos se notam por certas marcas perceptí-

178 179
veis: se quiseres conhecer o caráaer de um homem observa
13 como ele distribui ou provoca os aplausos. Em todo o
auditório estalam as palmas ao filósofo, o seu vulto perde-
-se entre a multidão de admiradores entusiastas: pois bem,
mais do que admiradores, são autênticas carpideiras quem
o está aplaudindo. Deixemos esses clamores para aquelas LIVRO VI
artes que têm por finalidade agradar às massas: a filosofia
14 tem de ser adorada em silêncio. Uma vez por outra pode (Cartas 53-62)
permitir-se aos jovens que cedam ao impulso, por serem
incapazes de ficar em silêncio. Este tipo de aplauso pode
servir de incitamento à própria assistência e de estímulo
ao espírito dos jovens. Mas importa que eles se entusias- O que não deixarei eu convencer-me a fazer depois de 1
mem com a matéria, não com o estilo do discurso; de me ter deixado persuadir a uma viagem por mar? Quando
outro modo a eloquência, suscitando o interesse não pelo
parti estava o mar calmo; o céu estava, em boa verdade,
assunto mas por ela própria, só poderá ser-lhes nociva.
coberto de nuvens escuras, daquelas que quase sempre
15 Por agora, ponto final nesta questão. O modo de falar
resultam em vento ou em chuva, mas pensei que podia
da filosofia em público, aquilo que o filósofo se pode
abreviar aquelas poucas milhas que vão da tua Parténope
permitir em público e ao público, é assunto que necessita
até Putéolos, mesmo com o céu dúbio e ameaçador. Assim,
de uma explanação completa e longa. Que a filosofia se
degradou ao entregar-se às massas, disso não há qualquer para andar mais depressa, fiz o caminho pelo alto, rumo
dúvida. Poderá, todavia, revelar-se no seu santuário pró- a Nésida, disposto a evitar todas-- as baías. Quando já tinha 2
prio desde que para tanto se confie aos sacerdotes e não chegado a um ponto em que se tornara indiferente avan-
aos vendilhões ! çar ou voltar para trás, aquela tranquila superfície que me
seduzira alterou-se; sem ser ainda tempestade, o mar come-
çou a ondular, e, gradualmente, as vagas aumentaram de
frequência. Pus-me a pedir ao piloto que me desembar-
casse em qualquer ponto da costa; respondeu-me que o
litoral era escarpado, inabordável, e que, numa tempestade,
ele nada temia mais do que a terra firme. Aliás eu estava 3
a ficar aflito demais para me dar conta do perigo; atormen-
tava-me uma náusea mole, sem solução, daquelas que exci-
tam a bílis sem a expelir. Insisti com o piloto e forcei-o,
com vontade ou sem ela, a aproximar-se da costa. Quando

180 181
nos avizinhámos dela, sem esperar alguma daquelas mano- mos que torcemos um tornozelo, que demos um mau jei-
bras descritas por Vergílio - to qualquer. Enquanto a doença ainda está indecisa, no
ao mar alto inclinam as proas 1 início, não lhe damos nome, mas quando faz inchar os
ou tornozelos e deixa ambos os pés disformes, somos força-
tomba da proa a âncora ,2 dos a admitir que estamos atacados de gota.
lembrando-me da minha habilidade como velho praticante Sucede o contrário às doenças que afectam o espírito: 7
de banhos frios, atiro-me ao mar, com equipamento de quanto piores nós estamos menos damos por elas! Não
",nadador de águas frias" 3 isto é, com uma camisola de lã. há razão para te espantares, meu caro Lucílio: quem tem
4 Não imaginas o que eu passei ao trepar pelos baixios, o sono leve, mesmo quando descansa tem a visão das coi-
procurando, e por fim encontrando, um caminho. Fiquei a sas e, por vezes, enquanto dorme, tem a consciência de
perceber que os marinheiros têm razão em recear a terra! estar dormindo; um sono muito profundo, porém, elimina
Foi incrível o que eu aguentei, eu, que nem a mim mes- até os sonhos, entorpece tão profundamente o espírito
mo já me aguentava. Fica sabendo que não foi tanto pelo que o faz perder o conhecimento de si próprio! Porque é 8
ódio do deus do mar que Ulisses naufragou em todo o que ninguém confessa os seus vícios? Porque ainda está
lado: o que ele tinha eram náuseas! Quanto a mim, onde dominado por eles: contar um sonho implica que se esteja
quer que tenha de ir por mar, levarei como ele vinte anos acordado, confessar os vícios significa que se está curado
a chegar! ... deles. Despertemos, pois, para podermos criticar os nossos
5 Quando recompus o estômago - e tu sabes que não erros. Somente a filosofia poderá acordar-nos, só ela poderá
basta sair da água para passar a náusea! - , quando retem- sacudir-nos de um sono pesado: dedica-te inteiramente a
perei o corpo com uma fricção, comecei a pensar na ten- ela! Tu és digno dela, como el~ é digna de ti: uni-vos
dência que temos para esquecer as nossas debilidades, mes- num recíproco abraço. Recusa entregar-te a tudo o mais,
mo as físicas, que continuamente dão sinal de si, quanto com coragem, com decisão; ser filósofo a meias, isso é que
mais as outras, que são tanto mais graves quanto mais nunca! Se estivesses doente deixarias por um /tempo de 9
6 ocultas. Um ligeiro arrepio pode iludir qualquer um; mas cuidar do teu património, abandonarias os teus afazeres no
quando aumenta e começa a arder como autêntica febre, foro e não julgarias ninguém suficientemente importante
mesmo o mais resistente e apto a suportar acaba por para lhe ires prestar assistência durante a tua convales-
confessar-se doente. Temos dores nos pés, sentimos peque- cença; o que farias, de toda a tua alma, era procurares
nas picadas nas articulações: a princípio disfarçamos, dize- libertar-te quanto antes da doença. Pai~ bem, porque não
adaptar agora a mesma atitude? Libei:ta-te de todos os
entraves, dedica-te totalmente à aquisição de um espírito
1
recto, coisa que ninguém obtém se tiver outras ocupações.
Vergílio, Aen., VI, 3.
2
Vergílio, Aen., III, 277. A filosofia exerce o seu domínio; ela é que pode conceder,
3
Sobre o hábito de Séneca tomar banhos frios v. carta 83,5. mas nunca contentar-se, com as horas vagas; não é uma

182 183
actividade subsidiária, mas sim fundamental, ela é senhora, mim. Vais perguntar-me qual foi desta vez a doença, e
10 sempre presente e dominadora. Quando uma certa cidade tens razão em fazê-lo, pois não há maleita que eu não
prometeu a Alexandre uma parte dos seus campos e. a tenha experimentado. Há uma, porém, à qual desde sem-
metade de todos os seus bens, ele retorquiu: "Eu não ando pre tenho sido fiel; e a essa doença não vejo razão para
a percorrer a Ásia na intenção de aceitar o que vós esti- designá-la com o seu nome grego de "asma'', pois a pala-
verdes dispostos a dar-me, vós é que só tereis aquilo que vra latina suspirium transmite perfeitamente o mesmo
eu vos deixar". O mesmo se passa com a filosofia em significado. Cada ataque ocorre por períodos muito breves,
relação às demais ocupações: "eu não estou disposta a à maneira de uma borrasca: no espaço de uma hora está
aceitar o tempo que vos sobejar, vós é que tereis apenas praticamente passado. De facto ·é impossível alguém expi-
11 aquele de que eu não necessite". Dirige todo o teu espírito rar por largo espaço de tempo. Tenho sofrido toda a 2
para a filosofia, acompanha~a sempre, pratica-a sempre: espécie de moléstias, toda a casta de enfermidades já me
uma enorme distância te separará dos demais homens; pôs à beira da morte, mas não há doença que me ator-
ficarás muito à frente do resto da humanidade e os deuses mente mais do que esta. E como não, se em todos os
pouco se distanciarão de ti. E se me perguntas qual a outros casos apenas "estou doente'', e neste é como se
diferença que te separará dos deuses, a resposta é: eles "exalasse a alma"? Por isso os médicos chamam à asma a
durarão mais tempo. Encerrar em tão exíguo espaço a "preparação para a morte", pois um belo dia o nosso
totalidade, é obra de grande artista, essa a verdade! O "sopro vital" há-de acabar por conseguir o que tantas
espaço da sua existência tem para o sábio tão poucos vezes tentou! Pensas que te escrevo estas palavras cheio
segredos como a eternidade os tem para a divindade: esta
de alegria por ainda ter escapado desta ? Tão ridículo seria 3
está liberta do medo graças à sua natureza, o sábio, graças
da minha parte alegrar-me como se o fim desta crise sig-
12 a si mesmo. Aí tens esta admirável situação: possuir a um
nificasse o recobrar da saúde, como ridículo seria imaginar
tempo a fragilidade do homem e a segurança do deus!
que o adiamento da citação em tribunal implica o ganho
Para repelir todas as violências do acaso a filosofia possui
um incrível poder. Nenhum dardo pode penetrar no seu da causa!
corpo, tão bem defendida e resistente ela é; alguns ataques, No meio das minhas sufocações nunca deixei de recor-
furta-os e deixa-os inertes, como setas ligeiras que se per- rer ao pensamento para, com tranquilidade e coragem,
dem nas pregas da sua roupagem; outros, repele-os com tentar aliviar a crise. Dizia a mim próprio: "Que se passa ? 4
tal energia que eles se abatem sobre quem os tinha Para que precisa a morte de pôr-me à prova tantas vezes?
desferido. Actue à vontade! Como se eu não tivesse já feito longa-
mente a experiência do que é a morte!" Se me pergunta-
res quando isto foi, dir-te-ei: antes de nascer. A morte é o
54 não ser; e este estado conheço-o eu perfeitamente: o
1 A falta de saúde tinha-me permitido gozar uma pro- "depois de mim" será idêntico ao "antes de mim". Se
longada licença, mas de repente abateu-se de novo sobre "não ser" implica sofrimento, então necessariamente nós

184 16 185
sofremos antes de virmos a este mundo; ora, na realidade, é expulso o homem que é forçado a abandonar um lugar
5 não há dor alguma antes do nascimento. Diz-me uma contra vontade. Ora o sábio nunca faz nada contra von-
coisa: não seria o cúmulo da estupidez pensar que uma tade: ele escapa à lei da necessidade precisamente por
candeia apagada está em pior situação do que antes de ter querer aquilo a que a necessidade o constrangerá.
sido acesa? Connosco passa-se o mesmo: somos apagados,
tal qual como somos acesos! Durante o período intermé-
dio podemos conhecer algum sofrimento, mas para lá dos
55
dois pontos limite gozamos de profunda tranquilidade. Se Acabei de chegar de um passeio em liteira, tão can- 1
estou a ver bem a questão, meu caro Lucílio, o nosso erro sado como viria se tivesse feito a pé todo o trajecto. Afi-
consiste em pensar que só há morte a seguir a nós, nal também cansa andar às costas dos outros, e talvez
quando a "morte" tanto é o período de tempo que nos ainda canse mesmo mais por ser antinatural: a natureza
precedeu como aquele que se nos seguirá. A morte é todo não nos deu os pés para andarmos, assim como nos deu
o tempo que decorreu antes de nós; que diferença faz, os olhos para vermos por nós próprios? A vida de luxo
portanto, que não iniciemos ou que abandonemos a exis- roubou-nos as forças, e o que antes não fazíamos por falta
tência, se em ambos os casos o resultado é o mesmo, isto de vontade, hoje não o fazemos por carência de energia!
é, o "não ser"? No meu caso, porém, sentia necessidade de dar algum 2
6 Foi com estes pensamentos, ou outros similares, que movimento ao corpo, ou para expulsar a expectoração que
continuamente fui insuflando em mim mesmo coragem porventura tivesse na garganta, ou, se por qualquer outro
(em silêncio, claro, pois a situação não se prestava a motivo a respiração me era difícil, para tentar aliviá-la com
declarações!); a pouco e pouco a sufocação começou a pas- as sacudidelas da liteira, que sinto ter-me feito bem. E por
sar a mera respiração ofegante e tornou-se gradualmente isso mesmo fui prolongando u~ passeio que a própria
cada vez mais espaçada. Por fim terminou; mas mesmo paisagem tornava convidativo: entre Cumas e a vila de
agora que passou ainda não estou respirando normalmente; Servílio Vátia a costa faz uma curva e forma uma estreita
7 sinto ainda uma certa dificuldade em respirar. Enfim, por passagem, como que um istmo limitado a um lado pelo
mim, só pretendo não sentir sufocações na alma. E há mar e do outro pelo lago. Uma tempestade recente tinha
uma coisa que te posso garantir: não tremerei na hora da tornado o terreno mais sólido; como sabes, a ondulação
morte, já me sinto preparado para ela, nunca faço projec- constante e forte endurece a passagem, ao passo que uma
tos para o dia inteiro... Aplaude e imita o homem que calmaria prolongada, com o desaparecimento da humidade,
não hesite em morrer, embora a vida lhe agrade! Sair torna a areia mais seca e menos consistente· ao andar.
porque se é expulso, que coragem há nisso? No meu Segundo o meu hábito ia procurando ao redor alguma 3
caso, porém, existe um pouco de coragem: eu sou de facto coisa que suscitasse qualquer meditação proveitosa. Acabei
expulso da vida, mas faço como se saísse dela por livre por dar com os olhos na vila que em tempos foi proprie-
vontade. Quanto ao sábio, esse nunca é expulso, porque só dade de Vátia. Antigo pretor, podre de rico, Vátia aqui se

186 187
instalou até uma extrema velhice - e tanto bastou para partes visíveis a quem passa na rua. Possui duas grutas
ser considerado um homem feliz. Muita gente caiu em artificiais de consideráveis proporções, qualquer delas tão
desgraça por ter relações de amizade com Asínio GaJo, vasta como um largo átrio; numa delas nunca entra o sol,
por manifestar primeiro hostilidade e mais tarde simpatia na outra há sempre sol, do nascer ao ocaso. Um curso de
por Sejano (de facto, não menos perigosa era a inimizade água, ligado por um lado ao mar e pelo outro ao lago de
do que a amizade por este homem!); quando tal sucedia, Aquerúsia, divide ao meio, como um canal, um bosque de
todos exclamavam: "Ó Vátia, só tu é que sabes viver.'" plátanos; é um canal que, mesmo utilizado continuamente,
4 Não, Vária sabia esconder-se, isso sim, mas não viver; há daria à vontade para a criação de peixes. E, de facto, se
uma enorme diferença entre viver no lazer ou viver na há calmaria não é utilizado, mas quando o mau tempo
indolência! Quando Vária ainda era vivo, nunca passei junto força os pescadores à inacção, utilizam-se as suas reservas
à sua vila que não dissesse: "Aqui jaz Vária!. .. " A filosofia, piscícolas. A maior vantagem da vila é que fica paredes 7
caro Lucílio, tem no entanto uma conotação tão venerável meias com Báias, o que permite evitar os transtornos da
e sagrada que mesmo uma imitação de vida filosófica sus- cidade sem a privação dos seus prazeres. Tais são as como-
cita a admiração geral. Um homem que viva retirado didades da vila que eu pude apreciar pessoalmente. Creio
passa aos olhos do vulgo por viver no ócio, tranquilo e que ela será agradável em qualquer estação, já que está
contente de si, por viver apenas a sua vida, quando, de exposta aos ventos do oeste, de tal maneira mesmo que
facto, um tal tipo de vida somente está ao alcance do lhes barra a passagem até Báias. Não foi nada estúpido,
sábio. Apenas o sábio sabe o que é viver para si mesmo, Vária, ao escolher este local para gozar o seu lazer... con-
pela simples razão de que apenas o sábio sabe o que é sagrado à indolência e à velhice!
5 viver! Um homem que evita a vida pública e a vida No entanto, no que concerne à tranquilidade do espí- 8
social, que se vê afastado devido ao fracasso das suas rito é de pouca monta a escolha do local: a alma é que
ambições, que se sente incapaz de ver outros bem sucedi- confere a cada coisa o seu valor respectivo. Já conheci
dos onde ele falhou, que se oculta aterrorizado como um gente triste que vivia em vilas risonhas e aprazíveis; já
animal medroso e frágil - um tal homem não está viven- encontrei pessoas que, vivendo em completo isolamento,
do para si próprio, está sim, o que é muitíssimo pior, pareciam sempre atarefadíssimas. Não há, portanto, qual-
vivendo para o estômago, para a indolência, para a liber- quer razão para pensares que o facto de não viveres na
tinagem. Deixar de viver para os outros não significa Campânia te impede de gozar uma serena vida interior. E
automaticamente que vivamos para nós mesmos! A cons- não vives na Campânia porquê? Bastará vires até cá em
tância e a firmeza de propósitos, todavia, são algo de tão pensamento. Poderás conviver com os teus amigos sem- 9
importante que mesmo uma inactividade persistente con- pre que queiras, todo o tempo que queiras! Este supremo
segue forçar à admiração! prazer da amizade, nunca o podemos gozar tanto como
6 Da vila propriamente dita nada te posso descrever de quando estamos ausentes. Quando nos vemos habitualmente
concreto, pois apenas conheço a fachada e aquelas outras tornamo-nos embotados. Falamos, passeamos, sentamo-nos

188 189
juntos com frequência de modo que, recolhido cada um a deseja mais do que uma vulgar massagem, então chega-
sua casa, deixamos de pensar nos amigos com quem aca- -me aos ouvidos o som das mãos a bater nos ombros -
10 bámos de estar. Devemos suportar mesmo a ausência dos um som que varia conforme a mão assenta plana ou côn-
amigos com tanto mais paciência quanto é certo que, ainda cava. Mas se surge um jogador de bola que se ponha a
quando não ausentes, passamos a maior parte do tempo contar os pontos marcados, então é o fim! Junta a tudo 2
longe deles. Primeiro porque cada um vai passar a noite isto o barulho dos arruaceiros, dos ladrões apanhados em
em sua casa; depois, porque cada qual tem as suas ocupa- flagrante, dos que gostam de se ouvir a cantar no banho,
ções distintas, tem os seus estudos particulares, tem as dos que saltam para a piscina com um chapão de todo o
suas estadias na respectiva casa de campo. Já vês que, afi- tamanho! E para além destes tipos, que, pelo menos, têm
nal, uma estadia numa província distante não nos priva uma voz normal, imagina agora o depilador fazendo ouvir
11 assim tanto um do outro. É dentro da alma que temos os de vez em quando, para atrair as atenções, uma voz efe-
amigos, e a alma nunca se separa de nós; dentro da alma minada e guinchenta e só se calando quando encontra axi-
está sempre presente quem ela queira e quando o queira! las para depilar, altura em que quem grita é o paciente. E
Podes, assim, estudar, comer, passear na minha compa- toca a consumir ainda todo o tipo de pregões: o vendedor
nhia... Muito estreita seria a nossa existência se houvesse de bebidas, o salsicheiro, o pasteleiro, e todos os negocian-
alguma barreira a opor-se ao pensamento. 'Estou a ver-te tes de comes e bebes apregoando a sua mercadoria cada
diante de mim, Lucílio amigo, estou mesmo a ouvir a tua ,. um com uma entoação própria!
voz; estou de tal modo perto de ti que já não sei bem se "Tens de ser de ferro" - dirás tu - "para manteres o 3
te vou escrever uma carta, ou apenas um recado para ·cérebro a funcionar no meio de ruídos tão diversos e con-
enviar a tua casa! trastantes. O nosso amigo Crisipo sentia-se quase morrer
se encontrava muita gente a quem cumprimentar!" Pois
eu, juro-te, não me preocupa mais esta barulhaça do que o
56 rumor das ondas ou das cascatas, embora saiba que houve
1 Eu morra se o silêncio é tão necessário como parece a um povo que mudou a localização da sua cidade só por
4
quem se entrega ao estudo! Aqui estou eu agora, rodeado não conseguir suportar o ruído das cataratas do Nilo! Em 4
de barulho por todos os lados, pois estou vivendo por meu entender perturba mais ouvir palavras com nexo do
cima de um balneário. Imagina toda a casta de ruídos que um rumor indistinto, pois aquelas atraem a nossa
capazes de porem os ouvidos no desespero: se são os for-
talhaços a treinar -se erguendo nas mãos pesados halteres
de chumbo, quando não conseguem ou fingem não conse-
4 Cf. Séneca, Naturales Quaestiones, IV, 2, 5: "Houve um povo aí [= junto
guir levantá-los, só oiço gemidos; se sustêm a respiração e às cataratas do Nilo] estabelecido pelos Persas que ficou com os ouvidos ator-
depois voltam a respirar, então são assobios, é um arfar doados pelo contínuo ruído, e por isso decidiu mudar-se para outro local mais
ofegante; se me calha apanhar algum fracalhote que não tranquilo."

190 191
atenção, enquanto este apenas nos enche e agride os ouvi- todos os escravos se conservam calados, ninguém se apro-
dos. Entre os tipos de ruído que me podem rodear sem xima dele senão em bicos de pés. Mesmo assim ele revolve-
causar perturbação incluo ainda os carros a passar, o ope- -se no leito para um lado e para outro, mal conseguindo
rário que trabalha no meu imóvel, o marceneiro da casa conciliar o sono no meio dos seus cuidados. Até se queixa
ao lado, o vendedor de instrumentos que experimenta de ouvir ruídos que nunca ouviu. Qual julgas tu que é o
junto à fonte do repuxo 5 as trombetas e as flautas, não motivo disto? Foi o seu espírito que o atordoou! É o espí- 8
5 propriamente tocando, mas apenas soprando! De resto rito que carece de ser acalmado, é a sua perturbação que
incomoda-me mais um ruído intermitente do que um ruído exige ser dominada. O espírito não estará sossegado só
condnuo. Sinto-me mesmo já tão endurecido contra o ruído por o corpo estar em repouso; o próprio descanso é fre-
que até seria capaz de suportar a voz sobremaneira irri- quentemente cheio de inquietude. Até mesmo nós nos
tante do comitre marcando o ritmo aos remadores. É que temos de entusiasmar com os actos a praticar, nos temos
eu obrigo o meu espírito a conservar-se atento a si mesmo de entreter com a meditação nas actividades justas sempre
sem se deixar aliciar pelo exterior. Pode haver lá fora que o repouso se mostra incapaz de nos conservar quietos.
todo o ruído que se queira, contando que dentro do meu Os grandes generais, quando vêem o soldado renitente em 9
espírito não haja conflitos, não haja luta entre a ambição obedecer, forçam a sua impaciência impondo-lhe qualquer
e o temor, não haja discussão entre a avareza e a dissipa- trabalho, mantendo-o sempre em estado de alerta: contro-
ção, com uma delas a procurar impor-se à outra! Que lados com severidade, os soldados não podem permitir-se
interessa, afinal, que à nossa volta reine o silêncio se den- quaisquer brincadeiras; não há, de facto, melhor remédio
tro de nós se agitarem a_s paixões ? contra os vícios da inactividade do que mantê-los aêti~os.
Muitas vezes damos a impressão de querermos retirar-nos
6 "Tudo repousava em paz na quietude da noite." 6
por tédio da política ou por saturação de algum cargo
É falso: nenhuma quietude é pacífica senão quando assenta difícil ou ingrato; mas no remanso em que o temor ou a
na razão. A noite realça a doença, não a destrói, limita-se fadiga nos lançou não tarda que a ambição de uma car-
a substituir as nossas preocupações. Na hora do descanso, reira pública recrudesça. É que a ambição não foi cortada
a insónia é tão agitada quanto agitado foi o dia; somente pela raiz, apenas se cansou, ou se irritou por as coisas não
a consciência moral proporciona uma verdadeira tranquilidade. correrem tão bem quanto queria. E o mesmo é válido no 10
7 Observa aquele homem que procura adormecer no silêncio que concerne ao luxo: de vez em quando parece ser posto
da sua vasta casa: para que som algum lhe fira os ouvidos de lado, mas logo começa a aliciar os pretensos adeptos
da frugalidade que, em plena prática da temperança, bus-
1
A "fonte do repuxo", Meta sudans, ficava em Roma, perco da Via Sacra; cam os prazeres (não condenados de vez, mas apenas
parece ter-se tratado de uma fonte ornada com um cone de pedra (meta: as
colunas cónicas que, no circo, marcavam os limites para as corridas de carros)
momentaneamente abandonados) e com tanto mais ardor
donde brotava água (sudans), quanto o fazem disfarçadamente. Os vícios, é um facto,
6
Varrão Atacino, carm,, fr_ 8 MoreL são menos graves quando claramente admitidos, tal como

192 193
as doenças, as quais estão mais perto de serem curadas menor ruído, um homem a quem a mínima voz, tomando
quando passam do estado de incubação à plena manifesta- as proporções de enorme barulho, assusta, a quem o mais
ção da sua força. Fica sabendo que a avareza, a ambição e leve movimento faz perder a coragem. Os fardos que tem
todos os demais males que afligem o espírito humano são a seu cargo fazem dele um cobarde! Os afortunados aos 14
tanto mais molestas quanto mais fingc::m ocultar-se atrás olhos do vulgo, que levam consigo aos ombros imensos
11 de uma cura simulada. Nós parecemos retirados da polí- bens - qualquer deles tu verás "receoso por quem tem
tica sem o estarmos de facto. Quando estamos de boa-fé, ao lado, por quem transporta aos ombros"! Só poderás
quando tocamos de facto a retirar, quando desprezamos considerar-te como senhor de ti mesmo quando nenhum
deveras tudo quanto é ilusório, então, conforme acima disse, clamor te afectar, nenhuma voz, sedutora ou ameaçadora,
nada nos poderá tentar, não há clamor algum - de te perturbar, nenhuma ilusão te rodear de ruídos sem sen-
homens ou de pássaros - que possa interromper os nos- tido. "Como é isso? Então não é muito melhor, pelo 15
sos pensamentos justos, firmes, perfeitamente seguros. menos de vez em quando, estar completamente ao abrigo
12 Quando uma simples palavra, um concurso de circunstân- do ruído?" Claro que é, e por isso mesmo não tarda que
cias nos alicia - isso só prova que possuimos um carác- eu me vá embora daqui. Apenas pretendi experimentar-
ter instável, incapaz de ser senhor de si mesmo; mante- -me, treinar~me; mas não vale a pena submeter-me a esta
mos no nosso íntimo alguma preocupação, algum medo tortura mais tempo, quando sabemos como Ulisses con-
irreal que nos torna permanentemente inquietos, como geminou para os seus homens um antídoto tão eficaz... até
Eneias neste passo de Vergílio: contra as Sereias!
E a mim, ainda há pouco imperturbável entre
os dardos que me lançavam, entre os gregos que 57
me cercavam
- agora o mais leve sopro me assusta, qualquer Quando saí de Báias para regressar a Nápoles deixei- 1
som me perturba, -me convencer sem dificuldade de que o tempo estava mau,
inquieto, receoso quer pelo filho a meu lado quer o que me evitaria uma segunda viagem por mar. Só que a
pelo pai que levo aos ombros!7 estrada estava de tal modo coberta de lama que mesmo
13 Na primeira situação o herói comporta-se como um sábio,
assim quase me pareceu ter andado de barco... Passei
a quem não assustam o arremesso dos dardos, o choque
nesse dia por todas as torturas que os atletas sofrem:
das armas de um denso corpo de exército, o fragor de
primeiro foi o banho de óleo, ao chegar à gruta napo-
uma cidade caindo em ruínas; no segundo caso mostra-se
litana 8 veio a chuva de poeira! E a gruta? Um cárcere 2
um homem vulgar, receoso pela sua sorte e tremendo ao

7 Vergílio, Aen., II, 726-9. " Sobre a gmra napolitana v. Esrrabão 246 b e.

194 195
interminável, uns archotes que, em vez de nos permitirem perturbação; e quando novamente pude ver a luz do dia
ver na escuridão, antes nos mostram a própria escuridão! invadiu-me uma irreflectida e incontrolável alegria. Come-
De resto, mesmo que o local fosse iluminado, a luz não cei então a dizer a mim mesmo como é estulto recear
atravessaria a poeira - e se o pó já é altamente incomo- mais certas coisas do que outras quando quer umas quer
dativo ao ar livre, o que não será erguendo-se em turbi- outras produzem o mesmo resultado. Que diferença faz,
lhão num espaço fechado, sem qualquer saída de ar, abaten- por exemplo, que nos desabe em cima um torreão ou
do-se sobre os passantes que o levantam!? Dois flagelos uma montanha? Nenhuma, e no entanto a muita gente
diametralmente opostos nos afligiram em simultâneo: na mete mais medo o desabamento da montanha, embora
mesma estrada, e no mesmo dia, primeiro o suplício da em qualquer dos casos o efeito seja igualmente a morte.
lama, depois o da poeira! Quer dizer, o medo deriva não do resultado em si, mas
3 Apesar de tudo, até a obscuridade do túnel me ofere- das circunstâncias que geram esse resultado.
ceu tema de meditação: senti na alma um abalo, uma per- Imaginas que faço minhas as palavras daqueles estói- 7
turbação provocada, não pelo medo, mas pelo insólito e cos para quem a alma de um homem esmagado sob uma
repulsivo deste espectáculo inédito. Nem sequer está em massa de grande peso não poderia permanecer una, mas
causa a minha pessoa - tão distante ela está de um grau sim, privada de sair livremente do corpo, imediatamente
de virtude aceitável, para já não dizer perfeito! - , mas ficaria reduzida a fragmentos 9 ? Não, não faço, porque me
mesmo um daqueles homens acima dos ataques da for- parece laborar em erro quem faz uma afirmação destas.
tuna sentiria na alma um estremeção e mudaria a cor do Tal como uma chama não pode ser comprimida (pois se 8
4 rosto. Há certas sensações, meu amigo, a que nem mesmo escapa, e rodeia o objecto que tenta pressioná-la); tal como
a maior coragem consegue escapar: parece que é a natu- o ar não é afectado por golpes ou estocadas, não se deixa
reza a recordar-nos a nossa condição de mortais! Por isso sequer cortar, antes imediataménte rodeia o objecto que
há quem se sinta arrepiado vendo uma cena de desolação, tenta repeli-lo; assim também a alma, que é feita de maté-
há quem sinta turvar-se-lhe a vista se, em pé na beira de ria extremamente ténue, não pode ser coagida nem esma-
um precipício, olhar lá para o fundo. Não se trata de gada dentro do corpo: graças à sua subtilez~, consegue
medo, mas de uma impressão, inteiramente natural, sobre escapar-se através da massa que a comprime. O raio,
5 a qual a razão não tem poder. Por isso mesmo há homens mesmo que reluza com violência por um largo espaço,
valentes, dispostos sem hesitar a derramar o próprio san- acaba por escapar-se através de uma minúscula abertura; a
gue, que não suportam a vista de sangue alheio; alguns alma, ainda mais ténue do que o fogo, consegue escapulir-se
perdem as forças e desmaiam ao ver abrir e tratar uma
ferida recente, outros, uma ferida já antiga e cheia de pus;
outros há ainda que tremem ao ver uma espada mas
6 aguentam bem os seus golpes. Mas, como estava dizendo, 9 Séneca não atribui nominalmente esta teoria a nenhum estóico em particular;

eu senti, não direi uma aflição, mas pelo menos uma certa o passo é inserido entre os fragmentos de Crisipo por v. Arnim (S. V. F., II 820).

196 197
9 seja através de que corpo for. Resta agora é saber se a Creio dever entender-se que se trata de um vocábulo já 3
alma pode ser imortal 10• Por agora fica-te com esta cer- passado de moda. Para te não fazer perder muito tempo,
teza: se ela sobrevive ao corpo, então não há modo algum dir-te-ei que eram usuais algumas palavras simples, como
de destruí-la, pois nem a imortalidade admite reserva, nem na expressão "decidir (cernere) uma contenda pelas armas".
àquilo que é eterno se pode fazer o mínimo mal. O mesmo Vergílio te comprovará o caso:
Poderosos, oriundos dos quatro cantos da terra, os
58 heróis se afrontavam, para decidir (cernere) a sorte
das armas. 12
1 Até que ponto é grande a nossa pobreza, direi mesmo Actualmente empregamos para a mesma noção o verbo
a nossa indigência vocabular, nunca o tinha compreendido decernere; ou seja, caiu em desuso o emprego do verbo
tão bem como hoje. Estávamos casualmente falando de simples. Os antigos também diziam si iusso ("se eu o 4
Platão: mil noções se nos depararam carentes, mas des- ordenar") em vez de si iussero ("id."). Não te fies na
providas, de um vocábulo apropriado; em contrapartida há minha palavra, mas na abonação de Vergílio:
muitas outras que tiveram nome, caído em desuso devido que o resto do exército avance junto a mim para
ao nosso gosto requintado. Ora ter gostos requintados no onde eu o ordenar (iusso) 13•
2 meio da indigência é insuportável ! Àquele insecto que Não te falo disto com tanta minúcia para que fiques a 5
atormenta os rebanhos e os faz dispersar por todo o vale, saber quanto tempo eu perdi na escola do gramático, mas
chamado em grego olarpo<; ("moscardo"), dava-se anti- sim para que te dês conta da quantidade de vocábulos,
gamente o nome de asilus. Do facto há o testemunho de usados por Énio e Ácio, que se tornaram obsoletos; pois
Vergílio: se mesmo na obra de Vergílio, que sempre tem conti-
Junto ao bosque do Sílaro , às azinheiras que cobrem nuado a ser lida, já alguns termos há que passaram de
de verde o Alburno, esvoaça em número ingente o moda!
insecto cujo nome romano era asilus, e agora se "O que significa todo este preâmbulo?" - perguntarás 6
chama em grego oestrus, - bicho antipático, de agudo tu. - "Qual a sua finalidade?" Não to esconderei: o que
zumbido, que pelos bosques atormenta e põe em pretendo é, se possível, empregar a palavra essência (essen-
fuga o gado. 11 tia) sem chocar os teus ouvidos; se os chocar, aliás,
empregá-la-ei na mesma! Como garante deste vocábulo
14
tenho Cícero, que me parece autoridade de peso ; entre
10
Cleames admire a imortalidade de todas as almas (S. V. F., II, 811), Cri- os autores mais recentes tenho Fabiano, escritor eloquente,
sipo apenas das dos sábios (ibid., 810, 811). Tal imortalidade, porém, apenas
dura até à ocorrência da conflagração ('EKrrÍ!pwm<;) universal. - Sobre a posição
do estoicismo perante o problema da imortalidade da alma v. René Hoven,
12
Stoicisme et stoiciens face au probléme de l'au·delá, Paris 1971 (pp. 107 ss.: a Vergílio, Aen., XII, 708-9.
13 Vergílio, Aen., XI, 467.
posição de Séneca).
14
11
Vergílio, Geor., III, 146-50. Cícero, frg. inc. K 10 p. 412 Mueller.

198 199
elegante e de estilo claro, mesmo para o nosso gosto dependam. Esse elemento é o género animal. Obtemos
sofisticado. Pois que havia eu de fazer, Lucílio amigo? De assim o género comum às três espécies indicadas -
que outro modo traduzir o grego ovaía, essa noção impres- "homem", "cavalo", "cão" - ou seja, o género "animal".
cindível que, por natureza, constitui o fundamento de tudo Mas há seres que têm vida sem serem animais; dizemos 10
o mais? Peço-te, portanto, que me consintas o uso daquele que têm vida as plantas, as árvores, e por isso dizemos
vocábulo. De resto farei o possível para usar com parci- que elas vivem e morrem. Consequentemente um género
mónia a vénia que me irás conceder; talvez mesmo me superior será o género animado, no qual serão compreen-
7 contente com o simples facto de ma dares. Que me adian- didos os animais e as plantas. Mas há ainda seres que não
tará, aliás, a tua benevolência se tenho já aqui algo impos- possuem vida, como as pedras; deverá, portanto, haver
sível de dizer em latim, facto que originou a minha ira um género mais primitivo que o "animado": será o corpo.
contra a nossa língua? Maior será a tua condenação da O género "corpo" poderá ser subdividido se dissermos que
pobreza vocabular romana quando souberes que é uma todos os corpos ou são animados ou inanimados. Há ainda, 11
única sílaba aquilo que eu não consigo traduzir. Queres contudo, um género superior ao "corpo", uma vez que nós
saber qual é? Tà ov ("o ser"). Posso parecer-te homem dizemos que algumas coisas são corpóreas e outras são
incorpóreas. Qual será então esse género de que estas
de fraco engenho: há um recurso imediato, posso verter
espécies derivam? Precisamente aquele ao qual atrás desig-
esse conceito pela expressão quod est ("aquilo que é").
námos de uma forma tão pouco adequada: "aquilo que é"
Mas é evidente a diferença entre as duas: sou obrigado a
(= "o ser"). A este poderemos dividi-lo em duas espécies:
usar um verbo em vez de um nome. A necessidade obriga,
"o ser" ou é corpóreo, ou incorpóreo. Temos aqui, por- 12
porém, a dizer "aquilo que é"! tanto, o género primeiro, o mais primitivo, o género, por
8 Um amigo nosso, homem de grande cultura, dizia assim dizer, geral; os restantes géqeros são, digamos, "espe-
hoje que a expressão o ser era usada por Platão em seis ciais". Por exemplo, "homem" é um género, mas contém
sentidos distintos. Poderei indicar-tos todos se primeiro te em si, como espécies, os povos (Gregos, Romanos, Par-
explicar que existe uma coisa que é o género e outra que tos), as cores (brancos, negros, amarelos), os indivíduos
é a espécie. O que vamos procurar em primeiro lugar é (Carão, Cícero, Lucrécio). Na medida em que contém mui-
aquele género primeiro do qual derivam todas as espécies, tos elementos, é género; na medida em que está depen-
do qual se origina toda a divisão, no qual tudo está com- dente de outro, é espécie. Quanto ao género "ser", esse é
preendido. Encontrá-lo-emos se tomarmos cada coisa com geral, não tem nenhum outro acima de si, está na origem
generalização crescente; assim acabaremos por chegar ao de tudo e tudo deriva dele. Os estóicos pretendem subor- 13
género primeiro. diná-lo ainda a um género mais primitivo, do qual te fala-
9 O "homem" é uma espécie, diz Aristóteles; o "cavalo" rei daqui a pouco 15 ; por agora pretendo mostrar-te que o
é uma espécie; o "cão" é uma espécie. Temos agora de
procurar qual é o elemento comum a todas estas espécies,
o elemento que . as compreenda a todas e do qual elas 15
V infra § 15.

200 17 201
género de que estou a falar ("o ser") deve ser considerado especial, como Cícero ou Catão. O "animal" não é objecto
como de facto o primeiro, uma vez que basta para abarcar da vista, mas do pensamento. Podem ser vistas, porém, as
tudo o mais. suas espécies: um cavalo, um cão.
14 Eu divido o ser em duas espécies: a das coisas "corpó- Em segundo lugar na escala do ser, considera Platão 17
reas" e a das coisas "incorpóreas"; não há terceira possibi- aquele que sobreleva e supera todos os demais; ou seja, o
lidade. O género "corpo", por sua vez, divido-o nas espé- que ele chama o "ser por excelência". Assim, "poeta" é
cies "animada" e "inanimada". Quanto aos seres animados uma designação genérica, um nome que se dá a todos
dividi-los-ei em "seres que têm alma" e "seres que apenas quantos fazem versos, mas na Grécia tornou-se a designa-
possuem princípio vital" 16; ou então, em seres que têm ção de um só homem: quando se diz "o Poeta" entende-
movimento próprio, que marcham e se deslocam, e seres -se que nos referimos a Homero. Qual é então o "ser por
que se alimentam e crescem fixos ao solo por raízes. excelência"? É deus, o ser maior e mais poderoso de
Quanto aos "animais", em quantas espécies dividi-los? Em todos.
"mortais" e "imortais". O terceiro · género é o dos seres que possuem existên- 18
15 Alguns estóicos são de opinião que o género primeiro eia própria, os quais são uma infinidade, mas colocados
seja o algo (quid), pelo motivo que passo a dizer-te 17• "Na para lá da nossa observação. Queres saber que seres são
natureza" - afirmam eles - "há coisas que existem e esses? Trata-se de matéria característica de Platão: são
coisas que não existem; ora mesmo estas estão compreen- aqueles seres a que ele chama "as ideias", a partir das
didas na natureza. É o caso dos produtos da imaginação, quais se originam as coisas que vemos e com as quais
tal como os Centauros e os Gigantes, e tudo o mais que, tudo se conforma. As "ideias" são imortais, imutáveis,
originado por falsos conceitos, acaba por obter uma certa invioláveis. Entende bem o que seja uma "ideia", ou 19
imagem, embora desprovida de substância." 18 melhor, o que é que Platão entende por tal: "a ideia é o
16 Mas voltemos à questão proposta, ou seja, de que modelo eterno de tudo quanto existe na natureza". À
modo Platão concebe as seis gradações do ser. Em pri- definição vou acrescentar um exemplo, para quê o pensa-
meiro lugar o "ser" não pode ser captado pela vista, pelo mento te seja mais claro. Imagina que eu quero pintar o
tacto, ou por qualquer outro sentido; é somente pensável. teu retrato. O modelo para a minha pintura és tu, de cuja
Todo o ser em geral, como por exemplo o homem em observação o meu espírito extrai uma determinada confi-
geral, escapa à alçada da vista; o que nós vemos é o ser guração a impor ao quadro; essa configur~ção, a qual me
guia e determina, e da qual se gera a minha imitação, é a
"ideia". Ora bem, a natureza possui modelos semelhantes,
em número infinito, da espécie dos homens, da dos pei-
16
Alma =animus; princípio vital =anima.
17
Cf. S. V. F., II, 329, 333. xes, da das árvores; segundo esses modelos conforma-se
18
Este passo figura em S. V. F., II, com o número 332. tudo quanto é susceptível de vir a existir.

202 203
20 Em quarto lugar temos o eidos (EÜ>oç). 19 Atenta com tência própria, já que estão num contínuo devir, sofrendo
cuidado o que seja o eidos, e, se a coisa te parecer difícil permanentemente acréscimos ou mutilações. Nenhum de
de entender, zanga-te com Platão e não comigo. De resto, nós é na velhice idêntico ao que foi na juventude; nenhum
qualquer pensamento abstrato tem sempre a sua dificul- de nós é pela manhã idêntico ao que foi no dia anterior.
dade. Utilizei há pouco o exemplo do pintor. Se este qui- Os nossos corpos fluem rapidamente como a corrente dos
sesse representar Vergílio numa pintura, olharia para o rios. Tudo quanto vês acompanha o veloz fluir do tempo;
próprio Vergílio. A "ideia" era o rosto de Vergílio, o nada do que vemos permanece idêntico; eu mesmo, enquan-
modelo do futuro quadro; a forma que dela o artista extrai to falo na mudança das coisas, já mudei.
e impõe ao seu trabalho será o eidos. Não entendes É este o sentido da frase de Heraclito: "podemos e 23
21 qual é a diferença? A ideia é o modelo, o eidos é a forma não podemos mergulhar duas vezes no mesmo rio". 21 O
deduzida do modelo e imposta ao quadro; a ideia é aquilo nome do rio permanece o mesmo, a água, essa já passou
que o artista imita, o eidos, aquilo que ele faz. Uma escul- adiante. Num rio o fenómeno é mais sensível aos olhos
tura tem uma determinada forma: é o seu eidos. O pró- do que num homem, mas não é menos rápido o curso do
prio modelo que o artista, olhando-o, imprime à estátua, tempo em nós; por isso me espanta a loucura que nos
tem também uma determinada forma: é a sua ideia. Se leva a tanto amarmos essa coisa fugidia que é o corpo, e
preferes uma outra explanação, dir-te-ei que o eidos está a temer morrermos um dia quando cada momento é a
na própria obra, enquanto a ideia é exterior à obra, e não morte do estado imediatamente anterior. Dispõe-te, por-
apenas exterior, mas ainda pré-existente à obra. tanto, a não recear que ocorra um dia aquilo que conti-
22 O quinto género é o das coisas que existem generica- nuamente está ocorrendo. Falei do homem, matéria fluida, 24
mente. Aqui já nos começamos a situar no nosso mundo: caduca, exposta a todos os imprevistos: o próprio mundo,
trata-se de todos os seres existentes, homens, animais, que é eterno e indestrutível, múda também, não perma-
objectos. nece idêntico. Embora continue, de facto a conter em si
O sexto género compreende aquilo que apenas tem tudo quanto desde sempre conteve, contém-no de uma
um simulacro de existência, por exemplo o vazio, ou o maneira diferente do que antes, ou seja, alterou a ordem
tempo. 20 respectiva.
Às coisas que podemos ver ou tocar Platão recusa-se a "Para que me servem" - dirás - "todas essas subti- 25
incluí-las entre os seres que ele considera dotados de exis- lezas?" Se mo perguntas, dir-te-ei: para nada! Mas tal
como o gravador dá aos seus olhos, fatigados de longo
trabalho, uma pausa, um descanso, ou, como soe dizer-se,
19 Literalmente efao> é o "aspecto exterior de uma coisa'.', a sua "forma" (d.
F. E. Peters, Termos filosóficos gregos, Lisboa, F. C. Gulbenkian, pp. 62 ss.).
'º O vazio (inane, Kevóv) e o tempo (tempus, xpóvo>) constituíam para os 21
estóicos, juntamente com o espaço (locus, rórro>) e o dito (dictum, ÀfKTÓv), as Heraclito, fr, 49 a Diels-Kranz (cf G. S. Kirk-J. E. Raven, Os filósofos
quatro espécies de seres incorpóreos, cf. S. V. F., II, 331. pré-socráticos, Lisboa, F. C. Gulbenkian, 2.ª ed., pp. 198 ss).

204 205
um retemperamento, também nós, uma vez por outra, sas são a ponto de a sua própria existência ser duvidosa.
devemos distender o espírito e refazê-lo com alguma dis- Meditemos igualmente em que, se o universo, tão mortal 29
tracção. Importa, porém, que a distracção seja profícua; como nós, é defendido dos perigos pela sua providência
ora, se reparares bem, mesmo destas especulações podei-ás própria, é possível que, até certo ponto, a nossa própria
26 tirar matéria útil à tua formação. Caro Lucílio, é este o
providência consiga prolongar um pouco a duração deste
método que eu uso: de qualquer conhecimento, por muito
miserável corpo, desde que consigamos dominar e repri-
afastado que seja da filosofia moral, faço sempre o possí-
vel por extrair algum elemento que ofereça utilidade. O mir as paixões que consomem a sua maior parte. O pró- 30
que pode haver de mais alheio ao aperfeiçoamento do prio Platão, graças aos seus hábitos comedidos, conseguiu
carácter do que estas especulações de que estivemos tra- atingir a velhice. É certo que era dotado de um corpo
tando? Em que podem as "ideias" de Platão fazer de mim forte e vigoroso, tanto que o nome lhe foi dado devido ao
um homem melhor? Que posso eu tirar delas que me seu largo tórax; 22 as perigosas viagens marítimas, porém,
ajude a reprimir os desejos? Quanto mais não seja esta tinham-lhe roubado muito do seu vigor. Todavia, a sua
noção: que tudo quanto existe para serviço dos sentidos, austeridade, a sua moderação em relação a tudo quanto
que nos aguça e excita a vontade, não pertence, segundo excita a avidez, o rigoroso cuidado consigo próprio fize-
Platão, ao número das coisas que têm existência verda- ram com que chegasse a velho a despeito das condições
27 deira. São, por conseguinte, coisas imaginárias, que mudam adversas. Sabes, creio, que Platão ficou a dever aos seus 31
de aspecto com o tempo, que nada possuem de estável e rigorosos cuidados com a saúde o facto de ter morrido no
permanente. Havemos nós de desejá-las como se elas
dia do seu aniversário, pelo que completou rigorosamente
devessem existir para sempre, ou nós as houvéssemos de
oitenta e um anos de vida. Ess~ a razão por que alguns
permanentemente possuir?! Seres fracos e efémeros, nós,
homens, vivemos entre coisas vãs: ergamos antes o espí- astrólogos, de passagem por Atenas, fizeram sacrifícios ao
rito para aquilo que é eterno. Admiremos as formas ideais filósofo falecido na convicção de que ele excedera o des-
das coisas que pairam nas alturas e a divindade que entre tino normal do homem, porquanto a sua idade · atingira o
elas se move providenciando o modo de conseguir defen- mais perfeito dos números, obtido pela elevação de nove
der da morte estas criaturas que não pôde criar imortais ao quadrado. Não duvido de que tu possas reduzir alguns
por impedimento da própria matéria, fazendo com que dias a este total, e passar sem qualquer sacrifício! A sobrie- 32
28 pela razão superem as deficiências do corpo. Todo o uni- dade pode prolongar a vida até à velhice, o que, se por
verso permanece, não porque seja eterno, mas porque está mim não o considero desejável, de modo algum acho de
sob a guarda de um ser que o rege; se fosse imortal não
careceria de protector. É o obreiro do universo que o con-
serva, dominando pelo seu poder a fragilidade da matéria. 22
O nome Piarão (em grego I1Ã1hwv) provém do adj. trÀarÍJç (placys)
Desprezemos, pois, todas as c01sas que tão pouco precio- "'largo, corpulento"'.

206 207
reie1tar. De facto será agradável convivermos connosco o ligência, a destruir alguma das suas capacidades, se, tiran-
mais possível, desde que nós tenhamos tornado dignos de do-me a vida, me deixar só a existência, então eu escapar-
proporcionar uma companhia aprazível. -me-ei desse edifício podre e arruinado. Não evitarei pela 36
Pronunciemo-nos, enfim, sobre esta questão: devemos morte uma doença desde que tratável e não gravosa para o
nós minimizar a última fase da velhice e, em vez de espírito. Nunca erguerei a mão contra mim para evitar o
aguardar o nosso fim, apressá-lo com as próprias mãos? sofrimento: morrer assim é confessar-se derrotado. Mas se
Esperar passivamente pela morte é atitude quase cobarde, souber que tal doença nunca mais me deixará, então sairei
tal como é amigo em excesso do vinho quem quer que, eu desta vida, não devido à doença em si, mas porque ela
depois de esvaziar a ânfora, vai ainda sorver as borras. me será um entrave em relação a tudo por que merece a
33 Resta agora é saber se são borras os últimos anos de vida, pena vivermos. Morrer para evitar a dor é uma atitude de
fraqueza e cobardia; viver só para suportar a dor, é pura
ou se, pelo contrário, são a fase mais transparente e mais
estupidez.
pura. Entenda-se: desde que a inteligência não sofra dimi-
Já me estou alargando demais. De resto, a matéria 37
nuição, que os sentidos sirvam o espírito intactos e que o
daria azo a que aumentasse as horas do dia. Como há-de
corpo não esteja diminuído e já meio morto, porquanto é
saber pôr fim à própria vida um homem que não sabe
da maior importância saber se o que se prolonga é a vida terminar uma carta?! Boa saúde, então! Gostarás mais de
34 ou é a morte. Se o corpo já não está à altura das suas ouvir esta saudação do que de ler contínuas elocubrações
tarefas, porque não havemos de libertar a alma dos seus sobre a morte!
entraves? Possivelmente até o deveríamos fazer antes de
ser necessário, não fosse dar-se o caso de o não podermos
fazer quando necessário for. E como é maior o perigo de 59
viver mal do que o de morrer antes do tempo, estúpido A tua carta deu-me um enorme prazer. Consente que 1
seria aquele que, com um exíguo sacrifício de tempo, se eu use o vocabulário de toda a gente, sem entenderes as
não libertasse de tantas contingências aleatórias. Poucos minhas palavras em sentido estóico. É crença nossa que
têm sido os homens que, após longa velhice, atingiram a todo o prazer é um vício. Seja; nem por isso deixamos de
morte sem diminuição de capacidades, mas muitos aqueles empregar o termo "prazer" para denotar uma alegria inte-
que uma vida prolongada deixou inutilizados: como não rior. Sei muito bem, repito, que, de acordo com os nossos 2
julgar então que mais duro do que perder uns dias de dogmas, o "prazer" é uma coisa indigna e que apenas o
35 vida é perder o direito a pôr-lhe termo? Não me escutes sábio conhece a verdadeira alegria, essa exaltação da alma
contrariado, como se estas reflexões se aplicassem desde já na plena posse dos seus bens autênticos 23 . Em linguagem
à tua pessoa, e pensa bem no que eu pretendo dizer: eu
21
· Sobre a oposição enrre os conceitos de "alegria" e de "prazer" cf. u. g.
não porei termo à velhice se ela me deixar o uso das
S. V. F., III, 431. Crisipo escreveu um tratado para demonstrar que o prazer não
minhas faculdades, daquelas que formam a melhor parte constitui um fim (r~Ào<;) para o homem, e outro em que demonstra que o pra-
de mim mesmo. Se, todavia, começar a afectar-me a inte- zer não é um bem (cf. S. V. F., II, 18).

208 209
corrente, porém, dizemos que nos deu "grande prazer interessa pelo supérfluo, pelo bombástico. Encontro em ti, 6
saber de alguém que foi nomeado cônsul, ou se casou, ou contudo, algumas metáforas que, sem serem audaciosas,
a sua mulher teve uma criança, tudo isto circunstâncias são de certo modo atrevidas; encontro símiles - mas
que não só não são causa de alegria como frequentemente proibirem-nos o uso destas figuras a pretexto de que só
são o prelúdio de futuros infortúnios; ora a alegria nem nos poetas elas são legítimas, significa que se não leram
conhece termo nem pode transformar-se no seu oposto. os autores antigos, de uma época ainda não deformada
3 Por isso mesmo, quando o nosso Vergílio refere pela obsessão da eloquência. Tais autores, embora falando
do espírito as perversas com simplicidade e com a única preocupação de se faze-
. ?4
al egnar rem entender, têm um estilo repleto de comparações, que,
usa uma frase bonita, mas inadequada, dado que a alegria aliás, reputo necessárias aos filósofos, não pela mesma
nunca pode ser perversa. Com o termo "alegrias" ele pre- razão que aos poetas, mas como meio de superar as limi-
tendia referir-se aos "prazeres"; de resto, é evidente que o tações da linguagem e de permitir, quer ao orador quer ao
poeta está aludindo àquelas pessoas que se comprazem no auditório, a apreensão directa da matéria em causa.
4 seu próprio mal. Por minha parte, não será infundado Neste momento ando interessado em ler Sêxtio, um 7
dizer que a tua carta me deu um "enorme prazer". No autor penetrante que, conquanto escreva em grego, pro-
caso de um não-sábio, - e por legítimo que seja a causa fessa uma filosofia adequada ao carácter romano. Chamou-
da alegria - , trata-se de um impulso incontrolável, sus- -me a atenção um símile usado por ele: quando se pre-
ceptível de num momento passar ao extremo oposto, oca- sume que o inimigo pode irromper inesperadamente sem
sionado pela imaginação de um falso bem, imoderado, se saber donde, o exército deve avançar formado em qua-
irreflectido - e por isso mesmo, em vez de "alegria", drado sempre pronto para o combate. "A mesma coisa"
chamo-lhe antes "prazer"! - diz ele - "deve fazer o sábio: todas as suas virtudes
Mas voltemos ao assunto. O que me agradou na tua devem estar uniformemente alerta, de modo a que, mal
carta foi ver que dominas as palavras e que a preocupação deparem com o mínimo obstáculo, imediatamente se lhe
5 do estilo não te leva a divagações extemporâneas. Há oponham, respondendo sem precipitações à vontade da
muita gente que se põe a escrever coisas que não tinha alma que as comanda!" Nos exércitos, os grandes chefes
planeado movida pela sugestão de algum vocábulo bem ordenam as tropas de maneira que a ordem do general
soante. Contigo tal não sucede: as tuas frases são concisas seja simultaneamente ouvida em todas as linhas, dispostas
e adequadas ao assunto; dizes apenas o que queres, e de tal forma que a infantaria e a cavalaria dêem pelo sinal
sugeres ainda mais do que dizes. O teu estilo é sintoma emanado do posto de comando; procedimento idêntico ao
de algo muito mais importante: de que a tua alma se não verificado nas tropas diz-nos Sêxtio que muito mais neces-
sário é ainda para cada um de nós. Frequentemente dá-se 8
o caso de um exército temer o inimigo sem motivo e de
'' Vergílio, Aen., VI, 278-9. o itinerário que lhe parecera mais perigoso ser afinal o

210 211
mais seguro. A ignorância, essa, está sempre em sobres- tramos de acordo! Nem sequer nos contentamos com lou-
salto; os perigos assaltam-na quer de cima quer de baixo; vores comedidos: tudo quanto a adulação despudoradamente
à direita e à esquerda há razões de pânico; os perigos nos atribui, nós o assumimos como de pleno direito. Se
quer a atacam pelas costas quer se lhe levantam na frente; alguém nos declara os melhores e mais sábios do mundo,
qualquer situação a enche de medo, a encontra imprepa- nós assentimos, mesmo quando sabemos que esse alguém
rada, a tal ponto que o próprio socorro a apavora! O é useiro e vezeiro na mentira! A nossa autocomplacência
sábio, porém, sempre alerta, sempre pronto a responder a vai mesmo tão longe que pretendemos ser louvados em
qualquer assalto, não recuará um passo mesmo que sobre nome de princípios que as nossas acções frontalmente
ele caiam a pobreza, a desgraça, a ignomínia ou a dor; desmentem: um, que se compraz a torturar os outros,
impertérrito, o sábio afrontará estes males, passará pelo gosta de ser gabado como modelo de clemência; outro, que
9 meio deles. A nós, múltiplas causas nos deixam manieta- rouba descaradamente, como a liberalidade em pessoa; outro
dos e enfraquecidos. Longa tem sido a nossa permanência ainda, que se entrega à embriaguez e à libertinagem, pre-
entre estes vícios, pelo que não será fácil a libertação. Na
tende passar pela fina flor da moderação! A consequência
realidade, não estamos apenas manchados por eles, esta-
é que ninguém mostra vontade de corrigir o seu carácter,
mos mesmo impregnados totalmente !
pois cada um se considera a melhor pessoa deste mundo...
Não vale a pena introduzir aqui novas comparações!
Analisemos antes um problema que muitas vezes debato Alexandre percorria a Índia levando a guerra e a destrui- 12
comigo mesmo: por que causa a ignorância nos mantém ção a povos cuja existência até os seus vizinhos mal
agarrados com tanta força? Primeiro, porque não a repe- conheciam. Durante o cerco a uma cidade, ao circundar as
limos com suficiente energia nem usamos todas as nossas muralhas na busca do ponto mais vulnerável das fortifi-
forças para nos libertarmos dela; depois, porque não con- cações, foi ferido por uma flecha. Durante algum tempo
fiamos o bastante nas lições dos sábios nem as interiori- continuou montado, sem interromper o combate. Por fim,
zamos como devíamos, antes tratamos uma tão magna ao coagular o sangue na ferida, a dor começou a aumen-
10 questão de forma leviana. Como pode alguém, aliás, tar; a perna, pendurada da sela, foi ficando entorpecida e
aprender suficientemente a lutar contra os vícios se ape- Alexandre viu-se obrigado a desmontar. Disse então: "Toda
nas dedica a esse estudo o tempo que os vícios lhe dei- a gente iu(a que eu sou filho de Júpiter, mas esta ferida
xam livre? ... Nenhum de nós aprofunda bastante esta grita bem dlfo que eu não passo de um homem!" Faça-
matéria; abordamos o assunto pela rama e, como gente mos nós como Alexandre. Se a adulação estultifica as pes- 13
extremamente ocupada, achamos que dedicar umas horas soas, cada uma por sua parte, cabe-nos a nós responder:
11 à filosofia é mais do que suficiente. E o que mais nos pre- "Considerais-me um homem esclarecido, mas eu sei bem
judica é a facilidade com que o nosso amor próprio se quantas coisas inúteis desejo obter, quantos votos formulo
satisfaz. Se encontramos alguém que nos ache homens de que, a serem atendidos, só redundariam em meu prejuízo.
bem, homens esclarecidos e irrepreensíveis, logo nos mos- Nem sequer sei ainda uma coisa que a própria saciedade

212 213
ensina instintivamente aos animais: a justa medida na inalterável. A alma do sábio é semelhante à do mundo
comida e na bebida. Ainda ignoro qual a quantidade que supralunar: uma perpétua serenidade. 25 Aqui tens mais um
devo consumir!" motivo para desejares a sabedoria: alcançar um estado a
14 Vou ensinar-te agora o modo de entenderes que não que nunca falta a alegria. Uma alegria assim só pode pro-
és ainda um sábio. O sábio autêntico vive em plena ale- vir da consciência das próprias virtudes: apenas o homem
gria, contente, tranquilo, imperturbável; vive em pé de forte, o homem justo, o homem moderado pode ter ale-
igualdade com os deuses. Analisa-te então a ti próprio: se gria. "Que dizes?" - objectas tu. - "então os ignorantes 11
nunca te sentes triste, se nenhuma esperança te aflige o
e perversos nunca estão alegres?" Não mais do que um
ânimo na expectativa do futuro, se dia e noite a tua alma
leão quando deita as garras à presa! Aqueles que se dei-
se mantém igual a si mesma, isto é, plena de elevação e
xam prostrar pelo vinho e pela luxúria, que passam a
contente de si própria, então conseguiste atingir o máximo
noite inteira entregues ao vício, que acumulam num corpo
bem possível ao homem! Mas se, em toda a parte e sob
exíguo os prazeres até ultrapassarem o ponto de saturação
todas as formas, não buscas senão o prazer, fica sabendo
- esses, infelizes, acabarão por exclamar o verso famoso
que tão longe estás da sabedoria como da alegria verda-
de Vergílio:
deira. Pretendes obter a alegria, mas falharás o alvo se
pensas vir a alcançá-la por meio da riqueza ou das honras, sabes bem como entre falsas alegrias nós passámos
pois isso será o mesmo que tentar encontrar a alegria no a última noite (de Tróia). 26
meio da angústia; riquezas e honras, que buscas como se Os libertinos passam a noite inteira entre falsas alegrias, 18
fossem fontes de satisfação e prazer, são apenas motivos passam-na como se ela fosse de facto a última noite! A
15 para futuras dores. Toda a gente, repito, tende para um alegria própria dos deuses, e daqueles que são idênticos
objectivo: a alegria, mas ignora o meio de conseguir uma aos deuses, porém, não conhecê interrupção nem limite.
alegria duradoura e profunda. Uns procuram-na nos ban- Teria limite, isso sim, se p~e de algum factor externo.
quetes, na libertinagem; outros, na satisfação das ambições, Como, porém, não depende das benesses de ninguém,
na multidão assídua dos clientes; outros, na posse de uma também não está sujeita ao arbítrio de ninguém: a fortuna
amante; outros, enfim, na inútil vanglória dos estudos não pode roubar aquilo que não deu! 27
liberais e de um culto improfícuo das letras. Toda esta
gente se deixa iludir pelo que não passa de falacioso e
breve contentamento, tal como a embriaguez, que paga
" Cf. Cícero, Rep., Livro VI ("o Sonho de Cipião") XVII, in fine: "Por
pela louca satisfação de um momento o tédio de horas baixo (da esfera lunar) nada há que não seja mortal e efémero, excepro as
infindáveis, tal como os aplausos de uma multidão entu- almas concedidas pelos deuses à espécie humana; (mas) acima da Lua rudo é
siasmada - aplausos que se ganham e se pagam à custa eterno".
"' Vergílio, Aen., VI, 513-4.
16 de enormes angústias! Pensa bem, portanto, no que te 27
Cf. o verso de Lucílio (já eirado por Séneca na carta 8, 10) fr. 2 Morei:
digo: o resultado da sabedoria é a obtenção de uma alegria "bem que se pode dar pode também tirar-se!".

214 215
60 de seres humanos, e alguns, até, nem sequer no rol dos
animais, mas no dos mortos! Estar vivo é ser útil aos
1 Estou triste, estou zangado, estou furioso contigo! Então outros, estar vivo é saber tirar partido de si próprio. Esses
tu continuas a formular para ti os mesmos votos que a
homens que levam uma vida obscura e de moleza, fazem
tua ama, o teu pedagogo ou a tua mãe?! Ainda não per-
da sua casa um sepulcro... À entrada seria justo que gra-
cebeste todo o mal que eles te desejaram? Oh, como são
vássemos o seu nome numa lápide: 29 são homens que se
contrários ao nosso bem os votos dos nossos familiares, e
tanto mais contrários quanto mais bem sucedidos se veri- anteciparam à sua própria morte!
ficaram na realidade! Já não me espanta que os nossos
defeitos nos acompanhem desde a primeira infância: pois 61
se crescemos entre as maldições dos próprios pais! ... Pos-
sam os deuses, de quando em quando, ouvir-nos falar sobre Deixemos de desejar aquilo que já algum dia quise- 1
2 nós sem nada reclamarmos deles! Até quando andaremos mos. Eu, por minha parte, faço o possível por não ter em
sempre a pedir qualquer coisa aos deuses? Parece que velho os desejos que tinha em garoto. Os meus dias e as
ainda não somos capazes de alimentar-nos sozinhos! Quan- minhas noites, os meus esforços e pensamentos têm como
to tempo ainda encheremos de plantações áreas tão gran- objectivo pôr termo aos meus antigos defeitos. Procedo de
des como cidades? Quanto tempo ainda andará todo o modo a que cada dia seja o equivalente de uma vida
povo a ceifar para nós? Quanto tempo ainda para serviço inteira; mas, Hércules me valha!, não me apresso a gozá-
de uma única mesa, andarão a pescar em vários mares -lo como se fosse o último, apenas o encaro como se
tantos barcos? O touro fica saciado com uma pastagem de pudesse ser de facto o m~u último dia! Escrevo-te esta 2
meia-dúzia de geiras; uma única floresta é bastante para carta com a disposição de espírito de alguém a quem a
inúmeros elefantes; o homem, para se alimentar, precisa morte vai surpreender no momento em qu'ê-esereve. Estou
3 da terra toda e de todo o mar! Pois quê? A natureza, que preparado para partir, e assim gozo tanto mais a vida
nos dotou de um corpo tão exíguo, deu-nos um ventre quanto menos me preocupa saber quanto tempo o futuro
assim tão insaciável que supera a avidez dos mais corpu- ainda me reserva. Antes de atingir a velhice tive a pre-
lentos e vorazes animais? De modo algum! Como é ocupação de viver bem, agora que sou velho preocupo-me
insignificante o que basta para satisfazer a natureza!... Ela em morrer bem; e morrer bem significa ser capaz de
contenta-se com pouco. Não é a fome, mas a ostentação, aceitar a morte. Toma bem atenção a nunca fazeres nada 3
4 que nos força a tais despesas com o estômago. Pois bem, ·
contrariado: a mesma coisa que, para quem tenta opor-se-
incluamos esses homens a quem Salústio chama "os escra-
-lhe, é uma necessidade imperiosa, deixará de o ser para
vos do estômago" 28 no rol dos animais, e não no número
quem voluntariamente a aceita. É o que te digo: quem

28
No De con. Catilinae, 1, 1 Salúscio compara os homens que passam a
29
vida na obscuridade a animais "escravos do estômago". CT. a observação de Séneca em 55, 4 a propósito de Servílio Vária.

216 18 217
cumpre de boa .vontade uma ordem evita o mais amargo razão derivada de deveres sooa1s. Os meus companheiros
aspecto da servidão, que é fazer alguma coisa contra são todos o que há de melhor: seja qual for o local ou o
vontade. Ninguém é infeliz quando faz algo porque o tempo em que eles viveram, é para junto deles que vai o
mandam, mas sim quando o faz de má vontade. Prepa- meu espírito. Para todo o lado levo agora comigo esse 3
remos, portanto, a nossa alma para fazer voluntariamente excelente homem que é Demétrio, prescindo de juntar-me
o que as circunstâncias de nós exigirem, e, para começar, à "gente de púrpura"'º, para conversar com este quase
4 pensemos sem amargura no nosso próprio fim. A prepa- indigente a quem consagro toda a admiração. E como não
ração para a morte tem prioridade sobre a preparação admirá-lo, quando verifico que de nada ele sente a falta?
para a vida. Esta dispõe de recursos suficientes, nós é que Desprezar tudo, há quem o possa fazer; possuir tudo é
nos precipitamos com demasiada avidez sobre esses recur- coisa que ninguém consegue. O caminho mais curto para
sos: por isso mesmo nos parece, e sempre parecerá, que a riqueza passa pelo desprezo da riqueza. O nosso amigo
alguma coisa nos falta! Demétrio, porém, vive, não como alguém que é capaz de
Para que a vida seja suficiente, o que conta não são os desprezar tudo, mas como quem permitiu a posse de tudo
anos nem os dias, mas a qualidade da alma. Eu já vivi o aos outros!
suficiente, meu caro Lucílio. Posso aguardar a morte ple-
namente saciado.

62
1 São puros mentirosos todos os que pretendem fazer
crer que, se não se entregam ao estudo, é por causa dos
seus inúmeros afazeres. Na realidade tais afazeres são um
pretexto, são afazeres empolados por gente que se quer
fingir ocupada! Eu sou um homem livre, Lucílio, inteira-
mente livre, e, onde quer que esteja, tenho todo o tempo
à minha disposição. Não me entrego aos afazeres, presto-
-me a eles, quando muito, e não me ponho à procura de
ocasiões para perder tempo. Onde quer que me encontre
passo em revista os meus pensamentos e medito em
2 qualquer coisa que me seja profícua. Quando me consagro
aos amigos, nem por isso deixo de ocupar-me de mim
mesmo, e não me detenho na companhia daqueles a que .\O Ou seja, os nobres romanos, cujas túnicas eram adornadas de uma banda
me juntou alguma circunstância momentânea ou alguma de púrpura, larga para os senadores e estreita para os cavaleiros.

218 219
LIVRO VII

(Cartas 63-69)

Lamento profundamente o falecimento do teu amigo 1


Flaco, no entanto entendo que a tua dor não deve ultra-
passar os limites do razoável. Não ousaria exigir de ti que
não sentisses o mínimo abalo perante o facto, embora isso
fosse o ideal. Uma tal firmeza de ânimo, contudo, apenas
está ao alcance de quem já se alçou muito acima das con-
tingências da fortuna. E mesmo um homem assim não
deixaria de sentir na alma uma beliscadura, se bem que
somente uma beliscadura! A homens como nós pode
perdoar-se que deixemos correi;. as lágrimas, desde que
não em excesso, e desde que nós mesmos as saibamos
estancar. Importa que, perante o desaparecimento de um
amigo, os nossos olhos nem fiquem secos nem inundados.
Chorar, sim, desfazermo-nos em pranto, isso não! Achas 2
que eu pareço impor-te uma lei severa, quando até o
maior poeta da Grécia concedeu às lágrimas tão somente
o espaço de um dia, ou nos diz que até Níobe '~ão descu-
rou os cuidados com a alimentação? 1 Queres tu sâ:bey qual

1
Homero, Ilíada, XIX, 228-9: "É preciso enterrar sem mais hesitações o
morto, depois de o chorar por um dia apenas." - Id., ibid., XXIV, 602-4:
"Mesmo Níobe de belos cabelos não descurou a alimentação, ela que viu morrer
na sua casa doze fi lhos, seis raparigas e seis rapazes na flor da idade."

221
a causa da superabundância de lamentações e de prantos? dos já falecidos, essa é um prazer com um certo sabor a
Ê o uso das lágrimas como prova de desgosto; por outras amargo. Quem negará, porém, que os condimentos ácidos
palavras, o pranto não decorre da dor, mas do desejo de e picantes são bons estimulantes do apetite?" Eu não par- 7
mostrar aos outros que sofremos! Ninguém prodigaliza tilho esta opinião: para mim, pensar nos amigos já desa-
manifestações de tristeza quando está sozinho... Ó desgra- parecidos é algo que nos proporciona uma doce satisfação;
çada estultícia a nossa, que até da própria dor faz uma quando os tinha comigo sabia que os havia de perder,
arma de propaganda! agora que os perdi é como se os tivesse sempre comigo!
3 "Como dizes? Então eu hei-de esquecer o meu amigo?!" Age com equidade, caro Lucílio, e não interpretes mal
Curta recordação tu terás dele se a fizeres coincidir com as os benefícios que a fortuna te concedeu: ela roubou-te um
manifestações de pesar: qualquer sucesso fortuito dentro amigo, mas fora ela quem to tinha ·dado. Gozemos inten- 8
em pouco te fará abrir o rosto num sorriso! Nem sequer sarnente a companhia dos nossos amigos, até porque não
prevejo que passe muito tempo para que toda essa sau- podemos saber por quanto tempo o faremos. Pensemos
dade se dilua, pois mesmo as aflições mais acesas cessam também quantas vezes os deixámos para partir em longas
com o tempo. Basta que comeces a observar o teu próprio viagens, quantas vezes estivemos sem os ver embora
comportamento, e todos os sinais exteriores do teu des- morando na mesma terra: compreenderemos deste modo
gosto cessarão. De momento estás cultivando a tua dor; que, mesmo estando eles vivos, não aproveitámos a sua
mas, por mais que a cultives, ela passará, e tanto mais companhia a maior parte do tempo. E que dizes tu claque- 9
4 depressa quanto mais intensa se mostra agora. Proceda- les que não ligam importância aos amigos vivos, e os
mos antes de modo a que a recordação dos desaparecidos pranteiam exageradamente quando morrem? Parece que
seja para nós um momento de doçura. Ninguém reme- só têm amizade pelos defuntos! Por isso mesmo os deplo-
mora voluntariamente uma coisa em que se não pode ram veementemente, com medo que a sua amizade por
pensar sem aflição. Não é naturalmente possível que o eles possa ser posta em dúvida, e daí esses sinais de
nome de algum ente querido já falecido nos venha à afecto já fora de horas. Se nós temos ainda outros amigos, 10
memória sem um certo aperto na alma, mas esse aperto julgá-los compensação insuficiente pela perda de um só,
de alma nunca ocorrerá sem ser acompanhado de algum equivale a desmerecer e desconsiderar a sua amizade; se
5 prazer. O nosso amigo Átalo costumava dizer "que a não os temos, então nós mesmos é que, mais do que a
memória dos amigos falecidos nos é agradável tal como fortuna, fomos cruéis para connosco, pois se a fortuna nos
certos frutos nos agradam apesar de ácidos, ou tal como privou de um amigo, nós fomos incapazes de fazer mais
no vinho excessivamente velho nos dá prazer o próprio amizades. De resto, quem não foi capaz de fazer mais do 11
travo; ao fim de algum tempo extingue-se em nós a parte que um amigo, pouca amizade tinha certamente para ofe-
da angústia e sentimos na recordação meramente a parte recer! Um homem a quem roubaram a sua única túnica e
6 do prazer." A crer no que ele diz, "pensar nos amigos se põe a autolamentar-se em vez de procurar os meios de
vivos e sãos é como saborear mel e bolos; a rememoração se defender do frio, tentando encontrar algo com que se

222 223
cubra - não te parece que atingiu o auge da insanidade? Sou eu que te escrevo estas palavras, eu, que tão imo- 14
Tinhas um só amigo, acompanhaste o seu funeral; pois deradamente chorei o meu grande amigo Aneu Sereno,
procura outro a quem dês a tua amizade. Encontrar um eu, que com grande vergonha minha me vejo forçado a
novo amigo é mais importante do que chorar o desa- incluir-me no número daqueles que se deixaram vencer
parecido. pela dor! Hoje, no entanto, condeno a minha atitude pas-
12 O que vou dizer-te agora é uma verdade mais do que sada, e compreendo que a principal causa do meu exces-
rebatida, mas nem por andar em todas as bocas eu deixa- sivo pranto foi o nunca me ter passado pela ideia que ele
rei de a repetir: quando deliberadamente não pomos nós pudesse morrer antes de mim. Ocorria-me apenas que ele
um termo à nossa dor, o tempo o fará por nós. E nada era mais novo, muito mais novo do que eu - como se o
há mais inconveniente para um homem avisado do que destino se preocupasse em respeitar a ordem de idades!
Mais uma razão para continuamente meditarmos na nossa 15
deixar o cansaço servir de remédio à dor. Prefiro que
condição de mortais, nossa e daqueles a quem amamos. O
sejas tu a afastar de ti a dor do que seja ela a afastar-se
que eu deveria ter feito era dizer: "Sereno é mais novo do
de ti. Cessa quanto antes de te entregar a manifestações
que eu, mas isso que tem? Deverá morrer depois de mim,
de tristeza que, de um modo ou de outro, nunca poderás
mas também pode morrer antes." Não o fiz, e assim o
13 prolongar indefinidamente. Os antigos romanos instituíram
súbito golpe da fortuna encontrou-me desprevenido! Neste
para as mulheres um período de luto de um ano, não momento medito em que tudo é mortal e que a mortali-
para que levassem um ano a chorar, mas para não chora- dade não obedece a qualquer lei; o que é possível, tanto é
rem ainda mais tempo. 2 Para os homens não há prazo possível hoje como em outro dia qualquer. Pensemos, caro 16
marcado pela lei, porque nenhum prazo conviria à sua Lucílio, que em breve também nós iremos para onde foi
dignidade. De todas essas pobres mulheres que só a custo agora, para tristeza nossa, essé nosso amigo; até pode
se consegue afastar da pira fúnebre, arrancar de junto ao suceder que tenham razão os sábios e haja um lugar onde
corpo do ente querido - indica-me uma só cujas lágrimas todos iremos residir após a morte: se assim for, esse
tenham durado um mês inteiro! Coisa alguma se torna amigo que julgamos ter morrido, limitou-se a /partir para
aborrecida mais depressa do que a dor; uma dor recente lá à nossa frente!
suscita quem a console e provoca a simpatia dos outros,
enquanto uma dor demasiado prolongada incorre no ridí-
culo, e com razão, porquanto ou é fingida ou é idiota!
64
Ontem estiveste na nossa companhia. "Apenas ontem?" 1
Não te queixes: repara que eu escrevi "na nossa compa-
2
nhia", o que significa que na minha estás tu sempre! Vie-
V. Ovídio, Fast., I, 35-6: "Durante idêntico espaço de tempo ( = 10 meses)
deve a viúva manter na sua casa os sinais de luto após o funeral do marido"; cf. ram visitar-me alguns amigos, e aumentou a fumaça na
Id., ibid., III, 134. minha chaminé: não daquelas fumaradas que se evolam da

224 225
cozinha dos ricaços para grande susto dos bombeiros, mas podemos aceder pelo exercício da vontade. A própria vir- 6
uma fumaça modesta apenas para dizer que havia convi- rude ser-te-á do maior auxílio, revelando-se a ti como
2 dados em casa. A conversa foi variada, como é habitual objecto tanto de contemplação como de esperança. Eu por
quando há amigos a jantar, passando de assunto para mim costumo dedicar bastante tempo à contemplação da
assunto sem tratar exaustivamente nenhuma questão. A sabedoria; olho-a com os mesmos olhos de embevecimento
terminar leu-se um livro de Quinto Sêxtio, o pai - grande com que contemplo de vez em quando o universo, isto é,
3 homem, podes crer, e estóico, embora ele o negue. Gran- sempre como se fosse a primeira vez. Venero por igual as 7
des deuses, que energia, que força de ânimo este homem descobertas da filosofia e os seus descobridores; abeiro-me
tem! O mesmo não poderás dizer de todos os filósofos: delas feliz como de uma herança de muitas gerações. Foi
alguns há, e de nomeada, cujos escritos não têm qualquer para mim que tais descobertas foram feitas, para mim que
vigor. Propõem teses, discutem, envolvem-se em sofismas, elas foram elaboradas. Façamos, pois, como o bom chefe
mas não transmitem energia porque eles próprios a não de família, e aumentemos o património que nos foi
têm. Mas ao ler Sêxtio dá vontade de dizer: "Que vida, transmitido! Possa a herança que vou transmitir aos vin-
que vigor, que liberdade! Este homem está para além da douros ser maior do que a que recebi. Há muito trabalho
condição humana; ao terminar a leitura vou cheio de ainda a fazer, haverá sempre muito; nem mesmo a alguém
4 intensa confiança em mim mesmo!" Aqui tens o estado que nasça daqui a mil séculos faltará ocasião para acres-
de espírito com que fico ao lê-lo, apetece-me desafiar todas centar ainda esse património. Mas, admitindo que os anti- 8
as eventualidades, apetece-me gritar: "Porque esperas, for- gos já descobriram tudo, no uso, no conhecimento, na
tuna? Avança, estou pronto para o combate!" O meu ânimo organização dessas descobertas haverá ainda assim uma
fica idêntico ao do homem que pretende pôr-se à prova, parte de novidade. Imagina, por exemplo, que nos foi
que busca demonstrar a sua coragem transmitida a receita para a cufa das doenças dos olhos:
não será necessário procurar novas fórmulas, mas haverá
e anseia por que entre a caça inofensiva surja,
que adequar os medicamentos conhecidos à doença · e à
escumante,
3 situação concreta. Este remédio trata a vista inflamada;
um javali, ou que um /uivo leão desça da montanha.
aquele faz diminuir o inchaço das pálpebras; este outro
5 Apetece-me encontrar um obstáculo a vencer, uma difi- evita que os olhos purguem subitamente; aquele além
culdade a superar valorosamente. Sêxtio, efectivamente, tem aumenta a acuidade da visão: será necessário preparar os
uma qualidade extraordinária: ser capaz de mostrar toda a ingredientes, escolher o momento oportuno para a aplica-
grandeza que há na felicidade mas não tirar toda a espe- ção, determinar a posologia em função de cada caso. Ora
rança de alcançá-la. Lendo-o, saberás que a felicidade os antigos inventaram os remédios adequados aos males
autêntica se situa a um nível elevadíssimo, mas a que da alma, mas cabe-nos a nós averiguar o modo e a oca-
sião em que eles devem ser aplicados. Os nossos predeces- 9
' Vergílio, Aen., IV, 158-9. sores fizeram muito, mas não fizeram tudo. Devemos dar-

226 227
-lhes a nossa admiração, prestar-lhes culto como se fossem mos-te para nosso árbitro; vais encontrar mais trabalho
deuses! Porque não hei-de eu ter em minha casa os bustos do que esperas, pois a matéria em discussão apresenta-se
desses grandes homens como formas de estimular a alma? sob três formas 4•
Porque não celebrar os seus aniversários? Porque não Como sabes, os nossos estóicos afirmam que na natu-
evocá-los continuamente, como prova do respeito que lhes reza há dois princípios dos quais tudo o mais deriva: a
dedico? A mesma veneração que devo aos meus mestres causa e a matéria 5. A matéria jaz inerte, apta a tomar
devo também a esses grandes mestres do género humano, todas as formas, mas imóvel para sempre se ninguém a
10 qual fonte donde brotou a iniciação ao supremo bem! Se trabalhar; a causa, porém, que é como quem diz, a razão,
eu deparar com um cônsul ou um pretor prestar-lhes-ei as dá forma à matéria, transforma-a naquilo que quer, realiza
mostras de respeito que é usual prestar aos magistrados: a partir dela vários tipos de produtos.
saltarei do cavalo, descobrirei a cabeça, ceder-lhes-ei a pas- É, portanto, necessário que haja um princípio do qual 3
sagem. E quanto aos dois Catões, a Lélio-o-Sábio, a Sócra- tudo deriva, um outro, que a cada coisa dê forma: este é a
tes, e também a Platão, a Zenão, a Cleantes - ser-me-á causa, aquele a matéria. Toda a arte é imitação da natu-
possível pensar neles sem as maiores provas de respeito e reza, pelo que se pode aplicar o que eu disse em sentido
admiração? A todos estes homens eu venero, e sinto-me genérico às actividades próprias do homem. Uma estátua
pleno de entusiasmo sempre que penso em tão grandiosos implica que haja uma matéria posta à disposição do artista,
nomes! mas exige também um artista que dê forma a essa maté-
ria. Numa estátua, portanto, a matéria é o bronze, a causa
65 é o escultor. Todas as outras coisas são regidas pela mesma
condição, todas exigem algo capaz de tomar uma forma e
1 O meu dia de ontem foi repartido entre mim e a alguém capaz de produzir essa forma.
falta de saúde: a parte da manhã coube-lhe a ela, de tarde Os estóicos são de opinião que a causa é apenas uma: 4
pude dispor de mim próprio. Para começar experimentei o agente. Aristóteles entende que a causa se pode conside-
as minhas forças através da leitura; vendo que aguenta- rar de três pontos de vista. Diz ele: "A primeira causa é a
vam, atrevi-me a exigir mais delas, ou melhor, a deixá-las própria matéria, sem a qual nada pode ser produzido; a
à vontade. Escrevi alguma coisa, com mais cuidado mesmo segunda é o artífice; a terceira é a forma imposta a cada
do que é meu costume, quando luto com um assunto difí- objecto, por exemplo, a uma estátua." A esta última chama
cil em que não quero dar-me por vencido, até que apare-
ceram uns amigos que me queriam obrigar a, doente como
estava, não abusar de mim mesmo. 1
· Isto é, são sucessivamente discutidas as teses do estoicismo (§§ 2-3 ), de
2 A escrita cedeu lugar à conversa, e é precisamente do Aristóteles (§§ 4-6) e de Platão (§§ 7-10) sobre o problema das causas.
problema ainda em litígio que eu te vou dar parte. Elege- ' V. S. V. F., I, 85 (=II, 300), II, 310.

228 229
Aristóteles t:f ôoç - "Mas a estas" - continua ele - "há as coisas tem-nos a divindade dentro de si mesma, e igual-
que acrescentar uma quarta, que é a finalidade da obra mente abarca na sua mente quer a quantidade quer a
acabada." 6 modalidade de cada futuro objecto; a divindade está repleta
5 Já te vou explicar o que isto significa. O bronze é a daquelas figuras - imortais, imutáveis, infatigáveis a que
primeira causa da estátua, pois esta nunca poderia ter sido Platão chama "as ideias". Assim, por exemplo, os homens
feita se não existisse algo capaz de ser fundido e moldado. vão morrendo, mas a humanidade em si, o modelo segundo
A segunda causa é o artista, porquanto o ·bronze nunca o qual o homem é formado, permanece inalterável por
tomaria a forma de estátua sem ser trabalhado por mãos
entre o sofrimento e a morte dos homens.
hábeis. A terceira causa é a forma já que uma estátua não
Segundo Platão, são, portanto, cinco as causas: matéria, 8
poderia ser rotulada de "doryphoros" ou de "diadumenos" 7
agente, forma, modelo, finalidade; delas resulta o produto
se não apresentasse expressamente as respectivas caracte-
rísticas. A quarta causa é a finalidade com que a estátua acabado. Assim numa estátua (já que usei este exemplo
foi feita; se não houvesse uma finalidade não haveria está- logo de início) a matéria é o bronze, o agente é o artista,
6 tua. E o que se entende por finalidade? É o propósito que a forma é o que o artista pretende .representar, o modelo
moveu o artista, o fim que procurou atingir: pode ser o é a ideia geral que ele deseja imitar, a finalidade é o pro-
dinheiro, se fez a estátua para a vender, a glória, se traba- pósito que teve em vista; o produto resultante destas cau-
lhou para obter fama, o sentimento religioso, se a fez sas é a própria estátua.
para a doar a um templo. Entre as causas de uma obra Segundo Platão o universo igualmente deriva destas 9
deve, portanto, figurar aquilo que a motivou, a menos que causas. Há um agente - a divindade; uma matéria-prima
se entenda que não é causa da obra aquele elemento sem - a matéria propriamente dita;, uma forma, que é a dis-
o qual ela nunca teria sido feita. posição ordenada do rnundo tal como o contemplamos;
7 A éstas causas Platão acrescenta uma quinta, o mo- um modelo que é a grandiosidade e beleza do universo tal
delo, a que ele dá o nome de "ideia" (iôfo)8. O modelo é
como a divindade a concebeu e realizou; uma finalidade
aquela forma que o artista procurou reproduzir quando
- o propósito da criação. Se queres saber qual o propó- 10
levou a cabo o seu projecto. É irrelevante se ele tem fora
de si um modelo para o qual olhar, ou se apenas tem na sito da divindade, dir-te-ei: a bondade, pois é com inteira
mente um modelo por ele concebido. Os modelos de todas razão que Platão afirma: "O motivo por que a divindade
criou o mundo foi a sua bondade; dada a sua bondade,
tudo o que é bom é digno do seu apreço; por isso criou o
" Aristóteles, Metafisica, IV, 1013 a 24-35. - Sobre o Efooç (efdos) cf. mundo tão bom quanto lhe foi possível." 9
supra carta 58, 20 ss.
7
Representações plásticas de um homem segurando uma lança (<'iopÍJ<popoç),
ou com a cabeça cingida por uma fita ou diadema (8ux80ÍJµE11oç) .
9
" Cf. supra carta 58, 19. Cf. Platão, Timeu, 29 d-e.

230 231
Diz agora de tua justiça qual a opinião que te parece que seja causa, mas não causa eficiente, e sim, apenas,
a mais verosímil, não a mais verdadeira, pois esta questão interveniente. E causas deste tipo são incontáveis; nós
está tão acima de nós como a própria verdade. procuramos, porém, a causa em geral. Quando os dois
11 Esta multidão de causas postulada por Aristóteles e pensadores afirmam que o universo, enquanto obra total e
Platão ou é demasiado vasta, ou é demasiado restrita. De
consumada, é uma causa, não demonstraram a sua habi-
facto, se eles apontam como causa tudo o que, uma vez
tual perspicácia; na realidade, a obra e a causa da obra
retirado, torna impossível a obra, a sua enumeração é res-
estão longe de ser a mesma coisa.
trita. Haverá que pôr entre as causas o tempo, pois nada
Expõe a tua opinião ou então, o que será mais fácil 15
se pode fazer senão no tempo. Haverá que pôr o espaço,
pois se não houver um lugar onde qualquer coisa surja, para ti neste tipo de matérias, diz que não és capaz e
nada surgirá. Haverá que pôr o movimento, uma vez que manda-me prosseguir a mim. Dirás tu: "Mas que prazer é
sem este nada nasce e nada morre; não há arte alguma, o teu em perder tempo com tais questiúnculas que te não
não há transformação alguma sem movimento 10• libertam de nenhuma paixão nem de nenhum desejo?"
12 O que nós procuramos, porém, é a causa primeira, a A verdade é que eu me ocupo de temas mais válidos 13,
causa em geral. Esta causa deve ser simples pois a maté- que trato daquilo que me tranquiliza o ânimo, que me
ria também é simples. 11 • A causa que procuramos apenas observo a mim mesmo antes de observar o universo. Mas 16
pode ser esta: a razão criadora, que o mesmo é dizer, a mesmo nestas "questiúnculas" eu não perco tempo, como
divindade. Todas essas outras que foram enumeradas não tu julgas. Se nós não as dividirmos até ao infinito ao
ponto de tombar numa inútil subtileza, elas elevam ' e
são causas múltiplas e individuais: estão dependentes de
13 uma única, a causa eficiente 12• Diz-se que a forma é uma sublimam o espírito, o qual, como que oprimido por um
causa! Mas ela é dada à obra pelo artista: é uma parte da pesado fardo, deseja libertar-se e ' regressar aos elementos
causa, não a causa. Também o modelo (ideia) não é causa, de que já fez parte. De facto este nosso corpo é para o
mas sim um ínstrumento necessário à causa. O modelo é espírito uma carga e um tormento; sob o seu peso o espí-
tão necessário ao artista como o cinzel ou como a lima: o rito tortura-se, está aprisionado, a menos que dele se
artista precisa deles para trabalhar, mas nem por isso eles aproxime a filosofia para o incitar a alçar-se à contempla-
são partes da sua arte, nem, portanto, da causa ção da natureza, a trocar o mundo terreno pelo mundo
14 Outros dirão: "A finalidade do artista, aquilo que o divino. Esta a liberdade do espírito, estes os seus voos:
motivou a realizar a obra, essa é que é a causa." Admito subtrair-se ocasionalmente à prisão e ir refazer as forças
no firmamento!

10
S. V. F., II, 338.
ll a. S. V. F., II 323. 13 p asso corrupto, obºiecto de vanadas
. propostas de saneamento. A tradução
12
V. S. V. F., I, 85; II, 347, 348. corresponde à conjectura potiora de Hense (em vez do absurdo peiora dos mss.).

232 19 233
17 Tal qual como os operanos especializados num traba- das leis da humana servidão? Queres proibir-me o acesso
lho minucioso e fatigante para os olhos, quer pela atenção ao firmamento, por outras palavras, pretendes que eu viva
requerida, quer pela luz deficiente e fraca em que laboram, com os olhos no chão? 14
vêm de vez em quando à rua e, passeando por qualquer Eu sou algo mais, eu nasci para algo mais do que 21
lugar adequado ao lazer, deleitam os olhos com a luz do para ser escravo do meu corpo, a quem não tenho em
maior conta do que a uma cadeia em torno à minha
dia, assim também o espírito, encerrado nesta morada
liberdade. Este corpo, oponho-o como barreira aos golpes
obscura e triste, procura, sempre que pode, o ar livre e
da fortuna, e não consinto que através dele algum golpe
repousa através da contemplação da natureza. chegue até mim. Se algo em mim pode sofrer ataques é o
18 Quer o filósofo, quer o candidato a filósofo, estão corpo; mas neste desconfortável domicílio habita um espí-
colados ao seu corpo, mas a melhor parte de si mesmo rito livre. Nunca esta carne me compelirá ao medo, ou a 22
está liberta e dirige as suas meditações para as alturas. Tal alguma hipocrisia indigna de um homem de bem; nunca
como um soldado arregimentado, considera a própria vida serei levado a mentir por atenção a este frágil corpo.
como um serviço a cumprir; o seu carácter é tal que não Quando chegar a altura romperei a minha ligação com
sente pela vida nem amor nem ódio, e sofre a sua condi- ele. E mesmo agora, enquanto estamos colados um ao
ção de mortal embora sabendo que existe uma existência outro, não somos companheiros com direitos iguais: o
superior. espírito arroga para si todos os direitos. O desprezo pelo
19 Pretendes proibir-me a contemplação da natureza e próprio corpo é a certeza da liberdade.
afastar-me do todo para me limitares a uma parte? Então Voltemos, porém, ao assunto. À nossa liberdade impor- 23
ta imenso investigar as questões acima referidas, porquanto
eu não hei-de querer saber como começou todo o uni-
tudo no mundo consta de matéria e de espírito divino. A
verso, quem deu forma a cada coisa, quem separou todos
divindade é que regula tudo, e tudo a rodeia e segue como
os seres antes misturados indistintamente no meio da
a um guia ou um chefe. O agente; ou seja, a divindade, é
matéria inerte? Não hei-de querer saber quem foi o artí-
mais poderoso e válido do que a matéria submetida à
fice deste mundo, qual o processo por que tamanha mag-
acção da divindade. Ora lugar idêntico ao que a divindade 24
nitude chegou a ser regulada pelas leis do cosmos? Quem
ocupa no universo, ocupa no homem o espírito; o que no
reuniu o que estava disperso e distinguiu o que estava
universo é a matéria, é em nós o corpo. Sirva, portanto, o
amalgamado, quem deu rosto à matéria que jazia informe?
inferior ao superior; sejamos fortes diante do acaso; não
20 Donde vem toda esta luz? É fogo, ou algo mais luminoso
receemos as injúrias, as feridas, as cadeias, a miséria. O
do que o fogo? Eu não hei-de investigar estas questões?
Hei-de ignorar donde provim, se o mundo apenas uma
vez o vejo ou se nascerei mais vezes? E para onde irei 14
Sobre a importância que esta classe de problemas revestia para Séneca
depois? Qual o lugar que acolherá a minha alma liberta veja-se o prefácio ao livro I das Naturales Quaestiones.

234 235
que é a morte? Ou é termo, ou é passagem 15 • Não receio A virtude, de facto, passa bem sem ornamentos, antes
chegar ao termo, pois ficarei no mesmo estado de quem tem em si mesma a sua beleza, além de dar formosura ao
nunca nasceu; 16 também não receio a passagem, pois em corpo em que reside. O certo é que comecei a ver com
outros olhos o meu amigo Clarano: até me pareceu belo,
lugar algum estarei tão limitado como aqui!
e tão escorreito de corpo como de alma. De uma chou- 3
pana pode sair um grande homem, num pobre corpo dis-
forme e franzino pode morar uma alma grande e bela.
66
Creio mesmo que a natureza se compraz em produzir
1 Depois de tantos anos sem o ver reencontrei o meu homens assim como prova de que a virtude pode nascer
antigo condiscípulo Clarano. Não esperas, julgo, que acres- em qualquer lugar. E se pudesse criar almas puras des-
providas de corpo, decerto o faria; agora faz muito mais
cente: "Está um velho!" O facto é que o homem conserva
do que isso: cria homens fisicamente deficientes mas nem
o espírito vivo e alerta, em contraste com a sua debilidade
por isso menos capazes de vencer todos os obstáculos.
física. A natureza mostrou-se injusta ao colocar um tal
Creio bem que Clarano nasceu como exemplo, p~ra que 4
ânimo em corpo tão débil; a menos que a sua intenção todos pudéssemos ver que a alma não sofre da deformi-
fosse precisamente mostrar-nos como a presença de um dade do corpo, antes é este que se adorna com a beleza
ânimo vigoroso e feliz se acomoda bem em qualquer corpo. da alma!
Clarano triunfou de todas as suas deficiências e, come- Foram bem poucos os dias em que estivemos juntos
çando por não dar importância a si próprio, acabou por mas ainda assim chegaram para termos várias conversas;
2 ser capaz de não dar importância a coisa alguma. Parece- de vez em quando irei recordando algumas, de cujo con-
-me, portanto, que se ·enganou o poeta ao dizer que teúdo te darei parte. No primeiro dia debatemos como é 5
que podem ser iguais todos os bens sendo tríplice a res-
mais grata é a virtude quando habita um corpo
pectiva natureza 18• Na opinião da nossa escola alguns bens
formoso 17 • são de primeira classe, tais como a alegria, a paz, a pre-
15
servação da pátria; outros, decorrentes de uma situação
Não deverá ver-se aqui uma indecisão de Séneca ou um mal entendido
eclectismo, mas apenas a obediência a um princípio da pedagogia estóica que, ingrata, são de segunda classe, tais como a resistência à
desde Crisipo, aconselhava a não contrariar frontalmente as convicções prévias tortura ou a firmeza de ânimo durante uma doença grave.
dos discípulos, mas antes a, partindo destas, e reinterpretando-as, levá-los gra: Os primeiros bens que referi serão de imediato desejados
dualmente às posições da Escola (v. I. Hadot, Seneca und die griechisch-romische
Trttdition der Seelenleitung, Berlin, 1965, p. 83).
por nós; os outros, somente se a tal formos forçados. Há
16
A mesma ideia quase pelas mesmas palavras nas Troianas, 407-8: "Que- ainda os bens de terceira classe, tais como a modéstia das
res saber onde ficarás depois da morre? Lá onde está o que ainda não nasceu!"
17
Vergílio, Aen., V, 334, onde, aliás, a palavra uirtus não tem o sentido de
virtude (que escrevemos na tradução do verso por ser assim que Séneca a
interpreta), mas sim o de valor, coragem física.
18
Cf. S. V. F., m, 96, 97, 97 a, 106, 107, 108.

236 237
atitudes, a serenidade e a honestidade do rosto, os gestos de admiração. A sua força e grandeza só não pode elevar-
6 adequados a wna pessoa de bom senso. Como é então -se mais alto porque o que é supremo não admite acrés-
possível a igualdade entre estes tipos de bens, quando cimo: nada é mais recto do que a própria rectidão, nada
alguns são objecto de aspiração enquanto outros nos des- mais verdadeiro do que a verdade, mais moderado do que
pertam repulsa? a moderação.
Se pretendermos estabelecer wna hierarquia entre os Toda a virtude assenta na justa medida, e a justa 9
bens, comecemos por considerar o swno bem e indagar medida baseia-se em proporções determinadas. A firmeza
em que consiste ele. Uma alma que contempla a verdade, não pode sequer tentar elevar-se, e o mesmo se dirá da
que atribui valor às coisas de acordo com a natureza e confiança, da verdade, da lealdade. Pode acrescentar-se
não com a opinião comwn, que se insere na totalidade do algwna coisa àquilo que é perfeito ? Nada, de outro modo
universo e observa contemplativamente todos os seus movi- não seria perfeito, pois algo se lhe acrescentou. Nada, por
mentos, que dá igual atenção ao pensamento e à acção, conseguinte, se pode adicionar à virtude, pois se tal fosse
uma alma grande e enérgica, invicta por igual na desven- possível era porque algo lhe faltava. Também a honesti-
tura e na felicidade e em caso algwn se submetendo à dade não é passível de qualquer acréscimo, pois o que é a
fortuna, wna alma situada acima de todas as contingências honestidade decorre do raciocínio acima exposto. E quanto
e eventualidades, wna alma bela e equilibrada em doçura e ao mais, o respeito pelas normas sociais, a justiça, a lega-
energia, wna alma sã, íntegra, imperturbável, intrépida, lidade, não achas que são conceitos do mesmo tipo, defi-
wna alma que força algwna pode vergar, que circunstância nidos por critérios igualmente rigorosos ? Para wna coisa
algwna pode envaidecer ou deprimir - wna tal alma é a ser susceptível de acréscimo essa coisa tem de ser imper-
7 própria personificação da virtude. Este seria o aspecto da feita. Todo o bem obedece a esta mesma lei: o interesse 10
virtude se se apresentasse sob wn único aspecto, se se privado e o interesse público são tão dissociáveis como,
mostrasse toda de wna só vez. Na realidade são diversas que sei eu?, aquilo que merece o louvor se não distingue
as suas aparências, conforme a variedade de situações e do que merece o nosso esforço. Por conseguinte, todas as
acções que a vida nos apresenta: mas a virtude em si, não virtudes são tão iguais entre si como todas as realizações
é maior nem menor. De facto, nem o supremo bem pode da virtude e todos os homens dotados dessas virtudes.
sofrer decréscimo, nem a virtude pode recuar de wn passo; As virtudes das plantas e dos animais, como mortais 11
pode, isso sim, é manifestar-se sob forma de diversas qua- que são, igualmente são frágeis, transitórias e incertas;
8 !idades adequadas às circunstâncias em que vai actuar. Em nascem e extinguem-se, e por isso não podem ser uni-
tudo quanto toca, porém, imprime indelevelmente a sua formemente avaliadas. As virtudes humanas, contudo,
imagem; dá wna nova forma à nossa conduta, às nossas medem-se por wn único critério, e esse critério é a razão,
relações de amizade, à nossa vida familiar na qual parti- que em si mesma é perfeita e livre de contingências.
cipa como factor de harmonia. Tudo o que lhe sai das Nada é mais divino do que o divino, mais celeste do que
mãos se transforma em objecto digno de amor, de culto, o celeste. Tudo quanto é mortal pode decrescer e ruir, 12

238 239
gastar-se e aumentar, esvaziar-se e encher-se; na sua tão admitem o maxtmo de polaridade são, em si mesmas,
inconstante sorte reina a desigualdade. A natureza do divi- indiferentes; em ambos os pólos ocorre a virtude. A vir- 15
no, todavia, é apenas uma. E a razão outra coisa não é tude não varia em função das circunstâncias: nem as duras
senão uma parcela do espírito divino inserida no corpo do e difíceis a tornam inferior, nem as agradáveis e felizes a
homem; se a razão é divina, e se todo o bem é insepará- tornam superior; conclui-se logicamente daqui que a vir-
vel da razão, então todo o bem é divino. Mais ainda: tude é sempre igual. Sejam quais forem as condições em
entre as coisas divinas não há qualquer distinção, logo que a virtude tem de agir, ela agirá com igual rectidão,
também a não há entre os bens. Por conseguinte são bens igual discernimento, igual pureza de intenções; tais bens
iguais entre si a alegria, por um lado, e, por outro, a são, por conseguinte, iguais, pois denotam um estado que
resistência forte e tenaz à tortura. Em ambos os casos se não admite superação, quer no modo de viver a alegria,
quer no modo de enfrentar os tormentos, e quando duas
verifica a mesma grandeza de alma, embora descontraída
coisas são impossíveis de ser superadas - é porque são
13 e calma no primeiro, lutadora e tenaz no segundo. Ou
iguais. De facto, se algum factor exterior à virtude fosse 16
será que tu vês alguma diferença entre a virtude do valo-
susceptível de a diminuir ou de a acrescentar, o único bem
roso conquistador da fortaleza inimiga e a do soldado que
deixaria de consistir no bem moral. Se se admitir tal pro-
obstinadamente resiste ao cerco? Houve grandeza em posição, todo o conceito de bem moral cai por terra. E
Cipião quando pôs cerco a Numância e o apertou de tal dir-te-ei porquê: porque não há bem moral numa acção
forma que obrigou homens até então invencíveis à auto- praticada contra vontade ou sob coacção; todo o bem moral
destruição; mas houve grandeza também no ânimo dos tem de ser voluntário. Imiscua-se nele uma dose de pre-
sitiados ao perceberem que não está realmente cercado guiça, de censura, de hesitação, de receio - e o bem
quem é livre de morrer, e, por isso mesmo, morre abra- moral perderá o que tem de melhor; a satisfação de si
çado à liberdade. Semelhantemente são iguais entre si os próprio. Não pode haver bem moral onde não há liber-
restantes estados de alma - tranquilidade, simplicidade, dade; medo é sinónimo de escravatura! O bem moral goza 17
liberalidade, firmeza, equanimidade, tolerância - pois a de plena segurança e tranquilidade; se se retrai, ou se
todos eles está subjacente como factor comum a virtude, a queixa, se julga como um mal aquilo que vai fazer, isso
qual proporciona à alma a rectidão e a constância de pro- significa que se encontra perturbado e se debate em pro-
pósitos. funda contradição, atraído por um lado pela aparência do
14 rrQue dizes? não há qualquer diferença entre a alegria bem, retraído por outro ante a suspeita do mal. Por esta
e a inflexível resistência à dor?" Não há nenhuma, no que razão, quem se propõe agir com honestidade nunca deve
concerne às duas formas de virtude em si; imensa, no que encarar os obstáculos que se lhe deparam como um mal,
toca às circunstâncias em que uma e outra virtude se quando muito como um transtorno, e praticar o seu acto
manifestam. É evidente que no primeiro caso estamos livre e voluntariamente. O bem moral nunca obedece a
perante um natural abrandamento da tensão anímica e no ordens e coacções, é um estado puro, não contaminado
segundo, perante uma dor antinatural. As situações que por qualquer mal.

240 241
18 Conheço a objecção que neste momento se me poderá que deve fazer, e não ao que terá de sofrer, tão confiante
fazer: "Tu pretendes convencer-nos de que não há qual- no seu honesto propósito como o estaria ante um outro
quer diferença entre viver com alegria ou jazer na mesa homem de bem; a seus olhos o seu acto aparecerá como
da tortura até o torcionário ficar cansado?!" Eu podería verdadeiramente útil, seguro, bem sucedido. Uma acção
responder que, segundo o próprio Epicuro, o sábio, mesmo honesta, ainda que dolorosa e difícil, valerá tanto como
que o estivessem assando no touro de Fálaris, gritaria: um homem de bem, ainda que pobre, exilado ou doente!
"Está-se bem aqui! Não sinto nada!" 19 Porquê então essa Compara, por exemplo, por um lado um homem de bem 22
admiração quando eu digo que são bens iguais a compa- que seja rico, por outro um que nada possua além dos
rência a um festim ou a indefessa resistência à tortura se seus bens interiores: ambos merecerão por igual o título
até Epicuro afirma "que se está bem na grelha", o que é de "homens de bem", embora sejam diferentes as suas
19 ainda mais inacreditável? Eu afirmo, no entanto, que há condições de fortuna. Conforme já atrás disse, idêntico
uma enorme diferença entre a alegria e a dor; se houver juízo é aplicável tanto às coisas como aos homens: a vir-
possibilidade de escolha, eu optarei pela primeira e evita- tude tanto é louvável num corpo forte e desenvolto como
rei a segunda, dado que aquela é natural, esta é antinatu- num enfermiço e deficiente. Por conseguinte, não deverás 23
ral. Segundo este critério a diferença entre ambas é muito estimar mais a tua virtude se a fortuna te permitir pôr ao
considerável: quando se trata da virtud~, porém, ambas se seu serviço um corpo inteiramente válido do que se tive-
situam no mesmo plano, quer a via da alegria, quer a da res alguma deficiência física: se assim não fosse, seria como
20 tristeza. Contratempos, situações dolorosas, qualquer espé- se nós estivéssemos a ajuizar do senhor a partir do aspecto
cie de transtorno, enfim, não têm a mínima importância, dos escravos! Tudo quanto cai sob o domínio do acaso -
tudo a virtude derrubará. Do mesmo modo que a luz do dinheiro, corpo, honras - merece tratamento de escravo,
sol eclipsa as estrelas mais pequenas, também a virtude tudo são bens efémeros, transitórios, perecíveis, a sua posse
elimina e arrasa sob a sua própria grandeza tudo quanto é incerta; pelo contrário, as obras da virtude são livres e
seja dor, sofrimento, insulto; onde brilha a virtude, tudo indestrutíveis, nem mais desejáveis se formos bem trata-
quanto sem ela é visível fica eclipsado, ao chocar contra a dos pela fortuna, nem menos se sujeitos a quaisquer difi-
virtude todos os incómodos têm tanto significado como culdades materiais. Assim como procedemos na escolha 24
21 uma nuvem vertendo chuva sobre o mar! E para te certi- das nossas amizades, assim devemos agir em relação às
ficares de que assim é, vê como o homem de bem se coisas que desejamos. Tu, creio, não estimarias mais um
afoitará sem hesitar a qualquer bela acção: ainda que diante homem de bem que fosse rico do que um que fosse
dele se erga o carrasco, se erga o torcionário e a sua pobre, nem um forte e musculoso do que outro magro e
fogueira, o homem de bem avançará, atento apenas ao débil. Pela mesma ordem de ideias, não te sentirás de cer-
teza mais atraído e solicitado por uma situação aprazível e
tranquila do que por uma que te exija esforço e energia.
19
Epicuro, fr. 601 Usener. Nesta última hipótese, deverias, logicamente, de entre dois 25

242 243
homens de bem, ter mais apreço por aquele que estivesse recção, nada é mais plano do que o plano. De duas coisas
lavado e perfumado do que pelo que estivesse coberto de iguais a uma terceira tu não poderás dizer que uma delas
poeira e de cabelo desgrenhado! E depois passarias a pre- é "mais igual" do que a outra! Por isso mesmo nada pode
ferir o homem fisicamente válido e robusto ao deficiente haver de mais moral do que a própria moralidade. Se, 29
ou ao zarolho; e gradualmente acabarias por te tornar portanto, a natureza de todas as virtudes é idêntica, os
esquisito ao ponto de entre duas pessoas igualmente justas três tipos de bens situam-se em pé de igualdade. Isto é:
e sensatas, escolheres aquela que tivesse uma cabeleira alegrar-se com moderação e sofrer com moderação estão
ampla e bem frisada!... Ora quando em ambos os casos a no mesmo plano de igualdade. O estado de alegria não é
virtude é idêntica não há que comparar as desigualdades superior à firmeza de ânimo que, sob a tortura, sufoca os
que em outros aspectos possa haver, pois todas as outras gemidos: o primeiro tipo de bens é desejável, o segundo
26 qualidades são meramente acessórias, não essenciais. Have- provoca a nossa admiração, mas ambos em si mesmos
rá, porventura, alguém que exerça uma tão injusta discri- permanecem iguais, portanto aquilo que eventualmente
minação entre a família a ponto de ter mais amor por existe de desagradável é dominado pela força, imensamente
um filho do que pelo outro, só porque um é são e o maior, do bem. Se alguém considerar estas classes de bens 30
outro doente, porque um é alto e desempenado e o outro como distintas é porque está desviando a atenção das vir-
baixo e atarracado? Os animais não fazem distinções entre tudes em si e considerando as circunstâncias exteriores. Os
as crias e deitam-se para dar a mamada por igual a todas bens autênticos têm o mesmo peso, o mesmo volume; os
elas; também as aves partilham o alimento por igual entre falsos, pelo contrário, contêm em si muito de vazio; por
os filhotes. Ulisses regressa aos rochedos da sua Ítaca isto mesmo estes se apresentam à vista como atraentes e
como Agamémnon às altivas muralhas de Micenas. Nin- valiosos mas, se forem devidamente sopesados, verificar-
guém ama a pátria por ser grande, mas por ser sua! A -se-á como são enganosos. É esta a verdade, caro Lucílio: 31
27 que propósito vem tudo isto? Quero que fiques sabendo aquilo que a justa razão nos recomenda é sólido e perma-
que a virtude encara com os mesmos olhos as suas obras, nente, dá-nos firmeza ao ânimo e conserva-o para ·sempre
como se fossem suas crias, que tem a mesma complacên- elevado. Pelo contrário, aquilo que inconscientemente a
cia em relação a todas, embora dê mais atenção àquelas opinião vulgar considera como bom só satisfaz quem se
que exigem mais esforço; afinal, não é verdade que tam- contenta com o supérfluo. Mais ainda: aquilo que as pes-
bém o amor dos pais é mais desvelado pelos filhos que soas temem enche os espíritos de receios e, tal como os
maiores cuidados inspiram? Não quer isto dizer que a vir- animais, perturba-os com uma aparência de perigo. Con- 32
tude tenha mais apreço pelas obras que deparam com sequentemente é sem motivo que ambas estas situações
oposição e violência, mas sim que, à semelhança dos bons confundem e atormentam a alma: nem a primeira merece
pais, as ampara e protege mais cuidadosamente. causar alegria, nem a segunda provocar receio. Somente a
28 Por que razão um bem não é superior a outro? Pela razão permanece inalterável e firme nos seus juízos, por-
mesma razão por que nada é mais correcto do que a cor- quanto não se submete aos sentidos, antes os submete ao

244 245
seu domínio. A razão é igual à razão, tal como a rectidão considera sem valor tudo quanto lhe é alheio e exterior, e
é igual a si mesma; por conseguinte toda a virtude é igual àquelas coisas que em si mesmas não são bens nem são
à virtude, pois a virtude outra coisa não é senão a razão males julga-as como acessórios sem a mínima importân-
reera. Todas as virtudes são formas da razão; são formas cia, pois para a razão todo o bem está situado na alma.
da razão se forem todas reeras e se forem reeras são todas Há, não obstante, certos bens que a razão considera de 36
33 iguais. Conforme for a razão, assim serão as acções; logo primeira ordem e que procura expressamente alcançar, tais
todas as acções são iguais, pois se todas forem idênticas à como a vitória, os filhos honestos, o bem estar da pátria;
razão todas serão iguais entre si. Afirmo que todas as outros, serão de segunda ordem - aqueles que só ocor-
acções são iguais entre si na medida em que se confor- rem em circunstâncias adversas, tal como a coragem de
mam com a moral e a rectidão; quanto ao resto poderão suportar a doença, a tortura, o exílio; outros bens ainda
ser muito distintas, de acordo com as circunstâncias, dado são de valor intermédio, aqueles dos quais se não pode
que umas terão maior e outras menor alcance, umas serão dizer que sejam propriamente conformes ou antagónicos à
mais brilhantes e outras menos, umas far-se-ão sentir sobre natureza, tais como caminhar com gravidade ou estar sen-
muitas e outras sobre poucas pessoas. Em todas elas, tado com decência. De facto, estar sentado não é menos
porém, aquilo que têm de melhor - a sua perfeição conforme à natureza do que estar em pé ou andar. Quanto 37
34 moral - é idêntico. Semelhantemente , todos os homens aos dois primeiros tipos de bens superiores também são
de bem são iguais na medida em que são homens de · distintos entre si: o primeiro é conforme com a natureza
bem, embora haja entre eles diferenças de idade - uns - sentir satisfação com o afecto dos filhos ou o bem
são velhos, outros jovens - , de constituição física - uns estar da pátria; o segundo é contrário à natureza -
são belos, outros feios - , de condições de vida - uns são suportar valorosamente os tormentos ou sofrer a sede
ricos, outros pobres, um goza de favor e poder e é conhe- provocada pela febre que nos devora as entranhas. "Que 38
cido em várias cidades e nações, outro vive retirado e des- estás dizendo? Então há algum bem que seja contrário à
conhecido da grande massa. Todos, porém, são iguais na natureza?" De modo algum! Pode sim, é dar-se que as
sua condição de homens de bem. circunstâncias das quais decorre um determinado bem
35 A mera sensibilidade não é capaz de aimzar sobre o sejam, elas, contrárias à natureza. Ser ferido, ser consu-
bem e o mal; é incapaz de destrinçar o que é útil do que mido numa fogueira, sofrer de uma doença grave - tudo
é inútil. Não consegue formular uma opinião senão quando isto é contrário à natureza; conservar nestas circunstâncias
é posta perante uma situação concreta; não sabe prever o a coragem e a firmeza de ânimo isso já é agir conforme a
futuro, tal como é incapaz de lembrar o passado; não tem natureza. Em suma, e para expressar com concisão a 39
a noção da continuidade. Ora é precisamente a continui- minha ideia: as condições que geram um certo bem podem
dade que permite a evolução constante e a unidade de por vezes ser contrárias à natureza, um bem nunca o
uma vida que segue o caminho da rectidão. A razão é que pode ser, porque nenhum bem existe sem a razão e a
é, portanto, o supremo juiz do bem e do mal; a razão razão é conforme com a natureza. "O que é então a

246 247
razão?" É a 1m1tação da natureza. "E em que consiste sados por uma arma, envenenados pela mordedura de
para o homem o supremo bem?" Em comportar-se segun- uma serpente, esmagados num desabamento, paralisados a
do a vontade da natureza. pouco e pouco por um contínuo definhamento dos nervos.
40 Uma objecção possível: "Ninguém duvida que haja mais Poderá dizer-se que o modo de morrer foi melhor nuns
felicidade numa paz nunca dilacerada do que na paz re- casos e pior noutros; em todos eles, porém, o resultado
conquistada à custa de muita efusão de sangue. Ninguém foi idêntico, a morte. Ou seja, o caminho seguido pode ser
duvida que há mais felicidade na saúde nunca interrom- diverso, o ponto de chegada é só um. Não há uma morte
pida do que na saúde recuperada, à custa de muita energia maior e outra menor; em todos os casos as "medidas" são
e paciência, após uma grave doença, daquelas que fazem as mesmas, isto é, o termo da vida. Posso afirmar que 44
esperar o pior. Similarmente, ninguém duvidará que a com os bens se passa o mesmo: este bem ocorre entre
alegria será um bem maior do que a valentia da alma prazeres contínuos, aquele entre circunstâncias tristes e
perante torturas infligidas por feridas ou fogueiras." Nada dolorosas; este limitou-se a guiar os favores da fortuna,
41 mais falso! Tudo quanto é fortuito é passível das maiores aquele teve de vencer as suas violências; mas um e outro
diferenças, pois é avaliado segundo a utilidade que oca- são igualmente bens, embora .o primeiro tivesse percorrido
siona aos interessados. Mas a única finalidade dos bens uma estrada plana e aprazível e o segundo uma via cheia
consiste em conformar-se com a natureza, e esta finali- de obstáculos. Mas o ponto a que todos visam é um e o
dade verifica-se em todos por igual. Quando nós, no senado, mesmo: são bens, são dignos de apreço, fazem companhia
damos o nosso acordo a uma determinada opinião, não é à virtude e à razão; a virtude torna iguais todas as coisas
possível dizer-se que este senador "deu mais acordo" do que admite como suas.
que aquele! Todos, de facto, se pronunciaram por uma Não há motivo para, entre os prinápios da nossa escola, 45
mesma opinião. O mesmo afirmo eu que se passa com as admirares este em especial. Segundo Epicuro há duas es-
virtudes: todas elas estão de acordo com a natureza. O pécies de bens, das quais resulta o bem supremo, o cúmulo
mesmo afirmo eu que se passa com os bens: todos eles da felicidade: ausência de dor no corpo, ausência de per-
42 estão de acordo com a natureza. Há pessoas que morrem turbação na alma. 20 Estes bens, se atingiram o ponto
na juventude, outras na velhice, outras mesmo na infância, máximo, já não podem acrescentar-se mais, pois como é
sem nada mais lhes ter sido dado senão vislumbrar a possível acrescentar-se aquilo que já atingiu o ponto máxi-
vida: todas elas, contudo, eram igualmente mortais, embora . mo?! O corpo não conhece a dor: o que é que pode
a umas a morte tivesse consentido uma vida mais longa, a acrescentar-se a este estado de ausência de dor? A alma
outras as tivesse ceifado em plena flor, e a outras as goza de estabilidade e de calma: o que é que pode
43 tivesse cortado logo de início. Um homem morreu en- acrescentar-se a este estado de tranquilidade? O céu, quando
quanto jantava; a outro, a morte seguiu-se ao sono sem
interrupção; outro extinguiu-se enquanto fazia amor. Con-
20
fronta com estes casos o daqueles que morreram trespas- Epicuro, fr. 434 Usener.

248 20 249
está sereno, quando está perfeitamente transparente não é conseguinte também Epicuro classifica como bens alguns
susceptível de tornar-se mais claro ainda; do mesmo modo que preferiríamos não experimentar mas que dado que as
um homem que vele pelo seu corpo e pela sua alma e circunstâncias os provocaram, há que aceitar, aprovar e
que faça depender de ambos o seu bem supremo, atingirá considerar idênticos aos mais elevados. Não pode deixar
o total equilíbrio, alcançará a plenitude dos seus desejos se de considerar-se idêntico aos bens superiores este bem que
se encontrar ao abrigo da agitação na alma e da dor no pôs termo a uma vida feliz, um bem a quem Epicuro
corpo. Se a estas se adicionarem ainda outras circunstân- rende graças nas últimas palavras que proferiu!
cias favoráveis, tal não aumentará em nada o supremo Vais permitir-me, meu excelente Lucílio, uma declara- 49
bem, quando muito dar-lhe-á, por assim dizer, sabor e ção bastante mais audaciosa: se fosse possível alguns bens
aprazimento. Esta concepção do bem supremo, para a serem superiores a outros, eu preferiria até aqueles que
natureza humana, dá-se por satisfeita com a paz quer no parecem dolorosos e declará-los-ia superiores aos bens
corpo quer no espírito. tranquilos e aprazíveis. Na realidade é mais importante
47 Vou mostrar-te agora como Epicuro estabelece tam- vencer as dificuldades do que moderar a felicidade. Bem 50
bém uma distinção entre os bens, muito semelhante à que sei que é à razão que devemos a capacidade de manter,
nós, estóicos, fazemos. 21 Segundo Epicuro, há alguns bens quer o equilíbrio na felicidade quer a coragem nas atribu-
de que ele preferiria usufruir, tais como a tranquilidade de lações. Pode ser igualmente corajosa a sentinela que dorme
um corpo liberto de todas as afecções e a serenidade de tranquilamente fora do muro do aquartelamento quando
uma alma gozando da contemplação dos seus bens pró- não há perigo de incursões inimigas, ou o soldado que,
prios; existe uma outra categoria de bens, a qual, embora com os tendões cortados, combate de joelhos sem largar
preferisse prescindir dela, nem por isso deixa de apreciar as armas. Mas só aos soldados que voltam do combate
e aprovar: refiro-me àquilo que atrás mencionei - a cobertos de sangue é que se grita: "Bravo, seus valentes!"
capacidade de suportar a falta de saúde e as dores mais Por isso mesmo eu acho mais dignos de apreço aqueles
agudas, capacidade essa que Epicuro bem demonstrou pos- bens que resultam do esforço, da coragem, do afronta-
suir naquele que foi o último e o mais feliz dia da sua mento com a fortuna. Como posso eu hesitar em prestar 51
vida. Diz ele, de facto, que os sofrimentos causados pela maior louvor à mão de Múcio, mutilada pelo fogo, do que
bexiga e por uma úlcera no estômago eram tais que a dor à mão sã e salva de outro homem qualquer? Múcio manteve-
já não podia ser maior, mas que mesmo assim esse dia -se firme, desprezando os inimigos, desprezando as cha-
era para ele um dia feliz. 22 Ora ninguém pode ter um dia mas, e olhou sem tremer a sua mão que mirrava consu-
48 feliz se não se encontrar na posse do bem supremo. Por mida no braseiro do inimigo; e assim ficou até que Por-
sena, satisfeito da tortura mas invejoso da glória de Múcio,
mandou, contra vontade dele, retirar o braseiro. Como não 52
21
Epicuro, fr. 449 Usener. hei~de eu incluir este bem entre os primeiros e considerá-
22
Epicuro, fr. 138 Usener. -lo tanto maior do que os bens tranquilos e ao abrigo da

250 251
fortuna, precisamente quanto mais raro é vencer um m1- ças por isso? Assim, estou impossibilitado de fazer aquilo
migo sacrificando a mão do que empunhando as armas? mesmo que a vontade me devia impedir de fazer. As
"Pois quê" - dirás tu. - "Serias capaz de desejar para ti minhas conversas são quase todas com os livros. Sempre
um tal bem?!" Como não, se um tal acto apenas o poderá que aparece uma carta tua tenho a sensação de estar na
53 fazer o homem que também pudesse desejá-lo? Haveria tua companhia e isso dá-me uma tal disposição de espírito
eu de preferir confiar o meu corpo a massagistas efemi- que mais me parece estar a responder-te de viva voz do
nados? De dar os meus dedos amolecidos a friccionar que por escrito. Quanto à questão que me pões, façamos
a uma qualquer prostituta, ou a um eunuco, tornado de como se estivéssemos conversando e analisemo-la em
homem em prostituta? Como não considerar mais feliz COnJUntO.
Múcio, esse homem que meteu a mão no fogo com o ar Perguntas-me se todo o bem é desejável. Nas tuas 3
de quem se entregava aos cuidados de um manicuro? Foi palavras: "Se suportar corajosamente a tortura, aguentar
assim que ele corrigiu o seu primeiro fracasso: inerme e com valentia as chamas e encarar com paciência a doença
mutilado conseguiu pôr termo à guerra e com a mão inu- é um bem, segue-se que estas três situações são desejáveis.
tilizada saiu vitorioso de dois reis! Ora eu não vejo nelas nada que mereça o nosso desejo. E
sei de certeza absoluta que nunca ninguém cumpriu uma
acção de graças por ter sido chicoteado, deformado pela
67 gota ou alongado no cavalete." Se tu, meu amigo, analisa- 4
1 Comecemos pelas banalidades! A primavera começou a res com minúcia estes factos, verás que neles existe algo
mostrar-se, mas, embora já nos aproximássemos do verão, de desejável. Eu preferiria que a tortura me poupasse;
- que é a altura própria do calor - o tempo refrescou mas se tiver de me submeter a ela desejarei fazê-lo com
e, portanto, não há que confiar nele; frequentemente vol- coragem, valor, e firmeza. Preferiria não me ver envolvido
tamos aos dias invernosos. Queres que te diga até que numa guerra, é evidente! Mas se me visse envolvido dese-
ponto o tempo está incerto? Ainda não me atrevo à água jaria suportar animosamente as feridas, a fome e tudo o
fria e tenho que lhe adoçar a temperatura. 23 "Aqui está" mais que as agruras da guerra implicam. Não sou tão
- dirás tu - "o que se chama não aguentar nem o calor louco que me apetecesse estar doente, mas se a doença
nem o frio!" É mesmo, caro Lucílio, já me basta aco- me atacar desejarei que o meu comportamento se não
modar-me ao frio próprio da idade, que não degela nem torne por isso incontrolado ou efeminado. Em suma, não
em pleno verão. E assim é que passo a maior parte do são as circunstâncias adversas que são desejáveis, mas sim
2 tempo metido em abafos. Tenho que dar graças à velhice a virtude que nos permite ultrapassar essas circunstâncias
por me manter colado à cama. E porque não dar-lhe gra- adversas.
Alguns dos nossos entendem que a capacidade de tole- 5
rar com coragem todas estas adversidades não é em si
23
Cf. a carta 53, 3.
desejável, embora naturalmente não seja de rejeitar. E isto

252 253
porque o objecto dos nossos votos deve ser um bem puro, Ó três, quatro vezes felizes 8
tranquilo e situado ao abrigo de todo o sofrimento. A aqueles a quem ante o olhar dos seus, sob os altos
24
minha opinião é diferente. Em primeiro lugar porque não muros de Tróia coube em sorte morrer/
é possível que uma coisa seja simultaneamente boa e rião Que diferença há entre desejar esta sorte a alguém ou
desejável; depois, porque se a virtude é desejável e se não confessar que ela é desejável? Décio ofereceu a sua vida à 9
há bem algum sem virtude, segue-se logicamente que todo República e, esporeando o cavalo, lançou-se no meio dos
o bem é desejável; finalmente, porque (embora a tortura inimigos ao encontro da morte. Depois veio outro Décio
não seja desejável), é desejável a corajosa resistência à tor- que, rivalizando com o valor do pai, após pronunciar a
6 tura! Vejamos outra questão: não é verdade que a cora- fórmula ritual já tornada tradição de família, precipitou-se
gem é desejável? No entanto, ela não só despreza o perigo para o mais intenso da peleja; apenas receava que o sacri-
como até o atrai! O seu aspecto mais nobre e mais digno fício não fosse favoravelmente aceite pela divindade, mas
de admiração consiste em não recuar ante as chamas, em não duvidava de que uma nobre morte fosse desejável.
não evitar as feridas, por vezes mesmo não apenas em Ainda hesitas em admitir que nada é superior a uma
não esquivar os golpes como até em recebê-los no peito. morte digna de memória, alcançada através da acção da
Se a coragem é desejável, igualmente é desejável suportar virtude? Quando um homem sofre corajosamente a tor- 10
com valentia a tortura, já que fazê-lo faz parte da ideia de tura, está pondo em acção todas as suas virtudes! Talvez
coragem. Discrimina com atenção, conforme já te disse e uma delas esteja em acção mais directa ou seja mais evi-
verás que não existem razões para te induzirem em erro. dente: a resistência. Mas numa tal situação encontramos
O que é desejável não é sofrer a tortura, mas sim o sofrê- coragem, nas suas variantes de resistência, capacidade de
-la corajosamente: é neste "corajosamente" que consiste a sofrer, aceitação da dor; encontramos prudência, virtude
virtude, e por isso é que eu o desejo! "Mas quem formu- indispensável à tomada de qualquer decisão, a qual nos
1 lou jamais semelhante desejo?" Há certos desejos que se convence a aguentar com o máximo de coragem o inevi-
formulam abertamente, embora respeitem a questões par- tável; encontramos firmeza, a qual nunca bate em retirada
ticulares; outros há, porém, que estão impücitos, isto é, nem se deixa desviar dos seus propósitos ,pela força;
quando um só desejo contém em si vários outros. Por encontramos, em suma, todo o indivisível cortejo das vir-
exemplo, eu desejo levar uma vida segundo a moral, mas tudes. Tudo quanto fazemos segundo a moral, fazemo-lo
uma vida regulada pela moral compõe-se de diversas acções: por acção de uma virtude mas em unanimidade com todas
nela podemos encontrar a masmorra de Régulo, a ferida elas; e aquilo que unanimemente todas as virtudes apro-
aberta por Carão com as próprias mãos, o desterro de vam, ainda que aparentemente se deva a uma só, é, sem
Rutílio, o cálice de veneno que elevou Sócrates do cárcere dúvida alguma, desejável.
até ao céu! Por isso mesmo, ao formular o desejo de uma
vida segundo a moral, eu formulei implicitamente todas
aquelas características que fazem moral a vida. 24
Vergllio, Aen., 1, 94-6.

254 255
11 Não irás pensar certamente que apenas é desejável tão fraco epÍteto uma atitude de tal modo sublime e grave...
aquilo que nos advem do prazer e do ócio, aquilo que aco- Sou queimado, mas não vencido : não é altamente desejá- 16
lhemos em nossa casa com as portas engalanadas?! Há vel uma tal situação? Não porque o fogo me queima, mas
certos bens cuja aparência é severa; há certos votos cuja sim porque me não vence! Não há nada que suplante em
realização se celebra não com grandes cerimónias gratula- valor e beleza a virtude; e tudo quanto fazemos em obe-
tórias, mas sim em atitude de adoração e profundo res- diência aos seus ditames é um bem, e é, portanto, desejável!
12 peito. Pensas tu que Régulo não estava desejoso de chegar
a Cartago? Procura sentir dentro de ti o estado de alma
de um grande homem, liberta-te por algum tempo das
68
opiniões do vulgo; aplica todo o teu esforço à compreen- Estou de acordo com a tua decisão: ;briga-te no teu 1
são total da beleza e excelência de uma virtude cuja prá- ócio, mas coloca o teu ócio ao abrigo dos demais. Podes
tica exige de nós, não incenso ou grinaldas, mas sim suor estar certo de que, procedendo assim, te conformas, se
13 e sangue! Detém-te a contemplar M. Catão no acto de não com os preceitos, ao menos com o exemplo dos mes-
levar ao peito sacrossanto as suas mãos irrepreensíveis a tres estóicos. 26 Digo-te mais: agirás segundo preceitos cuja
fim de abrir mais as feridas insuficientemente profundas! validade será evidente tanto para ti como para quem quer
O que dirias tu a Catão num tal momento? "Tens toda a que seja! É que nós, estóicos, não confiamos os nossos 2
minha simpatia!", ou "Lamento a tua infelicidade!", ou adeptos nem ao serviço de qualquer Estado, nem para
14 antes: "Que sorte tens em agir assim!"?, Lembra-me neste sempre, nem indiscriminadamente. Mais ainda, quando nós
momento o nosso Demétrio, que chama "mar morto" a atribuimos ao sábio o único Estado digno dele - ou seja,
uma vida passada em segurança, ao abrigo dos ataques da o Universo! - , o sábio, embor~ levando uma vida reti-
fortuna. Carecer de motivos de exaltação, de esforço, care-
rada, nem por isso passa a situar-se à margem do Estado;
cer de tudo quanto, servindo de advertência e de estímulo,
ponha à prova a nossa firmeza de ânimo, e, em contra-
partida, amolecer num ócio imperturbado, isso não é 26
De facto, os mestres do estoicismo antigo aconselhavam aos seus discípu-
15 tranquilidade, é paz podre! O estóico Átalo costumava los a participação na vida política da cidade, v. por ex. S. V. F., III, 611, 697,
afirmar que preferiria ter a fortuna por inimiga do que 698, embora nenhum deles tivesse tido qualquer acção relevante como político.
por aduladora. "Sofro a tortura, mas com coragem: tanto No entanto, Zenão acedeu a um pedido de Antígono Gónatas e enviou à corte
deste o seu discípulo Perseu (v. S. V. F., I, 439). A esta relativa contradição
melhor! Afronto a morte, mas com coragem: tanto
entre os preceitos e a prática dos mestres estóicos alude Séneca em De tranq.
melhor!" E se escutasses Epicuro, ouvi-lo-ias acrescentar: an., I, 10: "(Zenão, Cleantes, Crisipo): nenhum deles participou na vida política,
"Um autêntico prazer!" 25 Por mim não qualificaria com mas todos incitaram os seus discípulos à participação''. Em De otio, III, 2 Séneca
resume concisamente a oposição entre epicuristas e estóicos a respeito desta
questão: "Epicuro diz que o sábio não participará na vida política senão em cir-
cunstâncias excepcionais. Para Zenão, o sábio deve participar na política, a
25 Epicuro, fr. 601 Usener (cf. supra carta 66, 18). menos que a gravidade da situação disso o impeça."

256 257
o mais que sucede é que ele, deixando um lugarejo estreito, Se tu te queres retirar da vida pública não o deves 6
acede a espaços mais vastos e mais largos, e ao alçar-se fazer para servir de conversa aos outros, mas sim para
até ao céu pode compreender até que ponto as magistra- poderes conversar contigo próprio! Conversa sobre ti
turas ou os tribunais se situam a um nível bem pouco mesmo, evitando totalmente fazeres a ti o que o vulgar
elevado. Fica certo de que nunca a acção do sábio é mais das pessoas faz em geral na vida de sociedade, e assim te
considerável do que quando à sua contemplação se oferece habituarás a só dizer - e ouvir dizer - a verdade! Dis-
tanto o divino como o humano. cute de preferência sobre os teus pontos fracos. Qualquer 7
3 Mas voltemos àquele ponto que estava começando a pessoa conhece as suas debilidades físicas. Consequente-
aconselhar-te: a necessidade de manteres o teu ócio desco- mente, há quem vomite para aliviar o estômago, há quem
nhecido dos outros. Não te será vantajoso anunciares pelo contrário o robusteça com frequente ingestão de ali-
publicamente que vais professar a tranquilidade da vida mentos, há quem faça dieta de vez em quando para eli-
filosófica: atribui antes aos teus propósitos uma outra .
mmar os excessos; quem sof re contmuamente dos pes 27
0
I

motivação, por exemplo a falta de saúde, a falta de apti- evita a bebida ou as termas. Assim cada qual, mesmo que
dões, a indolência! Fazer do próprio ócio motivo de vai- não cuide do resto, pelo menos procura fazer frente aos
4 dade é uma ambição sem sentido. Há animais que, para seus males crónicos. Na nossa alma há igualmente partes
escaparem aos eventuais predadores, disfarçam o rasto que enfermiças às quais importa prestar a devida atenção. Para
produzem perto da entrada dos seus covis: idêntica atitude que me servirá então o ócio senão para tratar das minhas
deverá ser a tua, de outro modo nunca faltará quem te feridas? Se eu te mostrar o pé inchado, a mão coberta de 8
persiga. Casa de portas abertas passam-lhe os gatunos manchas, a perna mirrada com os nervos esclerosados -
adiante, enquanto aquelas que estão cheias de trancas e certamente me permitirás que eu fique em repouso e
ferrolhos são arrombadas! O que atrai os ladrões é o insó- tente sanar a minha doença! Pois fica sabendo que um
lito. O que está patente à vista de todos é considerado mal ainda maior é este que te não posso mostrar: este
sem valor, o larápio despreza o que não tem segredo. É tumor, este inchaço que reside no meu peito! Não, eu não
este um hábito próprio do comum das pessoas, sobretudo pretendo que me cubras de louvores, ou me chames um
das mais incultas: só se deseja penetrar onde há mistério. homem admirável que se retirou por desprezar a socie-
5 Por isso mesmo te digo que o melhor é nunca deixar que dade e condenar todas as paixões que afligem os homens!
o nosso ócio dê nas vistas; ora uma forma de o fazer dar Uma coisa apenas eu condenei: a mim mesmo! Não deve-
nas vistas é vivermos demasiado retirados, afastando-nos rás aproximar-te de mim na esperança de que eu possa
por completo do convívio com os outros. Este aqui foi ser-te útil. Estás enganado se pensas que podes encontrar 9
viver para Tarento, aquele foi encerrar-se em Nápoles, aqui algum auxílio: quem mora nesta casa é um doente,
aquele outro há muitos anos já que não sai de casa: quem
deste modo torna o seu ócio motivo de falatório, só con-
segue com isso atrair os olhares de todos. 27
Isto é, os doentes de gota.

258 259
não um médico. Prefiro que, ao saíres da minha casa a mais adequada aos estudos filosóficos: já perdemos o
digas assim; "E pensava eu que este homem atingira a ardor, já se fatigaram os vícios que vicejavam com o pri-
felicidade e a sabedoria, aprontava-me para escutar a sua meiro fervor da adolescência, pouco falta já para que se
palavra! Que desilusão! Nada aqui vi ou ouvi que provo- extingam por completo. Perguntas tu: "Mas quando, ou 14
casse em mim o desejo de voltar!" Se pensares e falares em quê, tirarás tu proveito de uma lição que estudas
assim, a tua visita não terá sido inútil: antes quero que quase ao deixar esta vida?" Pelo menos tirarei proveito
compreendas o meu ócio do que o invejes!.. nisto: em deixar a vida melhor do que quando entrei. De
10 "Mas que é isso, Séneca? Tu a aconselhares-me o ócio? resto não há motivos para pensares que, para aceder à
Tornaste-te propagandista de Epicuro?" 28 Sim, aconselho-te virtude, é mais apta qualquer outra fase da vida do que a
o ócio - um ócio em que a tua acção será mais válida e nossa actual: já muito experimentados, já muito batidos
mais digna do que no mundo em que vivias. Ter acesso por longos e contínuos embates com a vida, é com as
às moradas soberbas dos grandes senhores, concitar os fa- paixões quase sufocadas que nós entramos no caminho da
vores de velhos sem herdeiros, ter influência decisiva no perfeição. Aqui está o que a nossa idade tem de bom:
foro - tudo isto são formas efémeras de poder, que quem chega à sabedoria na velhice, chega com toda a
atraem invejas e que, se as pesares pelo que valem, são experiência de muitos anos!
11 indignas! Há quem me ultrapasse de longe em influência
no foro, há quem o faça graças às honras conseguidas
através do serviço militar, há quem me anteceda no nú- 69
mero de clientes. Não tenho possibilidades de igualar o Não me agrada que andes sempre a mudar de terra, a 1
favor de que eles gozam: pois que me importa a mim saltitar de lugar para lugar, primeiro porque tão frequen-
estar abaixo de todos os outros se conseguir erguer-me tes mudanças denotam um ânimo instável: nunca te senti-
12 acima da fortuna! Oxalá tu tivesses de há muito a inten- rás firme na tua vida privada se primeiro não pões fim a
ção de seguires este propósito! Oxalá nós não pensásse- essas deambulações indecisas! Se queres dominar o teu
mos na felicidade senão quando já estamos à beira da espírito começa por deter as peregrinações do teu corpo.
morte! Mas agora já não há motivo para demoras! A teo- Depois, porque os remédios são sobretudo eficazes se apli- 2
ria ensinava-nos o carácter efémero e adverso de muitas cados com continuidade: a tranquilidade, o esquecimento
coisas; agora a experiência confirma esse ensinamento. do teu tipo anterior de vida não admitem interrupções.
13 Façamos, portanto, como os cavaleiros que se atrasam na Deixa que os teus olhos desaprendam, deixa que os teus
partida e pretendem recuperar em velocidade o tempo ouvidos se acostumem a princípios mais sãos. De cada vez
perdido: apertemos as esporas! A idade em que estamos é que te deslocares, encontrarás no trajecto muita coisa capaz
de reavivar os teus desejos. Quem se esforça por libertar- 3
-se de uma paixão deve evitar tudo quanto lhe lembre a
28
Cf. a nora 26. pessoa amada (pois nada recrudesce tão rapidamente como

260 261
o amor); do mesmo modo fará quem deseje libertar-se
dos desejos que antes o inflamavam, afastando os olhos e
os ouvidos dos seus interesses passados. A paixão é fácil
4 de reacender. Onde quer que lance o olhar não terá difi-
culdade em descobrir alguma vantagem no tipo de ocupa-
ção em que se comprazia. Nenhum mal existe que não LIVRO VIII
ofereça a sua compensação! A avareza promete a posse de
riquezas, a libertinagem acena com as mais diversas espé- (Cartas 70- 74)
cies de prazer, a ambição alicia com a púrpura, os aplau-
sos, o acesso ao poder e a tudo a que o poder dá lugar.
5 Os vícios tentam-te oferecendo paga em troca; na vida
privada terás de prescindir de salário! Ainda que vivesses 70
um século, a custo conseguirias refrear por completo os
vícios que uma duradoura permissividade deixou desenvol- Ao fim de longo tempo revisitei a tua querida cidade 1
ver; pior ainda se a tal tarefa apenas dedicares os interva- de Pompeias. Voltei a contemplar a minha adolescência;
los de uma existência já tão curta! Somente uma aturada tudo quanto por lá fizera em jovem parecia-me poder
e atenta vigilância permite que levemos à perfeição aquilo ainda fazê-lo, parecia-me tê-lo feito há um instante. Ah!
6 que nos propomos realizar. Se tu estás mesmo disposto a Lucílio amigo, temos vindo a navegar ao longo da vida 2
escutar os meus conselhos, então medita sem descanso até e, assim como no mar, segundo as palavras de Vergílio,
te habituares a aceitar a morte, ou mesmo, se tanto for as terras e as cidades se perdem no horizonte 1,
necessário, a te antecipares a ela. Que a morte venha ter
connosco ou que vamos nós ao seu encontro, não tem a assim também nós, nesta veloz carreira do tempo que é a
mínima importância. Há quem diga: "A coisa mais bela é vida, vemos sumir-se primeiro a infância, depois a adoles-
morrer de morte natural!" Convence-te de que esta frase cência, em seguida o espaço que medeia entre os dois
é um absurdo enunciado de um espírito o mais inepto marcos que são a juventude e a idade madura, depois os
possível. Ninguém morre senão de morte natural! Em melhores anos do início da velhice; finalmente começa a
outra coisa ainda deverás meditar: ninguém morre senão tornar-se publicamente visível a proximidade do nosso fim
no seu próprio dia. Do teu tempo, nunca perderás um como homens. Na nossa insensatez julgamos esse fim 3
segundo, pois todo o tempo que sobra já te não pertence! como um escolho: na realidade é um porto, a que por
vezes somos forçados a abordar, mas que em caso algum

1
Vergílio, Aen., III, 71

262 263
deveremos recusar; e mesmo que lá aportemos na juven- besta-fera, à sugestão de se deixar morrer pela fome res-
tude, será tão insano queixarmo-nos disso como de termos pondeu: "Um homem, enquanto vive, nunca deve perder
navegado a grande velocidade. Como sabes, por vezes . a a esperança!" 2 Talvez isto seja verdade, mas não devemos 7
falta de vento atormenta o navegador e não lhe permite comprar a vida a qualquer preço! O destino que me aguar-
avançar, a extrema calma rouba-lhe a paciência, enquanto da pode ser grandioso, pode ser garantido, mas eu não
outras vezes o ímpeto das correntes o impele com toda a estou disposto a assumi-lo através de uma desonrosa con-
4 velocidade. Considera que connosco se passa o mesmo: há fissão de fraqueza. Então o que é preferível: pensar que a
homens a· quem a vida conduziu rapidamente ao termo a fortuna é toda poderosa contra um homem vivo, ou pen-
que, mesmo relutantemente, haviam um dia de chegar; sar que a fortuna é impotente contra quem sabe morrer?
para outros, contudo, a vida não passa de uma interminá- Há ocasiões, contudo, em que o sábio, mesmo tendo a 8
vel maceração. Ora, como tu bem sabes, a vida não é um morte iminente, mesmo sabendo-se condenado ao suplício
bem que se deve conservar a todo o custo: o que importa capital, não fará das próprias mãos as executantes da sen-
não é estar vivo, mas sim viver uma vida digna! tença: isso seria escolher o caminho mais fácil! É insânia
Por isso mesmo, o sábio prolongará a sua vida enquan- morrer por ter medo da morte: o carrasco há-de aparecer,
5 to dever, e não enquanto puder. Considerará sempre onde esperemos por ele! Para quê anteciparmo-nos? Para quê
deve viver, com que companhias, como deve agir, que tornarmo-nos executores da crueldade alheia? Inveja pela
acções deve empreender. Deve ter no pensamento a qua- posição do algoz, ou desejo de poupar-lhe trabalho? ...
lidade da vida, não a sua duração. Se se lhe deparam mui- Sócrates poderia ter posto fim à vida recusando-se a tomar 9
tas situações graves, muitos obstáculos à sua tranquilidade, alimento, morrendo assim de inanição em vez de morrer
o sábio, retirar-se-á! E não o fará apenas como último pelo veneno. No entanto passou trinta dias no cárcere à
recurso, mas, assim que a fortuna começar a mostrar-se espera da hora da morte, não ná expectativa do que pu-
hostil para com ele, deverá meditar seriamente se não desse acontecer, ou porque este longo adiamento lhe per-
convém pôr de imediato termo à vida. O sábio considera mitisse muitas esperanças! -, mas sim por obediência à
como indiferente se a sua morte é natural ou voluntária, lei, e também para permitir aos amigos aproveitarem os
se ocorre mais tarde ou mais cedo; não tem que recear últimos momentos de Sócrates. Não seria estúpido sentir
qualquer grande perda: num líquido vertido a conta-gotas, indiferença pela morte e mostrar ter medo do veneno?
quem se interessa por uma gota a mais ou a menos? Escribónia era uma mulher ponderada, tia paterna de Dru- 10
6 Morrer mais cedo, morrer mais tarde - é questão irrele- so Libão - um jovem de tão grande nobreza como estul-
vante; relevante é, sim, saber se se morre com dignidade tícia e mais ambicioso do que se podia ser no seu tempo,
ou sem ela, pois morrer com dignidade significa escapar
ao perigo de viver sem ela! Por isso eu acho o cúmulo do
' Pode ver-se a história do "homem de Rodes", Telésforo de seu nome,
efeminado a frase daquele homem de Rodes que, lançado preso e mutilado pelo "tirano" Lisímaco, um dos sucessores de Alexandre, em
pelo tirano na masmorra e alimentado como qualquer Séneca De ira, III, 17, 3-4.

264 21 265
ou do que ele devia ser fosse em que época fosse. Druso los da nossa servidão. Todos devemos fazer com que a
foi levado, enfermo, do senado sobre uma liteira entre um nossa vida mereça a aprovação dos outros; a nossa morte
diminuto cortejo fúnebre (pois todos os seus amigos . e só de nós depende, a forma de morrer que mais nos
familiares se afastaram sem piedade de um homem que, apraz, essa será a melhor. É estúpido prendermo-nos com 13
mais do que condenado à morte, era já um cadáver!) e pensamentos do género: "Alguns dirão que eu mostrei
pôs-se a deliberar se havia de suicidar-se ou de aguardar a pouca coragem na morte, outros que fui excessivamente
execução. Escribónia disse-lhe então: "Porque queres tu precipitado, outros que haveria formas mais enérgicas de
encarregar-te de uma tarefa que pertence a outro?" Mas suicídio ..." Não, tu não deves deixar em outras mãos uma
não o convenceu: Druso atentou contra a própria vida, e decisão sobre a qual é irrelevante a opinião alheia. O teu
não sem alguma razão, pois um homem condenado pelo objectivo deve ser só um: eximir-te tão rápido quanto
seu inimigo a morrer mais dia menos dia, ao prolongar a possível aos golpes da fortuna. De um modo ou de outro,
vida está apenas a submeter-se à vontade do adversário. 3 haverá sempre quem pense mal do teu acto.
11 Consequentemente, quando um factor externo faz im- Encontrarás, todavia, muitos adeptos da filosofia que 14
pender sobre nós a morte, não é possível decidir, de uma afirmam não ser lícito atentar contra a própria vida e
forma geral, se a atitude correcta consiste em antecipar ou consideram sacrilégio o suicídio: segundo eles, devemos
em aguardar essa morte: muitas são as circunstâncias que aguardar o fim que a natureza nos destinou. Quem assim
podem fazer pender para uma ou outra solução. Se, por fala não vê como está tornando impossível a liberdade!
exemplo, a alternativa for entre uma morte no meio de Nada de melhor concebeu a lei eterna do que, embora
torturas e uma morte directa e rápida, como não escolher apenas nos dando uma porta de entrada na vida, ter-nos
sem hesitação esta última? Se eu escolho o navio em que proporcionado múltiplas saídas. ]?orque hei-de eu esperar 15
vou navegar ou a casa em que vou habitar, também, ao que sobre mim se abata a crueldade das doenças ou dos
deixar esta vida, posso escolher a forma como morrer. homens se posso escapar-me por entre os tormentos e
12 Além disso, se a vida não se torna melhor por ser mais assim iludir a adversidade? Aqui está o único .ponto em
longa, a morte, pelo contrário, quanto mais prolongada que não podemos queixar-nos da vida: ela não retém nin-
for, pior. Mais do que em qualquer outra situação, deve- guém! A condição humana assenta numa base excelente:
mos obedecer, na atitude perante a morte, aos ditames da ninguém é desgraçado senão por sua própria culpa. A
nossa alma. E esta que se evole com decisão segundo a vida agrada-te? Então, vive! Não te agrada? És livre de
forma de morte escolhida: quer se eleja o punhal, ou a regressar ao lugar donde vieste!... Para aliviares as dores 16
corda, ou o veneno que se espalha pelas veias, há que ser de cabeça muitas vezes te submeteste à sangria; para debi-
firme na decisão tomada e romper de uma vez os víncu- litar todo o corpo basta abrir uma veia. Não é preciso
rasgai: todo o peito numa imensa ferida: um bisturi chega
para abrir o caminho à suprema liberdade, um ponto
3 V. a história de Druso Llbão em Tácito, Ann., li, 27-32. diminuto do nosso corpo basta para nos garantir a segu-

266 267
rança. Qual, então, o motivo que nos torna preguiçosos e tos por natureza inofensivos. Não há muito, um dos Ger- 20
cobardes? É que nenhum de nós pensa que, mais dia manos destinados aos combates com feras, enquanto se
menos dia, havemos de abandonar esta morada, à maneira faziam no circo os preparativos para o espectáculo da
dos inquilinos antigos que as facilidades do local e o hábito manhã, retirou-se para satisfazer uma certa necessidade
17 conservam nas suas casas meio em ruínas. Queres tu ser corporal - a única oportunidade que teve para estar sozi-
livre perante o teu próprio corpo? Habita-o com a dispo- nho, longe d<? olhar dos guardas; então agarrou num daque-
sição de quem está pronto à mudança. Mentaliza-te de que, les paus com uma esponja atada na ponta que se usam
mais tarde ou mais cedo, hás-de prescindir da sua compa- para limpar as imundícies e enfiou-o pela garganta abaixo,
nhia e assim sentir-te-ás mais forte quando fores obrigado morrendo por asfixia. É o que se chama o cúmulo do
a deixá-lo. Como, porém, hão-de compenetrar-se da inevi- desprezo pela morte. Mais, foi uma forma de suicídio
tabilidade do próprio fim entes cujos desejos não conhe- nojenta, asquerosa: mas não será estupidez mostrar-se esqui-
18 cem limites? Nenhuma meditação é tão imprescindível sito na morte? ... Que atitude heróica a deste homem, bem 21
como a meditação da morte; entretanto vamo-nos pren- digno de lhe ter sido facultada a escolha do seu destino!
dendo com assuntos que, afinal, talvez sejam supérfluos. Que valor não mostraria ele se pudesse suicidar-se com
Temos o espírito preparado contra a pobreza porque os um gládio, com que coragem não se precipitaria ele de
nossos bens permanecem intactos. Sentimo-nos bem muni- uma rocha escarpada ou se lançaria às profundezas do
dos para fazer frente à dor porque a feliz condição de um mar! Mesmo desprovido totalmente de recursos, ainda
corpo sólido e saudável nunca exigiu de nós a prática assim encontrou uma arma que lhe abrisse as portas da
dessa virtude. Sentimo-nos perfeitamente capazes de su- morte. Por aqui podes ver como, para morrer, o único
portar a saudade dos amigos desaparecidos porque afortu- obstáculo que se nos põe é a vontade! Sobre o acto tão
19 nadamente continuam vivos aqueles que amamos. Um dia determinado deste homem cada, um pode pensar o que
virá, porém, que há-de pôr-nos diante o problema da quiser, desde que se assente neste ponto: é preferível o
morte! Não há razão para pensar que apenas os grandes suicídio mais imundo à mais higiénica servidão!...
homens tiveram a força necessária para romper as barrei- Já que comecei a citar casos de pessoas de baixa extrac- 22
ras da servidão humana, não há motivo para pensar que ção vou continuar. Todos seremos mais exigentes para
um tal acto só está ao alcance de um Catão, que para connosco se virmos que até os homens mais desprezíveis
exalar a alma abriu com as mãos a ferida que o punhal podem manifestar total desprezo pela morte. Pensamos
deixara estreita. Tem havido homens da mais baixa condi- habitualmente que os Catões, os Cipiões e outros que cos-
ção que num ímpeto de coragem alcançaram o porto segu- tumamos ouvir citar com admiração se ergueram a uma
ro da morte: impedidos pelas circunstâncias de morrer altura que os torna inimitáveis: pois bem, vou mostrar-te
tranquilamente, sem possibilidade de elegerem livremente que entre os homens que combatem as feras, no circo, se
o instrumento do suicídio, lançaram mão do que encontra- encontram tantos exemplos de coragem como entre os
ram e, pela sua coragem, transformaram em armas objec- generais da guerra civil. Recentemente deu-se o caso de 23

268 269
um homem que ia numa carroça, rodeado de guardas derem a morrer em vez de matar! Pois quê? A coragem 27
armados, para participar no espectáculo da manhã; fin- que estas almas depravadas ou mesmo criminosas mani-
gindo-se cheio de sono, pôs~se a cambalear no assento até festam, não a manifestaremos nós, a quem uma longa
que conseguiu meter a cabeça entre os raios de uma roda, meditação, a quem o uso da razão, mestra universal, pre-
e conservou-se firme até que a roda ao girar lhe quebrou parou contra todas as contingências? A razão ensina-nos
o pescoço: o carro que o conduzia io
suplício foi o ins- que várias podem ser as vias seguidas pelo destino mas
24 trumento da sua liberdade! Quando queremos mesmo dei- que o fim é apenas um e nada interessa o ponto de par-
xar esta vida não há obstáculos que nos possam impedir: tida daquilo que é inevitável. A mesma razão te aconse-
a natureza deixa-nos abertas todas as portas! Quando as lhará a morrer, se possível, do modo que te agradar, se
circunstâncias o permitem pode eleger-se uma forma de não, do modo que for viável, isto é, a aproveitar a forma
suicídio menos brutal; quando temos à mão muitos recur- de suicídio que as circunstâncias te depararem. Se é imoral
sos com vista a esse objectivo podemos escolher entre eles viver impetuosamente;' morrer num ímpeto, pelo contrá-
e pensar qual a forma preferível de conquistar a liberdade; rio, é admirável!
numa situação desesperada, contudo, há que tomar como
melhor o meio que está mais ao alcance, por muito extra-
vagante e original que seja. A quem deseja suicidar-se,
71
desde que lhe não falte o ânimo, não lhe faltará também De vez em quando colocas-me questões de ordem muito 1
25 a imaginação. Não vês tu como até os mais ínfimos concreta, esquecido de que estamos separados por toda a
escravos, quando a dor os estimula, se enchem de cora- vastidão do mar. Ora a relevância de um conselho assenta
gem e conseguem enganar os guardas mais vigilantes? em grande parte na sua oportunidade; assim é inevitável
Homem de valor é aquele que, não só exige de si o suicí- que, em relação a certos problemas, a minha opinião che-
dio, como ainda encontra forma de o realizar. Mas eu gue ao teu conhecimento quando a opinião contrária tal-
prometi citar-te mais exemplos ocorridos nos jogos do vez fosse já a mais adequada. Os conselhos, de facto, têm
26 circo. Durante o segundo espectáculo de naumaquia, 4 um de adequar-se às circunstâncias, porque a nossa vida se
dos bárbaros enterrou na garganta a lança que recebera passa a correr, num turbilhão, e por isso mesmo um con-
para combater os adversários. "Porquê" - disse ele - selho tem de ser ministrado no dia exacto. E mesmo
"porquê não escapar desde já a todos os tormentos e assim já pode chegar atrasado: tem de ser ministrado,
humilhações? Porquê estar à espera da morte se tenho como soe dizer-se, no instante exacto. Vou, no entanto,
uma arma nas mãos?" Espectáculo tanto mais admirável indicar-te um meio de te orientares. Sempre que queiras 2
este, quanto mais conforme à moral é os homens apren- saber qual a atitude a evitar ou a assumir, regula-te pelo
bem supremo, pelo objectivo de toda a tua vida. Todas as
nossas acções devem conformar-se com o bem supremo:
4
Espectáculo oferecido por Nero, v. Suetónio, Nero, XII. somente é capaz de determinar as suas acções individuais

270 271
o homem que possui a noção do objectivo supremo da tudo enfim que, na opinião corrente, são formas de mal,
vida. Nenhum pintor, mesmo que tenha as tintas prepa- perderá a sua força e transformar-se-á em bem se tu fores
radas, consegue representar o que quer que seja se não capaz de dominar a situação! Uma coisa tem que ficar
tiver uma ideia definida do que quer pintar. Consequen- clara: não é um bem senão o que for moral; todas as
temente, é um erro toda a gente deliberar sobre os episó- adversidades merecerão até o nome de bens desde o
3 dios da sua vida e ninguém sobre ela na sua totalidade. O momento em que a virtude lhes confira valor moral. Muita 6
arqueiro, ao disparar uma flecha, deve conhecer o alvo gente pensa que as nossas teorias estão acima do que a
que pretende atingir para poder apontar e regular a força condição humana permite, e com uma certa razão, quando
do disparo. As nossas deliberações serão vãs desde que apenas se toma em consideração o corpo. Mas se passar a
não tenham um alvo preciso a atingir; quem não conhece tomar-se em consideração a alma, ver-se-á como a bitola
o porto que demanda nunca encontrará ventos propícios! para medir o homem deve passar a ser a divindade!
O acaso tem assim, necessariamente, muito peso na nossa Eleva-te, Lucílio, meu excelente amigo, abandona essas
4 vida, porquanto nós vivemos ao acaso. Acontece até a frioleiras literárias de certos filósofos que reduzem a gran-
muita gente pensar que não sabe coisas que sabe; sucede- deza da filosofia à análise das sílabas e rebaixam e humi-
-nos com frequência não dar pela presença das pessoas que lham a alma com os seus ensinamentos de pormenor!
estão connosco, e, semelhantemente, ignorarmos que o Tornar-te-ás assim igual aos descobridores destes princípios
objectivo do supremo bem está mesmo ao nosso lado! e não a esses mestres e praticantes de 'filosofia que fazem
Não são precisas muitas palavras nem longos circunló-
dela uma coisa abstrusa, em vez de um estudo sublime.
quios para tu entenderes em que consiste o bem supremo:
Sócrates, que reduziu toda a filosofia à ética, dizia que a 7
apontar-te-ei, por assim dizer, com o dedo e do modo
suprema sabedoria consistia em .distinguir o bem e o mal.
mais conciso possível. Aliás, que interesse tem decompor
"Se a minha autoridade tem para ti_ algum valor" - dizia
em elementos o supremo bem, quando se pode defini-lo
ele - "pratica a moral para poderes ser feliz, e não te
como "aquilo que se conforma com a moral", quando se
pode até, para tua maior admiração, dizer que "o único
importes que fulano ou cicrano te ache estúpido. Deixa
bem é aquilo que se conforma com a moral, todos os que os outros te ofendam e te injuriem; desde que pos-
5 outros bens são falsos e impuros". Se tu te convenceres suas a virtude em nada serás lesado por isso. Se queres
disto, se tu adorares a virtude (pois amá-la, apenas, de ser feliz, se queres ser um homem de bem e digno de
pouco serve!), então tudo quanto seja tocado pela virtude confiança, não te importes que os outros te desprezem!"
terá a teus olhos nobreza e felicidade, independentemente Ninguém conseguirá atingir este nível se previamente não
do que os outros possam pensar. A submissão à tortura tiver negado qualquer valor a tudo o mais, se não tiver
- desde que tu, a vítima, te sintas mais seguro de ti do colocado todos os bens em pé de igualdade - porque não
que o carrasco -, a doença - desde que te não queixes existe bem onde não há moral, e a moral é sempre a
da fortuna nem te deixes vencer pela enfermidade mesma em todas as circunstâncias.

272 273
8 "Que dizes? Então é indiferente que Catão seja eleito por que Carão em nada fosse lesado! "Mas Catão foi ven- 11
ou recusado para pretor? 5 É indiferente que, na batalha de cido!" Podes inserir este episódio entre as derrotas de
Farsália, Catão seja vencido ou saia vencedor? 6 O bem Carão; mas a impossibilidade de vencer a guerra, Carão
resultante de Catão, mesmo após a derrota do seu partido, encara-a com a mesma grandeza de alma com que viu
não poder ser derrotado, é equivalente ao bem que resul- ser-lhe recusada a pretura. No dia em que perdeu as elei-
taria de Catão regressar à pátria como vencedor e como ções entreteve-se a jogar, na noite em que decidiu suicidar-
artífice da paz?" Como não, se idêntica é a virtude com -se entreteve-se a ler; situou no mesmo plano a recusa
que se domina a má fortuna ou se usufrui da boa? A vir- para a pretura e a partída desta vida, convencido como
tude não pode St'.r maior ou menor, tem apenas uma estava de que devemos suportar todas as contingências.
9 grandeza absoluta. "Mas Gn. Pompeio perderá o seu exér- De resto, porque razão não havia ele de encarar com 12
cito, o partido aristocrático - o mais belo adorno da coragem · e equanimidade esta transformação da república?
república romana -, o senado em armas - a primeira
Há alguma coisa que esteja isenta do perigo da mudança?
Não o está a terra, nem o céu, nem toda esta máquina do
linha do partido pompeiano -, será posto em fuga nessa
universo, embora se mova por acção da divindade; o mun-
única batalha, enquanto a queda em ruínas de um tão
do não conservará sempre a ordem actual, um dia virá
grande império se dividirá pelo mundo inteiro: parte
que o há-de desviar do presente curso. Todos os seres 13
desmoronar-se-á no Egipto, parte em África, parte na
obedecem à lei do tempo: tudo tem de nascer, crescer,
Hispânia. 7 Para cúmulo da miséria, à república romana
extinguir-se. Os corpos celestes que tu vês girar sobre as
10 nem ao menos foi dado ruir de uma só vez!" Tudo isso
nossa cabeças, este solo, aparentemente tão sólido, em que
sucederá, e mais ainda, no seu próprio reino, de nada
assentamos firmemente os pés,_tudo há-de murchar e de
valerá a Juba o conhecimento do terreno nem a coragem
extinguir-se; em todo o ser está contida a sua futura
obstinada do povo em defesa do seu rei; os uticenses,
degenerescência! 8 A natureza, embora as respectivas dura-
dominados pela adversidade, romperão os vínculos da
ções sejam diferentes, destina ao mesmo fim todos os
lealdade, e a fortuna proibirá a Cipião em África o uso do
seres: o que é, deixará de ser, não porque seja aniquilado,
velho cognome! Desde sempre, porém, a providência velou
mas porque se transforma. Para· nós, porém, a metamor- 14
fose é equivalente à aniquilação porque apenas considera-
mos os resultados imediatos, porque o nosso espírito
5
6
Carão não foi eleito para a pretura em -56, só o conseguindo em -54. embotado e agarrado a este corpo não é capaz de ver
Aparente erro histórico, já que Carão não tomou parte na batalha. Mas a
frase pode entender-se sem a tomarmos à letra: Carão = o partido, a posição de
que o mais importante representante foi Carão (cf. o verso famoso de Lucano,
bel!. ciu., I, 128). 8 Sobre a "mortalidade" do universo v. Zenão em S. V. F., I, 106; sobre a
7
Os três principais teatros da guerra civil, v. os três opúsculos pseudo- "concentração" da alma do mundo v. S. V. F., II, 604; sobre a "conflagração" v.
cesarianos Bel/um Africum, Bel/um Alexandrinum, Bellum Hispaniense. por ex. S. V. F., II, 605.

274 275
mais além. Se assim não fosse, o homem teria mais cora- virtude não pode sofrer acresomo algum. Sócrates dizia
gem para encarar o fim próprio e o dos seus, caso pen- que verdade e virtude são uma e a mesma coisa. Tal
sasse que, como tudo o mais, a vida e a morte se suc~­ como a verdade não pode ser acrescida, também a virtude
dem alternadamente, que cada coisa se dissolve nos seus o não pode: a virtude só tem uma medida, é um valor
componentes, que componentes dispersos se agregam para absoluto.
formar cada ser, e que nesta actividade se manifesta eter- Não há, portanto, razão para te admirares quando te 17
namente a acção da divindade que modera o universo 9. digo que todos os bens são iguais, quer os que obtemos
15 Deste modo, percorrendo com o espírito todo o revolver deliberadamente, quer os que as circunstâncias nos propor-
dos tempos, poder-se-ia dizer como M. Catão: "Toda a cionam. Se admitires desigualdade entre estas duas catego_-
espécie humana, presente ou futura, está condenada à rias e incluíres, por exemplo, a coragem perante os tor-
morte; todas as cidades florescentes que tem havido, todas mentos na classe dos bens inferiores, estarás, ao fazer isso,
as metrópoles enriquecidas por conquistas imperiais - um a inclui-lo na classe dos males; serás levado a dizer que
dia ignorar-se-á até onde ficavam, pois todas desaparece- Sócrates era infeliz na prisão, que Carão se sentia infeliz
rão, levadas por várias formas de destruição: umas serão ao abrir a ferida com ânimo ainda maior do que mostrara
arrasadas pela guerra, a outras consumi-las-á a inacção, a ao ferir-se, que Régulo foi o mais desgraçado dos três
paz transformada em indolência, e essa peste funesta quando se entregou à tortura para guardar a palavra dada
que se sucede à abundância da riqueza: o luxo! Todas aos inimigos! Ninguém, todavia, - a menos que seja o
estas planícies férteis serão submersas por uma inesperada último dos cobardes - , ousará afirmar tal coisa: há quem
irrupção do mar ou ruirão nas entranhas da terra por negue que Régulo fosse feliz, mas ninguém afirma que
súbito aluimento do solo. Porquê então indignar-me ou fosse desgraçado! Os antigos Académicos admitem que se 18
afligir-me se precedo um pouco o destino comum da possa ser feliz no meio da t~rtura, mas não de uma
16 República?" Uma alma grande deve submeter-se à divin- forma total e plena 11 • Tal posição é inaceitável: se não se
dade e obedecer sem hesitação à lei geral do universo: for feliz, não se pode gozar do súpremo bem. O supremo
após a morte a alma, ou passa a uma forma superior de bem não admite qualquer grau superior a si, desde que
vida ascendendo, luminosa e tranquilamente, à esfera divina, nele se contenha a virtude, e desde que a virtude não seja
ou então, caso volte a confundir-se no todo da natureza, diminuída pela adversidade e permaneça intacta mesmo
decerto não sofrerá com isso a mínima aflição 10• Por con- que o corpo sofra alguma amputação: e de facto a virtude
sequência a vida segundo a ética de M. Catão não é um mantém-se! É que eu concebo a virtude como animosa e
bem superior à sua morte segundo a ética, uma vez que a sublime, e tanto mais ardente quanto mais obstáculos
encontra. A mesma disposição de espírito que assumem 19

9
Cf. S. V. F., 1, 98.
'º Cf. supra, livro VII, nora 15. 11
Cf. infra, carta 85, 18.

276 277
frequentemente os jovens de índole nobre quando se dei- equivalentes os bens do juiz que julga segundo a ética e
xam tocar pela beleza de qualquer acção eticamente válida os do citado em juízo que se mantém dentro dos princí-
a ponto de desprezarem todos os eventuais condicionalis- pios da ética, ou ao declarar igualmente boa a posição do
mos, essa mesma disposição incutirá e infundirá em nós a general triunfador e a. do prisioneiro que marcha adiante
filosofia; ela nos persuadirá de que o único bem é aquilo do carro triunfal sem que a sua alma se deixe abater! Há
que é conforme à moral - e de que um tal bem não pessoas que julgam impossível tudo quanto elas próprias
admite nem diminuição nem acréscimo, assim como não são incapazes de fazer, ou seja, que opinam sobre a vir-
admite curvatura a régua com que se traça uma linha tude partindo do ponto de vista das próprias debilidades.
recta. A mínima alteração nessa régua implica um defeito Porquê espantar-nos que possa ser vantajoso, por vezes 23
20 na rectidão da linha. O mesmo, portanto, diremos da vir- mesmo desejável, expor-nos ao fogo, às feridas, à morte, à
tude: é como uma linha recta, que não admite a mínima prisão? Para o homem esbanjador a austeridade é um cas-
curvatura; pode a virtude tornar-se mais rígida, mas nunca tigo, para o preguiçoso o trabalho equivale a um suplício;
poderá tornar-se mais intensa 12• A virtude formula juízos ao efeminado toda a labuta causa dó, para o indolente
sobre tudo, mas nada pode formular juízos sobre ela. E se qualquer esforço é uma tortura: pela mesma ordem de
a própria virtude não pode tornar-se mais recta, também ideias toda a actividade de que nos sentimos incapazes se
as acções que se realizam por meio da virtude não podem nos afigura dura e intolerável, esquecendo-nos de que para
ser mais rectas umas do que as outras, pois todas elas muitos é uma autêntica tortura passar sem vinho ou acor-
têm de se conformar com a virtude; donde se conclui que dar de madrugada! Qualquer destas situações não é difícil
todas são iguais entre si. por natureza, os homens é que são moles e efeminados!
21 "Que dizes? Estar reclinado num festim ou estar a ser Para formar juízos de valor sobre as grandes questões há 24
torturado são coisas iguais entre si?" Parece-te estranho? que ter uma grande alma, pois de outro modo atribuire-
Pois digo-te uma coisa que ainda vais estranhar mais: mos às coisas um defeito que é apenas nosso, tal como
estar reclinado num festim é um mal enquanto estar dei- objectos perfeitamente direitos nos parecem tortos e par-
tado na mesa de torturas é um bem se no primeiro caso tidos ao meio quando os vemos metidos dentro de água.
agirmos contra a moral e no segundo, conforme a moral! O que interessa não é o que vemos, mas o modo como
Não é a matéria do acto, mas sim a virtude que distingue vemos; e no geral o espírito humano mostra-se cego para
os actos em bons e maus; onde quer que esteja presente a a verdade! Indica-me um jovem ainda incorrupto e de 25
virtude só pode haver uma medida, só pode haver um espírito alerta, e ele não hesitará em julgar mais afortu-
22 valor. Já sei que me exponho aos ataques de quem mede nado o homem capaz de suportar todo o peso da adversi-
pelo seu próprio o ânimo dos demais, ao afirmar que são dade sem dobrar os ombros, o homem capaz de alçar-se
acima da fortuna. Não é proeza nenhuma manter a calma
quando a situação é tranquila; é admirável, pelo contrário,
12
Tradução conjectura!, dada a corruptela do texto. conservar o ânimo quando todos se deixam abater, manter-

278 279
26 mo-nos em pé quando todos jazem por terra. O que há posto à prova; acções que fazem recuar os outros, se
de mal na tortura e em tudo o mais a que damos o nome forem exigidas por qualquer dever moral, tal homem fá-
de "adversidade"? Apenas isto, segundo penso: o facto .de -las-á, e com entusiasmo, preferindo de longe ouvir gabar
nos abaixar, abater, humilhar o espírito. Ora nada disto o seu valor do que a sua felicidade!
pode suceder ao homem sábio, o qual se mantém vertical Mas vamos enfim à questão que esperas ouvir-me tra- 29
seja qual for o peso sobre os seus ombros. A um tal tar. Para que te não pareça que a virtude estóica paira
homem, coisa alguma deste mundo pode humilhar; um tal para além do humanamente possível, 15 dir-te-ei que o sábio
homem a nada do que é inevitável se recusa. O sábio não também pode estremecer, sofrer, perder a cor, pois tudo
se lamenta se lhe acontecer algo daquilo a que a condição isto são sensações fisicamente naturais. Onde é que está
humana está sujeita. Conhece as próprias forças, sabe que então a desgraça, quando é que estes sintomas se tornam
27 não vergará sob o peso. Com isto eu não estou a colocar num mal verdadeiro? É apenas quando causam o abati-
o sábio à parte do comum dos homens nem a julgá-lo mento da alma, quando levam o homem a confessar a sua
inacessível à dor como se de um penedo insensível se tra- servidão, quando o forçam a arrepender-se de si mesmo.
tasse. Apenas . recordo que o sábio é composto de duas O sábio será capaz de dominar a fortuna com a sua vir- 30
partes: 13 uma é irracional, e sensível, portanto, às feridas, tude, ao passo que muitos adeptos da filosofia se deixarão
às chamas, à dor; a outra é racional, dotada de convicções assustar por ameaças de somenos importância. Neste ponto
inabaláveis, inacessível ao medo, indomável. É nesta parte será nosso o erro se exigirmos de um principiante aquilo
que reside o supremo bem para o homem 14 • Enquanto o que exigimos ao sábio. Pelo que me toca, ainda estou na
seu bem próprio ainda está por preencher, o espírito do fase de assimilação destes princípios, ainda não atingi a
homem pode resvalar na incerteza, mas desde o momento fase da completa persuasão; e mesmo que a tivesse atin-
em que atinge a perfeição adquire para sempre a estabili- gido, não teria ainda tempo pára os ter de tal modo
28 dade total. O homem que iniciou a marcha para o bem assimilado e praticado que eles me pudessem ocorrer em
supremo e cultiva a virtude, mas que, embora se apro- qualquer emergência. Há certas cores que a lã assimila a 31
xime da meta, ainda não atingiu a plenitude, pode por uma só passagem, outras só ao fim de muitas aplicações
vezes recuar e diminuir algum tanto a sua energia mental; ficam bem impregnadas no tecido; semelhantemente, há
é compreensível, pois ainda não ultrapassou a fronteira da certas áreas do conhecimento que, uma vez apreendidas,
incerteza, ainda escorrega na dúvida. Mas o homem que podem de imediato ser postas em prática; a filosofia,
atingiu a ventura da perfeita virtude, esse tanto mais res- porém, só após longa e profundamente interiorizada, só
peito tem por si mesmo quanto mais violentamente já foi depois de ter não só colorido mas impregnado mesmo a
alma, é que está em condições ·de proporcionar os resul-

11
Cf. S. V F., II, 762.
14 15
Cf. S. V F., II, 879; III, 20. Cf. S. V F., III, 668, 544, 545.

280 22 281
32 tados inicialmente prometidos. De uma forma breve e sin- siste na vontade de progredir. De uma coisa tenho eu
tética esta tese pode resumir-se assim: o único bem é a plena consciência: quero progredir, quero-o com toda a
virtude, não existe bem onde não existe virtude e quanto alma! Sei que também tu estás cheio de entusiasmo no
à virtude diremos que ela reside na melhor parte de nós sentido de buscar atingir a virtude com todas as energias.
mesmos, ou seja, na parte racional. A virtude não é outra Avancemos, pois só assim a vida nos será de utilidade. De
coisa senão a faculdade de ajuizar de uma forma correcta outro modo não passa de um entrave, e um entrave
e imutável; dessa faculdade provêm as decisões da von- desonroso para quem vive no meio do vício. Façamos
tade, e graças a ela se clarifica a natureza de todas as com que todo o nosso tempo nos pertença, o que só será
33 formas que despertam a vontade. De acordo com essa possível se começarmos por no~ tornarmos donos de nós
faculdade é legítimo considerar como bens, - e como próprios. Quando nos será concedida a indiferença perante 37
bens iguais entre si - tudo aquilo em que existe a as boas ou más graças da fortuna? Quando nos será dada
presença da virtude. Os bens do corpo são de facto bens a faculdade de dominar todas as paixões, de submetê-las à
para o corpo, mas não são bens de valor absoluto; tais nossa vontade, de poder enfim dizer esta palavra: "venci!"?
bens podem ter algum valor, mas carecem de dignidade; Perguntas-me quem é que eu pretendo vencer? Não são
entre eles existem consideráveis diferenças, uns são mais os Persas, nem as últimas tribos da Média, nem os povos
34 valiosos, outros menos. Entre os próprios praticantes da guerreiros que porventura existam para além da Dácia,
filosofia devemos necessariamente admitir que existem mas sim a avidez, a ambição e o medo da morte - que
fortes diferenças: este, por exemplo, já progrediu tanto até dos grandes conquistadores do mundo saiu vencedor!
que se atreve a erguer os olhos para a fortuna, embora
sem constância (pois os olhos ficam como cegos perante o
excessivo brilho); aquele já avançou tanto que, se não 72
chegou ainda à meta e ganhou plena confiança em si A questão que me puseste era para mim imediata- 1
mesmo, já pode pelo menos encarar de frente a fortuna. mente evidente, dado que eu tinha estudado a fundo esse
35 Uma coisa ainda incompleta está necessariamente sujeita a assunto. Sucede, porém, que há um certo tempo tenho
oscilar, a progredir, a recuar ou mesmo a ruir. E ruirá estado sem exercitar a memória que, por isso, me não
certamente, se não houver vontade e esforço em andar acode com facilidade. Passa-se comigo o mesmo que com
para a frente! Se abrandamos um pouco que seja a aplica- . os livros que se colam quando não são manuseados: tenho
ção e o esforço constante, andaremos certamente para trás. de "desenrolar" o meu espírito 16 e, sem demora, pôr
E ninguém conseguirá retomar o progresso no mesmo em movimento todos os conhecimentos nele depositados
ponto em que o interrompeu!
36 Só há uma solução, portanto: ser firme e avançar sem
descanso. O caminho que resta percorrer é mais longo 16
O livro antigo era um rolo de papiro, ou pergaminho, que se ia desenro-
que o já percorrido, mas grande parte do progresso con- lando à medida que prosseguia a leitura; daí a metáfora.

282 283
de modo a tê-los em forma sempre que me forem neces- dos em situações que precisamente tornam tal estudo
sários. Essa tua questão, portanto, vamos adiá-la por agora, imprescindível. "Há-de surgir qualquer coisa que me impeça 4
dado que ela me vai exigir considerável esforço e atenção. o estudo!" Não, se se tratar de alguém cujo espírito se
Quando tiver oportunidade de permanecer com certa demora entregue à tarefa com alegria e entusiasmo: a alegria pode
2 no mesmo sítio tomarei o assunto entre mãos. É que, sofrer interrupções no caso de pessoas ainda insuficiente-
enquanto certos temas se podem escrever mesmo quando mente avançadas, enquanto, no caso do sábio, o bem estar
andamos de carro, outros, pelo contrário, exigem repouso, é um tecido contínuo que nenhuma ocorrência, nenhum
vagar, solidão! De qualquer modo, mesmo durante estes acidente pode romper; em todo o tempo, em todo o lugar
dias plenos de ocupações, devemos meditar sobre um tema o sábio goza de tranquilidade! Porquê? Porque o sábio não
qualquer, e isso ao longo de todo o dia. Novas ocupações depende de factores externos, não está à espera dos favo-
é coisa que todos os dias temos: parece que fazemos res da fortuna ou dos outros homens. A sua felicidade
sementeira delas, de uma vão sempre nascendo outras. E está dentro dele; fazê~la vir de fora seria expulsá-la da
o resultado é que continuamente vamos adiando os nossos alma, que é onde, de facto, a felicidade nasce! Pode uma 5
estudos: "quando tiver terminado esta tarefa dar-me-ei à vez por outra surgir qualquer ocorrência que lembre ao
filosofia de alma e coração'', dizemos nós, ou então: "mal sábio a sua condição de mortal, mas ocorrências deste tipo
me veja livre desta maçadora tarefa vou entregar-me ao são de somenos importância e não o atingem mais do
3 estudo!" Ora nós não deveremos praticar a filosofia quando que à flor da pele. O sábio, insisto, pode ser tocado ao de
tivermos vagar, mas sim conseguir o máximo de vagar leve por um ou outro contratempo, mas para ele o sumo
para podermos praticar a filosofia! Há que pôr de lado bem permanece inalterável. Volto a dizer que lhe podem
todas as demais ocupações para nos consagrarmos a um ocorrer contratempos provindos do exterior, tal como um
estudo ao qual nunca será demais o tempo dedicado, ainda homem de físico robusto não está livre de um furúnculo
que a vossa vida se prolongue desde a infância até à ou de uma ferida superficial; em profundidade, porém,
máxima longevidade possível. Não faz muita diferença que não há mal que o atinja. A diferença existente, insisto 6
o estudo da filosofia seja totalmente negligenciado ou ainda outra vez, entre o homem que atingiu a plenitude
apenas cortado de interrupções; de facto, se interrompe- da sabedoria e aquele que ainda lá não chegou é a mesma
mos o estudo, nunca ficaremos no ponto em que a inter- que se verifica entre um homem são e um convalescente
rupção se deu, mas, à maneira de uma mola excessiva- de doença grave e prolongada. Para este a diminuição da
mente esticada, voltamos ao ponto de partida, precisamente intensidade da doença já quase significa saúde mas, se não
por carecermos de continuidade. Temos de oferecer resis- se precaver, o mal rapidamente se agrava e volta à primi-
tência às nossas ocupações, temos de as eliminar, em vez tiva forma; o sábio, em contrapartida, nem pode retroce-
de as multiplicar. Não há ocasião alguma que seja menos der, nem sequer pode avançar mais na via da sapiência. A
oportuna para um tão salutar estudo; e apesar disso mui- saúde do corpo está à mercê do tempo e o médico, se a
tos homens há que o não praticam por andarem envolvi- pode restituir, não a pode garantir perpetuamente, e tanto

284 285
assim é que com frequência o mesmo doente o volta de ao céu e outras completamente prostrado por terra. Quanto
novo a chamar; a saúde da alma, essa - obtém-se de àqueles que por completo são destituídos de estudos filosó-
7 uma vez por todas - e totalmente! Dir-te-ei agora o que ficos, a sua queda no abismo não conhece limite: tudo se
significa uma alma sã: é cada um contentar-se consigo passa como se tombassem no caos de Epicuro, no vazio
mesmo, ter confiança em si próprio, saber que todos os sem fronteiras! 17 Há ainda um terceiro género de homens: 10
votos feitos pelos homens, todos os benefícios que trocam o daqueles que se iniciaram na filosofia mas ainda a não
entre si não têm a mínima importância para a obtenção dominam; têm-na, todavia, como meta já visível, já -
da felicidade. Uma coisa passível de acréscimo não é uma passe a expressão - ao alcance da mão! Este tipo de
coisa perfeita; o homem que quer vir a possuir uma homens já se não deixará abater, já avançou ·demais para
permanente alegria, tem de fruir apenas do que efectiva- retroceder: eles não pisam ainda a terra firme, mas já se
mente lhe pertence. Ora todos os bens a que o comum encontram dentro do porto! Dado que há, como vimos, 11
dos mortais aspira são, de uma forma ou outra, transitó- uma tão grande diferença entre o tipo superior e o tipo
rios, pois de coisa alguma a fortuna nos permite a posse inferior de homens; dado que mesmo o tipo intermédio
para sempre. Mesmo esses bens transitórios, contudo, está sujeito às suas flutuações, nomeadamente ao perigo
podem ser-nos agradáveis se estiverem sujeitos ao con- gravíssimo de regressar aos hábitos nocivos, impõe-se esta
trolo e à influência da razão; apenas a razão pode tornar conclusão: nós não devemos ceder às nossas ocupações!
recomendáveis esses bens, cujo usufruto se revela nocivo a Temos de nos livrar delas; se as deixarmos tomarem conta
8 quem os ambiciona por si mesmos. Átalo usava habitual- de nós, então, quando umas cessarem outras virão tomar
mente deste símile: "já viste com certeza um cão de boca o seu lugar! Façamos por as recusar liminarmente; melhor
aberta, pronto a agarrar os bocados de pão ou de carne é não começar a praticá-las · do que ter de pôr-lhes fim
que o dono lhe atira? Cada bocado que apanha engole-o abruptamente!
logo todo inteiro, e novamente abre a goela na esperança
do mais que há-de vir. Connosco passa-se o mesmo: pomos
imediatamente de lado tudo quanto a fortuna nos atira
73
para satisfação das nossas expectativas, e ficamos ansiosos Em minha opinião laboram em erro aqueles que pen- 1
e embasbacados à espera de agarrar a próxima dádiva!" sam serem os fiéis praticantes da filosofia homens inso-
Atitude semelhante nunca o sábio a tem: o sábio goza de lentes e obstinados, que apenas sentem desprezo em rela-
plenitude; é com plena segurança que recebe ou restitui os ção aos magistrados, aos reis, a todos enfim a quem cabe
dons da fortuna; usufrui de uma alegria inexcedível, per- o encargo da administração pública. É precisamente o con-
9 manente, sua, para sempre. Um homem dotado de boa trário que se passa: nenhuma classe de pessoas lhes tem
vontade, já algo avançado na prática da filosofia mas muito
distante ainda da plenitude, pode deixar-se afectar pelas
alternâncias da sorte, sentindo-se umas vezes elevado até 17
Epicuro, fr. 270, 272, 273 Usener.

286 287
maior gratidão e com toda a justiça, pois a ninguém os mestres a quem ficou devendo a libertação do caminho do
seus préstimos são mais notórios do que aos filósofos, aos erro toda a veneração e respeito; o mesmo sente ele em
quais proporcionam as benesses de uma vida de ócio e relação ao príncipe, à sombra de cuja protecção pode
2 tranquilidade. Os filósofos, portanto, que nos seus esforços dedicar-se aos seus elevados estudos!
com vista a uma vida consagrada à moral só têm a bene- "Mas um rei não se limita a dar a sua protecção aos 5
ficiar com a segurança social, veneram como a um pai o filósofos." É evidente que não. Mas vejamos. Imagina que
príncipe a quem devem tal benesse; têm mesmo para Neptuno proporcionou a uma travessia marítima a mais
com ele uma dívida muito superior à dos que vivem no completa calmaria: não é verdade que, em idênticas cir-
meio da agitação da política, pois estes, embora muito cunstâncias, um homem cujo navio transportava uma carga
devam aos príncipes, muito também exigem deles, como maior e mais preciosa se mostrará mais grato para com o
gente cujas ambições, tanto maiores quanto mais são satis- deus? Não é verdade que o mercador pagará mais pressu-
feitas, liberalidade alguma pode contemplar a ponto de as rosamente a promessa feita do que o simples passageiro?
deixar saciadas. De facto, quem pensa no que está para Não é verdade que, mesmo entre os mercadores, se lhe
receber, esquece com facilidade os benefícios já recebidos: mostrará muito mais grato aquele que transportava per-
o maior mal que a ambição arrasta consigo é a sua per-
fumes, púrpuras e outros bens pagáveis a peso de ouro do
3 manente ingratidão. Acrescente-se ainda que nenhum polí-
que um outro cuja carga quase nada valia e quase só ser-
tico pensa no número de adversários que já venceu, mas
via para lastro? Pois com os filósofos a situação é a
apenas naqueles por quem foi vencido; para os políticos é
menos grato ver muitos em posição inferior à sua do que mesma: o benefício da paz, embora extensível a todos,
penoso lhes é ver alguém na sua dianteira. É este um sentem-no mais profundamente os que dela sabem usar.
vício comum a toda a espécie de ambição: nunca olhar De entre os nossos concidadãos muitos há que despendem 6
para trás. Aliás, não é somente a ambição que é instável, mais energia em tempo de paz do que em tempo de
mas todo o tipo de desejo, porquanto sempre começa pelo guerra: gente que aproveita a paz para se entregar à
4 fim. Em contrapartida, o homem sincero e puro que bebida, à luxúria e a outros vícios - que até a guerra
abandona o senado, o foro e todos os demais cargos forçaria a interromper! - crês tu que a sua dívida de gra-
administrativos do Estado, esse homem só sente estima tidão seja idêntica à do filósofo? A menos que se dê o
pelo príncipe que lhe permite a libertação, apenas esse caso de tu imputares ao sábio a injustiça de pensar que
homem pode testemunhar desinteressadamente em favor em relação aos benefícios comuns a todos lhe não cabe
do príncipe e ter em relação a ele, sem que este o saiba, · igualmente uma dívida de gratidão pessoal. Eu sinto-me
uma enorme dívida de gratidão 18• O filósofo tem pelos muito devedor dos benefícios do sol e da lua, embora
estes astros não nasçam para meu benefício exclusivo;
sinto-me particularmente o~rigado em relação ao ciclo do
18
O abandono do Senado, etc., foi o que Séneca fez a panit de 62, para o tempo e à divindade que o governa, embora não fosse
que achou por bem ter uma longa conversa com Nero a fim de lhe dar conta
da sua resolução; v. a narração do caso em Tácito, Ann., XN, 52-56. para meu exclusivo proveito que as estações foram dis-

288 289
7 criminadas 19• A estúpida avareza dos homens estabelece cuja administração e supervisão lhe facultam o ócio produ-
uma distinção entre a posse em comum e a posse em tivo, a liberdade de usar o seu tempo, e uma tranquilidade
privado, e por isso ninguém considera verdadeiramente que as ocupações públicas não vêm perturbar.
seu o que é de propriedade pública. O sábio, pelo contrá- Ó Melibeu, um deus foi quem nos proporcio-
rio, nada considera como mais seu do que aquilo cuja nou este ócio, pois um deus para mim será
posse é comum a todo o género humano. De resto, esta esse homem sempre! 21
espécie de bens não poderia ser de facto comum se uma Se este ócio de que fala Vergílio deve muito ao homem 11
parte dela não fosse propriedade de cada um. A posse de que o facultou, quando o seu principal proveito consiste
um bem - ainda que numa ínfima parte - em comum em que
faz com que surja a sociedade.
esse homem, como vês, permite que as minhas
8 Acrescenta ainda mais isto: os bens importantes e
vacas deambulem
autênticos não são divisíveis de modo a que cada homem enquanto eu, na minha agreste flauta, toco o
obtenha só uma pequena porção: chegam às mãos de cada que me apraz, 22
um na sua totalidade. Numa distribuição de salários, cada
homem levará aquilo que a cada um foi atribuído; num não é verdade que muito maior valor devemos nós atri-
buir a um ócio que nos faz viver entre os deuses, que faz
banquete, numa refeição vulgar - tudo aquilo de que nos
de nós deuses?
apropriamos "fisicamente" pode ser divisível em partes.
Isto é o que eu penso, amigo Lucílio, e, para exempli- 12
Mas a paz e a liberdade são bens indivisíveis, são pro- ficação, convido-te a acompanhar-me ao céu! Sêxtio cos-
9 priedade total tanto de todos como de cada um. O filó- tumava afirmar que o poder de Júpiter não é superior ao
sofo, portanto, considera a quem deve o uso e o benefício do homem de bem. Júpiter tem à sua disposição maior
destes bens - a quem deve o facto de as necessidades quantidade de benefícios a prestar aos homens; entre dois
públicas o não chamarem às fileiras, às vigílias, à defesa homens de bem, todavia, · não é melhor o que for mais
das muralhas, ao pagamento de impostos de guerra - e rico, tal como entre dois timoneiros igualmente expertos
dá graças ao príncipe que assim o governa 20• Uma máxima na sua arte não diremos que um deles é superior por o
fundamental da filosofia é esta: ser escrupuloso tanto a seu navio ser maior e mais belo! Em que é Júpiter supe- 13
receber como a retribuir um benefício. Ocasionalmente, rior a um homem de bem? Apenas em que a sua bon-
10 para o retribuir será bastante reconhecê-lo. O sábio, por dade dura mais! O sábio em nada se considera inferior só
porque as suas virtudes estão circunscritas a um menor
conseguinte, reconhecerá a sua imensa dívida ao príncipe
espaço de tempo. De entre dois sábios, aquele que tiver
morrido mais velho não é mais feliz do que o outro, cuja
19
vida de virtude foi truncada mais cedo; do mesmo modo
Texto corrupto; a tradução correspondente à conjecrura de Hense tem-
pora discripta sint. 21
20
Lir. "ao seu timoneiro'', imagem talvez ainda inspirada pela célebre metáfora Vergílio, Buc., i, 6-7.
22
da "nau do Estado" (Horácio, carm., I, 14). Vergílio, ibid., 9-10.

290 291
nenhum deus ultrapassa o sábio em felicidade, embora o A tua carta encheu-me de satisfação e restituiu-me um 1
ultrapasse em duração; ora a virtude não é maior só pelo pouco as forças que me vão faltando; reavivou-me mesmo
14 facto de durar mais tempo. Júpiter possui tudo, mas desse a memória que já se me vai tornando cansada e lenta.
"tudo" transmite a posse a outros: Júpiter só pode usar Porque não hás-de considerar, caro Lucílio, que o principal
dos seus bens no sentido de ser causa de todos os usarem. meio para obter a felicidade consiste na convicção de que
Quanto ao sábio, vê todos os bens serem usados pelos não há outro bem além do bem moral? Quem admite a
outros com a mesma equanimidade e indiferença que Júpi- existência de outros bens sujeita-se ao poder da fortuna,
ter, e tem muito maior respeito por si próprio, porque fica na dependência de uma vontade alheia; mas quem
enquanto Júpiter não usa desses bens porque não pode, o
circunscreve o bem ao bem moral pode ser feliz sem
15 sábio não os usa porque não quer! Podemos, portanto,
depender de ningu~m. Este homem sente-se vencido pela 2
acreditar em Sêxtio quando este nos aponta o caminho,
dor de ter perdido os filhos, aquele outro andará em cuida-
dizendo que
dos por os ver doentes, o outro além estará angustiado
rr •
por esta via ' estrelas, 23
se eh ega ate, as por os saber nas bocas do mundo, e mesmo gozando de
que esta é que é a via da frugalidade, da temperança, má reputação; verás também quem ande torturado de amor
da coragem." por uma mulher que lhe não pertence, ou pela sua pró-
Os deuses não nos desprezam nem invejam, antes nos pria; não faltará quem se atormente devido a um insu-
admitem à sua presença e nos estendem a mão para cesso político; a outros ainda as próprias honras serão
16 ajudar-nos a subir! Admiras-te que um homem possa motivo de angústia. Mas entre todos os homens não há 3
ascender à presença dos deuses? A divindade é que vem grupo mais atormentado do que os que se deixam angus-
até junto dos homens e mesmo, para lhes ficar mais pró- tiar pela expectativa da morte continuamente iminente,
xima, penetra até ao interior dos homens, pois sem a pois qualquer circunstância a pode originar. E assim, como
presença divina não é possível existir a virtude! As quem atravessa um território inimigo, há que estar atento
sementes divinas existem dispersas no corpo humano: se à direita e à esquerda, virar a cabeça ao mínimo rumor.
forem tratadas por quem as saiba cultivar, elas crescerão à Quem não consegue expulsar do ânimo o medo da morte
semelhança da sua origem, desenvolver-se-ão em plano vive sempre com o coração em ânsias. Vir-lhe-ão à memó- 4
idêntico ao da divindade de que provieram; mas se caírem ria casos de homens mandados para o exílio, privados dos
nas mãos de um mau cultivador então este, tal como um seus bens; vir-lhe-ão à memória casos de pessoas a quem
terreno estéril e pantanoso, matá-las-á, produzindo ervas as riquezas de nada valem - a forma mais insuportável
daninhas em vez de searas. de indigência! - ; vir-lhe-ão à memória casos de náufra-
gos, em sentido próprio ou figurado - homens a quem a
ira ou a inveja do povo (arma terrível mesmo para os
23
Vergílio, Aen., IX, 641 (cf. supra carta 48, 11). melhores!) destruiu inesperadamente quando nada o fazia

292 293
prever, à maneira de uma tempestade que surge quando ção, consegue gozar o produto desse roubo até ao dia
tudo pressagia bom tempo, ou da súbita queda de um raio seguinte! É por isso que um homem verdadeiramente
que faz abalar com a sua força todo o espaço circundante! precavido, assim que vê começar a distribuição de presen-
Neste último caso, quem se encontre perto do local onde tes, se retira do teatro, pois sabe que muito terá de ceder
o raio tombou fica entorpecido, como se tivesse sido atin- para conseguir um pequeno favor. Quando um se recusa à
gido; no primeiro, quando a desgraça inopinadamente abate disputa e se retira, o outro não vai atacá-lo ou bater-lhe;
alguém, todos os restantes ficam tomados de medo, por mas se ambos disputam o prémio, é inevitável o conflito.
saberem que a mesma angústia por que os outros passa- O mesmo se passa com as benesses que a fortuna espalha 8
5 ram pode também tocar-lhes a eles! Todos se afligem sobre nós: ficamos desgraçadamente excitados, enfurece-
com os males repentinos que caem sobre os outros. Tal mo-nos, desejamos ter muitas mãos, viramo-nos ora para
como as aves se assustam mesmo com o ruído de uma um lado ora para outro; dá-nos a impressão de que os
funda desarmada, também nós nos deixamos atormentar bens que nos excitam a cobiça levam demasiado tempo a
só pelo ruído, e não tanto pela pancada. Ora ninguém chegar - esses bens que poucos alcançam mas todos
pode sentir-se feliz com esta maneira de pensar. Só há desejam; ansiamos por ir-lhes ao encontro; alegramo-nos 9
felicidade onde não há medo; não gozamos a vida quando quando jogamos a mão a alguma coisa, deixamo-nos iludir
6 tudo nos faz desconfiar. Quem se confia ao acaso não pela esperança vã de superarmos alguns rivais, e acaba-
consegue mais do que uma inesgotável e contínua fonte mos por cair no engano de pagar por bom preço uma
de cuidados; só há uma via para se alcançar a segurança: presa sem valor! Retiremo-nos, então, destes jogos, ceda-
desprezar os bens exteriores e contentar-se com o bem mos o lugar aos conquistadores! Estes que se deixem estar
moral. Quem admite a existência de algum bem superior à espreita desses bens incertos, e permaneçam mais incer-
à virtude, quem pensa que pode haver outro bem que não tos, afinal, eles próprios !...
ela, fica sem defesa perante os dons da fortuna, na expec- Quem pretender ser feliz tem de admitir que não há 10
7 tativa ansiosa do que lhe irá caber em sorte. Guarda no outro bem senão o bem moral. Se, em vez disto, conside-
teu espírito esta imagem: a fortuna brinca com os homens, rar a possibilidade de existir outro bem, começará por
espalha ao acaso entre eles as honras, as riquezas, os ajuizar mal da providência, por um lado porque os homens
favores - mas de tudo isto, umas coisas são dilaceradas justos sofrem frequentes atropelos, por outro, porque o
entre as mãos dos competidores, outras são mal divididas espaço de tempo que nos é concedido nesta vida é curto,
por sociedades desiguais, outras não se conseguem sem é mesmo ínfimo se o compararmos à vida do universo.
grave dano de quem as obtém. De tudo isto, umas coisas Desta pessimista constatação resultará uma interpretação 11
foram parar às mãos de quem andava a elas alheio, outras, malévola das intenções divinas; queixamo-nos de não viver
disputadas por demasiados concorrentes, ficaram reduzidas sempre, de nos caber em sorte uma vida limitada, incerta,
a nada à força de serem ansiosamente pretendidas: em transitória. A consequência é nós não desejarmos viver
suma, ninguém, mesmo quando o roubo lhe corre de fei- nem morrer. Domina-nos o ódio à vida e o medo da

294 295
morte! Os nossos propósitos andam à deriva e não há não são bens. Acrescente-se ainda que muitos dos preten- 15
felicidade que nos possa contentar. O motivo é simples: sarnente chamados "bens" são gozados pelos animais mais
não conseguimos atingir aquele bem imenso e insuperável intensamente do que pelo homem. Aqueles consomem o
no qual necessariamente a nossa vontade se detém pois alimento com maior apetite, não estão tão sujeitos à fadiga
12 não há lugar algum para lá do ponto supremo. Queres tu sexual; a sua força muscular é mais intensa e constante:
saber por que motivo a virtude não carece de coisa alguma? logicamente os animais serão muito mais felizes do que o
Porque se satisfaz com o que tem à mão, sem ambicionar homem! Na realidade eles passam a vida ignorantes da
o que está fora do seu alcance: tudo quanto é bastante lhe maldade e do engano; gozam os seus prazeres, e obtêm-
parece suficientemente grande. Imagina agora que não -nos mais intensa e facilmente, sem qualquer restrição
pensas assim e verás como o sentimento de solidariedade imposta pela vergonha ou pelo arrependimento. Pensa tu, 16
para com familiares e amigos logo começa a vacilar, uma agora, se realmente se pode chamar "bem" a uma coisa
vez que quem deseja praticá-la tem de sujeitar-se a muitas relativamente à qual o homem é superior a deus e o ani-
situações daquelas que o vulgo considera males e arriscar mal é superior ao homem!
13 muito do que temos como bens. Desaparece a coragem, a Devemos circunscrever o bem supremo à alma: degra-
qual obriga forçosamente a pôr em risco a própria vida; dá-lo-emos se em vez da melhor parte de nós o associar-
desaparece a grandeza de alma, a qual só pode manifestar- mos antes à pior, se o pusermos na dependência dos sen-
-se quando menosprezamos como coisas sem valor aquelas tidos que nos animais sem fala são bem mais apurados do
que o vulgo imagina serem as mais importantes; desapa- que no homem. Não devemos atribuir ao corpo o ponto
rece a gratidão e o dever de retribuir um favor quando mais alto da nossa felicidade; os bens verdadeiros são
receamos o esforço a dispender, ou julgamos que há algo aqueles que devemos à razão - bens firmes e duradouros,
superior ao dever de lealdade, em suma, quando não ten- insusceptíveis de decadência, incapazes de padecerem qual-
demos para o bem supremo. quer decréscimo ou limitação! Os restantes bens são-no 17
14 Mas, deixando de lado esta questão, teremos de admi- somente na opinião do vulgo; na realidade apenas têm de
tir que, ou aquilo a que chamamos "bens" não o são de comum o nome com os bens verdadeiros, mas carecem
facto, ou, se o forem, então o homem é mais feliz do que das propriedades que distinguem um "bem" real. Cha-
a divindade, pois aquilo a que o comum dos homens dá memo-lhes antes "utilidades" ou, para usar o termo téc-
valor não tem a mínima utilidade para a divindade; esta, . nico, "recursos desejáveis", mas sem perder de vista que
efectivamente, está acima do desejo sexual, do prazer da se trata de "utensílios'', não de partes de nós mesmos;
mesa, da riqueza, de tudo, enfim, que tenta e arrasta con- tenhamo-los à mão, mas sem esquecer que são exteriores
sigo o homem, e só o homem, com uma vil forma de a nós; e mesmo tendo-os à mão atribuamo-lhes um lugar
prazer. Consequentemente, ou teremos de acreditar que há subalterno e secundário, como coisas de que ninguém se
bens inacessíveis à divindade, ou então, o facto de a deve orgulhar. Há coisa mais estúpida do que vanglo-
divindade deles prescindir nos servirá de prova de que riarmo-nos de algo que não fizemos? Deixemos que todos 18

296 23 297
esses falsos bens nos caibam em sorte mas sem se cola- olhar com admiração a sua pessoa, a sua vida - porque
rem a nós de modo a que, se ficarmos sem eles, os veja- nunca poderá ser vencido, porque domina os seus pró-
mos partir sem o mínimo sofrimento. Usemo-los sem nos prios males, porque subjuga pela razão (a sua arma mais
ufanarmos deles, e usemo-los moderadamente, como aigo forte!) todas as contrariedades, dores e injúrias! Ama a 21
que nos é confiado apenas transitoriamente. Quem quer razão, e este amor tornar-te-á apto a afrontar as mais
que os possua sem o controlo da razão não os conserva duras situações. O amor pelas crias precipita as feras con-
por muito tempo; até a própria felicidade, se incontrolada, tra as armas do caçador, a sua ferocidade, o seu ardor
acaba por tornar-se um fardo! Se confiamos nesses bens irreflectido torna-as indomáveis; a ambição da glória leva
mais do que efémeros, em breve ficaremos sem eles, e ao muitos espíritos jovens a afrontarem ferro e fogo; alguns
ficar sem eles sobrevém o desgosto! Raros homens têm decidem-se pelo suicídio por uma simples aparência, uma
sido capazes de suportar com tranquilidade a perda da sombra de virtude: em todos estes casos, quanto mais
felicidade; a maioria deles, quando caem por terra as con- forte e persistente se mostra a razão, tanto maior é o
dições que os tornaram eminentes, os mesmos factores ímpeto que leva a defrontar toda a espécie de perigo.
que antes os exaltaram ocasionam-lhes agora o abatimento. Vejamos uma objecção possível. "Não tem fundamento 22
19 Por conseguinte há que usar de prudência para impor à a vossa afirmação de que não há outro bem senão o bem
nossa vida medida e moderação, pois a falta de moderação moral,· tal convicção nunca vos poderá tornar seguros e
leva velozmente à ruína todos os bens disponíveis, e não imunes aos golpes da fortuna. O facto é que vós conside-
há recursos, por mais vastos, que consigam durar se a rais como bens possuir filhos respeitosos da família, uma
razão moderadora lhes não põe freio. Desta verdade pode nação moralmente sã, pais bem formados. Ora vós não
servir-te de prova a sorte de muitas cidades: cidades cujo podeis contemplá-los em perigo e sentir-vos em segurança;
poder imenso caiu por terra em pleno apogeu, com a o cerco à vossa cidade, a morte dos vossos filhos, a servi-
intemperança a arruinar por completo todo o edifício outrora dão dos vossos pais - tudo isto vos perturbará o espírito."
erguido graças à virtude. Devemos estar precavidos contra Começarei por apresentar a refutação habitual da nossa 23
semelhantes acidentes. Não há muralha inexpugnável con- escola a esta dificuldade, acrescentando em seguida mais
tra os ataques da fortuna: fortifiquemo-nos por dentro; se alguns argumentos que eu entendo necessários. Verifica-se
o nosso íntimo estiver bem seguro, poderemos ser abala- uma diferença de estado quando, ao sermos privados de
dos, mas nunca dominados! Queres saber em que consiste . certas particularidades, obtemos em vez delas qualquer
20 este meio de defesa? Em não nos revoltarmos contra o particularidade que nos é nociva; por exemplo, se perde-
que nos pode suceder; em termos a convicção de que mos a saúde, caímos num estado de doença; se ficamos
mesmo o que parece lesar-nos contribui para a conserva- sem acção nos olhos tornamo-nos cegos; se sofremos um
ção do universo como um dos elementos que levam a golpe nos joelhos, não apenas perdemos a capacidade de
cabo o curso natural deste mundo; o homem deve aceitar andar depressa, como até ficamos incapazes de nos ter em
o que também a divindade aceita; e por isto mesmo deve pé. Ora este perigo não se verifica nas circunstâncias que

298 299
atrás nos foram objectadas. Ou seja, se porventura perder atinja uma extrema velhice quer se extinga antes de che-
um bom amigo, isso não me obriga a suportar amigos gar a ela, a grandeza do sumo bem é a mesma, embora a
desleais, nem, se ficar privado de bons filhos, me surgirá duração da vida seja diversa. Podes desenhar um círculo 27
24 em seu lugar o desrespeito pela família. Além do mais, maior ou menor, a diferença entre eles está na área, mas
num caso destes não se trata realmente da morte de ami- não na forma; e mesmo que conserves algum tempo um
gos ou de filhos, mas apenas dos seus corpos. Um bem dos desenhos e apagues imediatamente o outro alisando a
somente pode extinguir-se na condição de transformar-se areia em que o traçaste, ambos tiveram precisamente a
em mal; ora tal condição é impossível por natureza, por- mesma forma. Uma linha recta não se avalia em termos
quanto toda a virtude e tudo quanto é realizado pela vir- de comprimento, de quantidade, de duração, porquanto é
tude permanece sem a mínima degradação. Consequente- impossível fazê-la encolher ou distender-se. Abrevia quanto
mente, ainda que tenham falecido os amigos, os filhos em quiseres uma vida regida pela moral e, em vez de durar
tudo conformes aos votos paternos, algo fica para preen- um século, faz com que se limite a um único dia que nem
cher o seu lugar. Sabes o quê? Precisamente aquela pro- por isso ela será menos moral! Nuns casos a virtude tem 28
25 priedade que deles fazia homens bons: a virtude! Esta não oportunidade de se espraiar, governando países, cidades ou
deixa vazio algum, antes preenche a totalidade da alma, províncias, emitindo leis, cultivando amizades, exercendo
faz desaparecer toda a saudade, é, ela só, suficiente, pois é os seus deveres para com os familiares, os filhos; noutros
nela que reside a origem e a energia de todos os bens. casos move-se dentro de estreitos limites impostos pela
Que importa se uma corrente de água é interrompida ou pobreza, o exílio, a perda da família; não se torna, con-
desviada, desde que permaneça a salvo a fonte donde ela tudo, menor por trocar uma alta posição social por uma
manava? Não será possível considerar que a nossa vida é humilde, um cargo governativo pela vida privada, o vasto
mais justa, mais bem ordenada, mais sensata ou mais espaço da acção pública pelo estreito limite da própria
honesta por termos os filhos vivos: logo também não casa, dum mísero cantinho! A virtude será igualmente 29
podemos considerá-la melhor. A companhia dos amigos grande mesmo quando reduzida a si mesma e privada de
não a torna mais sábia, assim como a sua falta não a faz contactos exteriores. Não perde por isso de forma alguma
mais insana; logo, a presença ou a ausência deles igual- o seu ânimo elevado e amplo, a sua inigualável prudência,
mente a não torna nem mais feliz nem mais desgraçada. a sua indefectível justiça. Consequentemente, em qualquer
Enquanto a virtude se conservar intacta é impossível sen- . dos casos o seu grau de felicidade será o mesmo; tal feli-
tir a falta do que quer que seja. cidade reside num único ponto: o próprio espírito; e assim
26 "Que dizes? Então não somos mais felizes quando nos obtém a estabilidade, a grandeza, a tranquilidade, coisas
rodeia um grande número de amigos e filhos?" Como, impossíveis de obter sem o conhecimento quer da condi-
mais felizes? Repara que o sumo bem não padece dimi- ção divina, quer da condição humana.
nuição ou acréscimo; mantém a sua própria grandeza seja Passemos agora àqueles argumentos pessoais a que 30
qual for o comportamento da fortuna. Quer um homem acima me referi. O sábio não se aflige com o falecimento

300 301
dos filhos ou dos amigos; encara a morte deles com o sintomas que pressagiam a moléstia - incapacidade de
mesmo ânimo com que aguarda a sua hora de morrer, movimento, lassidão completa mesmo quando se não faz
sem sentir medo perante esta tal como não sente sofri- nenhum esforço, sonolência, calafrios por todo o corpo - ,
mento perante aquela. A virtude, na realidade, baseia~se também um espírito débil se sente abalado, mesmo antes
na congruência: todas as suas realizações se situam ao de qualquer mal se abater sobre ele: como que adivinha o
mesmo nível, numa harmonia perfeita. Tal congruência mal futuro, e deixa-se vencer antes do tempo. Há coisa
desaparece caso a alma - que é sempre e necessaria- mais insensata do que nos angustiarmos com o futuro em
mente elevada - se deixa abater pela dor ou pela sau- vez de deixarmos chegar a hora da aflição, e atrairmos
dade. A ansiedade, a preocupação, sejam de que espécie sobre nós todo um cúmulo de tormentos? Quando não é
forem, são tão contrárias à moral como a indolência na possível livrarmo-nos por completo da angústia, pelo menos
acção; o valor moral, porém, mantém-se seguro de si, adiemo~la tanto quanto pudermos. Queres ver como é ver- 34
31 pronto a agir, livre do medo, sempre alerta. "Que dizes? dade que ninguém deve atormentar-se com o futuro?
Será então incapaz de sentir algo que se assemelhe à per- Imagina um homem a quem tenha sido dito que depois
turbação? Não se alterará a cor do rosto, não se agitará o dos cinquenta anos será submetido a graves suplícios: ele
olhar, não sentirá calafrios no corpo? Então e aquelas permanece imperturbável enquanto não passa a metade
reacções que não derivam da vontade da alma mas pro- desse espaço de tempo, altura em que começa a aproximar-
vêm irreflectidamente de um qualquer instinto natural?" -se da angústia prometida para a segunda metade da sua
Admito que isto possa suceder, mas nem por isso se aba- vida. Por um processo semelhante sucede também que
lará a convicção de que nenhuma daquelas contrariedades certos espíritos doentes sempre em busca de motivos para
constitui realmente um mal digno de enfraquecer um espí- sofrer se deixam tomar de tristeza por factos já remotos e
32 rito são. Tudo quanto for necessário realizar, realizar-se- esquecidos. A verdade é que nem o passado nem o futuro
-á com decisão e presteza. De alguém que se move longe estão presentes, pelo que não podemos sentir qualquer
da sabedoria pode com razão dizer-se que, quando age, o deles. Ora a dor somente pode resultar de algo que se
faz sem empenho ou por mera obstinação - com o sente!
corpo a indicar-lhe um caminho e a alma outro, pelo que
se sentirá dilacerado por duas tendências de sinal contrá-
rio. Um carácter destes só consegue desprezo pelas acções
que, em teoria, o deveriam encher de admiração por si
próprio, e faz sem qualquer convicção os actos de que se
vangloria. De facto, quando receamos algum mal, o pró-
prio facto de o recearmos atormenta-nos enquanto o aguar-
damos: teme-se vir a sofrer alguma coisa e sofre-se com o
33 medo que se sente! Tal como nas doenças físicas há certos

302 303
LIVRO IX

(Cartas 75-80)

75
Tens-te queixado de receberes cartas minhas escritas 1
sem grandes pruridos de estilo. Mas quem é que escreve
com pruridos se não aqueles cuja pretensão se limita a
uma eloquência empolada? Se nós nos sentássemos a con-
versar, se discutíssemos passeando de um lado para o
outro, o meu estilo seria coloquial e pouco elaborado; pois
é assim mesmo que eu pretendo sejam as minhas cartas,
que nada tenham de artificial, de fingido! Se isso fosse 2
possível, eu preferia mostrar-te o que sinto, em vez de o
dizer. Mesmo que eu estivesse discutindo contigo não me
iria pôr na ponta dos pés, nem fazer grandes gestos, .nem
elevar a voz 1 : tudo isto seriam artifícios d~ oradores,
enquanto a mim me bastaria comunicar-te o meu pensa-
mento, num estilo nem grandiloquente nem vulgar. De 3
uma coisa apenas eu te quereria convencer: de que sentia
tudo quanto dissesse, e não apenas que o sentia, mas que
o sentia com amor! Ninguém beija uma amante do mesmo

1
Tudo quanto, em sentido genérico, se relaciona com a "gesticulação" era
tratado pela retórica clássica na rubrica actio "acção", v. Quintiliano, III, 3, 1-3 e,
sobrerudo, todo o capítulo 3 do livro XI.

305
modo que beija os filhos; e, no entanto, mesmo nas carí- Para quê preocupar-te com as palavras? Dá-te por satis-
cias puras e comedidas de pais para filhos está claramente feito se estiveres à altura dos teus deveres. Quando apren-
visível a afectividade. Hércules me ajude! Eu não quero derás as grandes lições da filosofia? Quando interiorizarás a
que as palavras inspiradas por um tão magno assunto lição aprendida de modo tal que nunca mais a esqueças?
sejam excessivamente frias e secas - pois a filosofia não Quando porás à prova a teoria? Na filosofia não basta,
deve renunciar por completo ao talento literário -, mas como é o caso nas outras ciências, confiar na memória,
também não há que dar demasiada importância às pala- devemos pô-la à prova através da acção. Para ser feliz não
4 vras. O nosso objectivo último deve ser este: dizer o que basta conhecer a teoria, há que pô-la em prática.
sentimos, sentir o que dizemos, isto é, pormos a nossa "Que estás dizendo? Abaixo do nível superior não existe 8
vida de acordo com as nossas palavras. Imagina um mes- qualquer gradação? Ou se atinge a sapiência ou se cai no
tre qualquer: se a impressão que tu sentes contemplando abismo?" É exactamente assim, segundo eu penso. Quem
as suas acções é idêntica à que tens ouvindo o seu discurso,
vai progredindo no estudo da filosofia pertence ainda ao
esse mestre atingiu o seu propósito. Observemos a quali-
número dos não sábios, embora esteja a uma grande dis-
dade dos seus actos, a fluidez do seu discurso: entre ambos,
tância do comum dos mortais. Mesmo entre os estudiosos
5 a mais perfeita unidade! As nossas palavras não visam o
da filosofia existem consideráveis diferenças; há autores
prazer literário, mas sim a pertinência. Se a eloquência
que dividem tais estudiosos em três classes. 2
surge, por assim dizer, naturalmente, sem esforço, ou quase,
deixemo-la acompanhar as mais nobres acções e realçar,
não a sua presença, mas a acção êm si! As restantes artes
2
dirigem-se exclusivamente à inteligência, ao passo que a Para o estoicismo antigo, os homens dividem-se em dois grupos exclusi-
vos: os "'sábios"' (ao<f>oí, sapientes), e os-- "'não sábios, insanos, insensatos''
6 filosofia é a actividade por excelência da alma. Um enfermo
(<f>avÀot,KCY.KoÍ, insipientes, stulti). Qualquer homem era rigorosamente incluído
não exige do médico o brilho do estilo; se, todavia, o numa ou noutra destas duas categorias (cf. por ex. S. V. F., I, 216), sem que se
mesmo homem que sabe tratar da doença é também capaz considerassem graus intermédios. A ideia de um estado intermédio no qual se
de explicar num estilo agradável qual'o tratamento a seguir, inserissem os proficientes, isto é, aqueles que iniciaram o estudo da filosofia e
que, em maior ou menor grau, se vão aproximando da sabedoria plena sem, no
deverá fazê-lo. Isso não significa que b doente se considere entanto, a terem ainda alcançado, parece ter-se originado durante o chamado
muito afortunado por ter encontrado um médico eloquente, estoicismo médio, nomeadamente com Panécio, cf. P. Grimal, Séneque, De
tal como de nada adianta que um piloto experimentado constantia sapientis, Commentaire,p. 42. Séneca, porém, é mais rigoroso: mesmo
os proficientes d~vem ser considerados como pertencendo ao número dos
7 seja simultaneamente um belo homem. Para quê acariciar- insipientes, quanto mais não seja porque o apenas iniciado pode ainda oscilar e
-me os ouvidos, para quê deleitá-los? Apliquem-me um recuar (71, 30; 72, 6; 35, 4), o que ao sábio não é possível acontecer. Sublinhe-se,
cautério, uma lanceta, uma dieta rigorosa. Esta é a tarefa entretanto, como uma das mais importantes contribuições de Séneca para a teo-
ria estóica, o seu voluntarismo, "das erst er in die Stoa hineintragt" (M. Pohlenz,
real. A tua preocupação deve ser a de sanar uma enfermi-
Die Stoa, I, p. 319); cf. ibid.: "Die alte Stoa schied die Menschen in Weise und
dade enraizada, grave, generalizada; a tua tarefa é tão Nichtwisser; bei Seneca tritt daneben der Gegensatz des guten und des bõsen
ingente como a de um médico que trata uma epidemia. Willens auf".

306 307
9 A primeira classe abarca aqueles que, embora ainda ainda tens aqui outra definição: desejar ardentemente coi-
não atingindo a sapiência, já se encontram muito perto de sas que apenas relativamente são de desejar, ou são abso-
o conseguir; o próprio facto de estarem perto, contudo, lutamente não desejáveis; ou atribuir um grande valor a
implica que a sapiência ainda lhes é exterior. Se me per- coisas que pouco ou nenhum valor têm. As paixões, essas, 12
guntas que classe de homens é esta, a minha resposta são impulsos da alma condenáveis, súbitos e intensos, os
será: são os que se libertaram já das paixões e dos vícios, quais, se se tornarem frequentes e não forem refreados,
e adquiriram os conhecimentos necessários a esse fim, podem degenerar em doenças da alma: um pouco à maneira
sem conseguirem ainda prosseguir nessa via com confiança do catarro, que, se apenas momentâneo, ocasional, se limita
inabalável. Não alcançaram ainda na prática o suíno bem, a provocar tosse, mas se se tornar contínuo, crónico, dege-
mas já não lhes é possível voltar aos vícios abandonados; nera em tuberculose! Em conclusão, os estudiosos mais
o ponto a que chegaram já não admite retrocesso, mas avançados já estão libertos das doenças da alma, mas,
ainda não têm uma noção clara sobre si mesmos, ou, con- conquanto próximos da perfeição, encontram-se ainda sujei-
forme eu me lembro de já te ter escrito em outra carta, tos às paixões.
"não sabem que sabem"! 3 Já lhes é dado gozar do seu bem A segunda classe compreende aqueles que se consegui- 13
10 próprio, mas ainda não confiam nele sem reservas. Esta ram libertar das principais enfermidades da alma e das
classe de estudiosos é definida por outros autores como paixões, mas não a ponto de gozarem definitivamente de
abarcando os que já se libertaram das doenças da alma um estado de perfeita tranquilidade. Por outras palavras,
mas ainda não das paixões, e que, portanto, ainda estão estão ainda sujeitos a retroceder ao estádio precedente.
numa posição pouco segura, pois apenas está ao abrigo do A terceira classe já está liberta de numerosos e consi- 14
mal quem expulsou de si o mal por completo; por outro deráveis vícios, mas ainda não de todos. Está livre da ava-
lado, só pode expulsar de si o mal aquele que, em seu reza, mas sujeita ainda à ira; já não é tentada pelo prazer,
11 lugar, atinge por completo a sapiência. Já muitas vezes te mas é-o ainda pela ambição; está liberta do desejo, mas
tenho dito qual a diferença entre as doenças da alma e as não do temor, e, no que toca aos objectos de temor, pode
paixões. Vou recordar-to uma vez mais: doenças da alma mostrar-se firme perante alguns mas ceder perante outros:
são os vícios bem enraizados e violentos, tais como a ava- por exemplo, não recear a morte, mas ter medo da dor
reza ou a ambição; tais vícios ocupam a alma com tanta física.
intensidade que se transformam em enfermidades crónicas. Meditemos um pouco neste ponto: já seria muito bom 15
Numa palavra, a doença da alma é um juízo de valor que para nós se nos pudéssemos incluir nesta terceira classe.
persiste no erro: por exemplo, considerar muito desejáveis A segunda classe atinge-se através de uma favorável dis-
coisas que são apenas relativamente desejáveis. Se quiseres, posição natural e de uma intensa e assídua aplicação ao
estudo; nem por isso, contudo, devemos menosprezar a
terceira classe. Pensa na quantidade de males que vês à
3 V. supra, carta 71, 4. tua volta; vê como não há crime que não seja praticado,

308 309
como dia-a-dia a perversidade vai progredindo, como a eu te abro a minha vida, se até isto te vou confessar:
maldade grassa na vida pública e na vida privada, e assim ando a escutar as lições de um filósofo 4, já há cinco dias
perceberás como já é muito bom o facto de não perten- que frequento a sua escola onde assisto desde as duas
16 cermos ao número dos piores! Dir-me-ás: "Tenho espe- horas da tarde às suas prelecções! "Bela idade para ir à
rança nas minhas possibilidades de vir a atingir a classe escola!?" E por que não? Não será o cúmulo da insensa-
mais elevada!" Tal esperança é para nós mais um voto que tez desistir de estudar só porque há muito tempo já que
uma promessa: vê como estamos sujeitos a pressões, como se deixou a escola? "Ora essa! Então eu hei-de pôr-me aó 2
buscamos a virtude dilacerados entre toda a espécie de nível dos miúdos, dos adolescentes?" Dar-me-ei por muito
vícios! Até sinto vergonha de o dizer: somos apenas satisfeito se a minha velhice me não der outros motivos
honestos nas horas vagas! ... Mas que recompensa enorme de que me envergonhe: a escola de filosofia aceita gente
nos aguarda se formos capazes de romper com as nossas de todas as idades. "Então é para isso que envelhecemos,
obrigações sociais e com os nossos males inveterados!. .. para imitar os jovens?" Pois se eu, apesar de velho, posso
17 Deixaremos de ser movidos pelo desejo ou pelo medo. ir ao teatro e ao circo, se não há combate de gladiadores
Não nos perturbará o terror, não nos corromperá o pra- a que eu não assista, porque hei-de envergonhar-me de ir
zer, não nos assustarão nem a morte nem os deuses; fica- assistir às lições de um filósofo? ... Temos de estudar 3
remos a saber que nem a morte é um mal, nem os deu- enquanto formos ignorantes; e, se é verdadeiro o provér-
ses existem para causar o mal. Tão pouco valor tem a bio, temos de aprender até morrer! Em nenhum caso,
morte que ataca, como o corpo que é atacado: as regiões aliás, o ditado se aplica melhor do que neste: enquanto
mais altas do ser não têm possibilidade de ocasionar o vivermos, temos de aprender a viver! E eis aqui um ponto
18 mal. Se um dia saírmos deste mundo de lama para as em que eu posso ensinar alguma coisa. Sabes o quê? Que
regiões sublimes e superiores teremos à nossa espera a mesmo um velho tem sempre ilgo a aprender. De resto, 4
tranquilidade da alma e, eliminadas todas as causas do sempre que entro na escola, sinto vergonha da espécie
erro, obteremos a liberdade absoluta. Queres saber em que humana. Como sabes, para chegar à casa de Metronacte, é
consiste a liberdade? Em não temermos nem os homens preciso passar à beira do teatro de Nápoles. O teatro
nem os deuses; em não desejarmos nada que seja imoral está sempre cheio, e é com todo o calor que o público se
ou excessivo; em termos o maior domínio sobre nós pró- pronuncia sobre o talento dos flautistas; qualquer trom-
prios: sermos donos de nós mesmos é um bem inesti- pista grego, qualquer arauto 5 tem sempre assistência. Em
contrapartida, na casa onde se investiga o que é um homem
mável!

76 ; Metronacte, infra § 4. A carta 93 é inspirada pela sua morte, cercamente


recente.
1 Ameaças cortar relações comigo se não te der parte de
5
todas as minhas acções diárias. Ora vê com que franqueza O arauto que nos concursos musicais proclamava o nome do vencedor.

310 311
de bem, em que se aprende a ser homem de bem... ape- Cada coisa é avaliada por uma qualidade esptx:ífica. O 8
nas meia-dúzia de assistentes! 6 E mesmo esses dão ao valor da videira está na sua produtividade, o do vinho no
comum dos mortais a impressão de não terem nada de seu sabor, o do veado na sua rapidez; o que nos interessa
importante a fazer: imbecis e preguiçosos, é como lhes nas bestas de carga é a sua força, pois elas apenas servem
chamam! Quanto a mim, podem troçar à vontade; há que para isso mesmo: transportar carga. Num cão a primeira
ouvir com serenidade os insultos da gente inculta, pois qualidade é o faro, se o destinamos a seguir a pista da
quem segue a via da moral só pode sentir menosprezo caça, a velocidade, se queremos que ele persiga as feras, a
pelo menosprezo em que é tido... coragem, se pretendemos que as ataque à dentada. Em
5 Continua, Lucílio, esforça-te por que não te suceda o cada ser, portanto, há uma qualidade que predomina, para
mesmo que a mim: começar os estudos na velhice. E cujo exercício nasce, e em virtude da qual é avaliado. Ora 9
esforça-te tanto mais quanto enveredaste por um estudo qual é a qualidade suprema do homem? A razão: graças a
6 que dificilmente chegarás a dominar mesmo na velhice. rrA té ela o homem supera os outros animais e aproxima-se dos
que ponto poderei progredir?" - perguntas-me. Até ao deuses. 7 Por conseguinte, o bem específico do homem é a
ponto onde chegarem os teus esforços. De que estás à razão perfeita, todas as suas restantes qualidades são-lhe
espera? O saber não se obtém por obra do acaso. O comuns com os animais e as plantas. O homem tem
dinheiro pode cair-te em sorte, as honras serem-te ofere- força: também os leões. É belo: também os pavões. É
cidas, os favores e os altos cargos poderão talvez acu- veloz: também os cavalos. Não digo que em relação a
mular-se sobre ti: a virtude, essa, não virá ter contigo! todas estas qualidades ele seja superado, nem me interessa
Não é sem custo, sem grandes esforços, que chegamos a qual a qualidade que o homem tem mais desenvolvida,
conhecê-la; mas vale bem a pena o esforço, porquanto de mas sim qual é a sua qualidade única, específica. O homem
uma só vez se obtêm todos os bens possíveis. De facto, o tem corpo: também as árvores: Tem capacidade de se
único bem é aquilo que é conforme à moral; nos valores mover instintiva e voluntariamente: os animais e os ver-
aceites pela opinião comum não encontrarás a mínima mes também. Tem voz: mas muito mais sonora é a voz
7 parcela de verdade ou de · certeza. Como tu achas que na do cão, mais estridente a da águia, mais grave a do touro,
minha última carta não te deixei bem explicado por que mais doce e ágil a do rouxinol! Qual é a qualidade exclu- 10
motivo eu te digo que o único bem é o bem moral - em siva do homem? A razão: quando a razão é plena e con-
teu entender é uma proposição que eu expus sem provas! sumada proporciona ao homem a plenitude. Por conse-
- , vou resumir-te concisa e logicamente tudo quanto já · guinte, uma vez que cada coisa quando leva à perfeição a
então te disse. sua qualidade específica se torna admirável e atinge a sua
finalidade natural, e uma vez que a qualidade específica do
6
A mesma oposição entre a multidão que assiste aos jogos e o número
exíguo dos praticantes da filosofia em 80, 2: ou entre a azáfama das cozinhas e
7
a solidão das escolas filosóficas em 95, 23. Cf. supra carta 41, 7-8.

312 24 313
homem é a razão, o homem torna-se admirável e atinge dos demais. A condição do homem está no mesmo plano . 13
a sua finalidade natural quando leva a razão à perfeição que a das restantes coisas. Ninguém diz que um navio é
máxima. À razão perfeita chamamos a virtude, a qual é bom por ser pintado de cores esplendorosas, ter um espo-
11 também o bem moral. 8 Por isso o único bem para o rão de prata ou ouro, ter o tecto dos camarotes ornado a
homem é aquele que é especifico do homem; neste momento marfim, ou por o seu carregamento ser de moedas ou
não estamos investigando o que seja o bem, mas sim em objectos valiosos; o que se lhe exige é que seja equilibrado
que consiste o bem próprio do homem. Se nenhum outro e sólido, que tenha as juntas bem calafetadas e seja estan-
bem é exclusivo do_ homem além da razão, então a razão
que, que seja capaz de aguentar o embate das ondas, obe-
será o seu único bem, embora venha combinada com as
diente ao leme, veloz e resistente ao vento. Um gládio 14
demais qualidades. Se um homem é mau, entendo que
diz-se que é bom, não quando pende de um cinturão dou-
merece desaprovação; se é bom, entendo que merece
rado ou tem a bainha enfeitada de pedras preciosas, mas
aprovação. Por conseguinte o primeiro e único bem do
sim quando o gume é acerado para cortar, e a ponta
homem é aquele que faz o homem incorrer na aprovação
ou desaprovação. capaz de fender todas as couraças. Não se exige a uma
12 Tu não duvidas da realidade dest~ bem; duvidas ape- régua que seja bonita, mas sim que seja rigorosamente
nas é que seja o único bem para o homem. Imagina um recta. Ou seja, cada objecto é avaliado segundo a sua fina-
homem que possua tudo o mais (saúde, dinheiro, numero- lidade, segundo a sua qualidade específica. Por conseguinte, 15
sas estátuas de antepassados, átrio cheio de gente 9 ) mas também na avaliação de um homem é irrelevante a área das
que seja reconhecidamente mau: tu condená-lo-ás. Imagina terras de cultura que possui, a quantidade de dinheiro que
agora outro homem, carecido de tudo o que mencionei empresta a juros, o número de clientes, o preço do leito
acima (nem dinheiro, nem abundância de clientes, nem em que dorme, ou a transparência dos seus cristais: inte-
nobreza, nem árvore genealógica) mas que reconhecida- ressa é saber até que ponto ele é bom! Um homem será
mente seja bom: dar-lhe-ás a tua aprovação! É este, por- bom se a sua razão for desenvolvida e justa, e se estiver
tanto, o único bem do homem: se alguém o possui, mesmo adequada à plena realização da natureza humana. É a isto 16
desprovido de todos os outros, merece a máxima conside- que se chama "virtude", nisto consiste o bem moral, que é
ração, se não o possui, mesmo dotado em profusão de o único bem próprio do homem. Dado que só a razão dá
todos os outros bens, sujeita-se à condenação e rejeição a perfeição ao homem, também apenas a razão o pode
tornar perfeitamente feliz; ora o único bem do homem é
aquele que só por si o pode tornar feliz. Nós chamamos
8
Sobre a distinção entre o bem em geral (bonum) e o bem moral (hones- igualmente "bens" a todos os outros que da virtude deri-
tum) , v. carta 118, 10-11.
9
As estátuas dos antepassados denotam a pertença a alguma antiga e nobre
vam e por ela são conformados, ou seja, a todas as obras
família; o átrio cheio de gente (i. e., de clientes que vêm apresentar os cumpri- realizadas por meio da virtude; precisamente por este
mentos matinais ao senhor) implica uma situação económica muito próspera. motivo é que a própria virtude será o único bem, porque

314 315
17 sem ela coisa alguma é um bem 10• Se todo o bem reside na Já te referi, se bem te lembras, como tem havido pes- 20
alma, então será um bem tudo quanto contribui para dar soas que, por um mero impulso irreflectido, foram capa-
à alma firmeza, elevação, largueza; ora a virtude torna a zes de vencer situações geralmente objecto ou de desejo
alma mais forte, mais sublime, mais vasta. Tudo o mais, ou de temor pelo comum dos mortais: há exemplos de
tudo o que excita os nossos desejos, abate e amolece quem tenha abandonado a riqueza, 11 há exemplos de quem
igualmente a alma e, enquanto parece elevá-la, apenas a tenha posto a mão sobre ,as chamas, 12 de quem não dei-
incha, iludindo-a através de um cúmulo de vaidade. Por xasse de sorrir em plena tortura, 13 de quem retivesse as
conseguinte, o único, bem será aquilo que torna superior a lágrimas nos funerais dos próprios filhos, 14 de quem enfren-
18 nossa alma. Todas as acções praticadas ao longo da vida tasse a morte com intrepidez; 15 de facto, uma paixão, um
são reguladas pela consideração do que é conforme à moral movimento de cólera, uma ambição podem chegar para
ou contrário a ela, é nesta consideração que residem os que desprezemos o perigo. Ora daquilo de que é capaz
motivos de fazer ou não fazer qualquer acção. Dito por um instantâneo impulso da alma excitada por um qualquer
outras palavras: um homem bom fará aquilo que consi- estímulo, não o será muito mais ainda a virtude, cuja força
dera ser conforme à moral embora seja difícil, fá-lo-á ainda é contínua, e não dependente de um ímpeto de momen-
que acarrete prejuízo material, fá-lo-á mesmo que seja to, a virtude - cujo apanágio é uma energia permanente?
perigoso; em contrapartida, não fará o que for imoral, Daqui se conclui que situações superadas ocasionalmente 21
mesmo que isso lhe proporcione dinheiro, prazer, poderio; pelos não sábios mas vencidas sempre pelos sábios não
coisa alguma o desviará da moral, coisa alguma o aliciará
são em si mesmas boas ou más. O único bem é, por con-
19 a praticar uma vileza! Em conclusão, um homem que se
seguinte, a virtude, a qual avança altaneira entre todos os
disponha a seguir a moral e a evitar o imoral aconteça o
graus da fortuna ostentando total desprezo por ambos os
que acontecer, um homem que ao longo da vida tenha
seus extremos!
sempre presentes, ao agir, estas duas considerações - que
Se aceitares a opinião segundo a qual existe outra 22
só é bem o bem moral, que não há mal senão o mal
moral - , um homem cuja virtude permaneça inalterada e espécie de bem que não o bem moral, o resultado será
se mantenha sempre igual a si mesma, um tal homem toda a virtude tornar-se periclitante; ou melhor, não nos
tem na virtude o seu único bem, dando por adquirido que
a virtude não pode deixar de ser um bem. Tal homem ,
11
Cf. por ex. a anedota de Estilbão e Demétrio Poliorcetes (carta 9, 18).
está ao abrigo da transformação - pois se a insensatez 12
A aventura, várias vezes contada por Séneca, de Múcio Cévola (por ex.
pode aceder à sabedoria, esta nunca pode retroceder até à 24, 5).
insensatez! IJ V. Tito Lívio, XXI, 2, 6-7-.
14
A título de exemplo, o caso de Xenofonte, v. Diógenes Laércio, Bíoç
'ZEvo</xVvroç, 10.
15
Cf., entre muitos casos possíveis, o exemplo dos Décios, pai e filho, citado
10
G S. V F., I, 190. por Séneca em 67, 9.

316 317
será possível alcançar a virtude se visarmos outra coisa convicçoes considerar as almas confinadas aos limites do
além dela própria. Uma semelhante opinião é contrária à corpo como mais felizes do que as já libertas e integradas
razão, da qual provêm todas as formas de virtude, e é no todo do universo. Também já disse que, considerando 26
contrária à verdade, a qual não pode existir sem a razão; como bem aquilo que é comum aos homens e aos ani-
ora toda a opinião contrária à verdade é uma opinião mais irracionais, seríamos constrangidos a pensar que os
23 falsa. Tu admites que necessariamente o homem bom deve animais irracionais gozam de felicidade, o que é impossí-
manifestar o máximo respeito em relação aos deuses. Logo, vel de admitir. Tudo devemos suportar para garantirmos
ele aceitará com equanimidade tudo quanto lhe suceda, o bem moral, coisa que não teríamos de fazer caso hou-
ciente como está de que tudo lhe sucedeu em conformi- vesse outro bem além do bem moral.
dade com a lei divina donde tudo procede. Sendo assim, Apesar. de já ter explanado amplamente esta questão
para esse homem o único bem é o bem moral; o seu na minha .última carta, não quis deixar de retomar esta
modo de agir consiste em obedecer aos deuses, em não se ideia e de passar em breve revista os pontos principais. É 27
encolerizar com os acidentes inesperados, em nunca deplo- que nunca esta teoria apar~cerá como verdadeira aos teus
rar a sua sorte, mas sim em aceitar o destino e em cum- olhos se tu não elevares o teu espírito, se não te interro-
24 prir as suas determinações. Se admitirmos que há outro gares sobre a tua disposição para morrer (caso as circuns-
bem além do bem moral, então seremos perseguidos pelo tâncias o exijam) pelo bem da pátria, de resgatares com a
apego à vida, e pelo apego às coisas que "ornamentam" a tua vida a salvação dos teus concidadãos se te ofereceres à
vida - o que é insuportável, infindável, indeterminado! morte, não apenas com resignação mas com alegria! Se
Logo, o único bem é o bem moral, o único que consente fores capaz de agir desta maneira, é porque para ti só o
a justa medida. bem moral é um bem, pois desprezas todos os outros
25 Já atrás disse que, caso considerássemos bens coisas bens a fim de alcançar aquele. Vê de que força dispõe o
(como a riqueza ou os cargos públicos) de que os deuses bem moral: tu serás capaz de morrer pela comunidade, e
não usufruem, então teríamos de admitir que a vida dos fá-lo-ás sem hesitação desde o momento em que te per-
homens comporta mais felicidade do que a vida dos deu- suadas de que essa é a acção justa. Pode dar-se o caso de 28
ses. 16 Acrescenta agora que, se as almas permanecem depois uma tão bela acção, ainda que por um exíguo espaço de
de separadas do corpo, então a sua situação mantém-se tempo, nos proporcionar uma imensa alegria; embora o
mais feliz do que quando estavam unidas ao corpo. Sucede, fruto de tal acção já não venha a reflectir-se sobre o
porém, que, caso considerássemos como bens aquelas coi- homem que, pelo seu acto, se eximiu às contingências da
sas que usamos por meio do corpo, as almas libertadas vida humana, pelo menos ser-lhe-á motivo de contenta-
estariam numa situação inferior: ora, é contrário às nossas mento a contemplação do que vai fazer: um homem cora-
joso e justo, quando prevê o que pode resultar da sua
morte - a liberdade da pátria, a salvação de todos aque-
16
Cf. supra, 74, 14 ss. les em cujo benefício arrisca a vida - sente-se possuído

318 319
da máxima satisfação e como que saboreia os perigos em liarmos as pessoas pelo que são, preferindo observá-las
29 que incorre! Mas mesmo um homem a quem é negada a sempre em conjunto com os seus acessórios. Quando qui-
alegria da contemplação do seu acto supremo e derradeiro, seres apreciar o verdadeiro valor de alguém, avaliar as
nem por isso hesitará em oferecer-se à morte, contentando- suas qualidades, deves vê-lo sem adornos. Fora com os
-se com a convicção de agir conforme a justiça e o res- bens de família, fora com as honras e todos os demais
peito pelo próximo. Podes apresentar-lhe argumentos a embustes da fortuna, fora até com o próprio corpo: observa
ver se o demoves, podes dizer-lhe "que o seu acto em sim a sua alma, as suas qualidades, a sua grandeza, vê se
breve será esquecido, ou que bem exígua será a gratidão essa grandeza é intrínseca ou extrínseca. Se um homem 33
dos seus concidadãos." Sabes o que te responderá? "Todas olha para o reluzir dos gládios com o olhar firme, se está
essas considerações são exteriores ao meu acto, enquanto convicto de que é indiferente a alma sair pela boca ou
eu só penso no acto em si; sei que é um acto conforme à pela garganta, podes chamar fefü _a esse homem! Se, quando
moral, e, por isso, onde quer que me guie e chame o bem se lhe dão a conhecer todos- os tormentos físicos a que o
moral, eu estarei presente!" acaso ou a prepotência dos Poderosos o podem submeter,
30 Este é, portanto, o único bem - um bem sentido não ouve sem tremer falar em prisões, em exílios, em outros
apenas por uma alma que já atingiu a perfeição, mas vãos terrores que afligem as mentes humanas; se é capaz
mesmo por qualquer homem que tenha um carácter nobre de exclamar:
e virado para o bem. Tudo o mais é irrelevante e transi-
"Sofrimento algum,
tório. A posse dos bens vulgares é uma fonte de preocu-
ó virgem, será para mim inédito ou inesperado;
pações; podem os favores da fortuna acumulá-los, para os tudo pressenti, tudo meditei no íntimo da alma/1 7
seus possuidores serão um peso, uma aflição e mesmo, Para quê pôr-me tudo isso diante dos olhos? Eu próprio
31 por vezes, um acervo de ilusões. Nenhum destes grandes sempre o tenho feito, e, com~ homem que sou, estou
senhores que tu vês vestidos de púrpura é feliz, como preparado para a condição humanal"
felizes não são os actores trágicos a que o argumento da
peça concede o ceptro e a clâmide: perante o público, Um mal previamente pensado fere com menor violência. 34
avançam altaneiros nos seus coturnos, mas, terminada a Só para os insensatos, para os seguidores da fortuna, é
peça, descalçam-se e regressam à estatura normal! Nenhum que a face do mal é inédita ou inesperada; aliás, para os
inexpertos, grande parte do mal reside na novidade! Que
destes homens que as riquezas ou as honras elevam aos .
de facto assim é prova-o o facto de um mal habitual se
píncaros é verdadeiramente grande. Apenas parecem gran-
tornar mais fácil de suportar. Por isso o sábio se vai habi- 35
des porque os medimos em conjunto com a base onde se
tuando aos males futuros, vai tornando mais ligeiros gra-
erguem. Ora nem um anão é grande se se empoleirar
ças ao pensamento aqueles males que para os outros se
numa montanha nem um colosso diminuirá de tamanho
32 se estiver no fundo de um poço! Aqui reside o nosso erro,
17
aqui está a origem das nossas falsas apreciações: não ava- Vergílio, Aen., VI, 103-5.

320 321
tornam ligeiros graças ao hábito. Sucede-nos por vezes Ao passo que toda a gente se precipitava para o cais 3
ouvirmos da boca de não filósofos frases deste tipo: "eu eu saboreava a minha própria indolência: é que, embora
sabia que ainda estava guardado para isto!... " O sábio, por esperando correspondência do meu pessoal, não me preci-
seu lado, sabe que ainda está guardado... para tudo, e pitei a saber qual era por lá o estado dos meus negócios,
assim, perante o que quer que lhe suceda, ele dirá sempre: quais os lucros obtidos: já de há muito que perdas ou
"já sabia!. .." ganhos me não afectam! Ainda que eu não fosse velho,
manteria a mesma opinião, mas, nas circunstâncias pre-
sentes, mais energicamente a defendo: é que, por muito
77 diminutas que fossem as minhas posses, sobrar-me-ia sem-
1 Fomos hoje surpreendidos pela chegada dos navios pre mais viático do que via, e muito especialmente porque
alexandrinos que usualmente costumam partir primeiro, anun- a via em que ingressamos não precisamos de percorrê-la
ciando assim a próxima chegada dos restantes barcos; são até ao fim. Uma viagem fica incompleta se paramos a 4
conhecidos por navios-correio. Foi com alvoroço que a meio do caminho ou não atingimos o local pretendido, ao
Campânia os viu chegar; em Putéolos, a multidão aglomerou- passo que a vida apenas é incompleta se for imoral. Onde
-se nos molhes e, pelo próprio aspecto do velame, conse- quer que te detenhas, se o fizeres conforme à moral, a tua
guiu distinguir, no meio da massa dos restantes, quais os vida estará completa. Frequentemente temos de deter-nos
com coragem, e nem sempre por motivos de grande rele-
navios alexandrinos. De facto, apenas estes conseguem man-
vância; aliás, os motivos que nos mantêm agarrados à
ter desfraldada a vela pequena que todos os navios têm
vida não são de grande relevância!
2 no alto do mastro. Motivo: a parte mais alta do velame é
Tu conheceste perfeitamente Túlio Marcelino - um 5
a que mais impele o navio, é no topo que mais se exerce
jovem calmo, precocemente envelhecido que, ao ver-se ata-
a força do vento. Por isso, sempre que o vento aumenta
cado de uma doença, embora curável, assaz prolongada,
de intensidade e se torna mais forte do que o desejável, a penosa, implicando cuidados extremos, começou a deliberar
verga do barco é arreada: a ventania é menos violenta na seriamente sobre a morte. Chamou vários amigos a sua
parte mais baixa. Quando entraram em Cápri e ultrapas- casa. Uns, os medrosos, aconselhavam-no a fazer o que
saram o cabo onde eles próprios fariam nas mesmas circunstâncias; outros,
"se vê no rochoso cume o alto templo de Palas, 18 " por adulação ou amabilidade, davam-lhe o conselho que
enquanto os outros barcos tiveram de se contentar com a julgavam mais agradável seria à deliberação de Marcelino.
vela grande, a presença do síparo serviu para identificar Um amigo nosso, de obediência estóica, homem notável, 6
os "alexandrinos". cheio de valor e coragem (tenho de dar aos seus méritos
as palavras que ele merece), foi, quanto a mim, aquele
que o aconselhou com maior dignidade. Falou-lhe deste
18
Auctorum incert. fr. 24 p. 359 Baehrens (= inc. fr. 42 Morei). modo: "Meu caro Marcelino, não te tortures como se esti-

322 323
vesses deliberando sobre uma grande coisa! Viver não é amigo nada teve de difícil ou lamentável. Embora deci-
uma grande coisa! Todos os teus escravos vivem, todos os dindo-se pelo suicídio, a sua morte foi suave: Marcelino
animais vivem! O que é importante é morrer com nobreza, evaporou-se desta vida! Também espero que a minha his-
com plena consciência, com coragem! Repara quantos anos tória não tenha sido inútil, pois muitas vezes as circuns-
há já que tu repetes sempre os mesmos actos: comer, tâncias tornam necessária a presença de tais exemplos.
dormir, fazer amor - a vida resume-se a este ciclo! Para Muita vez sucede, de facto, que deveríamos morrer e não
desejar a morte não é indispensável ser-se consciente, cora- queremos, ou que morremos mesmo sem o querer! Não 11
1 joso, ou infeliz: pode-se desejar a morte por tédio!" Marce- há alguém tão estúpido a ponto de ignorar que, mais
lino não carecia propriamente de quem o persuadisse, mas tarde ou mais cedo, há-de morrer; no entanto, quando a
sim de quem o ajudasse: é que os escravos se recusavam a morte se aproxima, as pessoas vacilam, tremem, choram.
obedecer-lhe! O nosso estóico começou por os libertar do Não te parece o cúmulo da imbecilidade alguém chorar
medo, demonstrando-lhes que os escravos só incorreriam por não ter vivido mil anos atrás? Pois não é menos
em perigo se houvesse dúvidas sobre o carácter voluntá- imbecil alguém que chore por já não viver daqui a mil
rio da morte do seu senhor; de resto, tão condenável era, anos. As situações são idênticas: não existiremos no futuro,
por parte dos escravos, assassinar o senhor como impedi- tal como não existimos no passado; um e outro espaçÓ de
8 -lo de suicidar-se! Em seguida, aconselhou o próprio Mar- tempo ser-nos-á alheio. Tu foste projectado para este ponto 12
celino a que, por humanidade, - tal como no fim dos do tempo: por muito que o alargues, até quando poderás
banquetes se distribuem as sobras pelos escravos de ser- alargá-lo? Poique choras? Por que anseias? Tudo será em vão:
viço - , ao terminar a vida oferecesse alguma coisa àque- Não esperes alterar com preces o destino fixado pelos
les homens que durante a vida inteira o serviram. Marce- deuses!~
lino era homem de trato afável, e liberal... mesmo do seu
património, e assim distribuiu pelos escravos em lágrimas Os destinos estão determinados de uma vez por todas, e
pequenas somas de dinheiro, e dirigiu-lhes também pala- prosseguem a sua marcha em obediência à lei eterna do
9 vras de consolação. Para morrer, nem recurso a arma universo: tu irás para onde vai tudo o mais! Que vês
branca, nem efusão de sangue. Passou três dias sem nisto de estranho? Nasceste já sujeito a esta lei: o mesmo
alimentar-se, e mandou armar uma tenda dentro do quarto; já sucedeu ao teu pai, à tua mãe, a todos os teus avós, a
depois, puseram lá uma banheira onde Marcelino se insta- todos os homens que viveram antes de ti e a todos os
lou, e foram-lhe deitando .por cima água quente até que que viverão depois de ti! Uma mesma necessidade ineluc-
ele desfaleceu, sentindo nisso um certo prazer; e eu, que tável e inflexível domina todos os seres e arrasta-os con-
estou sujeito a frequentes desmaios, entendo bem esse sigo. Que multidão de gente não há para te seguir na 13
prazer que nos dá a moleza do desfalecimento!
10 Deixei-me espraiar por uma história que com certeza
19
te não desagradará: ficas a saber que a morte do teu Vergílio, Aen. VI, 376.

324 325
morte, que multidão para nela te acompanhar!... Creio trará novidade, nenhuma te não será odiosa à força de as
bem que a tua coragem seria maior se visses muitos saciares a todas! Já conheces o sabor do vinho e do hidromel:
milhares de pessoas a morrer ao mesmo tempo que tu; que diferença faz então que pela tua bexiga passem cem
pois fica sabendo que no preciso momento em que tu ou mil ânforas? Não passas de um filtro!... Conheces na
vacilas ante a morte muitos milhares de homens e de perfeição a que sabe uma ostra ou um rascasso: os teus
animais estão, de uma forma ou de outra, exalando a luxos não te reservarão para o futuro qualquer novidade.
alma. Julgavas, se calhar, que não havias um dia de chegar E aqui estão as coisas de que tanto te custa apartar-te!
ao ponto para onde sempre te encaminhaste? Não há Que mais há ainda que possas lamentar perder? Os ami- 17
estrada que não chegue ao fim!. .. gos? Tens a certeza de que és amigo de alguém? A pátria?
14 Pensas que irei agora citar-te exemplos de homens Acaso a amas tanto que por ela atrases a hora da ceia? O
famosos? Não, vou citar-te exemplos de crianças. Ficou na Sol? Se pudesses até o apagarias, já que nada fizeste na
história o gesto de um jovem da Lacónia, imberbe ainda, vida digno da sua luz... Confessa que não é com saudades
que, ao ser feito prisioneiro, começou a gritar no seu dia- do Senado ou do foro, nem sequer da natureza, que tu te
lecto dórico: "Nunca serei escravo/" 2º E comprovou as pala- mostras relutante em morrer! Tu vais abandonar um mer-
vras pelos actos: a primeira vez que o mandaram desem- cado de que experimentaste todos os produtos. Tens medo 18
penhar um trabalho servil e indigno (tratava-se de ir buscar da morte, mas esqueces-te dela mal te ponham à frente
um vaso para excrementos) ele despedaçou a cabeça con- um prato de cogumelos! Dizes que sabes viver: sabes
15 trauma parede. Como pode alguém sujeitar-se a ser escra- mesmo?!. .. Tens medo da morte: e porquê? Essa tua vida
vo tendo a liberdade assim à mão?! Não preferirias tu ver não é igual à morte? Um dia que G. César ia passando pela
morrer assim um filho teu a vê-lo chegar à velhice por Via Latina, aproximou-se dele um prisioneiro, que ia numa
cobardÍa? Como te deixas perturbar pela ideia da morte se leva de forçados, com uma barba caída até ao peito, e
até crianças sabem enfrentá-la com coragem? Se não obe- pediu-lhe que o matasse. "Pois tu ainda estás vivo?!" -
deces a bem ao destino, obedecerás a mal! Faz por von- respondeu César. Aqui está o que devemos dizer àqueles
tade própria uma coisa que não tens poder para alterar. de quem a morte se aproxima: "Tens medo da morte; 19
Não serás capaz de adaptar a atitude desta criança e gri- então ainda estás vivo?!" Há quem diga que pretende
tar: "Não serei escravo"? Desgraçado de ti, que serás servo viver porque comete muitas boas . acções, que a custo se
dos homens, das coisas, da vida - pois a vida não passa resigna a subtrair-se aos deveres da vida, porque no seu
16 de servidão se nos faltar a força para morrer!... Que pos- desempenho põe o maior empenho e boa vontade. Ora
suis tu ainda para te alimentar a esperança? Já esgotaste essa! Ignoras então que um dos deveres da vida é morrer?
todas as volúpias que te entravam e detêm: nenhuma te Tu não te eximes a nenhum dever, pois não é possível
delimitar um número exacto de deveres que tenhas de
cumprir. Toda a vida é sempre breve. Em confronto com 20
20
V. Séneca-o-Retor, Suasoriae, II, 8. a ordem da natureza foi breve a vida de Nestor, foi-o a

326 327
de Sátia ~ que mandou inscrever no túmulo: "Vivi até saúde. É à filosofia que devo a minha convalescença, a
aos noventa e nove anos". Podes ver pessoas que se gabam minha recuperação; a ela devo a vida - aliás, a menor
de uma idade provecta: mas quem as suportaria se duras- dívida de gratidão que tenho para com a filosofia. Tam- 4
sem até aos cem anos? Na vida é como no teatro: não bém contribuíram para eu recuperar a saúde os meus
interessa a duração da peça, mas a qualidade da represen- amigos: nos seus conselhos, na sua companhia, na sua
tação. Em que ponto tu vais parar, é questão sem a conversa encontrei uma grande consolação. Lucílio, meu
mínima importância. Pára onde quiseres, mas dá à tua excelente amigo, nada ajuda tanto um doente a recuperar
vida um fecho condigno! como a afeição dos amigos, nada é mais eficaz para afas-
tar de nós a expectativa e o medo da morte. Digo-te: eu
imaginava que continuaria a viver, não já na companhia
78 deles, mas através da sua memória; dava-me a sensação
1 Lamento saber que sofres frequentemente de gripe, e de que não exalaria definitivamente a alma, mas sim que
daquelas febres ligeiras e irritantes que as gripes prolon- a confiaria nas suas mãos. Estes pensamentos deram-me a
gadas, e já quase ininterruptas, arrastam consigo. E lamen- força de vontade para me ajudar a mim mesmo e para
to-o tanto mais quanto eu próprio também experimentei suportar todos os sofrimentos. O cúmulo da infelicidade
esse tipo de doença. A princípio não me preocupei: a seria, isso sim, ter perdido a vontade de morrer e, simul-
minha juventude era ainda capaz de aguentar as maleitas taneamente, não ter coragem para viver!
e de resistir bravamente aos ataques da doença! Mas por Recorre tu também a remédios idênticos a estes. O 5
fim fui-me abaixo, e cheguei ao ponto de ficar quase tuber- médico há-de indicar-te até que ponto podes andar a pé
2 culoso e reduzido a uma extrema magreza. Muitas vezes ou fazer exercícios, ele te dirá que não caias na indolência,
senti vontade de pôr termo à vida. O que me reteve foi a que é o que a falta de forças tem tendência a fazer; pres-
avançada idade do meu muito querido pai. Em vez de crever-te-á que leias em voz alta, como forma de exercício
pensar no ardor com que seria capaz de enfrentar a morte, para as tuas vias respiratórias bloqueadas; que . andes de
decidi pensar antes como ele desejaria ardentemente que barco, para o balanço ginasticar os teus pulmões; dir-te-á
eu não morresse! Assim, impus a mim mesmo a' obriga- o que podes comer, quando é que deverás beber vinho
ção de viver. E a verdade é que por vezes continuar vivo para ganhar força ou quando o deves evitar para não
é dar mostras de coragem! provocar e aumentar a tosse. O remédio que eu, por
3 Antes de dizer-te como é que me consolava da doença, minha parte, te receito é válido não apenas para a tua
dir-te-ei apenas isto: o próprio facto de me resignar a doença, mas para toda a tua vida: despreza a morte. Nenhum
estar doente já me servia de remédio. De facto, formas motivo de tristeza pode haver quando nos libertamos do
dignas de consolação acabam por tornar-se medicamentos; medo de morrer.
e tudo quanto nos fortalece a alma transforma-se em bene- Em qualquer doença há três factores importantes a ter 6
fício para o corpo. Os meus estudos restituíram-me a em conta: o medo de morrer, a dor física, a proibição

328 25 329
temporária dos prazeres. A respeito da morte já te disse o pontos do corpo que inundam exclusivamente. Deste modo, 9
suficiente; acrescentarei apenas que o medo dela não é as dores da gota, quer dos pés, quer das mãos, bem como
derivado da doença, mas da natureza humana. Muitos ho- as dores nas vértebras ou nos nervos como que descansam
mens houve a que a doença adiou uma morte iminente: a assim que entorpecem as próprias partes do corpo em
sua salvação deveu-se à suposição de que estavam às por- que se localizam. Em todos estes casos as primeiras mani-
tas da morte. 21 Tu hás-de morrer um dia, não por estares festações da dor são difíceis de suportar, mas com a dura-
doente, mas sim por estares vivo. E esta lei da natureza é ção diminuem de intensidade, até que o entorpecimento
válida mesmo quando estiveres de boa saúde. Quando recu- acaba por pôr termo à dor. As dores de dentes, dos olhos,
perares terás escapado apenas a uma doença, não à morte. dos ouvidos são precisamente muito intensas porque se
7 Voltemos agora ao aspecto mais penoso: é certo que a situam em partes do corpo muito diminutas, como, afinal
doença implica grandes dores físicas, mas o próprio facto de contas, sucede com a própria dor de cabeça; mas se a
de serem intermitentes torna-as suportáveis. 22 A intensi- dor for muito aguda acaba por gerar como que um ador-
dade de uma dor muito aguda tem o seu fim. É impossí- mecimento, uma insensibilidade. Aqui tens outra forma de 10
vel alguém sentir uma dor enorme durante muito tempo. te consolares das dores intensas: se sentires dores muitís-
Vê como a natureza foi benévola connosco a ponto de simo agudas acabas por necessariamente deixar de senti-
fazer com que a dor fosse, ou· suportável, ou de curta -las. As pessoas inexperientes 23 vêem-se em grandes dificul-
8 duração. As dores mais fortes localizam-se nas partes mais dades para superar as dores físicas precisamente porque
delgadas do corpo: os nervos, as articulações, e todos os não se acostumaram a contentar-se com a vida da alma, e
sectores mais afilados é onde se sente uma dor mais dão portanto ao corpo uma grande importância. Por isso
intensa, quando precisamente a moléstia se limita a um mesmo, o homem entregue de C()ração à sabedoria separa
espaço diminuto. No entanto, mesmo estas partes do corpo a' alma do corpo e ocupa-se mais da primeira - a sua
ficam entorpecidas e acabam por deixar de sentir a dor parte melhor, de natureza divina -, e apenas dá ao corpo
devido à própria intensidade da dor, - ou porque o
- frágil e sempre queixoso! - Ós cuidados estritamente
sopro vital, vendo vedada a sua via normal, segue outro
indispensáveis. "Mas" - dir-se-á - "é penoso privarmo- 11
curso, menos favorável, e perde aquela energia própria
graças à qual nos faz mover; ou porque os humores infec- -nos dos prazeres habituais: deixar de comer, passar sede,
tados, deixando de ter um espaço aonde afluir, forçam a passar fome." Os primeiros tempos de jejum são natural-
passagem por outro lado e tiram a sensibilidade àqueles mente penosos, mas depois o apetite vai decrescendo, até
porque os órgãos através dos quais se nos desperta o apetite

21
Recordação autobiográfica: G. César (Calígula) chegou a pensar em man-
23
dar matar Séneca, desistindo da ideia por uma alta dama da corte (Agripina ??) Por pessoas inexperientes entenda-se os insipientes, os não sábios. Note-
o ter persuadido da iminência da morte do escritor, d . Díon Cássio, IJX, 19. -se como a receita aqui indicada por Séneca para combater a dor - "separar a
22
a. Epicuco, fr. 446 Usener. alma do corpo" - se assemelha às técnicas praticadas pelos mestres de yoga.

330 331
se vão cansando e perdendo as forças; o estômago torna- O que é que se ganha em re-sentir os sofrimentos passa-
-se preguiçoso, e mesmo as pessoas ansiosas por comida dos, qual a vantagem de, por o ter sido uma vez, se con-
acabam por sentir repugnância pelos alimentos. Os pró- tinuar a sentir desgraçado? E não é verdade que toda a
prios desejos cessam: afinal, não custa nada passar sem gente exagera consideravelmente os próprios males, men-
12 uma coisa que se deixou de desejar. Acrescenta a isto que tindo, afinal, a si mesma? Ao fim e ao cabo, uma coisa
toda e qualquer dor física está sujeita a intermitências, ou, penosa de suportar torna-se agradável quando a vemos já
pelo menos, diminui de intensidade. Acrescenta a isto que no passado: sentir prazer com o termo da própria infelici-
é possível precavermo-nos contra a dor tomando remédios dade é um sentimento natural. Há, portanto, dois senti-
quando ela está para chegar; de facto, não há dor que se mentos que devemos eliminar decididamente: o medo do
não faça anunciar, porquanto regressa habitualmente em futuro e a recordação da desgraça já passada; esta já não 15
circunstâncias já conhecidas. E toda a doença é fácil de me diz respeito, o primeiro ainda o não faz. Perante uma
suportar desde que não liguemos importância à ameaça situação difícil há que dizer apenas: "Um dia - quem
mais grave que ela implica. sabe! - até isto nos será grato recordar/" 24 Um homem
13 Não comeces tu a fazer os teus males mais graves do tem que lutar contra a dor, de alma e coração; se ceder à
que são e a afligires-te com queixumes. Toda a dor é dor será vencido, mas se juntar contra ela todas as suas
ligeira quando não a julgamos a partir da opinião comum. forças sairá vencedor. O que hoje fazem quase todas as
Se, pelo contrário, começares a exortar-te a ti mesmo e a pessoas é atrair sobre si a ruína a que deviam tentar obs-
dizer: "Isto não é nada, ou pelo menos não é nada de tar. Imagina um muro já todo inclinado, a ameaçar cair:
importância! O que é preciso é paciência! Isto passa já!" se lhe escavares os fundamentos, o resultado será ele desa-
- pelo próprio facto de considerares ligeiras as tuas dores, bar com mais violência; mas se lhe meteres ombros, se
já estás a torná-las de facto ligeiras. Todos os nossos juí- tentares escorá-lo, ele aguentar-se-á. Quantas pancadas não 16
zos estão suspensos da opinião comum. Não são apenas a apanham os pugilistas no rosto, e em todo o resto do
ambição, o luxo, a avareza que se regulam por ela: tam- corpo! No entanto, submetem-se a essa tortura apenas
14 bém sentimos as dores de acordo com a opinião. Cada um pela ambição da glória. E não apanham pancada apenas
só é desgraçado na justa medida em que se considera tal. porque lutam, mas também para que possam lutar: o
Em meu entender, há que pôr termo às lamentações por próprio treino já é uma tortura. Pois também nós deve-
dores já passadas, e que evitar palavras tais como: "Nunca mos superar todos os confrontos, embora a nossa recom-
alguém esteve tão mal como eu! Que dores, que sofrimen- pensa não seja uma coroa, uma palma ou um toque de
tos eu padeci! Ninguém imaginava que eu iria recuperar! trombeta a fazer silêncio no estádio para que se proclame
Quantas vezes a família chegou a chorar-me e os médicos o nosso nome. O nosso prémio estará na virtude, na fir-
a abandonarem-me como morto! Os supliciados na mesa
de tortura não sofrem tormentos iguais aos meus!" Mesmo
24
que tudo isto fosse verdade, pertence já ao passsado. Vergílio, Aen., I, 203.

332 333
meza de alma, na paz interior para todo o sempre conquis- arranca bocados dos pulmões, da sede, dos teus membros
tada desde que uma só vez, em qualquer confronto, for- distorcidos pelas múltiplas deformações das articulações!
mos capazes de dominar a fortuna. "Sinto uma dor aflitiva." Piores ainda são o fogo, a mesa da tortura, as placas
17 E então? Sente-la menos se diante dela te portares cobar- incandescentes aplicadas sobre feridas entumescidas, para
demente? Na guerra, o inimigo é mais perigoso para os as reabrir, para as cavar ainda mais fundas. No entanto,
soldados fugitivos; semelhantemente, qualquer contrariedade submetido a estes tormentos houve alguém que não gemeu.
fortuita torna-se mais grave quando, em vez de resistir, Mais: que não implorou. Mais: que não respondeu ao
lhe viramos as costas. "Mas é mesmo aflitiva!" E depois? interrogatório. Mais ainda: que riu, e com toda a alma.
Então nós somos fortes e só pegamos em coisas leves? O Perante este exemplo, já sentes coragem para fazer pouco
que é que preferes, uma doença prolongada, ou um ataque da dor?
muito forte mas de curta duração? Uma doença prolon- Poderá objectar-se "que a doença não deixa as pessoas 20
gada tem altos e baixos, está sujeita a recaídas, exige agir, impede-as de cumprirem as suas obrigações." Veja-
necessariamente grande lapso de tempo quer para se decla- mos: a falta de saúde afecta o teu corpo, mas não o teu
rar quer para se extinguir. Uma doença muito grave mas espírito. Ou seja, pode impedir um corredor de usar as
breve, pelo contrário, fará uma de duas coisas: ou acaba pernas, um sapateiro ou outro qualquer artífice de usar as
com o doente, ou acaba ela. Que diferença há entre não mãos. Mas se tu estás habituado a usar o espírito poderás
existir a doença ou não existir eu se, em ambos os casos, continuar a aconselhar e a ensinar, a ouvir e a aprender, a
a dor deixa de sentir-se? investigar e a relembrar. Vamos lá a ver: tu julgas que, se
18 Outra coisa salutar a fazer é desviar a atenção para fores um doente paciente, ficas impossibilitado de agir?
outros pensamentos em vez de se estar a pensar na dor. Não ficas: mostras aos outros que a doença pode ser
Pensa em todos os actos que cometeste com rectidão e superada, ou pelo menos toletada! Acredita no que te 21
coragem; discute contigo mesmo causas justas: exercita a digo: mesmo quando se está acamado há ensejo para mani-
memória recordando todos os exemplos que suscitaram festar virtude. Não é só em combate, de armas na mão,
algum dia a tua admiração. Vir-te-ão à lembrança mil e que se pode dar mostras de uma alma corajosa e intrépida
um exemplos de homens que, à força de energia, saíram ante o perigo: o homem de coragem até jazendo num
vencedores da própria dor: este, ·enquanto por sua ordem leito se impõe. Aqui tens matéria para agires: luta valoro-
lhe laqueavam as varizes continuou como se nada fosse a samente com a tua doença. Se ela te não dominar, te não
ler o seu livro; aquele nunca parou de rir enquanto os subjugar - darás aos outros um belo exemplo. Oh, que
seus algozes, tanto mais irritados quanto mais ele ria, manancial de glória nós obteríamos se os outros nos con-
experimentavam nele todos os instrumentos que a cruel- templassem na doença! Contempla-te a ti mesmo, dá a ti
dade lhes oferecia. Se o riso pôde vencer a dor, como não mesmo motivos para te sentires contente contigo!
19 há-de vencê-la a razão? Podes falar-me do que te apete- Também devemos pensar que há dois géneros de pra- 22
cer: das tuas gripes, da tosse forte e contínua que te zer. A doença diminui os prazeres corporais, embora os

334 335
não elimine; pelo contrário, vendo bem até os estimula. É a vida nos causará fastídio nem a morte temor. Um 26
quando se tem sede que melhor sabe a bebida, e quando homem habituado à contemplação das coisas mais diver-
se está com fome é quando a comida mais apetece. Em sas, elevadas, divinas nunca pode sentir-se farto de viver;
suma, agarramos com mais avidez algo de que habitual- é a ociosidade sem energia que costuma tornar a vida
mente estamos proibidos. Os prazeres do espírito, contudo odiosa. A quem percorre a natureza nunca a verdade se
- que são muito superiores e seguros - , esses nenhum tornará fastidiosa; pelo contrário, fartá-lo-ão, sim, as falsas
médico os proíbe ao doente. Quem se entrega a estes pra- aparências. Um tal homem, se a morte lhe vem bater à 27
zeres e os aprecia devidamente não atribui a menor rele- porta, ainda que o ceife na força da vida - nem por isso
23 vância às seduções dos sentidos. "Que inf eliz doente!" Por- deixa de atingir os benefícios que lhe daria uma existência
quê? Porque não deita neve no copo para refrescar o prolongada. Esse homem conhece a natureza em grande
vinho? Porque não reaviva com gelo moído a frescura da parte; sabe que os valores morais não aumentam com o
bebida que preparou numa taça enorme? Porque lhe não tempo. Aos outros - os que medem a vida segundo os
servem à mesa ostras do lago Lucrino, abertas no momen- seus prazeres vãos e, por isso mesmo, infindáveis - , a
to? Porque, enquanto janta, não anda à volta dele uma esses toda a vida se afigura necessariamente breve!
multidão de cozinheiros trazendo para a sala os próprios Entretanto, vai-te entretendo com estas meditações, mas 28
fogareiros onde se cozinham os pratos? Sim, porque este não deixes de arranjar tempo para me escrever. Um dia
é o último requinte da moda: para a comida não arrefe- virá em que nós nos possamos juntar e conviver de novo,
cer, para que não chegue às bocas calejadas sem ser a fer- e, por muito breve que esse momento seja, a nossa capa-
24 ver, a cozinha transfere-se para a sala de jantar! ... "Que cidade para aproveitá-lo fá-lo-á parecer longo. Conforme
inf eliz doente!" Pois coma só o que é capaz de digerir; não diz Posidónio, "um único dia da vida de um sábio é mais
ponham à vista dele um javali que ele rejeita como se rico do que a existência interm:inável de um ignorante."
fora carne de segunda indigna da sua mesa, não lhe apre- Agarra-te por agora a este príncipio, assimila-o bem: não 29
sentem nas travessas um monte de peitos de aves (já que sucumbir com a adversidade, não confiar na felicidade, ter
ver as aves inteiras lhe provoca enjoo!). Que infelicidade é sempre diante dos olhos a arbitrariedade da fortuna -
a dele? Comerá como pessoa que está doente, ou, melhor como se ela houvesse mesmo de fazer tudo o que lhe é
.dizendo, como alguém que finalmente está de boa saúde! possível fazer. O que esperamos longamente torna-se mais
25 Quanto a nós, não teremos dificuldade em suportar fácil de aguentar quando nos atinge!
tudo isto - as poções, a água quente - e outras coisas
ainda que pareçam intoleráveis às pessoas requintadas e
emasculadas pelo luxo, mais doentes afinal do espírito que
79
do corpo. Basta para isso que deixemos de ter horror à Aguardo uma carta em que me descrevas todas as 1
morte. E deixaremos de o ter desde o momento em que novidades que encontraste durante o périplo da Sicília,
conheçamos os limites do bem e do mal; neste caso nem incluindo informações exactas acerca de Caríbdis. Quanto a

336 337
Cila, sei perfeitamente que não passa de um rochedo, e que a dita região é muito fértil e toda coberta de ervas; as
nem sequer muito perigoso para a navegação, mas de chamas, em vez de consumirem tudo, parecem ter perdido
Caríbdis estou interessado em saber se corresponde à as forças e limitam-se a brilhar. .
lenda. Se fores observar o local (e é inegável que mereee Deixemos esta questão por agora. Voltarei a pôr-ta 4
uma visita tua!), informa-me se é um único vento que quando tu me disseres a que distância do cume do monte
provoca o turbilhão, ou se é a ventania soprando em se estendem as neves que nem o verão derrete, a tal
todas as direcções que transforma o mar em sorvedouro. ponto elas se mantêm incólumes apesar da vizinhança do
Também pretendo saber se é verdade que um objecto fogo. Aliás, não me atribuas só a rriim esta curiosÍdade:
sorvido nesse remoinho marítimo é arrastado por muitas mesmo que. ninguém de tal te incumbisse tu seria.S louco
milhas sob as águas para voltar à surperfície perto da bastante para querer satisfazê-la... Que presente queres tu 5
2 costa de Tauroménio. Se me transmitires todos estes dados, que eu te ofereça para te dis~uadir de incluíres no teu
então atrever-me-ei a pedir-te que, em minha honra, subas poema a descrição do Etna, e -renunciares a um motivo
ao alto do Etna. De acordo com certos autores, a monta- que tem atraído todos os poetas? Tema que nem o facto
nha vai sendo consumida e diminui de altitude, o que eles de Virgílio o ter desenvolvido, impediu Ovídio de também
deduzem de antigàmente o Etna ser visível aos navegan- o tratar, tal como ambos estes poetas não dissuadiram
tes de uma distância um tanto maior. O fenómeno pode Cornélia Severo de igualmente o versar. 25 De resto, foi
explicar-se, não por uma diminuição de altitude da mon- este um tema que se prestou a todos eles em abundância:
tanha, mas sim por as chamas internas se acalmarem e parece-me a mim que os poetas mais antigos, longe de
serem projectadas com menor energia e amplitude; pelo esgotarem o assunto, apenas indicaram os tópicos a desen-
mesmo motivo vemos a coluna de fumaça mais reduzida volver. Há grande diferença entre um tema já esgotado e 6
outro meramente aludido: neste éaso, a matéria vai dia-a-dia
durante o dia. Nenhuma das duas explicações é inverosí-
ganhando amplitude, e as exposições já feitas não impe-
mil: pode suceder que uma montanha diariamente devo-
dem a feitura de outras novas. Pode também dizer-
rada pelo fogo diminua de tamanho, mas pode suceder
-se que a situação do último poeta da lista é privilegiada,
também que conserve o mesmo tamanho, por as chamas
pois encontra à sua disposição imagens já feitas que, inse-
não corroerem a própria montanha, antes, concentrando- ridas em novo contexto, ganham diferente coloração. Uti-
-se em algum vale subterrâneo, transbordarem e irem ali- lizar tais imagens não é, de modo algum, um furto, por-
mentar-se noutro local; o Etna seria, neste caso, não pasto, ·
3 mas apenas local de passagem para o fogo. Há na Lícia
uma região muito conhecida, a que os indígenas dão o 25
Vergílio, Aen., III, 570 ss.; Ovídio, Met., XV, 340 ss.; nos reduzidos
nome de Heféstion, na qual o solo está perfurado em fragmentos conservados de Cornélio Severo (Morei, pp. 116-119) não figura
qualquer referência ao Etna. Quanto ao poema intitulado Aetna nada prova,
muitos locais dando passagem ao fogo, que aliás se espa- nem mesmo este passo de Séneca, que a sua autoria deva ser atribuída a Lucílio
lha sem qualquer prejuízo para a vegetação. É um facto Júnior, apesar de vários filólogos se terem pronunciado nesse sentido.

338 339
7 quanto elas já são do domínio público. Ou eu não te conheço, para dizer a verdade, não muito!... Quando partimos do
ou o tema do Etna faz-te crescer a água na boca! Aí estás mais baixo grau, tornarmo-nos melhores não significa atingir
tu cheio de vontade de escrever um grande poema, tão o bem: alguém se orgulha dos seus olhos só por vislum-
bom como os já existentes! Digo "tão bom" porque da tua brar a claridade do dia? O homem que vê o Sol luzir
modéstia não se pode esperar mais: tal é ela que, julgo através do nevoeiro, se tem razão para s.e mostrar COJ:lt
bem, te levaria a refrear o teu talento se corresses o risco tente de ter já escapado às trevas, nem po~ isso goza ple-
de escrever melhor que os antigos, tanta é a veneração namente dos benefícios da luz! A nossa alma só terá 12
que por eles sentes! motivo para se congratular quando, liberta das trevas em
8 Entre outras vantagens, a sabedoria também tem isto que ainda se debate, não se limitar a ver uma débil lumi-
de bom: só se pode ser ultrapassado por outro durante a nosidade, ma.S receber em pleno a luz do dia, quando for
fase de ascenção. Quando se chega ao cume, não mais restituída ao espaço celeste e reocupar o lugar que era o
subsistem diferenças: a sabedoria é um estado constante, seu antes do nascimento. É para lá que a chama o seu
não passível de qualquer incremento. Acaso o Sol pode estado primordial, e lá poderá a nossa alma residir mesmo
aumentar de tamanho ou a Lua sair da sua órbita? Os antes de subtrair-se à prisão do corpo desde que, expul-
oceanos também não crescem; o mundo conserva sempre sando por completo os vícios, se eleve subtil e pura até ao
9 a sua forma e as suas medidas. Todos os seres que atingi- pensamento divino!
ram as suas dimensões ideais já não podem aumentar e, Aqui tens o nosso objectivo, caríssimo Lucílio, esta a 13
por isso, todos os homens que atingirem a sapiência são meta para onde devemos dirigir-nos com todo o empe-
de valor inteiramente idêntico. De entre eles, cada um nho, ainda que poucos, ou mesmo ninguém, saiba do nosso
terá as suas qualidades próprias: um poderá ser mais afá- esforço. A fama é para a virtude como uma sombra:
vel, outro mais desembaraçado, outro de palavra mais pronta, segue-a ainda que esta o não _, pretenda. Ora, a sombra
outro dotado de maior eloquência. Mas o ponto que nos umas vezes precede-nos, outras projecta-se para trás de
interessa - a sapiência que gera a beatitude - essa será nós: o mesmo se passa com a fama, que umas vezes nos
10 igual em todos eles. Se o teu Etna pode ser interiormente precede com a maior evidência, e outras só nos alcança mais
consumido e ruir sobre si mesmo, se a acção contínua das tarde ~ mas tornando-se tanto maior quanto mais tardia,
chamas tem força para destruir essa imponente montanha, quando já toda a inveja se desvaneceu. Quanto tempo não 14
visível da vastidão do mar - isso ignoro-o! A virtude, se julgou que Demócrito era louco! Como foi diminuta a
contudo, não há chamas ou catástrofes que a abatam; a celebridade de Sócrates! Quanto tempo ignorou Roma o
sua majestade é a única que não admite decréscimo. Não valor de Catão, a quem rejeitou, a quem só apreciou na
pode ser aumentada, tal como não pode ser reduzida; à justa medida quando o perdeu! A pureza e a virtude de
semelhança dos corpos celestes, a sua magnitude é cons- Rutílio permaneceriam ignoradas se ele não tivesse sido
tante. Esforcemo-nos, pois, para nos elevarmos até ela! vítima de uma injustiça, mas refulgiram à luz do dia
11 Muito do trabalho necessário já está feito; ou melhor, quando a violência se abateu sobre ele. Porventura não se

340 341
mostrou ele grato ao destino e aceitou com entusiasmo o inveja dos teus coetâneos cubra de silêncio o teu nome,
exílio que lhe impuseram? Estou-te falando de homens a outros homens virão capazes de te julgarem sem má
quem a fortuna, ao mesmo tempo que os abateu, tornou vontade nem parcialidade 27• Se a glória dá algum valor à
famosos. Mas quantos outros não alcançaram sucesso senão virtude, esse valor nunca perecerá. Não chegará aos nos-
após a morte! E quantos ainda a fama, mais do que sos ouvidos o que os pósteros dirão de nós, mas decerto
15 envolver, não foi por assim dizer· exumar!... Vê a multi- nas suas palavras, embora sem o sentirmos, continuare-
dão, e não só de gente culta mas mesmo de pessoas mos a ser uma presença. Vivo ou morto, todo o homem 18
pouco letradas, que hoje pasma ·de enlevo por Epicuro, tirou benefício da virtude, na condição de a ter praticado
esse Epicuro que viveu nos arredores de Atenas sem que com sinceridade, de não a ter usado como mero adorno
a cidade desse pela sua presença! Muitos anos depois de o postiço, de ter agido sempre de forma idêntica perante os
seu amigo Metrodoro ter falecido, Epicuro, numa carta em visitantes, quer estes se fizessem anunciar quer, pelo con-
que calorosamente se referiu à amizade que o unira a trário, lhe surgissem diante inesperadamente. De nada vale
Metrodoro, escreveu a terminar que, no meio da sua feli- a hipocrisia; podem alguns deixar-se iludir por uma ligeira
cidade, nem ele nem Metrodoro em nada se sentiram lesa- afectação de virtude superficialmente afivelada no rosto, a
dos pelo facto de a nobre Grécia não só os ter ignorado verdade, essa, é sempre constante em todos os pormeno-
16 mas mesmo quase lhes não conhecer os nomes. Não é res. As aparências ilusórias carecem de solidez. Toda a
verdade que Epicuro só foi descoberto depois de termina- mentira é frágil, e imediatamente se denuncia como tal se
dos os seus dias? Não é exacto que só então a sua fama a analisares com atenção.
resplandesceu? O próprio Metrodoro também afirma numa
carta que tanto ele como Epicuro eram pouco conhecidos;
mas acrescentou que, depois da morte de ambos, grande- 80 /
mente famosos seriam os que se dispusessem a seguir os Hoje tenho o tempo todo por minha conta, benesse 1
17 seus ensinamentos 26• A virtude nunca passa despercebida que fico devendo menos a mim próprio do que à realiza-
mas, se passar, isso em nada a diminui: um dia virá que ção de uma "esferomaquia" 28 e à atracção que tal espectá-
traga ao conhecimento de todos a virtude ignorada e como culo exerceu sobre todos os possíveis importunas. Nin-
que soterrada pela perversidade da sua época! Quem só guém virá interromper-me, ninguém impedirá o curso das
pensa nos seus contemporâneos veio a este mundo para .minhas meditações que assim, com esta certeza, prossegue
proveito de escasso número. Muitos milhares de anos e de com maior firmeza. Não ouvirei de vez em quando a
gerações se sucederão: pensa na posteridade. Ainda que a

27
Sine ira et studio, dirá Tácito no prefácio dos seus Annales (I, 1, 4).
26 28
Este passo forma o fr. 188 Usener, de Epicuro. V. também Epicuro, fr. "Esferomaquia" - jogo de bola em que podiam participar diversos com-
551 Usener, a máxima ÀÓllJe {3iwacxç. petidores.

342 343
porta a abrir-se, não verei afastar-se a cortina do meu virtude, não precisarás de ·dispender um tostão em equi-
gabinete: poderei prosseguir em paz e sossego, o que é pamento! Aquilo que pode fazer de ti um homem de bem 4
tanto mais necessário para quem caminha sozinho seguindo existe dentro de ti. Para seres um homem de bem só
a sua própria via.. Não pretendo negar que sigo os meus precisas de uma coisa: a vontade 29• Em que poderás exer-
predecessores; claro que os sigo, mas reservando-me o direi- citar melhor a tua vontade do que no esforço para te
to de descobrir, alterar ou abandonar alguma ideia; não · libertares da servidão que oprime o género hrtmano, essa
sou escravo dos meus mestres, apenas lhes dou o meu servidão a que até os escravos do mais baixo estrato, nas-
assentimento! cidos, por assim dizer, no meio do lixo, tentam por todos
2 Mas creio que falei demais quando me gabei de poder os meios eximir-se? O escravo gasta todas as economias
gozar uma tarde de silêncio e um retiro livre de interrup- que fez à custa de passar fome para comprar a sua alfor-
ções: agora mesmo me chega aos ouvidos um enorme ria; e tu, que te julgas de nascimento livre, não estás dis-
clamor vindo do estádio, o qual, se me não corta o pen- posto a gastar um centavo para garantires a verdadeira
samento, pelo menos o desvia para a consideração do liberdade?! 30 Escusas de olhar para o cofre, que esta liber- 5
fenómeno desportivo. Ponho-me a pensar na quantidade dade não se compra. Por isso te digo que a "liberdade" a
dos que exercitam o físico, e na escassez dos que ginasti- que se referem os registos públicos é uma palavra vã, pois
cam a inteligência; na afluência que têm os gratuitos nem os compradores nem os vendedores da alforria a
espectáculos desportivos, e na ausência de público durante possuem. O bem que é a liberdade terás tu de dá-lo a ti
as manifestações culturais; enfim, na debilidade mental mesmo, de o reclamar a ti mesmo! Liberta-te, para come-
desses atletas de quem admiramos as espáduas muscula- çar, do medo da morte (já que a ideia da morte nos
3 das. E penso sobretudo nisto: se o corpo pode, à força de oprime como um jugo), depois do medo da pobreza. Para 6
treino, atingir um grau de resistência tal que permite ao te convenceres de que a pobreza não é em si um mal
atleta suportar a um tempo os murros e pontapés de bastar-te-á comparares o rosto dos pobres com o dos ricos.
vários adversários, que o torna apto a aguentar um dia Um pobre ri com mais frequência e convicção; nenhuma
inteiro sob um sol abrasador, numa arena escaldante, todo preocupação o aflige profundamente; mesmo que algum
coberto de sangue - não será mais fácil ainda dar à alma cuidado se insinue nele depressa passará como nuvem
uma tal robustez que a torne capaz de resistir sem ceder ligeira. Em contrapartida, aqueles a quem o vulgo chama
aos golpes da fortuna, capaz de erguer-se de novo ainda "afortunados" exibem uma boa disposição fingida, carre-
que derrubada e espezinhada?! De facto, enquanto o corpo, gada, contaminada de tristeza, e tanto mais lamentável
para se tornar vigoroso, depende de muitos factores mate-
riais, a alma encontra em si mesma tudo quanto necessita
para se robustecer, alimentar, exercitar. Os atletas precisam 29
Sobre a importância da vontade no pensamento de Séneca d. supra nota 2.
de grande quantidade de comida e bebida, de muitos unguen- 10
· Idêntica oposição entre a "liberdade" civil acessível aos escravos e a verda-
tos, sobretudo de um treino intensivo: tu, para atingires a deira liberdade só ao alcance dos filósofos em Pérsio, Sat., V, 73 ss.

344 26 345
quanto, muitas vezes, nem sequer podem mostrar-se aber- tirar a roupa e mostrar o corpo. Conheces os turbantes 10
tamente infelizes, antes se vêem forçados, entre desgostos com que os reis citas ou sármatas enfeitam a fronte? Se
que lhes roem o coração, a representarem a comédia da quiseres avaliar em si mesmo o valor total de algum deles
7 felicidade! Eu sirvo-me frequentemente deste exemplo, pois tens de tirar-lhes todas essas faixas: quanta maldade não
nenhum outro exprime com mais eficácia a farsa que é a
podem elas esconder! Mas para quê falar dos outros? Pensa
vida humana, farsa em que desempenhamos papéis para
em ti: se quiseres saber quanto vales não atendas aos teus
que não somos fadados. O actor que entra faustosamente
em cena e proclama com arrogância rendimentos, à tua casa ou à tua posição social, olha sim
para dentro de ti, em vez de, como agora, acreditares no
"Sou o rei de Argos; Pélope deixou-me este reino, valor que os outros te atribuem!
o território do Istmo, batido pelas águas do Heles-
ponto e pelas do mar ]ónio/" 31
não passa de um escravo que recebe cinco módios de trigo
8 e outros tantos dinheiros como salário! Aquele outro que
grita com insolência e grosseria, inchado com a presunção
da própria força
"se não páras, Menelau, cairás às minhas mãos/" 32
esse é pago ao dia, e dorme numa manta de retalhos! O
mesmo podemos dizer de todos estes efeminados que via-
jam de liteira, suspensos acima do comum dos mortais e
olhando o vulgo de cima: a sua felicidade não passa de
9 encenação! Despe-os dos seus adornos, eles só te causarão
desprezo. Se fores comprar um cavalo mandas primeiro
tirar a manta que o cobre, se um escravo, mandas despi-
-lo, não vá ele ter qualquer mazela: porquê, então, avaliar
o valor dos homens pelo vestuário? Os vendilhões, esses é
que quando notam algum defeito no escravo o tratam de
cobrir de ornamentos, e o resultado é que os compradores
desconfiam quando vêem muito adorno: quando o escravo
tem uma perna ou um braço muito enfeitado, mandamo-lo

" Trag. rom. fr. inc. 104-6, p. 289 Ribbeck1 (= fr. trag. inc. 55 Klorz); o
primeiro verso deste fr. é eirado também por Quintiliano, IX, 4, 140.
12 1
· Trag. rom. fr. inc. 27, p. 276 Ribbeck .

346 347
LIVRO X

(Cartas 81-83)

81
Queixas-te de teres dado com um ingrato! Se é a pri- 1
meira vez que isso te sucede bem podes agradecer à tua
sorte ... ou à tua prudência. Mas esta é uma questão em
· que a prudência apenas fará de ti um homem azedo, pois
se pretenderes evitar o perigo da ingratidão nunca mais
farás benefícios a ninguém. Quer dizer, para que os teus
benefícios não sejam em vão, privas-te de fazê-los. A ver-
dade é que é preferível proporcionar benefícios mesmo
sem contrapartida do que renunciar a beneficiar os outros:
há que voltar a semear, mesmo depois de uma má colheita!
As sementeiras perdidas por uma prolongada esterilidade
de um terreno pouco fértil podem ser compensadas pela
abundância de uma única messe. Para encontrarmos um só 2
homem grato vale bem a pena sujeitarmo-nos à ingrati-
dão de muitos. Ao distribuir benefícios ninguém tem a
mão tão certeira que não se possa com frequência enga-
nar: pois sejam em vão esses benefícios, desde que uma
ou outra vez sejam bem aplicados! Não é um naufrágio .
que põe termo à navegação, como não é a presença de
um falido que impede o usurário de montar banca no
foro. Em breve a nossa vida se transformará num torpor

349
inutilmente ocioso se pretendermos eximir-nos à mm1ma vontade que usaram connosco: o que interessa num bene-
contrariedade. A ingratidão que sofreste deve dar-te ânimo fício não é o seu quantitativo, mas sim o espírito com que
para seres ainda mais pródigo nos teus benefícios: quando foi feito. Mas abandonemos por agora esta conjectura: o
uma acção é de resultado imprevisível há que empreendê- nosso homem fez-nos primeiramente um benefício, e
-la uma e outra vez para aumentar a probabilidade de causa-nos agora um prejuízo que ultrapassa o valor do
sucesso! benefício precedente. Um homem de bem fará as contas
3 Sobre este problema, todavia, já discreteei mais do que de maneira que o saldo lhe seja desfavorável, aumentará a
suficiente no meu livro "Sobre os benefícios" 1• Esclareça- cifra do benefício, reduzirá a do prejuízo. Um juiz mais
mos antes uma questão que, segundo julgo, não foi com- brando, tal como eu próprio prefiro ser, mandará que se
pletamente discutida nessa obra, e que é a seguinte; perante esqueçam os prejuízos e apenas se pense na dívida de
um homem que nos fez um benefício e que posterior- gratidão. Poderás objectar-me "que é de justiça pagar a 7
mente nos prejudicou podemos considerar-nos quites, livres cada um conforme merece: ser grato em relação aos bene-
da nossa dívida de gratidão? Se queres, podes ainda acres- fícios, e retribuir com a pena de talião - ou pelo menos
centar: o prejuízo que nos causou superou em muito o com a cessação da gratidão - os prejuízos recebidos". Isso é
4 benefício que antes nos fizera. Se pedires a opinião a um verdade quando o autor da ofensa e o autor do benefício
juiz estritamente rigoroso, ele entenderá que o prejuízo não são uma e a mesma pessoa; se o são, nesse caso o
equilibra o benefício e dir-te-á que, "embora o malefício benefício deve anular a gravidade da ofensa. Se nós, mesmo
seja preponderante, a medida em que o prejuízo o excede
para com quem não nos fez qualquer bem, devemos ser
deverá ser posta na conta dos benefícios". O homem preju-
indulgentes, devemos ser mais do que indulgentes se esse
dicou-nos, mas anteriormente já nos fora útil; dê-se por-
alguém nos faz mal depois de 9os ter feito algum benefí-
5 tanto o desconto devido ao tempo que passou. É por
cio. Eu não julgo os dois actos pela mesma bitola, pelo 8
demais evidente - e nem preciso de te chamar a atenção
para isto! - que devemos investigar o grau de boa vontade contrário, dou mais importância ao benefício do que à
com que o outro nos prestou o benefício, ou até que ofensa. Nem todos sabem ser gratos: um indivíduo, -
ponto o prejuízo que nos causou foi involuntário, por- mesmo de pouca formação, inculto, homem vulgar, em
quanto quer os benefícios, quer as ofensas dependem do suma - pode ficar devendo um favor, pelo menos vendo
ânimo com que foram feitas. "Eu não quis fazer-te um a coisa pelo ângulo dos benefícios que recebeu, pois não
benefício; apenas o fiz por vergonha, ou por me deixar sabe a medida exacta em que fica em dívida. Apenas o
vencer pelas tuas súplicas, ou por esperança de retribui- filósofo sabe o valor que a cada benefício se deve atribuir.
6 ção." A nossa dívida de gratidão é proporcional à boa O indivíduo inexperto de que acima falei, por boa vontade
que tenha, pagará pela sua dívida menos do que deve, ou
fá-la-á numa ocasião ou num local inoportuno - em suma,
1
Cf. De beneficiis, I, 1, 9 ss. o favor com que pensa retribuir vai-se em pura perda!

350 35 1
9 Há certos domínios em que empregamos as palavras Pela mesma ordem de ideias também só o sábio saberá
com uma rara propriedade. Usamos tradicionalmente cer- como pagar aos credores ou dar aos vendedores o justo
tos vocábulos que designam com toda a eficácia os deveres preço dos objectos que compra/" - Bom, para não terem
sociais que pretendemos ensinar. Costumamos, por exem- má vontade connosco, fiquem todos sabendo que Epicuro
plo, dizer com toda a propriedade "que este homem apre- partilha a nossa opinião. Metrodoro, pelo menos, afirma
sentou os seus agradecimentos àquele outro". De facto, sem hesitar que tão somente o sábio sabe como manifes-
apresentar significa mostrar maior gratidão do que a devi- tar a sua gratidão 3• De resto, também causa espanto nós dizer- 12
da. Não dizemos: "pagou o favor recebido'', pois pagar mos "que apenas o sábio sabe amar, que apenas o sábio
fazem-no todos, mesmo quando a dívida tem de lhes ser sabe ter amizade". Ora, manifestar gratidão é um compo-
reclamada, ou quando a pagam contra vontade, sem data nente do amor e da amizade, direi até que é um compo-
certa ou por interposta pessoa. Também não dizemos que nente de alcance mais geral e que abrange mais pessoas
"recompensou o favor recebido" ou o "restituiu": quer dizer, do que a verdadeira amizade. E não menor espanto causa
não gostamos de usar para esta situação os termos empre- nós dizermos que só no sábio pode existir a lealdade,
10 gados quando se fala de dinheiro emprestado. Apresentar como se o nosso antagonista não dissesse afinal a mesma
significa tornar presente alguma coisa àquela pessoa de coisa! Ou pensas tu que pode conhecer a lealdade quem
quem recebemos um favor. Este vocábulo implica que se não sabe manifestar gratidão? Deixem então de falar mal 13
trata de uma apresentação voluntária: quem apresenta, de nós como se nós apenas proclamássemos paradoxos, e
fá-lo por sua própria iniciativa. O sábio examinará, no seu fiquem de uma vez por todas a saber que, enquanto o
foro íntimo, todos os aspectos da questão: o valor do sábio age segundo os valores morais, o vulgo se limita a
benefício recebido, a pessoa que o fez, e porquê, quando, guardar a aparência exterior da moralidade. Ninguém,
onde e por que forma. Por esta razão nós afirmamos que excepto o sábio, sabe manifestár gratidão. O não-sábio
apenas o sábio sabe manifestar devidamente a sua grati- deve tentar manifestá-la conforme souber e puder: será
dão, do mesmo modo que apenas o sábio sabe prestar preferível faltar-lhe o conhecimento do que a vontade - já
devidamente um favor, ou seja, de um modo tal que maior que a vontade não é coisa que se aprenda. O sábio terá de 14
contentamento sente o sábio em prestá-lo do que o outro proceder a uma avaliação comparativa de todos os facto-
em recebê-lo! Não faltará neste ponto quem veja nas nos- res, porquanto o benefício - embora de valor material
sas palavras uma daquelas frases insólitas, ou paradoxos 2, idêntico - revestirá maior ou menor relevância em função
como dizem os gregos, e nos objecte: "Com que então do màmento, do local e da motivação. Muitas vezes se
ninguém, excepto o sábio, sabe manifestar a sua gratidão?.' tem verificado que riquezas abundantes afluindo sobre uma
família se mostraram menos eficazes do que mil denários

2
Uma pequena colecção de "paradoxos dos estóicos" é objecto de um texto
de Cícero com esse título. ' Metrodoro, fr. 54 Koerte.

352 353
oferecidos no momento exacto. Há considerável diferença recorre a empréstimos tem maior alegria no rosto em
entre uma oferta e um gesto de socorro, não significa o pagar a dívida do que ao contraí-la - e do mesmo modo
mesmo o facto de, com a nossa liberalidade salvarmos _maior satisfação deve sentir quem retribuir um favor tra-
alguém ou apenas o financiarmos; e com frequência uma duzido em importante soma do que quem contrai uma
dádiva exígua traz consigo consequências de grande alcance. obrigação de tal monta! Também neste ponto caem em 18
Por exemplo, não vez tu a diferença entre alguém que erro os ingratos: aos seus credores têm de pagar o capital
dispõe dos seus fundos para fazer um favor a outrem, e e mais o juro, mas dos favores recebidos entendem que
alguém que tem de pedir primeiro para poder ser útil por podem gozar gratuitamente, quando na realidade a demora
sua vez?! em retribuí-los lhes acresce o valor, e a nossa dívida de grati-
15 Mas não passemos mais tempo a remoer assuntos já dão se torna tanto maior quanto mais tardia! Também é
amplamente tratados. Ao fazer a comparação entre o bene- ser ingrato retribuir sem juros os benefícios; mais uma
fício recebido e o prejuízo sofrido, o homem de bem, coisa a ter em conta quando se contabilizar o "deve" e o
embora pronunciando o seu juízo com a maior equidade, "haver"! ...
penderá a favor do benefício, inclinar-se-á de preferência Devemos fazer tudo no sentido de sermos tão gratos 19
16 nesse sentido. Da maior relevância, porém, é a pessoa que quanto possível. A gratidão é um bem que nos pertence a
está em causa nestas situações: "Fizeste-me um beneficio nós, assim como a justiça (ao contrário do que vulgar-
concernente a um escravo mas ofendeste-me a respeito do mente se crê) tira o seu valor mais de si mesma do que
meu pai"; ou então: "Salvaste-me o filho, mas roubaste-me da aplicação aos outros. Cada um de nós ao ser útil aos
o pai'~· A nossa personagem fictícia prosseguirá em seguida outros, é útil a si mesmo. Não digo isto no sentido de
a sua comparação e, caso verifique que é diminuta a dife- cada um pretender ajudar quando é ajudado, proteger
rença entre o valor do benefício e o da ofensa, não lhe quando é protegido, ou no sentído de que um bom exem-
ligará importância; mesmo na hipótese de essa diferença plo acaba por redundar em benefício do seu autor (tal
ser considerável, deverá retribuir o favor, caso o possa como os maus exemplos recaem nos seus autores - e por
fazer sem detrimento dos seus deveres de lealdade fami- isso ninguém tem pena das vítimas de injúdas que as
liar - isto é, se a ofensa recebida apenas tiver sido diri- próprias vítimas, por também as fazerem, mostram ser
17 gida à sua própria pessoa. Em conclusão, o procedimento possíveis); quero, sim, dizer é que a recompensa de todas
a adaptar será: aceitar sem dificuldade a lei das compensa- . as virtudes reside na sua prática! Não é com vista a obter
ções; assumir obrigações mesmo superiores ao devido; retri- uma recompensa que nós as praticamos: o prémio de
buir um benefício, mesmo contrariado, como paga pelas uma acção correcta é essa mesma acção! Eu não me mos- 20
injúrias sofridas; preferir tender, preferir inclinar-se no · tro grato para que um outro, levado pelo meu exemplo,
sentido de, apesar de tudo, desejar dever favores a outrem me faça um favor de melhor vontade, mas porque a gra-
- e desejar retribuí-los. É laborar em erro mostrar melhor tidão provoca um sentimento da mais pura e bela alegria.
disposição em aceitar do que em retribuir favores: quem Não me mostro grato porque isso me possa ser útil, mas

354 355
sim porque me dá prazer. Para te convenceres de que O ingrato tortura-se e aflige-se a si mesmo; odeia os 23
assim é, dir-te-ei ainda mais: se eu não puder mostrar-me benefícios que recebe por ter de retribuí-los, procura redu-
grato senão à custa de parecer ingrato, se não puder retri- zir a sua importância e, pelo contrário, agigantar enor-
buir um benefício senão ·sob a aparência de uma ofensa, memente as ofensas que lhe foram causadas. Há alguém
tenho o dever de, com a consciência tranquila, tomar a mais miserável do que um homem que se esquece dos
decisão mais acertada mesmo a troco de parecer um mise- benefícios para só se lembrar das ofensas? A sabedoria,
rável. A meu ver, ninguém mostrará ter mais amor à vir- pelo contrário, valoriza todos os benefícios, fixa-se na sua
tude e dedicar-lhe maior devoção do que quem não receia consideração, compraz-se em recordá-los continuamente. Os 24
perder a reputação de homem de bem só para não macu- maus só têm um momento de prazer, e mesmo esse
21 lar a sua consciência. Em suma, como já disse, é mais breve: o instante em que recebem o benefício; o sábio,
para o teu bem do que para o bem alheio que tu te sen- pelo seu lado, extrai do benefício recebido uma satisfação
tes grato; ser-se retribuído por algo que se deu é coisa grande e perene. O que lhe dá prazer não é o momento
vulgar, quotidiana, mas sentir gratidão é um sentimento de receber, mas sim o facto de ter recebido o benefício;
grandioso que provém do mais feliz estado de alma. De isto é para ele algo de imortal, de permanente. O sábio
facto, se a maldade torna os homens infelizes e a virtude não tem senão desprezo por aquilo que o lesou; tudo isso
os torna felizes, então a gratidão é uma virtude; tu resti-
ele esquece, não por incúria, mas voluntariamente. Não 25
tuis um bem de uso comum, mas consegues um outro de
interpreta tudo pelo pior, não procura descobrir o culpado
inestimável valor: a consciência da tua gratidão, coisa só
do que lhe sucedeu, preferindo atribuir os erros dos homens
possível a uma alma acima do normal.
à fortuna. Não atribui más intenções às palavras ou aos
A consequência do sentimento oposto à gratidão é a
máxima infelicidade, porquanto ninguém pode ser grato a olhares dos outros, antes procura dar do que lhe fazem
22 si mesmo se o não for para com os outros. Eu não estou uma interpretação benevolente. Prefere lembrar-se do bem
afirmando que quem é ingrato será infeliz; os dois estados que lhe fizeram, e não do mal; tanto quanto pode, guarda
são simultâneos: o ingrato é imediatamente infeliz. Evite- na memória os benefícios precedentes e não muda de dis-
mos, portanto, ser ingratos, não por causa dos outros, mas posição para com aqueles a quem deve algum favor a não
por nossa causa. Da maldade, a parte que redunda sobre ser que as suas más acções sejam de longe mais graves,
os outros é a mais ínfima, a menos importante: o pior da numa desproporção evidente mesmo a quem não a quer
maldade, a sua parte por assim dizer mais "densa'', é a ver; e até neste caso o sábio terá por eles, depois de uma
que permanece dentro de nós e nos oprime. Conforme considerável ofensa, sentimentos idênticos aos que tinha
dizia o nosso Átalo, "a maldade bebe ela mesma a maior antes do favor recebido. Na realidade, mesmo quando a
parte do seu veneno"! As serpentes produzem venenos ofensa é equivalente ao benefício, permanece na nossa
que causam dano aos outros seres mas são inofensivos alma um certo sentido de benevolência. Quando há pari- 26
para elas mesmas; com o veneno da maldade é o contrário, dade de votos, o réu é absolvido; quando surge uma situa-
quem o produz é quem mais sofre! ção ambígua, o nosso sentido de humanidade inclina-nos

356 357
para a interpretação mais favorável. Do mesmo modo a ponto mais alto da moral consiste na gratidão. E esta
alma do sábio, quando os favores são equivalentes aos verdade proclamá-la-ão todas as cidades, todos os povos,
malefícios, embora deixe de ser devedor não cessa de que- mesmo os oriundos das regiões bárbaras, neste ponto estão
rer sentir-se em dívida, fazendo como aqueles que pagam de acordo os bons e os maus. Haverá quem aprecie sobre- 31
o que devem mesmo depois de um decreto determinar a tudo o prazer, outros haverá que julguem preferível o
anulação das dívidas. esforço activo; uns consideram a dor como o sumo mal,
27 Ninguém poderá ser grato se não desprezar tudo aquilo para outros a dor não será sequer um mal; alguns inclui-
que excita a atenção do vulgo: se quiseres, de facto, retri- rão a riqueza no sumo bem, outros dirão que a riqueza foi
buir um favor terás que estar disposto a enfrentar o exílio, inventada para o mal da humanidade e que o homem mais
a derramar o teu sangue, a resignar-te à indigência, a con- rico é aquele a quem a fortuna nada encontra para dar;
sentir mesmo que a tua inocência seja posta em causa e no meio desta diversidade de posições uma coisa há que
28 se sujeite a infames boatos. Um homem grato não é coisa todos afirmarão, como soe dizer-se, a uma só voz: que
de pouca monta. Habitualmente, a nada se dá mais valor devemos gratidão àqueles que nos favorecem. Neste ponto
do que a um benefício enquanto o solicitamos, mas a nada toda esta multidão de opiniões se mostra de acordo, mesmo
se dá menos valor depois de obtê-lo. Sabes o que ocasiona quando por vezes pagamos favores com injúrias; e a pri-
em nós o esquecimento dos favores recebidos? É o desejo meira causa de ingratidão é não podermos ser suficiente-
daqueles que procuramos obter! Não pensamos no que já mente gratos. A insensatez chegou ao ponto de se tornar 32
conseguimos, mas só no que ainda procuramos alcançar. perigosíssimo fazer um grande benefício a alguém; como
Somos desviados do caminho recto pelas riquezas, as hon- se considera uma vergonha não pagar o benefício, julga-se
ras, o poder e outras coisas mais que a opinião comum preferível não existir ninguém que no-lo faça! Goza em
considera valiosas mas que em si mesmas nada valem. paz o que de mim recebeste; nãó to reclamo, não to exijo.
29 Somos incapazes de juízos de valor quando o que está em Basta-me saber que te fui útil. Não há ódio mais violento
causa rião é a opinião corrente mas sim a própria natu- do que o proveniente de um benefício não honrado!
reza das coisas. Tudo o que atrás referi não tem em si
nada que mereça atrair a nossa admiração, para além do
facto de serem habitualmente objecto de admiração. Não se 82
trata de coisas justamente desejáveis e por isso mesmo
julgadas valiosas, pelo contrário, julgamo-las valiosas e por Já deixei de estar na incerteza a teu respeito. Se me 1
isso as desejamos; quando a opinião errónea de uns quan- perguntares que divindade me serve de garante, dir-te-ei;
tos se torna a opinião geral, essa opinião geral condiciona aquela que nunca engana ninguém, ou seja, a alma que
30 por sua vez a opinião de cada indivíduo. No entanto, se apenas ama o que é justo e bom. A melhor parte de ti
nos deixamos guiar pela opinião pública no caso prece- mesmo já se encontra a salvo. Pode suceder que a fortuna
dente, façamos o mesmo quando ela nos afirma que o te faça algum mal; no entanto, - o que é mais impor-

358 359
tante ! - , já não receio que tu faças mal a ti mesmo. refugies sentirás à tua volta o estrépito dos males huma-
Prossegue na via que encetaste, adapta-te a este estilo de nos. Vivemos em meio de condicionalismos externos que
2 vida com serenidade, mas não com moleza! Eu prefiro nos iludem ou atormentam, mas muitos outros há, de
viver mal do que com moleza - entendendo aqui "mal" ordem interna, que nos fazem ferver em plena solidão. A 5
no sentido que se lhe dá correntemente, isto é, com dureza, filosofia deverá circundar-nos, como uma muralha inex-
dificuldades, sacrifícios. Ouvimos não raro enaltecer certas pugnável que a fortuna, embora a assalte com .inúmeros
pessoas cuja vida se inveja em termos deste género: "Mas engenhos, nunca poderá transpor. A alma que se aparta
que moleza de vida!", "Mas que moleza de homem!..." O de tudo quanto é externo, que se defende no seu domínio
certo é que gradualmente a alma se vai efeminando e próprio, alça-se por isso mesmo a um lugar inacessível
perdendo consistência, à imagem da ociosidade e indolên- donde vê todos os dardos cair sem lhe tocarem. A fortuna
cia em que vegetam. Pois quê, não será mais digno de não tem um braço assim tão longo quanto se julga: ape-
um homem ter um ânimo vigoroso? (.. .)4, e cá temos nas atinge os que dela se encontram próximos. Por essa 6
estes nossos "frágeis donzéis" com medo da morte, eles razão devemos saltar para fora do seu alcance tanto quanto
que fizeram da própria vida um simulacro da morte! Ora, nos for possível, o que só conseguiremos através do conhe-
há uma enorme diferença entre viver no ócio e viver cimento de nós mesmos e da natureza 5• Cada um deve
3 numa tumba. "Que dizes? Então não é preferível levar procurar saber para onde vai, donde provém, em que con-
uma vida de inactividade, mesmo que com moleza, do que siste para si o bem e o mal, quais as coisas a alcançar,
deixar-se enredar nesta vertigem dos deveres públicos?" quais as que são de evitar; deve saber que coisa é essa
Ambas as coisas são condenáveis, tanto a crispação como razão graças à qual se torna apto a discernir as metas a
o entorpecimento. Acho eu que tão morto está o que jaz atingir e a evitar, essa razão que acalma a loucura dos
no meio de perfumes como aquele cujo cadáver é remo- desejos e aniquila a ferocidade dós temores. Certos pensa- 7
vido com um gancho; um ócio à margem da cultura equi- dores entendem que se consegue reprimir estas últimas
vale à morte, é como o sepulcro de um homem vivo! perturbações mesmo sem recorrer à filosofia. No entanto,
4 Que interessa viver retirado nestas condições? Vale tanto se um homem atravessou sem perigo todos os acasos da
como atravessar os mares levando atrás de nós as causas vida, a declaração que então faça já vem tarde! Quero
dos nossos cuidados. Onde encontrar um esconderijo em ouvi-lo falar é quando o carrasco se está aprestando, quando
que não penetre o medo da morte ? Que tipo de vida a morte se está avizinhando. A esse homem poderíamos
goza de tanta tranquilidade, é tão protegida e remissa que dizer: "Tu estavas desafiando sem riscos males ausentes:
não possa ser perturbada pela dor ? Onde quer que te aqui tens agora a dor (que tu dizias suportar sem dificuldade),

' Sobre a imporcância que o conhecimento da nacureza cem para o conhe-


4
Frase mutilada; ames de deinde, o copista deve cer deixado escapar qual- cimento de nós mesmos veja-se o prefácio das Naturales Quaestiones que Séneca,
quer palavra que os editores se empenham variamente em rescicuir. como se sabe, dedicou ao seu amigo Lucílio.

360 27 361
aqui tens agora a morte (a respeito da qual proclamavas morrer valorosamente. Quando se diz que "nenhuma coisa
sentenças tão corajosas); estalam os chicotes, brilham as indiferente é causa de glória" eu estou de acordo, mas
espadas: neste sentido, que tudo quanto é glorioso gira à volta de
mostra agora, Eneias, a tua coragem, a tua energia!" 6 coisas em si mesmo indiferentes. Entendo por "indiferen-
8 Um coração forte consegue-se através de uma contínua tes'', isto é, nem boas nem más, coisas como a doença, a
meditação, desde que nos não apliquemos às palavras mas dor, a pobreza, o exílio, a morte. Nada disto, por si mesmo, 11
ao conteúdo, desde que nos preparemos para aceitar a pode ocasionar a glória, mas sem isto também nada o faz.
morte; e não é à força de sofismas que alguém conseguirá Objecto de louvor não é a pobreza, mas sim o homem que
exortar-te e levar-te à convicção de que a morte não é um se não deixa vencer nem abater pela pobreza; objecto de
mal. Dão-me vontade de rir, amigo Lucílio, algumas pate- louvor não é o exílio, mas sim quem parte para o exílio
tices dos Gregos: por muito que os admire ainda não as com mais serenidade no rosto do que se exilasse alguém; 9
9 consegui entender! O nosso Zenão serve-se deste raciocí- objecto de louvor não é a dor, mas sim quem em nada
11
nio: Nenhum mal é causa de glória; ora, a morte não é cedeu à dor; ninguém louva a morte em si, mas sim o
causa de glória; logo, a morte não é um mal/" 7 Magní- homem que a morte arrebata sem previamente lhe per-
fico! Já estou liberto -do medo! Depois disto, já não hesi- turbar o ânimo. Nenhuma destas coisas tem por si mesma 12
tarei em estender o pescoço ao carrasco... Vamos lá falar valor moral ou glória; o que lhe atribui valor moral e gló-
com mais dignidade, sem cobrir de ridículo um homem ria é somente o facto de nelas se ter de algum modo
que vai morrer! Pelos deuses! Nem sei dizer-te qual dos inserido a virtude. Tais coisas estão, por assim dizer, a
dois me parece mais imbecil: se quem imaginou com este meio caminho: a diferença surge quando o homem as
silogismo eliminar o medo da morte, se quem se aplicou enfrenta com cobardia ou com virtude. A mesma morte
10 a solucioná-lo como se ele fosse pertinente para o caso! O que em Catão foi gloriosa tornoú-se em Bruto vergonhosa
mesmo pensador contrapôs a este um silogismo inverso, e vil. Refiro-me àquele Bruto que, condenado à morte,
baseado no facto de nós, estóicos, incluirmos a morte no procurou todas as formas de adiar a execução: retirou-se
número das coisas indiferentes, ou, como se diz em grego, para aliviar o ventre, chamaram-no para ser executado,
àouh.popa 8• Ei-lo:"Nenhuma coisa indiferente é causa de ordenaram-lhe que submetesse o pescoço ao carrasco. Eu 11

glória; ora, a morte é causa de glória; logo, a morte não é submeto" - gritou - "mas deixem-me viver!... " Que lou-
indiferente." Estás a ver onde é que tropeça este silo- cura esta de tentar fugir quando já se não pode retroce-
gismo: a glória não está na morte em si, a glória está em der! "Eu submeto, mas deixem-me viver!" Só lhe faltou acres-
centar: "Mesmo sob as ordens de António!" Ó homem
digno de ser condenado ... à vida!
6
Vergílio, Aen., VI, 261.
7
Este silogismo formn o fo. 196 de S. V.F., I.
8 9
Sobre a teoria d(,!;> indiJeremes cf. S.VF., I, 191 ss.; llf. 117 ss. Trata-se, uma vez mais, do célebre exemplo de Rutílio.

362 363
Mas continuemos. Estás vendo que, como te dizia, a bem este mundo, ignoramos tudo do mundo para que
13 morte em si não é um mal nem um bem: Catão usou-a iremos,... e o homem tem horror ao desconhecido! Mais:
da forma moralmente mais nobre, Bruto do modo mais sofremos também do terror natural pela escuridão, e é
indigno. É a presença da virmde que pode dar a qualquer crença geral que a morte nos lançará nas trevas. Todas 16
coisa o valor de que, em si, carecia. Nós dizemos de um estas considerações mostram que, se a morte é um "indi-
quarto que é muito claro, embora de noite fique total- ferente", não é apesar disso um daqueles que possamos
mente às escuras: o dia faculta-lhe a luz, a noite rouba-lha. tratar com ligeireza: para a alma se dispor a encarar a
14 O mesmo se passa com aquelas coisas que nós classifica- aproximação da morte é indispensável robustecê-la à custa
mos de indiferentes ou intermédias - riqueza, força, bele- de intenso treino. Não recear a morte é um dever nosso
'
za, carreira das honras, poder, ou, inversamente, morte, mas não um hábito generalizado: concebemos todas as
exílio, problemas de saúde, dor, e outras ainda que, ora fantasias acerca dela; muitos poetas talentosos aplicaram-se
mais ora menos, nós receamos: é a vileza ou a virtude à porfia a aumentar a má fama de que a morte desfruta,
que delas faz um bem ou um mal. Uma massa de metal com as suas descrições dos antros infernais como uma
não é em si quente nem fria: se a atirarmos a uma forna- região oprimida por uma noite eterna, um mundo em que
lha ela aquece, se a deitarmos à água, arrefece. A morte "o gigantesco porteiro do Orca,
só tem valor moral graças ao valor em s1, isto é, a vir- estendido no antro sangrento sobre
tude, o desprezo em que a alma tem os condicionalismos ossadas meio roídas,
externos. assusta com o seu ladrar incessante
15 Existe no entanto, Lucílio, uma grande diferença mesmo as almas exangues/" 11
entre aquelas coisas a que chamamos "intermédias". Por
exemplo, a morte não é indiferente no mesmo sentido Mesmo estando convencidos de que tudo isto não passa
em que o é ter um número par ou ímpar de cabelos. A de fábula 12 e de que os mortos nada mais têm a recear,
morte inclui-se entre aquelas coisas que, sem serem em si
um mal, revestem, no entanto, a aparência de um mal; e
11
Contaminação de dois passos de Vergílio:
isto porque nos é inerente o amor por nós mesmos, o a) Aen., VI, 400-1:
instinto de conservação permanente, a repugnância perante embora o gigantesco porteiro na caverna assuste com o seu
o aniquilamento, ... 10 (e também) por imaginarmos que a ladrar incessante as almas exangues
b) Aen., VIII, 2%-7:
morte nos vem arrebatar imensos bens, nos vem subtrair o porteiro do Orca, estendido no antro sangrento sobre
ao infindável mundo de coisas que nos habituámos a gozar. ossadas meio roídas.
Séneca citava de cor, daí a contaminação. - O "porteiro do Orco" é
Repelimos ainda a ideia da morte porque, se conhecemos Cérbero, o cão infernal de três cabeças.
12
Também em Troianas, 405 -6 Séneca chama às tradicionais descrições do
mundo infernal "ocos boatos, palavras sem sentido, fábulas semelhantes a pesa-
delos". - Neste ponto, aliás, é total o acordo entre estóicos e epicuristas, d.
10 Lucrécio, III, 978 ss.
Laoma postulada por Haupt, com a concordância de Reynolds.

364 365
sobrevém-nos outro temor: o comum das pessoas tanto teu espírito, pois dúvida que persista em ti só servirá para
receia ir parar aos infernos como não ir parar a parte entravar-te o passo. Se queremos entrar, temos de empur-
alguma. Perante estas visões, uma e outra negativas, impos- rar as portas com energia!
17 tas ao nosso espírito por uma longa habituação, como não É exacto que os mestres estóicos pretendem fazer crer
pensarmos que a coragem perante a morte é uma fonte que, enquanto o silogismo de Zenão é verdadeiro, o outro,
de glória, é uma das maiores façanhas do espírito humano? ! que lhe é contraposto, é incorrecto e falacioso. Eu, por
Nunca este se elevará até à virtude enquanto estiver con- mim, não estou disposto a tratar o problema da morte
vencido de que a morte é um mal, mas fá-lo-á se passar a segundo as leis da lógica, fabricando desses sofismas pró-
considerá-la como indiferente. É contrário à natureza afron- prios de uma subtileza entorpecida. Entendo que devemos
tar com decisão uma situação que consideramos ser um rejeitar todo este aparato de que se rodeiam os autores de
mal: a acção será sempre lenta e hesitante. Também não silogismos e que os leva, afinal de contas, a forçarem o
é glorioso fazer-se qualquer coisa contrariada e indecisa- seu oponente a uma conclusão contrária ao que de facto
mente. A virtude não age apenas por estrita necessidade. pensa. Em defesa da verdade devemos agir com maior
18 Acrescenta ainda que nenhuma acção tem valor moral simplicidade, contra o medo devemos empregar maior ener-
senão quando nos aplicamos a ela com toda a nossa alma, gia. Quanto a estes raciocínios congeminados por tais pen- 20
quando nenhuma parte do nosso ser lhe opõe resistência. sadores, eu gostaria de solucioná-los e desenvolvê-los, não
Quando alguém afronta um mal, por medo de algo pior para enganar os outros mas para os persuadir. Um gene-
ou na esperança de vir a obter algum bem, e apenas tenha ral em campanha de que modo deve exortar os seus solda-
"engolido" pacientemente um único mal, - esse alguém dos a enfrentarem a morte em defesa das mulheres e dos
sofrerá a acção de impulsos opostos: por um lado, sentir- filhos ? Toma o exemplo dos Fábios que assumiram para
-se-á incitado a levar até ao fim o seu propósito, por a sua família o peso da guerra -que afligia todo o Estado.
outro sentirá vontade de retroceder e de se pôr a salvo de Reflecte no exemplo dos Espartanos postados no desfila-
uma conjuntura suspeita e perigosa; em suma, vê-se puxado deiro das Termópilas: não têm esperança alguma de vitó-
simultaneamente em direcções opostas. Quando se dá uma ria ou de regresso; sabem que aquela posição será o seu
situação destas toda a glória se vai! A virtude, porém, leva túmulo. Que argumentos usar para exortar estes homens 21
até ao fim a decisão tomada em bloco pela alma, sem a opor os seus corpos à massa dos Persas que se abatia
receio daquilo que vai fazer. sobre eles? Como convencê-los a antes abandonarem a vida
"Não cedas à desgraça, antes avança mais audaz do que cederem o passo? Será que lhes vais dizer: "Nenhum
ainda do que a própria fortuna te permite!" 13
mal pode ser glorioso; ora a morte é gloriosa, logo a morte
19 Nunca poderás avançar com toda a audácia se pensares
não é um mal?!" ... Que discurso persuasivo! Depois de o
que vais enfrentar um mal. Há que arrancar essa ideia do
ouvir quem é que hesitaria em oferecer o peito às espadas
m1migas e morrer de pé?... Em contrapartida, vê agora o
13 Vergílio, Aen., VI, 95-6. vigor com que Leónidas lhes dirigiu a palavra: "Camara-

366 367
das, jantai hoje na plena certeza de que haveis de ir cear pele que lhe cobria o corpo imenso repeliam o ferro e
entre os mortos!" A comida não se lhes enrolou na boca, todas as outras armas que contra ela se usaram: só com
não se lhes colou na garganta, não lhes caíu das mãos: pedregulhos do tamanho de mós foi possível matá-la. E
antes foi com energia que eles usaram as mãos quer ao tu vais empregar contra a morte argumentos tão miserá-
22 jantar quer à ceia! Queres outro exemplo? Vê o daquele veis!... A tua figura é a de quem defronta um leão com
general romano que, enviando os seus soldados ao ataque um canivete! Os teus raciocínios são muito agudos; repara,
de uma posição (o que os obrigava a atravessar as linhas porém, que nada é mais aguçado do que a ponta de uma
do vasto exército inimigo) lhes falou nestes termos: "Cama- espiga, mas a . própria finura de muitos instrumentos faz
radas, é necessário marchar sobre um local donde não é deles armas inúteis e ineficazes!
necessário regressar!" Vê bem como a virtude é directa e
imperiosa. Em contrapartida, onde está o homem a quem
os argumentos capciosos possam dar mais coragem e entu-
83
siasmo? Tais argumentos só servem para embotar a alma Queres que eu te descreva integralmente tudo quanto 1
- e nunca ela menos deve ser abatida e enredada em faço em cada dia, de manhã à noite. Quer isto dizer que
questiúnculas miudinhas do que quando vai afrontar uma fazes um bom juízo a meu respeito, pois não imaginas
23 situação difícil. Não são apenas trezentos homens, é todo que eu possa ter algo a esconder-te. É assim mesmo que
o género humano que devemos libertar do medo da morte. nós devemos viver: como se a nossa vida decorresse à
De que modo farás compreender a todos que a morte não vista de todos. É assim mesmo· que nós devemos pensar:
é um mal? De que modo destruirás neles uma ideia errada como se alguém pudesse surpreender o nosso mais íntimo
cimentada ao longo de toda a vida, bebida desde a infân- pensamento. E alguém há que pode fazê-lo. De que nos
cia? Que recurso usarás para socorrer a fraqueza dos vale .esconder dos outros alguma·· coisa se à divindade nada
homens? Que poderás dizer-lhes que os faça lançar-se com permanece oculto? Ela existe dentro da nossa alma, toma
determinação no meio dos perigos? Que discurso será Ó parte activa nas nossas reflexões.· "Toma parte", digo eu,
teu para poder vencer o consenso geral que incita ao como se apenas o fizesse esporadicamente. Voú, portanto, 2
temor da morte, que energia intelectual terás de despen- fazer o que me pedes: descrever-te com todo o gosto cada
der a fim de eliminar essa convicção arreigada no espírito acto que pratico, e por que ordem o faço. Vou observar-
humano? Será que vais congeminar argumentos arreveza- . -me com toda a atenção, vou fazer uma coisa da maior
dos ou construir silogismos? Os grandes monstros têm de util idade: avaliar com cuidado cada um dos meus dias.
24 ser combatidos com armas poderosas. A terrível serpente Habitualmente, ninguém auto-analisa a própria vida, o que
africana (mais funesta para as legiões romanas do que a só contribui para acrescer os vícios. Todos pensamos no
própria guerra) em vão os nossos soldados tentaram feri- que estamos para fazer, e mesmo isto raramente, mas não
-la com setas ou pedras: nem mesmo Apolo Pítio a con- atentamos no que já fizemos, quando afinal as decisões
seguiria trespassar! O seu tamanho gigantesco, a dureza da quanto ao futuro estão dependentes do passado.

368 )69
3 O meu dia de hoje pertence-me, ninguém me roubou gulho na p1scma, eu que, na passagem do ano, assim
um bocadinho que fosse: todo ele foi dividido entre o como celebrava a chegada do ano com uma leitura, uma
leito 14 e a leitura Os exercícios físicos ocuparam uma parcela obra, um discurso, também costumava ir saltar para den-
mínima. A propósito, devo render graças à velhice que tro da Fonte da Virgem, comecei por transferir os meus
me não faz perder muito tempo com tais exercícios ! Um banhos para o Tibre, e por fim, quando estou de boa
pouco de movimento, e fico cansado; ora o cansaço obriga saúde e tudo me corre bem, para esta banheira aquecida
mesmo os melhores atletas a darem por terminado o pelo sol; pouco me falta para ficar reduzido ao banho
4 treino. Se queres saber quem são os meus "treinadores" quente! A seguir ao banho, um pouco de pão seco, uma 6
dir-te-ei que me contento apenas com Fário, que é um ligeira refeição mesmo em pé, daquelas que não obrigam
escravozinho muito simpático, como tu sabes. Mas vou a ir lavar as mãos. Durmo muito pouco. Tu conheces o
necessitar de trocá-lo por outro ainda um pouco mais meu hábito: basta um breve sono para repousar; deixar,
jovem. Fário diz que ambos sofremos do mesmo mal por poucos minutos, de estar acordado é o suficiente. Por
porque a ambos já nos estão caindo os dentes. No entanto, vezes tenho a consciência de ter dormido, outras apenas
quando ele se põe a correr, eu já quase não consigo suspeito que o fiz. Irrompe subitamente o estrépito do 7
acompanhá-lo, e dentro de alguns dias não conseguirei circo; uma vozearia repentina e unânime fere-me os ouvi-
mesmo. Daqui poderás inferir a utilidade dos exercícios dos, sem perturbar, sem interromper sequer as minhas
diários. Rapidamente estabelece-se uma grande distância reflexões. Sou capaz de suportar muito bem o ruído; um
entre nós, pois marchamos em direcções opostas. Enquanto grande número de vozes indistintas é para mim como o
ele vai subindo vou eu descendo, e tu bem sabes em qual barulho das ondas, do vento a bater na folhagem ou
destes sentidos se caminha mais depressa! Disse uma men- outros sons de que mal nos apercebemos.
tira: a minha idade já não se limita a "descer", tomba em Vou agora dizer-te em que problema ocupei o meu 8
5 queda livre! Bem, mas tu queres saber qual foi o resultado espírito. Fiquei matutando desde ontem no que é que
da corrida de hoje? Um resultado que só raramente os pode ter levado pensadores profundos a apresentarem de-
atletas alcançam, ficámos os dois em primeiro lugar! Depois monstrações ridículas e confusas para questões da máxima
da corrida, que mais foi estafadeira que exercício, meti-me importância, demonstrações que, embora conformes à ver-
na água fria, nome que em minha casa se dá à água dade, têm todo o ar de mentiras. O grande Zenão, o fun- 9
morna. Aqui está: eu, o grande banhista de água gélida, dador da nossa vigorosa e sublime escola estóica, pretende
eu que não passava o dia 1 de Janeiro sem dar um mer- · demover-nos da embriaguês. Pois aqui tens o silogismo
que ele congeminou para provar que o homem de bem
nunca pode embriagar-se: "Ninguém confia um segredo a
14
Não se entenda que o filósofo passou metade do dia a dormir, pois ele
(infra, § 6) necessitava pouco do sono. O leito de que se trata aqui, portanto, é
uma espécie de divã em que Séneca se reclinava para meditar quando não
15
estava à mesa de trabalho a ler ou a escrever. S. V.F., I, 229.

370 371

,, ,,., \i'.·,"',r--
um ébrio, mas pode confiá-lo a um homem de bem; logo, um homem habitualmente ébrio ninguém confia um segredo
o homem de bem nunca estará ébrio" 1'. Observa agora - é errónea. Basta que penses quantas vezes um general,
como, através de um silogismo similar, se pode evidenciar um .··tribuno ou um centurião tiveram de dar instruções
o ridículo desta demonstração (basta-me enunciar um confidenciais a soldados nem sempre sóbrios! A tarefa de
exemplo de entre muitos possíveis): "Ninguém confia um assassinar Gaio César (refiro-me ao César que; após a
segredo a alguém que está a dormir, mas pode confiá-lo a vitória sobre Pompeio, se tornou senhor do Estado
um homem de bem; logo, o homem de bem nunca dorme". romano) ir, tanto foi confiada a Tília Cimbro como a Gaio
10 Posidónio procura defender o nosso Zenão da única forma Cássio. Ora, enquanto Cássio em toda a sua vida nunca
possível, mas sem o conseguir, acho eu. Diz ele que a bebeu senão água, Tílio Cimbro era imoderado na bebida,
palavra "ébrio" pode ser entendida em dois sentidos: num o que o tornava um indivíduo irascível. Ele próprio, aliás,
caso, aplicada a alguém que bebeu demais e ficou incons- admitia com ironia o seu vício, dizendo: "Como hei-de eu
ciente; noutro, a alguém que habitualmente se embriaga, aguentar um chefe supremo se nem consigo aguentar o
que é viciado na bebida. Quando Zenão emprega o vocá- vinho?"
bulo está a pensar em alguém que se embriaga habitual- .Cada um poderá recordar-se de pessoas suas conheci- 13
mente, não em quem está ébrio de momento; é ao pri- das a quem se não pode dar a guardar uma ânfora de
meiro que ninguém confiaria um segredo que ele, sob a vinho mas se pode confiar um segredo. Por mim, vou
11 acção do álcool, poderia imediatamente revelar. Ora isto é referir-me a um caso que me ocorre antes que me passe
falso, porque a primeira premissa do silogismo citado se da lembrança, porquanto temos o dever de utilizar como
refere a alguém que de momento está mesmo ébrio, não modelos casos famosos sem precisar de estar sempre a
a alguém que pode vir a estar. Nós temos de admitir que 'recorrer à antiguidade. Lúcio Pisão, o chefe da polícia de 14
há uma grande diferença entre um ébrio ocasional e um Roma, desde que foi nomeado ·para o cargo, nunca mais
ébrio habitual: um homem pode estar ébrio pela primeira deixou de embriagar-se. Passava a maior parte da noite
vez, sem que tenha o vício, enquanto um viciado na bebida ,' em festins; depois ficava a dormir até quase ao meio-dia,
se encontra frequentemente sóbrio! É assim que eu entendo . o que, para ele, era uma madrugada. No entanto, cumpriu
o significado deste vocábulo, sobretudo tendo em conta sempre com a maior diligência o seu dever de manter a
que ele é usado por alguém que se preocupa com a exac- ordem na cidade. A este homem o divino Augusto con-
tidão e propriedade dos termos que emprega. Imaginemos fiou instruções secretas ao nomeá-lo como governador da
agora que Zenão estava ciente deste significado da palavra r Trácia que ele, aliás, acabou de pacificar; o mesmo fez
mas pretendeu que nós o não estivéssemos: neste caso, Tibério ao retirar-se para a Campânia, muito embora a
usando ambiguamente o vocábulo, permitiu a introdução situação em Roma fosse confusa e houvesse grande hosti-
de um sofisma, o que não é o processo correcto de chegar
12 à verdade. Mas admitamos que fez assim conscientemente. 11
' A precisão de Séneca é necessária porque Gaio César era o nome comum-

Neste caso, a conclusão a que chegou - ou seja, que a mente usado para designar o imperador também conhecido pela alcunha de Calígula.

372 373

·' \
15 !idade contra si. A experiência de Tibério com este Pisão vulgar, deve evitar os excessos, quanto mais aquele que já
dado à bebida foi mesmo tão bem sucedida que, imagino atingiu um elevado grau de sabedoria. Para este, é mais
eu, foi essa a causa de ele nomear para governador de do que suficiente saciar a sede; e se, porV'entura, levado
Roma 17 Casso, - homem severo, de bom carácter, mas pela companhia, prolonga um pouco mais a boa disposi-
de tal modo "embebido" em vinho que uma vez, quando ção, nunca chega a atingir o estado de embriaguez. Inves- 18
saiu de um banquete para participar no Senado, se deixou tigaremos depois se o espírito do sábio pode deixar-se
dormir em plena sessão, e teve de ser levado de lá sem perturbar por excesso de vinho, e comportar-se como ébrio;
dar acordo de si. Pois Tibério confiou a este homem mui- entretanto, se quiseres provar que um homem de bem
tos documentos escritos pelo próprio punho, que nem aos nunca deve embriagar-se, para quê recorrer a silogismos ?
seus íntimos colaboradores ousava revelar, sem que Casso Diz antes que é vergonhoso ingerir mais do que podemos,
tivesse desvendado o mínimo segredo, público ou privado! fazendo por ignorar a capacidade do nosso estômago; que
16 Ponhamos, portanto, de lado as declamações deste tipo: os ébrios tomam atitudes de que eles próprios se enver-
"O espírito dominado pelo álcool não é senhor de si gonham quando sóbrios; diz que a embriaguez não passa
mesmo. À maneira do mosto ·que, ao fermentar, estoira de uma loucur~ voluntária. Imagina que um homem se
com os próprios tonéis e faz vir ao de cima tudo quanto comporta co1llo. ébrio durante vários dias consecutivos: aca-
está lá no fundo, assim o ébrio, sob a pressão do vinho, so hesitarás ein considerá-lo um autêntico demente? Nos
deita cá para fora, diante de toda a gente, todos os segre- casos de que falávamos a demência não é menor, apenas
dos que lá tem dentro. Sob o peso da bebida, um ébrio, dura menos tempo. Lembra-te do caso de Alexandre da 19
regorgitando de vinho, não consegue sequer reter no estô- Macedónia, o qual, no meio de um banquete, trespassou
mago a comida. E o mesmo faz com os segredos, pondo-se com à espada Clito, o mais querido e fiel dos seus ami-
a revelar indiscriminadamente tanto os próprios como os gos; quando deu conta do que ' fizera desejou morrer, e
17 alheios." É certo que, por vezes, isto acontece. Mas acon- sem dúvida era isso que deveria ter feito! A embriaguez
tece também nós discutirmos assuntos prementes com excita e descobre todos os vícios, e repele o pudor que se
pessoas que sabemos serem dadas à bebida. Consequente- opõe às atitudes condenáveis; muita gente, de facto, evita
mente, é falsa toda a argumentação aqui utilizada para tais atitudes mais pela vergonha de cometer um mau acto
provar "que a um homem viciado na bebida ninguém cos- do que propriamente por Íntima convicção. Quando o espí- 20
tuma confiar segredos". rito é possuído por um violento excesso de bebida, todo o
Muito mais importante do que estes discursos é a seu lado mau vem ao de cima. A embriaguez não causa
condenação expressa da embriaguez, e a exposição do que os vícios, mas trá-los à luz: o libertino não espera a hora
nela há de vicioso. Qualquer homem, mesmo um homem de recolher-se, mas entrega-se sem demora a tudo quanto
os seµs apetites solicitam; o pervertido não hesita em
17
Cargo idêntico ao atribuído anteriormente a L Pisão, isto é, chefe da reconhecer publicamente a sua perversão; o arruaceiro fica
polícia de Roma. Casso, portanto, foi sucessor de Pisão nestas delicadas funções. incapaz de controlar a língua e as mãos. Avoluma-se a má

374 375
criação do insolente, a malvadez do cruel, a inveja do des- vinho) que o levou a adaptar costumes estrangeiros e
peitado; todo o vício, em suma, cresce e torna-se visível. vícios não romanos? Esta paixão fez dele um inimigo da
21 Acrescente-se a falta de autocontrolo, as palavras titubean- República, tornou-o incapaz de medir-se com os adversá-
tes e indistintas, os olhos revirados, os passos cambalean- rios; fê-lo cruel a ponto de, enquanto ceava, lhe serem
tes, a cabeça à roda, o próprio tecto movendo-se como se levadas as cabeças dos principais cidadãos, a ponto de
um furacão fizesse girar toda a casa, as dores no estômago observar, entre manjares requintadíssimos, no meio de luxo
quando o vinho fermenta e dilata as entranhas. Mas, ape- asiático, os rostos e as mãos dos proscritos, a ponto de já
sar de tudo, isto ainda é suportável quando a pessoa con- saciado de bebida, ter ainda sede de sangue. Já era intole-
segue aguentar-se de pé. Agora se, para cúmulo, sobrevém rável que ele se embriagasse por cometer tais actos; muito
22 o sono e a embriaguez se transforma em indigestão? Pensa mais intolerável ainda que os cometesse enquanto se embria- 26
em todas as catástrofes que têm sido causadas pela embria- gav:a! A crueldade segue-se inevitavelmente ao excesso de
guez colectiva: num caso, é um povo valoroso e comba- vinho, pois a sanidade mental fica completamente alte-
tivo que fica à mercê dos inimigos; noutro, é uma cidade rada, e todos os excessos são possíveis. Uma doença muito
que, após uma guerra defensiva de longos anos, acaba por prolongada torna qualquer pessoa irritadiça, irascível, inca-
abrir ela mesma as muralhas; noutro ainda, é uma nação paz de resistir à mínima contrariedade; do mesmo modo,
obstinada na sua independência que se vê submetida; ou um contínuo estado de embriaguez torna os ânimos cruéis.
ainda um exército imbatível em combate mas derrotado Como a pessoa está frequentemente fora de si, a demên-
23 pelo vinho. Alexandre, a quem acima fiz referência, esca- cia torna-se um estado habitual, e os vícios originados
pou ileso a inúmeras marchas forçadas, a inúmeras bata- pelo vinho permanecem mesmo quando não se bebe.
lhas, a inúmeras tempestades de que saiu vencedor apesar Em conclusão, diga-se por que razão o sábio nunca 27
da hostilidade das terras e dos climas, a inúmeras torren- deve embriagar-se; mostre-se, por factos e não por pala-
tes caindo sabe-se lá donde, a inúmeras travessias por vras, tudo quanto há de horroroso e prejudicial na embria-
mar: só o deitou por terra o excessivo prazer da bebida, o guez. Prove-se (o que é facílimo de conseguir) como os
24 seu copo digno de Hércules! Que glória há em beber chamados prazeres, quando excessivos, se tornam tormen-
muito? Ainda que sejas o vencedor, que todos os outros tos. Se, pelo contrário, se argumentar que o sábio, embora
- prostrados pelo sono, agoniados - não te acompa- bebendo muito, não perde a razão e conserva a plenitude
nhem já nos brindes, ainda que, em pleno banquete, sejas das s}las faculdades mesmo embriagado,. .. então poder-se-á
o único ainda de pé, ainda que superes todos com a tua ar~inentar também que ele não morrerá se beber um
espantosa resistência à bebida, ainda que ninguém mais veneno, não dormirá se tomar um soporífero, nem vomi-
consiga beber tanto vinho... um tonel far-te-ia tombar! tará as entranhas se ingerir um bocado de eléboro! Mas
25 Outra não foi a perdição desse homem notável e de ânimo se ele fica incapaz de marchar a direito e de articular duas
nobre que se chamou Marco António: não foi acaso a palavras - como pretender que está em parte sóbrio e
paixão por Cleópatra (tão violenta como a paixão pelo em parte embriagado ? !...

376 28 377
1
LIVROS XI A XIII

(Cartas 84-88)

84
Estas viagens que me forçam a sacudir a minha indo- 1
lência são óptimas, acho eu, quer para a minha saúde, quer
para os meus estudos. Óptimas para a saúde, é fácil de
ver porquê: como a minha paixão pela escrita me torna
sedentário e descuidado com o corpo, sempre vou fazendo
um pouco de exercício à conta dos outros 2• E porque são
boas para o estudo? Já te digo: porque não interrompi as
minhas leituras. A leitura, é de facto, em meu entender,
imprescindível: primeiro, para me não dar por satisfeito
só com as minhas" obras, segundo, para, ao informar-me
dos problemas investigados pelos outros, poder ajuizar das
descobertas já feitas e conjecturar as que ainda há por fazer.

1
No termo da carta 83 (última do livro X) o manuscrito Q nora: "aqui
termina o livro X, começa o livro XI"; o mesmo manuscrito anota no fim da
carta 88: "termina aqui o livro XIII das Epistolas morais de L Aneu Séneca''.
Os limites dos três livros XI, XII e XIII, porém, não são indicados no interior
do conjunto; ignora-se, portanto, qual a última carta do livro XI, quais as cartas
compreendidas no livro XII e qual a primeira carta do livro XIII.
2
Séneca viajava de liteira, pelo que na realidade quem fazia exercício eram
os escravos que carregavam o veículo! Cf., no entanto, a carta 55, em que
Séneca refere até que ponto um passeio de liteira pode equivaler a um exercício
físico, até violento para um homem de idade.

379
A leitura alimenta a inteligência e rétempera-a das fadigas génita, são capazes de transformar em mel aqueles mate-
2 do estudo, sem, contudo, pôr de lado o estudo. Não deve- riais que colheram das partes mais tenras das plantas em
mos limitar-nos nem só à escrita, nem só à leitura: uma plena floração, juntando-lhes, por assim dizer, um certo
diminui-nos as forças, esgota-nos (estou-me referindo . ao fermentü capaz de aglutinar sob a forma de um produto
trabalho da escrita), a outra amolece-nos e embota-nos a único esses materiais díspares.
energia. Devemos alternar ambas as actividades, equilibrá- Mas já estou a derivar para outro assunto. .Voltemos à 5
-las, para que a pena venha a dar forma às ideias coligidas questão essencial: nós devemos imitar as abelhas, discri-
3 das leituras. Como soe dizer-se, devemos imitar as abelhas minar os elementos colhidos nas diversas leituras (pois a
que deambulam pelas flores, escolhendo as mais apropriadas memória conserva-os melhor assim discriminados), e depois,
ao fabrico do mel, e depois trabalham o material recolhido, aplicando-lhes toda a atenção, todas as faculdades da nossa
distribuem-no pelos favos e, nas palavras do nosso Vergílio, inteligência, transformar num produto de sabor individual
todos os vários sucos coligidos de modo a que, mesmo
"o liquido mel
quando é visível a fonte donde cada elemento provém,
acumulam, e fazem inchar os alvéolos de doce néctar' 3
ainda assim resulte um produto diferente daquele onde se
4 Não há a certeza se as abelhas extraem das flores um inspirou. Um processo idêntico àquele que nós vemos a
suco que depois se transforma em mel, ou se são elas que, natureza operar no nosso corpo sem a mínima interferên-
por uma preparação especial e por qualquer propriedade cia da nossa parte (os alimentos que consumimos, enquanto 6
do seu organismo, transformam nesse produto os mate- se conservam inteiros e flutuam sólidos no estômago são
riais recolhidos. Certos autores pretendem que elas não para este um peso; mas quando se transformam, logo são
sabem fabricar o mel, mas tão somente coligir o material assimilados e se tornam músculos e sangue), um processo
necessário. Dizém que na Índia se pode encontrar mel nas idêntico, dizia eu, devemos operaí nos alimentos da inteli-
folhas das canas, derivado do orvalho característico do cli- gência, sem permitir que a.s ideias recebidas se conservem
ma, ou do suco da própria cana que por si é doce e muito tal qual, como corpos estranhos. Assimilemo-las; se assim 7
espesso 4 ; afirmam igualmente que as nossas plantas pos- não for, elas podem perdurar na memória, mas não pene-
suem um suco semelhante, embora me°:os evidente e tram na inteligência. Demos-lhes a nossa total concordân-
abundante, suco esse que a abelha procura e amassa, como cia, façamo-las nossas, tornemos um grande número de
animal predeterminado para tal tarefa. Outros são de opi- ideias num organismo único, tal como numa adição jun-
nião que as abelhas, devido a qualquer predisposição con- tamos parcelas diferentes para obter um único total. Que
o nosso espírito faça a mesma coisa: mantenha ocultas as
parcelas de que se serviu para exibir tão somente o resul-
3 Vergílio, Aen., I, 432-3; cf. Georg., 163-4 onde se lê: "ourras (abelhas)
tado global obtido. Mesmo que seja visível em ti a seme- 8
arumulam o mais puro mel e fazem inchar os favos com o líquido néctar."
4
A cana de açúcar é, efectivamente, originária da Índia, donde foi trazida lhança com algum autor cuja admiração se gravou mais
para a Europa e posteriormente implantada nas Américas. profundamente em ti, que essa semelhança seja a de um

380 381
filho, não a de uma estátua: a estátua é um objecto morto. lecer as energias; deixa a ambição que não passa de uma
"Que dizes? Então não deve ser evidente qual o autor de coisa artificialmente empolada, inútil, inconsciente, incapaz
que se pretende imitar o estilo, a argumentação, as ideias?" de reconhecer limites, tão interessada em não ter superio-
Em meu entender, há casos em que isso nem sequer é res como em evitar até os iguais, sempre torturada pela
inveja, e uma inveja ainda por cima dupla. Vê como de
possível: quando um homem de superior inteligência con-
facto é infeliz quem, objecto de inveja ele próprio, tem
segue imprimir o seu carácter aos vários elementos que
inveja por outros. Não estás vendo essas casas dos gran- 12
colheu no seu modelo predilecto de modo a que tais ele- des senhores, as suas portas cheias de clientes que se
9 mentas resultem numa unidade. Não vês tu como um atropelam na entrada? Para lá entrares, terias de sujeitar-
coro é formado por grande número de vozes? Do con- -te a inúmeras injúrias, mas mais ainda terias de suportar
junto, no entanto, resulta como que uma voz única. Há se entrasses. Passa frente às escadarias dos ricos senhores,
vozes de tenor, de baixo, de barítono; às vozes masculinas aos seus átrios suspensos como terraços: se lá puseres os pés
juntam-se as femininas, aqui e além surge o acompanha- será como estares à beira de uma escarpa, e de uma escarpa
mento da flauta: no entanto as vozes individuais não se prestes a ruir. Dirige antes os teus passos na via .da
10 distinguem, fazem-se ouvir apenas como um conjunto. E sapiência, procura os seus domínios cheios de tranquili-
falo do coro tal como o conheceram os antigos filósofos, dade, mas também de horizontes ilimitados. Tudo quanto 13
porque nos espectáculos de hoje participam mais cantores entre os homens é tomado como coisa eminente, muito
embora de valor reduzido e só notável em comparação
do que alguma vez houve espectadores nos teatros. Quando
com as coisas mais rasteiras, mesmo assim só é acessível
todas as coxias se enchem com as várias classes de canto-
através de difíceis e duros atalhos. A via que conduz ao
res, a plateia fica rodeada de trompetistas e no palco se cume da dignidade é extremamente árdua; mas se te dis-
faz ouvir simultaneamente toda a espécie de flautas e puseres a trepar até estas alturas sobre as quais a fortuna
outros instrumentos, todos estes elementos dissonantes ,não tem poder, então poderás ver a teus pés tudo quanto
produzem um canto harmónico. É assim mesmo que eu a opinião vulgar considera eminentíssimo, e desse ponto
quero o nosso espírito: ·que ele domine muitas técnicas, em diante o teu caminho será plano até ao supremo bem.
conheça muitos preceitos e exemplos de muitas épocas,
mas tudo isso dotado de uma alma própria e individual. 85
11 "Mas como é isso possível?" - vais tu perguntar-me. Eu estava decidido a poupar-te e a passar por alto 1
Com uma aplicação sem desfalecimento: se nós nada fizer- todos os pontos intrincados ainda subsistentes nesta maté-
mos senão de acordo com os ditames da razão, também ria, contentando-me em dar-te apenas a "provar" os argu-
nada evitaremos senão de acordo com os ditames da razão. mentos usados pelos pensadores estóicos para demonstrar
Se quiseres escutar a razão, eis o que ela te dirá: deixa de que a virtude é o único meio necessário e suficiente para
uma vez por todas tudo quanto seduz a multidão! Deixa a se atingir a felicidade na vida. Tu, porém, exiges-me que
riqueza, deixa os perigos e os fardos de ser rico; deixa os eu passe em revista todos os silogismos usados quer pelos
prazeres, do corpo e do espírito, que só servem para amo- nossos, quer pelos que pretendem pôr em cheque as nossas

382 383
teorias. Se eu me dispusesse a fazer o que queres, sama "Ela conseguia voar sobre a ponta das espigas
daqui não uma carta, mas um livro! Por mim nunca me de uma seara vi-rente sem na corrida atingir
canso de afirmar que me aborrece este tipo de argumen- os tenros grãos;
tação: tenho vergonha de ir combater em defesa dos deu- . ou percorrer, suspensa, as grossas ondas do mar
ses e dos homens armado de um simples canivete!... encapelado sem salpicar sequer os pés velozes 5 ".
2 ·"Todo o homem prudente é moderado; todo o homem Nestes versos vê-se o louvor da velocidade entendida em
moderado é constante; todo o homem constante é imper- si mesma, e não em comparação com a forma de correr
turbável,· todo o homem imperturbável está ao abrigo da dos mais vagarosos. Acaso chamarás "saudável" a quem
tristeza; todo o homem que está ao abrigo da tristeza é apenas tem uma ligeira febre? Uma doença ligeira não
feliz; logo, todo o homem prudente é feliz; logo, a pru- pode ser equivalente à saúde perfeita. Dizem os peripaté- 5
dência é condição suficiente para o homem ter uma vida ricos: "Diz-se que o sábio é imperturbável no mesmo sen-
de felicidade." tido em que se dizem "sem caroço'~ não os frutos cujas
3 A este sorites alguns peripatéticos objectam dizendo sementes são moles, mas sim aqueles que as têm menos
que ao falar de um "homem imperturbável, constante e duras." Isto é falso! Em meu entender o que se verifica
ao abrigo da tristeza" se deve interpretar "imperturbável" no homem de bem não é uma atenuação dos defeitos, mas
não no sentido de alguém que nunca sofre qualquer per- sim a sua completa ausência; os seus defeitos não devem
turbação, mas sim no de alguém que apenas rara e limi- ser diminutos, devem ser nulos, pois se alguns possuir
tadamente se deixa perturbar. Semelhantemente entendem eles não tardarão a aumentar e mesmo a tomar conta
que "está ao abrigo da tristeza" todo. aquele que não é dele. O mesmo sucede com as cataratas: quando já com-
dado à tristeza, que não padece deste sentimento com fre- pletamente desenvolvidas ocasionam a cegueira, mas mesmo
quência, nem em excesso; imaginar alguém cuja alma seja ainda no ínicio já bastam para dificultar a visão. Se atri- 6
imune à tristeza, dizem eles que é negar a natureza huma- buímos ao sábio algum defeito, então a sua razão será
na; mais, o próprio sábio, embora não seja dominado pelo incapaz de lhe fazer frente, será como que arrastada por
desgosto, não deixa de ser atingido por ele; e prosseguem uma torrente, sobretudo porque lhe atribuímos não uma
na mesma linha de argumentos, em conformidade com as só paixão contra a qual possa lutar, mas todas ao mesmo
posições da sua escola. Com tais raciocínios os peripatéti- tempo. É mais perigosa a violência de uma multidão,
4 cos não erradicam as paixões, somente as moderam. Mas mesmo de anões, do que a de um só gigante. O sábio 7
que triste conceito faremos do sábio só o considerando peripatético tem desejo de riqueza, embora moderado; tem
forte em confronto com os mais débeis, alegre em con- ambição, mas não exagerada; é sujeito à cólera, se bem
fronto com os mais desgostosos, moderado em confronto que controlável; padece de inconstância, embora menos
com os mais desenfreados, grande em confronto com os
mais humildes! Não será isto o mesmo que exaltar a
velocidade de Ladas em competição com coxos e diminuídos?! 5
Vergílio, Aen., VII, 808-11.

384 385
acentuada e sujeita a desvarios; sente desejos, embora não timentos está fora de nós; e assim eles crescerão mais ou
exacerbados! Seria preferível a situação de um homem que menos conforme forem mais ou menos actuantes as cau-
tivesse um único vício bem declarado do que a de quem sas que os provocam. O medo será tanto maior se se con-
8 os tem todos, embora atenuados. De resto, são irrelevan- templarem mais longamente, ou mais de perto, as causas
tes as proporções de uma paixão: por pequena que seja, que excitam o medo; o desejo será tanto maior conforme
recusa-se à obediência aos ditames da razão. Tal como maior for a esperança despertada pela futura posse de
nenhum animal é capaz de obedecer à razão - seja ani- maiores bens. Se não estiver na nossa mão a possibilidade 12
mal selvagem, seja doméstico e manso (já que por natu- de as paixões existirem ou não, igualmente não estará o
reza os animais são surdos aos conselhos) -, assim tam- seu grau de intensidade; se permitirmos o seu apareci-
bém as paixões não acatam nem escutam avisos, por mais mento, elas crescerão em proporção com as suas causas, e
reduzidas que sejam. Os tigres e leões nunca perdem a tornar-se-ão tão intensas quanto puderem. Acrescenta ainda
sua ferocidade, apenas ocasionalmente a atenuam, e quando que todos os defeitos, por diminutos que sejam, têm ten-
menos se espera a sua violência domada pode exasperar-se dência a aumentar; tudo quanto é nocivo ignora a justa
9 de novo. Os vícios não se dominam com boas maneiras. medida; embora leves a princípio, as forças da doença
Aliás, com o auxílio da razão, as paixões nem sequer des- vão-se insinuando em nós, até que um ligeiro acréscimo
pertam; e se despertam contrariando a razão, persistirão do mal abate os nossos corpos minados. É uma perfeita 13
nas mesmas condições. É bem mais fácil impedir que elas loucura imaginar que coisas cujos princípios se encontram
se originem do que dominar depois os seus ardores! fora de nós possam ter o seu termo determinado pela
Consequentemente esta atenuação dos vícios (admitida nossa vontade! Como hei-de eu ter força bastante para
pelos peripatéticos) é não só falsa como inútil; devemos pôr fim a algo que não fui capaz de evitar que surgisse?
considerá-la do mesmo modo como se nos dissessem que Sim, porque é mais fácil mantér os vícios à distância do
1O se deve ter moderação na loucura ou na doença. A virtude que refreá-los depois de introduzidos em nós.
deve ocupar toda a alma, pois os defeitos da alma não são Outros pensadores objectaram fazendo a seguinte dis- 14
susceptíveis de moderação; é mais fácil erradicá-los do que tinção: "Um homem moderado e prudente consegue ser
controlá-los. Podemos duvidar de que aqueles vícios da tranquilo graças a uma certa conformação, um certo estado
mente humana mais enraizados e fortes a que chamamos do seu espírito, mas já pode não o ser em face das cir-
"doenças do espírito" - tais como a avareza, a crueldade, cunstâncias concretas. De facto, no que concerne à forma-
a falta de autocontrolo - sejam imoderados? Logo imo- ção do seu espírito, tal homem não conhecerá a ansiedade,
deradas são também as paixões, já que se parte sempre a melancolia, o medo; muitas causas exteriores podem,
11 destas para chegar àqueles. Aliás, se damos algum espaço contudo, actuar sobre ele de modo a provocar-lhe um
à melancolia, ao medo, ao desejo, aos restantes maus impul- estado de ansiedade." Querem eles dizer com isto que um 15
sos, perderemos toda a possibilidade de os controlar. Pela homem pode não ser irascível, mas irar-se uma vez por
pura e simples razão de que a causa que suscita tais sen- outra; pode não ser medroso, mas sentir medo algumas

386 387
vezes, ou seja, não possuir o medo como vício, mas como irrelevante: ele nega que a virtude possa existir sem o
"paixão" ocasional. Se se admite esta tese, então, com a prazer. Mas se a virtude está sempre, e indissociavelmente,
repetição frequente, o medo poderá transformar-se em unida ao prazer, então só por si é condição suficiente, pois
vício; a ira, admitida a sua entrada no espírito, acabará implica sempre a presença do prazer, sem o qual não
por desfazer a tal conformação especial do espírito que se existe mesmo quando vem isolada. Ora aqui está uma 19
16 dizia ao abrigo da ira. Além disso, um homem que não coisa absurda de dizer-se: que, graças à virtude, um homem
despreza as causas vindas do exterior e sente medo de possa ser feliz, mas que não poderá ser completamente
uma ou outra coisa, quando tiver de enfrentar com cora- feliz. Como isto seja possível é coisa que não consigo
gem o ferro e o fogo, acabará por lutar pela pátria, as entender! A vida feliz tem efectivamente, em si, um bem
leis, a liberdade com hesitação, com o espírito titubeante. consumado, insuperável: se tal bem existe, então a vida
Semelhante indefinição mental não pode ser apanágio do será perfeitamente feliz. Se a vida dos deuses não conhece
17 sábio. Além disso eu entendo que devemos observar ainda acréscimos nem decréscimos, então a vida divina é feliz,
outra coisa, para não caírmos no erro de unir duas propo- sem nada haver que possa torná-la ainda mais feliz. Além 20
sições que devem ser demonstradas em separado: ou seja, disso, se a vida feliz é aquela que não tem carência de
devemos concluir, por um lado, que o único bem é o bem nada, toda a vida feliz é-o na perfeição; tal vida será não
moral, e por outro lado demonstrar que a virtude é condi- só feliz, como felicíssima! Não duvidas de que a vida feliz
ção suficiente para se obter a felicidade. Se se àdmitir que seja o supremo bem; logo, se a vida possui o supremo
o único bem é o bem moral, todos os pensadores concor- bem, então é sumamente feliz. E tal como o supremo
bem não pode receber qualquer acréscimo (o que haveria
darão que a virtude é condição suficiente para se viver
acima do supremo?!), também a vida feliz o não pode,
com felicidade; mas em sentido inverso já não é possível
pois a felicidade não existe sem o supremo bem. Repara:
tal acordo, isto é, de que a virtude só por si dá a felici-
se disseres que alguém é "mais" feliz, tornarás possível
dade, nem todos concluem que o único bem é o bem
que se diga também "muito mais"; e assim irás fazendo
18 moral. Xenócrates e Espeusipo admitem que se pode ser inúmeras gradações no supremo 'bem, quando por "sumo
feliz apenas graças à virtude, mas já não aceitam que o bem" eu entendo tudo o que não tem valor algum acima
único bem é o bem moral6• Epicuro pensa também que de si. Se alguém é menos feliz do que um outro, segue-se 21
quem possui a virtude é feliz, mas não considera a virtude que preferirá a vida desse outro (por ser mais feliz) à sua
como causa suficiente de felicidade, pois, em seu entender, própria; ora, um homem feliz não considera nada preferí-
o que torna um homem feliz é o prazer que vem da vel à sua vida. Qualquer destas duas situações é inaceitá-
posse da virtude, e não a virtude em si mesma 7. Distinção vel: existir algo que o homem feliz preferiria ter em lugar
daquilo que tem, ou não preferir ter algo que seja melhor
do que aquilo que tem. De facto, quanto mais um homem
6
Cf. supra carta 71, 18; v. Xenócrates fr. 91 Heinze. é avisado, tanto mais se procurará chegar ao que há de
7
Epicuro, frs. 504 ss. Usener. melhor, e ambicionará alcançá-lo seja de que modo · for.

388 389
Ora, como pode ser feliz alguém que pode, que deve mesma posição, acima discutida, de considerar como virtu-
mesmo, desejar ainda mais do que o que tem ? des os vícios menos intensos, pois quem sente medo,
22 Vou dizer-te qual a origem donde provém este erro: embora pouco e raramente, não está imune de defeitos,
da ignorância de que o que caracteriza a vida feliz é a sua embora os tenha mais ligeiros. "Mas só um louco não
unidade. É a qualidade, não a dimensão, que grangeia à sente medo ante a iminência do perigo." Isso é verdade, se
vida esse supremo estado. Por isso mesmo, a vida feliz é se admitir o perigo como um mal; mas quando sabemos
simultaneamente longa e breve, difusa e limitada, dissemi- que não é um mal, quando consideramos que só a imora-
nada por muitos lugares, por muitas áreas, e concentrada lidade é um mal, devemos encarar o perigo tranquilamente
num único ponto. Quem avalia a felicidade em números, e desprezar aquilo que causa medo aos outros. Admitindo
medidas e partes está-lhe por isso mesmo roubando o que que só um idiota ou um louco não teme o perigo, tería-
ela tem de melhor. E o que há de melhor na felicidade mos de concluir que quanto mais um homem é avisado
23 do que a sua plenitude? Imagino eu que toda a gente pára mais medo deve ter! "Mas em vosso entender o homem 26
de comer e de beber quando está saciada. Este come mais, valente deve ir ao encontro do perigo." Nada disso: não o
aquele come menos; mas que importa isso se ambos se deve temer, mas procurará evitá-lo. Agir com cautela não
sentem satisfeitos? Este bebe mais, aquele bebe menos; é vergonha, mas sentir medo é . "Como é isso? Não sen-
mas que importa isso se ambos mataram a sede? Este tirá medo da morte, da prisão, do fogo nem de todas as
viveu mais anos, aquele viveu menos; isso não tem impor- outras armas usadas pela fortuna?" Claro que não, porque
tância desde que a provecta idade do primeiro e os breves sabe que tudo isso apenas parece ser mal, sem de facto o
anos do outro os tenham feito igualmente felizes. Aquele ser; porque entende que tudo isso não passa de espanta-
a quem tu chamas "menos feliz" não é de facto feliz, por- lhos para assustar os homens. Podes falar longamente de 27
quanto este predicado não é susceptível de conhecer gradação. cativeiros, de torturas, de cadeiás, de miséria, de corpos
24 "Quem é valente não conhece o medo; quem não dilacerados pela doença ou pelo sadismo, de tudo, enfim,
conhece o medo não conhece a tristeza; quem não conhece que te venha à ideia: o homem valente inclui tudo isso no
a tristeza é feliz." rol dos pesadelos, e os pesadelos só metem ·medo aos
Este argumento foi inventado pela nossa escola. Os medrosos! Acaso consideras mal uma coisa por que às
nossos adversários t~ntam refutá-lo dizendo que nós damos vezes nós deliberadamente optamos? Eu digo-te o que é o 28
por unanimemente reconhecida uma proposição falsa, con- mal: é ceder àquilo que vulgarmente se chama "males'', é
testável; a saber, que quem é valente não conhece o medo. entregar-lhes uma coisa pela qual tudo deveremos supor-
"Pois quê?" - objectam eles. - "EntíW um homem valente tar: a nossa liberdade. E a liberdade desaparece quando
não sente medo na iminência do perigo? Só um louco, não desprezamos tudo quanto pretende subjugar-nos. Os
um doido varrido é que não sente medo. Um valente, nossos opositores não divagariam sobre a atitude justa do
esse sente medo em dose moderada, mas sem ignorar homem valente se soubessem o que é de facto a coragem.
25 totalmente o medo." Quem assim argumenta coloca-se na Coragem não significa temeridade inconsiderada, nem amor

390 391
pelo risco, nem paixão pela aventura: significa, sim, saber certo se porventura a condição do piloto fosse idêntica à
distinguir entre o que é mal e o que não o é. A coragem do sábio. O objectivo que norteia o mesmo modo de vida
está sempre atenta à autopreservação, mas ao mesmo do sábio não consiste em levar a cabo de qualquer maneira
tempo é capacíssima de suportar tudo quanto se nos apre- tudo o que empreende, mas sim em fazer tudo com recti-
29 senta falsamente como males. "Que quer isso dizer? Se se dão; em contrapartida o objectivo do piloto é levar o
ferir com um ferro um homem valente no pescoço, se navio ao porto seja como for. As artes são meros auxilia-
depois se rasgar mais uma e outra parte do seu corpo, se res, e devem prestar os serviços que oferecem, ao passo
ele vir diante de si as próprias vísceras arrancadas, se lhe que a sapiência tem por função governar e dirigir. Na
aplicarem a tortura espaçadamente para o sofrimento ser vida as artes servem, a sapiência ordena!
maior, e lhe fizerem correr o sangue fresco das feridas já Eu, por mim, entendo que se deveria argumentar dife- 33
meio fechadas - ele não sentirá medo? Dizes tu que ele rentemente: nenhuma tempestade torna pior nem a arte
não sentirá dor?" Claro que sentirá dor (pois não há vir- do piloto nem o próprio exercício da mesma. O piloto
tude que roube ao homem o uso dos sentidos), mas medo, não prometeu o bem-estar a ninguém; prometeu, isso sim,
isso não; invicto, esse homem olhará de alto o seu pró- o seu melhor esforço e o seu conhecimento da arte de
prio sofrimento. Se me perguntares qual o estado de espí-
conduzir um navio, e essa arte vem tanto mais ao de
rito dele nesse momento, a minha resposta é: o mesmo
cima quanto maiores forem os obstáculos que encontra.
com que procuramos animar um amigo numa doença grave.
Um homem que foi capaz de dizer "Neptuno, nunca afun-
30 "Toda o mal é nocivo; tudo o que é nocivo torna darás este barco senão de frente/" cumpriu bem com a
o homem pior; a dor e a pobreza não tornam sua arte. A tempestade não impede o esforço do piloto, só
o homem pior, logo não são males." lhe proíbe o êxito. "Que dizes? Então não é nociva ao 34
Há quem objecte a este argumento: "A vossa proposi- piloto a tempestade, que o impede de chegar ao porto,
ção é falsa, pois não é verdade que tudo quanto é nocivo que torna inúteis todos os seus esforços, que o faz retro-
torne o homem pior. O mau tempo, a tempestade são ceder ou lhe destrót o aparelho e o impede de prosse-
nocivas ao piloto, mas nem por isso o tornam pior." guir?" Não lhe é nociva na sua qualidade de piloto, mas
31 Alguns estóicos contra-argumentam dizendo que o mau apenas na qualidade de navegante; aliás, só assim é que
tempo e a tempestade tornam o piloto pior porque o ele é piloto. E não só não impede de manifestar-se a arte
tornam incapaz de levar a cabo a sua tarefa e de manter . do piloto, como até a realça, pois com bom tempo, diz o
o seu rumo; não o tornam pior no que concerne à sua rifão, qualquer um pode ser piloto! O mau tempo é pre-
arte, mas sim quanto à sua actuação efectiva. A isto res- judicial ao navio, mas não ao seu timoneiro, enquanto é
ponde o peripatético que "logicamente também a pobreza, timoneiro. No piloto há duas personagens, uma que lhe é 35
a dor e tudo o mais do mesmo género tornarão pior o comum com todos os que entraram no mesmo barco,
sábio, pois, se lhe não roubam a virtude, pelo menos uma vez que ele também é um viajante; outra que lhe é
32 impedem as manifestações da virtude." Tudo isto estaria peculiar: ele é o piloto. O mau tempo prejudica-o como

392 29 393
viapnte, não como piloto. Daqui se segue que a arte de só em marfim, sabia também fazê-lo em bronze. E se lhe
piloto é um bem virado para o exterior, pois diz respeito dessem um bloco de mármore, ou qualquer outro material
ao transporte de passageiros, tal como a arte do médico ainda mais ordinário, ele esculpiria a melhor está-
concerne aos doentes que cura; a do sábio, porém, é um tua possível com esse material. Semelhantemente, o sábio
bem de alcance geral, pois tanto respeita aos homens com dará largas à sua virtude na opulência, se tiver essa opor-
quem ele convive como é privativa do próprio sábio. Até tunidade, ou na pobreza, se a não tiver; se puder, na pró-
podemos admitir que o mau tempo seja nocivo ao piloto pria pátria, se não, no exílio; se puder, como general, se
na medida em que o impede de cumprir os serviços pro- não, como soldado; se puder, de boa saúde, se não, fisica-
37 metidos aos outros. Mas ao sábio em nada são nocivas a mente diminuído. Seja qual for a parcela da fortuna que
pobreza, a dor, as outras tempestades da vida. Nem todas lhe couber, ele a saberá transformar em algo digno de
as suas obras são por elas impedidas, somente aquelas que memória. Há alguns domadores de feras que são capazes 41
se destinam aos outros: o próprio sábio está sempre em de habituar à presença do homem os animais mais fero-
acção, e a sua grandeza é tanto mais manifesta quanto zes e mais temíveis de defrontar; e, não contentes de eli-
mais a fortuna se lhe opõe. É então, de facto, que ele se minar neles a agressividade, amansam-nos a ponto de con-
entrega à sapiência em si mesma, a qual dissemos ser um viverem como amigos. O tratador do leão mete-lhe a mão
bem de incidência tanto nos outros como no próprio sábio. na boca, o guarda do tigre chega a beijar o animal, uma
38 Além disso, mesmo que algumas dificuldades o aflijam, criança etíope é capaz de fazer um elefante ajoelhar-se ou
nem assim o sábio é impedido de ser útil aos outros. A caminhar sobre uma corda. O sábio é um artista a domar
pobreza pode impedi-lo de ensinar como se há-de lidar os males: a dor, a miséria, a degradação social, a prisão, o
com os negócios do Estado, mas não de ensinar o modo exílio - objectos do terror geral! - tornam-se mansos
de lidar com a pobreza. A sua obra dilata-se ao longo de 1 quando se chegam junto dele. ,
I'
toda a sua vida, por isso nenhuma circunstância, nenhuma
situação impede a acção do sábio de manifestar-se. Ele é
capaz de lidar precisamente com aquele obstáculo que lhe
86
proíbe outras realizações. O sábio está à altura de ambas Escrevo-te esta carta instalado por um tempo na pró- 1
39 as condições: guiar ao bem, vencer o mal. Assim, afirmo pria vila de Cipião Africano, após ter prestado culto aos
eu é que o sábio se exerce de modo a patentear, quer no. seus manes e a um altar que suspeito sirva de túmulo a
bem-estar quer na adversidade, a sua virtude - e a fazer esse ilustre varão. Estou persuadido de que a sua alma
ver, não as obras, mas a presença em si dessa virtude. regressou ao céu donde provinha, persuasão que não vem
Por conseguinte, nem a pobreza, nem a dor, nem tudo o de ele ter comandado enormes exércitos (afinal, exércitos
mais que faz fugir precipitadamente os "ignorantes" é um também os teve o louco Cambises, que soube bem tirar
impedimento para o sábio. Julgas que os males esmagam partido da sua insanidade!), mas sim da extraordinária
40 o sábio? Pelo contrário, servem-no! Fídias não sabia esculpir moderação e piedade que ele demonstrou, e que para mim

394 395
mais admirável foi ainda quando ele abandonou a pátria cansado dos labores agrícolas! Sim, que ele não se eximia
do que quando a defendeu. Ou Cipião continuava em Roma, ao trabalho, mas, seguindo os antigos costumes, arava ele pró-
2 ou Roma preservava a liberdade. "Não pretendo introdu- prio a terra. Cipião viveu sob este tecto tão sem graça,
zir qualquer alteração nas nossas leis, nas nossas institui- pisou estes pavimentos tão ordinários! Nos dias de hoje,
ções" - afirmou ele; - "que entre todos os cidadãos quem se resignaria a tomar banho em condições seme-
prevaleça a força do direito. Goza, ó pátria, dos benefícios lhantes? Qualquer um se considera pobre e mesquinho se 6
que eu te fiz, mas sem a minha presença. Garanti a tua as suas paredes não resplandecerem com grandes e pre-
liberdade, e disso serei eu próprio a prova: parto, já que o ciosas incrustações, se os seus mármores de Alexandria
meu poder aumentou para além das tuas necessidades." não forem decorados com mosaicos da Numídia, trabalho-
3 Como não hei-de admirar uma grandeza de alma tal que samente recobertos de verniz como se de pinturas se tra-
levou Cipião ao exílio voluntário para aliviar a cidade da tasse, se não tiverem uma cúpula recoberta de vidro, se o
sua influência? A situação chegara a um ponto em que ou mármore de Tasos não revestir as piscinas onde metemos
a liberdade pública seria nociva a Cipião ou Cipião seria o corpo emaciado pelo banho de vapor, se, enfim, a água
nocivo à liberdade. Qualquer das hipóteses seria indesejá- não correr de torneiras em prata! E, por enquanto, até 7
vel e assim Cipião cedeu o lugar às leis, e retirou-se para estou falando das canalizações da plebe: que não dizer
Literno, beneficiando a República com o seu exílio, tal quando me referir aos balneários dos libertos 9! Que multi-
como a beneficiara com o exílio de Arubal. dão de estátuas, que sem número de colunas que nada
4 Pude contemplar a "vila" construída em cantaria, o sustentam, apenas decorativas, só para exibição de riqueza!
muro que circunda o parque, e também as torres erguidas Que abundância de água caindo ruidosamente em cascatas!
nos flancos para defesa da "vila", a cisterna que serve Chegamos ao luxo de só poder pisar pedras preciosas! ...
quer a mansão quer o cultivo das plantas - uma cisterna No balneário de Cipião não· há propriamente janelas, 8
que quase daria para dessedentar um exército! Vi ainda o mas apenas umas fendas estreitas que deixam entrar a luz
pequeno balneário, bem escuro, segundo a moda de anti- sem pôr em causa a solidez da construção. Hoje dá-se o
gamente: os nossos maiores não apreciavam os banhos
5 quentes senão às escuras! Senti então um grande prazer
9
ao confrontar os costumes de Cipião com os nossos de Sobretudo no tempo de Cláudio, os libertos (em especial os do imperador)
adquiriram uma enorme importância política e social e acumularam fortunas
hoje: era em semelhante cubículo que o grande homem consideráveis, como por exemplo os famosos Narcisso e Palante (libertos e
- o "terror de Cartago" - , a quem Roma ficou devendo "ministros" de Cláudio). Uma das acções conduzidas pela classe senatorial no
não ter sido conquistada pela segunda vez8, lavava o corpo início do principado de Nero consistiu precisamente em reduzir a influência
enorme desses homens: Narcisso, por exemplo, acabou, vítima de intrigas de
Agripina, por ver-se constrangido ao suicídio (Tácito, Ann., XIII, 1, 5,), Palante
foi mandado envenenar por Nero (Tácito, ibid., XIV, 65, 1). - O comporta-
8 mento de "novos ricos" dos libertos ficou imortalizado na literatura pelo Tri-
Ao longo da sua história Roma só fora conquistada uma única vez, aquando
malquião de Petrónio (Satiricon, XXVI, 7 ss.).
das invasões gaulesas na guerra de -390-383.

396 397
nome de "banhos para traças" aos balneários cuja constru- provinciano por não ter nos seus banhos quentes largas
ção não permite receber a luz durante o dia todo por vidraças para deixar entrar o sol, e não se deixar destilar
janelas enormes. Se é impossível tomar banho e ficar no meio da luz à espera de fazer a digestão no banho.
bronzeado ao mesmo tempo, se não se pode contemplar a "Oh!, pobre homem! Nem sabia viver!" Cipião não se
paisagem de dentro da banheira, já não presta! E assim é lavava com água filtrada, frequentemente ela estava turva,
que requintes que suscitaram a admiração dos visitantes e quando chovia mais, quase ficava com lodo. A ele, aliás,
aquando da inauguração passam ao rol das velharias mal não lhe fazia diferença lavar-se assim, pois ia ao banho
o luxo descobre alguma novidade em que despender ener- para se limpar do suor, e não dos perfumes. Não imagi- 12
9 gias. Antigamente, os balneários públicos eram pouco nas o que dizem disto os delicados de hoje? "Não invejo
numerosos e sem a mm1ma ,. decoraçao
-!Op. ara que,"de esse Cipião! Tomar banho em condições semelhantes é de
facto, decorar uma coisa de valor mínimo, de finalidade facto viver exilado!..." Pois digo-te ainda mais: ele não
meramente utilitária e não destinada ao prazer ? Não havia tomava banho todos os dias. Segundo os eruditos que
água corrente como que brotando continuamente de uma referem os velhos costumes de Roma, os antigos lavavam
10 fonte quente, nem os antigos se preocupavam com a ilu- todos os dias os braços e as pernas, ou seja, a parte do
minação do espaço onde iam libertar-se da sujidade. Porém, corpo onde se juntava a sujidade proveniente do trabalho.
santos deuses !, como é agradável entrar nesses balneários Banho completo, só de nove em nove dias. Nesta altura
sombrios revestidos de estuque vulgar, quando se sabe que haverá certamente quem diga: "Que porcos deviam eles
quem cuidava deles por suas próprias mãos eram edis andar!" A que julgas tu que eles cheiravam? A vida mili-
como Catão, Fábio Máximo ou algum dos nobres Corné- tar, a trabalho, a homem, em suma. Depois que se inven-
lios ! Sim, os mais nobres edis desempenhavam outrora a taram estes impecáveis balneários os homens tornaram-se
função de entrar nesses lugares frequentados pela multi- mais porcos. O que diz Horácio quando quer retratar um 13
dão, de assegurar a sua limpeza, de manter uma tempera- indivíduo de maus costumes, notável pelos seus excessivos
tura adequada à saúde, e não este calor que hoje está na requintes? Diz que
moda e mais parece calor de incêndio, a ponto de quase
"Bucilo cheira a rebuçados/" 11
se poder castigar um escravo criminoso... mandando-o
simplesmente tomar banho! Balneário aquecido ou incên- Se Bucilo vivesse hoje em dia, por pouco pareceria cheirar
dio no balneário - por mim não vejo onde estaria a a bode, faria o papel daquele Gargónio que, na mesma
11 diferença! Abunda hoje quem acuse Cipião de perfeito sátira, Horácio põe em confronto com Bucilo 12• Usar perfume

11
Horácio, Sat., 1, 2, 27: 4, 27 (onde, aliás, o nome da personagem é
111
No séc. 1 a.C., a profusão dos balneários aumenta consideravelmente: em Rufilo, e não Bucilo).
12
33 a.C. uma contagem efecruada por Agripa recenseava, só em Roma, 170 Nos mesmos passos referenciados na nota anterior, Horácio fala igualmente
banhos públicos. de um certo "Gargónio (que cheira) a bode".

398 399
hoje não basta: é preciso renová-lo duas e três vezes por Julho à porta. Pois bem, no mesmo dia vi eu os homens
dia para que o cheiro se não desvaneça. E todos se ufa- a colherem as favas e a semearem o milho.
nam do perfume, como se fosse esse o seu cheiro natural! Mas voltemos às oliveiras. Vi-as serem plantadas se- 17
14 Se as minhas considerações te parecem demasiado pes- gundo dois processos. Egíalo pega nos troncos de árvores
simistas atribui as culpas a esta vila onde Egíalo, um grandes, corta-lhes os ramos, redu-los à altura de um pé e
chefe de família extremamente activo (o actual dono desta transplanta-o com o nó das raízes, mas cortando-lhes as
propriedade), me ensinou que qualquer planta, por velha raízes e deixando apenas o bolbo donde elas estavam pen-
que seja, pode sempre ser transplantada. Aqui está uma dentes. Depois mete numa cova este tronco com bastante
coisa que nós, os velhos, devíamos ter o cuidado de apren- estrume, e, não só o recobre de terra, como pisa essa
der, porquanto nenhum de nós plantará um olival que terra até ficar bem calcada. Diz ele que não há processo 18
15 . nao
- venha a passar as
' maos
- de outro.....................13 T u goza- mais eficaz do que este das "pisadelas"! O objectivo, ao
rás do apoio daquela árvore que que parece, é proteger a planta do frio e do vento; além
disso, há menos possibilidade de a planta se deslocar, e
"crescendo lenta, só dará sombra aos teus futuros netos,14"
assim é possível brotarem as raízes e fixarem-se ao solo;
conforme escreveu Vergílio. O nosso poeta, aliás, cuidava de facto, como as raízes são a princípio muito frágeis e se
menos da verdade que da beleza literária, interessado como fixam com dificuldade, a menor deslocação do tronco
estava em proporcionar prazer aos seus leitores, e não em arrancá-las-ia. O nosso homem, portanto, poda o nó das
16 dar lições aos homens do campo! Sem referir mais por- raízes antes de o meter na terra; diz ele que dos nós
menores, citar-te-ei um preceito erróneo que hoje mesmo assim cortados brotam raízes novas. O tronco, aliás, não
me vi forçado a constatar: deverá elevar-se acima do solo mais do que três ou quatro
"na primavera semeiam-se as favas; e também tu pés; deste modo começa imediatamente a vicejar desde o
planta da Média, és lançada aos sulcos abertos pelo arado; solo, sem que grande parte dele se apresente seco e retor-
igt,talmente se prestam ao milho os cuidados anuais" 15• cido como se vê nas oliveiras muito velhas.
Até que ponto é verdade que estas plantas devem ser O outro sistema de plantação é o seguinte: enterra de 19
semeadas na mesma época e que, para todas, a sementeira maneira idêntica os ramos fortes mas com a casca ainda
se deve fazer na Primavera, poderás ajuizá-lo por este não muito dura, como são habitualmente os das árvores
facto: eu estou-te escrevendo no mês de Junho, já com jovens. Estes ramos desenvolvem-se um pouco mais len-
tamente mas, dado que crescem como que brotando da pró-
13
Texto muito corrupto, pelo que será preferível deixar a lacuna do que pria planta, têm um aspecto em nada rugoso ou repulsivo.
tentar uma reconstituição duvidosa. Também assisti à transplantação de uma videira extre- 20
14
Vergílio, Georg., II, 58.
15
mamente velha. Todos os seus raminhos, se for possível,
Vergílio, Georg., I, 215-6. - A planta da Média deve ser a luzerna
(medicago sativa L.), planta originária do sudoeste asiático (d. Plínio, N. H., devem ser reunidos, e em seguida deita-se a videira esten-
XVIII, 144). dida na terra para que produza raízes mesmo do tronco.

400 401
Vi videiras serem plantadas não só em Fevereiro mas até para todo o lado levo figos secos, a toda a hora tenho
mesmo no fim de Março; e elas aguentam-se bem, agarran- comigo o bloco de apontamentos. Se há pão, os figos
21 do-se, para se amparar, ao tronco dos ulmeiros. Todas servem-me de conduto, se não há, ocupam o lugar do
estas árvores, "troncudas'', passe a expressão, diz Egíalo pão. Fazem para mim de cada dia um dia de Ano Novo,
que serão regadas com água da cisterna; se esta água é que eu procuro tornar propício e feliz com bons pensa-
boa, temos chuva sempre à nossa disposição!
mentos e grandeza de alma. E esta nunca é maior do que
E não estou disposto a ensinar-te mais nada por hoje,
quando renunciamos ao supérfluo e conseguimos a paz
para que, assim como eu estive sempre a contradizer Egíalo,
não me venhas tu agora fazer o mesmo a mim! pela supressão do medo, bem como a riqueza pela supres-
são dos desejos. O carro que me transporta é uma carroça 4
do campo; as mulas só dão sinal de vida porque sempre
87 lá vão caminhando; o carroceiro vai descalço, mas não por
causa do calor. Dificilmente consigo de mim próprio a
1 Naufraguei antes mesmo de embarcar! Não vou dizer-
-te como isto sucedeu, mas não fiques pensando que se confissão aberta de que uma tal carroça me pertence. Ainda
trata de mais algum paradoxo estóico. Quando quiseres, me não libertei por completo desta indigna vergonha de
aliás, - e mesmo que o não queiras! - , hei-de provar-te agir bem: sempre que vem ao nosso encontro algum grupo
que nenhum destes paradoxos é falso nem tão estranho mais aparatoso, coro, embora contrariado. Isto só prova
como parece à primeira vista. como aquele modo de agir que eu considero digno e lou-
Entretanto este meu passeio ensinou-me como nos vável ainda se não fixou de modo definitivo e inabalável
agarramos a tantas superfluidades de que, racionalmente, no meu esp1nto' . 17 . o ra, quem se envergon h a de uma

poderíamos prescindir, - tantas coisas de que nem senti- modesta carroça envaidecer-se-á de uma carruagem de luxo.
ríamos a falta se delas fôssemos privados pela força das Portanto, até agora ainda poucó progredi: ainda não ouso 5
2 circunstâncias. G::im um reduzido acompanhamento de escra- praticar a frugalidade em público, ainda me preocupa a
vos (apenas os que cabiam num só carro), sem outros ape-
opinião dos outros viajantes!
trechos além do que trazíamos no corpo, eu e o meu amigo
O que eu deveria ter feito era clamar essa oposição à
Máximo estamos já a gozar o segundo dia de uma tran-
mentalidade generalizada: "G::imo sois loucos e insensatos,
quila existência. Ponho um colchão por terra e deito-me
no colchão; de dois capotes que trago, um serve-me de perdidos de admiração pelas futilidades e incapazes de ava-
3 lençol, o outro de cobertor. As refeições reduzem-se ao liar alguém por si mesmo! Quando se trata de dinheiro,
16
imprescindível, e são preparadas sem requintes culinários ; todos vós, como exímios contabilistas, avaliais com rigor a

17
'" T radução da conjectura non rnai;iri cura, !it. "sem intervenção do cozi- Séneca, de facto, está longe de se considerar a si propno como um
nheiro". Os mss. apresentam a lição non mai;i.r hora, o que daria a tradução "as sapiens, um sábio; mais modestamente, ele tem-se apenas por um proficiens,
refeiçôes ... não levam mais de uma hora a preparar"; mesmo uma hora, con- por um homem que sabe qual a meta ideal a atingir, e para lá caminha com o
nido, parece excessivo para preparar uma refei~-ão de pão e figos secos! maior empenho conquanto saiba que ainda lhe falta muito a percorrer.

402 403
situação do homem a quem ides fazer um empréstimo ou montado num macho carregado de alforges onde trans-
prestar um favor (já que os favores são tratados como portava os objectos de que necessitava. Bem gostaria eu
6 meros investimentos): "Ele tem vastas propriedades, mas que se cruzasse com ele algum destes filhos-família, rica-
está cheio de dívidas; possui uma bela casa, mas comprada
ços de exibição, precedidos de escravos batedores, de escolta
com dinheiro emprestado; ninguém exibe um mais bonito
númida, levantando à sua passagem uma nuvem de poeira!
grupo de escravos, mas é incapaz de satisfazer os seus
O nosso jovem, sem dúvida, teria uma aparência mais
compromissos; se ele pagasse aos credores, ficava sem
nada." O mesmo rigor de apreciação deveríeis usar em
requintada e imponente, do que a de Catão - este nosso
relação a tudo o mais, avaliando com exactidão o que cada jovem que, no meio de todo o seu vistoso aparato, se
7 homem tem mesmo de seu." Pensas que este homem é debate sem saber se se há-de alistar como gladiador ou
rico por mesmo em viagem se fazer servir em baixela de caçador de feras 19• Glorioso século aquele em que um gene- 10
ouro, por ter campos de lavoura em todas as províncias, ral, um triunfador, um censor e, mais relevante ainda, um
por folhear um enorme livro de contas, por ·possuir nos Carão, se contentava com um só cavalo, melhor dizendo,
arredores de Roma terrenos com tal extensão que, embora meio cavalo, pois os sacos de bagagens pendentes a um
fossem charnecas da Apúlia, despertariam a inveja! Pois lado e a outro ocupavam parte do animal. Quem não pre-
apesar de tudo isso, ele é pobre. E porquê? Porque tem feriria aos rechonchudos póneis, aos corredores asturianos,
dívidas. "Muitas"? - perguntas. - Deve tudo! A menos aos cavalinhos trotadores de hoje em dia aquele solitário
que penses haver diferença entre pedir um empréstimo a cavalo tratado por Catão em pessoa?!
8 outro homem ou solicitá-lo à fortuna. Para que servem Estou vendo que esta . matéria se não esgota caso eu 11
essas parelhas de gordas mulas, todas da mesma cor? Para não decida pôr-lhe ponto final. Não vou, portanto, dizer
quê esses carros com baixos relevos em metal? mais nada sobre o assunto; mas é uma verdade que quem
"Corceis recobertos de púrpura, e coloridos primeiro chamou às bagagens ,"empecilhos" 20 adivinhou
panejamentos: são em ouro os arreios que lhes perfeitamente os hábitos hoje correntes! De seguida, pro-
pendem sobre o peito, e, de ouro cobertos, é de ouro porei à tua consideração uns quantos silogismos da nossa
fulvo ainda o freio que mordem/" 18 escola, que demonstram como a virtude é condição neces-

Todos estes adornos em nada tornam melhor nem o pro-


9 prietário nem a mula! Marco Catão, o Censor, cujo nasci- ''' Não era raro que cidadãos arruinados se alistassem como gladiadores.
mento foi tão benéfico à república romana como o de Também se encontram aristocratas que, por snobismo, decidem exibir-se no
Cipião (pois enquanto um fez a guerra aos inimigos exter- circo (cf. infra, carta 99, 13). A paixão pelos espectáculos levou Nero a actuar
no Circo Máximo como condutor de quadrigas (Suerónio, Nero XXII); Juvenal
nos, o outro combateu a corrupção moral), deslocava-se (II, 143 ss.) refere um certo Graco que, no tempo de Nero, se exibiu como
reciário. Até as mulheres participavam, por vezes, como a Mévia que caçava
javalis na arena, conforme diz o mesmo Juvenal (1, 22-3).
0
18
' Em latim impedimentum "impedimento, empecilho, entrave"; no plural
Vergílio, Aen., VII, 277-9. impedimenta "impedimentos; bagagem, equipamento (de um exército)''.

404 405
sária e suficiente para vivermos felizes, conforme nós a riqueza está ao alcance de um proxeneta ou de um
sustentamos. T • t 21
ianzs a ; ioga
T
a riqueza
'
nao
-
e' um bem. "
12 "Todo o bem torna o homem bom (por exemplo, rrA vossa proposição é falsa." - dizem os nossos
aquilo que a música tem de bom faz de um homem um antagonistas. - "Nas actividades profissionais de gramá-
músico); os benefícios do acaso não tornam um homem tico, de médico ou de piloto vemos os respectivos bens
bom, logo não são bens." serem acessíveis a homens extremamente humildes." Só 16
Os peripatéticos respondem a este argumento afirman- que tais profissões não têm por finalidade a grandeza de
do a falsidade da nossa primeira premissa. "Uma coisa alma, não implicam elevação moral, não são hostis aos
boa" - dizem eles - "não torna necessariamente os favores do acaso. Em contrapartida, a virtude engrandece
homens bons. Na música há coisas boas - uma flauta, o homem e eleva-o acima das preferências do vulgo, sem
um instrumento de corda, qualquer outro aparelho ade- desejar nem temer em excesso o que a opinião corrente
quado à produção do canto - , mas nenhum de tais ins- toma como bem ou como mal. Quelídon, um dos eunucos
13 trumentos faz de um homem um músico." A isto respon- que rodeavam Cleópatra, chegou a ser dono de um vasto
deremos que não entenderam a nossa ideia ao falarmos património. Ainda recentemente, Natal, homem de ' língua
do "que a música tem de bom." Nós não falamos do equi- tão viperina como debochada, - diz-se que usava a boca
pamento do músico, mas sim do que faz dele um músico; para saborear os corrimentos das mulheres! - , foi her-
o nosso opositor fala dos acessórios da arte, não da arte em deiro de muitos ricaços, e deixou por sua vez numerosos
herdeiros. Que dizer deste caso? Foi o dinheiro que fez
si mesma. Por isso mesmo, o bem próprio da arte musi-
dele um debochado, ou ele que conspurcou o dinheiro?
14 cal, esse é que faz de um homem um músico. Vou tentar
Nas mãos de certa gente, o dinheiro até parece um dená-
dizer o mesmo de uma forma mais clara. Quando dize-
rio caído num cano de esgoto. A virtude está acima destas 17
mos "o bem próprio da arte musical", pode entender-se o
contingências; é avaliada pelo seu valor intrínseco; e dos
termo bem em dois sentidos: por um lado, o que faz de favores da sorte, acessíveis indiscriminadamente a qualquer,
um músico um executante, por outro, o que faz dele um nenhwn é a seus olhos um bem. A medicina ou a pilota-
artista. Para efeitos de execução são necessárias flautas, gem não proíbem aos seus praticantes a admiração por
cordas, quaisquer outros instrumentos; mas em termos de tais benesses; mesmo sem se ser homem de bem pode-se
arte estes são irrelevantes. Mesmo sem instrumentos o ser médico, piloto, gramático, ou porque não?, cozinheiro!
músico continuará artista; poderá, quando muito, ser impe- Um homem a quem é dado possuir um bem invulgar não
dido de praticar a sua arte. Esta duplicidade não se veri- pode considerar-se um homem vulgar. Cada um é tal qual
fica no homem: o bem do homem e o bem da vida são
um e o mesmo.
15 "Tudo quanto está ao alcance do mais desprezível e 21
Lanista : proprietário de uma escola onde se treinavam os gladiadores
infame dos homens não deve ser considerado um bem; ora para o circo (ludus gladiatorius) .

406 407
18 os bens que possui. Um cofre vale pelo que tem lá den- nossa alma. Mas se esta não for moralmente pura e recta
tro, melhor dizendo, o cofre é um mero acessório do con- nunca sentirá o divino dentro de si.
teúdo. Imaginemos um saco cheio de dinheiro: que out.ro "De um mal não pode resultar um bem; ora, a riqueza 22
valor lhe atribuimos além do valor das moedas nele con- é o resultado da avidez; logo, a riqueza n,ão é um bem."
tidas? O mesmo se verifica com os donos de grandes A objecção que nos fazem é que não é exacto de um
patrimónios: não passam de simples acessórios, de suple- mal não poder resultar um bem: "A riqueza pode ser o
mentos. A razão de o sábio ser grande está na grande resultado de um sacrilégio ou de um roubo. É certo que o
alma que possui. Por conseguinte, é verdade que tudo sacrilégio ou o roubo são males, mas sobretudo por darem
quanto está ao alcance do mais desprezível dos homens origem mais a males do que a bens. Podem conseguir
19 não deve ser considerado um bem. Nunca direi, por exem- proveito, mas acompanhado de medo, inquietação, sofri-
plo, que a insensibilidade é um bem: quer a cigarra quer mento psíquico e físico."
o pulgão são dotados dela! Nem sequer chamarei um bem Quem assim fala admite necessariamente que o sacrilégio, 23
ao repouso ou à ausência de desgostos: há bicho mais embora sendo um mal porque gera muitos males, é em
repousado do que um verme? Queres saber o que caracte- certa medida um bem, pois pode originar algo de bom!
riza o sábio? O mesmo que caracteriza a divindade. No Pode fazer-se afirmação mais monstruosa do que esta?
sábio há que reconhecer algo de divino, de celeste, de Pouco falta para nos convencermos a incluir no número
superior. O bem não está à mão de todos nem admite dos bens o sacrilégio, o roubo, o adultério! Não há tanta
20 que qualquer um se arrogue a sua posse. Observa como gente que se não envergonha de roubar, tanta gente que
se envaidece dos seus adultérios? Mais: os pequenos sacri-
"cada região produz certas coisas e é hostil a outras:
légios são punidos, os grandes são exibidos nos cortejos
aqui dão-se melhor as searas, acolá as videiras,
triunfais. Acrescente-se que, se dê alguma forma conside- 24
além crescem as árvores de fruto ou as ervas
rarmos o sacrilégio como um bem, teremos de considerá-
espontâneas. Não vês como o Tmolo nos dá o odor
-lo igualmente como uma acção honesta e moralmente
do açafrio, a Índia o marfim, os moles Sabeus
justa (pois uma acção honesta é uma acção moralmente
o incenso, os Cálibes semi-nus o ferro?" 22 justa) 23, coisa que nenhum ser humano se atreverá seria-
21 Todas estas produções foram disseminadas por várias regiões mente a admitir. Por conseguinte é impossível que de um
de modo a tornar imprescindível o comércio entre os . mal resulte algum bem. Se, conforme afirmais, o sacrilégio
homens sempre que cada grupo necessita dos produtos é um mal apenas na medida em que origina muitos males,
alheios. O supremo bem tem igualmente a sua sede pró- caso não o puníssemos com suplícios e lhe garantíssemos
pria; não é peculiar à terra do marfim ou à terra do
ferro. Queres saber que lugar habita o bem supremo? A
2
·' Texto corrupto; a tradução proposta corresponde à conjectura de Hense
22
Vergílio, Georg. I, 53-8. honesta enim actio recta actio est.

408 30 409
a impunidade, então seria plenamente um bem. A maior riqueza sujeitamo-nos a inúmeros males; logo, a riqueza
25 punição de um crime, contudo, está nele mesmo. É um não é um bem."
erro imaginar que o castigo está nas mãos do carrasco ou "A vossa proposição" - dizem-nos - "pode entender-
do carcereiro: o crime é punido quando é cometido, mais, -se em dois sentidos. Por um lado significa que, ao que-
enquanto é cometido. Consequentemente, de um mal não rermos obter a riqueza, nos sujeitamos a muitos males.
pode nascer um bem, tal como numa oliveira não podem Todavia também nos sujeitamos a muitos males se pre-
nascer figos! O fruto corresponde à semente, e um bem tendermos alcançar a virtude; podemos fazer uma viagem
não degenera. Tal como a moralidade não decorre de a fim de nos instruirmos, e a meio dela naufragarmos ou
acções indignas, também de um mal não pode provir um cairmos nas mãos de piratas. Por outro lado, pode signifi- 29
bem, pois o bem e a acção moralmente justa são uma e a car que não é um bem aquilo que nos sujeita ao mal. Ora
mesma coisa. esta proposição não implica necessariamente que a riqueza
26 Certos estóicos contestam a objecção que referi desta ou o prazer nos sujeitem ao mal; ou então, se a riqueza
outra maneira: "Imaginemos que o dinheiro, seja qual for nos sujeita necessariamente ao mal, ela não só não será
a sua proveniência, é um bem. Neste caso o dinheiro não um bem mas será mesmo um mal, enquanto vós vos
é o resultado de um sacrilégio, mesmo se conseguido atra- limitais a dizer que ela não é um bem. Além disso -
vés de um sacrilégio. Explicando melhor: dentro do mesmo prosseguem - vós admitis que a riqueza tem certa utili-
vaso há uma moeda de ouro e uma víbora; se tirares a dade, incluindo-a até entre as coisas vantajosas à vida. No
moeda do vaso, não é por lá estar também uma víbora entanto, segundo o raciocínio precedente, nem sequer seria
que a tiras, isto é, o vaso não me dá o ouro por lá ter uma coisa vantajosa, pois por sua causa podemos incorrer
dentro uma víbora, dá-mo, sim, embora lá tenha também em muitas desvantagens."
a víbora. Similarmente, pode obter-se proveito de um sacri- Alguns dos nossos respondem: "Estais enganados quando 30
légio, não por o sacrilégio ser uma acção indigna e crimi- atribuís as desvantagens à riqueza. ·A riqueza não faz mal
nosa, mas sim porque também é uma acção proveitosa. a ninguém; o que faz mal ou é a própria estultícia ou a
Tal como no caso do vaso o mal é a- víbora, e não o ouro perversidade alheia. Um gládio também não mata nin-
que está ao pé da víbora, também no caso do sacrilégio o guém, é somente a arma do assassino. Não é, portanto, a
27 mal está no crime, não no lucro." Por mim não aceito riqueza que nos faz mal, mesmo que nos façam mal por
este raciocínio, pois a situação é completamente diferente . causa dela."
num caso e noutro. No primeiro, eu posso tirar o ouro Em meu entender, é superior a argumentação de Posi- 31
sem tocar na víbora, no segundo, porém, não posso obter dónio. Segundo ele, a riqueza é causa do mal, não porque
lucro sem cometer sacrilégio. Ou seja, o lucro não está ela em si o provoque mas porque dá azo a que outros o
justaposto, mas sim indissociavelmente ligado ao crime. façam. De facto, uma coisa é a causa eficiente - que
"Uma coisa que, se a queremos obter, nos sujeita a necessariamente produz desde logo o mal -, outra é a
inúmeros males, não é um bem; ora, se queremos obter a causa antecedente. A riqueza funciona como causa antece-

410 411
dente: sobe-nos à cabeça, gera o orgulho, desperta a inveja "Segundo este raciocínio" - pode objectar-se - "a 36
e de tal modo nos perturba a razão que, mesmo sabendo riqueza nem sequer é uma coisa vantajosa." É diferente a
condição das coisas vantajosas e a dos bens. Uma coisa é
os inconvenientes de ter fama de rico, nem assim desi~ti-
vantajosa quando tem mais utilidade do que inconvenien-
32 mos de a ter. Os verdadeiros bens, esses, devem estar ao
tes; um bem é um valor absoluto totalmente incapaz de
abrigo da censura; são puros, não corrompem a alma, não ocasionar o mal. Uma coisa não é um bem por ser muito
a enchem de inquietação. Exaltam a alma, sim, elevam-na, útil, mas sim por não poder deixar de ser útil. Além 37
mas sem vaidades. Os bens dão-nos confiança, a riqueza disso, uma coisa vantajosa pode ter interesse para os ani-
só nos dá audácia; os bens dão-nos grandeza de alma, a mais, para os homens imperfeitos ou mesmo estultos.
riqueza dá-nos insolência. E a insolência não passa de Pode conter ainda em si algo de desvantajoso, embora se
33 uma falsa aparência de grandeza. "Deste modo" - diz ele considere uma coisa vantajosa na maior parte dos casos. O
- "a riqueza, não só não é um bem, como é mesmo um bem, esse, somente está ao alcance do sábio, e tem neces-
mal." A riqueza seria um mal se ela própria causasse o sariamente de ser impoluto.
mal, se, como disse acima, fosse uma causa eficiente. Ela é Tem coragem, meu amigo, só te resta mais um pro- 38
porém uma causa antecedente; não apenas desperta a aten- blema, se bem que este seja um trabalho de Hércules!
ção como ainda tem um efeito de sedução, pois apresenta "O bem não provém de um conjunto de males; a
uma aparência de bem que parece real e digna de crédito riqueza provém de um conjunto de pobrezas; logo, a
34 à maioria. A virtude funciona também como causa antece- riqueza não é um bem."
dente em relação à inveja; tanto a sabedoria como a jus- Este silogismo não é originário da nossa escola; foram
tiça despertam muito frequentemente a inveja. Todavia, os peripatéticos quem o inventou e resolveu. Posidónio,
esta causa não se origina na própria virtude, nem corres- por seu lado, afirma que este sofisma, debatido em todas
as escolas de dialéctica, foi refutado por Antípatro con-
ponde inteiramente à verdade. Esta é bastante mais visível
forme segue: "Quando falamos ém pobreza não temos em 39
quando o aspecto com que a virtude se apresenta aos
vista a posse, mas sim a privação" (ou orbatio, como- se
espíritos vai antes no sentido de os incitar ao respeito e à
dizia antigamente; Kcxrà arÉpYJOLV, como se diz em grego);
admiração.
"a palavra não implica a ideia de possuir, mas a de não
35 Posidónio reformula o silogismo como segue: "Tudo o possuir. Com uma série de vazios não se consegue encher
que não nos proporciona grandeza de alma, confiança, nada: a abundância de objectos é que constitui a riqueza,
segurança, não deve ser considerado um bem; a riqueza, a não a abundância de carências. Estais a interpretar o termo
saúde e coisas semelhantes não nos proporcionam nada pobreza incorrectamente. A pobreza não consiste em pos-
disto; logo não são bens." E completa ainda o silogismo suir poucas coisas, mas em haver muitas coisas que se não
com este outro: "Tudo o que não dá à alma grandeza, possuem. Ou seja, o termo alude não às posses, mas às
confiança, segurança, mas pelo contrário, desperta nela a carências. "24
insolência, o orgulho, a arrogância, deve ser considerado
um mal; os favores da sorte causam em nós estes de/ei-
24
tos; por conseguinte, não são bens." = S. V.F., III p. 252.

412 413
40 Eu expressar-me-ia com mais facilidade se em latim Fá-lo-emos reconhecer que é excessiva a ostentação de
existisse um vocábulo com o sentido de àvv7rapgía. 25 É troféus dos vencidos ? E que tudo quanto um único povo
este, segundo Antípatro, o traço distintivo da pobreza. roubou a todos os outros, todos estes o poderão roubar
Assim, não consigo ver em que consiste a pobreza senão facilmente por sua vez àquele povo único ? Aqui está a
26
na posse de poucas coisas. Um dia que tenhamos tempo tese que nos importa propagar; e também erradicar as
havemos de examinar a questão da substância da riqueza paixões, em vez de tentar dar delas definições exactas. Se
e da pobreza. Nessa altura veremos também se não será tal nos for possível, falemos com maior vigor; se não,
melhor encarar com menos severidade a pobreza e tirar à falemos em termos mais claros!
riqueza os seus ares altivos, em vez de estarmos aqui a
discutir sobre palavras convencidos de que ajuizamos sobre 88
a essência das coisas !
Queres saber o que eu penso das "artes liberais": não 1
41 Imaginemos que somos convocados para uma assem-
admiro, nem incluo entre os bens autênticos um estudo
bleia onde se vai discutir uma lei sobre a abolição da
que tenha por fim o lucro. São conhecimentos subsidiá-
riqueza. Iremos nós persuadir os presentes, num sentido
rios, úteis apenas enquanto servem de preparação ao inte-
ou noutro, com silogismos deste tipo? Conseguiremos con-
lecto, mas desde que não sejam a sua única ocupação.
vencer com eles o povo romano a preferir com entu-
Somente devemos deter-nos na sua prática enquanto o
siasmo a pobreza - fundamento e causa do seu poderio!
nosso espírito não for capaz de tarefa mais alta; são
- e a suspeitar das suas próprias riquezas, reflectindo em
somente exercícios, não obras a sério. Compreendes por 2
que as conquistou aos povos vencidos, que delas resultou a
que razão se lhes chama "estudos liberais": porque são
introdução, nesta cidade de tão puros e austeros princípios,
dignos de um homem livre. No entanto, o único estudo
da corrupção eleitoral, da venalidade, da agitação social? 27
verdadeiramente liberal é aquele que torna o homem livre;
e esse é o estudo - elevado, enérgico, magnânimo - da
" 'AvvmxpÇía, !ir. "inexistência".
'
6
Segundo a óptica de Antípatro, a pobreza poderia ser definida, não como sabedoria; os outros são brincadeira de crianças ! Ou julgas
posse (de pouco), mas como não-posse, utilizando um termo negativo em cor- tu que há algo de bom em matérias que vês serem pro-
respondência exacra com o termo grego empregado.
" Cf. Salúsrio, Cat. , XII, 1 : "Quando se começou a honrar a riqueza e a
fessadas pelos mais indignos e prejudiciais dos mestres?
atribuir aos seus possuidores a glória, os altos cargos e o poder, a virtude dege- Tais matérias devemos tê-las estudado uma vez, e não
nerou concomitantemente, a pobreza foi vista como vergonha e o desinteresse
interpretado como censura"; Tiro Lívio, prefácio a ab Vrbe condita, 11: "Ou a
continuar a estudá-las.
paixão com que inicio a minha obra me engana, ou nunca houve nação alguma Alguns inquiriram se os estudos liberais são susceptí-
maior, mais digna, mais rica de bons exemplos 1do que Roma l, nem onde tão veis de formar um homem de bem: ora não é esse o seu
tardiamente tivessem feiro a sua entrada a avareza e o luxo, nem que por tanto
tempo honrasse a pobreza e a austeridade"; um pouco antes (§ 9), este mesmo propósito, nem pretendem sequer arrogar-se tal capacidade.
historiador referia-se ··a estes tempos de hoje, em que sucumbimos aos nossos A gramática 28 ocupa-se do estudo da linguagem; se pre- 3
vícios e nos mostramos incapazes de os remediar"; também Juvenal (VI, 294-5)
afirma que "nenhum crime ou perversão ficou por cometer desde que cessou a
pobreza em Roma". A associação da pobreza com a grandeza da Cidade Eterna 28 O ensino da gramática estava a cargo do "gramático'', o qual ministrava
e a visão da prosperidade económica como marcando o início da decadência aos jovens o que poderíamos chamar o primeiro grau de ensino, o ensino pri-
constituem, como muitas outras abonações ainda poderiam confirmar, um ver- mário. Em que consistia esse ensino, quais as matérias e a metodologia utiliza-
dadeiro tópico para os escritores latinos.
das pode ver-se em Quintiliano, I, 9.

414 415
tender espraiar-se mais longe ocupar-se-á da explicação de dera três categorias de bens; 32 outras ainda, um académico,
textos, e se chegar aos seus extremos limites abordará a afirmando que tudo quanto existe é incerto. 33 É evidente
poética. Em que é que estes assuntos aplanam a via para que em Homero não existe nenhuma destas teorias sim-
a virtude? A divisão das sílabas, a observação dos signifi- plesmente porque as há rodas, e todas diferem umas
cados, o conhecimento dos temas mitológicos, as leis e das outras. Admitamos que Homero foi filósofo: nessa
variações dos versos - em que é que isto contribui para altura, é porque foi um sábio ainda antes de saber o que
nos livrar do medo, nos libertar do desejo, nos refrear as fosse a poesia; estudemos então as matérias que fizeram
4 paixões? Passemos à geometria e à música: nelas nada de Homero um sábio. Pôr-me a indagar qual dos dois era 6
encontrarás que nos impeça de sentir receios ou desejos. E mais velho, se Homero, se Hesíodo, importa-me tanto
quem não adquirir estes conhecimentos essenciais não como saber por que motivo Hécuba, que de resto era
ganha nada em adquirir outros! mais nova do que Helena, suportava tão mal o peso da
Vejamos 29 se os mestres das artes liberais ensinam ou idade. Pois quê? Havemos de considerar matéria de peso
não a virtude; se não a ensinam, não podem transmiti-la; saber quantos anos tinham Pátroclo ou Aquiles? Investi-
se a ensinam, então são filósofos. Queres verificar até que gar por onde andou Ulisses errante, em vez de procurar
ponto é verdade que eles não ensinam a virtude? Repara não andar errantes nós ?34 Não há vagar para discretear se 7
como a especialidade de cada um difere da de todos os Ulisses passou tormentas entre a Sicília e a Itália, ou se
outros; ora, se todos professassem a mesma doutrina have- ultrapassou os limites do mundo conhecido (já que uma
5 ria semelhança entre eles. A menos que consigam conven- errança tão longa mal caberia em tão curto espaço): é
cer-te de que Homero foi filósofo, quando os próprios quotidianamente que as tempestades da alma nos assal-
argumentos que usam provam o contrário. Às vezes fazem tam, que a perversidade nos arrasta por todos os males
dele um estóico, que apenas admite a virtude e evita os por que passou Ulisses. Não faltam coisas belas que nos
prazeres, incapaz de se desviar da conduta moral mesmo atraiam perigosamente os olhos, não faltam inimigos. De
a troco da imortalidade;'º outras vezes um epicurista que um lado há monstros cruéis, ávidos de sangue humano; de
aprecia a situação pacífica da cidade e passa a vida entre
banquetes e recitais; 31 outras, um peripatético, que consi-
" Possível alusão à "tripartição dos bens" mencionada em Ilíada, XXIV,
376-7: a beleza física (bens do corpo), a agudeza do espírito (bens do espírito),
'" Este vejamos corresponde à lição uidendum oferecida por alguns manus- a prosperidade (bens externos), cf. L. Robin, La mora/e antique, Paris, 1963, pp.
critos inferiores. Nos principais manuscritos o início deste parágrafo apresenta 43-49.
uma lacuna. ·" Cf. a oposição entre o saber das Musas e a ignorância dos homens em
-~' Alusão ao célebre episódio (Odisseia, V, 206 ss.) em que Calipso oferece a Ilíada, li, 485-6.
1
Ulisses a imortalidade, que o herói rejeita. ' Entre os "profundos conhecimentos" que o gramático devia ser capaz de

·" A ilha de Calipso, por exemplo, é um verdadeiro "jardim de Epicuro" ensinar aos seus discípulos, Juvenal enumera o nome da ama de Anquises, a
(Odisseia, V, 63 ss.); também epicurista se pode considerar a vida no palácio de terra onde nasceu a madrasta de Anquémolo, a idade de Acestes ou o número
Alcínoo (ibid., IX, 5 ss.) de ânforas de vinho oferecidas pelos Sículos aos Troianos (Sat., VII, 233-6) !

416 417
outro, insidiosas lisonjas aos nossos ouvidos; de outro, nau- inteira e manter o rosto alegre. Dir-se-á: "Expulsam-me 12
frágios e calamidades de toda a espécie. Ensina-me a amar das terras do meu pai, do meu avô." Sim? E antes do teu
a pátria, a esposa, o pai; ensina-me como, mesmo após avô quem era o dono dessas terras? És capaz de dizer, já
um naufrágio, eu poderei singrar na via da honestidade. não peço o nome do antigo dono, mas ao menos de que
8 Para quê indagar se Penélope foi casta ou não, se com as nação era ele? Ocupaste esse terreno, não como proprietá-
suas palavras conseguiu enganar os contemporâneos? .Ou rio, mas como colono. E colono em proveito de quem? Se
se, ainda antes de ter a certeza, ela já suspeitava de que o as coisas te correrem bem, do teu herdeiro! Os juristas
homem que estava à sua frente era Ulisses? Ensina-me, afirmam que não é possível tomar em usucapião a pro-
sim, o que é a castidade, até que ponto ela é um bem, e priedade pública: logo, aquilo que possuis, que dizes ser
se está dependente do corpo ou do espírito. teu, é público, mais pertence ao género humano. Que 13
9 Passemos ao músico. Tu ensinas-me de que modo se notável técnica: sabes medir círculos, reduzir à forma de
harmonizam os sons agudos e graves, de que modo pro- um quadrado qualquer polígono que te apresentem, sabes
duzem um acorde os diferentes sons produzidos pelas cor- determinar as distâncias entre os astros, não há nada a
das: indica-me antes o modo de ter o espírito em harmo- que não se apliquem os teus instrumentos de medida:
nia consigo mesmo, de ter consonância nas minhas ideias. pois se és tão bom técnico, mede o espírito humano, diz
Indicas-me quais são os modos plangentes: ensina-me antes até que ponto ele é grande, ou é pequeno. Sabes o que é
a não soltar palavras plangentes mesmo na adversidade. uma linha recta: de que te serve isso se não souberes
10 O geómetra ensina-me a medir os latifúndios, em vez andar na vida com rectidão?
de me ensinar a medir quanto basta para um homem; Passemos agora ao especialista no conhecimento dos 14
ensina-me a contar, treina-me no manejo dos números ao astros, aquele que sabe
serviço da avareza, em vez de me ensinar que tais cálculos
"onde vai ocultar-se o gélido astro de Saturno, as
nada interessam à minha formação, que um homem cujos
paragens celestes por onde erra ígneo deus de Cilene/" 35
bens deixam os contabilistas fatigados não é mais feliz
por isso; melhor, como são supérfluos os bens cujo dono Que me adianta este saber? Ficar preocupado cada vez
seria o mais infeliz dos homens se fosse coagido a conta- que Saturno e Marte estão em oposição, ou Mercúrio entra
bilizar pessoalmente tudo quanto possui. Que me importa no ocaso com Saturno ainda acima do horizonte? Não
saber como lotear um terreno se não sei dividi-lo com o seria melhor saber que, onde quer que estejam, os astros
11 meu irmão? Que me importa medir com toda a minúcia são propícios e imutáveis? Move-os a ordem constante do 15
as dimensões de uma leira, e ver num relance se alguma destino, o seu curso inevitável; eles seguem a trajectória
fracção ficou sem ser marcada, se a insolência de um vizi- que lhes foi fixada, e são causa ou indício de todos os
nho que me subtrai algum torrão me deixar em ânsias? acontecimentos. Se são causa de tudo quanto acontece, em
Ensinam-me a não perder qualquer fracção da minha pro-
pl"iedad~: ora o que eu quero aprender é a ficar sem ela " Vergílio, Georg., I, 336-7; o "ígneo deus de Cilene" é o planeta Mercúrio.

418 419
que nos beneficia o conhecimento de algo que é imutável? tudo quanto venha. Se algo me for poupado, aceitarei o
Se são indício, que nos adianta prever aquilo a que não benefício. Engana-me o dia seguinte se me não for fatal;
podemos escapar? Quer previamente saibas, quer não, as não, nem assim me engana. Tal como sei que tudo pode
coisas acontecem. 36 suceder, também sei que não sucede tudo ao mesmo tempo.
16 "Se reparares no curso do Sol e na marcha ordenada Por isso, aguardo que suceda o melhor, embora me pre-
das estrelas, nunca o dia seguinte te enganará, pare para o pior.
nem te iludirá a aparência falsa de uma noite serena."
37 Neste ponto hás-de permitir-me que não siga a tradi- 18
ção: não consigo admitir no número das "liberais" a arte
Tomei todas as providências para me defender de qual- do pintor, do escultor, do marmorista ou de outros arte-
17 quer aparência falsa. "Então o dia seguinte nunca me enga- sãos de peças de luxo. Também elimino do número das
nará? O engano provém de suceder o que se não espera." artes liberais a prática da luta, técniea toda baseada no
Eu por mim ignoro o que vai suceder; sei, todavia, tudo o óleo e no pó, a menos que deva incluir nelas a arte dos
que pode acontecer. E disto não peço descontos: espero perfumes, a culinária e todas as demais que existem para
servir os nossos prazeres!...
O que há de liberal, pergunto eu, nestes indivíduos 19
36 No universo predeterminado do est01osmo, a astrologia era um dos que vomitam em seco, que quanto mais engordam o corpo
modos possíveis de os deuses comunicarem com os homens, embora já mesmo
mais deixam o espírito macilento e letárgico? Podemos
na Stoa antiga nem todos aceitassem a validade dos horóscopos (por ex. S. V.F..,
III, Diógenes de Babilónia, fr. 36). Panécio, em vez da influência dos astros, pre- considerar alguma destas artes como estudo liberal para os
fere sublinhar o papel da influência das condições geográficas (v. Cícero, de nossos jovens, os jovens cuja formação os nossos maiores
diuinatione, II, 44, 93 ss.), mas Posidónio retoma a aceitação da astrologia. A asseguravam fazendo-os brandir lanças, atirar chuços, domi-
posição de Séneca pode não parecer inteiramente clara: aceita o pré-determinismo
do fatum, aceita a tese da providência (rrpóvoia), mas ao referir-se, por exem- nar cavalos, lidar com armas? 'Amigamente não ensina-
plo, aos cometas diz que eles, ao contrário da superstição reinante, se são sinal vam aos filhos nada que estes pudessem aprender deita-
de alguma coisa são-no apenas no mesmo sentido em que os equinócios "anun- dos! Diga-se que nem um nem outro tipo de educação
ciam" a aproximação do Verão ou do Inverno (N. Q., VII, 28, l); logo a seguir
alude em tom depreciativo aos horóscopos dos "Caldeus" (ibid.), e em todo o
ensina e desenvolve a virtude. Que importa, de facto, saber
livro (i. e., N . Q., VII) trata dos cometas com rigoroso espírito científico. Cf., no dominar um cavalo e refrear a sua corrida, se nos dei-
entanto, N. Q., II, 32, 7 em que reconhece a influência dos astros, embora xarmos levar pelas mais desenfreadas paixões? Que inte-
afirme a dificuldade de determiná-la, ou N. Q., II, 38, 3, em que refere a con-
ressa ser capaz de vencer na luta ou no pugilismo muitos
tradição (apenas aparente) entre determinismo e livre-arbítrio. Uma coisa, pelo
menos, é transparente: a distinção nítida entre a ciência dos astros e a supersti- adversários, se nos deixarmos vencer pela cólera?
ção vulgar, bem como a utilização política de tal superstição (N. Q. II, 42, 3). "Nesse caso, os estudos liberais não nos são de qual- 20
37 Vergílio, Georg., I, 424-6. - No texto vergiliano, porém, em vez de stel- quer utilidade?" Têm muita utilidade em outros aspectos,
las... sequentes, lição citada por Séneca, lê-se !unas... sequentes, lit. "as sucessivas
luas", ou seja, "a sucessão das fases da lua". A substituição de !unas por stellas
nenhuma no que concerne à virtude. Na realidade, tam-
pode dever-se a um lapso de Séneca (que citava de memória) ou ao desejo de bém as artes "manuais", que são reconhecidamente infe-
generalizar o valor do argumento, tornando-o extensível a todos os corpos celestes. riores, têm grande importância no que toca aos acessórios

420 421
da vida, mas nada têm a ver com a virtude. "Então, por- Uma objecção possível: "Tal como a filosofia tem uma 24
que instruímos os nossos filhos através dos estudos libe- parte natural, outra moral e uma terceira racional,39 assim
rais?" Não é porque estes lhes possam transmitir a vir- também o conjunto das artes liberais exige lhe seja dado
tude, mas porque preparam o espírito para recebê-la. Do um lugar dentro da filosofia. Quando se abordam as ques-
mesmo modo que a "cartilha", como lhe chamavam os tões naturais, é imprescindível o contributo da geometria;
antigos, pela qual as crianças aprendem as letras do alfa- logo, esta é a parte da ciência a que dá o seu contributo."
beto, não lhes ensina as artes liberais, mas torna-as aptas Há muitas coisas que nos prestam o seu contributo 25
a poderem aprendê-las mais tarde, também as artes libe- sem por isso serem parte de nós mesmos; digo mais, se
rais não guiam o espírito até à virtude, mas facilitam-lhe fossem parte não dariam contributo. A alimentação é um
o trajecto. contributo, mas não uma parte do nosso corpo. A geome-
21 Posidónio considera que há quatro tipos de artes: as tria presta-nos um determinado serviço, e por isso a filo-
vulgares e inferiores, as recreativas, as educativas e as libe- sofia necessita dela, tal como ela necessita de um técnico,
rais. São vulgares as dos artesãos, simplesmente manuais, mas nem é parte da geometria nem a geometria é parte
e dirigidas apenas aos objectos acessórios que usamos; da filosofia. Além disso, cada uma tem o seu domínio 26
nelas não há qualquer aproximação com a formação inte- próprio: o sábio investiga e descobre as causas dos fenó-
22 lectual e moral. As recreativas são as que têm por objecto menos naturais, o geómetra procura e calcula os números
o prazer dos olhos e dos ouvidos: entre elas incluirás, por e as medidas. O sábio descobre as leis que regem os cor-
exemplo, a arte dos maquinistas de teatro inventores de pos celestes, qual o seu alcance e a sua natureza: estudar
cenários que surgem sem se saber como, de estrados que o curso da respectiva órbita, as inclinações que apresentam
se elevam no ar silenciosamente, ou ainda de outras inven- e devido às quais descendem e ascendem, e por vezes
ções inesperadas: elementos antes unidos que se afastam, parecem ficar parados (embora ' os corpos celestes nunca
outros antes afastados que parecem unir-se por si mes- possam parar), essa é a tarefa do matemático. O sábio 27
mos, outros que se erguem no ar e lentamente vão des- descobre a causa pela qual um espelho reflecte uma ima-
cendo. Tudo isto atrai a atenção dos ignorantes, prontos a gem: o geómetra saberá dizer-te que distância deve existir
admirar todos os efeitos inesperados de que desconhecem entre o corpo e a imagem, e qual o tipo de espelho que
23 as causas. São educativas aquelas artes, já com algo de produz este ou aquele tipo de imagem. O filósofo demons-
comum com as liberais, que os gregos chamam "enciclo- trar-te-á que o Sol é grande, o matemático, baseado na
pédicas'', e os romanos igualmente chamam "liberais". 38 Mas prática e na experiência, dir-te-á quanto ele mede. Mas
verdadeiramente liberais, ou com mais propriedade, verda- como base o matemático necessita de alguns postulados
deiramente "livres", são aquelas cujo objectivo é a virtude.
"' "Filosofia natural", "filosofia moral" e "filosofia racional": respeaiva;:fu_;,c,e
" Ou seja, aquelas artes a que Séneca se referiu no início da carta: gramá- a fisíca, a ética e a lógica segundo a tripartição aceite pelo estoicismo, cf. infra
tica, música, geo1netria, astronomia. carta 89, 9 ss.

422 423
fundamentais, pois nenhuma arte existe de pleno direito as artes liberais podem formar em nós um tal carácter?
28 se os seus fundamentos forem deficientes. A filosofia não Não, tal como nos não podem ensinar a simplicidade, a
depende de nada, constrói sozinha todo o seu edifício. A modéstia, a moderação, nem sequer a frugalidade ou a
matemática, por assim dizer, é usufrutuária, edifica em parcimónia, nem sequer a clemência - que nos ensina
terreno alheio; recebe os elementos de base cuja utilização a poupar a vida alheia tanto como a nossa própria e que
lhe permite ir mais além. Se através dela fosse possível sabe que um homem não deve desperdiçar a vida de
atingir a verdade, se ela fosse capaz de abarcar a natureza outro homem.
do universo, eu diria que ela era de grande utilidade para Poder-se-á objectar: "Vós dizeis que sem as artes libe- 31
o espírito humano, o qual se eleva pelo estudo do mundo rais é impossível atingir a virtude; por que razão dizeis
celeste e como que recebe em si algo do céu. agora que elas em nada contribuem para a virtude?" Pela
Um único caminho conduz a alma humana à pleni- mesma razão por que sem comida não se atinge a vir-
tude: a ciência imutável do bem e do mal; nenhuma outra tude, e nem por isso a comida tem qualquer coisa a ver
arte existe dedicada à investigação dos bens e dos males. com a virtude; também um monte de tábuas não faz um
29 Passemos em revista cada uma das virtudes. A coragem navio, embora não possa haver um navio sem tábuas.
consiste em desprezar as causas de terror; tudo o que ins- Não há razão para considerar contributo qualquer coisa
pira medo e subjuga a nossa liberdade, tudo ela despreza, indispensável à existência de outra coisa. Ainda te digo 32
desafia, derruba. Acaso as artes liberais nos ajudam a con- mais : é possível chegar à sabedoria sem as artes liberais,
seguir isto? A lealdade é o mais sagrado bem do coração pois embora a virtude se aprenda não é através delas que
humano, nenhuma imposição a pode obrigar a trair, se aprende. Que razão me impede de pensar que pode vir
nenhuma esperança de lucro a corrompe; "Queima, tor- a ser sábio um homem que desconhece o alfabeto, uma
tura, mata"! diz ela - "Não trairei; quanto mais a dor vez que a sabedoria não reside fio alfabeto ? A sabedoria
me tentar arrancar os segredos, mais fundo eu os escon- cinge-se às acções, não às palavras; não sei mesmo se não
derei!" Acaso as artes liberais são capazes de provocar será mais segura a memória que dispensa qualquer auxílio
uma tal coragem? A temperança refreia os prazeres, odeia exterior. A sabedoria é algo de grande e de vasto; exige 33
e afasta uns, modera outros e redu-los a limites justos, para si todo o espaço; temos de nos debruçar sobre o
nunca busca o prazer pelo prazer; sabe que a medida justa divino e o humano, sobre o passado e o futuro, sobre o
para aquilo que desejamos não é o nosso apetite, mas transitório e o eterno, sobre o tempo. E vê quantas ques-
30 apenas a quantidade de que é lícito desfrutar. A simpatia tões apenas este último suscita: primeiro, se ele em si
humana impede a soberba e a agressividade para com o mesmo é alguma coisa; depois, se antes de haver tempo,
próximo; mostra-se amável e afável com todos em pala- alguma coisa existiu sem tempo; se apareceu quando come-
vras, actos e sentimentos; não considera como alheio o çou o universo, ou se, porque ainda antes do universo já
mal dos outros, e dos seus bens próprios nenhum estima existiu algo, o tempo também então existiu. Apenas sobre 34
mais do que aqueles que podem ser Úteis a outrem. Acaso a alma, como são inúmeros os problemas: donde provém,

424 31 425
de que natureza é, quando começa a existir, quanto tempo mil livros: eu já teria pena dele se se tivesse limitado a
dura, se transita de um lugar a outro, passando a residir ler tanta bagatela! Nuns livros investiga qual a Pátria de
alternadamente inserida em diversas formas animais, ou Homero, noutros qual foi a verdadeira mãe de Eneias;
se apenas uma vez vive na escravidão do corpo e depois, noutros se Anacreonte se entregou mais à vida de prazer
liberta, vai vagueando pelo todo; se é ou não um corpo; o ou à bebida; noutros se Safo foi prostituta; em suma, coi-
que é que faz quando deixar de agir por nosso intermé- sas que, se as soubéssemos, deveríamos esquecer. E vem-
dio, de que modo usufrui da sua liberdade uma vez saída -me dizer agora que não é longa a vida! ...
deste cárcere; se se esquece daquilo por que passou e ape- Mesmo pelo que toca aos nossos estóicos, poderei indi- 38
nas começa a conhecer-se desde que, arrancada ao corpo, car-te muita coisa que deveria ser cortada. Uma saudação
35 se eleva nos espaços. Qualquer área que abordes dentro do como esta: "Oh! Que homem erudito!", implica um enor-
estudo do divino e do humano, aí encontrarás enorme {. me gasto de tempo e uma enorme maçadoria para os
1

cópia de matérias a investigar e a aprender até à exaus- ouvidos alheios. Contentemo-nos com este mais modesto
tão. Para teres campo livre onde alojar todos estes assun- título: "Oh! Que homem de bem!" Pois então? É preciso
tos tão numerosos e tão vastos, deverás libertar o espírito ir revolver a história de todos os povos e investigar quem
de tudo quanto é supérfluo. A virtude não surgirá em foi o primeiro homem a escrever poemas? À falta de
espaço tão apertado; grande matéria exige espaço sem arquivos, terei de pôr-me a conjecturar quanto tempo
limite. Manda tudo o mais embora, consagra-lhe todo o decorreu entre Orfeu e Homero? Hei-de aprender os sinais
teu ânimo. .
com que A nstarco '11
expurgava os poemas dos outros, e
36 "No entanto, é interessante possuir noções sobre as gastar a minha vida ocupado em sílabas? Ou hei-de per-
diversas artes." Seja, mas retenhamos delas apenas o indis- manecer fixo no pó da geometria? 12 Já me teria passado
pensável. Então, tu consideras censurável quem compra (
da lembrança aquele salutar préceito : "Aproveita bem o
coisas de uso supérfluo, quem faz em casa ostentação de i tempo?" Tenho de saber tudo isso? O que posso ignorar
objectos de luxo, e não censuras quem se enreda num então? O gramático Ápion,13 que no tempo de Gaio César 40
aparato de conhecimentos supérfluos? Querer saber mais percorreu toda a Grécia e foi adaptado por todas as cida-
37 do que o necessário é uma forma de intemperança. Que des em honra de Homero, dizia que o Poeta, após ter
dizer desta paixão pelas artes liberais que torna as pessoas
pedantes, palavrosas, inoportunas, amigas de se ouvir, inca-.
pazes de aprender o indispensável porque andaram estu- 11
O mais célebre dos gramáticos alexandrinos (séc. II a. C.), autor de edi-
dando coisas inúteis? O gramático Dídimo40 escreveu quatro ções justamente famosas de Homero, Hesíodo e outros poetas. Em alguns escó-
lios dos manuscritos homéricos conservam-se várias das suas observações críticas
ao texto dos poemas.
12
· Os geómetras resolviam os seus problemas desenhando numa superfície
40 coberta de areia as figuras que estudavam
Gramático alexandrino do séc. 1 a. C., autor, entre outras obras, de um
compendioso comentário dos poemas homéricos. ·B Retor do tempo de Tibério, cf. Plínio 30, 18.

426 427
terminado toda a sua obra, a Odisseia e a Ilíada, tinha parece ex1st1r. Zenão de Eleia resolveu o problema de
acrescentado aos poemas um prólogo no qual narrava toda uma vez por todas: para ele nada existe. Sobre isto têm
a guerra de Tróia. E apresentava como prova o facto de opinião quase idêntica os pirrónicos, os megáricos, os eré-
Homero ter colocado no primeiro verso duas letras pelas tricos e os académicos, os quais introduziram uma nova
quais indicava subtilmente o número total dos seus can- ciência: a ciência de não saber nada! Podes atirar tudo 45
41 tos. 11 Ora aqui está o tipo de coisas que deve saber quem isto para o meio do armazém de superfluidades que são
quiser saber muito ! os estudos liberais: estes oferecem-me uma ciência que
Já te dispuseste a pensar quanto tempo te é roubado não me ajuda em nada, aqueles roubam-me a esperança
pelos problemas de saúde, pelos teus deveres oficiais, pelos de toda e qualquer ciência; apesar de tudo sempre é melhor
teus deveres particulares, pelos teus deveres quotidianos, saber uma coisa supérflua do que não saber nada! Os
42 pelo sono? Mede a duração da tua vida: não cabe lá primeiros não me trazem qualquer luz que ilumine o
muita coisa. Eu estou falando dos estudos liberais; mas caminho para a verdade, mas os outros até me arrancam
mesmo os filósofos, quanta superfluidade, quanta coisa inútil os olhos. Se dou ouvidos a Protágoras, não há na natureza
neles encontramos! Também eles desceram até à divisão nada que não seja incerto; se escuto Nausífanes, só há
das sílabas, às propriedades das conjunções e preposições, uma coisa certa: que nada é certo; se acredito em Parmé-
rivalizaram com os gramáticos, rivalizaram com os geô- nides, só existe o uno; se em Zenão, nem sequer o uno
metras; e quanto naquelas artes era supérfluo, transfe- existe. Então o que somos nós? O que é isto que nos 46
riram-no para a filosofia. Daqui proveio que dessem mais rodeia, nos cria, nos sustenta? Toda a natureza é uma
aplicação ao falar do que ao viver. sombra, ou vazia ou ilusória. Nem poderei dizer quais são
43 Ouve este exemplo do mal que pode fazer a subtileza os que mais me irritam, se aqueles que nos não permitem
excessiva, e de como pode ser nociva à verdade. Protágo- saber nada, se os que nem seqúer nos deixam saber que
ras afirma que em toda a questão se pode argumentar nada sabemos!
validamente pró e contra, a começar pela questão de saber
se toda a questão pode ser argumentada pró e contra.
Nausífanes afirma que de tudo quanto parece existir, tão
44 provável é a existência como a não existência. Parménides
diz que nada existe* no universo* 45 de tudo quanto

H ·As duas primeiras !erras do primeiro verso da Ilíada são efecrivamenre,


MH. Se lhes atribuirmos o valor numérico habitual do sistema grego de nume-
ração obremos µ1/ = 48, ou seja o número roral dos canros da Ilíada mais o
número roral de canros da Odisseia.
" Texro duvidoso; nenhuma das diversas renrarivas de solução se apresenra
inreiramenre convincenre.

428 429
LIVRO XIV

(Cartas 89-92)

89
Pretendes conhecer uma matéria útil, necessária mesmo, 1
a quem deseja iniciar-se na filosofia: quais são as suas
divisões, como se reparte toda essa massa de conhecimen-
tos, pois nos é mais fácil abarcar o todo se o formos
abordando por partes. Seria bom que, tal como a totali-
dade do aspecto do universo se nos apresenta ante os
olhos, assim também a filosofia - ciência com as dimen-
sões do universo! - nos pudesse ser dada na sua totali-
dade! Se tal fosse o caso, sem dúvida ela suscitaria a
admiração de toda a gente, e o abandono de todas as ocu-
pações que hoje nos parecem grandes porque ignoramos a
verdadeira grandeza. Mas como tal hipótese é irrealizável,
temos de aceder à filosofia do mesmo modo que acede-
mos aos segredos da natureza.
O espírito do filósofo, contudo, abarca-a em toda a sua 2
amplidão, é capaz de percorrê-la toda com velocidade
idêntic~ àquela que a nossa vista emprega a percorrer o
céu; mas àqueles de nós que ainda temos de romper as
trevas, àqueles cuja vista se fica pelo que está próximo,
incapaz ainda de abraçar a totalidade, é mais fácil expor
as matérias uma por uma. Vou, portanto, fazer o que me
pedes, e dizer-te, não em que fragmentos, mas em que
áreas se divide a filosofia. Dividi-la é, de facto, útil, mas

431
fragmentá-la não, pois não é menos difícil entender o Sabedoria corresponde àquilo a que gregos chamam 7
demasiado pequeno que o demasiado grande. ao(j>~a. Antigamente os romanos usavam esta palavra
3 A população distribui-se em tribos; o exército em cen- sophia, tal como hoje se emprega filosofia. As nossas
túrias. As grandes unidades apercebem-se melhor se con- antigas comédias "de toga" 1 comprovar-to-ão, bem como a
siderarmos as suas partes, desde que, como já disse, elas inscrição gravada no túmulo de Dosseno:
não sejam em excessivo número nem demasiado diminu-
"Detém-te, estrangeiro, e lê de Dosseno a sofia/" 2
tas. Na realidade, uma divisão em excesso enferma do
mesmo defeito que a ausência de divisão; aquilo que se Dentro da nossa escola, se bem que a filosofia seja o 8
dividiu até ficar em pó é tão confuso como uma massa estudo da virtude, sendo esta o fim procurado, aquela a
indistinta. forma de o atingir, houve quem pensasse que as duas
4 Para começar, se achas bem, dir-te-ei qual a diferença eram indissociáveis, argumentando que tanto era impossí-
entre sabedoria e filosofia. A sabedoria é o bem supremo vel filosofia sem virtude, como virtude sem filosofia. A
do espírito humano, enquanto a filosofia é o amor, o filosofia é o estudo da virtude, mas através da própria vir-
impulso pela sabedoria; aquela aponta o fim que esta tude; não pode existir virtude sem o estudo dela mesma,
alcança. A origem do termo "filosofia" é transparente: o e não pode haver estudo da virtude na ausência desta. A
5 próprio nome indica qual é aqui o objecto do amor. A situação é, pois, diferente daquela em que se encontra
sabedoria tem sido definida por alguns como a ciência das alguém que pretenda atingir um alvo a partir de um lugar
coisas divinas e humanas; para outros, a sabedoria consiste distante: o lançador está num local, o alvo em outro. Não
em conhecer o divino e o humano, e as respectivas cau- é exacto que, tal como as estradas que levam às cidades
sas. Esta adenda parece-me supérflua, porquanto as causas estão fora das cidades, assim as vias que levam à virtude
do divino e do humano são, em si, uma parte do divino. estejam fora desta. À virtude chéga-se através dela mesma,
Também a filosofia tem sido definida de várias maneiras: a filosofia e a virtude são duas coisas inseparáveis.
uns consideram-na o estudo da virtude, outros o estudo do A maioria dos filósofos, e os melhores de entre eles, 9
modo de adquirir ideias correctas; por alguns outros foi consideram três partes na filosofia: a ética, a física e a
ainda definida como a busca de uma razão justa. lógica. A primeira forma o carácter, a segunda estuda a
6 Onde há, praticamente, acordo é em considerar que a
filosofia e a sabedoria são duas coisas diferentes. De facto,
1
A comédia "de roga" (/abula togata) distingue-se da comédia de imitação
é impossível que a busca de uma finalidade se confunda
grega (/abula palliata) apenas por a acção, o local da mesma e as personagens
com essa finalidade. Do mesmo modo que há grande dife- serem romanas, ao contrário do que sucede com a palliata, em que as persona-
rença entre a avidez e o dinheiro, pois aquela é sujeito e gens conservam os nomes gregos e a acção decorre em locais vários do mundo
este objecto de desejo, assim diferem a filosofia e a sabe- grego.
1
Cf. Ribbeck, Com. Rom. Frg.3, pp. 241 e 265. - Dosseno, o Corcunda,
doria. Esta é o objecto, o prémio que aquela obtém; aquela era uma das personagens-tipo da comédia arelana (/abula atellana), remoro
caminha, esta é o fim do caminho. antepassado da commedia dell'arte.

432 433
natureza, a terceira estuda o valor dos vocábulos, a estru- pertence à física, e a argumentação é parte integrante da
tura do discurso e as formas de argumentação, não vá a lógica.
falsidade sobrepor-se à verdade 3• Mas também se encon- Aríston de Quios considerou a física e a lógica não só 13
tram autores que dividem a filosofia num número inferior supérfluas como ainda contraproducentes. A própria moral,
ou superior de partes. a única que conservou, amputou-a daquela parte dedicada
10 Alguns peripatéticos introduziram como quarta parte a aos conselhos de ordem prática, dizendo que isto é tarefa
política, porquanto esta exige uma exercitação particular e de pedagogo, e não de filósofo, como se o filósofo-sábio
se ocupa de uma matéria específica. Outros acrescentaram- não fosse precisamente o pedagogo do género humano 6•
-lhe uma nova parte a que chamam oiKovoµiKÍJ (oikono- Admitida a tripartição da filosofia, comecemos por ver 14
mikê), ou seja, a ciência da administração do património como, por sua vez, se organiza a ética. A ética entende-se
familiar. Outros ainda reservaram uma parte especial ao que igualmente deve ser tripartida. A sua primeira parte
estudo dos diversos géneros de existência. Na realidade, consiste na análise e atribuição do valor legítimo a cada
qualquer destas matérias tem o seu lugar próprio na ética. coisa, na apreciação de como cada coisa deve ser valori-
11 Os epicuristas admitiram somente duas partes na filo- zada; esta parte é sobremaneira útil, pois o que há de
sofia, a física e a ética; a lógica rejeitaram-na. Em seguida, mais necessário do que saber dar às coisas o justo valor?
porém, como se vissem compelidos à necessidade de evi- A segunda parte ocupa-se das tendências. A terceira, enfim,
tar as ambiguidades e de desmascarar as falsidades escon- das acções. Antes de mais, em verdade, tu deves ajuizar
didas sob a aparência de verdade, acabaram por introduzir quanto cada coisa vale, em seguida manifestar para com
uma área a que chamaram "sobre as regras do juízo" - cada uma tendência controlada e na medida justa; final-
ou seja, a lógica com outro nome -, considerando-a como mente importa que estejam de acordo a tua tendência e a
4
parte introdutória à filosofia natural • tua acção, de modo que em todos os teus actos te mostres
12 Os cirenaicos excluíram simultaneamente a física e a consequente contigo mesmo.
lógica, contentando-se, portanto, com a ética 5• Também Se alguma das três partes faltar, todo o sistema fica 15
eles, contudo, introduziram com outro nome aquilo que alterado. De que te serve, afinal, teres construído uma
tinham excluído. De facto eles dividem a ética em cinco justa e completa escala de valores se fores demasiado impe-
partes: a primeira trata dos fins a evitar e a procurar; a tuoso nas tuas tendências? De que te serve saber moderar
segunda das paixões; a terceira das acções; a quarta das as tendências e dominar os desejos se, ao empreenderes
causas; a quinta da argumentação. Ora o estudo das causas uma acção, não souberes decidir o momento, a natureza, o
local e o modo oportunos de a levar a cabo? Uma coisa é

3 V. S. V.F., I, 45-46; II, 37-39, e d. Pohlenz, Die Stoa, I, p. 33 ss.


4 6
Epicuro, fr. 242 Usener. S. V.F., I, 357. - Cf. infra a carta 94, em que Séneca discute amplamente
5 estas posições de Aríston.
Cyren. frg. 147 B Mannebach.

434 435
conhecer o valor justo de cada coisa, outra, a conjugação Lucílio, meu amigo canss1mo, eu não te desaconselho 18
das oportunidades, outra ainda, dominar os impulsos e a leitura destas matérias, desde que extraias imediatamente
empreender uma acção sem precipitações. A vida só estará as respectivas implicações morais. Corrige os teus costu-
de acordo consigo mesma quando a acção não desmentir o mes, reanima o que em ti esteja débil, reforça o que não
impulso e quando o impulso for à medida do valor de é assaz firme, domina as tuas teimosias, reprime quanto
cada coisa, mostrando-se mais ou menos intenso conforme puderes as tuas ambições, privadas e públicas. E a quem
essa coisa merecer que a procuremos. te objectar: "Mas até quando andarás assim?'', responde:
16 A filosofia natural divide-se em duas partes: o estudo "Eu é que vos deveria perguntar: até quando labora- 19
dos seres corpóreos e o estudo dos seres incorpóreos. Cada reis em erro? Quereis que os remédios cessem antes das
uma destas admite, por assim dizer, diversos graus. No moléstias? Repetirei tantas mais vezes a minha pergunta,
estudo dos corpóreos há que distingui-los: uns são os seres teimosamente, porquanto vós persistis no erro. Quando
geradores, outros os que são gerados; a estes dá-se o num corpo insensível um simples toque provoca a dor, é
nome de elementos. A parte que trata dos elementos, sinal de que o remédio está a actuar. Portanto, mesmo
segundo alguns, é simples; segundo outros, contém o estudo contra a vossa vontade, eu continuarei a repeti-la. Algum
da matéria, o da causa responsável pelo movimento, o dos dia vos chegarão aos ouvidos estas palavras duras; já que
elementos propriamente ditos. não quereis ouvir a verdade individualmente, então escutai-a
17 Resta-me indicar a divisão da filosofia racional. Todo em público.
o discurso ou é contínuo ou é dividido por dois interlocu- "Até onde estendereis os limites das vossas proprieda- 20
tores em sistema de pergunta e resposta. Ao estudo deste des? Um espaço capaz de conter um povo inteiro será
segundo tipo costuma chamar-se &aÀf.KTLKi/ (dialektikê), insuficiente para um só dono? Até onde alargareis as vos-
ao do primeiro, p'71ropiKi/ (rhetorikê). A p71ropiKi/ ocupa-se sas terras aráveis, incapazes como sois de limitar o tama-
das palavras, das ideias, da estrutura do discurso; a &aÀf.K- nho dos vossos domínios à própria fronteira das pro-
nKi/ divide-se em duas partes, os termos e os significados, víncias? Cursos de água célebres atravessam uma única
isto é, os conceitos que queremos exprimir e os vocábulos
propriedade privada; grandes rios, outrora fronteiras entre
pelos quais os exprimimos. Ambas as matérias podem
povos ilustres, são agora vossos da foz até à nascente.
ainda sofrer uma divisão em pormenor, mas eu vou pôr
Mas isto não chega: é preciso levar os vossos latifúndios
aqui um ponto final, limitando-me a
até à beira-mar, é preciso que o vosso feitor exerça a sua
"percorrer os altos cumes" 7, função para além do Adriático, do mar Jónio, do mar
Egeu. É preciso que as ilhas, outrora morada de reis insignes,
pois de outro modo, se quisesse enumerar todas as partes
se contem entre os menos importantes dos vossos bens!
de cada parte, acabaria por compor um manual exaustivo.
Apropriai-vos de tudo quanto quereis, transformai em
propriedade o que antes foi um império, tomai nas vossas
7
Vergílio, Aen., 1, 342. mãos o que quiserdes,... até que as dívidas vos esmaguem!

436 437
21 "Dirijo-me agora a vós, cujo luxo se expande tão dilata- 90
do como a ganância dos outros. A vós pergunto: onde há
um lago a cuja volta se não guindem as vossas vivendas? Quem duvidará, Lucílio amigo, que, se devemos a vida 1
Um rio cujas margens não estejam cobertas das vossas aos deuses imortais, é à filosofia que devemos a vida vir-
construções? Onde quer que brotem fontes de água quente, tuosa? Por esta razão, porque consideramos justamente a
logo aí nascerão novas mansões de recreio. Em qualquer vida virtuosa como superior à vida em si, pareceria que a
lugar onde a costa forme uma reentrância, logo aí edifica- nossa dívida para com a filosofia seria muito maior do
reis molhes; não vos contentando senão com o solo fabri- que a que temos para com os deuses se não fosse o caso
cado por vós, entrais pelo mar adentro! Podem por toda a de terem sido os deuses quem nos concedeu a filosofia. O
parte resplandecer os vossos palácios, aqui implantados conhecimento dela, não o deram a ninguém, mas faculta-
nos montes para gozar o panorama da terra ou do mar, ram a todos a possibilidade de o abordar. Se os deuses 2
além elevados na planície como se fossem colinas; por tivessem feito da filosofia um bem comum a todos, e nós
mais e maiores que sejam os vossos edifícios, vós nunca já nascêssemos sábios, a sabedoria perderia a sua caracterís-
passareis de uns seres minúsculos! De que vos servem tica mais importante, que é precisamente o facto de não
muitos quartos, se só vos deitais num? Não é verdadei- ser devida ao acaso. Tal como as coisas são, o que faz
ramente vosso o local onde não estais! dela um bem precioso e supremo é o facto de nos não
22 "Passo agora a vós, cuja gula infinita, insaciável, devassa ser dada, de cada um a obter com o próprio esforço, de
ora o mar ora a terra, perseguindo a presa com anzóis, ninguém a poder ir tomar de empréstimo. Que haveria
com armadilhas, com redes de toda a espécie e através na filosofia capaz de merecer a nossa admiração se ela
das maiores dificuldades. Só a saturação deixa os animais fosse um objecto que se pudesse oferecer? A sua única 3
em paz! Que ínfima parte desses manjares, preparados tarefa é descobrir a verdade aéerca das coisas divinas . e
por tantas mãos, a vossa boca embotada de prazeres é humanas; nunca estão à margem dela a religião, a piedade,
capaz de saborear! Que ínfima parte desta fera, caçada a justiça e todo o restante cortejo de virtudes interligadas
com tanto risco, pode provar o senhor, cheio de náuseas, e coerentes entre si. A filosofia ensina-nos a respeitar o
incapaz de digerir! Que ínfima parte destes mariscos vindos divino e a amar o humano; diz-nos que cabe aos deuses o
de tão longe acaba por ir parar a este estômago insaciável! governo do mundo, e que a condição humana é a mesma
Não vedes, desgraçados, até que ponto o vosso apetite é para todos. Tal condição permaneceu inalterável algum
maior do que o vosso estômago?" tempo, enquanto o desejo do lucro não dividiu a sociedade
23 Diz estas palavras aos outros, para que, ao dizê-las, as e se tornou um motivo de pobreza mesmo para aqueles a
escutes também, escreve-as, para que, ao escrevê-las, tam- quem cumulou de riquezas: por desejarem bens particulares,
bém as leias, tirando de tudo proveito para a tua formação deixaram de participar na posse de toda a natureza. Os
moral, para a repressão das paixões nocivas. Estuda, em primeiros homens, os homens da geração seguinte que, 4
suma, não para saberes mais, mas para saberes melhor! ainda incorruptos, obedeciam à natureza, tinham um só

438 439
chefe e uma só lei: confiar-se às decisões do melhor, já Sólon, o homem que deu a Atenas a base da sua legisla-
que a lei natural é que os inferiores se submetam aos ção, contou-se entre o grupo dos chamados "sete sábios";
melhores. Nos bandos de animais, são os mais fortes ou se Licurgo tivesse vivido na mesma época, seria certa-
mais corajosos que assumem a chefia: quem guia a manada mente o oitavo dessa lista venerável. São famosas as leis
não é o touro fraco, mas sim o que se avantaja aos outros de Zaleuco e de Carondas; e não foi no foro ou no átrio
machos na corpulência e na força; entre os elefantes, o dos jurisconsultos, mas sim no secreto e quase sagrado
chefe é o de maior estatura; entre os homens, a chefia retiro dos pitagóricos, que eles aprenderam as leis que
competia, não ao mais forte, mas ao moralmente superior. formularam para uso da Sicília, então florescente, e, através
O chefe era eleito pelas suas qualidades, e por isso os da Itália, para uso da própria Grécia. .
antigos povos viviam em perfeita felicidade, já que . era Até aqui, estou de acordo com Posidónio. Já não 7
impossível o mais poderoso não ser simultaneamente o concordo é quando ele diz que se deve à filosofia a inven-
melhor. Um homem que entende o dever como limite ção daquelas técnicas usadas nas necessidades diárias da
rigoroso ao poder, pode exercer o seu poder sem perigo vida: não lhe concedo tal glória. "Foi a técnica" - diz
para os demais. Posidónio - "que permitiu aos homens, que até então
5 Naquela época a que soe chamar-se "a idade de ouro", viviam dispersos, e se recolhiam em cabanas, em cavernas,
o governo estava nas mãos dos sábios: tal é a opinião de ou em troncos de árvores escavados, a arte de construir
Posidónio. Os sábios impediam a violência, protegiam os casas." Quanto a mim, a filosofia tanto se importou com a
mais fracos dos mais fortes, indicavam o que se devia ou técnica de edificar casas umas em cima das outras, ou de
não fazer, apontavam o que tinha ou não utilidade. Graças aumentar sempre mais a área das cidades, como se importa
à sabedoria, providenciavam para que nada faltasse ao seu agora com os viveiros de peixes, bem protegidos para que
povo; graças à coragem, mantinham afastados os perigos; as tempestades não façam a nossa gula passar privações,
por meio dos seus benefícios, distribuíam bem-estar e para que, seja qual for a violência do mar-alto, o nosso
prosperidade entre os súbditos. Para eles, governar era o luxo tenha um porto seguro onde mantenha à engorda
exercício de um dever, e não a mera posse do poder. diversas raças de peixes! Essa agora! Então foi a filosofia 8
Ninguém tentava experimentar contra eles as suas forças, que ensinou aos homens o uso da chave e da fechadura ?
pois a eles deviam essas forças; ninguém tinha a ousadia Que significaria essa invenção senão dar luz verde à avare-
de os injuriar, nem para tal havia motivo, pois é fácil za? Foi a filosofia que levou à edificação de blocos habita-
obedecer a quem governa com justiça; a maior ameaça cionais em andares, para pôr em grave perigo a segurança
que o rei podia fazer aos seus súbditos era a de retirar-se dos moradores? Até parece que não bastava encontrar
do poder. abrigos de ocasião, e obter sem artifício ou dificuldade
6 Quando a gradual irrupção dos vícios transformou a formas naturais de habitação! Podes crer, época feliz foi 9
realeza em tirania, e se tornou necessário o recurso às leis, 1 essa que precedeu o aparecimento dos arquitectos e dos
foi inicialmente aos sábios que se recorreu para as elaborar. · estucadores! O hábito de cortar rigorosamente as madeiras,
1

440 32 441

'i
,j'
de talhar certeiramente as traves fazendo a serra cortar primeiro foi o martelo ou as tenazes. Ambos os utensílios
segundo traços marcados previamente, acompanha os pri- foram criação de um espírito engenhoso e arguto, mas
meiros passos da irrupção do luxo, já que sem elevação nem grandeza de ânimo; e o mesmo se dirá
"os primitivos cortavam com cunhas de tudo o que se tem de ir buscar à terra, de dorso cur-
uma madeira branda" 8 • vado e olhos fixos no solo. O sábio não precisa de ins-
Não havia ainda o costume de construir grandes salas des- trumentos sofisticados! Pois se mesmo no nosso tempo
tinadas a banquetes solenes, não se transportavam ele se contenta com o estilo de vida mais simples!
pinheiros ou abetos em longas filas de carroças com um Como é possível, pergunto eu, ter igual admiração por 14
estrépito de fazer tremer um bairro inteiro, para que nessas Diógenes e por Dédalo? Qual destes dois te parece ser
salas se pudessem fixar ao tecto pesados caixotões dourados. um sábio? O inventor da serra? Ou o filósofo que, vendo
10 Simples barrotes, fixos de ambos os lados, escoravam as um garoto a beber água pelas mãos em concha, partiu no
habitações; um telhado feito de ramos e folhagens, disposto mesmo instante o copo que tirara da sacola, e a si próprio
obliquamente, permitia o escoamento até das maiores chu- se repreendeu, dizendo; "Oh! Como sou estúpido em andar
vadas. Em casas deste tipo, os homens viviam em seguran- carregado de objectos inúteis!", o mesmo filósofo que se
ça; sob um tecto de colmo habitavam homens livres, entre enroscava dentro de uma barrica para passar a noite?
paredes de mármore e ouro vive hoje a servidão! E nos dias de hoje, quem consideras tu como sábio? O 15
11 Igualmente discordo de Posidónio quando ele atribui
técnico que sabe montar repuxos de água perfumada atra-
aos sábios a invenção das várias ferramentas; pela mesma
vés de canalizações invisíveis, o que é capaz de encher ou
ordem de ideias seriam os sábios quem
esvaziar num instante os canais artificiais, o que sabe dar
"imaginou a arte de caçar com armadilhas ou visco, diversas disposições aos caixotões móveis do tecto de modo
ou de cercar de matilhas os vales profundos" 9• a que o salão de banquetes vá m udando de decoração à
Tais invenções são de atribuir ao engenho humano, mas medida que vão surgindo os vários pratos? Ou antes aquele
não à sabedoria! que demonstra, a si mesmo e aos outros, que a natureza
12 Discordo ainda da sua atribuição aos sábios da desco- nos não impõe nada que seja duro e difícil, que para ter-
berta das minas de ferro e de cobre a partir da observação mos uma casa não carecemos de marmoristas ou marce-
de metais fundidos em filões superficiais após um incêndio neiros, que para nos vestirmos não dependemos do comér-
de floresta ter deixado a terra calcinada: não, quem desco- cio da seda, em suma, que para dispormos do essencial à
bre estes metais são os homens para quem eles têm valor. · vida quotidiana nos basta aquilo que a terra nos apresenta
13 Também me parece ociosa, ao contrário do que sucede
à superfície? Se a humanidade se dispusesse a seguir os
a Posidónio, a questão de saber se o que se utilizou
conselhos de um tal homem imediatamente perceberia que
tão inútil é o cozinheiro como o soldado!
" Vergílio, Georf,., I, 144. Os antigos, esses homens que satisfaziam sem quaisquer 16
,, Vergílio, Georf,., I, 139-40. excessos as suas necessidades físicas, eram de facto sábios,

442 443
ou pelo menos muito próximo de o serem. Para se obter difícil de obter ou que exigisse grandes canseiras. Ao nas-
o indispensável não é preciso muito esforço; as canseiras cer, o homem tem à mão o indispensável; depois é que
destinam-se a satisfazer os luxos. Tu podes dispensar todos aborrece a facilidade e só tem interesse pelo que é difícil
os técnicos: basta que sigas a natureza! E a natureza não de conseguir. Habitação, vestuário, alimentos - tudo isso
pretendeu fazer de nós "especialistas": a cada um ensinou que agora nos exige enorme esforço estava outrora à dis-
como suprir as carências essenciais. posição de todos, gratuitamente, sem dificuldades de obten-
"Um homem nu não consegue aguentar o frio". - Ê ção; usava-se de cada coisa consoante as necessidades reais;
certo. Mas não serão as peles dos animais capturados nós é que impusemos um preço a tudo, transformando
defesa mais do que suficiente contra o frio? Não há muitos tudo em raridades que só se obtêm à custa de muitas e
povos que cobrem o corpo com cascas de árvores entrança- requintadas técnicas. A natureza dá-nos em abundância o
das? Não se podem fabricar peças de vestuário a partir de que naturalmente necessitamos. A civilização do luxo é 19
penas de aves? Não é verdade que, ainda hoje, uma grande um desvio em relação à natureza: dia-a-dia cria novas
parte dos Citas se veste com peles de raposa e de armi- necessidades, que aumentam de época para época; o enge-
nho, que não só são agradáveis ao tacto como impermeá- nho está ao serviço dos vícios! Começou por ambicionar
veis ao vento? Mais ainda: não é verdade que eles entre- coisas supérfluas, em seguida contrárias à natureza, e aca-
tecem redes de vime com que, cobertas de um pouco de bou por colocar a alma na dependência do corpo, forçan-
lama, fazem paredes, e sobre as quais colocam depois tec- do-a à subordinação aos prazeres físicos. Todas estas técni-
tos de colmo ou outras plantas? E que a chuva escorre cas que enchem de agitação e ruído as nossas cidades
pelo declive desses tectos, permitindo-lhes afrontar sem estão ao serviço do corpo; o que outrora se lhe concedia a
receio os rigores do Inverno? título de escravo, é-lhe actualmente outorgado como a um
17 "É necessário construir abrigos densos com que nos soberano! Daqui provém essa profusão de oficinas onde se
protejamos no pino do Verão ." - Ê certo. Mas não é fabricam tecidos ou artigos metálicos, onde se destilam
verdade que o tempo pôs à nossa disposição inúmeros perfumes; todas essas escolas de dança sensual, de canto
locais escavados como cavernas, ou devido às intempéries sensual e efeminado. Desapareceu de entre nós a antiga
ou a qualquer outro motivo? Os habitantes das Sirtes não moderação natural que limitava os desejos às necessidades;
vivem em cabanas escavadas? Não fazem o mesmo todas hoje, desejar apenas o essencial é dar provas de mesqui-
aquelas populações que não encontram outra protecção efi- nho provincianismo!
ciente contra a excessiva intensidade do sol senão a própria Ê espantoso, caro Lucílio, como o fascínio das palavras 20
18 terra, embora escaldante? A natureza não foi assim tão consegue desviar da verdade até mesmo os grandes espíri-
injusta que proporcionasse aos restantes animais todos os tos. Verifica-se isto em Posidónio, um dos homens a quem,
meios para viver, e só ao homem impusesse a necessidade segundo penso, a filosofia mais deve. E aí o temos a des-
de todas estas técnicas! Daquilo que é indispensável à crever, primeiro, como é que se enrolam uns fios e se
nossa sobrevivência nada a natureza nos impôs que fosse puxam outros até formar uma teia mole e pouco firme;

444 445
em seguida, como é que a teia, esticada por pesos, é reconduzir aos dentes algum grão que se escape; depois
urdida verticalmente, como é que é introduzido o fio ver- são humedecidos com saliva para que assim escorreguem
tical e como este - uma vez que ao entrar afrouxa o mais facilmente pelo esófago; ao chegarem ao estômago
peso exercido na trama - é obrigado pelo pente a unir~se são cozidos à temperatura constante natural,· finalmente
estreitamente aos restantes fios; e, por fim, atribui tam- são assimilados pelo organismo. Da observação deste modelo 23
bém aos sábios a invenção da tecelagem, esquecendo-se alguém tirou a ideia de, à semelhança dos dentes, sobre-
que posteriormente se descobriu uma técnica mais sofis- por duas mós de pedra rugosa, das quais uma permanecia
ticada, segundo a qual fixa enquanto a outra se movia sobre ela; pela fricção das
"o tear é fixo ao montante, a travessa separa duas pedras os grãos começam por quebrar-se, e com a
os fios, no meio da urdidura passa a continuação vão sendo triturados até se tornarem em pó;
lançadeira ponteaguda, a trama que a farinha é depois misturada com água, é amassada, e à
os dentes do largo pente fixam" 10• massa dá-se a forma de pão; o pão era a princípio cozido
sobre cinza quente ou num recipiente de barro sobreaque-
Que pensaria Posidónio ao ver os teares de hoje, onde se cido; mais tarde veio a descobrir-se o forno e outras
fabricam tecidos inteiramente transparentes e tão inúteis maneiras de regular a produção do calor."
para o corpo como incapazes de resguardar o pudor! Pouco faltou a Posidónio para atribuir também aos
21 Passa depois aos trabalhos do campo, e com igual elo-
sábios a arte do sapateiro!
quência descreve como o solo é revolvido uma e outra vez
Todas estas invenções são evidentemente imputáveis à 24
pelo arado para que a terra se torne mais propícia ao
razão, mas de modo algum à forma superior de razão.
crescimento das raízes; refere-se depois às sementeiras, e à
necessidade de arrancar à mão as ervas daninhas que possam São descobertas feitas pelo homem, mas não pelo sábio.
prejudicar o desenvolvimento das searas. Também estas Estão ao mesmo nível que a invenção dos barcos com que
técnicas, diz Posidónio, são obra dos sábios; como se não percorremos rios e mares, impulsionados por velas que
víssemos constantemente os agricultores aplicarem-se a recolhem a força do vento, e dotados de lemes na reta-
descobrir novos modos de acrescer a fertilidade dos terrenos. guarda para imprimirem à embarcação este ou aquele rumo.
22 Como se tudo isto ainda fosse pouco, Posidónio vai O modelo do leme proveio da observação dos peixes, que
ainda mandar o sábio para o moinho! E aí o temos a se servem da cauda para, com um ligeiro movimento a
explicar como o sábio foi conduzido pela imitação da um lado ou a outro, imprimirem uma orientação à sua
natureza até ao fabrico do pão. Cito as suas palavras : "Os carreira.
cereais introduzidos na boca são triturados pelo choque "Todos estes inventos" - diz Posidónio - "pertencem 25
dos dentes uns contra os outros; a língua encarrega-se de ao sábio, que no entanto entregou a sua execução a artífi-
ces mais humildes por os achar pouco dignos de si." Não
é correcto; os autores de tais inventos situam-se no mesmo
'º Cf. Ovídio, Met., VI, 55-8. nível dos homens que ainda hoje os põem em prática.

446 447
Certas técnicas, é bem conhecido, surgiram já nos nossos presunção; é, em suma, facultar-nos o conhecimento da
dias: por exemplo o uso de placas de pedra translúcida natureza, inclusive da natureza da própria filosofia. Ela
nas janelas, os balneários instalados sobre estufas ou o uso elucida-nos sobre a natureza e os atributos dos deuses,
de canalizações metidas na parede de modo a que todo ·o sobre o mundo infernal, sobre os lares e os génios;
espaço seja aquecido por igual. Para quê falar do emprego diz-nos o que sucede à alma quando assume o estatuto de
do mármore nos templos ou nas casas particulares? Ou divindade de segunda grandeza; diz-nos onde a alma passa
nas enormes colunas de pedra polida que sustentam os a morar, diz-nos quais são então a sua actividade, a sua
pórticos e os edifícios em que cabe uma multidão? Ou capacidade, a sua vontade. Esta é a iniciação que a filosofia
ainda dos caracteres de estenografia que permitem à mão nos proporciona: iniciação que nos abre as portas, não de
ir registando o discurso à mesma velocidade a que as pala- um santuário de província mas do templo sublime de
26 vras são pronunciadas? Todas estas tarefas estão a cargo todos os deuses, do próprio universo, cujo verdadeiro aspecto,
dos mais vis escravos. A filosofia está a um nível supe- cuja verdadeira face dá a conhecer ao nosso espírito, já
rior: os seus ensinamentos dirigem-se à alma, não às mãos! que a visão não alcança um tão grandioso espectáculo!
Queres saber quais são as suas descobertas, as suas realiza- A filosofia passa em seguida a estudar os princípios 29
ções? Não são decerto os passos de dança elegantes, ou os do universo: como o todo é permeado pela razão eterna,
diversos ruídos produzidos pelo ar ao sair, ou ao passar, como a energia específica de cada germe é responsável
pela trompa ou pela flauta até formar um som harmo- pela configuração própria de cada ser. Seguir-se-á o estudo
nioso. A filosofia também não se empenha em fabricar da alma: donde provém, onde reside, quanto tempo dura,
armas, em erguer muralhas, enfim, em ser útil às artes da de que partes se compõe. Após a análise dos seres corpó-
guerra: a sua preocupação é a paz, o seu empenho é inci- reos vem o estudo dos incorpóreos e dos argumentos que
tar todos os homens à concórdia. O filósofo, repito, não demonstram a sua realidade. Finalmente, discute-se o apa-
27 fabrica os instrumentos necessários às necessidades corren- recimento da ambiguidade quer na vida quer na lingua-
tes. Porquê atribuir-lhe uma actividade tão subalterna gem, porquanto em ambas se verifica a presença do ver-
quando ele, na realidade, é um "artista da vida"? As outras dadeiro e do falso.
artes, aliás, também estão sob o seu domínio. Se é a filo- Quanto a mim, ao contrário do que pensa Posidónio, 30
sofia que governa a nossa vida, deve também ela governar o sábio não passou a rejeitar as artes manuais, pela boa
os acessórios da nossa vida; o seu fim supremo, porém, é razão de que nunca as praticou. O sábio, de facto, nunca
determinar em que consiste a felicidade e em guiar-nos julgaria que merecia a pena inventar qualquer coisa que,
28 pela via que conduz a esse fim. A sua tarefa é distinguir em seu entender, não fosse para usar sempre; ou seja,
os males reais dos males aparentes, é libertar os espíritos não ia inventar hoje o que abandonaria amanhã!
de vãs ilusões, é instilar neles uma grandeza efectiva e Diz Posidónio: "Foi Anacarsis quem inventou a roda 31
reprimir as exageradas aparências derivadas de juízos fúteis, do oleiro, cuja rotação serve para modelar os recipientes
é evitar toda e qualquer confusão entre grandeza real e de barro." Mas como Homero já faz menção da roda de

448 449
oleiro, Posidónio prefere considerar falsos os versos em a obedecer-lhes e a aceitar como ordens suas tudo o que
vez da sua história! Eu por mim tenho que Anacarsis não nos possa suceder. O sábio impede-nos de dar crédito às
foi o inventor da roda; se o foi, teremos o caso de um falsas opiniões, e avalia tudo quanto existe pelo justo valor;
sábio que produziu um invento, mas não a título de sábio. condena os prazeres de que nos podemos vir a arrepen-
Há muita coisa que os sábios fazem a título de homens, e der, e exalta os bens cujo estatuto permanece inalterável;
não de sábios. Imagina, por exemplo, um sábio que seja demonstra que o homem mais feliz é o que é indiferente
rápido a correr: ele vencerá os adversários na corrida por à felicidade, que o homem mais poderoso é o que tem
ser rápido, não por ser sábio. Gostaria de poder mostrar a poder absoluto sobre si. Não te estou falando daquela filo- 35
Posidónio um vidreiro capaz de modelar pelo sopro o sofia que expulsa o cidadão da sua comunidade, coloca os
vidro em diversíssimas formas que dificilmente um artífice deuses à margem do mundo e põe a virtude na depen-
hábil de mãos conseguiria obter. E esta arte foi inventada dência do prazer 11 ; falo-te, sim, daquela que aceita como
depois de terem deixado de aparecer sábios! único bem o bem moral, que resiste soberanamente aos
32 "Diz-se que foi Demócrito quem inventou o arco de favores dos homens ou da fortuna, e cujo maior preço
abóbada, colocando em semicírculo as pedras umas sobre consiste em estar acima de qualquer preço! 12
as outras e rematando no centro com uma pedra de fecho ." Não creio que uma tal filosofia pudesse ter existido
Esta afirmação é de certeza falsa: obviamente foram cons- nesses tempos rudes em que a indústria ainda não existia
truídas pontes e portas rematadas com arcos de volta e em que se aprendia pela prática a utilidade das coisas.
33 inteira, anteriormente a Demócrito. Mas, já agora, lembre- Ela só pode ter vindo após a era afortunada em que as 36
mo-nos de que foi Demócrito quem descobriu o modo de benesses da natureza se encontravam à disposição de qual-
amolecer o marfim ou de, por meio de cozedura, trans- quer um, isto é, antes de a avareza e o luxo terem intro-
formar um calhau em esmeralda: uma tal cozedura ainda duzido a discórdia entre os homens e os terem ensinado a
hoje se emprega para dar cor a pedras apropriadas a esse roubar em vez de partilhar os seus bens. Os homens
efeito. Que um sábio invente destas técnicas, é possível; dessa época não eram sábios, ainda que a sua conduta
mas se as inventa, não o faz a título de sábio. O sábio faz pudesse ser própria de sábios. Seria impossível imaginar 37
muita coisa que os ignorantes podem fazer tão bem ou uma melhor condição para o género humano. Se os deu-
melhor, e decerto com muito mais prática! ses permitissem a qualquer de nós recriar o planeta e
34 Desejas saber o que o sábio investiga, o que é que ele regulamentar os costumes do seu povo, nenhuma situação
traz à luz do dia? Em primeiro lugar, a verdade acerca da seria mais merecedora da aprovação do que aquela em
natureza, que ele, ao contrário dos outros seres vivos, não que, como se conta,
observa com os olhos do corpo, incapazes de atingirem o
plano divino; em seguida, as regras da nossa vida, que ele
põe em concordância com a lei do universo; consequen- 11
Alusão evidente aos epicuristas.
temente, ensina-nos não apenas a conhecer os deuses mas 12
Não menos evidente síntese das posições estóicas.

450 451
"... nenhum colono arava ainda a terra; carências: tudo era dividido irmãmente. O mais forte ainda
assinalar limites aos campos e delimitar não sujeitava o mais fraco; o avarento, escondendo o que
propriedades era um crime, todos produziam para a si próprio é inútil, ainda não privava os outros do
todos, e a própria terra oferecia, sem que alguém indispensável. Cada um cuidava tanto de si como do pró-
os reclamasse, livremente os seus frutos." 13 ximo. As armas jaziam ociosas; as mãos, isentas de san- 41
38 Que situação mais feliz encontrar para o género humano? gue humano, guardavam toda a violência para a luta com
Todos usufruíam em comum os dons da natureza· e esta as feras. Esses homens protegiam-se do sol apenas na
como autêntica mãe, chegava para suprir as nec~ssidade~ sombra densa das florestas, viviam sob humildes tectos de
de todos. Como todos os bens eram comuns, a sua posse colmo como único abrigo contra as inclemências do inverno,
não oferecia perigo. O mais rico de todos os povos não mas podiam ver as suas noites passarem-se sem angústia.
será aquele em que é impossível encontrar um pobre? Nós, no meio da nossa púrpura, dormimos agitados, sujei-
Mas a avareza introduziu-se neste equilibrado estado tos ao violento aguilhão da ansiedade; eles, dormindo na
de coisas, e ao pretender arrogar-se a posse exclusiva de terra dura, que sono tranquilo gozavam! Não tinham sobre 42
uma coisa qualquer, fez automaticamente de todas as outras a cabeça tectos trabalhados; dormindo ao relento, viam
coisas alheias; trocou a totalidade por uma ínfima parcela. deslizar os astros sobre as suas cabeças, viam o sublime
A avareza arrastou consigo a pobreza e, por tudo desejar, espectáculo nocturno da mole imensa do universo em
39 tudo acabou por perder. Poderá agora esforçar-se por recu- silenciosa rotação. Quer de dia quer de noite tinham ante
perar o que perdeu; poderá acrescentar às suas novas os olhos a vastidão da belíssima morada que é a Terra;
propriedades, expulsando o vizinho a troco de dinheiro era um prazer para eles ver uns astros declinando no
ou à força; poderá alargar os seus latifúndios até cobrire~ meio do firmamento, enquanto outros, nascendo, faziam a
províncias inteiras, e considerar que ser proprietário é via- sua aparição. Como não gostariam eles de vaguear por 43
jar pelas suas terras sem lhes ver o fim; por muito que entre todas estas maravilhas? Vós, pelo contrário, tremeis
de medo ao menor ruído nas vossas casas; no meio das
estendamos os limites do que é nosso, nunca reobteremos
vossas pinturas, ao mínimo estalido fugis aterrorizados.
o que perdemos! À custa de muito esforço poderemos ter
Eles não possuíam mansões do tamanho de cidades; o ar
uma grande propriedade: antigamente, contudo, éramos
40 circulava livremente, sem paredes que o retivessem; a
proprietários de tudo! Sem cultura, a própria terra era
sombra ligeira de um penhasco ou de uma árvore, fontes
mais fértil, e bastava para as necessidades de gente que a
transparentes, ribeiros correndo espontaneamente, e não
não saqueava. Quando se descobria qualquer produto natu-
forçados a seguir um curso artificial através de hábeis
ral, o prazer de o comunicar aos outros não era menor do
canalizações, prados belos sem o mínimo artifício, e no
que o prazer da descoberta. Não havia excessos, não havia
meio de tudo uma habitação campesina, trabalho das suas
mãos rústicas - tal era a morada desses homens uma
13
Vergílio, Georg., I, 125-8. morada segundo a natureza, em que apetecia viver'. nem

452 453
causa nem objecto de temores. As casas de hoje são uma 91
das grandes fontes dos nossos receios.
44 A vida desses homens era admirável e plena de ino- O nosso amigo Liberal anda entristecido com a notícia 1
cência; no entanto eles não eram sábios, já que este termo do incêndio que devastou a colónia de Lião. E, de facto,
se aplica hoje à mais nobre das tarefas. Não nego, con- uma calamidade destas afligiria qualquer pessoa, quanto
tudo, que eles fossem homens de grande elevação espiri- mais um homem tão apegado à sua terra natal. Este aci-
tual, acabados, por assim dizer, de sair das mãos dos deu- dente faz com que ele não consiga encontrar aquela fir-
ses; é inegável que o mundo, ainda não esgotado, produzia meza de ânimo que julgava possuir, embora, na realidade,
seres superiores. Mas embora todos possuíssem um carác- ele só estivesse preparado para desgraças que concebia
ter mais Íntegro e mais pronto ao trabalho, também é como possíveis. Neste caso, contudo, dada a inexistência
de precedentes, é perfeitamente natural que ele não esti-
certo que o seu espírito ainda não estava completamente
vesse preparado para o embate! É que incêndios, muitas
amadurecido. A virtude, na realidade, não é um dom da
cidades os têm sofrido, mas nenhuma ficou totalmente
45 natureza: ser bom necessita estudo. Eles não iam procurar arrasada. Mesmo quando exércitos inimigos lançam fogo
nas entranhas da terra o ouro, à prata ou as pedras pre- às habitações, muitos lugares há em que as chamas não
ciosas; eram compassivos para com os animais; vinham pegam; e embora por vezes se reatem, raramente devo-
ainda longe os tempos em que o homem mata o seu ram tudo de modo a não deixar às armas a conclusão da
semelhante não num impulso de cólera ou de medo, mas tarefa! Terramotos - também dificilmente terá havido
apenas para gozar o espectáculo! Não usavam vestes bor- algum tão intenso e destruidor que arrasasse cidades intei-
dadas, não faziam tecidos em fio de ouro, pois nem sequer ras. Nunca, enfim, uma cidade foi pasto de um incêndio
46 extraíam o ouro. Quer isto dizer que eles eram inocentes tão violento que não sobejasse uma parte para o incêndio
por mera ignorância; 'Ora há grande diferença entre a seguinte. Em Lião, uma única noite deitou por terra inú- 2
ignorância do mal e a vontade de o evitar. Esses homens meros edifícios monumentais, tais que cada um só por si
não conheciam a justiça, não conheciam a prudência, nem faria o orgulho de muitas cidades; em plena paz, Lião
sofreu mais destruições do que teria sofrido no meio da
a moderação, nem a coragem. A sua vida rude tinha algo
guerra. Quem acreditaria em tal? Por todo o lado as armas
de semelhante com estas virtudes. A virtude autêntica,
mantêm-se tranquilas, o mundo inteiro goza a mais com-
porém, só é possível a uma alma instruída, cultivada, uma
pleta segurança - e de Lião, há pouco o orgulho da
alma que atingiu o mais alto nível através de uma contí- Gália, nem sequer se encontra o sítio! A todos os homens
nua exercitação. Tendemos para este nível, mas não o que a fortuna espectacularmente tem vitimado, deixou-lhes
temos já de nascença; mesmo nos homens melhores, antes um certo espaço de tempo para encararem com apreensão
da iniciação filosófica, se pode haver matéria-prima para a a aproximação da desgraça; nenhuma calamidade houve
virtude, não existe ainda a virtude. que não tivesse levado algum tempo a consumar-se. No

454 455
caso de Lião, apenas uma noite separou a cidade esplen- o mais digno e honesto dos cidadãos pode ser condenado,
dorosa da cidade inexistente! Numa palavra, a cidade foi uma desordem pode vitimar mesmo os de vida mais reti-
aniquilada em menos tempo do que eu levo a contar-te! rada; o acaso escolhe sempre um atalho inesperado para
3 Todos estes factores perturbam o espírito do nosso mostrar toda a sua força aos homens que fazem por
Liberal, ele que, em relação à sua situação pessoal, mostra esquecer-se dele. Todo o património acumulado ao longo 6
sempre a máxima firmeza de ânimo. Convenhamos que de anos e anos de esforço, sob a protecção da contínua
há motivos para ele se deixar perturbar: desgraça inespera- benevolência divina, pode ser destruído e dissipado num
da é mais difícil de suportar! Além disso, o próprio único dia. E ao dizer "um único dia" já estamos a dar um
ineditismo torna as calamidades mais dolorosas, pelo que, grande prazo à aproximação do infortúnio: uma hora, um
se o espanto ante a catástrofe já é enorme, a dor conse- mero instante chega para derrubar um império! Seria um
4 quente é ainda maior. Por isso mesmo nós, estóicos, nunca certo alívio para a nossa fragilidade e para a de todas as
nos devemos deixar apanhar de improviso. O nosso espírito obras do homem, se tudo levasse tanto tempo a ruir
deve prever todas as circunstâncias, deve pensar não no como levou a edificar: só que enquanto o processo de
que sucede habitualmente, mas em tudo quanto pode vir a crescimento é lento a destruição é sempre rápida! Na vida 7
suceder. Se a fortuna assim o quiser, a que não pode ela privada ou na vida pública, nada há que permaneça está-
reduzir um homem, por muito próspero que seja! E não vel: sejam homens, sejam cidades, o destino está sempre
é verdade que quanto mais uma coisa é bela e sumptuosa em mudança. O perigo pode surgir na mais pacífica das
mais a fortuna se dispõe a abatê-la? Que para a fortuna situações; mesmo sem nenhumas causas exteriores de per-
5 nada é duro e difícil? A via que ela trilha nunca é sempre turbação, o mal pode irromper donde menos se espera.
a mesma, nem sequer é muito batida: umas vezes faz de Quantos impérios, incólumes no meio de guerras, civis ou
nós mesmos os autores dos nossos males, outras, tirando externas, ruíram sem que ninguém os derrubasse! Quantas
partido dos seus recursos próprios, inventa calamidades foram, afinal, as cidades que conheceram sem perigo o seu
sem responsável directo. Nenhum momento está isento período de esplendor? Devemos ter sempre no espírito
de perigo: no meio dos prazeres originam-se as causas da estas considerações, e robustecer o ânimo contra todas as
dor! No meio da paz nasce a guerra, os instrumentos da eventualidades. Medita no exílio, na tortura, na guerra, 8
segurança transformam-se em motivos de apreensão: o nos naufrágios. Um golpe do acaso pode afastar-te da
amigo torna-se um rival, o companheiro passa a ser um . pátria, ou privar-te da pátria, pode atirar contigo para o
inimigo. A calmaria estival rebenta em tempestades súbi- deserto, pode suceder que esta cidade em que a multidão
tas, e mais violentas do que as de Inverno. Sofremos vio- mal consegue mover-se venha a tornar-se um deserto.
lências mesmo sem inimigos, e, se outros motivos não Tenhamos diante dos olhos todos os factores que deter-
houver, o próprio excesso de bem-estar nos causará qual- minam a condição humana, consideremos no nosso espí-
quer dissabor. O homem mais moderado não está imune rito não a frequência de cada factor, mas sim a intensi-
à doença, o mais robusto pode apanhar uma tuberculose, dade máxima que ele pode atingir, a menos que queiramos

456 33 457
a ruína das cidades. Elas erguem-se hoje, mas cairão qual- 12
deixar-nos abater e abrir a boca de espanto ante alguma quer dia! Será esse o fim delas todas: ou porque a força
9 desgraça menos usual como se ela fosse inédita. Devemos do ar violentamente comprimido no interior da terra, sob
pensar na fortuna - na _sua max1ma ' . f orça.'Qu~mas vez~s a pressão, faça um dia ir pelos ares o terreno que o com-
tem havido cidades, na Asia Menor ou na Acaia, que rm- prime; ou porque uma torrente rebenta impetuosa do subsolo
ram com um único sismo. Quantas praças-fortes da Síria destruindo tudo o que encontra; ou porque a violência das
ou da Macedónia não foram já devoradas pela terra! Quantas chamas provoca largas fendas no solo; ou porque a velhice,
vezes esta catástrofe não devastou já a ilha de Chipre! à qual nada escapa, as vai destruindo a pouco e pouco; ou
Quantas vezes já a ilha de Pafos não ruiu sobre si mes~a! porque o agravamento do clima faz desertar a população,
Frequentemente nos chega a notícia da destruição de etd~­ e a degradação acaba por vencer a cidade abandonada.
des inteiras ..., e nós, os destinatários dessas frequentes noti- Seria infindável enumerar todas as vias que o destino
cias, que ínfima parte somos da humanidade! Afronte~os pode seguir. Uma coisa tenho por certa: todas as obras
então com coragem as eventualidades, estejamos conscien- dos mortais estão afectadas de mortalidade; vivemos entre
tes de que, aconteça o que acontecer, não será decerto tão coisas que hão-de perecer um dia!
10 grave como a opinião pública pretende fazer crer. Ardeu Estas e outras semelhantes consolações dirijo eu ao 13
Lião, uma cidade opulenta, o orgulho da província em que nosso amigo Liberal quando o vejo dominado pelo intenso
se situava, destacando-se sobre as demais! No entanto, ela amor que devota à sua cidade natal. Talvez, afinal, ela
erguia-se sobre um único monte, e nem por isso muito tenha ardido para renascer ainda mais esplêndida! Fre-
espaçoso. De todas estas cidades esplendorosas e nobres quentemente sucede que uma calamidade dá azo a uma
de que hoje ouves falar o tempo corroerá todos os vest~­ prosperidade maior ainda: muitos edifícios arruinados res-
gios. Não vês como na Acaia até as fundações das mais surgiram mais altos do que tinham sido. Timágenes, como
ilustres cidades já estão destruídas, a ponto de nada haver inimigo da prosperidade romana, dizia que os frequentes
11 no local para indicar que elas existiram algum dia? Mas incêndios em Roma só o afligiam por saber que a cidade
não são apenas as obras do homem que perecem, não são renascia ainda maior das próprias cinzas! Quanto à cidade 14
I'
somente os edifícios erguidos pela técnica e pelo talento de Lião, é natural que todos os cidadãos se venham a
humanos que a passagem do tempo deita por terra: os empenhar ao máximo para que a cidade agora perdida se
cumes dos montes desgastam-se, regiões inteiras afundam-se, 1 reerga maior e mais nobre do que foi. Oxalá ela possa
encontram-se cobertas pelas ondas zonas que ficavam longe perdurar e assentar sob melhores auspícios em fundações
da vista do mar; a força intensa do fogo corrói as colinas que desafiem o tempo! De resto, a colónia de Lião foi
onde se ateou, e reduz a nada picos outrora bem altos :__ fundada há somente cerca de cem anos, período de tempo
que até serviam aos marinheiros de consoladores pontos exíguo, mesmo à escala humana. Instituída por Planco,
de referência. As próprias obras da natureza estão sujeitas ficou devendo a sua população actual à excelência da situa-
à destruição: mais um motivo para aceitarmos sem perturbação ção geográfica; e, no entanto, quantas calamidades gravís-

458 459
simas a atingiram no breve espaço de tempo que um pois como pode alguém ser Grande dentro de tão estreitos
15 homem leva da infância à velhice! Que a nossa alma, por- limites?!... A matéria que lhe davam a estudar era compli-
tanto, se habitue a entender e a suportar o seu destino, a cada e exigia um grande esforço de atenção para ser assi"
saber que nada é interdito à fortuna, que esta tanto se milada, ou seja, estava para além das capacidades de um
abate sobre os impérios como sobre os imperadores, que homem nervoso que só pensava em conquistar para lá
tanto poder tem sobre as cidades como sobre os homens. dos oceanos! Disse Alexandre ao mestre: "Ensina-me uma
E não devemos indignar-nos contra as desgraças: nós matéria fácil!", ao que o outro respondeu: "Esta matéria é
entramos num mundo que se rege precisamente por esta igual para todos, e para todos igualmente difícil." Imagina 18
lei. Se a lei te agrada, obedece-lhe; se não, sai deste mundo que a natureza nos fala deste modo: "Estas leis de que te
pelo processo que quiseres! Indigna-te, sim, com alguma queixas são as mesmas para todos os homens; não as
iniquidade que o destino te tenha feito somente a ti; mas posso tornar mais fáceis de aceitar por quem quer que
as leis que regem o mundo constrangem tanto os grandes seja, mas quem quer que seja as pode tornar, se quiser,
como os humildes, e por isso deverás reconciliar-te com o mais fáceis de aceitar por si próprio." Sabes como? Com
16 destino: ele dará solução a tudo! Não deves avaliar os calma e paciência. Como homem, estás sujeito à dor, à
homens pelos túmulos, pelos monumentos fúnebres que, sede, à fome, à velhice (no caso de te calhar em sorte
uns maiores outros menores, se erguem ao longo das uma mais prolongada demora neste mundo), à doença;
estradas: reduzidos a cinzas, todos os homens são iguais. estás sujeito a perder os bens, a perder a vida. Mas não 19
Desiguais no nascimento, todos somos iguais na morte. E há razão para acreditares nos clamores que ouves à tua
o que digo dos cidadãos igualmente direi das cidades: tanto volta: nenhuma destas coisas é em si um mal, nenhuma é
foi conquistada Árdea como Roma! O criador da condição insuportável ou terrível. É a opinião pública que nos faz
humana somente nos torna diferentes, em função do nas- sentir medo diante delas. Tu receias a morte, tal como
cimento ou da glória do nome, enquanto somos vivos; receias os boatos: há coisa mais ridícula do que ver um
quando chegarmos ao termo da existência, ele dir-nos-á: homem com medo... de palavras? O filósofo Demétrio
"Vai-te, ambição! Idêntica há-de ser a lei para todos os costumava dizer, com humor, que tanta importância dava
seres que pisam a terra!" Todos somos iguais perante a aos clamores dos insensatos como aos ruídos que produzi-
sorte comum: nenhum homem é mais frágil do que outro mos no baixo ventre!... "Que diferença me faz"- dizia ele
qualquer, nenhum pode estar mais seguro do que lhe "que o som saia por cima ou por baixo?!" Que loucura 20
reserva o amanhã! temer que gente indigna propale indignidades sobre nós!
17 Alexandre, rei da Macedónia, começou a estudar geo- E se não há razões para temer os boatos, também não as
grafia, pobre homem!, apenas para ficar sabendo como era há para sentir medo por coisas que só receamos em função
exíguo este planeta de que ele somente ocupava uma dimi- dos boatos que sobre elas ocorrem. Em que podem boatos
nuta parcela. E chamo-lhe "pobre homem" porque ele injustos lesar um homem de bem? Não deixemos, pois, 21
devia ter ficado a perceber como era falso o seu cognome: que a má opinião que se faz da morte nos leve a julgar

460 461
mal dela. As pessoas que falam mal da morte ainda a não começariam a ter ascendente sobre nós coisas que nos são
experimentaram, e condenar o que não se conhece é pelo exteriores. Haverá alguém que deseje estar na dependência
menos ousadia. Tu sabes, afinal, como muita gente há a da fortuna? Qual o homem de bom senso que se envaidece
quem a morte pode ser útil, quanta gente há a quem ela do que lhe não pertence? A felicidade não é mais do que 3
liberta das aflições, da miséria, das angústias, dos suplícios, a segurança e a tranquilidade permanentes. Quem no-las
do tédio. Não existe ninguém que possa ter poder sobre proporciona é a grandeza de alma, bem como a constante
nós quando temos a morte sob o nosso poder! perseverança na correcção das nossas ideias. Os meios de
atingir este estado estão na plena consideração da verdade;
em observarmos sempre nas nossas acções a ordem, a
92 moderação, a moralidade, a inocência e a benevolência de
1 Creio que estaremos ambos de acordo em que é para uma vontade sempre atenta à razão, nunca desta se
proveito do corpo que procuramos os bens exteriores; em apartando, digna ao mesmo tempo de amor e de admira-
que apenas cuidamos do corpo para benefício da alma, e ção. Resumamos tudo isto numa fórmula sintética: a alma
em que na alma há uma parte meramente auxiliar - a do sábio deve ser tal qual a que conviria a um deus! Que 4
que nos assegura a locomoção e a alimentação - da qual mais pode desejar um homem que alcançou a perfeição
dispomos tão somente para serviço do elemento essencial. moral? Repara: se a plenitude do homem pode de algum
No elemento essencial da alma há uma parte irracional e modo ser favorecida por elementos à margem da moralida-
outra racional; a primeira está ao serviço da segunda; esta de, então a felicidade dependerá desses elementos sem os
não tem qualquer ponto de referência além de si própria, quais não pode passar. Há coisa mais abjecta e estúpida
pelo contrário, serve ela de ponto de referência a tudo. do que fazer depender de elementos irracionais o bem
Também a razão divina governa tudo quanto existe sem a próprio da alma racional?
nada estar sujeita; o mesmo se passa com a nossa razão, Certos pensadores admitem que o bem supremo é 5
que, aliás, provém daquela. susceptível de acréscimo, pois, dizem, não atingirá a pleni-
2 Se estamos de acordo neste ponto, estaremos necessa- tude se as circunstâncias exteriores forem adversas. O pró-
riamente também de acordo em que a nossa felicidade depen- prio Antípatro - aliás, um dos grandes mestres da nossa
de exclusivamente de termos em nós uma razão perfeita, escola - afirma atribuir certo valor, embora diminuto,
pois apenas esta impede em nós o abatimento e resiste à aos factores externos. Estás a ver a situação : é como se,
fortuna; seja qual for a sua situação, ela manter-se-á imper- não contentes com a luz do dia, precisássemos de acender
turbável. O único bem autêntico é aquele que nunca se uma vela! Mas perante a claridade do sol que relevância
deteriora. O homem feliz, insisto, é aquele que nenhuma tem uma pequena chama? Quem se não contenta apenas 6
circunstância inferioriza; que permanece no cume sem outro com o bem moral terá forçosamente de lhe pôr ao lado
apoio além de si mesmo, pois quem se sustenta com o ou o sossego - a dox'A.17aía, (aokhlêsia) como dizem os
auxílio dos outros está sujeito a cair. Se assim não fosse, gregos, - ou o prazer. O primeiro, em boa verdade, pode

462 463
aceitar-se: a alma, livre do que seja importuno, pode A Cila, contudo, estão associados animais ferozes, terríveis,
consagrar-se à observação do universo sem nada que a plenos de excitação. Mas a sabedoria dos epicuristas, de
distraia da contemplação da natureza. Quanto ao segundo, que monstruosidades eles a formaram! A parte fundamen- 10
o prazer, é um bem digno de animais! Significa pôr ao tal do homem é a virtude em si mesma; por companhia foi-
lado do racional o irracional, da moralidade a imoralidade, -lhe dado este corpo inútil e transitório que apenas serve,
da grandeza a pequenez! Então é a satisfação do corpo como diz Posidónio, para a ingestão de alimentos. A vir-
7 que dá a felicidade? Já agora, porque não acrescentais que, tude, em si mesma divina, termina em lamaçal; à sua
se o paladar está satisfeito, tanto basta para o homem parte respeitável e celeste acrescenta-se um animal inerte
estar satisfeito? A um tal ser, cujo supremo bem consiste e apodrecido! O sossego, em todo o caso, se em si de
nos sabores, nas cores e nos sons, podemos contá-lo, já nada servia à alma, pelo menos afastava os obstáculos; o
não digo entre os homens a sério, mas no número dos prazer vai mais longe: debilita a alma, rouba-lhe toda a
seres humanos? Expulsemos tal criatura do número dos energia. Que combinação mais díspar de elementos se
seres mais perfeitos e apenas inferiores aos deuses; relegue- poderia inventar ? Ao lado do máximo vigor coloca-se a
mo-la para o meio das bestas para quem a comida é maior indolência, da maior austeridade a falta de serie-
8 tudo! A parte irracional da alma consta de duas partes: dade, da maior pureza a intemperança capaz de ir até ao
uma excitável, ambiciosa, impetuosa, toda entregue às pai- incesto!
xões; outra rasteira, indolente, consagrada aos prazeres. Os "Que pretendes dizer?" - objectar-me-ão. - "Tu não 11
epicuristas puseram de lado a primeira, a parte da impe- desejas gozar de boa saúde, de sossego, de ausência de
tuosidade, apesar de superior, ou pelo menos mais dotada sofrimento, se isso te não impedir de alcançar a virtude?"
de energia, mais digna do homem; e consideraram essen- Claro que desejo, mas não porque sejam bens em si
9 cial à felicidade a outra, que é débil e abjecta ! Puseram ao mesmos, e sim porque são conformes à natureza e porque
serviço desta a razão; rebaixaram e desvirtuaram o supremo eu os emprego com discernimento. O que neles há de
bem do mais nobre dos seres vivos, fizeram dele uma bom é apenas isto : serem criteriosamente escolhidos. Se
mistura monstruosa de elementos díspares e incongruentes eu visto uma roupa decente, se passeio sem ademanes, se
entre si. Vem-nos à memória o retrato que Vergílio faz janto com conta e medida, o meu jantar, o meu passeio
de Cila: ou a minha roupa não são bens por si mesmos; o bem
está apenas na minha intenção em relação a eles, na
"tem forma humana o seu corpo, donzela de
minha capacidade de manter em qualquer ocasião a plena
peito formoso até à cinta, depois torna-se
conformidade com a razão. Digo-te mais; a escolha de 12
monstro gigantesco unindo caudas de golfinho
roupa limpa é algo próprio do homem, pois o homem é,
ao ventre eriçado de lobos!" i1i
por natureza, um animal limpo e cuidado. Não é, por-
tanto, a roupa limpa mas sim a escolha de uma roupa
11
Vergílio, Aen., Ili, 423-8. limpa que é um bem em si, já que o bem não está na

464 465
coisa, mas na qualidade da nossa escolha; a moralidade
está na nossa forma de agir, não no acto concreto que contrariedades o não reduz à infelicidade, também a
13 praticamos. E fica sabendo que o mesmo que disse da carência de vantagens o não afasta da suma felicidade;
roupa direi também do nosso corpo. O corpo é como tanto será sumamente feliz sem vantagens como, mesmo
uma vestimenta dada à alma pela natureza, é como um sob o peso da adversidade, se não sente desgraçado. Ou
véu que a rodeia. Quem é que alguma vez apreciou os tra- então, se o sumo bem pode sofrer decréscimo, também
jos em função do valor da arca? Não é a bainha que faz poderá ser-lhe arrancado! Dizia eu, há pouco, que a chama 17
a espada boa ou má. O mesmo te digo, portanto, a res- de uma vela nada acrescenta à luz do sol, pois a claridade
peito do corpo: se me for dada a escolha, preferirei a deste faz desaparecer toda a luz que, sem ela, seria visível.
saúde e a robustez física; mas o bem está no meu discer- ·"Há coisas" - dir-me-ão - "que podem fazer barreira ao
nimento ao escolher, e não no objecto da escolha. sol." Só que o sol permanece tal qual é mesmo diante das
14 Outra objecção: "É certo que o sábio é feliz; no entanto, barreiras; ainda que algo se interponha e nos impeça de
ele não atingirá o supremo bem caso as suas condições vê-lo, nem assim ele deixará de brilhar e seguir o seu
naturais o não favoreçam. Quem possui a virtude é certo curso. Quando ele luz atrás das nuvens não é menos
que não é desgraçado; mas não pode ser maximamente intenso nem anda mais devagar do que quando o céu está
feliz quem for privado de certos bens naturais como a limpo; há uma grande diferença entre meter-se apenas à
15 saúde e a integridade física." Vós, epicuristas, aceitais o frente ou impedir mesmo a passagem. Semelhantemente, 18
que pareceria ser mais duro de aceitar: que um homem o que se mete à frente da virtude em nada a diminui; ela
não é desgraçado, e pode até ser feliz, mesmo sujeito a não será menor, conquanto possa brilhar menos. Talvez
intensas e prolongadas dores; mas recusais o mais fácil: ela não seja tão evidente e nítida à nossa vista, mas per-
que esse homem possa ser sumamente feliz. Ora, se a vir- manece idêntica perante si mesma e, tal como o sol obs-
tude pode conseguir que um homem não seja desgraçado, curecido por algum obstáculo, continua a agir. Ou seja,
mais facilmente conseguirá que seja sumamente feliz; vai contra a virtude têm os infortúnios, os sofrimentos e as
menos distância da felicidade à máxima felicidade do que injúrias tanto poder como a névoa contra o sol!
da desgraça à felicidade. Então uma coisa que é capaz de Há também quem diga que o sábio, se tiver um corpo 19
pôr no número dos felizes um homem esmagado por mil pouco robusto, não é nem desgraçado nem feliz. Também
calamidades não conseguirá fazer o pouco que resta: fazê-lo esta posição é errada, já que coloca o acaso ao nível da
sumamente feliz? Faltar-lhe-ão as forças mesmo no fim virtude, e tanta relevância dá à moralidade como ao que
da subida? Na vida há coisas vantajosas e coisas desvanta- de moralidade carece. Pode encontrar-se algo de mais
16 josas; umas e outras não dependem de nós. Se um homem repelente e indigno do que equiparar o que merece res-
de bem não é desgraçado mesmo que oprimido por todas peito e o que merece desprezo? Dignas de respeito são a
as adversidades, como não será sumamente feliz só por justiça, a piedade, a coragem, a sabedoria; desprezíveis são,
carecer de uma ou outra vantagem? Tal como o peso das pelo contrário, coisas como a robustez das pernas, a soli-
dez dos músculos, a saúde e firmeza dos dentes - tudo
466
467
razão alguém que começa a escorregar por um barranco
coisas, que muito frequentemente se encontram entre os há-de parar num ponto qualquer? Se alguma circunstância
20 homens mais vis. De resto, se um sábio de corpo enfer- há que lhe não permita resvalar até ao fundo, então conser-
. miço não for considerado nem desgraçado nem feliz, mas vá-lo-á lá no cimo. A felicidade não pode ser interrom-
lhe atribuirmos como que um estado intermédio, seguir- pida, nem pode sequer diminuir de intensidade, por isso
-se-á que a sua vida não suscita nem emulação nem repulsa. mesmo a virtude, só por si, chega para a obtermos.
O que há de mais absurdo do que isto: a vida do sábio Venha outra objecção. "Como é isso? Então um sábio 24
não suscitar emulação? Ou o que há de tão inconcebível que tenha tido uma vida mais longa, que nunca tenha
como uma forma de vida que não suscita nem emulação sido incomodado pela dor, não é mais feliz do que outro
nem repulsa? Aliás, se os defeitos físicos não tornam um que tenha estado sempre em luta com a adversidade?"
homem desgraçado, não o impedem de ser feliz, porquanto Vejamos : ele foi melhor por isso, a sua moralidade foi
quem não tem poder para reduzir alguém a uma condição superior? Se tal não foi o caso, então também não foi
inferior também o não terá para pôr em questão a melhor mais feliz. Para termos uma vida mais feliz é necessário
possível das condições. viver com maior rectidão; se não é possível aumentar a
21 Contra-argumento;"Todos sabemos o que é o frio e o rectidão, é impossível também aumentar a felicidade. A
calor, bem como o estado intermédio a que chamamos virtude não é passível de gradações; logo, também a feli-
'morno~· do mesmo modo, há homens que são felizes, cidade o não é, porquanto da virtude provém. A virtude é
outros que são desgraçados e outros que não são felizes um bem tal que nem dá conta dos insignificantes aciden-
nem desgraçados". Vamos lá discutir o exemplo que nos é tes que são a brevidade da vida, a dor, as várias enfermi-
proposto. Se se aumentar a dose de frio a um objecto dades físicas; o prazer não é coisa para que a virtude se
morno, esse objecto torna-se frio; se se lhe aumentar o digne sequer olhar. O mais importante na virtude é a sua 25
calor, acabará por tornar-se quente. Mas um homem nem independência em relação ao futuro, a sua indiferença pelo
desgraçado nem feliz, por mais que aumente a sua des- cômputo dos dias. Por breve que seja o tempo ao seu
graça, nunca se tornará desgraçado, como vós mesmo dispor, ela leva à perfeição os bens eternos. Isto pode
22 admitis; logo, a analogia é irrelevante. Consideremos um parecer-nos inconcebível, como algo que excede a natureza
homem nem desgraçado nem feliz. Aos seus males junta a humana; na realidade, medimos a majestade da virtude
cegueira: não se torna desgraçado por isso. Junta a falta de pela nossa própria debilidade, e atribuimos falsamente o
forças: não se torna desgraçado por isso. Junta dores con- nome de virtude aos nossos vícios. Pois quê? Não nos
dnuas e intensas: não se torna desgraçado por isso. Se parece igualmente inconcebível que um homem sujeito aos
tantos males não o podem reduzir à infelicidade também maiores padecimentos possa exclamar: "Sou feliz!"? E no
23 o não podem privar da felicidade. Se, conforme dizeis, o entanto estas palavras foram ouvidas no próprio laborató-
sábio não pode, de feliz que era, transformar-se em des- rio do prazer! "Este é o meu dia mais feliz, o meu último
graçado, não poderá ser também "não feliz"! Por que dia, também!" - exclamou Epicuro no meio dos tormentos

468 469
que lhe causavam a sua dificuldade em urinar e as dores arrependimentos; mas um homem assim impedeito con-
26 insuportáveis no abdómen ulcerado 15 • Porquê então achar servará em si um resto de maldade, na medida em que
inconcebível tal atitude entre os estóicos - que praticam tem uma alma instável, propensa ao mal embora não se
o culto da virtude - , se ela se encontra também entre os trate de uma maldade cristalizada e inamovível. Não é
epicuristas - para quem o bem supremo é o prazer? ! ainda um homem de bem, está-se formando para o bem;
Até estes, apesar de degenerados e de tão baixos ideais, todavia, todo aquele a quem falta algo para ser bom, é
sustentam que o sábio, mesmo no meio das maiores dores, mau. Mas
dos maiores infortúnios, nunca será nem desgraçado nem 30
"quem tenha dentro de si a virtude e o ânimo" 16
feliz. Aqui está o que se me afigura inconcebível, muito
mais inconcebível mesmo; não consigo entender como é equipara-se aos deuses e, lembrado das suas origens, tende
que a virtude, uma vez removida das suas alturas, conse- a ir para junto deles. Não há qualquer insolência em ten-
gue não resvalar até ao mais baixo nível. Das duas uma: tarmos subir ao lugar donde descemos. E de resto, porque
ou a virtude torna o homem feliz, ou então, se lhe for não admitir que há algo de divino num ser que é parte
recusada essa possibilidade, não o consegue impedir de ser integrante da divindade? Todo este universo que nos rodeia
desgraçado. O seu combate não admite complacências: ou é uno, e é Deus. Nós somos participantes dele, somos
vence, ou é vencida! como que os seus membros. A nossa alma tem capacidade
27 "Somente os deuses imortais" - contestam - "têm bastante para se elevar até à divindade desde que os vícios
acesso à virtude e à felicidade; a nós não nos cabe mais a não deitem por terra. Tal como a estrutura do nosso
do que uma sombra, um simulacro de tais bens. Apenas corpo está organizada para se erguer em direcção ao céu,
também a nossa alma - que tem a capacidade para abar-
podemos aproximar-nos deles, nunca alcançá-los." Na rea-
car tudo quanto queira! - foi formada pela natureza com
lidade, a razão é comum aos deuses e aos homens; naque-
a finalidade de conformar os seus propósitos aos dos deu-
les atingiu a perfeição, nestes é susceptível de a atingir.
ses. E se porventura usar plenamente as suas forças e se
28 São os nossos vícios que nos conduzem ao desespero. Esse
expandir pelo seu espaço próprio, atingirá a plenitude
outro tipo de homem é como alguém de segundo plano seguindo uma via que lhe não é estranha. Seria necessário
- observador pouco constante dos mais altos princípios, grande esforço para subir ao céu, mas para a alma é um
cujo discernimento está ainda sujeito ao erro e à incerteza. regresso. Desde o momento em que enverede por este 31
Opte à sua vontade pela acuidade dos olhos e dos ouvidos, caminho, ela avança intrepidamente sem dar importância
pela saúde, por um aspecto físico agradável e também por
chegar em perfeito estado ao termo de uma vida bem
16
29 longa. Poderá levar-se assim uma vida que não dê lugar a Vergílio, Aen., V, 363. - Uma vez mais, a ciração não é inteiramente
correcta: Vergílio escreveu in pectore ("no peito, no coração"), Séneca citou in
corpore ("no corpo"). A tradução proposta - dentro de ri - vale para os dois
casos, pois não nos parece que a divergência se deva a mais do que um vulgar
11 lapso de memória de Séneca.
Cf. supra carta 66, 47.

470 471
rr .-.. • h
a nada mais, sem ligar ao que se compra e vende, sem presa entregue aos caes mann os, nl7
avaliar o ouro ou a prata - metais bem dignos das tre- que importa isso para quem deixou esta vida? Mesmo 35
vas em que estavam encerrados! - pelo brilho que reves-
quando ainda está entre os homens, o sábio não receará
tem aos olhos dos insensatos, mas sim de acordo com a
as ameaças que para além da morte lhe façam todos aque-
lama donde os foi arrancar e desenterrar a ambição huma-
les que acham pouco inspirar terror até ao momento da
na. A alma sabe, insisto, que as verdadeiras riquezas não
morte. "Nada me assusta," - dirá ele - "o gancho igno-
se encontram onde nós as amontoamos: é a alma que nós minioso ou a imagem, repugnante para quem a contem-
32 devemos encher, não o cofre! Àquela devemos nós conce- plar, do meu cadáver exposto e dilacerado. 18 Não peço a
der o domínio sobre tudo, atribuir a posse da natureza ninguém que me preste os últimos deveres, nem encar-
inteira de modo a que os seus limites coincidam com o rego ninguém de cuidar dos meus restos. A natureza pro-
oriente e o ocaso, a que a alma, identicamente aos deuses, videnciou para que ninguém ficasse sem sepultura: o tempo
tudo possua, olhando soberanamente do alto os ricos e as sepultará todo o corpo que a crueldade humana deixar ao
suas riquezas - esses ricos a quem menos alegria pro- abandono." Mecenas afirmou expressivamente:
porciona o que têm do que tristeza lhes dá o que aos
"Não quero saber de túmulos; a natureza
33 outros pertence! Quando se eleva a tais alturas, a alma
sepulta os abandonados!" 19
passa a cu,idar do corpo (esse mal necessário!), não como
amigo fiel, mas apenas como tutor, sem se submeter à A julgar por estas palavras, tomá-lo-íamos por um homem
vontade de quem está sob sua tutela. Ninguém pode simultanea- corajosamente pronto para a luta; 20 e, de facto, tempo
mente ser livre e escravo do corpo; para já não falar de houve em que ele .mostrou ter um ânimo forte e viril.
outras tiranias que o excessivo cuidado com ele nos impõe, Pena foi que a prosperidade lhe tiv_esse roubado as armas ! 21
a soberania do corpo tem exigências que são autênticos
34 caprichos. A alma desprende-se dele ora com serenidade,
ora de firme propósito - busca a sua saída sem se impor-
tar com a sorte dessa pobre coisa que para aí fica! Nós
não ligamos importância aos pêlos da barba ou aos cabe-
los que acabámos de cortar; do mesmo modo, à nossa
17
alma divina, ao preparar-se para abandonar o corpo, de Vergílio, Aen., IX, 485.
18
Imagem tirada dos jogos do circo; o "gancho ignominioso'" servia para
nada importa a sorte dada ao seu invólucro - se o fogo arrastar os corpos dos gladiadores morros na arena.
o consome, se a terra o cobre ou as feras o despedaçam; 19
Mecenas, fr. 6 Lunderstedt.
20
para ela, isso tem tanta importância como para o recém- Lit. "um homem que tem o cinto bem apertado'" de modo a erguer as
roupas e facilitar os movimentos, para a corrida ou para a luta (a/te cinctum).
-nascido a placenta. Que o corpo abandonado sirva de 21
A mesma imagem, lit. "lhe tivesse desapertado o cinto'" deixando, por-
pasto às aves ou vá ser consumido como tanto, que as vestes soltas o incapacitassem de lutar.

472 34 473
LIVRO XV

(Cartas 93-95)

93
Na carta em que lamentavas a morte do filósofo Metro- 1
nacte - como se ele tivesse podido, ou devido, viver
mais tempo! - verifiquei a ausência daquele espírito de
equidade que possuis em abundância em relação a todas as
pessoas e a todas as actividades, mas que te falta precisa-
mente no mesmo ponto em que toda a gente claudica:
tenho encontrado muitos que sabem ser justos para com
os homens, ninguém que o seja para com os deuses. Dia-
riamente criticamos o destino: "Porque foi este homem
arrebatado a meio da carreira? E áquele, porque não morre,
em vez de prolongar uma velhice tão penosa para ele
como para os outros?" Diz-me cá, por favor: o que achas 2
tu mais justo, seres tu a obedecer à natureza ou a natu-
reza a ti? Que diferença faz sair mais ou menos depressa
de um sítio de onde temos mesmo de sair? Não nos
devemos preocupar em viver muito, mas sim em viver
plenamente; viver muito depende do destino, viver ple-
namente, da nossa própria alma. Uma vida plena é longa
quanto basta; e será plena se a alma se apropria do bem
que lhe é próprio e se apenas a si reconhece poder sobre
si mesma. Que interessam os oitenta anos daquele homem 3
passados na inacção? Ele não viveu, demorou-se nesta

475
vida; não morreu tarde, levou foi muito tempo a morrer! ser o último, pelo contrário, olhei sempre cada dia como
"Viveu oitenta anos!". O que importa é ver a partir de se fosse o derradeiro. Porque me perguntas quando é que
4 que data ele começou a morrer. "L\1as aquele outro morreu eu nasci, ou se ainda posso ser chamado às fileiras ? Tenho 7
a minha conta! Do mesmo modo que um homem de
na força da vida". É certo, mas cumpriu os deveres de um
diminuta estatura pode ser um carácter exemplar, também
bom cidadão, de um bom amigo, de um bom filho, sem
uma vida pode ser exemplar ainda que de curta duração.
descurar o mínimo pormenor; embora o seu tempo de
A idade é um factor totalmente externo. Não me cabe
vida ficasse incompleto, a sua vida atingiu a plenitude. determinar por quanto tempo vivo; está, todavia, na minha
"Viveu oitenta anos". Não, existiu durante oitenta anos, a mão viver plenamente enquanto existir. Exige de mim
menos que digas que ele viveu no mesmo sentido em que que eu não percorra, como que envolto em trevas, uma
falas na vida das árvores. Peço-te insistentemente, Lucílio: existência sem sentido, mas que realize a minha vida, em
façamos com que a nossa vida, à semelhança dos mate- vez de lhe passar ao lado. Queres saber qual a duração 8
riais preciosos, valha pouco pelo espaço que ocupa, e muito ideal da vida? Quanto baste para atingir a sabedoria.
pelo peso que tem. Avaliemo-la pelos nossos actos, não Alcançar este fim significa cortar, não a mais distante, mas
pelo tempo que dura. Queres saber qual a diferença entre a mais importante das metas. O homem que o conseguir
um homem enérgico, que despreza a fortuna, cumpre todos deve sentir-se justamente orgulhoso; deve dar graças aos
os deveres inerentes à vida humana e assim se alça ao seu deuses e, entre estes, a si mesmo; deve fazer a natureza
supremo bem, e um outro por quem simplesmente pas- sentir-se devedora por ele ter existido. E de pleno direito
sam numerosos anos? O primeiro continua a existir depois o fará, já que lhe restitui uma vida melhor do. que quando
5 da morte, o outro já estava morto antes de morrer! Lou- da natureza a recebeu. Determinou o modelo ideal de
vemos, portanto, e incluamos entre os afortunados o homem de bem, mostrou quais as suas qualidades e a sua
homem que soube usar com proveito o tempo, mesmo grandeza; se a sua vida se prolongasse continuaria igual
exíguo, que viveu. Contemplou a verdadeira luz; não foi ao que já era. E, afinal de contas, até quando pretendemos 9
um como tantos outros; não só viveu, como o fez com viver? Nós dispomos do conhecimento de todas as coisas:
vigor. Umas vezes, gozou de um céu inteiramente sereno; sabemos em que princípios se fundamenta a natureza, de
outras, conforme sucede, o fulgor do astro poderoso bri- que modo mantém ordenado o universo, qual o ciclo das
lhou através das nuvens. Porquê perguntar quanto tempo estações do ano, de que modo compreende dentro dos
viveu? Viveu! Transpôs a barreira do tempo e fixou-se na limites de si mesma todos os fenómenos que alguma vez
6 memória da posteridade. Não quer isto dizer que eu vá hão-de ocorrer; sabemos que os astros se movem pela sua
1
recusar, sem mais, alguns anos de vida que ainda me cai- própria energia, que nenhum está fixo a não ser a Terra ,
bam; contudo, se o curso da minha existência for que-
brado, não direi que me faltou tempo para alcançar a feli- 1
Que a estabilidade da terra (geocentrismo) era uma teoria pelo menos
cidade. A verdade é que não me preparei em função de contestável prova-o a discussão de Séneca acerca dos comeras no liv. VII das
um certo dia que a minha esperança ávida me prometesse Naturales Quaestiones (v. por ex. o cap. II).

476 477
enquanto os restantes se deslocam a ·velocidade uniforme; ser degolados no espoliário a sê-lo na arena? Não, é maior
sabemos de que forma a Lua deixa para trás o Sol, por o intervalo que nos separa uns dos outros. A morte atinge
que razão ela, que é mais lenta, deixa atrás de si um astro todos; o criminoso segue atrás da vítima. É uma ínfima
mais veloz, sabemos de que modo ela recebe ou perde a fracção de tempo essa por que as pessoas tanto se angus-
sua luminosidade, qual a causa que origina a noite e qual tiam. E, afinal, que importância tem o tempo que se leva
a que traz de volta o dia. Só nos resta ir para um ponto a tentar evitar o inevitável? !
donde se possam contemplar mais de perto estes fenóme-
10 nos. Dirá, no entanto, o sábio: rrNão é a esperança de,
segundo penso, ter aberto o caminho para junto da f amí-
94
lia divina, que é a minha, que me faz deixar mais corajo- Aquela parte da filosofia que proporciona os conselhos 1
samente esta vida. Estou certo de ter merecido juntar-me adequados a cada indivíduo e se destina, portanto, não à
aos deuses, já estive mesmo entre eles; a minha mente já formação do homem em geral 3, mas sim, por exemplo, a
os visitou, como a deles me visitou a mim. Mas mesmo indicar ao marido como comportar-se em relação à mulher,
imaginando que a destruição é total, e que depois da morte ao pai como educar os filhos, ao senhor como dirigir os
nada mais resta do homem, a minha energia permanecerá escravos, houve filósofos que a aceitaram como única e
idêntica, ainda que daqui saia para não chegar a parte exclusiva, pondo de lado todas as outras partes a pretexto
11 alguma!" Não viveu tantos anos quantos poderia ter vivido. de que elas não oferecem qualquer utilidade prática. Como
Um volume, todavia, pode ter poucas linhas sem deixar se fosse possível alguém ministrar preceitos sobre uma
de ser apreciável e útil; quanto aos Anais de Tanúsio 2, questão particular sem ter em vista toda a .complexidade
sabes bem quanto eles pesam e por que nome são conhe- da vida humana.
cidos! A longa vida de certas pessoas merece precisamente Aríston, o estóico, pelo contrário, considera esta parte 2
12 o mesmo epíteto que os Anais de Tanúsio. Pensas que é sem interesse, incapaz de nos penetrar até ao mais íntimo,
mais feliz o gladiador morto no último minuto dos jogos mera soma de conselhos de velhos. O que tem importân-
do que o que caiu a meio do espectáculo? Achas que estes cia real são os princípios básicos da filosofia, é a definição
homens são tão estupidamente apegados à vida que prefiram completa do sumo bem. Quem tiver assimilado capazmente
tais princípios, diz ele, será capaz de deliberar por si pró-
prio o que fazer em cada situação. Quem aprende a lançar 3
' Tanúsio (Tanusius Geminus) é um historiador mencionado por Suetónio
o dardo, compenetra-se bem do alvo a atingir, exercita o
em Diuus Julius, IX. Catulo, em 36, 1, menciona os annales Volusi, cacata carta!
A expressão de Séneca ("por que nome são conhecidos") é uma reminiscência
nírida de cacata carta do poema de Catulo. Conforme nota C J Fordyce (Catul-
lus, a commentary by.. ., Oxford, 1961, pp. 179-80), a semelhança dos nomes ' A moral prática, que ministra conselhos (praecepta), em grego rrapmvE-
(Tanúsio, Volúsio) deve ter levado alguém a verrinosamenre aplicar à obra de J
\,'
nKfi (parenética), por oposição à moral teórica (ôoyµanKf/, dogmática) que
Tanúsio o epírero dado por Catulo aos Anais de Volúsio. estabelece os princípios de base (decreta).

478 479
braço para lançar com pontaria e quando, na teoria e na possível isso no caso de ele continuar na miséria? Indica-se
prática, tiver atingido .essa habilidade, poderá usá-la para a um esfomeado a actuação própria de um homem saciado:
acertar onde quiser (porquanto se treinou para acertar não melhor seria que o libertássemos da fome que o ator-
neste ou naquele alvo, mas sim em qualquer um); do menta. O mesmo se dirá de todos os outros vícios: o que
mesmo modo, quem aprende a conduzir-se em todos os importa é eliminar os próprios vícios, e não ensinar um
aspectos da vida não carece de preceitos particulares, por- comportamento impossível enquanto eles persistirem. A
quanto está apto em qualquer situação, não a lidar, por menos que eliminemos as falsas opiniões que nos indu-
exemplo, com a mulher ou o filho, mas sim a viver zem em erro, não conseguiremos que um avaro aprenda a
segundo o bem; e "viver segundo o bem" já compreende usar correctamente o dinheiro, ou um medroso consiga
o modo de viver com a mulher e os filhos. desprezar o perigo. O que interessa é fazer compreender 7
4 Geantes, por seu lado, considera útil esta parte da ao primeiro que a riqueza nem é um bem nem é um
filosofia, mas incompleta se não for derivada da teoria mal; demonstrar-lhe que os ricos são, afinal, uns miserá-
geral, isto é, se ignorar os princípios básicos e as questões veis; fazer compreender ao segundo que aquilo de que
fundamentais da filosofia. habitualmente se tem medo não é tão temível quanto se
O problema da parenética divide-se, portanto, em duas julga, que a dor não dura sempre, que não se morre mais
questões : ela é útil ou inútil? É por si só capaz de formar do que uma vez; que a morte, à qual a lei natural nos
o homem de bem ou não? Em suma, ela é supérflua, ou, sujeita, tem este grande benefício de só nos atingir uma
pelo contrário, torna supérfluo todo o resto da filosofia? vez; que na dor nos servirá de remédio a firmeza de
5 Aqueles que a consideram supérflua argumentam deste ânimo que nos leva a suportar mais facilmente o que
modo : qualquer impureza nos olhos que impeça uma per- suportarmos com coragem; que a própria natureza da dor
feita visão deve ser removida; desde que ela permaneça, é tem isto de notável: nunca é grande uma dor prolongada,
esforço baldado aconselhar "a marchar deste ou daquele nem nunca se pode prolongar uma grande dor; que, final-
modo, a jogar a mão a isto ou àquilo". Da mesma maneira, mente, devemos aceitar com firmeza aquilo que nos é
se algo me tira a clarividência ao espírito e me impede de imposto pelas leis do universo. Quando conseguirmos que 8
discernir a hierarquia dos meus deveres, será em pura o homem, instruído nestes princípios, tenha uma dara
perda que me aconselharão "a proceder deste ou daquele noção da condição humana, quando tiver entendido que
modo com o meu pai ou a minha mulher". Os preceitos, não é feliz a vida que obedece ao prazer mas sim a que
consequentemente, de nada valem enquanto o erro persis- obedece à natureza, quando tiver passado a abraçar, como
tir na nossa mente; eliminado o erro, imediatamente tere- único bem próprio do homem, a virtude e a evitar como
mos a percepção nítida dos nossos deveres. Proceder de único mal o vício, quando tiver percebido que tudo o mais
outro modo equivale a aconselhar um· doente a actuar - riquezas, honras, saúde, força, poder - ocupa uma
como um homem saudável mas sem lhe restituir a saúde. posição intermédia, sem ser, em si mesmo, nem um bem
6 Ensina-se um pobre a agir como se fosse rico: como é nem um mal, então ele não precisará de conselheiro para,

480 481
em cada situação, lhe dizer: "deves andar deste modo, de ser. Pergunto eu : os preceitos são necessanos a quem 12
deves jantar daquele; esta é a actuação correcta de um possui uma opinião correcta sobre o bem e o mal, ou a
homem, de uma mulher, de um casado ou de um sol- quem não a possui? Quem a não possui nada beneficiará
9 teiro". Aqueles que com mais aplicação prodigalizam tais com os teus conselhos, já que tem às ·ouvidos atentos à
conselhos não são sequer capazes de os adaptar para si opinião do vulgo, a qual é contrária à tua. Quem já possui
mesmos. Conselhos tais dá-os o pedagogo à criança, a avó uma noção correcta do que devemos evitar e procurar,
ao neto; é todo encolerizado que o mestre-escola ensina esse sabe muito bem como há-de agir, mesmo que se lhe
que não nos devemos encolerizar! E se acaso entramos não diga nada. Toda esta parte da filosofia pode, por con-
numa escola primária encontraremos entre as frases que seguinte, ser posta de lado.
as crianças copiam estas máximas que os filósofos profe- Há duas causas que nos podem fazer cair em falta : ou 13
rem de cenho carregado! o nosso espírito enferma de qualquer vício contraído no
10 Outro ponto: vamos ministrar conselhos sobre ques- contacto com as falsas opiniões, ou então, ainda que não
tões evidentes ou duvidosas? Se são evidentes, não é pre- dominado por opiniões falsas, é propenso à falsidade e
ciso um monitor para nada, se são duvidosas, pode não se facilmente se deixa corromper por uma aparência sedutora
dar crédito ao conselheiro; logo, é supérfluo ministrar pre- mas falaz. Por isso devemos ou sanar a nossa mente
ceitos. O que eu pretendo dizer é isto: se tu indicas pre- enferma e libertá-la dos vícios, ou então, quando ela carece
ceitos sobre uma matéria obscura e controversa, terás de de ideias justas mas é propensa às falsas, actuar profilacti-
apoiar-te em algumas provas; se recorreres a provas, estas camente. Ambos estes objectivos são atingidos pelos princí-
terão maior valor que os preceitos e bastarão, portanto, só pios básicos da filosofia; logo, o método preceptivo não
por si. serve para nada. Além disso, se pretendêssemos dar pre- 14
11 "Deves tratar deste modo um amigo, um concidadão, ceitas individuais, a tarefa seriá inesgotável: haveria que
um companheiro." - "Porquê?" - "Porque é de justiça". procurar uns preceitos adequados aos prestamistas, outros
Ora todos estes casos particulares são-me proporcionados aos agricultores, outros aos comerciantes, outros aos corte-
pelo estudo do que é a "justiça": através deste verei que a sãos dos monarcas, outros àqueles que só convivem com
equidade é algo que, em si mesmo, devemos procurar, que os seus pares, ou com os seus inferiores! Para dar precei- 15
não somos coagidos a ela pelo medo nem atraídos por tos a um homem casado sobre o comportamento a ter
prémios, e que não é justo quem, na prática desta virtude, com a esposa, haveria que distinguir se ele casou com
tem outro objectivo para lá dela mesma. Se eu me tiver uma virgem ou com uma mulher já anteriormente casada,
apercebido e embebido desta verdade, se eu já souber esta com uma ricaça ou com uma mulher sem dote. A menos
lição, para que me servirão os preceitos? Ministrar precei- que se admita não haver qualquer diferença entre uma
tos a quem já conhece a teoria é supérfluo, a quem ainda mulher estéril e uma fecunda, entre uma jovem e uma
a ignora é insuficiente, porquanto não basta conhecer os mulher de certa idade, entre uma mãe e uma madras-
preceitos, é necessário saber igualmente a respectiva razão ta! Abarcar todos os casos é impossível; ora, enquanto os

482 483
casos individuais exigem um tratamento particular, os prin- isso pode restituir a vista a outros. No entanto, alguém
cípios da filosofia são breves e compreendem todos os que se liberte do vício é capaz de libertar outros também.
16 casos. Acrescente-se ainda que os preceitos da sabedoria Não são precisos incitamentos ou conselhos para que os
devem ser bem definidos, e rigorosos; se não forem bem olhos distingam as propriedades das cores; mesmo sem
definidos, então estão fora da sabedoria, já que esta é preceptor qualquer um sabe distinguir o branco do preto.
capaz de definir tudo com exactidão. Logo, a parte precep- O espírito, pelo contrário, carece de muitos preceitos até
tiva deve ser eliminada, porquanto não é capaz de pro- saber como agir na vida. O médico, aliás, não se limita a
porcionar a todos o auxílio que se propõe dar a alguns; curar os doentes dos olhos. Dirá: "Não deves expor a 20
17 ora a sabedoria diz respeito a todos. Entre a loucura do vista ainda fraca a uma luz muito intensa; deves avançar
vulgo e aquela que confiamos aos médicos só há uma
do escuro para a penumbra, depois continuar, até acabares
diferença : esta última é motivada por uma doença, a pri-
por, gradualmente, te habituar à luz do dia. Não deves
meira é causada pelas falsas opiniões; a segunda, é loucura
pôr-te a estudar logo após o jantar, não deves forçar os
motivada por uma perturbação física, a primeira consiste
olhos ainda cheios de líquido e inchados; evita receber no
numa deficiência do espírito. Se alguém for preceituar a
rosto uma corrente de ar frio'', e outros conselhos seme-
um louco como ele deve falar, andar, agir em público ou
lhantes, cuja utilidade não é inferior à dos medicamentos.
em privado, esse alguém será mais louco ainda do que o .
outro; o que interessa é sanar a bílis negra, é eliminar a Aos remédios, a medicina faz seguir os conselhos.
causa específica da loucura. O mesmo método deveremos "A causa das nossas faltas" - diz Aríston - "é o 21
seguir no caso da insânia do espírito : devemos eliminar o erro. Os preceitos não nos livrarão do erro, nem destrui-
mal em si, de outro modo os preceitos cairão em saco rão as falsas opiniões sobre o bem e o mal."
roto. Eu admito que, por si só, os preceitos não sejam efi-
18 São estes os argumentos de Aríston. Vamos agora cazes para corrigir as convicções falsas do nosso espírito;
responder-lhes, um por um. são, todavia, úteis, desde que aliádos a outros métodos.
Para começar, quando ele diz que, se há nos olhos Por um lado, avivam a memória; por outro, questões que,
alguma impureza que impeça a visão, é preciso eliminá-la, vistas na globalidade, podiam parecer confusas são enten-
admito que alguém nesta situação não careça de preceitos didas com maior clareza quando encaradas separadamente.
para ver, mas sim de um remédio que lhe limpe os olhos Se assim não fosse teríamos de considerar supérfluas as
e remova o obstáculo a uma visão perfeita. O facto de consolações e as exortações; ora nem umas nem outras
vermos é um fenómeno da natureza, e quando elimina- são supérfluas; logo, os conselhos também o não são.
mos a doença recuperamos o uso da vista. Não é a natu- "É estupidez" - diz Aríston - "prescrever a um 22
reza, no entanto, que indica a cada um de nós os respec- doente o que ele deve fazer como se estivesse saudável,
19 tivas deveres. Além disso, quando alguém se cura das quando o que importa é restituir-lhe a saúde, sem a qual
cataratas, pelo facto de ter recuperado a vista, nem por os preceitos são ineficazes."

484 485
Mas não é verdade que os doentes e sãos têm aspec- sas mais banais. Devemos recordar a este propósito a
tos em comum, sobre os quais devam ser aconselhados? frase de Calvo no discurso contra Vatínio: 4 "Vós sabeis
Por exemplo, que não devem comer com sofreguidão, que que houve corrupção eleitoral, e todos sabem que vós o
devem evitar fatigar-se. Há preceitos que tanto se aplicam sabeis!" Sabes que a amizade deve ser religiosamente con- 26
23 ao pobre como ao rico. "Cura a avareza" - diz ele - "e servada, mas não o fazes. Sabes que é desonesto exigir
deixará de ser preciso aconselhar tanto o pobre como o fidelidade à tua esposa, e andar ao mesmo tempo a corte-
rico, uma vez dominada a cupidez de um e de outro." jar as mulheres dos outros; sabes que, se ela não deve ter
Mas não é verdade que deixar de ambicionar a riqueza é amantes, também tu não deves ter "amigas"; mas não é
uma coisa, e outra diferente saber usar dela? Ora, se o avaro assim que procedes. Por isso mesmo, a tua memória deve
não tem a justa medida do dinheiro, mesmo o não ser avivada; não interessa que estes princípios lá estejam
avaro ignora o modo de usá-lo. "Livra-nos do erro" - guardados, mas que estejam activos. Todas as ideias salu-
afirma Aríston - "e os preceitos serão supérfluos." É tares devem estar em movimento, em permanente actua-
falso. Imagina que a avareza desapareceu, que o luxo foi ção, de modo a serem para nós não só objecto de conhe-
contido, que a temeridade foi refreada, que a indolência foi cimento mas também de prática. Acrescenta a isto que,
acicatada : mesmo depois de eliminados estes vícios há que assim, as verdades evidentes se tornam ainda mais evi-
24 aprender o que fazer e como agir. "De nada valem" - dentes.
diz ele - "os preceitos dados a pessoas dominadas por Acrescenta Aríston: "Se é controversa a matéria sobre 21
graves vícios." Também a medicina de nada vale contra as que dás preceitos, terás que apresentar provas; logo, as
doenças incuráveis, no entanto usamo-la para curar algu- provas, e não os preceitos, é que são proveitosas."
mas, ou para aliviar outras. Nem o esforço combinado de Mas não é verdade que, me~mo sem prova, a autori-
toda a filosofia, ainda que para tal fim fizesse apelo a
dade do conselheiro pode valer por si só? É o que sucede
todas as suas forças, poderia extrair-nos do ânimo um
com o valor atribuído aos pareceres dos juristas, mesmo
vício endurecido, já inveterado; mas o facto de não curar
quando não acompanhados da respectiva justificação. Além
tudo não implica a incapacidade de curar alguma coisa.
disso, os próprios preceitos ministrados podem ter por si
25 Pergunta Aríston: "Qual a utilidade de apontar verda-
só muita força, se vierem, por exemplo, sob forma
des evidentes?" Muita. Às vezes sabemos as coisas, e não
métrica ou, mesmo em prosa, sob forma de uma sen-
reparamos nelas. Uma advertência não ensina, mas chama
a atenção, mantém-nos atentos, conserva a memória con- tença concisa. Tal sucede, por exemplo, com as famosas
centrada, sem permitir que se disperse. Quantas vezes pas-
samos sem dar por coisas que temos diante dos olhos: 4
G. Licínio Calvo, orador e poeta contemporâneo de César e Cícero (cf.
fazer uma advertência é como fazer uma exortação. Fre-
Brutus, 283 ss.), amigo íntimo de Catulo (carme 14), célebre sobretudo pelos
quentemente, o nosso espírito finge não ver o que é evi- seus discursos contra Vatínio (cf. Catulo 53), ainda lidos e admirados no tempo
dente; há por isso que obrigá-lo a reparar mesmo nas coi- de Tácito (dia!. de orat., 21, 2) e Plínio-o-Moço (epist., I, 2).

486 487
máximas de Catão: "Não compres o necessdrio, mas ape- pessoas de espírito ágil e atento, outras de espírito lento e
28 nas o imprescindível; o que não é necessário, mesmo por pesado, em suma, .que umas são mais inteligentes do que
um tostão já é caro"\ ou então com as não menos céle- outras. Ora, o vigor da inteligência alimenta-se e robustece-
bres sentenças oraculares, ou semelhantes: "aproveita o -se com os preceitos, adiciona novas convicções às inatas,
tempo", "conhece-te a ti mesmo". Porventura vais exigir corrige os erros em que labora.
justificação se alguém te recitar estes versos: "Se alguém" - afirma Aríston - "não possui princí- 31
"O esquecimento é o remédio para as ofensas" •
6 pios justos, para que lhe servem as admonições, manie-
"A fortuna protege o audaz, o medroso é um tro- tado como está por ideias incorrectas ?"
peço para si próprio?" 7 Precisamente para isso, para se libertar de tais ideias.
A índole natural não está extinta nele, mas apenas obnu-
Tais máximas não carecem de advogado; actuam directa- bilada e reprimida. Assim, pode tentar ressurgir e lutar
mente sobre as paixões, a sua utilidade nasce do facto de contra os seus erros; obtendo auxílio, valendo-se dos pre-
elas exercerem a sua acção por força da sua natureza. ceitos, pode recobrar forças, desde que uma prolongada
29 De tudo quanto é honesto o nosso . espírito contém enfermidade a não tenha contaminado e aniquilado por
em si as sementes, as quais são despertadas pela admoni-
completo; neste caso, nem toda a doutrina filosófica, com
ção tal como a fagulha, excitada por um sopro ligeiro,
todos os seus recursos, a conseguiria ressuscitar ! Que outra
desenvolve de novo as suas chamas. A virtude alça-se mal
diferença há, afinal, entre os princípios da filosofia e os
recebe estímulo e impulso. Além disso, existem no espí-
seus preceitos, senão que aqueles são preceitos de carácter
rito disposições pouco prontas a actuar, mas que começa-
rão a desentorpecer mal sejam evocadas; outras ainda estão, geral, e estes de carácter particular? Num caso e noutro
por assim dizer, dispersas, sem que uma mente pouco trata-se de preceitos, uns de alcance universal, outros limi-
dextra consiga combinar as respectivas forças. Importa por tados ao individual.
isso congregá-las e uni-las, para que aumente o seu poder Aríston: "Quando alguém possui princípios justos e 32
e elevem mais o nosso ânimo. baseados na moralidade, é supérfluo ministrar-lhe preceitos."
30 Nota: se os preceitos não servem para nada, então De modo nenhum. Tal homem pode saber em teoria
acabe-se de vez com a educação e fiquemos contentes com o que tem o dever de fazer sem que o distinga clara-
o que a natureza nos deu. Quem assim fala não vê que há mente na prática. Ou seja, não são somente as paixões
que nos impedem de fazer o que a razão nos indica, mas
' Ca tão, ad fihum, frg. 1O lordan. também a incapacidade de achar a actuação indicada em
'' Publílio Siro, 1, 21 Meyer. cada circunstância. Pode suceder que tenhamos um espírito
7
Vergílio, Aen., X, 284. - Os códices vergilianos apenas têm o primeiro
dotado de excelente disposição, mas indeciso e incapaz de
hern istÍquio (audentis fortuna iuuat) ; o resto da frase é acrescemo de Séneca,
não se sabendo se se trata de criação sua ou se o encontrou em alguma edição descobrir a via do cumprimento do dever: aqui está o que
"corrigida" <le Vergílio. os preceitos podem indicar.

488 35 489
33 "Rejeita as falsas opiniões sobre o bem e o mal, em insensatos (falo, naturalmente, daqueles insensatos cujo es-
seu lugar forma opiniões correctas, e a preceptística nada pírito se encontra alterado, mas não perdido de todo).
terá que fazer." "As leis não nos conseguem obrigar a fazer o que 31
Não há dúvida de que este método contribui para devemos. Ora o que são as leis senão preceitos entremea-
introduzir a ordem no espírito; por si só, contudo, não dos de ameaças?"
chega. De facto, ainda que se demonstre por meio de Antes de mais, as leis não nos conseguem persuadir
argumentos em que consiste o bem e o mal, nem por precisamente pelo facto de nos ameaçarem, enquanto os
isso os preceitos deixam de ter o seu papel. A prudência preceitos não pretendem coagir-nos, mas sim apelar à
e a justiça implicam o cumprimento de deveres: ora, são nossa obediência. Depois, enquanto as leis visam afastar-
34 preceitos que discriminam tais deveres. Além disso, o nosso -nos do crime, os preceitos exortam-nos ao nosso dever.
próprio juízo sobre o mal e o bem é confirmado através Podemos dizer mesmo que as leis favorecem os bons cos-
da prática de deveres, e a essa prática são os preceitos que tumes, desde que pretendam não só impor como também
nos conduzem Preceitos e deveres estão em perfeito acordo instruir. Neste ponto, não concordo com Posidónio, quando 38
entre si: aqueles não podem ocorrer sem que estes se lhes este afirma: "Não aprovo Platão quando ele acrescenta às
sigam, mais, estes seguem-se pela ordem conveniente, donde leis princípios teóricos. Uma lei, convém que seja breve,
se conclui que aqueles têm a precedência. para mais facilmente ser entendida pelo homem comum.
35 "Os preceitos são em número infinito." Deve ser como uma voz emanada da divindade, deve
É falso; no que concerne às questões de maior impor- ordenar e não discutir. Nada me parece mais abstruso e
tância e urgência não são em número infinito. É certo que inábil do que uma lei com prólogo. Aponta-me, indica-me
há ligeiras diferenças entre eles, segundo as épocas, os o que queres que eu faça; não pretendo aprender, mas
lugares, as pessoas. Em todo o caso, é sempre possível sim obedecer." As leis são, em fodo o caso, úteis, e por
formular preceitos de carácter geral. isso se vê proliferarem os maus costumes nas cidades que
36 "Ninguém cura a loucura com preceitos; o mesmo se dispõem de más leis.
diga do mau carácter." "Mas as leis não aproveitam a toda a gente." 39
Não é o mesmo caso. Se se eliminar a loucura, restitui- Também a filosofia não ! E isso não significa que ela
-se a saúde, ao passo que se se repelirem as falsas opi- seja inútil ou ineficaz na formação do espírito. E o que é,
niões não se segue automaticamente o discernimento dos . afinal, a filosofia senão a lei que rege a totalidade da
deveres a cumprir; para tal se conseguir é necessário que vida? Mas admitamos que as leis não têm utilidade: isso
a preceptística venha corroborar o justo juízo sobre o bem não implica que os preceitos também não tenham utili-
e o mal. De resto, também não é exacto que os preceitos dade. Ou então, deveremos negar utilidade aos tratados de
não sejam úteis aos insensatos. Se é certo que por si só consolação, de dissuasão, de exortação, de admoestação, de
nada conseguem, nem por isso deixam de ajudar à cura, exaltação. Tais tratados ministram variados tipos de pre-
na medida em que a repreensão e a censura refreiam os ceitos, e graças a eles consegue chegar-se a um estado de

490 491
40 espmto perfeitamente equilibrado. Nada nos induz mais "Alma avara, nenhum lucro a sacia". 9
no espírito os princípios justos, nada reconduz melhor ao "Espera dos outros o que aos outros fizeres". 10
bom caminho os hesitantes ou os propensos ao mal do Estas máximas atingem-nos como uma pancada, sem per-
que a convivência com as pessoas de bem; vê-las frequen- m itirem que duvidemos ou nos perguntemos porquê!
temente, escutá-las frequentemente é algo que a pouco e Mesmo sem recurso à razão, a sua verdade aparece-nos
pouco se nos vai gravando no íntimo, a ponto de actuar com transparência.
com o vigor de preceitos. Que digo, o simples encontro Se o respeito refreia a arrogância e reprime os vícios, 44
com os sábios é proveitoso, há sempre algo de profícuo porque não hão-de os preceitos conseguir o mesmo? Se
na presença de um grande homem, ainda que em silêncio. uma repreensão impõe um sentimento de vergonha, por-
41 Não me é fácil explicar-te até que ponto isso pode ser que não há-de a preceptística conseguir o mesmo, usando
útil, muito embora compreenda claramente em que medida os seus preceitos sem recorrer à violência? É bem mais
me foi de facto útil! "Há pequenos insectos" - diz Fédon profícua, naturalmente, e penetra mais a fundo uma pre-
- "cuja mordedura se não sente, tanto é subtil e disfar- ceptística que apoie os seus preceitos na razão, que não
çada a sua periculosidade; apenas o inchaço revela que omita os motivos por que se deve agir desta ou daquela
houve mordedura, embora no próprio inchaço se não dis- maneira, que indique os frutos ao alcance de quem aceita
tinga qualquer ferida." O mesmo te sucederá se conviveres e obedece aos preceitos. Se o uso da autoridade é útil,
com os sábios: tu não darás conta de como e quando tal também o é o da preceptística; ora o uso da autoridade é
.convívio te está sendo útil, mas virás a compreender que útil, logo também o é o da preceptística.
te foi útil. A virtude reveste dois aspectos: um, a contemplação 45
42 "Onde pretendes chegar?" A isto: que os bons precei- da verdade; outro a acção. O <;studo teórico leva-nos à
tos, se te acompanharem com frequência, te serão de tanta contemplação, a preceptística conduz-nos à acção. Uma
utilidade como os bons exemplos. Diz Pitágoras que ganham acção justa exercita e revela a virtude. Quando alguém
quer agir, se a exortação lhe pode ser útil, também o con-
uma alma nova os crentes que entram no templo, con-
selho o será. Por conseguinte, se uma acção justa é neces-
templam de perto a imagem dos deuses e aguardam a
sária à virtude, e se a preceptística aponta quais são as
43 revelação de algum oráculo. Quem negará que há preceitos
acções justas, então a preceptística também é necessária.
capazes de impressionarem fortemente mesmo as pessoas
Duas coisas há que sobretudo contribuem para nos dar 46
menos esclarecidas? Como por exemplo estes, tão parcos
força de ânimo: a fé na verdade, a confiança em nós
de palavras quanto ricos de conteúdo :
mesmos. Ora, a preceptística consegue incutir uma e outra.
N ada em excesso". 8
11

'' Publílio Siro, A 55 Meyer.


111
' Sentença oracular (em grego µ710Ev 1iyo:v), como as citadas acima no § 28. Publílio Sim, A 2 Meyer.

492 493
Começamos por crer na verdade e, quando cremos nela, o Se admitirmos que isto é verdade, então também a 49
nosso espírito ganha ânimo e elevação, e enche-se de consolação é supérflua (pois também ela comparticipa das
autoconfiança; a preceptística, portanto, não é supérflua. duas outras partes da filosofia), bem como a exortação, a
M. Agripa, homem de forte carácter, o único daqueles persuasão e a própria argumentação, pois esta, para se
a quem as guerras civis deram fama e poder que pôs a desenvolver, pressupõe desde logo um carácter completa e
sua fortuna ao serviço do bem público, costumava dizer perfeitamente formado. No entanto, se bem que estes
que devia muito a esta máxima: "Quando há concórdia, tipos de discurso procedam de uma perfeita disposição do
mesmo as pequenas nações prosperam; quando há discór- espírito, é certo que uma perfeita disposição do espírito
dia, até as maiores se arruinam" 11 • Graças a ela, dizia, é também é procedente daqueles; ou seja, esta simultanea-
que se tornara um irmão e um amigo excelente. mente origina-os e é originada por eles. De resto a tua 50
47 Ora se máximas deste tipo, quando perfeitamente inte- objecção é válida para um homem que já atingiu a perfei-
riorizadas, são capazes de formar o carácter, como não há- ção e o mais alto grau de felicidade humana. Só tarde,
-de conseguir o mesmo resultado aquela parte da filosofia
todavia, se atinge um tal estádio; entretanto, a um indiví-
que consiste precisamente em tais máximas? A virtude
duo ainda imperfeito mas em progresso, há que indicar a
assenta em parte na teoria, e em parte na prática. É
via correcta de agir. Talvez a sabedoria, por si só, mesmo
necessário não só aprender mas também confirmar pela
sem conselhos, possa indicá-la a si mesma, porquanto já
acção aquilo que se aprendeu. Uma vez que assim é, são-
-nos proveitosos não só os prinápios da sabedoria como conduziu a alma a um ponto tal que lhe é impossível
igualmente os seus preceitos, os quais exercem, por assim mover-se senão segundo a justiça. Os espíritos mais fracos,
dizer, direito de coerção e direito de exílio sobre as nossas contudo, necessitam de alguém que os guie, dizendo:
paixões. "Deves evitar isto, deves fazer a,quilo". Além disso, se qui- 51
48 "A filosofia" - continua Aríston - "divide-se em sermos esperar a altura em que, por nós mesmos, sai-
dois pontos: o conhecimento teórico, a formação do carác- bamos qual o melhor modo de agir, iremos entretanto
ter. Aquele que estuda a teoria e aprende a distingir o que cometendo erros, e esses erros impedir-nos-ão de atingir
deve fazer-se e o que deve evitar-se só se torna um sábio um ponto em que possamos estar contentes connosco;
quando, graças àquilo que aprendeu, uma transfiguração se devemos deixar-nos guiar~nquanto ainda estamos apren-
opera no seu espírito. Essa terceira parte da filosofia, que é dendo a guiar-nos por nos mesmos. Também as crianças
a preceptística, comparticipa das outras duas, isto é, de dou- aprendem a escrever pelo exemplo: pega-se-lhes nos dedos,
trina e de formação; é, portanto, supérflua como forma de a mão do mestre guia-os sobre os desenhos das letras,
realizar a virtude, uma vez que as duas outras são bastantes". depois diz-se-lhes que imitem o modelo apresentado, e
que por ele corrijam a sua caligrafia. Um tal auxílio deve
ser dado ao nosso espírito enquanto aprende a guiar-se
11
Salústio, Bell. lugurt., X, 6. por um modelo.

494 495
52 Estes argumentos demostram como não é supérflua não nos predestinou para nenhum vício, antes nos gerou
esta parte da filosofia. Falta agora ver se por si só é bas- puros e livres. Não expôs à superfície nada que fosse sus-
tante para a formação do sábio. Esta questão tratá-la-emos ceptível de despertar a nossa avareza: pôs-nos debaixo dos
em outra oportunidade. 12 Por agora, e deixando os argu- pés o ouro e a prata, para que pisássemos e calcássemos
mentos, não é simplesmente claro que necessitamos todos algo que só merece ser pisado e calcado. A natureza
de um conselheiro que nos acautele contra os precon- ergueu-nos o rosto para o céu, para que tudo quanto criou
53 ceitos do vulgo? Palavra alguma nos chega impunemente de belo e magnificente fosse visto de cara ao alto: o nas-
aos ouvidos: uns prejudicam-nos por nos desejar bem, cer e o pôr das estrelas, o movimento vertiginoso do
outros prejudicam-nos por nos amaldiçoar. As imprecações mundo que durante o dia nos revela a vista da terra e
destes incutem em nós falsos receios, a simpatia daqueles, durante a noite a do céu; a marcha dos astros, tão lenta à
na melhor das intenções, aconselha-nos o mal, enquanto escala do universo, mas tão rápida se pensarmos no espaço
nos incita a procurar bens distantes, incertos, efémeros, enorme que percorrem com velocidade constante; os eclipses
54 quando podemos achar a felicidade ao pé da porta. Repito: do Sol e da Lua quando situados em oposição; e tantos
não somos livres de seguir o caminho justo. Os próprios outros fenómenos dignos de admiração, quer ocorram regu-
pais nos desviam para o mal, os escravos também. E os larmente quer resultem de causas inesperadas, tais como
erros de cada um não recaem só sobre si, antes pegam a os rastos de fogo durante a noite, os relâmpagos que, sem
insânia ao próximo e por este se deixam reciprocamente ruído de trovão, como que despedaçam o céu, as colunas,
contaminar. Os vícios de cada um são-no também da socie- as traves e outras variedades de fogos celestes! 13 Tudo isto 57
dade, pois foi a sociedade que os gerou. Se alguém incita colocou a natureza sobre as nossas cabeças, ao passo que
outro ao mal, tende para o mal ele próprio; aprende más escondeu o ouro e a prata, e também o ferro, o qual, por
condutas, ensina-as em seguida, e atinge-se a perversidade causa dos metais preciosos, nunca descansa em paz -
generalizada quando numa sociedade se concentra o que há sinal de que é por nosso mal que os obtemos! Nós é que
55 de pior em cada indivíduo. Arranjemos, portanto, um pro- expusemos à luz do dia esses metais que nos levam à
tector que de vez em quando nos puxe as orelhas, que guerra, nós é que rasgamos o ventre da terra para dele /
dissipe as opiniões do vulgo, que proteste contra as prefe- extrair a causa e o instrumento das nossas desgraças, nós ·
rências da multidão. Enganas-te se pensas que os vícios é que imputámos à fortuna os nossos males, sem corar de
nasceram connosco: vieram por acréscimo, foram incutidos colocarmos acima de nós aquilo que jazia nas profundezas
em nós! Que frequentes admoestações nos ajudem a repe- telúricas. Queres saber até que ponto é ilusório esse fulgor 58
56 lir as opiniões que à nossa volta se difundem! A natureza que te deslumbra? Nada há mais sujo, nada menos bri-

12
O tratamento desenvolvido deste problema, a saber, se a parenética, ou lJ Sobre esta classe de fenómenos pronunciou-se Séneca longamente nos

preceptística, e por si só "bastante para a formação do sábio", será reservado livros I (fenómenos luminosos na atmosfera) e II (relâmpagos e trovões) das
para a carta 95. suas N aturales Quaestiones.

496 497
lhante do que esses metais enquanto jazem imersos, cober- cerem o adversário, deixaram-se vencer pela cobiça. N in-
tos de lama. Como não seria assim, se eles são extraídos guém consegue resistir ao seu avanço, tal como eles não
das trevas de intérminas galerias? Nada há mais informe resistem à ambição e à crueldade!
do que eles quando são trabalhados e depurados das suas Uma vontade furiosa de devastar terras alheias incita 62
impurezas. Repara ainda nos operários cujas mãos os lim- o infeliz Alexandre e leva-o até remotas paragens. Ou
pam de toda a terra impura que trouxeram das minas, e consideras tu são de espírito um homem que começou a
verás quanta sujidade neles se acumula. sua carreira infligindo sucessivos golpes à Grécia, a terra
59 Esses metais, contudo, ainda contaminam mais as almas em que fora educado, e que roubou a cada cidade o seu
do que os corpos, mais sujidade se encontra nos seus bem mais caro, forçando Esparta à servidão e Atenas ao
donos do que nos trabalhadores. É por isso que é impres- silêncio? E não contente com a destruição de tantas cida-
cindível receber conselhos, ter alguém que desperte em des, já conquistadas ou compradas por Filipe, foi ainda
nós um espírito justo, ouvir, enfim, no meio do tumul- destruir outras em outras terras, levando as suas armas a
tuoso estrépito da falsidade - ouvir uma voz! E que voz todo o globo. Em parte alguma sossegou a sua crueldade
será essa? Uma precisamente que murmure palavras salu- fatigada, à maneira das bestas feras que matam mais do
tares aos teus ouvidos ensurdecidos pelo desenfreado cla- que a fome exige. Muitos reinos se amontoaram para for- 63
60 mor da ambição, que te diga não haver motivo para invejar mar o seu império, ante ele tremem tanto os Gregos
aqueles a quem a multidão considera grandes e afortuna- como os Persas, e muitas nações que Dario conservara
dos; não haver motivo para que a aprovação do vulgo livres caem sob o seu jugo. Atravessa o oceano a caminho
destrua em ti a sã disposição de um espírito justo; não do oriente, incapaz de suportar que a sua marcha vitoriosa
haver motivo para que os adornos da púrpura e dos fas- se detenha onde pararam Hércules e Baco, intenta forçar
ees te faça aborrecer a tua tranquilidade de espírito; não a própria natureza. Avança, não porque o queira, mas
haver motivo para julgares que é mais feliz do que tu (a porque é incapaz de parar, tal como os objectos em queda
---
quem o lictor afasta do caminho) aquele diante de quem que só param quando chegam ao chão!
se abrem alas. Se queres exercer uma autoridade, útil a ti Também não foram a virtude ou a razão que persua- 64
mesmo e não gravosa para alguém, então reprime os diram Gneu Pompeio à guerra no estrangeiro ou à guerra
I •
VlClOS. civil, mas sim uma paixão insana por uma falsa grandeza.
61 Muitos há que ateiam fogo a cidades, que destroem Ora marchava sobre a Hispânia contra as forças de Sertó-
monumentos poupados pelos séculos e seguros durante - rio, ora ia reprimir a pirataria e pacificar o Mediterrâneo:
gerações, que erguem muros de cerco altos como cidadelas tudo era apenas pretexto para prolongar o seu poder. Que 65
e que arrasam com aríetes e outras máquinas muralhas de força o fez ir até à África, até ao Norte, até ao reino de
enorme altura. Muitos há que fazem avançar exércitos e Mitrídates, até à Arménia, até aos recônditos da Ásia?
perseguem com violência os inimigos, que atingem o alto Somente uma infinita vontade de poderio, pois era ele o
banhados em sangue de massacres. Todos estes, para ven- único que não se considerava suficientemente grande!

498 499
O que moveu G. César a provocar a sua própria queda das pessoas quando em público e quando isoladas. Não é
e a da república? A glória, a ambição, uma vontade extre- que por si só a solidão nos reconduza à inocência, tal
ma de superar os demais. Não podia admitir um único como a vida no campo não nos ensina a frugalidade; mas,
homem acima de si, ao passo que a república era forçada quando não há testemunhas e espectadores, os vícios, cujo
a aguentar dois ! principal aliciante consiste em atrair as atenções, perdem
66 Pensas tu que G. Mário, cônsul uma só vez (pois só intensidade. Quem se vai vestir de púrpura senão para se 70
uma vez obteve o consulado, das outras todas usurpou-o!), exibir? Quem usa baixela de ouro para comer sozinho?
ao esmagar os Teutões e os Cimbros, ao perseguir Jugurta Quem, estendido sozinho no campo à sombra de uma
pelos desertos da África, era movido a afrontar tantos árvore, faz estadão de todo o seu luxo? Ninguém se adorna
perigos por instinto da virtude? Mário dirigia o exército, para se autocontemplar, nem sequer para se apresentar
mas quem dirigia Mário era a ambição. diante de alguns amigos e familiares; adequa, sim, o apa-
67 Estes homens, ao abalarem tudo e todos, eram eles rato dos seus vícios às dimensões da multidão que o obser-
próprios abalados, à maneira dos tornados que fazem girar va! É assim mesmo: se alguém admira ou conhece o 71
tudo o que agarram mas são eles os primeiros a girar e objecto das nossas loucuras, ainda mais nos comprazemos
por isso mesmo se abatem com tanto maior força quanto nelas. A falta de ocasião para os exibir afastar-nos-á de
carecem de qualquer força que os reprima; assim, se foram desejos insensatos. Ambição, luxo, excessos, precisam de
causadores da desgraça de muitos, acabaram por sentir um palco: tira-lhes o público, sanarás esses vícios. Por isso 72
também eles o efeito da força perniciosa com que causa- mesmo, quando estivermos no meio do estrépito da cidade,
ram o infortúnio alheio. Não penses que alguém pode ser tenhamos ao lado um conselheiro que, ao contrário dos
feliz à custa da infelicidade dos outros. apreciadores de enormes patrimónios, elogie antes os que
68 Todos estes exemplos que nos enchem os olhos e os são ricos com pouco e possuem ' bens à escala das necessi-
ouvidos, devemos desmontá-los, devemos purificar o espí- dades. Ao contrário dos que exaltam a reputação e o
rito de tantos falsos discursos que o ocupam; devemos poder, fale ele para defender o ócio dedicado ao estudo e
introduzir a virtude no espaço que aqueles ocupavam, para o retorno a si próprio do espírito liberto das preocupações
que ela destrua as mentiras e tudo quanto falsamente nos exteriores. Explique de que modo aqueles a quem o vulgo 73
seduz, para que ela nos afaste da multidão a que damos considera afortunados vivem receosos e incertos entre as
excessivo crédito e reinstale em nós opiniões justas. Nisto invejas que a sua posição suscita e têm de si uma opinião
consiste a sabedoria: em regressar à natureza, em retornar bem diferente da que os outros deles fazem, pois o que
69 ao ponto donde nos afastou o erro do vulgo! Uma grande aos outros se apresenta como uma altura é para os pró-
parte da sanidade de espírito consiste em virar as costas prios um precipício! Por isso eles perdem coragem e estre-
aos conselheiros de insensatez, em ir para bem longe mecem cada vez que olham a sua grandeza à beira do
dessa convivência reciprocamente nociva. Para ver até que abismo: eles conhecem os- caprichos da fortuna, e sabem
ponto isto é verdade, observa o diferente comportamento que quanto maior é a altura mais fácil é a queda. Arre- 74

500 501
ceiam-se então dos bens que haviam desejado; a sua for- se calasse imediatamente, gritaram em coro: "Continua a
tuna, que os tornava gravosos aos demais, torna-se mais leitura, continua!" Muitas vezes, também, queremos uma
gravosa ainda para eles próprios. Nessa altura põem-se a coisa mas escolhemos outra, e nem sequer aos deuses con-
louvar o ócio sem peias nem preocupações, o esplendor fessamos a verdade; o que vale é que os deuses ou não
causa-lhes repulsa, procuram fugir à sua situação antes da nos atendem ou têm pena de nós! Quanto a mim, vou 3
queda. Então, e só então, verás como o medo os leva à proceder sem qualquer compaixão : vou mandar-te uma
filosofia, como uma fortuna oscilante os conduz a resolu- carta gigantesca! Se te custar muito lê-la, não terás mais do
ções sensatas. Parece que a boa fortuna e o bom senso que dizer: "Bonito serviço que eu arranjei!", e põe o teu
são coisas incompatíveis entre si: o facto é que somos nome entre o daqueles homens que se desfizeram em
mais sábios na adversidade, ao passo que a prosperidade galanteios para casar com uma megera, ou se fartaram de
nos afasta do justo caminho. suar para conseguir riquezas e nelas só encontraram angús-
tias, ou usaram todos os truques e esforços para obter
95 cargos públicos em que se sentem destroçados, em suma,
inclui-te na lista dos artífices dos próprios dissabores!
1 Pedes-me que trate de uma matéria que há tempo te Mas deixemos os preâmbulos e entremos na matéria. 4
disse dever ser adiada para tempo oportuno, e dedique Certos autores afirmam: "Uma vida feliz consiste numa
uma carta a expor se aquela parte prática da filosofia a série de acções justas; os preceitos induzem à prática de
que os gregos dão o nome de paraenetice e nós o de
acções justas, logo, os preceitos bastam para que consiga-
praeceptiua basta só por si para se atingir a plena sabe-
mos uma vida feliz." A verdade é que os preceitos nem
doria. Sei que não me levarias a mal se eu me recusasse
sempre induzem à prática de acções justas, mas apenas
ao teu pedido. Por isso mesmo vou mais longe, e acedo
quando o espírito lhes obedece; de outro modo, se a alma
ao que pedes, até porque quero que se cumpra o ditado:
está dominada por opiniões incorrectas, em vão recorre-
2 "Não te ponhas a pedir o que não pretendes obter!" É
que sucede muitas vezes nós pedirmos com empenho coi- remos aos preceitos da filosofia. Também pode suceder 5
sas que recusaríamos se alguém no-las oferecesse. Por ligei- que as pessoas pratiquem acções justas, mas sem terem
reza? Por excesso de gentileza? Seja qual for a razão, consciência de que as suas acções são justas. Ninguém, a
apliquemos-lhe um castigo: acedamos largamente ao pedido. não ser que formado a partir da base e totalmente orien-
Muitas coisas nós desejamos parecer querer quando de tado pela razão, pode estar apto a conhecer todos os seus
facto as não queremos. Numa leitura pública, um autor deveres e saber quando, em que medida, com quem, de
levou uma vez uma obra histórica enorme, escrita em que modo e por que razão deve agir. Não pode confor-
letra miudinha, num volume densíssimo, e, depois de ler a mar-se à moral de toda a sua alma, nem com constância
maior parte, disse: "Se querem, fico por aqui." Ora os e boa vontade sequer: continuamente há-de hesitar, de
auditores, embora o seu único desejo fosse que o homem tergiversar.

502 503
6 Afirmam também: "Se a acção moral decorre dos pre- rais - assentam numa série de princípios teóricos, e não
ceitos, então os preceitos bastam para atingir a vida feliz; apenas em preceitos de ordem prática. É o caso da medi-
ora a premissa é válida, logo, a conclusão também o é." A cina; por isso mesmo é que é possível distinguir a escola
esta tese objectamos nós: as acções morais decorrem tam- de Hipócrates da de Asclepíades e da de Temisão. Mais, 10
bém dos preceitos, mas não dos preceitos exclusivamente. não há qualquer ciência especulativa que não tenha o seu
7 Mais outra afirmação : "Se às restantes artes bastam os corpo de princípios básicos - ou seja, aquilo a que os
preceitos, também bastarão à sabedoria, pois esta é a arte gregos chamam oóyµara (dógmata) e que, em latim,
da vida. Como se ensina o ofício a um piloto? Dizendo- podemos designar por decreta, seita ou placita : por exem-
-lhe 'que manobre o leme desta maneira, que recolha as plo, os princípios em que assenta a geometria ou a astro-
velas deste modo, que aproveite assim o vento favorável, nomia. A filosofia, por seu lado; é em parte especulativa e
que faça frente assim ao vento contrário, que tire partido em parte activa, pois tanto se embrenha na contemplação
assim do vento que ora sopra daqui ora dali'. Os precei- como se actualiza através da acção. Se, portanto, imaginas
tos também chegam para formar os demais artífices, e que ela apenas se cinge ao plano da acção terrena estás
portanto também serão suficientes no caso do artífice da perfeitamente enganado. A filosofia dir-te-á: "Eu perscruto
8 arte de viver." Todas estas artes ocupam-se de elementos a totalidade do universo, não me limito à companhia dos
acessórios da vida, não da vida na sua totalidade; muitas mortais, contentando-me em persuadir-vos ou dissuadir-
causas exteriores - a esperança, a ambição, o medo - -vos de agir desta ou daquela maneira; outras tarefas mais
podem impedir essas artes de actuar livremente. Mas a altas me aguardam, muito acima da esfera humana:
arte que faz da vida a sua ocupação não conhece obstáculo
"a suprema razão do universo e dos deuses 11
que possa impedi-la de se exercer, pois sabe despedaçar
irei expor-te, e revelar-te a constituição do mundo;
todos os impedimentos e afastar todos os obstáculos. Que-
donde extrai a natura tod;~ os seres, os desenvolve
res entender bem em que se distingue a condição desta
e cria, e onde a mesma natura por fim os seres
arte da de todas as demais? É que nestas é mais desculpável
dissolve",
cometer um erro de propósito do que por acaso, enquanto
na sabedoria a pior falta consiste em errar deliberadamente. para usar as palavras de Lucrécio 14• Daqui se conclui que a
9 Eu explico-me melhor: um gramático não corará se fizer filosofia, na medida em que é contemplativa, tem os seus
um solecismo propositadamente, mas . corará se o fizer princípios teóricos de base. Não é verdade que ninguém 12
sem querer; um médico que não perceba que o doente se . será capaz de agir sempre correctamente se não tiver um
está apagando mostra-se mais incompetente na sua arte conjunto de princípios que lhe indiquem qual a acção cor-
do que se percebe mas dissimula a situação; em contrapar- recta em todas as circunstâncias? Ora, não poderá proce-
tida, na nossa arte da vida o defeito é tanto mais grave se der convenientemente quem apenas conhecer preceitos de
for voluntário. Acrescenta a isto que muitas artes - e,
sobretudo, aquelas que de entre todas são as mais libe- 11
· De rerum natura, i, 54-7.

504 36 505

/
ordem particular, e não de aplicação universal. Os precei- até chegar à actual multiplicidade de técnicas. Não admira,
tos indicados em função de circunstâncias particulares são, aliás, que nesses tempos a medicina tivesse tão diminuto
em si mesmos, insuficientes, carecem - passe a expressão campo de aplicação: os corpos eram ainda rijos, sólidos, a
- de raiz. Existem princípios básicos capazes de rios alimentação era natural, não corrompida ainda pelos pra-
robustecerem, de nos assegurarem confiança e tranquili- zeres da gastronomia. Mas, depois, a comida tornou-se
dade de espírito, de abarcarem tanto a totalidade da vida numa forma, não de satisfazer, mas sim de aguçar o ape-
humana como a totalidade do universo. Entre os princí- tite, inventaram-se mil e um condimentos para estimular
pios básicos da filosofia e os preceitos práticos existe a a gula; os alimentos desejados com o estômago vazio
mesma diferença que entre as letras e os membros da redundam em carga insuportável quando enchemos o estô-
frase: estes são constituídos por letras, as quais originam mago. Resultado: a palidez, a excitação dos nervos enso- 16
tanto os membros de frase como a totalidade das frases pados em vinho, o ar macilento - mais preocupante
possíveis! quando provém de indigestão do que de fome. Mais: a incer-
13 Vejamos outra tese. "A antiga sabedoria limitava-se a teza no andar, a marcha aos tropeções, como quando se
preceituar o que os homens deviam fazer ou evitar, e o está embriagado. E também o suor espalhado por todo o
certo é que antigamente os homens eram de longe melho- corpo, o ventre dilatado graças ao mau hábito de exceder
res do que hoje; quando começou a haver eruditos come- a sua capacidade. E também o rosto esverdeado pelo der-
çaram a escassear os homens de bem; a virtude simples e ramamento da bílis, a corrupção das vísceras em putrefac-
transparente de outrora metamorfoseou-se numa ciência ção, os dedos deformados pela perda de flexibilidade nos
obscura e feita de subtilezas que nos ensina a discutir, mas tendões, os nervos entorpecidos e sem sensibilidade, ou,
14 não a viver." Tendes decerto razão, houve sem dúvida . pelo contrário, em contínuos estremeções. Para quê men- 17
essa antiga sabedoria, tosca evidentemente nas suas ori- cionar ainda as sensações de náusea, as moléstias dos olhos
gens, como de resto sucedeu com as outras técnicas que, ou dos ouvidos, o formigueiro na cabeça que parece estoi-
com o tempo, se foram tornando cada vez mais aperfei- rar, as afecções provocadas por toda a espécie de úlceras
çoadas. Nessa época, porém, os homens não careciam ainda internas? Mas temos ainda os inúmeros tipos de febres:
de remédios fortes. A perversidade ainda não tinha atin- há febres súbitas e altíssimas, há outras, fracas, mas contí-
gido a intensidade e a dispersão a que chegou nos dias de nuas e desgastantes, outras que vêm acompanhadas de
hoje: para vícios simples eram suficientes remédios sim- arrepios e de grandes tremores no corpo. Para quê citar 18
ples! Acrualmente, carecemos de uma protecção tanto mais · ainda outras incontáveis doenças, tormentos resultantes da
enérgica quantos mais violentos são os vícios que nos vida luxuriosa? ! De todos estes males estavam isentos os
afligem. homens de outrora, não corrompidos ainda pela artificiali-
15 A medicina, antigamente, limitava-se a investigar umas dade, homens que sabiam dominar-se e cuidar de si.
quantas ervas que estancassem as hemorragias e fizessem Endureciam o corpo no trabalho, no esforço a sério, o
as feridas cicatrizar. Depois, foi gradualmente evoluindo cansaço vinha-lhes das caminhadas, da caça, do trabalho da

506 507
terra; a alimentação de que dispunham era tal que apenas estômago re1e1ta e aliviam-se, vomitando, do vinho con-
a esfomeados podia agradar! Por isso mesmo não tinham sumido; tal como eles, chupam bocados de gelo para ali-
necessidade de grande aparato medicinal, de todo este mo- viar a azia. Em matéria de sensualidade também em nada
derno arsenal de instrumentos e pomadas! Uma vida sim- cedem aos homens: elas, que nasceram para ser passivas
ples dava-lhes uma saúde simples: as variedades gastro- (possam os deuses e deusas castigá-las como merecem!),
nómicas trouxeram consigo a multiplicidade das doenças. tão longe se aventuraram na via da licenciosidade que
19 Vê bem a mistura de iguarias que o nosso luxo gastro- agora, com os homens, são elas quem desempenha o papel
nómico - e para tal devasta a terra e o mar! - conse- activo ! Porquê admirar-nos então que Hipócrates, a glória
gue fazer passar por um só esófago! Necessariamente, da medicina, o maior conhecedor da natureza humana,
comidas tão antagónicas entre si colidem umas com as seja assim apanhado a mentir, dada a presente abundância
outras, provocam más digestões com toda a gama de esfor- de mulheres calvas e atacadas da gota? ! Elas perderam as
ços que exigem ao estômago. Não admira, pois, que de regalias próprias do seu sexo e, renunciando à feminili-
alimentos de tão diversa natureza resultem doenças multi- dade, viram-se condenadas às moléstias dos homens.
formes, que iguarias provenientes de opostos reinos da Antigamente, os médicos não sabiam dosear a alimen- 22
natureza e forçadas a coabitar num único estômago pro- tação nem usar o vinho para tratar problemas de circula-
voquem indigestões. Em suma, a vida · moderna arrasta ção, não sabiam fazer sangrias nem tratar doenças cróni-
consigo doenças não menos modernas! cas com banhos de vapor, não sabiam usar ligaduras para
20 O maior médico de sempre - e fundador da medi- puxar até às extremidades os excessos de reuma nas per-
cina como ciência - dizia que as mulheres estavam ao nas ou nos braços. Não era necessário congeminar muitos
abrigo da queda do cabelo e de dores nos pés 15 : ora, hoje tipos de tratamento, pela simples razão de que eram redu-
vemo-las sem cabelo e com gota nos pés! Não que a zidas as variedades de doença. Nos dias de hoje, como 23
natureza das mulheres sofresse alguma mutação. Só que progrediram as deficiências de saúde! Pelos prazeres que
foi ultrapassada, e, como elas se igualaram aos homens nos proporcionamos, pagamos um juro que ultrapassa todos
em matéria de excessos, passaram a sofrer dos mesmos os limites legítimos! Não te admires com o número imenso
21 distúrbios físicos que os homens. Não fazem menores noi- das moléstias : conta o número dos cozinheiros! As activi-
tadas nem bebem menos do que eles; no consumo de dades intelectuais estão paradas, os mestres dos estudos
óleo 16 e de vinho rivalizam plenamente com os homens. liberais sentam-se nos seus cantos sem assistência, nas
escolas dos retores e dos ·filósofos é o deserto; em contra-
Tal como eles, "restituem" pela boca as iguarias que o
partida, vê como estão cheias as cozinhas, vê a multidão
que se acotovela nas casas pródigas em festins! E já nem 24
falo dos infelizes rebanhos de escravos que, acabado o
15
a.Hipócrates, Aph., 6.28 e 29 (vol. IV p. 570 Littré).
16
Isto é, na prática do atletismo, dado o hábito de os atletas friccionarem o banquete, têm à sua espera as infâmias de alcova; já nem
corpo com óleo. falo das multidões de jovens "queridos" agrupados segundo

508 509
a raça e a cor, dentro de cada .grupo todos com o mesmo deveria fazer-se no estômago. Só falta ver qualquer dia
peso, todos com a barba nascente à mesma medida, todos servir a comida já mastigada! Então não dá muito menos
com o mesmo tipo de cabelo, não vá algum que tenha trabalho tirar as conchas e as espinhas, e pôr o cozinheiro
cabelo liso aparecer misturado com os de cabelo encaraco- a fazer o trabalho dos dentes ? "É muito aborrecido sabo-
lado! Já nem falo da multidão dos pasteleiros, já nem falo rear cada coisa de sua vez : junte-se tudo, saboreie-se tudo
dos escravos de mesa que, numa correria, se põem a ser- de uma só vez! Para que hei-de eu estender a mão para
25 vir a ceia ao sinal do senhor. Ó grandes deuses, que quan- um prato simples? Venha tudo ao mesmo tempo, misturem-
tidade de gente mobiliza um único estômago! Pensas tu -se numa só massa os acompanhamentos de diversos pra-
que os cogumelos, esse voluptuoso veneno, não provoca tos! Saibam quantos costumam dizer que a exibição de 28
maleitas a longo prazo, mesmo que o efeito não seja ime- pratos variados é uma prova de luxo e ostentação, que a
diatamente perceptível? Julgas que as ostras, esses animais comida não é para ser vista, mas sim saboreada. Ponha-se
de carne mole engordados na lama, não causam um lama- numa travessa só o que se costuma pôr em várias, tudo
cento peso no estômago? Não achas que o garum que indiferentemente misturado; não haja diferenças: ostras,
importamos, esse molho apodrecido e precioso de peixes ouriços, búzios, rodovalhos - sirva-se tudo cozinhado e
repelentes, nos queima os interiores com a sua salmoura misturado num só prato!" Um vomitado não formaria
deteriorada? 17 Não entendes que todo esse sabor a podre uma massa mais confusa! E, do mesmo modo que as 29
que a azia nos faz vir à boca, se forma nas nossas vísce- comidas chegam a esta confusão, também as doenças que
ras com prejuízo para a saúde? Vê como são fétidos e elas ocasionam não são individualizadas, mas sim confusas,
pestilentos os arrotos, vê as náuseas que acompanham a várias, multiformes; para lhes fazer frente, teve a medi-
permanente saturação! Por aí verás que os alimentos, em cina de multiplicar também as formas de tratamento e de
26 vez de serem digeridos, estão mas é a apodrecer!. .. Lembro- observação.
-me de há tempos se falar muito numa célebre travessa Idênticas considerações devo fazer acerca da filosofia.
em que os cozinheiros juntaram - para sua ruína! - todos Também esta foi, em tempos, menos complicada, quando
os manjares que os gastrónomos costumam comer ao longo as faltas dos homens eram menos graves e podiam sanar-
do dia: vieiras, búzios, ostras, tudo partido em bocadinhos... -se .com cuidados ligeiros. Mas contra a enorme perversão
27 ouriços 18•.• e rodovalhos sem espinhas! Até já se tem pre- actual dos costumes há que tentar todos os recursos. E,
guiça de comer os petiscos um a um: faz-se uma mistura mesmo assim, bom seria que esta pestilência fosse levada
de vencida! É que hoje a loucura não se limita à vida pri- 30
de todos os sabores. Faz-se no prato, em suma, o que
vada, invade igualmente a vida pública. Nós punimos os
assassínios, castigamos um homem que mata outro: então
17
e as guerras, os criminosos massacres de populações, que
Sobre o garum d . P. Grimal, A Vida em Roma na Antiguidade, trad.
port., Publicações Europa-América, pp. 90-1 e nota 47. são tomados como motivo de glória? A ganância e a
18
Texto cheio de corruptelas. crueldade não conhecem limites. Ainda assim, menos noci-

510 511
vas e menos monstruosas elas são quando exercidas às tal perversão de costumes exige uma técnica mais vigo-
escondidas e por particulares: hoje, é através de decretos rosa do que o habitual para conseguir dominar estes vícios
senatoriais e de plebiscitos que se exerce a ferocidade, é a enraizados: temos de inculcar princípios capazes de extir-
lei que manda fazer-se a nível do Estado o que proíbe par por completo as falsas convicções em vigor. Se, con-
31 a nível particular! Um crime que, cometido às ocultas, comitantemente com os princípios, usarmos também pre-
incorreria em pena capital, suscita louvores quando prati- ceitos, consolações, exortações, talvez aqueles possam vir a
cado por militares! A espécie humana - raça branda por
prevalecer : só por si serão ineficazes. Se queremos manter 35
natureza! - não tem pejo em satisfazer-se com o sangue
do próximo, em iniciar guerras e deixá-las em herança às os homens obedientes aos princípios, se queremos arrancá-
gerações seguintes, quando até as feras irracionais vivem -los aos vícios que os dominam, há que ensinar-lhes primeiro
32 em paz entre si. Para lutar contra uma loucura tão vio- o que é o mal e o que é o bem, há que dar-lhes a saber
lenta e tão largamente difundida a filosofia tornou-se mais que, exceptuando a virtude, todas as coisas podem mudar
complexa, teve de ganhar um acréscimo de forças propor- de qualificativo, e merecerem umas vezes serem conside-
cional ao acréscimo dos males que combate. Era fácil cen- radas como más e outras como boas. Na vida militar, o
surar alguém que cedia um pouco à bebida ou buscava na mais forte vínculo é o respeito à hierarquia, o amor às
comida um certo requinte; para conduzir uma alma nestas insígnias, o repúdio da deserção; nestas condições é fácil
condições à frugalidade de que apenas ligeiramente se afas- conseguir tudo o mais que se queira dos recrutas que pres-
tara não era necessária muita energia; taram juramento. Do mesmo modo, nos homens que dese-
33 "hoje exige-se rapidez de mão e todos os recursos jamos aliciar para a verdadeira felicidade, devemos inculcar
da arte/" 19 os princípios de base, devemos meter dentro deles a vir-
O que se busca é apenas o prazer! Nenhum vício se con- tude. É necessário que se sintam ligados a ela como por
serva dentro dos seus limites: o luxo degenerou em ganân- um temor supersticioso, é precifo que a amem, que quei-
cia! O desprezo pela moral invadiu todos os domínios: ram viver com ela, que não possam passar sem ela.
nada se considera ignóbil quando se pode pagar o preço. "Que dizes? Então não tem havido homens que, mes- 36
O homem - que para o homem devia ser coisa sagrada mo não iniciados nas subtilezas da filosofia, se revelaram
- é exposto à morte apenas para servir de divertimento; basicamente honestos e conseguiram grandes progressos
já era sacrilégio treinar homens para ferirem e ser feridos limitando-se a obedecer aos preceitos de ordem prática?"
- agora atiramo-los para o circo nus e inermes, basta-nos Não o nego; havia neles um natural favorável que assimi-
34 a simples morte como espectáculo !20 Por conseguinte, uma · lou na passagem os princípios salutares. Os deuses imor-
tais também não aprenderam nenhuma espécie de virtude
19
Vergílio, Aen., VIII, 442, com ligeira variante : exige-se corresponde a por serem naturalmente dotados de todas, por o "ser bom"
opus est, introduzido por Séneca no texto em vez de omni, que, aliás, traduzi- fazer parte da sua natureza; igualmente entre os homens,
mos - "todos os recursos" - por fidelidade ao texto vergiliano.
20
Séneca nunca se cansa de censurar violentamente os sangrentos, mas
alguns há que possuem naturalmente um excelente carác-
populares, especráculos do circo. ter e que assimilam sem necessidade de longa instrução os

512 513
princípios tradicionais, que abraçam a via da moralidade primeiro as mãos! Para que a alma possa pôr em prática
desde o primeiro momento em que dela ouvem falar; do os conselhos que lhe damos, devemos primeiro desamarrá-
meio destes é que surgem aqueles génios que concitam -la! Imaginemos alguém que procede como deve ser: pode 39
em si toda a gama de virtudes, que produzem eles mes- não proceder assim com frequência, pode não proceder
mos virtudes. Mas aos outros, àqueles que têm o espírito assim com constância, porque não sabe ror que motivo
embotado, obtuso ou dominado por tradições erróneas, a procede como deve ser. Às vezes, por mero acaso ou em
37 esses há que raspar a ferrugem que têm na alma. Mais virtude da prática, podemos desenhar linhas rectas, mas
ainda: se transmitirmos os preceitos básicos da filosofia não temos à mão uma régua que permita verificar se são
aos primeiros, rapidamente eles atingirão o mais alto nível, realmente rectas as linhas que julgamos tais. Um homem
pois estão naturalmente inclinados ao bem; se o fizermos que seja bom por acaso não dá garantias de que será
aos outros, os de natureza mais fraca, ajudá-los-emos a sempre bom!
libertarem-se das suas convicções erradas. Por aqui podes ver Admito também que os preceitos possam levar o teu 40
como são necessários os princípios básicos. Temos instin- "aconselhando" a proceder segundo a moral, mas não lhe
tos em nós que nos fazem indolentes ante certas coisas, e facultam a regra para sempre proceder de forma moral; e
atrevidos perante outras; ora, nem este atrevimento nem se não conseguem isto, também não conseguem levá-lo à
aquela indolência podem ser eliminados se primeiro não virtude. Aconselhado, .ele poderá agir segundo a moral,
removermos as respectivas causas, ou seja, a admiração in- admito. Mas isso pouco significa, pois o mérito não está
fundada ou o receio infundado. Enquanto tivermos em na forma como agimos, mas sim nas razões que nos
nós esses instintos, bem poderás dizer: "estes são os teus levam a agir assim. Há coisa mais perniciosa e que mais 41
deveres para com teu pai, ou para com os filhos, ou para contribua para dissipar um património equestre do que
com os amigos, ou para com os teus hóspedes" - o espí- um banquete de luxo? Há coisá que mais mereça os repa-
rito de lucro será sempre uma causa de hesitações. Um ros do censor quando - para usar os termos dos nossos
homem bem pode saber que se deve lutar pela pátria, gastrónomos! - tal banquete é apenas em honra dos pró-
mas o medo convencê-lo-á do contrário; pode saber que prios e do seu "génio" individual ? E, todavia, ·tem havido
se deve suar em benefício dos amigos até á última gota homens, modelos de frugalidade, que ofereceram banque-
de suor, mas o comodismo impedi-lo-á de o fazer; pode tes inaugurais por um milhão de sestércios. Quer dizer, o
saber que a maior ofensa para uma mulher casada é o mesmo banquete que, motivado pela gula, é deson-
marido ter uma amante, mas a sensualidade impeli-lo-á a roso, já escapa à censura se derivar da obrigação do cargo,
38 arranjar uma. Por conseguinte, de nada servirá dar conse- porquanto, ao contrário do luxo ostentatório, a despesa do
lhos práticos se primeiro se não removem os obstáculos a banquete inaugural é imposta pelo uso. Um dia, oferece- 42
que esses conselhos sejam seguidos, do mesmo modo que ram a Tibério César um rodovalho de tamanho gigantesco
de nada serve pormos à vista e ao alcance de alguém - mas porque não dizer o peso, para fazer crescer a
armas que não poderá usar porque lhe não desamarramos água na boca a uns tantos? -, com quatro libras e meia,

514 515
segundo constou. César mandou-o ser posto à venda no
mercado, dizendo: "Ficarei decepcionado com os meus ami-
1
1 preceitos práticos de utilidade para pais, filhos e irmãos,
mas ninguém poderá obedecer a tais preceitos se não
gos se este rodovalho não for comprado por Apício ou tiver uma regra de conduta geral em que se apoie. É
por P. Octávio!" Sucedeu que a realidade ultrapassou em necessário que nos propunhamos, como finalidade última,
muito as expectativas: organizou-se um leilão, saiu vence- alcançar o sumo bem, e que todos os nossos esforços, acções
dor Octávio, que assim alcançou grande glória no seu cír- e palavras se orientem por essa finalidade. Façamos como
culo de amizades: comprou por cinco mil sestércios o peixe os marinheiros, que orientam a rota na direcção de uma
posto à venda por César e que o próprio Apício não con- determinada estrela. Sem uma finalidade, a vida torna-se 46
seguiu adquirir! Pagar uma tal soma foi um gesto vergo- um andar à deriva; mas se queremos propor-nos uma
nhoso da parte de Octávio, mas já o mesmo não digo do finalidade, começamos a sentir como são indispensáveis os
homem que comprou o peixe na intenção de o oferecer a princípios. Tu admites, acho eu, que não há maior vergo-
Tibério, se bem que mesmo este homem mereça alguma nha do que andar sempre com dúvidas e hesitações, sem
censura por deixar-se seduzir por uma iguaria que saber onde pôr os pés. O mesmo nos sucederá em todas
43 entendeu ser digna de César. Outro exemplo: nós apro- as esferas da vida se primeiro não eliminarmos as causas
vamos alguém que se senta à cabeceira de um amigo
que nos entravam e manietam a alma e a impedem de
doente. Mas suponhamos que o faz com mira na herança:
dar o melhor de si própria.
torna-se um abutre à espera de um cadáver! As mesmas acções,
portanto, podem ser desonrosas ou ho~estas, tudo depen-
Um tema habitual da parenética é o culto a prestar 47
dendo da razão porque são feitas, dos princípios que as aos deuses. Podemos aconselhar as pessoas a não acende-
motivam. Ora, todas as acções serão ·honestas se nós as con- rem lucernas ao sábado 22, porque nem os deuses têm falta
formarmos à moralidade, se pensarmos que entre os homens de luzes nem os homens têm grande prazer na fuligem.
o único bem é o bem moral e tudo quanto deste Podemos impedir as pessoas d~ fazerem as visitas de sau-
44 derive; todos os demais bens são efémeros. Devemos, por dação matinais ou de estacionarem à porta dos templos:
conseguinte, interiorizar esta convicção, que respeita à tota- estes deveres podem agradar às ambições humanas, mas
lidade da nossa vida. É a tal convicção que eu chamo um para prestar culto à divindade basta conhecê-la. Podemos
princípio. Tal como for a natureza desta convicção, assim impedi-las de ofertarem a Júpiter toalhas e raspadores de
serão também as nossas acções e os nossos pensamentos, banho, ou de oferecerem um espelho a Juno: a divindade não
e tal como for a natureza destes, assim será também a carece de instrumentos auxiliares, pela boa razão de que
nossa vida. Dar conselhos parcelares é insuficiente se que-
ela própria é auxiliar do género humano, sempre à
45 remos pôr no bom caminho a totalidade da vida. M.
Bruto, no seu livro rrEpt Ka{)T,Kovroi; 21 , regista muitos
" Alusão ao culto judaico, que, apesar do anti-semitismo mitigado das auto-
ridades romanas, se difundiu um tanto em Roma e chegou mesmo a gozar de
" Peri kathêkontos, "Sobre o(s) dever(es)". uma certa protecção de Popeia, mulher de Nero.

516 517
48 disposição de todos os homens, onde quer que seja. Alguém homem que não seja uma fera para os outros já é coisa
que porventura oiça dizer qual o modo de proceder nos merecedora de encômios... Vamos aconselhar a que se
sacrifícios, ou seja aconselhado a manter-se afastado de estenda a mão ao náufrago, se indique o caminho a quem
superstições doentias, nunca progredirá efectivamente se anda perdido, se divida o pão com o esfomeado? Mas
não conceber no seu espírito a real natureza da divindade, para que hei-de eu enumerar todos os actos que devemos
a qual nada possui mas tudo concede, como ser desinte- ou não devemos praticar quando posso numa só frase
ressadamente benéfico. A razão porque os deuses são ben- resumir todos os nossos deveres para com os outros?
49 fazejos reside na sua própria natureza. Enganamo-nos se Tudo quanto vês, este espaço em que se contém o divino 52
pensarmos que os deuses não querem fazer o mal: eles e o humano, é uno, e nós não somos senão os membros
não o podem! Eles estão ao abrigo das injúrias, tal como de um vasto corpo. A natureza gerou-nos como uma só
são incapazes de as fazer, na medida em que fazer mal ou família, pois nos criou da mesma matéria e nos dará o
sofrer mal são duas coisas que mutuamente se implicam. mesmo destino; a natureza faz-nos sentir amor uns pelos
A sua natureza, a mais excelsa e perfeita que existe, tal outros, e aponta-nos a vida em sociedade. A natureza
como os pôs ao abrigo de todos os perigos igualmente os determinou tudo quanto é lícito e justo; pela própria lei
50 tornou incapazes de constituírem um perigo. O primeiro da natureza, é mais terrível fazer o mal do que sofrê-lo;
acto de culto a prestar aos deuses é acreditar neles; segui- em obediência à natureza, as nossas mãos devem estar
damente, reconhecer neles a majestade, e reconhecer tam- prontas a auxiliar quem delas necessite. Devemos ter gra- 53
bém neles a bondade, sem a qual não há majestade possí- vado na alma, e sempre na ponta da língua, o verso famoso:
vel; saber que são eles que presidem ao universo, que "sou homem, tudo quanto é humano me concerne !" 23
tudo governam graças ao seu poder, e que velam pela Possuamos tudo em comunidade, uma vez que como
segurança da espécie humana mesmo quando não se pre- comunidade fomos gerados. A sociedade humana asse-
ocupam com cada homem individualmente. Os deuses nem melha-se em tudo a um arco abobadado: as pedras que,
ocasionam o mal nem o sofrem; podem, todavia, castigar sozinhas, cairiam, sustentam-se mutuamente, e assim con-
alguns indivíduos, reprimi-los, atribuir-lhes punições, ou seguem manter-se firmes!
mesmo, por vezes, puni-los, dando a aparência de fazerem Já considerámos os deuses e os homens; vejamos agora 54
bem. Se queres ser agradável aos deuses sê tu próprio como devemos lidar com as coisas. Quanto a este ponto,
bom! Prestar-lhes-ás culto em abundância se te limitares a ministrar preceitos sem previamente explanarmos qual a
imitá-los! opinião correcta a ter sobre cada coisa - pobreza, riqueza,
51 Passemos a outra questão: o modo de tratarmos com glória, ignomínia, pátria, exílio - equivaleria a pura perda
o nosso semelhante. Como devemos agir, que preceitos de tempo. Avaliemos cada coisa de per si, sem ligarmos
ministrar? Que não derramemos sangue humano? Ao nos-
so semelhante devemos fazer o bem: aconselhar a não lhe
23
fazer mal, que ridículo! Até parece que encontrar algum Terênào, Heautontimorumenos, 77.

518 519
às opiniões correntes, investiguemos o que cada coisa é de mum ! Se queres que a tua vontade permaneça a mesma,
de facto, e não o que os homens lhe chamam. terás de só desejar a verdade. Ora, à verdade não pode-
55 Passemos às virtudes. Haverá filósofos que pretendem mos chegar sem conhecermos os princípios básicos da
induzir-nos a dar grande valor à prudência, a praticarmos filosofia, os quais incidem sobre a totalidade da vida. O
a virtude da coragem, a nos aplicarmos à justiça - se for bem e o mal, a moralidade e a imoralidade, a justiça e a
possível - com maior empenho ainda do que às restan- injustiça, a piedade e a impiedade, as virtudes e o emprego
tes virtudes. Pois bem: de nada servirão estes conselhos se das virtudes, a posse de bens úteis, a reputação e a digni-
nós ignorarmos o que é a virtude, se ela é una ou múlti- dade, a saúde, a prestança física, a beleza, a acuidade dos
pla, se as virtudes são individualizadas ou interdependen- sentidos - tudo isto exige da nossa parte uma correcta
tes, se quem possui uma virtude possui também as restan- capacidade de avaliação. Há que saber quanta e qual a
56 tes ou não, qual a diferença que existe entre elas. Um importância a conceder aos meios de fortuna. Tu, efecti- 59
operário não precisa de investigar qual a origem ou a utili- vamente, laboras em erro ao atribuir a certas coisas maior
dade do seu trabalho, tal como o bailarino o não tem que valor do que o devido, e laboras tanto mais em erro quanto
fazer quanto à arte da dança : os conhecimentos relativos a é certo que coisas consideradas entre nós como especial-
todas estas artes estão circunscritos a elas mesmas, por- mente valiosas (riqueza, influência, poder) não valem, na
quanto elas não têm incidência sobre a totalidade da vida. realidade, sequer um sestércio. Ora, a isto não poderás
A virtude, porém, implica tanto o conhecimento dela pró- chegar se ignorares a proposição de base através da qual
pria como o de tudo o mais; para aprendermos a virtude acedemos à determinação do valor respectivo de cada coisa.
57 temos de começar por aprender o que ela é. Uma acção Assim como as folhas, isoladamente, não podem estar
não pode ser correcta se não for correcta a vontade, pois viçosas e precisam de ramos em que se sustentem e de
é desta que provém a acção. Também a vontade nunca que recebam a seiva, assim também todos esses preceitos,
será correcta se não for correcto o carácter, porquanto é desamparados, murcham; as podas só medram se plantadas!
deste que provém a vontade. Finalmente, o carácter não De resto, esses filósofos que pretendem abolir os prin- 60
poderá atingir a perfeição se não compreender as leis que cípios de base não percebem que, pelo próprio facto de os
regem a totalidade da vida nem investigar qual o juízo abolirem, estão afinal a confirmá-los. Ao fim e ao cabo,
correcto a fazer sobre cada coisa, em suma, se não aferir qual é a tese deles? Que os preceitos cobrem todos os
todas as coisas pela verdade. A serenidade não é apanágio aspectos da vida, que os princípios de base da filosofia são
senão de quem alcançou um conhecimento imutável e infa- supérfluos. Mas - valham-me os deuses! - esta sua
lível sobre o mundo: os demais tomam agora uma deci- afirmação não equivale menos a um princípio de base do
são, depois arrependem-se e permanecem indecisos sem que se eu dissesse que podemos passar sem preceitos,
saber se hão-de levar ou não até ao fim os seus propósi- como coisa supérflua, que devemos, pelo contrário, servir-
58 tos. A causa que os faz andar assim à deriva é eles -nos dos princípios de base e aplicar-nos apenas ao seu
guiarem-se pelo mais falível dos critérios : a opinião co- estudo: esta mesma frase pela qual eu estava negando

520 37 521
61 interesse aos preceitos é, ela mesma, um preceito!. .. Na dela brotam. Ninguém há que desconheça a utilidade das
filosofia há certas áreas que se contentam com uma breve mãos, a sua função é manifesta; o coração, porém, o órgão
explicação, outras necessitam de demonstração por vezes que faz viver as mãos e comanda os seus movimentos e a
longa por se tratar de matéria muito complexa que ape- sua acção, esse está oculto. Esta imagem reflecte o que se
nas à custa de extrema atenção e inteligência se pode tor- passa com os preceitos, os quais estão à vista de todos,
nar evidente. Mas se as demonstrações são necessárias, enquanto os princípios de base da filosofia se encontram a
necessários são também os princípios pelos quais, a partir nível mais profundo. Tal como ao nível do sagrado ao
dos argumentos, se apresenta sinteticamente a verdade. que há de mais sagrado só os iniciados têm acesso, tam-
Há princípios que são evidentes, outros que são obscuros: bém no domínio da filosofia os princípios secretos só são
são evidentes aqueles que para serem entendidos se con- revelados aos que são dignos de aceder ao santuário; em
tentam com os sentidos ou a memória; são obscuros os contrapartida, os preceitos e outras fórmulas do mesmo
que se situam a um nível superior. A razão, de facto, não tipo estão aberras ao conhecimento mesmo dos profanos.
está limitada àquilo que é imediatamente evidente; na sua Posidónio considera imprescindível não apenas a téc- 65
maior e melhor parte, aplica-se ao que escapa aos senti- nica "preceptiva" (já que nada me proíbe o uso deste
dos. Ora, o que escapa aos sentidos exige demonstração, e vocábulo), mas ainda o uso da persuasão, da consolação e
sem princípios de base não pode haver demonstração; logo, da exortação; a estas acrescenta ainda a investigação das
62 os princípios de base são indispensáveis. De uma mesma causas, ou seja, a "etiologia", pois se os gramáticos, esses
fonte nascem o senso comum e o correcto sentido da rea- defensores da pureza do latim, se sentem no direito de
lidade: a apreciação exacta da natureza das coisas. Se, por chamar-lhe assim, não vejo porque motivo eu hei-de fugir
falta dela, tudo na nossa alma anda à deriva, são indis- ao emprego deste vocábulo. Diz Posidónio que também
pensáveis princípios de base capazes de dar ao nosso espí- terá utilidade a descrição individúal de cada virtude, isto é,
63 rito uma infalível capacidade de julgar. Em suma, quando o que ele chama etologia, e outros caracterismo, quer dizer,
aconselhamos alguém a tanto estimar um amigo como a a indicação das características e dO' valor de cada virtude e
si próprio, ou a pensar que um inimigo se pode trans- de cada vício, e qual o modo de distinguir comportamen-
formar em amigo, quando o incitamos a aumentar o seu tos aparentemente similares. Esta última técnica tem um 66
amor pelo primeiro e a refrear o ódio pelo segundo acres- alcance idêntico ao da parenética; só que, ao preceituar,
centamos: "este procedimento é justo, é conforme à moral!" . dizemos: "Se queres ser temperado, age desta ou daquela
Ora, a razão que determina os nossos princípios de base maneira'', ao passo que ao descrever diremos: "o homem
contém em si as noções de "justiça" e de "moralidade'', temperado é o que faz esta acção e se abstém daquela
por conseguinte ela é indispensável, pois sem ela não outra". Por outras palavras, a diferença consiste em que
64 podemos conceber tais noções. Combinemos, todavia, a num caso damos preceitos de virtudes, no outro apresen-
dogmática com a parenética: se os ramos são inúteis sem tamos um modelo. Não nego que tais descrições, ou fichas
a raiz, também a raiz pode tirar proveito dos ramos que de registo, para usar a linguagem dos publicanos, tenham

522 523
os pompeianos, mostrando que havia ainda um terceiro
a sua utilidade: exponham-se obras dignas de admiração,
67 sempre aparecerá quem as imite! Consideras útil conhecer partido: o da república! Na realidade, é pouco dizer de
Carão que ele "não treme ao ouvir vãos ruídos". Pois se
os argumentos que provam a excelência de um cavalo
para que não sejas ludibriado ao comprar ou perder o te~
ele não tremeu ao ouvir os ruídos autênticos, e bem pró-
ximos, da guerra, se ele ousou erguer livremente a sua
tempo com uma pileca? Muito mais útil te será conhecer
voz contra as dez legiões de César e as tropas auxiliares
as características de uma alma nobre, características que,
gaulesas, mais as suas armas bárbaras lado a lado com as
vendo-as em outros, poderás aplicar à tua pessoa.
romanas, para exortar a república a não abdicar da liber-
68 "Sem demora a cria de raça nobre pelos campos
dade, a lutar até ao limite, já que preferível seria ser feito
marcha altaneira, as tenras patas flectindo;
escravo à força do que aceitar a escravidão sem resistên-
antes dos demais põe-se a caminho, afronta as tor-
cia! Que vigor, que energia de alma havia neste homem, 71
rentes impetuosas sem receio, afoita-se a percorrer
que autoconfiança ele demonstrou num momento em que
um trilho ignoto, e não treme ao ouvir vãos ruí-
todos tremiam de pavor! Ele sabia ser o único cuja situa-
dos. Tem erecto o pescoço, fina a cabeça, breve o
ção não estava em causa: a questão, de facto, não consistia
ventre, liso o dorso, e o peito animoso é muscu-
em saber se Carão seria livre, mas sim se viveria entre
lado e forte ...... .
homens livres; daí o desprezo com que ele encarava o
... E, quando ao longe se ouve o sinal do combate,
perigo das armas. Quem quer que se sinta tomado de
não pára quieto, erguem-se-lhe as orelhas, as per-
admiração pela invencível firmeza deste homem, inabalá-
nas tremem e a custo reprime nas narinas a respi-
vel mesmo entre a derrocada geral, sentirá vontade de
ração ardente /" 20
69 exclamar: "o seu peito animoso é musculado e forte! ... "
Tratando embora um assunto diferente, o grande Ver-
Será útil não nos limitarmos a ver quais os traços, as 72
gílio faz nestes versos a descrição do autêntico herói! Pelo
características gerais que habitualmente identificam os ho-
menos não é diferente a imagem que eu faço do que seja
mens de bem, mas antes expor ~m pormenor como eles
um herói. Se eu quisesse descrever a atitude de M. Carão
impávido entre os fragores da guerra civil, partindo a~
de facto agiram: referir, por exemplo, a ferida mortal que
Carão, como decisivo acto de coragem, inflingiu a si mesmo,
ataque do exército inimigo que já descia dos Alpes, opondo
ferida por onde a liberdade republicana exalou o i.'iltimo
o próprio peito à guerra civil - pois não o pintaria com
suspiro; ou a sapiência de Lélio e a harmonia em que
70 outro rosto, não lhe atribuiria outra atitude. Ninguém
viveram ele e o seu amigo Cipião; ou os feitos sublimes,
decerto jamais mostrou maior coragem do que este homem
pi'1blicos e privados, do outro Carão; ou o banquete oficial
que se ergueu ao mesmo tempo contra César e contra
oferecido por Q. Tuberão, com os seus leitos de madeira
Pompeio, que desafiou por igual quer os cesarianos quer
cobertos com peles de cabra em vez de colchas e a baixela
de argila, usada diante do templo de Júpiter. Que signifi-
21 cou um tal banquete senão a consagração da pobreza em
Vergílio, Georg., III, 75-81 e 83-85.

525
524
· pleno Capitólio? Ainda que eu não conheça mais nenhuma .1

acção sua digna de o pôr na companhia dos Catões, esta,


só por si, acaso não bastará? Isto não foi um banquete:
73 foi uma censura pública! Até que ponto vai a ignorância
dos homens que ambicionam a glória sem saber o que ela
é nem a via para a alcançar! Nesse dia, o povo romano LIVRO XVI
teve ensejo de contemplar muitas baixelas, mas só a de
Tuberão o maravilhou. O ouro e a prata de todos os
outros foram quebrados e fundidos mil vezes; os copos de
(Cartas 96-100)
barro de Tuberão, esses, durarão através dos séculos!
96
Continuas então a indignar-te ou a lamentar-te disto ou 1
daquilo, sem entenderes que o único mal efectivo é o
próprio facto de tu te indignares ou te lamentares?! Se
queres saber a minha opinião, eu entendo que nenhum
motivo de aflição existe para o homem além da própria
circunstância de ele julgar que a natureza contém em si
motivos de aflição. No dia em que eu deixar de poder
suportar o que quer que seja, deixarei de poder suportar-
-me a mim mesmo. Falta-me a saúde: é parte do meu
destino. Os escravos adoeceram: os rendimentos foram-se,
a casa abriu rachas, caíram sobre mim prejuízos, ferimen-
tos, preocupações, perigos: tudo isso é natural. Direi mesmo
mais: é inevitável! São condições a que estamos obrigados,
e não meros acidentes. Se tens alguma confiança em mim, 2
revelar-te-ei totalmente os meus mais íntimos sentimen-
tos: eu formei o meu carácter no meio de toda a espécie
de circunstâncias aparentemente desfavoráveis e duras; mas
não me limito a ceder à vontade dos deuses, dou-lhes
mesmo a minha concordância; submeto-me espontanea-
mente, e não apenas por tal ser inevitável. Nunca me
acontece nada que eu receba com amargura ou de má
cara; não há imposto algum que eu pague contra vontade.

526 527

,;• . ,-
.' • ""-• f • • . .. ~
Ora, todas as ocorrências que nos causam gemidos ou era esteve isenta de culpa. Se te puseres a avaliar o desre-
receios são somente os impostos que a vida nos exige. De gramento de cada época, (envergonho-me de o dizer!),
tais impostos, meu caro Lucílio, não poderás esperar, nem nunca ele foi mais patente do que no tempo de Carão.
3 sequer pedir, isenção! Andaste aflito com uma dor na Haverá quem possa acreditar que houve tentativas de 2
bexiga, recebeste notícias pouco consoladoras, tens sofrido sulxxno no julgamento em que P. Clódio compareceu como
contínuos prejuízos - irei mesmo mais longe, estiveste réu devido ao adultério cometido durante os Mistérios
em risco de vida. E então, quando desejavas chegar a com a mulher de César, com total violação dos rituais do
velho não sabias que tudo isso estava implícito no teu sacrifício dito "em interesse do povo'', durante o qual era
desejo? Numa longa vida encontra-se de tudo, tal como tão rigorosa a exclusão dos homens do recinto sagrado
4 numa estrada longa se encontra poeira, lama e chuva. "Eu que até se tapavam as pinturas representando animais
desejava viver, sim, mas ao abrigo de todas essas contra- machos? 1 Pois não só foi oferecido dinheiro aos juízes
riedades!" Ah, que palavras tão efeminadas, tão indignas como ainda - o que ultrapassa em abjecção o próprio
de um homem! Vamos a ver como tu aceitas este voto suborno - se praticou estupro (para cúmulo!) sobre
que eu te faço - e faço-o não só de boa vontade mas matronas e adolescentes da nobreza! Foi menos desonroso 3
com a melhor das intenções: possam todos os deuses con- o crime do que a absolvição: o réu de adultério comparti-
seguir que a fortuna nunca te cubra com as suas boas gra- lhou os seus adultérios e não se sentiu seguro da absolvi-
5 ças. Pergunta a ti próprio, no caso de algum deus te pro- ção antes de ter tornado os juízes iguais a si. E tudo isto
porcionar a opção, se preferirias viver num mercado ou sucedeu durante um processo em que, se mais não hou-
num acampamento militar. É que viver, Lucílio, é uma vera, Carão comparecera como testemunha. Cito-te as pró-
milícia! Os homens que são mandados para a frente, que prias palavras de Cícero, pois o caso excede quanto se
realizam marchas forçadas e duras por montes e vales, possa crer:
que afrontam as missões mais arriscadas, esses são os "Convocou os juízes para sua casa, prometeu, garantiu, 4
heróis, são os soldados de elite; aqueles que se deixam ofereceu. Mais ainda (ó bons deuses, que perversidade!),
ficar cobardemente numa vergonhosa ociosidade, enquanto passar a noite com determinadas mulheres e em entrevis-
os camaradas afrontam o risco, não passam de "umas tas galantes com adolescentes da nobreza foi prenda suple-
rolinhas" que se escondem dos ataques! mentar oferecida a vários juízes 1" 2 Já nem vale a pena 5
deplorar o salário, o pior de tudo foi o suplemento.
"_ Interessa-te a mulher daquele indivíduo austero?
97
1 Enganas-te, caro Lucílio, se pensas que o luxo, o des-
prezo pelos bons costumes e aquilo que cada um em geral
1
Os Mistérios aqui aludidos são os da Magna Mater; tratava-se de um culto
reservado exclusivamente às mulheres. O crime de Clódio era, portanto, dupla-
critica na sua própria época são vícios do nosso tempo: mente grave: adultério e violação dos Mistérios.
tudo isso é próprio dos homens, não das épocas. Nenhuma 2
Cícero, ,u/ Atticttm, 1, 16, 5.

528 529
Queres antes a deste ricaço? Arranjarei modo de dormires f devemos acreditar que esses homens eram mais rigorosos
com ela. Se não cometeres um adultério, podes condenar- como espectadores do que como juízes! Casos destes dar-
-me! Esta beldade que tu pretendes aparecerá. Prometo-te -se-ão, como se têm dado; o desregramento das cidades
uma noite com ela, e sem tardar muito: antes que passem pode ocasionalmente diminuir pelo medo da autoridade,
vinte e quatro horas, a minha promessa estará cumprida." mas nunca espontaneamente. Não há, portanto, razão para 9
Tem mais que se lhe diga distribuir adultérios do que pensares que nós nos distinguimos por excesso de licen-
cometê-los; aquilo é o que se chama uma notificação às ciosidade e falta de respeito pela lei. A nossa juventude é
6 mães de família! Os juízes de Clódio pediram ao senado mais saudável do que a dos tempos em que o réu negava
uma escolta, coisa que só seria necessária se eles estives- o seu adultério perante os juízes mas os juízes confessa-
sem dispostos a condená-lo, e obtiveram-na, o que fez
vam o seu diante do réu, em que se cometia estupro para
Cátulo dizer-lhes espirituosamente, depois de absolvido o réu:
poder prosseguir o julgamento, em que Clódio - caído
"- Para que nos pedistes a escolta? Foi para não vos
em boas graças devido aos vícios que o conspurcavam -
roubarem o dinheiro?"
fazia ofício de alcoviteiro durante a própria instrução do
Entre estes remoques, Clódio saiu-se impunemente;
processo. Quem poderá crer que um homem a quem um
adúltero antes do julgamento, proxeneta durante o julga-
mento, evitou a condenação de um modo mais infamante adultério devia fazer condenar foi, afinal, absolvido graças
do que aquele por que a tinha merecido. a v<1rios adultérios?
7 Achas que poderá haver costumes mais corruptos do Qualquer época tem os seus Clódios, mas nem todas 10
que estes, em que a lubricidade nem sequer era refreada produzem Catões ! Facilmente enveredamos pelo mal, em
pela religião, nem pelos tribunais, em que durante o inqué- que nunca faltará guia ou ·companheiro, embora para pro-
rito instaurado por Senarusconsulto se cometeram mais gredir no mal não faça falta guia ou companheiro. Para
delitos do que os que faziam o objecto do inquérito? A o vício há, não apenas uma tendência, mas um verdadeiro
questão era se, depois do adultério, alguém podia viver instinto cego, que torna muitos homens incapazes de qual-
em segurança; verificou-se que em segurança ninguém quer correcção; em qualquer outra arte as imperfeições são
podia viver sem adultério! motivo de vergonha para o respectivo artífice, o qual se
8 Eis ao que se chegou nos tempos de Pompeio e César, sente confuso ante o seu erro; as imperfeições na arte da
de Cícero e Carão, daquele mesmo Carão ante cuja pre- vidã, essas são motivo de prazer! Um timoneiro não se 11
sença a multidão se recusou a admitir a comparência, nas alegra quando o barco se vira, um médico não se alegra
festas de Flora 3, das habituais prostitutas nuas .. ., se é que quando o doente morre, um orador não se alegra se o réu
é condenado por culpa do advogado, mas, inversamente,
qualquer vício é fonte de prazer para quem o possui:
3
As festas de Flora - Ludi Florales, Flora/ia - celebravam-se desde 28 de àquele, agrada-lhe o adultério, cujas dificuldades mais lhe
Abril a 3 de Maio, e comportavam representações cénicas e espectáculos no
circo. A sua origem remonta a meados do séc. III a.C., - Sobre este festival v. acendem o apetite; aquele outro compraz-se na falcatrua e
Ovídio, Fasti, V, 183 ss. no roubo, e o seu crime só lhe causa desagrado quando

530
não lhe sorri a fortuna. Uma depravada habituação conduz
evitar o medoº; mas podemos estar de acordo em que os
12 a este resultado. De resto, para veres como mesmo os
maus actos são castigados pela consciência de os ter come-
espíritos propensos aos piores crimes conservam a noção
tido, e que tanto maior é o grau de tortura que se lhes
do bem (não ignoram que agem mal, mas não ligam)
segue por ser contínua a angústia que oprime e atormenta
repara como todos dissimulam os seus actos e, quando as
a consciência, a tal ponto que nem sequer consegue con-
coisas lhes correm a contento, gozam os benefícios do
fiar nas garantias de segurança que se lhe oferecem. Isto
crime mas nunca revelam o que fizeram! A consciência
prova precisamente, Epicuro, que é natural em nós a repug-
tranquila aspira a surgir ante a vista de todos; a maldade,
nância pelo crime, pois mesmo na mais completa segu-
essa, até as trevas receia. Em meu entender, teve toda a
rança ninguém consegue escapar ao medo. A sorte pode 16
13 razão Epicuro quando disse: "Um criminoso pode ter
evitar a muitos o castigo, mas a ninguém evita o medo. E
a sorte de conservar-se oculto, mas não pode estar seguro
porquê, senão porque é inata em nós a aversão por qual-
de assim permanecer." 1 Talvez percebas melhor a ideia se
quer acto c~ndenado pela natureza? Por isto nunca podem
eu disser por outras palavras: é inútil aos criminosos
confiar no seu esconderijo nem mesmo os que estão bem
ocultarem-se, pois ainda que tenham a sorte de encontrar
escondidos, porque a consciência os acusa e os mostra a si -
um esconderijo nunca se podem sentir totalmente confia-
mesmos como são. Tremer de medo, aqui está o sinal que
dos. É assim mesmo, um crime pode conservar-se escon-
distingue os criminosos. Imperfeita seria a espécie humana
14 dido, mas nunca pode alcançar a segurança. Não creio que,
(pois muitos crimes escapam à Lei, à justiça, às penas
ao resolver deste modo o problema, eu vá contra os prin-
estabelecidas) se a natureza não fosse a primeira a exigir
cípios da nossa escola. E porquê? Porque o primeiro
desde logo reparação, e se o medo não actuasse como
e maior castigo de um criminoso é ter cometido o acto, e
sucedâneo do castigo.
nenhum crime, por muito que a fortuna o adorne com os
seus dons, o proteja e o reivindique, escapa ao castigo,
uma vez que o próprio crime constitui a punição por esse 98
crime. Além disso, persegui-lo-ão estreitamente as penas
Acredita que ninguém é feliz quando treme Pela sua feli- 1
do segundo grau: o medo contínuo, o pavor, o nunca con-
cidade. Não se apoia em bases sólidas quem tira a sua
fiar na aparente segurança. Porque havia eu de libertar
satisfação de bens exteriores, pois acabará por perder o
15 deste suplício a iniquidade? Porque não hei-de deixá-la
bem-estar que obteve. Pelo contrário, um bem que nasce
sempre em suspenso? Mas devemos discordar de Epicuro ·
dentro de nós é permanente e constante, e vai sempre
no ponto em que ele diz que nada é justo por natureza, e
crescendo até ao nosso último momento; todos os demais
que devemos evitar os crimes porque nos é impossível
bens ante os quais se extasia o vulgo são bens eféme-

' Epituro, fr. 532 Usener.


' Epin1ro, fr. 53 1 Usener.

532
533
ros. "E então? Quer isso dizer que são inúteis e não podem do acaso e do condicionalismo que o acompanha, se, com
dar satisfação?" É evidente que não, mas apenas se tais insistência mas sem amargura, repetires a ti próprio em
bens estiverem na nossa dependência, e não nós na depen- cada contrariedade que
6
2 dência deles. Tudo quanto cai sob a alçada da fortuna ªos deuses decidiram de outro modo!"...
Melhor ainda, por Hércules!, deixa-me arranjar um 5
pode ser proveitoso e agradável na condição de o seu
verso mais enérgico e correcto para robustecer o teu espí-
beneficiário ser senhor de si próprio em vez de ser servo
rito: sempre que te aconteça alguma coisa contrária à tua
das suas propriedades. É um erro pensar-se, Lucílio, que
expectativa diz a ti mesmo que os deuses tomaram uma
a fortuna nos concede o que quer que seja de bom ou de
decisão superior! Com semelhante disposição de espírito,
mau; ela apenas dá a matéria com que se faz o bom e o
nada terás a temer. Esta disposição de espírito consegue-se
mau, dá-nos o material de coisas que, nas nossas mãos, se
pensando na instabilidade da vida humana antes de a
transformam em boas ou más. O nosso espírito é mais experimentarmos em nós, olhando para os filhos, a mulher,
poderoso do que toda a espécie de fortuna, ele é quem os bens como algo que não possuiremos para sempre, e
conduz a nossa vida no bom ou no mau sentido, é nele evitando imaginarmo-nos mais infelizes um dia que dei-
que está a causa de nós sermos felizes ou desgraçados. xemos de os possuir. Será a ruína do espírito andarmos 6
3 Um homem mau faz tudo redundar em mal, mesmo ansiosos pelo futuro, desgraçados antes da desgraça, sem-
quando aparentemente as coisas se apresentavam excelen- pre na angústia de não saber se tudo o que nos dá satis-
tes; um espírito justo e íntegro sabe corrigir os erros da fação nos acompanhará até ao último dia; assim, nunca
fortuna, sabe, pela sua mesma sabedoria, temperar as ocor- conseguiremos repouso e, na expectativa do que há-de vir,
rências adversas e difíceis de suportar; um tal espírito é deixaremos de aproveitar o presente. Situam-se, de facto,
capaz de acolher a felicidade com gratidão e temperança, ao mesmo nível a dor por algo perdido e o receio de o
perder. Isto não quer dizer que te esteja incitando à apa-
de enfrentar a adversidade com firmeza e coragem. Ima-
tia! Pelo contrário, procura evitar as situações perigosas; 7
ginemos um homem experiente, que não faz nada sem
procura prever tudo quanto seja previsível; procura conjec-
ter analisado totalmente a questão, que nunca tenta nada turar tudo o que pode ser-te nocivo muito antes de que te
que esteja acima das suas forças: tal homem nunca alcan- suceda, para assim o evitares. Para tanto, ser-te-á da maior
çará aquele supremo e completo bem acima de todas as utilidade a autoconfiança, a firmeza de ânimo apta a tudo
contingências se não se sentir seguro em face da insegu~ enfrentar. Quem tem ânimo para suportar a fortuna é
4 rança. Se observares os outros (já que costumamos ser capaz de precaver-se contra ela; mas nada de angústias
melhores juízes em causa alheia), ou se te analisares a ti quando tudo estiver tranquilo! O cúmulo da desgraça e da
próprio sem parcialidade, serás forçado a admitir que aque-
les bens que tens por desejáveis e preciosos te serão inú-
teis se previamente não te preparares para a falibilidade '' Vergílio, llen., II, 128.

534 535
estupidez está no medo antecipado: que loucura é esta, ser entendermos, esta verdade é uma consolação para nós.
8 infeliz antecipadamente? Em suma, para numa palavra te Perde, pois, imperturbavelmente: tudo um dia morrerá.
resumir o que eu penso e te descrever como são estes Que socorro podemos conseguir contra todas as nossas 11
homens que, à força de se preocuparem, só conseguem perdas? Apenas isto: guardemos na memória as coisas que
fazer mal a si próprios: tanta falta de moderação eles perdemos sem deixar que o proveito que delas tiramos
mostram em plena desgraça como antes dela! Quem sofre desapareça também com elas. Podemos ser privados de as
possuir, nunca de as ter possuído. É extremamente ingrato
antes de tempo sofre mais do que o devido; uma mesma
quem pensa que já nada deve porque perdeu o emprés-
incapacidade leva-o a não prever a presença da dor onde
timo! O acaso privou-nos do objecto, mas deixou em
não a espera; uma mesma imoderação fá-lo imaginar per-
nós o uso e proveito que dele tiramos, e que nós deixa-
manente a sua felicidade, imaginar que os bens que o
mos esquecer pelo perverso desejo de continuar a pos-
acaso lhe deu não só hão-de perdurar como também de
suí-lo! Diz a ti próprio que "tudo o que se nos afigura 12
multiplicar-se; esquecido do trampolim que é a vida humana, terrível pode ser superado". Muitos tem havido que triun-
convence-se de que no seu caso, por excepção, o acaso faram de um ou de outro obstáculo: Múcio triunfou do
9 deixará de se fazer sentir. Por isto mesmo eu dou toda a fogo, Régulo da cruz, Sócrates do veneno, Rutílio do exílio,
razão a Metrodoro quando, numa carta dirigida à irmã Catão do suicídio pela espada; triunfemos nós também de
por ocasião da morte de um filho de nobre carácter, lhe qualquer coisa! Também muitos têm existido que despre- 13
disse: "Todo o bem relativo aos mortais é mortal.'" 7 Ele zam aqueles bens por cuja beleza e promessa de bem-
refere-se àqueles bens que correntemente os homens pro- -estar o vulgo se deixa atrair. Fabrício recusou a riqueza
curam alcançar, porquanto o verdadeiro bem - a sabedo- quando general, recusou-a quando censor; Tuberão enten-
ria e a virtude - é seguro e eterno; é este bem, aliás, a deu que a pobreza não o deslustrava, nem a ele nem ao
10 única coisa imortal que é concedida aos mortais. Estes, Capitólio, quando, ao utilizar no banquete público uma
porém, são tão falhas, tão esquecidos do caminho que baixela de barro, demonstrou que. os homens se deviam
seguem, do termo para que cada dia os vai arrastando contentar com os utensílios de que até os deuses se ser-
que se admiram quando perdem alguma coisa - eles que, viam. Sêxtio, o pai, recusou as magistraturas, ele que, pelas
mais tarde ou mais cedo, hão-de perder tudo! Tudo aquilo suas qualidades inatas merecia chefiar a República, e não
de que és considerado dono está à tua mão, mas sem ser aceitou a banda larga 8 que o divino Júlio lhe oferecia; bem
consciente estava de como o que pode dar-se pode igual-
verdadeiramente teu; um ser instável nada possui de está-
vel, um ser efémero nada possui de eterno e indestru-
tível. Perder é tão inevitável como morrer; se bem . a
x A handa /arl!,ú (de púrpura) ornava a roga dos senadores, por oposição à
handa estreita que decorava a roga dos cavaleiros. Sêxtio, portanto, re<.usou a
oferta que César ("o divino Júlio"') lhe fazia de inserir o seu nome na lista dos
' Merrodoro, fr. 35 Koerre. membros da classe senatorial.

536 38 537
mente tirar-se! Façamos nós também algo que mostre vência só servir como pasto para a dor. Este caso, amigo 17
14 grandeza de alma; sejamos nós também um exemplo. Por- Lucílio, é uma lição prática de filosofia, uma experiência
quê perder a coragem? Porquê perder a esperança? O que real: observa que coragem um homem experimentado tem
outros puderam, também nós o podemos, desde que lim- de usar em luta com a morte e com a dor, quando se vê
pemos o nosso espírito e sigamos a natureza, pois a quem assediado por uma e golpeado pela outra. Há que apren- 18
dela se afasta só resta ser presa de desejos e receios, só der a agir vendo alguém a agir. Até agora, servi-me de
resta a servidão perante o efémero. É possível voltarmos ao argumentos para discutir se é possível a resistência à dor,
bom caminho, recobrarmos a nossa integridade; recobremo- ou se a proximidade da morte basta para quebrantar mes-
-la, pois, para sermos capazes de fazer frente à dor por mo as almas fortes. Mas para quê palavras? Considera
onde quer que ela nos ataque o corpo, para podermos este caso real: ao nosso amigo, nem a morte o torna
dizer à fortuna: "Estás lidando com um homem! Procura mais resistente à dor, nem a dor mais resistente à morte.
quem tu possas vencer!" Contra ambas é em si apenas que ele confia, nem pade-
15 * * *9 Com discursos como este, ou semelhantes a cendo pacientemente com esperança na morte, nem mor-
este, apazigua-se a intensidade da úlcera, que aliás faço rendo voluntariamente por saturação da dor; limita-se a ir
votos por que se reduza e se cure ou, pelo menos, esta- suportando esta enquanto vai aguardando por aquela!
cione e vá envelhecendo com o nosso homem! Por ele
próprio, aliás, eu nada receio; nós é que ficamos a perder
quando ficarmos sem a presença deste ilustre velho 10• Ele 99
continua cheio de vida, e se deseja que esta se prolongue Venho enviar-te uma cópia da carta que escrevi a 1
não é por si, mas por aqueles a quem a sua presença é Marulo aquando da morte de um filho de tenra idade -
16 útil. O facto de continuar vivo é uma liberalidade da sua morte que, dizia-se, ele suportou ,com quase nula coragem!
parte. Outro qualquer já teria posto fim a semelhante Nesta carta não segui o nosso processo habitual, nem achei
sofrimento. Ele, porém, entende que tão vil é fugir da por bem falar-lhe brandamente, pois o nosso homem mais
morte como buscar refúgio na morte. "Que dizes? Se as merecia ser repreendido que consolado. uma ressoa que
condições a isso aconselharem não se deve sair volunta- fica perturbada e mal consegue aguentar um golpe pro-
riamente desta vida?" Claro que sim, quando o homem já fundo tem de ir recuperando a pouco e pouco, até que a
não for de utilidade para alguém, quando a sua sobrevi- dor vá esmorecendo ou pelo menos perca a violência ini-
cial. Mas a estes homens que fazem do pranto um dever 2
há que chamá-los à ordem directamente e ensinar-lhes até
9
Na sequência de Muret, na sua edição de 1587, todos os filólogos estão de que ponto as lágrimas podem denotar insensatez.
acordo em marcar aqui uma lacuna. Hense pensa que a carta 98 termina no § 14,
e que o texto a partir do § 15 já pertencerá a outra epístola, cujo inicio se perdeu.
"Estavas à espera de consolo? Pois vais apanhar úma
10
Cf. a nota antecedente. Ignora-se quem será este "ilustre velho", amigo descompostura! Tanta cobardia tu mostras pela morte do
comum de Séneca e de Lucílio. teu filho? Que farias se tivesses perdido um amigo?

538 539
Faleceu-te um filho, de futuro incerto, de pouca idade; se realizar, o outro nunca pode deixar de ter acontecido.
3 perdeu-se apenas um breve espaço de tempo! Nós pró- Que loucura é esta que nos faz não dar importância ao
prios buscamos motivos de sofrimento, ansiosos por nos que temos de mais certo? Mostremo-nos satisfeitos por
queixarmos da fortuna mesmo sem razão, como se não fosse tudo o que nos foi dado gozar, a não ser que o nosso
seu papel dar-nos justos motivos de queixa; agora tu, . espírito seja um cesto roto onde o que entra por um lado
valham-me os deuses!, já me parecias homem de coragem vai logo sair pelo outro !
mesmo ante os males reais, quanto mais perante estes "Há inúmeros exemplos de homens que perderam 6
simulacros de desgraça que levam os homens a gemer por filhos jovens sem soltar uma lágrima, que, ao voltarem do
mera obediência à tradição!... Mesmo que tivesses sofrido funeral, se dirigiram para o Senado ou qualquer outro
a perda de um amigo (o que seria o máximo dos infortú- serviço público, e logo se lançaram ao trabalho. E assim é
nios), mesmo assim devias aplicar toda a tua energia em que é: primeiro, porque é inútil sofrer quando não se
mostrar-te mais alegre por o ter possuído do que triste ganha nada com isso; segundo, porque é injusto lamentar-
4 por o ter perdido. Muita gente há, contudo, que não sabe mo-nos por algo que aconteceu a um, mas que há-de
avaliar todo o bem de que lhe foi dado gozar. Entre acontecer a todos; finalmente, porque não há forma mais
outros defeitos, este tipo de dor possui ainda mais um: estúpida de queixume do que a saudade - e sentir sauda-
não só se revela inútil como ingrato. Lá porque te faleceu des é quase a mesma coisa que chorar um morto! Por
um excelente amigo quer isto dizer que foi nula a sua isso mesmo - porque nós iremos atrás dos falecidos -
acção? Tantos anos de vida em comum, de íntima comu- tanto maior energia de alma devemos mostrar. Repara na 7
nhão de interesses, resultaram em nada? Ao falecer o rapidez com que passa o tempo, atenta na exiguidade
amigo faleceu igualmente a amizade? Porque sofres agora desta ínfima fracção que nós percorremos a toda a veloci-
de o teres perdido se de nada te serve teres gozado o seu dade, considera todos estes seres , humanos que se dirigem
convívio? Acredita-me: daqueles a quem amámos, mesmo em massa para um mesmo ponto, separados uns dos outros
quando o destino nos roubou a sua companhia, uma parte por intervalos brevíssimos mesmo quando se nos afigu-
importante permanece em nós; pertence-nos a passagem ram muito longos: o filho que tu julgas ter morrido ape-
do tempo, pois nada goza de maior segurança do que o nas partiu à tua frente! Haverá algo de mais estúpido do
5 passado. Nós mostramo-nos ingratos em relação ao que que chorá-lo por te ter precedido numa viagem que tu
nos foi dado por esperarmos sempre no futuro, como se também hás-de fazer? Alguém chora por qualquer coisa 8
o futuro (na hipótese de lá chegarmos) não se transfor- que sabe de certeza vir a acontecer? Se não pensamos que
masse rapidamente em passado. Quem goza apenas do o homem é mortal estamos a iludir-nos a nós mesmos.
presente não sabe dar o correcto valor aos benefícios da Alguém chora por qualquer coisa que sempre disse ser
existência; quer o futuro quer o passado nos podem pro- inevitável? Quem se lamenta por alguém ter morrido está
porcionar satisfação, o primeiro pela expectativa, o segundo a lamentar a existência do homem. Todos nós estamos
pela recordação; só que enquanto um é incerto e pode não submetidos às mesmas leis: quem nasce tem por força de

540 541
9 morrer. Não partimos todos juntos, mas o fim é igual probabilidade de insucesso! Ele poderia vir a ser um
para todos. O espaço que medeia entre o primeiro e o homem comedido e avisado, poderia, sob a tua orientação,
último dia da nossa vida é incerto e variável: se pensar- vir a tornar-se um bom carácter; mas também poderia
mos nas doenças, até uma criança pode ter uma vida (causa de justas apreensões!) vir a tornar-se igual à maio-
longa; se atentarmos na rapidez do tempo, até a vida de ria. Vê todos esses jovens de excelente família que, por 13
11
um velho é curta. Nada temos que não seja instável, ilu- pura extravagância, vão combater no circo ; vê todos esses
sório, mais transitório do que o próprio tempo; tudo o outros que nada mais fazem senão excitar os mais baixos
que é humano se altera e, se a fortuna o quiser, se con- prazeres em si e nos outros, numa li~rtinagem generali-
verte no seu oposto; na imensa voragem da existência zada, e que nunca chegam ao fim do dia sem uma bebe-
humana a única certeza que temos é a morte; e apesar deira ou qualquer outra insigne perversão: nestes casos é
disso todos se queixam da única coisa que não engana bem evidente que teria havido melhores motivos para
ninguém! temer do que para esperar! Não deves, portanto, buscar
10 "Mas ele morreu ainda criança!" Bom, eu não direi tu próprio razões para sofrer, nem aumentar com a tua
que seja preferível deixar rapidamente esta vida. Mas revolta o que não passou de ligeira contrariedade. Não te 14
observemos o caso de um velho e repara quão exíguo é o estou incitando a que faças um grande esforço para reagir:
tempo que ele tem de vantagem sobre a criança. Repre- não penso tão mal de ti que considere ser teu dever
senta no teu espírito toda a vastidão das profundezas do recorrer a todas as forças da virtude contra este caso. De
tempo até atingires a dimensão do universo, compara depois facto, a morte do teu filho não é uma verdadeira ferida,
a essa imensidão aquilo a que nós chamamos o tempo de mas somente um arranhão; tu é que transformas o arra-
uma vida humana e verás até que ponto é diminuta essa nhão em ferida. Não tenho dúvidas de que a filosofia te
extensão por que nós ansiamos e que fazemos por pro- terá sido de grande utilidade nô dia em que conseguires
longar. E desse breve espaço quanto não cabe a lágrimas recordar com tranquilidade um filho que ao morrer conhe-
11 e angústias? Quanto, ao desejo da morte prematura, à cia melhor a ama do que o próprio pai!
doença, ao medo? Que espaço não ocupam os anos inúteis "Quer isto dizer que eu te esteja persuadindo à dureza, 15
da inexperiência? Metade da vida passamo-la a dormir. a manter o rosto empedernido mesmo durante o funeral,
Junta a isto os sofrimentos, as dores, os perigos e verás a não sentir o mínimo aperto na alm~? De modo nenhum!
como, mesmo numa vida assaz longa, é muito pouco aquilo Seria prova não de virtude mas de desumanidade contem-
que vivemos. Quem te garante que não foi afinal mais plar os parentes mortos com o mesmo olhar que se com-
feliz o teu filho ao ser-lhe dado partir depressa daqui, e tem piavam os parentes vivos, ou não sentir qualquer
terminar o seu percurso antes de se cansar dele? A vida comoção pela primeira separação dos familiares. Ainda
em si não é nem um bem nem um mal, mas apenas o
local onde se encontra o bem e o mal. Ele nada
perdeu, portanto, senão uma contingência - com maior 11
Cf. livros XI-XIII, nota 19.

542 543
mesmo, aliás, que eu quisesse proibir tais sentimentos, a mos a entregar às chamas, as lágrimas tombam por uma
natureza tem as suas leis e, embora procuremos evitá-las, necessidade natural, o espírito, atingido pela força da dor,
16 as lágrimas caem e, caindo, aliviam o espírito. O que eu abala-nos todo o corpo e, portanto, também os olhos, dos
pretendo é que deixemos as lágrimas correr, mas sem nos quais espreme, por assim dizer, a humidade neles habitual.
forçarmos ao pranto; choremos apenas em proporção com Estas lágrimas caem sob pressão mesmo contra a nossa 19
os nossos sentimentos, e não em obediência a tradições. vontade. De tipo diferente são aquelas lágrimas que nós
Não prolonguemos artificialmente a nossa tristeza, não deixamos correr quando recordamos os entes queridos já
a estiquemos segundo o padrão comum. A ostentação da falecidos: sentimos algo de doce na tristeza com que
dor exige mais de nós do que a própria dor: sozinhos, relembramos as suas palavras alegres, a sua conversação risonha,
a quanto monta a nossa tristeza? ! Quando as pessoas se a sua prestimosa familiaridade; os olhos então afrouxam,
sabem ouvidas gemem com mais força e, enquanto se con- numa como que satisfação. As lágrimas deste tipo,
conservam caladas e tranquilas isoladamente, derramam consentimo-las; as outras, somos forçados a elas. Não 20
nova enxurrada de lágrimas mal vêem outros a apro- há, por conseguinte, motivo algum para que tu retenhas
ximar-se; é nesta altura que se lembram de arrepelar a ou soltes as lágrimas em função de quem te rodeia ou se
cabeça (coisa que poderiam ter feito mais à vontade quando senta ao pé de ti: nunca as lágrimas são tão indignas
sozinhas!), que desejam morrer, que se revolvem no leito; (quer tombem quer não) como quando são representadas!
17 quando não há espectadores, a dor passa logo! Tal como Deixa-as correr espontaneamente. Pode-se chorar sem per-
em tudo o mais, também nestas circunstâncias nos deixa- der a tranquilidade e a compostura; muitos sábios houve
mos levar pelo vício da imitação dos outros e actuamos, que choraram sem perda da sua autoridade, antes com tal
não conforme devemos, mas sim conforme é costume. comedimento que, mesmo chorando, deram mostra tanto
Abandonamos a lei natural e confiamo-nos ao critério das de humanidade como de dignidade. É possível, repito, obe- 21
massas - mau conselheiro em tudo e modelo de incons- decer à natureza sem perder o decoro. Tenho visto pes-
tância nestes casos, como de resto em todos! Quando elas soas que assistem ao funeral de parentes impondo res-
vêem alguém suportar com coragem a sua dor, chamam- peito, mostrando no rosto todo o amor que tinham pelo
-lhe desumano e sem coração; quando vêem alguém cair falecido mas sem armarem minimamente ao sofrimento :
por terra e abraçar-se ao cadáver, dizem-no efeminado e em suma, com o comportamento exigido por uma emoção
18 fraco. Na realidade, tudo deve ser aferido pelo critério da autêntica. Mesmo na dor há que manter a decência; o sábio
razão. Nada há mais estúpido do que querer ganhar a deve conservá-la e observar nas lágrimas o mesmo justo
reputação de sofredor e fazer ostentação de lágrimas; lágri- limite que em tudo o mais. Os insensatos, esses tão
mas que, num homem sábio, eu entendo que podem ser exagerados são na alegria como na dor.
consentidas ou espontâneas. Já te explico a diferença. "Aceita com equanimidade o inevitável. Acaso te suce- 22
Quando nos chega a notícia dolorosa de um falecimento, deu algo de extraordinário, de inédito? Quantos outros
quando seguramos nos braços o cadáver que nos apresta- estão preparando um funeral, comprando roupas de luto,

544 545
quantos estão agora chorando já depois da morte do teu do que tu pensarás de tais palavras. Haverá algo de mais 26
filho? Quando pensares que ele morreu criança, pensa indigno do que sentir prazer no meio da dor, melhor
também que ele era um ser humano e como tal marcado dizendo, graças à dor, e buscar no meio das lágrimas uma
pela incerteza, um ser humano a quem a fortuna não dei- fonte de satisfação? E são estes homens os que nos acu-
xou chegar à velhice, ames despediu desta vida quando sam de rigidez; que censuram a dureza dos nossos princí-
23 bem lhe pareceu. Fala dele sempre que tiveres ocasião, pios quando nós dizemos que a dor ou não deve encon-
conserva a sua memória tanto quanto puderes, e essa trar acolhimento no nosso espírito ou deve ser dele expulsa
memória tanto mais frequentemente te acudirá quanto mais quanto ames! O que é mais incrível e desumano: não
o puder fazer sem azedume; ninguém tem prazer em sentir dor pela perda de um amigo ou fazer dessa dor um
fazer companhia a um homem triste, ninguém pode pas- motivo de prazer? Os nossos princípios são perfeitamente 27
sar a vida na tristeza. As conversas dele, as brincadeiras correctos: quando o nosso afecto tiver pago o tributo às
de infância que fazia, se tu as escutaste com prazer, relem- lágrimas, tiver, passe a expressão, "desnatado" o desgosto,
bra-as frequentemente; afirma com decisão que ele poderia há que não deixar o espírito mergulhado na dor. E dizem
ter realizado todas as esperanças que ni conceberas no teu os epicuristas que devemos misturar o prazer com a dor!
24 espírito de pai. Esquecer os parentes e enterrar as recor- Isto é o mesmo que consolar os garotos com um bolo, ou
dações juntamente com os corpos, chorar com abundância fazer os bebés deixarem de chorar dando-lhes leite! Nem
mas não recordar minimamente os desaparecidos só denota no próprio instante em que um filho arde na pira ou um
uma alma desumana. Afectos destes são próprios das aves amigo solta o último suspiro eles querem que o prazer
ou das feras, que amam com extrema energia, quase com cesse, mais, querem fazer do sofrimento uma excitação! O
fúria, mas cujo amor se extingue totalmente quando os que será mais correcto: eliminar a dor do espírito ou
companheiros morrem. Uma tal atitude não é própria de fazer o prazer acompanhar a âor? 'Acompanhar'? Mais 28
um homem sensato, mas sim conservar a lembrança do que isso: originar-se na própria dor! Há uma certa
embora cessando o sofrimento. f arma de prazer inerente à tristeza, diz Metrodoro. Que
25 "Não aprovo de forma alguma o que diz Metrodoro, nós, estóicos, digamos isso está certo, mas vós, epicuristas,
que há uma certa forma de prazer inerente à tristeza, não tendes tal direito. Para vós não existe senão um bem,
prazer esse que se deve obter simultaneamente com ela". o prazer, e um mal, a dor: como é então possível haver
Tenho aqui citadas as próprias palavras de Metrodoro : ligação entre o bem e o mal? Mas imaginemos que há:
'Das cartas de Metrodoro à irmã:' - 'Há um certo pra- seria este o melhor momento para ela se verificar? Vamos
zer que nasce simultaneamente com a dor, e que é preciso perscrutar a dor a ver se nas suas imediações há algo de
captar no próprio momento' 12 • Não duvido um instante agradável e aprazível? Certos remédios, salutares quando 29
aplicados em determinadas partes do corpo, não podem
ser utilizados noutras por repugnantes ou indecentes; um
'' Metrodoro, fr. Ví Koerre. processo que em certas áreas do corpo seria benéfico e

546 547

,, i
não atentaria ao pudor torna-se inconveniente dado o local que eles não corresponderam à tua expectativa; e, esquecen-
em ferida: vós não tendes vergonha de querer remediar a do-te de que se trata de um filósofo, vais ao ponto de cri-
dor com o prazer? A dor é uma ferida que tem de curar- ticar nele a colocação das palavras. Imagina que tens razão,
-se com mais dignidade! Seria preferível mostrar como e que ele, em vez de construir rigorosamente as frases,
nenhuma sensação de mal pode afectar quem já morreu, como que as deixa correr. Para começar, este tipo de
30 pois só pode ser afectado quem não está morto. Nenhuma estilo tem o seu atractivo, a frase lenta e fluida possui a
coisa, repito, pode lesar quem já nada é; se alguém é sua própria beleza; entendo eu que há uma grande dife-
lesado, é porque está vivo. O que imaginas tu poder cau- rença entre um estilo sacudido e um estilo fluente. Acres-
sar mal a alguém: já não ser alguém, ou ser ainda alguém? centa que mesmo neste ponto há uma diferença funda-
Uma pessoa não pode ser atormentada nem pelo facto de
mental, como te vou mostrar: Fabiano não me parece 2
não ser (pois quem nada é nada sente) nem pelo facto
"verter" frases, mas sim deixá-las fluir, e o resultado é um
de ser, pois desconhece o principal óbice da morte, que é
31 precisamente o não ser. Digamos, portanto a um homem estilo amplo, sem rugosidades, mas ao mesmo tempo não
desprovido de energia. Um estilo que se apresenta fran-
que chora com saudades de um filho arrebatado na pri-
meira infância: no que concerne à brevidade da existência, camente como não trabalhado nem rebuscado em excesso.
todos nós, jovens ou velhos, em comparação com o uni- Mas aceitemos que é correcta a tua maneira de ver: a
verso, estamos em pé de igualdade. O que nos cabe de intenção dele era castigar os costumes, não a linguagem;
toda a ·sucessão dos tempos é menos que uma ínfima escreveu a sua obra para as almas, não para os ouvidos.
parte, porque uma parte, mesmo ínfima, é uma parte, De resto, se o ouvisses ler ele próprio o texto, não terias 3
enquanto o tempo da nossa vida é praticamente nulo. oportunidade de atentar nos pormenores, de tal modo te
Mas, ó loucura humana!, que planos grandiosos nós faze- entusiasmaria o conjunto. É certo que muita coisa nos
mos para esta nulidade que é a existência! agrada pela energia da leitura 'mas perde parte do valor
32 "Dirijo-te esta carta não porque tu esperes de mim um quando observada depois de passada a escrito; mas tem
consolo já tão tardio (sei muito bem que tu já decidiste o também a sua importância suscitar o interesse logo à
que havias de ler ou não), mas sim para te censurar por, primeira vista, ainda que uma análise venha a encontrar
embora por pouco tempo, teres andado alheado de ti mesmo; motivos de crítica. Se mo perguntares, dir-te-ei que tem 4
e também para te aconselhar a que, de futuro, ganhes mais mais valor o homem capaz de arrebatar os aplausos do
coragem contra a fortuna e consideres os seus golpes não que o que sabe como merecê-los, embora eu saiba que
apenas como possíveis, mas como inevitáveis e contínuos." este último goza de maior segurança e pode confiar no
futuro mais decididamente. Ao filósofo não convém a
100 excessiva preocupação com o estilo: como poderia ser cora-
joso e firme perante o risco da própria vida um homem
1 Dizes-me na tua carta que leste com a ma10r avidez angustiado com as palavras? No seu estilo, Fabiano não
os livros de Papírio Fabiano intitulados "Da Política" mas revelava negligência, mas segurança. Por isso não encontra- 5

548 549
rás nele qualquer vulgaridade: ele escolhe, não cata as um terreno plano, sem barrancos. Falta-lhe o vigor da elo-
palavras que emprega, nem as coloca, em obediência à quência, os grandes rasgos tão do teu agrado, o choque
moda, segundo uma ordem antinatural, mas consegue dar- inesperado das sentenças; tomada, contudo, no seu con-
-lhes brilho embora recorrendo ao vocabulário comum. Os junto é escorreita, penses o que pensares dos adornos do
seus períodos são cheios de profundo sentido, conquanto seu estilo. Talvez o seu modo de escrever careça de digni-
sejam amplos e não limitados ao espaço de uma sentença. dade, mas comunica-a a nós. Indica-me, aliás, qual o autor 9
Podemos verificar que alguns estão pouco limados, outros que tu julgas superior a Fabiano. Cícero, por exemplo,
com deficiente estrutura, outros ainda pouco conformes cujas obras filosóficas são quase tão numerosas como as
aos requintes da moda actual: mas quando considerarmos de Fabiano? Aceito. Mas lá por se não ter uma estatura
o conjunto não encontraremos obscuridades resultantes do gigantesca não se é obrigatoriamente um anão! Asínio
6 excesso de concisão. Admito que lhe falte a variedade dos Polião? Aceito, mas com uma reserva: só ter dois à sua
tons do mármore ou das canalizações complicadas que frente é uma excelente posição em matéria tão relevante.
levam a água a todos os quartos; também não é o tugúrio Podes citar ainda Tito Lívio, já que ele escreveu diálogos
de um indigente, nem o luxo decorativo de quem se de interesse tanto filosófico como histórico, além de obras
não contenta com a beleza austera: é, sim, aquilo a que expressamente dedicadas à filosofia. Aceito ainda este
soe chamar-se uma casa bem construída! exemplo. Vê, todavia, a quantos Fabiano excede, ele que é
E não te esqueças de que nem todos têm a mesma ultrapassado apenas por três autores, e três autores que
01~inião sobre o estilo. Uns querem-no desordenado e hir- são os mais brilhantes estilistas.
suto, outros preferem-no de tal modo áspero que desfa- É verdade que Fabianb não é excelente em todos os 10
zem de propósito as frases espontaneamente escorreitas, aspectos. O seu discurso, embora elevado, carece de força;
interrompem abruptamente o ritmo contra todas as expec- embora abundante, não é violento e impetuoso, é correcto,
7 ta tivas do leitor. Lê a prosa de Cícero: as suas frases são embora sem ser brilhante. "Falta-lhe" - dirás tu -
perfeitas, as inflexões não são bruscas, o ritmo é agradável "aspereza na condenação dos vícios, ~nergia ao minimizar
sem ser efeminado. Em contrapartida, as de Asínio Polião os perigos, altivez ao afrontar a fortuna, agressividade ao
são desiguais, sacudidas, e acabam quando menos se espera. invectivar a ambição. Eu quero que se condene o luxo,
Além disso, as de Cícero terminam todas naturalmente, as que se exponham ao ridículo os desejos, que se refreie a
de Polião parecem cair de borco, com excepção de umas violência, tudo num estilo que combine a agressividade da
quantas que obedecem a um ritmo certo, aliás sempre dó oratória, a grandiosidade da tragédia, a mordacidade breve
mesmo modelo. da comédia." O que pretendes é meter Fabiano em cuida-
8 Dizes ainda que a prosa de Fabiano te parece rasteira, dos com algo de somenos importância: as palavras, quando
pouco sublime. Aí está um defeito de que eu o acho isento. o que ele faz é aplicar-se à grandeza do assunto; a elo-
A meu ver, a sua prosa não é rasteira, mas tranquila, quência segue-o como uma sombra, quase sem ele dar por
adequada ao seu carácter calmo e regrado; assemelha-se a isso. O seu discurso não aflora, sem dúvida, todos os pon- 11

550 551
tos, carece de síntese, nem todas as palavras são estimu-
lantes e certeiras, admito. Muitas frases passam ao lado do
alvo, por vezes o estilo deixa-nos indiferente, por ineficaz.
Mas em cada página há sempre algo de luminoso, · há
uma vastidão imensa, mas que não cansa. Há, enfim, nele 1
um mérito inigualável: é evidente que tudo quanto escre- LIVRO XVII - XVIII
veu foi sentido. Percebe-se que ele agiu assim para o lei-
tor saber o que lhe agradava a ele, e não para ele agradar
(Cartas 101-109)
ao leitor. Tudo quanto escreveu visa ao progresso moral, à
sabedoria, sem de nada lhe interessarem os aplausos.
12 Não duvido que seja este o carácter dos seus escritos, 101
embora deles tenha uma recordação já remota e conserve
Cada dia, cada hora nos mostra até que ponto nós não 1
uma ideia global não resultante do contacto recente com a
somos nada e descobre sempre novos argumentos para
obra. Sucede geralmente assim quando o conhecimento
chamar a atenção de quem se esquece da fragil idade
vem de longe. Pelo menos, quando eu assistia às suas
humana, e faz planos para a eternidade, vendo-se de cho-
lições era assim que eu os via: não sem defeitos, mas
fre coagido a pensar na morte. Já estás tu a perguntar-me
com conteúdo, capazes de entusiasmarem um jovem de , . 'Tu
onde é que eu pretendo chegar com este proem10.
bom carácter e de nele suscitarem quer o espírito de emu-
conhecias Cornélio Senecião, um cavaleiro romano brilhante
lação quer a esperança de conseguir superar o mestre, o
e obsequioso que se fizera a si mesmo partindo quase do
que se me afigura a mais eficaz forma de exortação. De
nada a ponto de ser previsível a prossecução de uma car-
facto, é contraproducente despertar a vontade de imitar
reira auspiciosa, pois a dignidade social é mais fácil _de
negando a esperança de o conseguir. Além disso, tinha
continuar a aumentar que de iniciar a ascenção. A riqueza 2
uma linguagem abundante, sem nada de especial a nível
igualmente tarda sobretudo a chegar às pessoas de nível
de pormenor, mas excelente na globalidade.
modesto, mas desde que ultrapasse um pouco esse nível nunca
mais pára. Senecião já estava à beira de se alçar a uma
grande fortuna, meta a que o conduziam duas qualidades
extremamente eficazes: habilidade para obter riqueza,
talento para a conservar. Qualquer uma delas, aliás, basta-

1
A impossibilidade de delimitar as cartas pertencentes a cada um destes
dois livros deve-se a uma cirrnnstância similar à que foi descrita na nota 1 aos
livros Xl-Xlll.

552 39 553
3 ria para fazer dele um homem rico. Pois este homem de escoa-se segundo uma lei racional, mas obscura para nós;
extrema parcimónia, tão escrupuloso na administração dos que me adianta saber que tudo se processa segundo a lei
bens como nos cuidados com a saúde, depois de me ter visitado da natureza se para mim reina a incerteza? Nós planea- 6
pela manhã conforme era costume, depois de ter passado mos regressar à pátria após longas viagens marítimas, ao
o dia inteiro até à noite à cabeceira de um amigo doente fim de termos percorrido as costas de terras estrangeiras;
e sem esperança de recuperação, depois de ter jantado planeamos receber sobre o tarde os salários do serviço
com boa disposição - foi atacado por um tipo de doença militar; a obtenção de cargos ou de proveitos através da
galopante, uma angina, e só com grande dificuldade con- prestação de serviços - e com tudo isto temos a morte
seguiu respirar até ao dia seguinte, com a garganta apa- ao nosso lado. E porque só pensamos na morte dos outros,
nhada. No espaço de pouquíssimas horas, depois de ter os exemplos da nossa condição mortal, que de vez em
desempenhado todos os deveres de um homem de per- quando nos surgem, apenas nos preocupam durante o tempo
4 feita saúde, caiu morto! Um homem que possuía bens de em que os temos sob os olhos. Não é uma autêntica estultí- 7
fortuna em terra e no mar, que enveredou pela adminis- eia admirarmo-nos de que possa ocorrer tim dia algo que,
tração pública para não deixar por experimentar alguma afinal, sucede quotidianamente? Quando o termo da nossa
forma de obter proveitos, foi arrebatado desta vida no vida se situa no ponto exacto que lhe apontou a inexorá-
próprio momento em que tudo lhe corria bem e os bens vel lei do destino, embora nenhum de nós saiba a que
pecuniários se acumulavam sobre ele. distância se encontra desse termo! Formemos, portanto, a
"Enxerta agora, Melibeu, as pereiras, dispõe em nossa alma como se já estivéssemos no fim da vida. Não 8
fila as vides !" 2 adiemos: ponhamos em dia as nossas contas com a vida!
Como é estúpido fazer planos para uma longa vida quando O principal defeito da vida é ela estar sempre por com-
não se é sequer senhor do dia seguinte! Como são insen- pletar, haver sempre algo a prolongar. Quem, todavia,
satos todos quantos formulam esperanças a longo prazo: quotidianamente der à própria vida "os últimos retoques"
hei-de comprar, hei-de construir, hei-de emprestar dinheiro nunca se queixará de falta de tempo; em contrapartida, é da
e cobrá-lo com juros, hei-de fazer carreira na política - e falta de tempo que provém o temor e o desejo do futuro,
logo me guardarei para a vida privada quando estiver o que só serve para corroer a alma. Não há mais mise-
5 velho, mas bem provido de meios! ... Podes crer no que te rável situação do que vir a esta vida sem se saber qual o
digo: mesmo os favorecidos da fortuna carecem de segu- rumo a seguir nela; o espírito inquieto debate-se com o
rança. Ninguém deve fazer projectos para o futuro, pois inelutável receio de saber quanto e como ainda nos resta
mesmo o que nós seguramos nos escapa das mãos, mesmo para viver. Qual o modo de escapar a uma tal ansiedade? 9
a hora que vivemos qualquer acaso a interrompe. O tempo Há um apenas: que a nossa vida não se projecte para o
futuro, mas se concentre em si mesma. Só sente ansiedade
pelo futuro aquele cujo presente é vazio. Quando eu tiver
' Vergílio, Buc., I, 73. pago tudo quanto devo a mim mesmo, quando o meu

554 555
espírito, em perfeito equilíbrio, souber que me é indife- que afirma: "Podem degradar-me à vontade, desde que a
rente viver um dia ou viver um século, então poderei vida permaneça no meu corpo, embora decadente e inuti-
olhar sobranceiramente todos os dias, todos os aconteci- lizado; podem mutilar-me à vontade, desde que, embora
mentos que me sobrevierem e pensar sorridentemente na monstruoso e disforme, me reste ainda um pouco de
longa passagem do tempo! Que espécie de perturbação vida; podem amarrar-me à vontade a uma dura cruz,
nos poderá causar a variedade e instabilidade da vida humana podem imobilizar-me nela!" Tem assim tanta importância
10 se nós estivermos firmes perante a instabilidade? Apressa- aguentar a própria ferida e ficar com o corpo· distorcido no
-te a viver, caro Lucílio, imagina que cada dia é uma vida patíbulo, desde que se adie por algum tempo o fim do
completa. Quem formou assim o seu carácter, quem quo- suplício, que é, afinal, a única coisa boa na tortura? Tem
tidianamente viveu uma vida completa, pode gozar de ass im tanto interesse continuar arrastando a existência? A 13
segurança; para quem vive de esperanças, pelo contrário, um homem destes que outra coisa desejar senão que os
mesmo o dia seguinte lhe escapa, e depois vem a avidez deuses lhe façam a vontade? Que significa esta incrível
de viver e o medo de morrer, medo desgraçado, e que indignidade de um 'poema tão efeminado ? Que significa
mais não faz do que desgraçar tudo. Dele resulta aquele esta contemporização com o medo estultíssimo da morte?
voto de Mecenas, por completo destituído de dignidade, Que significa esta abjecta mendicidade de um pouco mais
pois até o leva a admitir a degradação física, a perda das de vida? Como imaginar que diante de um tal homem
faculdades, até mesmo o suplício atroz da cruz desde que, Vergílio recitou um dia o seu verso
1
mesmo entre estes flagelos, a sua existência se prolongue: "a tal ponto te parece desgraçada a morte?"
11 "Tirai-me a força das mãos, Mecenas deseja até os últimos suplícios, pede qu~ lhe seja
fazei-me coxo de um pé, prolongada, alargada uma situação das mais penosas. E
ponham-me grossa corcunda, a troco de quê? De uma vida ma is longa, apenas. Mas 14
tirai-me os dentes que abanam: uma morte lenta, que espécie de existência significa? É
só quero é que a vida dure! possível encontrar alguém que deseje apodrecer entre as
Prolongai-ma, mesmo que eu torturas, morrendo membro por membro, que prefira
à dura cruz esteja atado !" 3 exalar a alma lentamente, gota a gota, em vez de o fazer
12 O poeta deseja uma existência que conside; aria o cúmulo de uma vez só? É possível encontrar alguém que deseje
da miséria se lhe tivesse calhado em sorte, anseia pelo arrastar uma existência pejada de suplícios, amarrado à
prolongamento do suplício... como se isso fosse viver! Eu triste madeira da cruz, sem forças, com o corpo defor-
julgá-lo-ia o mais desprezível dos seres se ele desejasse mado, os ombros e o peito reduzidos a uma massa dis-
apenas viver até ao momento do suplício! Um homem forme e repugnante, alguém que poderia ter morrido de

1
3
Mecenas, fr. 1 Lunderstedt. Vergílio, Aen., XII, 646.

556 557
muitas maneiras sem ser na cruz? Em face disto, podes pela tua carta e me vi roubado ao meu tão belo sonho.
dizer-me que não é uma d.ávida da natureza a necessidade Mas hei-de retomá-lo e completá-lo quando terminar a
15 da morte! E muitos homens há que estariam dispostos a resposta que te devo.
passar por coisas muito piores ainda! Para viver um pouco Afirmas, no princípio da carta, que eu não desenvolvi 3
mais, não faltaria quem se dispusesse a trair um amigo, na totalidade a argumentação com que tentei provar-te a
como não faltaria quem entregasse por sua própria mão tese estóica segundo a qual a reputação de que gozamos
os filhos ao deboche desde que pudesse contemplar por após a morte é um bem. Em tua opinião eu não solucio-
mais algum tempo a luz do dia, cúmplice dos seus crimes! nei a dificuldade com que se pretende rebater a nossa
Há que remover de vez o desejo de viver, e tomar cons- posição:"Nenhum bem" - dizem - "resulta de soluções
ciência de que é irrelevante a data em que passamos por de continuidade; ora, a reputação assenta numa solução de
algo - a morte - por que é inevitável passar. Importa, continuidade." O problema que me pões, caro Lucílio, per- 4
sim, é a qualidade, não a duração da nossa vida; e, fre- tence a outro aspecto da mesma tese, e por isso mesmo
quentemente, para viver bem, até é preferível não viver eu o deixei de lado, não só a este mas a outros ainda com
muito tempo! ela relacionados. Como sabes, há pontos em que a moral
e a lógica se interpenetram. Eu tratei, portanto, daquela
parte da questão que directamente tem a ver com a moral 5,
102 ou seja, se é absurdo e supérfluo projectar as nossas pre-
1 É bastante incomodativo acordar alguém que está tendo ocupações para lá do dia da morte, se os nossos bens
um sonho agradável, pois se lhe rouba um prazer, falso, é desaparecem simultaneamente connosco, se nada resta do
certo, mas de efeito similar a um verdadeiro. O mesmo homem que cessou de existir, ou ainda se, de uma coisa
de que nos não aperceberemos quando ela suceder, é pos-
efeito de ruptura me provocou a tua carta: afastou-me da
sível, antes que suceda, perceber ou ambicionar o que ela
reflexão (e bem adequada era ela!) a que eu estava entre-
possa valer. Todas estas questões. dizem respeito à moral, 5
gue, e na disposição de a prosseguir enquanto pudesse.
por isso tratei-as na altura conveniente. Os argumentos
2 Era minha intenção investigar a questão da imortalidade
que os dialécticos invocam contra esta tese tiveram de ser
das almas, ou antes, pelos deuses!, acreditar nessa ideia!
deixados de lado, e por isso eu não me referi a eles.
Sentia-me receptivo à opinião dos grandes homens que,
Agora, uma vez que estás com vontade de saber tudo, vou
mais do que provar, nos prometem tão gratas perspecti~
primeiro expor-te em bloco os seus argumentos, e em
vas. Entregava-me a essa magnífica esperança, já sentia
seguida refutá-los-ei um por um.
tédio de mim mesmo, já estava pleno de desprezo pelos
restos de uma existência mutilada, como homem que se
prepara para entrar no tempo sem limite e apropriar-se 5 Nenhuma das cartas conservadas é exclusivamente dedicada à discussão
de toda a eternidade, quando fui subitamente acordado deste problema, embora existam muitas alusões dispersas ao assunto.

558 559
6 Preciso, conn1do, de focar alguns pontos prev1os, ou significado; ora um conjunto de sons, embora proferido
não se compreenderá a refutação que vai seguir-se. E os por homens de bem, não é um bem. Nem tudo quanto
pontos prévios são estes : há certos corpos que são contí- um homem de bem faz é um bem; ele pode dar palmas,
nuos, por exemplo, um homem; outros são compostos, pode assobiar, mas por muito que o admiremos e louve-
como uin navio, uma casa, em suma rudo o que consta de mos em tudo, ninguém vai chamar 'bem' às palmas ou aos
diversas partes ligadas de modo a formar um todo; outros assobios, assim como não chamamos aos espirros ou à
ainda são formados de unidades não contíguas, de mem- tosse. Por conseguinte, a reputação não é um bem. "
bros isolados entre si, como o exército, o povo, o senado. "Para terminar, dizei -nos se se trata de um bem daquele tO
As unidades que compõem este tipo de corpos podem que atribui ou daquele que recebe os louvores. Se dizeis
estar ligadas umas às outras por direito ou obrigação, mas que é um bem do que recebe os louvores, fazeis uma afir-
7 por narureza são unidades discretas. Há ainda outros pon- mação tão ridícula como dizer que me diz respeito a boa
tos prévios a acrescentar: nós entendemos que nenhum saúde dos outros. Ora, louvar quem o merece é uma acção
bem é formado de unidades discretas; que um só e mesmo dif!.na; logo, se o louvor é um bem, pertence àquele que
espírito deve impregnar e dirigir cada um dos bens, que o pratica a acção, ou seja, àquele que louva os outros, e não
elemento determinante de cada bem é um e só um. Quando àquele que recebe os louvores, como vós queríeis demonstrar!"
quiseres, este ponto pode ser objecto de uma demonstra- Vou responder a estas objecções uma por uma. Em 11
ção individual; entretanto foi necessário referi- lo, já que os primeiro lugar, se um bem pode ou não resultar de ele-
nossos adversários nos querem combater com as nossas mentos discretos, é uma questão em aberto : há argumen-
próprias armas. tos válidos num e noutro sentido. De resto, porquê dizer
8 Primeira objecção : "Dizeis que nenhum bem é resul- que a reputação implica muitos votos favoráveis? Pode
tado de elementos discretos; contudo, a reputa,ção dos homens perfeitamente contentar-se com o juízo de valor de um
de bem é o resultado da opinião pública favorável. De único homem de bem: um homem de bem julga -nos, a
facto, tal como a fama não resulta do apreço de um só nós, homens de bem. "Como é isso?" - perguntará o 12
homem nem a má fama do mau conceito de um só nosso oponente. - "Então a fama, boa ou má, pode
homem, assim também a reputação não significa ser tido depender apenas do apreço ou da maledicência de um só
em boa conta por um só homem; para que a reputação se homem? Também a glória, só a concebo como um fenó-
forme é necessário o consenso de muitos homens de valor meno colectivo que exige a opinião unânime de muita
e respeitabilidade. Ela resulta, por conseguinte, do juízo gente. " É diferente o condicionalismo num caso e noutro.
formado por vários indivíduos, ou seja, por elementos dis- Porquê? Porque se um homem de bem fizer bom juízo a
cretos; logo, a reputação não é um bem." meu respeito a minha situação é a mesma que seria se
9 Segunda objecção: "A reputação é o louvor atribuído a todos os homens de bem fizessem idêntico juízo, como de
um homem de bem por outros homens de bem; o louvor facto fariam se me conhecessem. Todos eles fazem um
é um conjunto de palavras, de sons com um determinado juízo absolutamente idêntico, e identicamente assente na

560 561
verdade. Não é possível estarem em desacordo; logo, é público o louvor que a alma concebeu. Louvar significa
como se todos tivessem wna só opinião, já que lhes não é julgar alguém digno de louvores. Quando o nosso poeta
13 possível ter opiniões diversas. No que toca à glória ou à trágico afirma como é excelente "ser louvado por um
fama, wna opinião apenas já não é suficiente. No pri- homem louvado" 6 emprega "homem louvado" no sentido
meiro caso, o juízo de wn só pesa o mesmo que o de de "homem digno de louvor". E quando wn outro poeta .
todos, já que todos, se interrogados wn por wn, formula- da mesma época escreve que "o louvor dá vida às artes" 7,
riam o mesmo juízo; no segundo, encontramos juízos diver- não se está referindo aos encómios do público, que outra
sos emitidos por personalidades dissemelhantes. O acordo coisa não fazem senão corrompê-las; nada de facto contri-
é difícil, a cada passo se encontrarão dúvidas, hesitações, buiu tanto para a degradação não só da eloquência como
suspeitas. Achas possível que todos sejam unânimes num de todas as outras artes destinadas à audição como os
juízo quando cada um nem sequer é sempre da mesma aplausos das multidões. A fama não dispensa a expressão 17
opinião? No primeiro caso está em causa a verdade, e a oral, a reputação contenta-se com o juízo de valor e dis-
verdade tem sempre a mesma força e o mesmo rosto; no pensa ser apregoada em alta voz; a sua plenitude não se
segundo, é a opiniões falsas que se dá crédito. Ora, as altera quer se propague em silêncio ou nas vozes do
opiniões falsas carecem de constância, estão em perma- mundo. A diferença que eu vejo entre a reputação e a
nente oscilação e dissidência. glória é esta: a glória depende do veredicto da multidão,
14 "Um louvor não é mais do que palavras, e as palavras enquanto a reputação provém do das pessoas de bem
não são um bem." Quando se diz que a reputação é o "A quem pertence o bem que é a reputação, isto é, o 18
louvor dos homens de bem formulado por homens de louvor dado a um homem de bem por outro homem de
bem não estamos pensando nas palavras, mas sim no bem: a quem o recebe ou a quem o dá?" A ambos! A
pensamento. Ainda que um homem de bem esteja em mim, que sou louvado, porque ' a natureza me conduziu a
silêncio, se pensar que alguém é digno de louvor, o louvor amar todo o género hwnano, e por isso me alegro de
15 está dado. Aliás, uma coisa é o louvor, outra o discurso fazer o bem e me sinto contente por ter encontrado
laudatório. Este é que recorre à expressão sonora; por isso quem, por gratidão, se disponha a explicar aos outros as
é que, nas cerimónias fúnebres, se fala, não de "louvor'', minhas virtudes. Sentir gratidão é wn bem de muitos,
mas de "discurso laudatório'', isto é, actualizado pela reci-
mas meu também. A formação da minha alma leva-me
tação oral. Quando dizemos que wn homem merece lou-
a sentir como meu o bem dos outros, em especial o
vores não lhe estamos prometendo palavras de apreço, ·
daqueles a quem eu ocasionei algum bem Mas é também 19
mas sim pensamentos de apreço. Por isso há louvor mes-
mo quando em silêncio se pensa bem e se louva intima-
16 mente um homem de bem. Como disse, aliás, o louvor 6
a. Névio, Trag., fr. 17 em Warmington, Remains of Old l.Atin, II, p. 118.
tem a ver com a alma e não com as palavras, que se 7
Frag. poet. rom., inc, 1, p. 137 Baehrens (=Morei, Frag. poet. lat., inc., fr.
limitam a exprimir e a transmitir ao conhecimento do 6, p. 172).

562 563
um bem que pertence a quem dá louvores, já que fazê-lo não confina a um exíguo período de tempo. "Todas as
só é possível pela virtude e toda a acção da virtude é um eras" - diz ela - "me pertencem. Século nenhum per-
bem. Deste bem ficaria privado quem me dá louvores se a manece fechado aos espíritos superiores, tempo nenhum
minha acção não fosse de molde a merecê-los. Por conse- se mostra inacessível ao pensamento. Quando chegar o dia
guinte, receber merecidamente louvores é um bem que em que se decomponha esta mistura de divino e de huma-
pertence a ambos, exactamente como uma sentença justa no deixarei o corpo aqui onde o encontrei, e irei unir-me
é um bem tanto daquele que a proferiu como daquele em aos deuses. Aliás, nem agora estou desligado deles, apenas
cujo benefício foi proferida. Acaso duvidas de que a justiça me limita os movimentos o peso da existência terrena." O 23
seja um bem tanto para quem possui essa virtude como tempo que demora esta existência mortal não é para a
para quem, graças a ela, vê restabelecidos os seus direitos ? alma senão o prelúdio de uma vida melhor e mais dura-
Louvar quem o merece é um acto de justiça; consequen- doura. Tal como o ventre materno nos guarda por dez
temente, é um bem que pertence a ambos. meses e nos prepara, não para nele permanecer mas sim
20 Creio que já dei resposta suficiente a esses teus sofis- para sermos como que lançados no mundo assim que
tas. Mas o nosso objectivo não deve ser discutir subtilezas estamos aptos a respirar e a aguentar o ar livre, também
e fazer descer a filosofia da sua majestade até estas minu- ao longo do espaço de tempo que vai da infância à velhice
dências. Não será preferível caminhar por uma via ampla nós vamos amadurecendo com · vista a um novo parto.
e direita em vez de estar a inventar atalhos sinuosos de Espera-nos um outro nascimento, uma outra ordem das
que só a grande custo nos livramos? Todas estas discus- coisas. Por enquanto, não suportamos a vista do céu senão 24
sões não passam de jogos de eruditos brincando às escon- a uma certa distância. Encara, portanto, com coragem a
21 didas ! Afirma, antes, que é próprio da natureza do homem tua hora decisiva, a hora derradeira apenas para o corpo,
alargar o seu pensamento a todo o universo. A alma não para a alma. 8 Os objectos/ que tens à tua volta, olha-
humana é qualquer coisa de grande e de nobre, e não -os como bagagens numa hospedaria: tu tens de passar
admite que se lhe imponham outros limites senão os que adiante. A natureza revista-te à saída, tal como te revistou
lhe são comuns com a própria divindade. Desde logo a à entrada. Não podes levar contigo mais do que trouxeste, 25
alma não se contenta com uma pátria diminuta, seja Éfeso, pelo contrário, tens mesmo que despojar-te de uma boa
ou Alexandria ou qualquer outra cidade de ainda maior parte do que trazias ao entrar nesta vida: ser-te-á tirado o
população ou mais esplendorosos edifícios. Para a alma, teu último revestimento, a pele que te envolvia; ser-te-ão
"pátria" são todos os espaços abarcados pelo universo, é tirados a carne e o sangue que se espalhava e fluía por
toda esta esfera dentro da qual se encontram os mares e todo o corpo; ser-te-ão tirados os ossos e os tendões que
as terras, dentro da qual o ar separa e une ao mesmo
tempo o divino e o humano, e na qual inúmeras forças
divinas ·em perfeita ordenação, cumprem atentamente as 8 Cf. Bhagavad-Gita, II, 27: "Tudo quanto nasce tem a certeza de que há-de

22 respectivas funções. Para além disso a alma também se morrer, tudo quanto morre está seguro de renascer."

564 565
26 serviam de sustentáculo aos tecidos moles. Esse dia que tu céu; todos os recantos do universo luzirão com igual
tanto temes, como se fora o último, marca o teu nasci- . esplendor: a alternância do dia e da noite só se verifica ao
mento para a eternidade. Depõe o teu fardo; porque hesi- nível da nossa atmosfera inferior. Quando contemplares
tas, como se não tivesses já um dia abandonado um corpo com todo o teu ser a totalidade da luz - essa luz que
dentro do qual te ocultavas? ! Estás indeciso, relutante: agora reduzidamente recebes pelas estreitas aberturas dos
também nesse dia foi preciso um esforço violento da tua teus olhos e que, mesmo assim, e de longe, tanto admi-
mãe para que tu saísses. Gemes, choras: o choro é pró- ras! - dirás que até agora tens vivido em plena treva.
prio do recém-nascido, só que nessa altura tinhas desculpa, Que aparência terá para ti a luz divina quando a contem-
como ser ignorante e inexperiente. Quando saíste do quente plares no seu lugar próprio? Este pensamento não per- 29
e suave ventre materno começaste por sentir o sopro livre mite que se instale na alma o que quer que seja de sór-
do ar, chocou-te depois a dura pressão das mãos, e, tenra dido, de rasteiro, de cruel; afirma-nos que há deuses, teste-
criança que eras, ignorante de tudo, olhaste espantado um munhas dos nossos actos; ordena-nos que mereçamos a
27 mundo desconhecido. Agora, porém, já não é para ti novi-
sua aprovação, que nos preparemos para o futuro, que nos
dade separares-te de um corpo de que antes fazias parte.
prometamos a eternidade. E a quem concebe no seu espí-
Deita fora sem hesitação esses membros inúteis, põe de
rito a ideia da eternidade, nenhum exército atemoriza,
lado esse corpo em que por tanto tempo habitaste. Esse
nenhum clarim guerreiro assusta, nenhuma ameaça causa
corpo será dilacerado, esmagado, destruído: porquê afli-
gires-te? Sempre foi costume deitar fora as membranas medo! E como não se há-de estar livre do medo quando 30
que envolvem o recém-nascido! Porque te apegas a isso se espera a morte? Mesmo quem pensa que a alma só
como coisa realmente tua? Estás revestido de um corpo, perdura enquanto se mantém vinculada ao corpo e que,
mas um dia virá em que o despirás, em que deixarás a quando ambos se separam, logo .ela se desintegra 10, mesmo
28 companhia de um ventre sujo e fétido. Desliga-te dele quem assim pensa age de modo a poder continuar a ser
quanto puderes, e desde já afasta-te do prazer que não útil depois de morto. Embora o homem em si não o pos-
seja......... 9 e estritamente necessário; alheia-te deste mundo, samos ver mais,
e começa desde já a meditar em algo de mais profundo e "a grande virtude do herói, a grande nobreza da
. . , . JJll
sublime. ·Um dia virá em que se te desvelarão os segredos sua raça continua a viver no nosso esptrtto .
da natureza, em que se dissipará esta bruma e a toda a. Pensa na grande utilidade que para nós têm os bons
volta uma luz radiosa incidirá sobre ti. Procura imaginar a exemplos, e concluirás que a lembrança dos grandes ho-
intensidade do brilho de tantos astros juntando num só mens não é menos útil do que a sua presença!
clarão a sua luz. Sombra alguma maculará a serenidade do

10
Cf. Epicuro, fr. 336 Usener.
9 11
Lacuna postulada por Reynolds. Vergílio, Aen., IV, 3-4.

566 567
103 segues que te não tomem por tolo. Acima de tudo, porém,
refugia-te na filosofia: ela te protegerá no seu seio, neste
1 Porque tomas tu essas precauções todas contra inci-
templo sagrado viverás seguro ou, pelo menos, mais seguro.
dentes que, se podem eventualmente ocorrer, podem igual-
Não dão encontrões uns nos outros senão os que cami-
mente nunca vir a verificar-se? Estou-me referindo a
nham pela mesma estrada. Não deverás, todavia, fazer 5
incêndios, desmoronamentos e outras calamidades que se
alarde da tua filosofia; muitos dos seus adeptos viram-se
podem abater sobre nós, mas sem o propósito deliberado
em situações perigosas por a praticarem com excessiva
de nos causarem mal. Melhor farias em procurar evitar os
altivez e obstinação. Usa-a tu para te livrares dos teus
perigos reais que nos espreitam na intenção de nos apa-
vícios, não para exprobares os dos outros. Que ela te não
nhar à traição. Naufragar, cair de um carro - são des~s­
leve a viver ao invés de todos os demais, nem a parecer
tres eventualmente graves, mas raros. Nas relações huma-
condenar tudo aquilo que não praticas. É possível ser sábio
nas, porém, o perigo é coisa de todos os dias. Deves
sem jaaância e sem provocar hostilidades.
precaver-te bem contra este perigo, deves estar sempre de
olhos bem abertos: não há nenhum outro tão frequente,
2 tão constante, tão enganador! A tempestade ameaça antes 104
de rebentar, os edifícios estalam antes de cair por terra, o
Fui para a minha quinta de Nomento para fugir... 1
fumo anuncia o incêndio próximo: o mal causado pelo
imagina a quê? À cidade? Não, a um acesso de febre, de
homem é súbito e disfarça-se com tanto mais cuidado
uma febre bastante insidiosa que já começara a agarrar-me
quanto mais próximo está. Fazes mal em confiar na apa-
com força. O médico dizia que os indícios lá estavam:
rência das pessoas que se te dirigem: têm rosto humano,
pulsação acelerada e irregular, completa alteração do ritmo
mas instintos de feras. Só que nestas apenas o ataque
normal. Assim, mandei imediatamente aprestar o carro e,
directo é perigoso; se nos passam adiante não voltam
embora Paulina me tentasse reter, teimei em partir para
atrás à nossa procura. Aliás, somente a necessidade as ins- o campo. Veio-me à boca um dito do meu estimado Galião
tiga a fazer mal; a fome ou o medo é que as forçam a que um dia, ao apanhar na Acaia um acesso de febre,
lutar. O homem, esse, destrói o seu semelhante por pra- embarcou de imediato clamando que o mal estava no
3 zer. Tu, contudo, pensando embora nos perigos que te clima e não no seu corpo. Repeti estas mesmas palavras à 2
podem vir do homem, pensa também nos teus deveres minha Paulina, que está sempre a recomendar-me cuidado
enquanto homem. Evita, por um lado, que te façam mal; com a saúde. E como eu sei que a sua existência está
evita, por outro, que faças tu mal a alguém. Alegra-te com totalmente dependente da minha, para velar por ela tenho
a satisfação dos outros, comove-te com os seus dissabores, de começar a velar por mim próprio. A velhice já me
nunca te esqueças dos serviços que deves prestar, nem dos tornara capaz de afrontar mil e um perigos; agora estou
4 perigos a evitar. Que ganharás tu vivendo segundo esta perdendo o benefício da idade, pois veio-me à ideia que
norma? Se não evitas que te façam mal, pelo menos con- neste velho que eu sou existe um adolescente que é neces-

568 40 569
sário poupar. 12 Em suma, não consigo de Paulina que me pensação. Que pode um homem sentir de mais estimu-
ame com mais coragem, mas ela consegue de mim que eu lante do que saber-se tão amado da própria mulher que,
3 me cuide com mais atenção. Há que respeitar os afectos por isso apenas, a existência se lhe torna mais amável? E
nobres. Por vezes, mesmo em circunstâncias desesperadas, aqui tens como eu fico a dever à minha Paulina não só
a nossa alma prestes a exalar-se deve ser refreada, retida os seus cuidados mas ainda os meus próprios para comigo!
mesmo no último instante, por muito que isso custe, se a Queres saber que resultado obtive com a minha deci- 6
honra dos familiares o exigir: um homem de bem tem de são de sair de Roma? Mal me afastei do ar pesado da
viver, não enquanto lhe apraz, mas enquanto a sua vida cidade, deste cheiro de cozinhas fumegantes em actividade,
for necessária. Só um obstinado egoísta teima em morrer expelindo de mistura com toda a casta de impurezas os
sem admitir que uma esposa ou um amigo lhe merecem pestilentos vapores que nelas se concentram, imediatamente
o sacrifício de prolongar um pouco mais a ex1stencia. senti uma alteração na minha saúde. E o redobrar de
Quando o interesse dos familiares o exige, a alma deve energia que me invadiu ao chegar às minhas vinhas?
impor a si mesma a vida; pode ter decidido o suicídio, Como animal solto no pasto, comecei a alimentar-me
pode mesmo já ter iniciado o processo: pois que desista e generosamente. Recuperei por completo. Foi-se a debili-
4 se ponha à disposição dos que dela precisam. Demonstra dade que me manietava o corpo e perturbava o espírito.
um grande coração quem se resigna à vida no interesse Voltei ao trabalho de alma e coração. Para tanto a mudança 7
dos outros, o que, aliás, muitos grandes homens têm feito. de local _não contribui grandemente se a alma não se entrega
Considero ainda prova da maior consideração pelo pró- por completo a si mesma. Aliás, mesmo no meio das
ximo o facto de cuidarmos com maior atenção da nossa ocupações, é possível, caso se queira, conseguir um mo-
velhice (desta velhice cuja principal vantagem é o acrés- mento de solidão. Quem, pelo contrário, anda sempre a
cimo de segurança e de ânimo com que encaramos a exis- mudar de sítio em busca de tranquilidade encontrará sem-
tência) caso verifiquemos que a nossa presença é agradá- pre motivos de perturbação onde quer que esteja. Houve
5 vel, útil, preciosa para qualquer familiar. Em si mesma tal uma vez um homem que se queixou a Sócrates de nunca
atitude reveste-se de uma não despicienda alegria e com- ter tirado proveito das suas viagens. "Não admira!" -
respondeu o filósofo. "Viajaste sempre na companhia de ti
próprio!" Como beneficiariam certas pessoas se conseguis- 8
" Parece-nos transparente o que Séneca pretende dizer com esta frase: sem afastar-se de si mesmas! Na realidade, são elas a
embora a idade avançada o pudesse já levar a negligenciar os rnidados com a ·
saúde, a sua relação com Paulina obrigava-<>, pelo contrário, a cuidar de si, não
causa das próprias angústias, cuidados, aflições e receios.
em interesse próprio mas no interesse de Paulina; ou seja, o velho perde o De que serve atravessar o mar andando sempre de uma
benefício da idade e tem de velar pela saúde como se fosse ainda um jovem. cidade para outra? Se queres escapar aos males que te
Não entendemos por isso como F Préchac, na edição Budé, considera o texto
afligem, precisas de te tornar outro homem, e não de
perohscurum ( 1) e decide submetê-lo a tratos de polé para consegu ir extrair
algum sentido, numa tentativa que apenas resulta em explicar obscurum per mudar de sítio. Imagina que vais parar a Atenas, a Rodes,
ohscurius. ou a qualquer outra cidade à tua escolha. Que importância

570 571
têm os costumes dessa cidade se tu levas para lá os teus prazer tal como olhas para a folhagem verdejante: goza
9 próprios? Se consideras a riqueza como um bem sentir-te- dela enquanto viçosa. Hoje um, amanhã outro, o acaso os
-ás atormentado pela pobreza, e pela pobreza imaginária, irá abatendo, a esses entes queridos que são para ti o que
que é o pior de tudo! Embora sejam amplas as tuas pos- há de melhor na vida; mas tal como suportas sem custo
ses, basta que outro possua mais do que tu para te senti- a queda das folhas porque elas hão-de renascer, suporta
res tanto mais carenciado quanto menos rico fores do que igualmente a sua perda, já que eles, se não renascem, hão-
o outro. Se consideras como um bem a carreira das hon- -de ser substituídos. "Mas já não serão os mesmos!" Pois
ras, a eleição de fulano ou a reeleição de cicrano para o não! Nem sequer tu serás o mesmo. Cada dia, cada hora 12
consulado causar-te-á mal-estar: ver várias vezes o nome te vão modificando. O desgaste operado pelo tempo é
de alguém inscrito nos fastos encher-te-á de inveja. Tal mais visível nos outros, enquanto em ti age subrepticia-
será a tua louca ambição que até te parece não haver nin- mente e por isso passa despercebido. O tempo rouba-nos
10 guém atrás de ti só porque há alguém à tua frente. Ima- a presença dos outros, mas também nós vamos perdendo
ginarás que a morte é o maior dos males quando, afinal, ·parte do que éramos. Em vez de meditares nesta realidade
o único mal que nela há é o medo que inspira antes de e assim conseguires remédio para as tuas feridas preferes
chegar. Sentir-te-ás aterrorizado não só diante de um deixar-te enredar pela angústia, entregando-te ora à espe-
perigo real mas até diante de um perigo imaginário. Em rança ora ao desespero? Se fores sensato, procura harmo-
suma, sempre vãos cuidados te abalarão o espírito. De que nizar as duas atitudes, nem entregando-te à esperança sem
poderá servir algo de desprendimento, nem ao desprendimento sem uma
"ter evitado tantas cidades argólicas, réstea de esperança.
ter conseguido fugir pelo meio dos inimigos?" 13 Que utilidade pode ter, para quem quer que seja, o 13
A própria paz será um manancial de receios. Quando o simples facto de viajar? Não é isso que modera os praze-
espírito se deixa aterrorizar, uma vez que seja, deixa de res, que refreia os desejos, que reprime a ira, que quebra
confiar na segurança e, quando ganha o hábito do terror os excessos das paixões eróticas, que, em suma, arranca os
irracional, torna-se incapaz de assegurar a própria conser- males que povoam a alma. Não facu lta o discernimento
vação. Não evita os perigos, foge deles. Ora, nós estamos nem dissipa o erro, apenas detém a atenção momenta-
11 mais sujeitos ao perigo quando lhe viramos as costas! Tu neamente pelo atractivo da novidade, como a uma criança
considerarás como o maior dos males a perda de algum que pasma perante algo que nunca viu!
ente querido, o que é uma atitude tão insensata como Além disso, o contínuo movimento de um lado para o 14
pôres-te a chorar quando, às belas árvores que adornam a outro acentua a instabilidade (já de si considerável!) do
tua casa, começam a cair as folhas. Contempla o que te dá espírito, tornando-o ainda mais inconstante e incapaz de se
fixar. Os viajantes abandonam ainda com mais vontade os
lugares que tanto desejavam visitar; atravessam-nos
'
3
Vergílio, Aen., III, 282-3 voando corno aves, vão-se ainda mais depressa do que

572 57)
15 vieram. Viajar dá-nos a conhecer novas gentes, mostra-nos a mesma virulência. Um doente precisa que se lhe indique
formações montanhosas desconhecidas, planícies habitual- um remédio, não um panorama. Se um homem parte uma 18
mente não visitadas, ou vales irrigados por nascentes ines- _ perna ou faz uma entorse não vai pôr-se a passear de
goráveis; proporciona-nos a observação de algum rio de carro ou de barco: manda, sim, é chamar um médico que
características invulgares, como o Nilo extravasando com lhe ligue o membro partido ou ponha no seu lugar o osso
as cheias de Verão, o Tigre, que desaparece à nossa vista deslocado. Ora bem: acaso pensas tu que uma alma que-
e faz debaixo de terra parte do seu curso, retomando mais brada ou torcida em tantos lugares pode tratar-se com
longe o seu abundante caudal, 11 ou ainda o Meandro, tema uma simples mudança de ambiente? Não, esta doença é
favorito das lucubrações dos poetas, contorcendo-se em demasiado grave para curar-se com um passeio! A forma- 19
incontáveis sinuosidades, fazendo incessantemente ainda ção de um médico ou de um orador não se faz em via-
mais um circuito antes de enfim descansar no leito de que gem; a aprendizagem de qualquer arte não depende da
se aproxima. Mas viajar não torna ninguém melhor de geografia. Como pensar que a sabedoria, a mais impor-
16 carácter nem mais são de espírito. Teremos de nos aplicar tante das artes, se pode adquirir saltando daqui para acolá? !
ao estudo, de frequentar os mestres da filosofia, a fim de Podes crer que nenhuma viagem te põe ao abrigo do desejo,
assimilarmos os princípios já estabelecidos e investigar o da ira, do medo; se tal fosse o caso, todo o género humano
que ainda está por descobrir. Só assim a alma se pode começaria em massa a viajar. Estes males não cessarão de
arrancar à mais dura servidão e alcançar a verdadeira liberdade. atormentar-te, de desgastar-te ao longo das tuas viagens,
Enquanto ignorares a distinção entre o evitável e o dese- terrestres ou marítimas, enquanto tiveres em ti as suas
jável, o necessário e o supérfluo, o justo e o injusto, o causas. Admiras-te que de nada valha fugir quando tens 20
moral e o imoral - nunca serás um viajante, mas apenas dentro de ti aquilo de que foges? Corrige o teu carácter,
17 um ser à deriva. As tuas deambulações não te trarão elimina os entraves que te tolhém, mantém os teus dese-
qualquer proveito, já que viajas na companhia das tuas jos nos limites do razoável; expurga da tua alma todo o
paixões, seguido sempre pelos males que te dominam. resquício de maldade. Se queres gozar do prazer de viajar,
E bom era que estes males apenas te seguissem ! Bom era trata antes de mais o teu companheiro de viagem! Terás
que eles estivessem longe de ti! O que se passa, porém, é sempre contigo a avareza enquanto conviveres com um
que os levas em cima, e não atrás de ti. Deste modo, mesquinho avarento; terás contigo o orgulho enquanto
onde quer que estejas, eles oprimem-te, destroem-te com frequentares os soberbos; nunca te livrarás da crueldade na
convivência de um torcionário; a camaradagem dos adúlte-
ros não fará senão excitar os teus apetites eróticos. Se 21
11
Cf. Naturales Quaestiones, III, 26, 1: "(0 Tigre) desaparece no solo, per- queres abandonar os vícios tens de afastar-te dos exem-
manece <x.ulto em grande extensão, e vai reaparecer num ponto bastante afas-
plos que convidam ao vício. O avarento, o sedutor, o
tado, mas sem que haja dúvidas de que se trata do mesmo rio". - Alusão às
modificaçôes sofridas pelo rnrso do rio e às diferenças consideráveis de volume sádico, o vigarista (que já bem nocivos te seriam se ape-
de caudal conforme as épocas do ano. nas te fizessem companhia! ) estão mesmo dentro de ti.

574 575
Junta-te à companhia dos homens de bem, convive com encobre; também há muita coisa que de noite nos mete
os Catões, com Lélio, com Tuberão. Se preferires também medo mas à luz do dia apenas dá vontade de rir.
o convívio com os Gregos, junta-te a Sócrates ou a Zenão: "Formas de temível aspecto, a Morte, o Sofrimento:"
o primeiro ensinar-te-á a morrer quando a necessidade temíveis, não na realidade mas pelo aspecto, lhes chamou, 25
o impuser, o segundo a fazê-lo antes que a necessidade. o e muito bem, o nosso Vergílio, ou seja, parecem temíveis
22 imponha. Convive com Crisipo ou com Posidónio: eles te sem o serem. O que há nelas, pergunto eu, que seja de
darão o conhecimento das realidades humanas e divinas, facto tão terrível como a opinião vulgar pretende fazer
eles te incitarão a agir, não apenas a falar com talento, a crer? Diz-me, por favor, Lucílio: porque há-de um homem
lançar palavras para deleite do auditório, mas a fortalecer temer o sofrimento, porque há-de um ser humano recear
a alma e a pô-la em condições de afrontar qualquer ameaça. a morte? Estou farto de encontrar pessoas que não acredi-
O único porto onde pode abrigar-se esta vida agitada e tam que seja possível alguém fazer o que elas próprias são
conturbada está em saber desprezar as casualidades, em incapazes de fazer; segundo elas, as nossas doutrinas 26
mantermo-nos firmes, em estarmos preparados para rece- excedem as possibilidades da natureza humana. Dessas pes-
soas eu tenho melhor opinião do que elas próprias: todas
ber em pleno peito os golpes da fortuna sem nos encolher-
elas são capazes de seguir a nossa teoria, só que não o
23 mos nem virarmos as costas. A natureza dotou-nos de
querem. Ao fim e ao cabo, quem é que alguma vez a ten-
uma alma receptiva ao sublime; tal como a alguns ani-
tou seguir que se tenha visto traído por ela? Quem é que
mais dotou de ferocidade, a outros de astúcia, a outros de
não a achou mais fácil de pôr em prática do que parecia?
medo, também ao homem dotou de um espírito glorioso
Não, não é porque a teoria seja difícil que não ousamos
e elevado que busca como forma de vida não a mais
praticá-la; pelo contrário, por nós não ousarmos praticá-la
segura mas sim a mais digna, à semelhança do universo, a é que ela se nos afigura difícil! ,
quem, tanto quanto permite o andamento de seres mor- E se quereis um exemplo concreto, tomai o caso de 27
tais, procura imitar e emular; em cada passo em frente Sócrates, esse velho que suportou tudo quanto imaginar se
que dá, o homem sente-se alvo de incitamento e atenção. pode, que passou todas as agruras da vida sem se deixar
24 É senhor de tudo, está acima de tudo o mais; por isso vencer pela pobreza (que os encargos domésticos conside-
mesmo nada há a que se submeta, nada que lhe pareça ravelmente agravavam) ou pelo esforço físico, ele que cum-
insuportável, nada que faça vergar a sua energia. priu na Íntegra todas as tarefas militares. Sem falar em
"Formas de temível aspecto, a Morte, o Sofrimento;"!) . tudo por que ele passou na sua vida familiar, quer o
nada temíveis, para quem as possa encarar com olhos de carácter intratável e a língua afiada da mulher, quer a
ver e for capaz de discernir para além da névoa que as rebeldia dos filhos que mais se assemelhavam à mãe do que
ao pai, ou o que sofreu na guerra, durante o período dos
tiranos ou sob uma democracia mais crnel ainda do que as
" Vergílio, Aen., VI, 277. guerras ou os tiranos. A guerra durara vinte e sete anos;
28
576 577
findas as hostilidades, Atenas viu-se entregue às exacções pretura, acusador público 17, magistrado provincial, perante
dos trinta tiranos, na sua maior parte inimigos pessoais a assembleia, no exército, ao morrer) permaneceu igual a
de Sócrates. Para cúmulo a condenação à morte, como si mesmo. Finalmente, no meio da agonia da república,
resultado de gravíssimas acusações: Sócrates era acusado com César a um lado à frente de dez legiões de elite e de
de desrespeito pela religião e de corromper a juventude, todas as suas tropas auxiliares estrangeiras, e Gn. Pom-
incitando-a contra os deuses, os próprios pais, o Estado. peio de outro lado, ele sozinho bastou para fazer frente a
Resultado: a prisão e o veneno. Nada disto, contudo, aba- todos; enquanto uns tomavam o partido de César e outros
lou minimamente o ânimo de Sócrates, tal como lhe não o de Pompeio, Catão foi o único que abraçou o partido da
alterou a fisionomia. Admirável, única, é verdadeiramente república. Se quiseres, num esforço de imaginação, repre- 31
a glória deste homem! Até ao último momento ninguém sentar no teu espírito a situação que se vivia na época,
viu que Sócrates se tornasse ou mais alegre ou mais triste; verás de um lado a plebe, a totalidade da massa empe-
no meio da maior inconstância da fortuna ele manteve-se nhada na revolução, do outro lado as classes senatorial e
constante até ao fim. equestre, tudo quanto de nobre e escolhido havia na cidade,
29 Queres outro exemplo? Vê o caso de M. Catão, o e no meio, sozinhos, abandonados, Catão e a república!
jovem, com quem a fortuna se mostrou mais insistentemente Serás tomado de admiração, digo-te eu, quando vires
hostil ainda, contrariando-o em todas as circunstâncias e, "o Atrida e Príamo, e Aquiles de ambos inimigo/" 18
por fim, à hora da morte. Apenas conseguiu provar, con- Catão acusa um como acusa o outro, procura que ambos 32
tudo, que um homem de coragem pode viver, pode até deponham as armas. Ajuíza ambos os contendores dizendo
que, se vencer César, opta pela morte, se Pompeio, pelo
morrer mesmo com a hostilidade da fortuna. Toda a exis-
exílio. Que podia Catão temer se ele próprio não decretou
tência de Catão decorreu ou no meio da agitação social
para si mesmo, vencido ou vencedor, senão o que a ira
armada ou quando já estava em gestação a guerra civil dos inimigos lhe imporia? Foi, portanto, em obediência à
declarada. Também de Catão se pode dizer, como de sua decisão que ele morreu! Podes ver por este exemplo 33
Sócrates, que se eximiu pela morte à servidão. 16 A menos como os homens são capazes de suportar o cansaço: a pé,
que se pense que Pompeio, César e Crasso se conluiaram Catão conduziu o exército através dos desertos africanos.
30 para defender a liberdade!. .. Ninguém viu mutação alguma Podes ver como é possível suportar a sede: nas ardentes
em Catão no meio de todas as mutações da república; em colinas de África, chefiando os restos de um exército ven-
todas as circunstâncias (como pretor, depois expulso da · cido, sem dispor de abastecimentos, ele aguentou, sem
despir a armadura, a falta de água, e quando ocasional-

"' A tradução corresponde ~ conjectura de Haase: seruituti se eduxisse, a


que acrescentámos "pela morre'', uma ,vez que Séneca se refere com extrema 17
Por exemplo, aquando da conjura de Carilina, v. Salúsrio, Cat., 52.
18
frequência ao suicídio de C1tão. De qu"lqt>er nr:.xJo, a tradução é conjectura!, Vergílio, Aen., I, 458. Aquiles representa Carão, o Atrida (= Agamémnon)
dadas 3S rnrrnprelas dos mss. e Príamo correspondem a Pompeio e César.

578 579
mente havia ensejo de beber um pouco, Catão era o último tado a ele como forma de passarem despercebidas. Quem
a fazê-lo. Podes ver como é possível desprezar as honras despreza o outro calca-o aos pés, é evidente, mas passa
e a ignomínia: no mesmo dia em que foi rejeitado da adiante; ninguém se afadiga teimosamente a fazer mal a
pretura foi para o terreiro dos comícios jogar à bola! alguém que despreza. É como na guerra: ninguém liga ao
Podes ver como é possível não sentir medo algum dos soldado caído, combate-se, sim, quem se ergue a fazer
poderosos: Catão desafiou simultaneamente Pompeio e frente.
César, quando toda a gente só se incompatibilizava com Quanto às esperanças dos desonestos, bastar-te-á, para 3
um deles para cair nas boas graças do outro. Podes ver evitá-las, nada possuires que possa suscitar a pérfida cobiça
como é possível desprezar tanto a morte como o exílio: dos outros, nada teres, em suma, que atraia as atenções,
foi Carão quem impôs a si mesmo o exílio, a morte e, porquanto qualquer objecto, ainda que pouco valioso, sus-
34 entre um e outra, a guerra. Todos somos capazes de mos- cita desejos se for pouco usual, se for uma raridade. Para
trar o mesmo ânimo em face destas circunstâncias, desde escapares à inveja deverás não dar nas vistas, não gabares
que dispostos a subtrair-nos ao jugo. Antes de mais nada, as tuas propriedades, saberes gozar discretamente aquilo
importa renunciar aos prazeres: tiram-nos a energia, efemi- que tens. Quanto ao ódio, ou derivará de alguma ofensa
nam-nos, abafam-nos de exigências para cuja satisfação que tenhas feito (e, neste caso, bastar-te-á não lesares
temos de recorrer à fortuna. Depois, há que desprezar as ninguém para o evitares), ou será puramente gratuito, e
riquezas - salário que recebemos em troca de servidão. então será o senso comum quem te poderá proteger. Esta
Ponhamos de lado o ouro, a prata e tudo o mais que espécie de ódio tem sido perigosa para muita gente; e
enche as casas opulentas. A liberdade não se obtém de alguns despertaram o ódio dos outros mesmo sem razões
mão beijada, e se damos grande valor à liberdade teremos de inimizade pessoal. Para te protegeres deste perigo 4
de dar reduzido valor a tudo o mais. recorrerás à mediania da tua condição e à brandura do teu
carácter: faz com que os outros saibam que tu és um
homein que não exerce represálias mesmo se ofendido;
105 não hesites em fazer as pazes com toda a sinceridade. Ser
1 Vou indicar-te quais as regras de conduta a seguir temido, é uma situação tão ingrata em tua própria casa
para viveres sem sobressaltos. Acho, no entanto, que tu como no exterior, tanto por parte dos teus escravos como
deverás acolher estes meus conselhos com o mesmo espí- por parte dos cidadãos livres. Para causar a tua ruína
rito que o farias se eu te aconselhasse a maneira de con- qualquer um dispõe de força que baste. E não te esqueças
servar a saúde no território de Árdea. Passa em revista que quem inspira medo sente ele próprio medo: ninguém
quais as maneiras que podem incitar um homem a fazer pode inspirar terror e sentir-se seguro! Resta considerar o 5
o mal a outro homem: encontrarás a esperança, a inveja, desprezo: mas cada um, se deliberadamente se sujeitár a
2 o ódio, o medo, 0 desprezo. De todas elas a mais inofen- ele, se goza de pouca consideração porque quer, e não
siva é o desprezo, tanto que muitas pessoas se têm sujei- porque o mereça, tem na sua mão a faculdade de regular a

580 581
sua intensidade. Os inconvenientes do desprezo podem ser a serenidade de espmto. O criminoso, mesmo que não
atenuados ou pela prática de boas acções ou pelas relações seja apanhado, está sempre pensando na possibilidade de o
de amizade com pessoas que tenham influência sobre alguém ser, tem permanentes pesadelos, sempre que se fala de
especialmente influente; será útil cultivar tais amizades, um crime qualquer ele pensa no seu próprio crime, que
sem no entanto nos deixarmos enredar por elas, não vá a nunca lhe parecerá suficientemente esquecido, suficiente-
protecção sair-nos mais cara do que o próprio risco. mente ignorado. O criminoso, em suma, pode ter por
6 Não há, contudo, forma mais eficaz de protecção do vezes a sorte - embora nunca tenha a certeza - de o
que remetermo-nos à vida privada, evitando o mais possí- seu crime nunca ser descoberto!
vel falar com os outros, e falando o mais possível apenas
com nós próprios. A conversação tem um poder de atrac-
ção subreptício e sedutor, e leva-nos a revelar os nossos 106
segredos com a mesma facilidad~ que a embriaguez ou a Se hoje levei mais tempo antes de responder à tua 1
paixão. Ninguém é capaz de calar tudo quanto ouviu, mas carta não foi porque as minhas ocupações mo impedis-
também não reproduz exactamente tudo quanto ouviu; e sem. Não temas vir a ouvir-me dar uma desculpa destas!
quem não é capaz de guardar para si a informação tam- Eu tenho todo o vagar que quero, e, aliás, só não tem
bém não é capaz de manter secreto o nome do seu autor. vagar quem não quer. Os afazeres não andam atrás de
Cada um de nós tem sempre alguém em quem deposita alguém: os homens é que se agarram aos afazeres, enten-
tanta confiança como em si próprio; no entanto, embora dendo as suas ocupações como sinónimo de felicidade.
refreie a tagarelice natural e se contente em falar para um Porque foi então que eu não te respondi imediatamente?
só ouvinte, o resultado é o mesmo que se falasse em
Porque a questão que me coloca_ste se inseria no plano da
público: em breve o que era segredo está transformado
obra que estou compondo : tu sabes bem que eu pretendo 2
em boato!
escrever um livro abarcando todo o âmbito da filosofia
7 A segurança assenta na sua maior parte em nós nada
moral, no qual é minl)a intenção desenvolver todos os
fazermos de injusto. Os homens de carácter violento não
problemas com ela relacionados 1'>. Por isso hesitei entre
conhecem na vida senão tumulto e ansiedade. O medo
que sentem é proporcional aos prejuízos que causam, e a
tranquilidade é coisa que não conhecem. Sentem-se ansio-
''' Contemporaneamente com as cartas a Lucílio, Séneca redigiu um volu-
sos, numa ansiedade constante, quando fazem algo de mal; moso trarado, em sete livros, dedicado ao estudo de diversos temas científicos,
a própria consciência não os deixa continuar a agir, e por com o título de Natttrale.r Qttae.rtiones. Das três grandes áreas em que o estoi-
vezes obriga-os mesmo a prestar conta.S. Quem espera um cismo repartia a filosofia - lógica, física e ética - as N. Q. inserem-se obvia-
mente na área da física. Dado o objectivo de Séneca na obra a que aqui se
castigo acaba por apanhá-lo, e quem merece castigo está
refere (e que se perdeu) - traramento de diversos problemas (qttaestiones) de
8 sempre à espera dele. A má consciência pode, ocasional- ordem ética - poderemos supor que o dtulo do tratado seria, eventualmente,
mente, garantir uma certa segurança material, mas nunca Morale.r Qttae.rtione.r.

582 583
adiar a resposta até chegar o momento de tratar no livro já aqui uma coisa que tu não me perguntaste) - tais
essa questão, ou conceder-te audiência desde já, embora como a cólera, o amor, a tristeza, a menos que tu duvides
não fosse a tua vez. Acabei por achar que seria mais sim- que elas nos alteram o rosto, nos enrugam a testa, nos alongam
pático receber quanto antes um consulente vindo de tão a face, nos tornam a cara encarniçada ou nos fazem ficar
longe! 20 sem pinga de sangue. Pois bem: pensas que estes eviden-
3 Assim, vou destacar do meu projecto global e orde- tes sinais do nosso corpo podem ser ocasionados sem ser 6
nado esta questão, e, se outras questões do mesmo tipo por um corpo? E se as paixões são corpos, igualmente o
me aparecerem, dar-te-ei conta delas sem esperar as tuas são as doenças da alma, tais como a avareza, a-crueldade,
perguntas. os vícios empedernidos e já absolutamente insanáveis;
Que questões são estas, afinal? Bom, são daquelas cuja portanto, são corpos a maldade, em todas as suas varieda-
resolução é mais aliciante do que propriamente útil, a des - malevolência, inveja, soberba; portanto, são corpos 7
exemplo daquela que me puseste na tua carta: "se o bem os bens, primeiro porque são os opostos dos vícios que
é um corpo?" Ora o bem actua, uma vez que nos é útil, e assinalei, segundo porque se manifestam por sinais do
4 tudo quanto actua é um corpo. O bem move-nos a alma, mesmo tipo. Nunca reparaste como a coragem dá novo
de certa maneira dá à alma forma e limites, acções que vigor ao olhar? Como a prudência reforça a atenção?
são específicas dos corpos. Os bens do corpo são corpos; Como o respeito acentua a modéstia e a calma? Como a
logo também os bens da alma o são uma vez que a alma alegria aumenta a serenidade? Como a severidade acentua
5 é um corpo 21 • O bem próprio do homem é necessaria- a rigidez? Como a ternura aumenta a sensação de bem-
mente um corpo, uma vez que o próprio homem é um -estar? Consequentemente, tudo quanto altera a cor e a
ser corpóreo. Mentir-te-ia se dissesse que nãci são corpos forma dos corpos é igualmente um corpo, o qual exerce
os alimentos que o homem ingere, ou as mezinhas que naqueles a sua acção. De facto, -- todas as virtudes que eu
toma para proteger ou recuperar a saúde; logo, o bem enumerei são bens, assim como aquilo que delas resulta. E 8
próprio do homem é um corpo. Acho que tu não hesita- será possível duvidar que seja corpo tudo aquilo por que
rás em reconhecer como corpos as paixões (e assim meto um corpo pode ser tocado?
"Tocar e ser tocado - nada senão um corpo o
pode Jazer!",
como diz Lucrécio 22 • Ora, tudo quanto eu referi não pode-
2
" A "meráfora jurídica" aqui usada por Séneca - o consulenre vindo de
longe a solicitar audiência - jusrifica-se por Lucílio ainda se enconrrar na Sid-
lia, o que aumenraria a sua curiosidade pela resolução do problema posto.
ria alterar o nosso corpo se lhe não tocasse; por conse-
21
Que a alma é corpórea é um pomo em que os mesrres do estoicismo gui!lte, todos são corpos. Mais ainda: tudo quanto tenha 9
amigo esrão rodos de acordo, cf. por ex. S. V.F., 1, 137 (= II, 790): "A morre em si força suficiente para nos impelir, forçar, deter ou
consisre na separação da alma e do corpo; ora, nenhuma coisa incorpórea se
pode sepatar de um corpo, pois rambém nenhuma coisa incorpórea pode entrar
em conracro com um corpo. A alma ramo conracra como se separa do corpo,
22
logo a alma é um corpo." De rerum natura, 1, 304.

584 41 585
impedir de nos movermos - tem de ser um corpo. Pois tão mesquinha! ... Os teus escravos entenderam que as tuas
bem: o medo não nos detém? A audácia não nos impele? múltiplas ocupações lhes davam azo para se pôrem em
A coragem não nos incita e dá ânimo? A temperança não fuga! Se os teus amigos te enganassem (continuemos,
10 nos refreia e faz recuar? A satisfação não nos exalta? A apesar de tudo, a dar-lhes o nome que a nossa ingenui-
25
tristeza não nos abate? Em suma, tudo quanto nós faze- dade lhes atribuiu, para lhes não chamarmos coisa pior) ......
mos, fazemo-lo sob ordens ou da maldade ou da virtude, e ausentaram-se dos serviços que te prestavam esses homens
tudo quanto exerce poder sobre um corpo, tudo - é um que não só não apreciavam a tua generosidade como ainda
corpo, tudo quanto dá força a um corpo - é um corpo! te imaginavam capaz de fazer mal a alguém. Nada disto 2
O bem de um corpo é corpóreo; o bem do homem é o se pode considerar um acontecimento insólito e inespe-
bem de um corpo, logo, é corpóreo. rado. Sentir-se lesado por um caso destes é tão ridículo
11 Respondi ao que me pediste, fiz-te a vontade. Agora - como lamentar-se por ser salpicado no balneário, empur-
direi eu próprio o que já estou a imaginar que tu vais rado no meio da multidão ou sujo por um bocado de
dizer: tudo isto é um jogo! 23 Gasta-se o engenho com lama. A condição da vida humana assemelha-se à passa-
questões supédluas: estas teorias não tornam os homens gem por um balneário, uma multidão ou uma estrada:
12 bons, apenas os fazem eruditos. "Saber" é algo de muito,.
certos contratempos serão provocados, outros casuais. Não
mais vasto, e também mais simples: não são precisas
é coisa fácil, a existência. Iniciaste uma longa jornada:
muitas letras para nos darem um espírito bem formado;
hás-de escorregar, de tropeçar, de cair, de te fatigar, de
nós é que estamos habituados a desperdiçar tudo, e a filo-
chamar (sem sinceridade!) pela morte! Aqui terás de
sofia não foge à regra. Sofremos de intemperança em
abandonar o teu companheiro, além de levá-lo à sepultura,
tudo, até no uso das letras. Estudamos para a escola, não
acolá de te precaveres contra ele, É através destas contra-
para a v1'dal24
.
riedades que avaliaremos até que ponto é pedregoso este
caminho da vida. Quem quiser morrer deve ter a alma 3
107 preparada contra tudo; deve ter consciência de ter chegado
1 Que é feito da tua capacidade de prever? Onde está a ao local onde ressoa o raio, deve estar ciente de ter che-
tua sagacidade na apreciação das coisas? Onde está a tua gado lá onde
grandeza de alma? Deixares-te afligir por uma questão

23
25 Texto corrupto e lacunar. Séneca deveria estabelecer uma oposição entre
Literalmente, "estamos jogando aos latruncull'; os latrunculi (diminutivo
amigos e escravos: se fossem amigos a enganar Lucílio, o caso seria relativa-
de latro "ladrão") eram peões que se movimentavam num tabuleiro de 64 casas
de cor alternada, no género do actual jogo das damas. mente grave (porquanto os pretensos amigos se revelariam, afinal, falsos), mas
24
Máxima famosa, e de dramática actualidade; d. Max Pohlenz, Die Stoa, I, tratando-se de escravos fugitivos o caso carecia de gravidade, e era mesmo
p. 290 ss. previsível.

586 587
"a dor e os remorsos vingadores puseram suas moradas, alguém escapa a um mal nem por isso deixa de lhe estar
26
onde habitam as pálidas doenças e a dolorosa velhice." sujeito. Direito equitativo não é aquele de que todos efec-
Temos de viver com estes seres por companhia. Tu não tivamente usam, mas sim o que é proclamado para uso
podes escapar a estes males, mas podes aprender a despre- de todos. Ordenemos à nossa alma que se mantenha tran-
zá-los - e para tanto bastar-te-á meditar neles sem ces- quila e paguemos sem queixumes o tributo da nossa con-
4 sar e conjecturar que todos eles podem ocorrer. Qualquer dição mortal. O Inverno traz consigo o frio, logo nós 7
pessoa enfrenta valorosamente uma situação para a qual devemos suportar o frio. O Verão traz consigo o calor, e
se preparou com antecedência, e resiste mesmo às circuns- nós temos de suportar o calor. O tempo incerto é nocivo
tâncias difíceis se nelas tiver previamente pensado. Um à saúde, e nós temos de nos sujeitar à doença. Em qual-
indivíduo mal preparado, pelo contrário, fica em pânico à quer lugar nos pode sair ao caminho uma fera, ou alguém
mínima contrariedade. Temos, portanto, de fazer com que mais perigoso do que todas as feras: um homem! A água
nada nos caia em cima inopinadamente; e como as coisas destrói uma coisa, o fogo outra. Nós não podemos alterar
nos parecem mais graves quando não são previstas, uma estas condições da existência; podemos, contudo, assumir
meditação contínua conseguirá que não te vejas em caso uma atitude de coragem, digna de um homem de bem, e graças
algum com a inexperiência de um recruta! 27 a ela suportar com valor os golpes do acaso e submeter-
5 "Fui abandonado pelos meus escravos!" Mas há quem -mo-nos à lei da natureza. A natureza, aliás, com as suas 8
tenha sido roubado, denunciado, morto, traído, maltratado, alternâncias, torna mais suportável o mundo à nossa volta :
quem tenha sido envenenado ou caluniado. Aquilo de que a bonança sucede à tempestade; o mar agita-se, mas antes
te queixas aconteceu a muitos outros ....... 28 afinal de contas estivera calmo; os ventos não sopram continuamente; o
são muitos e variados os males que nos podem atingir. dia segue-se à noite; uma parte do firmamento eleva-se
Alguns, como dardos, ficam espetados em nós, outros vibram acima do horizonte, enqúanto a outra desce
ao voar direito a nós, outros ainda vão apontados abaixo dele: em suma, o ritmo constante do universo é
6 a outras pessoas, e ferem-nos por acaso. Não nos admi- alterno. A esta lei deve conformar-se o nosso espírito; 9
remos ante nenhuma das casualidades para que nascemos, deve ceder, deve obedecer a tal lei. Deve ter a consciência -
e de que ninguém deve queixar-se, pois são iguais para de que tudo o que acontece não pode deixar de acontecer,
todos. É como digo, iguais para todos, pois mesmo quando eni. vez de se atrever a censurar a natureza. A melhor ati-
tude a tomar é a de aceitar o que não podemos alterar, e
conformarmo-nos sem resmungar com os desígnios da
2
'' Vergílio, Aen., VI, 274-5; Séneca volta a citar o v. 275 na carta 108, 29. divindade que rege o curso do universo: mau soldado é
27
Tiro, o "recruta", o soldado acabado de ingressar nas fileiras, ainda inex- aquele que segue o seu general sempre a queixar-se! 29 Por 10
periente. Ê relevante a insistência com que Séneca usa metáforas extraídas da
linguagem militar para aludir à contínua luta do filósofo por se aproximar da
perfeição.
28
Lanma, JXlStulada JXlr Summers e aceite JXlr Reynolds. -'' Cf. supra nota 27.

588 589
conseguinte aceitemos pressurosos e animados as suas tudo, como tens prazer em conhecê-la, empenhas-te em a
ordens, não queiramos fugir ao curso desta máquina des- colocar, sem quereres esperar pela obra de conjunto que
lumbrante na qual estão entretecidos também os nossos eu estou neste momento a compor dedicada à "Filosofia
sofrimentos. Dirijamos a Júpiter (o timoneiro que dirige Moral" 11 • Vou, então, responder ao teu problema, mas não
esta imensidade) palavras semelhantes às que o nosso sem que antes te aconselhe como deves moderar esse ape-
Cleantes usou nos seus magníficos versos, e que eu, seguin- tite ardente de saber de que te vejo possuído, não vá ele,
do o exemplo desse grande escritor que foi Cícero, me em vez de benéfico, ser nocivo à tua formação. Repara 2
permito traduzir para a nossa língua. Se eles te agradarem, que as questões não devem ser estudadas desordenadamente,
acolhe-os favoravelmente; se não te agradarem, fica pelo nem convém tentar abarcar tudo de uma só vez; é gra-
menos sabendo que eu procurei imitar o exemplo de Cícero. dualmente que chegarás à totalidade das nossas teorias.
11 "Guia-me, ó pai que reges o excelso céu, Importa também que não te esforces para além das tuas
para onde te aprouver: não hesitarei em obedecer-te; capacidades, nem tentes abarcar mais do que a tua prepa-
aqui estou, sempre pronto! Se resistir, terei de seguir-
ração de momento te permite. Em suma, consagra-te ao
-te gemendo, suportando de má vontade o que podia
estudo, não de tudo quanto te interessa mas sim de tudo
ter feito de bom grado. O destino guia quem o segue,
quanto estás habilitado a entender. Se não desanimares,
arrasta quem lhe resiste ! 30
12 Vivamos assim, falemos desta maneira! Que o destino nos virás a conhecer tudo o que desejas, pois quanto mais
encontre sempre prontos, sempre de boa vontade. Uma conhecimentos o espírito absorve tanto mais capacidade
alma verdadeiramente grande é aquela que se confia ao des- vai adquirindo.
tino. Mesquinho e degenerado, pelo contrário, é o homem que Ainda guardo na memória um preceito que ouvi a 3
tenta resistir, que ajuíza mal da ordem do universo e que acha Átalo nos tempos em que frequentava a sua escola (onde
preferível corrigir os deuses do que emendar-se a si próprio! eu era sempre o primeiro a chegar e o último a sair); até
mesmo durante os passeios do mestre eu o aliciava à dis-
cussão de um ou outro problema, aproveitando-me do
108 facto de ele estar sempre pronto a ir ao encontro dos
1 A questão que me pões é daquelas que apenas importa interesses dos seus discípulos. Dizia Átalo que "o docente
solucionar pelo simples prazer de as solucionar. Apesar de e o discente se devem unir num propósito comum: ó
primeiro, ser útil ao discípulo, o segundo, tirar benefício
do convívio com o mestre." De facto, quem convive dia- 4
30
S. V.F., I, 527. - O original grego dos quatro primeiros versos (de que riamente com um filósofo obtém sempre algum benefício:
Séneca dá uma tradução livre) é conhecido, v. o fr. citado dos S. V.F.: o quinto ou o seu carácter se aperfeiçoa, ou se torna mais apto a
verso, porém, não se encontra nas fontes gregas; se já figurava no texto de
Cleantes ou se, pelo contrário, é da autoria de Séneca, adhuc sub iudice !is est.
Cf. do mesmo Cleantes o belo hino a Zeus em S. V.F., I, 537 (trad. portuguesa
em M.H. da Rocha Pereira, Hélade, Coimbra,4 1982, pp. 444-5 ). " Cf. supra, carta 106, 2 e nota 19.

590 591
aperfeiçoar-se. O poder da filosofia é tal que beneficia ouvir uma enérgica dissertação contra o medo da morte
inevitavelmente não só os iniciados, mas até os que a ou uma corajosa diatribe contra a fortuna sentem de ime-
conhecem ocasionalmente. Quem se põe ao sol, ainda que diato o desejo de pôr em prática o que ouviram. As pala-
não seja essa a intenção, acaba por ficar bronzeado; a vras penetraram até ao âmago, as pessoas comportar-se-ão
quem entra numa perfumaria e lá se demora algum tempo de acordo com essas máximas - na condição de o res-
comunica-se-lhe um pouco do cheiro característico do local; pectivo efeito lhes perdurar no espírito, na condição de
do mesmo modo, quem convive, mesmo distraidamente, essa nobre disposição se não chocar de imediato contra a
com um filósofo aprende sempre qualquer coisa de útil. influência, sempre deletéria, do vulgo. Poucos são, de facto,
Repara que eu digo "convívio distraído", e não "hostili- os que conseguem chegar a casa com a mesma disposição
dade preconceituosa". de espírito com que estavam na escola. Não é difícil levar 8
5 "Essa está boa! Se calhar não conhecemos casos de fre- um auditor ao desejo do bem; a todos nós a natureza deu,
quentadores, e por muitos anos, de escolas filosóficas que em potência, a semente da virtude. Todos nascemos com
nem superficialmente sofreram a mínima influência!" Claro aptidão para toda a espécie de bem; a influência desse
que conhecemos, frequentadores obstinados e assíduos, até; bom instigador de consciências desperta as capacidades
mas a esses chamo eu "hóspedes" dos filósofos, não "dis- latentes do espírito para a virtude. Não vês tu como o
6 cípulos". Há quem vá à escola apenas para ouvir, mas não teatro em peso aplaude sempre que se ouve alguma daque-
para aprender, tal como se vai ao teatro pelo prazer de las máximas que todos unanimemente reconhecemos e
escutar um belo discurso, uma bela voz ou uma bonita aprovamos como verdadeiras?
peça! Uma grande parte dos frequentadores das escolas "Raras são as posses dos pobres, nulas as dos avaros.32 9
filosóficas vai lá apenas para passar o tempo. Não o faz O avaro· trata mal todos, e a si pior que a ninguém. " 33
para aprender a defender-se de algum vício, para interio- Até o mais sórdido dos espectadores aplaude ao ouvir
rizar alguma lei moral que conduza ao aperfeiçoamento do estes ·versos, contente de ver os seus vícios assim conde-
carácter; vai lá apenas pelo prazer de ouvir. Várias pes- nados. Quanto maior não seria o aplauso se tais máximas
soas levam consigo o bloco de apontamentos, para anotar, fossem proferidas por um filósofo, sobretudo se tão nobres
não pensamentos, mas frases que depois repetem sem pensamentos fossem moldados em verso de modo a mais
proveito para ninguém, do mesmo modo que as· ouviram eficazmente a ideia ficar gravada no espírito dos não ini-
1 sem proveito próprio. Algumas contudo, entusiasmam-se ciados! Costumava dizer Cleantes que, "tal como o ar 10
com as máximas sublimes, ficam mesmo inflamadas, de que expiramos produz um som mais forte se for expelido
rosto e de espírito, de paixão pelos oradores, numa excita- pelo longo e estreito tubo de uma trompa e sair por fim
ção semelhante ao efeito das flautas sobre os eunucos frí-
gios, que ficam fora de si como se por ordem divina. A
tais pessoas, o que as arrebata e excita é a beleza dos 32
Publílio Siro, I, 7, Meyer.
pensamentos, e não a harmonia de palavras ocas. Ao 33 Publílio Siro, I, 5, Meyer.

592 593
pela larga abertura da campânula, também as nossas ideias ao amor do bem e da justiça; sobre esses espíritos ainda
se tornam mais nítidas quando condensadas na forma rígida maleáveis e pouco atingidos pela corrupção o apelo da
do verso".v. É menor a atenção que prestamos e o efeito que verdade tem enorme força, desde que tenha um advogado
em nós produz a mesma coisa dita em prosa; quando à altura. Pela minha parte, quando ouvia Átalo a discursar 13
uma ideia elevada é expressa numa forma métrica rígida, contra os vícios, os erros e os males da vida, muitas vezes
a mesma máxima parece, por assim dizer, lançada por me senti compadecido do género humano; a pessoa de
11 músculos bem mais robustos. Fazem-se muitas dissertações Átalo, considerava-a sublime, superior ao que de mais alto
sobre o desprezo pelas riquezas, compõem-se enormes dis- o homem pode atingir. Átalo via-se a si mesmo como um
cursos para ensinar aos homens que a verdadeira riqueza rei 37, mas a mim parecia-me estar muito acima dos reis
está na alma e não nos bens materiais, que é abastado o um homem que se arrogava o direito de os criticar.
homem que sabe adaptar-se à sua pobreza e se sente rico com Quando ele se punha a enaltecer a pobreza e a mos- 14
pouco, mas toca-nos mais o espírito ouvirmos o mesmo trar até que ponto tudo quanto excede a utilidade se torna
dito em verso: numa carga supérflua e difícil de suportar, dava-me fre-
"Quanto menor e, o dese;o,
• menor e, a carencta; 1)
A •
quentemente vontade de sair da escola reduzido à condi-
Tem tudo quanto quer quem só quer o indispensável.'"" ção de pobre. Quando começava a ridicularizar os nossos
12 Ao ouvir estas ou outras frases similares somos de ime- prazeres e a enaltecer a castidade do corpo, a sobriedade
diato atraídos a re<:onhecer a verdade; até mesmo pessoas da mesa e a isenção do espírito, não somente em relação
a quem nada habitualmente satisfaz as admiram, aplau- aos prazeres ilícitos mas também aos meramente inúteis,
dem e manifestam ódio pela riqueza. Quando vires tais a minha única vontade era cercear drasticamente os pra-
pessoas assim impressionadas será a altura de as pressio- zeres do estômago. Alguns desses impulsos, Lucílio, tenho- 15
nares, de insistires, de atacares - deixando-te de ambi- -os conservado até 'hoje; decidira-me com toda a energia a
guidades, silogismos e sofismas, e de todo o restante apa- abraçar na totalidade o modo de vida estóico, mas depois,
rato de uma inútil subtileza. Fala contra a avareza, fala contra inserindo-me na vida da sociedade, apenas guardei uns
o luxo, e quando te aperceberes de que estás a acertar no poucos desses bons costumes iniciais. Entre eles a absten-
alvo e a entusiasmar o ânimo do teu auditório insiste
ção, ao longo de toda a minha vida, de ostras e de cogu-
com ainda maior energia. É quase inacreditável o efeito
melos, pois, mais do que alimentos, são simples excitantes
produzido por um discurso semelhante, todo ele tendente
do paladar que assim como entram assim saem, e só ser-
a visar o proveito, a utilidade do auditório. Os espíritos
ainda jovens deixam-se aliciar com a maior facilidade vem para obrigar as pessoas, já cheias, a comer ainda
mais (coisa excelente para os glutões que se atafulham
para lá da sua capacidade)! Entre eles a rejeição, ao longo 16
14
S. V.F. 1, 487 (cf. ibid. 486).
" Publílio Siro, !, 56 Meyer.
17
'" Publílio Siro, Q, 74 Meyer. · Cf. S. V.F., III, 332; Séneca, Thyestes, 344-68.

594 595
de toda a minha vida, do uso de perfumes, pois entendo tempo e através de quantas moradas transitórias a alma
que o melhor perfume do nosso corpo é a ausência de volta a incarnar num ser humano é assunto que deixo em
cheiro. Entre eles a recusa de ingerir uma gota de vinho. suspenso. Para já, Pitágoras incutiu nos homens o medo
de cometerem um crime, um parricídio, pois é possível
Entre eles o meu afastamento, ao longo de toda a vida,
inadvertidamente darmos com a alma de um parente e
dos balneários, porquanto me parece um hábito inútil e
violar, matando-o ou comendo-o, o corpo em que de mo-
sofisticado pôr o corpo a destilar e enlanguescer. Outros mento se alberga o espírito desse nosso familiar. Após 20
hábitos que a princípio rejeitara acabaram por voltar, mas expor esta teoria, acrescentando-lhe argumentos próprios,
de modo a que, mesmo não cortando com eles, os pratico Sótion exclamava: "Não acreditas que as almas transitem
com uma moderação próxima da quase total abstinência, o de uns corpos para outros e que aquilo a que chamamos
que é talvez mais difícil ainda : há certos costumes que é morte é apenas uma migração? Não acreditas que nos
mais difícil moderar do que erradicar por completo. animais domésticos, nas feras ou nos seres marinhos habita
17 Uma vez que comecei a descrever-te o entusiasmo a alma que em tempos foi a de um homem? Não acredi-
enorme, depois mitigado pela idade, com que em jovem tas que no universo nada sé extingue, apenas muda de
me dediquei à filosofia, não sentirei vergonha em revelar- lugar? Que não são apenas os corpos celestes que se
-te também a paixão que Pitágoras despertou em mim. movem por um circuito determinado, mas que também os
Sótion costumava explicar as razões por que Pitágoras, e seres vivos atravessam várias fases e as almas têm igual-
mais tarde Sêxtio, se recusavam a comer carne de animais. mente a sua órbita? Grandes homens têm acreditado nesta 21
As razões de um e de outro eram distintas, mas ambas doutrina. Suspende, se quiseres, o teu juízo sobre ela, mas
18 dignas de admiração. Sêxtio entendia que o homem dispõe aceita na integra as suas consequências. Se a teoria é ver-
de alimentos suficientes sem precisar de causar mortes; dadeira, a abstenção de carne dar-te-á uma vida inocente;
além disso, quando se cria o prazer de dilacerar a carne se é falsa, uma vida frugal. Em que é que te prejudica a
dos animais, facilmente a crueldade se torna num hábito. aceitação destes principias? Afenas te faço renunciar aos
Prosseguia afirmando a necessidade de se limitarem os hábitos alimentares dos leões e dos abutres!" Estimulado 22
prazeres dos sentidos, e concluía dizendo que a variedade por estas palavras comecei a deixar de comer carne, e ao fim
de alimentos é nociva à saúde e contrária à nossa consti- de um ano esta dieta já se tornara não só fácil como até
19 tuição física. Pitágoras, por seu lado, afirmava o paren- agradável de praticar. Cheguei mesmo a pensar que o espírito
se me tornara mais ágil, embora hoje te não possa garan-
tesco absoluto entre todos os seres vivos, a ligação entre
tir se de facto o estava. E sabes porque me deixei disto?
todas as almas e a respectiva transmigração de corpo para
O meu tempo de juventude coincidiu com o acesso de
corpo. A crer no que ele diz, nenhuma alma perece nem Tibério César ao principadow. Por essa época, praticavam-se
cessa de agir senão durante o breve espaço de tempo em
que passa de um corpo para outro 38• Ao fim de quanto
"' Tibério alcançou o poder, após a morte de Augusto, no ano 14 da nossa
era. Conforme a data que se admita para o nascimento de Séneca (as datas pro-
postas variam entre li e 1 a.C:.: v. P. Grimal, Séneque ou la conscience de l'Em-
38 V. Ovídio, Met. , XV, 75 ss.
pire, Paris, 1978, pp. 56 ss.), o filósofo teria por essa altura entre 15 e 18 anos.

596 597
em Roma vanos cultos exottcos e considerava-se indício Pelo contrário, limita-se a observar que Vergílio, sempre
de adesão a tais superstições a abstenção da carne de cer- que alude à velocidade do tempo, emprega o verbo fugir!...
tos animais 1º. A pedido insistente do meu pai, - não 11
0 tempo melhor da vida dos míseros mortais
porque temesse alguma acusação, mas porque embirrava é o primeiro a fugir; surge logo a doença, a ama~ga
com a filosofia! - , voltei aos hábitos antigos, sem que, velhice, o cansaço, e enfim arrebata-os da dura morte
aliás, ele tivesse tido grande dificuldade em convencer-me a crueldade. " 42
23 a jantar melhor. Átalo costumava recomendar o uso de Quem tiver na mira a filosofia usará estes versos no sen- 25
um colchão que resistisse ao peso do corpo, e, eu, mesmo tido justo. Observará então: "Vergílio nunca diz que os
depois de velho, continuo a deitar-me numa cama em que dias marcham, mas sim que fogem, o que significa a
o meu corpo não deixa marcas. forma mais veloz de corrida; e também que os nossos
Contei-te tudo isto apenas para te provar como é melhores dias são os primeiros que nos escapam. Porquê
grande o entusiasmo dos jovens ainda inexperientes por então hesitarmos em apressar o passo, e ver se consegui-
todas as formas de atingir e praticar o bem quando encon- mos acompanhar a rapidíssima velÓcidade do tempo? O
tram alguém capaz de os exortar e estimular. Mas nem melhor passa voando, cedendo o lugar ao pior." Numa 26
sempre o resultado é satisfatório, ou porque os mestres ânfora o líquido mais puro é o primeiro a extravasar, dei-
nos ensinam a argumentar e não a viver, ou porque os xando para o fim as impurezas, mais densas; também na
discípulos procuram os mestres não com a intenção de nossa vida os primeiros anos são os melhores. Iremos nós
cultivarem a alma, mas sim de aguçarem o engenho. E deixar que eles se dissipem em interesse alheio, guardando
24 assim é que a filosofia se transforma em filologia! Ora é para nós próprios apenas as borras? Guardemos no espí-
da maior importância a intenção com que se aborda um rito esta frase, aceitemo-la como se proferida por um
assunto. Um aprendiz de gramático que estude Vergílio e oráculo:
11
encontre este belo verso 0 tempo melhor da vida dos míseros mortais

"foge, irreparável, o tempo,"11 é o primeiro a fugir!"


não o faz com a intenção de meditar: "Temos de estar O melhor porquê? Porque o futuro é desconhecido. O 27
atentos; se não nos apres~amos, ficamos para trás; o dia melhor porquê? Porque em jovens podemos aprender,
escoa-se veloz e faz-nos escoar com ele; somos arrebatados podemos encaminhar no melhor sentido um espírito ainda
sem dar por isso; planeamos tudo com vista ao futuro, e dúctil e moldável; porque esta fase da vida está apta a
ficamos inertes enquanto à nossa volta tudo se precipita!" suportar o esforço, quer para exercitar o espírito por
meio do estudo, quer para robustecer o corpo por meio
do exercício físico. O tempo subsequente já é menos activo,
"' Nomeadamente o culto de fsis e o culto judaico, aliás objecto de interdi-
ção por parte do imperador, v. Tácito, Ann., II, 85, 5.
11 42
· Vergílio, Georg., III, 284. Vergílio, Georg., III, 66-8.

598 599
menos enérgico mais prox1mo já do termo. Por isso houve dois reis em Roma que não tiveram, respectiva-
mesmo não atendamos a solicitações irrelevantes e apliquemo- mente, pai e mãe.'11 De facto nada se sabe ao certo da
-nos de alma e coração a este único objectivo: evitar só mãe de Sérvio Túlio, enquanto Anco Márcio não teve pai,
compreender tarde demais, quando já inteiramente ultra- dizendo-se dele apenas que era neto de Numa. Notará, 31
passados, a natureza da marcha vertiginosa do tempo que além disto, que o magistrado a que nós chamamos "dita-
de modo algum podemos deter! Que cada um de nós, dor", e que como tal é designado pelos historiadores, era
portanto, acolha como sendo a melhor a primeira fase da antigamente chamado "mestre do povo". Este título conser-
28 vida e dela se aproprie como seu bem pessoal. Temos de va-se ainda hoje nos livros dos áugures, e é. confirmado
agarrar o que procura fugir-nos. Aqui está o que não também pelo título de "mestre de cavalaria" dado ao lugar-
reflecte quem lê este poema com olhos de gramático, isto é, -tenente nomeado pelo ditador. Não deixará de registar
que os nossos melhores dias são os primeiros porque ainda que Rómulo morreu durante um eclipse do Sol; que
depois chegam as doenças, porque a velhice se aproxima e nos até mesmo das decisões dos reis se podia apelar perante o
cai sobre a cabeça enquanto ainda nos imaginamos adoles- povo, o que, segundo a opinião de alguns, entre os quais
centes; em vez disso, observa que Vergílio menciona sem- Fenestela15, se encontrava consignado nos livros pontificiais.
pre lado a lado a doença e a velhice, com toda a razão, Um gramático que folheie o mesmo volume começará 32
aliás, já que a velhice não passa de uma doença incurável. por inserir no seu comentário certas formas usadas por
29 Além disso notará também que o poeta atribui à velhice o Cícero tais como reapse, com o valor de re ipsa, ou sepse,
epíteto de "amarga": como equivalente de se ipse. Depois referir-se-á a certos
"surge logo a doença, a amarga velhice." termos que modernamente caíram em desiiso, por exem-
E noutro passo escreve: plo nesta frase de Cícero: "A sua interpelação fez-nos
43
"Aí habitam as pálidas doenças, a amarga velhice. " recuar quando já estávamos a atingir a linha de chegada
16
Não é para admirar, aliás, que da mesma matéria cada (calx)" • De facto, os antigos chamavam "linha de che-
um procure extrair o que interessa à sua especialidade: no gada" (calx) àquilo que hoje, no circo, se chama a "meta"
mesmo prado em que o boi procura a erva, o cão perse- (ereta). Seguidamente o nosso gramático coligirá as cita- 33
gue a lebre e a cegonha o lagarto! ções de Énio, em especial os versos consagrados a Cipião
30 Se um filólogo, um gramático e um filósofo tomarem, Africano:
cada um por seu lado a República, de Cícero, cada um "ao qual ninguém - cidadão ou inimigo - poderá
deles lê-la-á segundo os seus interesses particulares. O filó- compensar dignamente pelos seus esforços. " 17
sofo espanta-se como é possível dizer-se tanta coisa contra
a justiça. O filólogo, ao ler o mesmo texto, anotará que
11
Cícero, Rep., II, fr. 18.33, 21.37 (pp. 316, 318) Mueller.
11
· Fenestela, Ann., fr. 6* Peter.
16
Cícero, Rep., fr. 7,p. 379 Mueller.
47 2
1.\ Vergílio, Aen., VI, 275: cf. supra a carta 107, 3 e nora 26. Énio, fr. var. 19-20 Vahlen (= epigr., 5-6 Warmington ).

600 42 601
Deste passo conclui ele que entre os antigos a palavra ops com firmeza o leme, fazer frente à fúria do mar, subtrair
não significava apenas "auxílio" (auxilium) mas também as velas à ventania: para que servirá um piloto a vomitar,
"esforços" (opera). Énio pretende dizer que ninguém, cida- de cabeça à roda? As tempestades que nos afligem nesta
dão ou inimigo, foi capaz de dar a Cipião uma "compen- vida não são bem maiores do que as que assaltam qual-
34 sação condigna pelos seus esforços." A seguir ficará todo quer navio? Para quê palavreado, quando o importante é
ufano ao descobrir onde Vergílio se inspirou para escrever segurar o leme? Todas as tiradas que esses falsos mestres 38
, ,,,18
"sobre ele, enorme, ressoa a porta do ceu. declamam ante multidões de ouvintes não lhes pertencem:
Énio, afirma, foi buscar esta imagem a Homero, e Vergí- são frases de Platão, de Zenão, de Crisipo, de Posidónio e
lio a Énio, como se comprova com a presença na "Repú- de inúmeros outros notáveis pensadores. A única maneira
blica" de Cícero deste epigrama eniano: de comprovar que essas teorias também lhes pertencem
"Se alguém é dado ascender às moradas dos deuses, seria esta: viverem de acordo com o que apregoam!
para mtm. so, abre-se a vasta porta d o ceu.
, ,,/19
Por agora, cheguei ao fim do que tinha para te dizer.
35 Mas com esta conversa arrisco-me a assumir o papel de Quanto ao assunto que me tinhas pedido para tratar vou 39
filólogo ou de gramático! Prefiro aconselhar-te a que escu- guardá-lo na íntegra para a próxima cartà. Satisfarei então
tes os filósofos ou leias as suas obras com o único propó- o teu desejo, pois agora corria o risco de abordar, já can-
sito de atingires a felicidade, em vez· de andares à cata de sado, uma matéria difícil e que exige total atenção e capa-
arcaísmos, de expressões figuradas, de metáforas atrevidas cidade de concentração.
ou de figuras de estilo. Procura recolher, isso sim, precei-
tos que te sejam Úteis, frases e lições cheias de sentido
que possas desde logo pôr em prática. Façamos com que 109
36 o nosso estudo transforme as palavras em acto. Ninguém,
Estás interessado em saber sé um sábio pode ser útil 1
em meu entender, é mais prejudicial à humanidade do
a outro sábio. Nós definimos o sábio como um homem
que aqueles que estudam a filosofia como um mister venal,
dotado de todos os bens no mais alto grau possível A
e que vivem em total discordância com aquilo que apre-
questão está pois em saber como é possível alguém ser
goam. A sua própria pessoa é a mais completa prova da
inutilidade do seu ministério, como homens sujeitos a todos útil a quem já atingiu o supremo bem. Ora, os homens
37 os vícios que pretensamente combatem. Um mestre deste de bem são úteis uns aos outros. A sua função é praticar
tipo é tão inútil como, em plena tempestade, um timo- a virtude e manter a sabedoria num estado de perfeito
neiro enjoado! Entre a violência das ondas há que segurar equil.tbrio. Mas cada um necessita de outro homem de
bem com quem troque impressões e discuta os problemas.
A perícia na luta só se adquire com a prática; dois músi- 2
'' Vergílio, Georg., IJI, 260-1.
cos aproveitam melhor se estudarem em conjunto. O sábio
'" Cícero, l?ep., fr. 6, p. 379, Énio, fr. var. 23-2/t Vah len' (= epigr. 3-lt necessita igualmente de manter as suas virtudes em activi-
Warmingron). dade e, por isso mesmo, não só se estimula a si próprio como

602 603
3 se sente estimulado por outro sábio. Em que pode um sábio Pela mesma ordem de ideias, poderia dizer-se que não 7
ser útil a outro sábio? Pode servir-lhe de incitamento, existe doçura no mel porquanto, se a pessoa que o vai
pode sugerir-lhe oportunidades para a prática de acções comer não tem os órgãos gustativos aptos a detectar o
virtuosas. Além disso, pode comunicar-lhe as suas medita- sabor a doce, a sensação será desagradável. De facto, há
ções e dar-lhe conta das suas descobertas. Nunca faltará pessoas que, por efeito de doença, acham o mel amargo.
mesmo ao sábio algo de novo a descobrir, algo que dê ao O importante é que ambos os sábios gozem de boa saúde,
4 seu espírito novos campos a explorar. Os indivíduos per- de modo a que um deles possa ser útil ao outro, e este, por
versos fazem mal uns aos outros, tornam-se mutuamente sua vez, seja receptivo à utilidade que o primeiro lhe
piores, na medida em que despertam a ira, favorecem o mau proporoona.
carácter, enaltecem os prazeres; tais indivíduos são mesmo Outra objecção: "É inútil tentar aquecer um corpo que 8
tanto mais nocivos quanto mais partilham os seus vícios e já está aquecido no mais alto grau; é igualmente inútil
juntam as suas forças maléficas com um objectivo comum. tentar ajudar quem já atingiu o supremo bem. Acaso um
O contrário é igualmente válido: um homem de bem só agricultor que dispõe de todas as alfaias necessárias vai
pode ser útil a outro homem de bem. "De que modo?", pedir alfaias ao vizinho? Um soldado equipado com todas
5 perguntarás tu. Transmitir-lhe-á o seu contentamento, as armas com que vai partir para a luta porventura neces-
reforça:rá a sua autoconfiança; a contemplação mútua da sita de mais armamento? O mesmo se passa com o sábio:
respectiva tranquilidade fará aumentar em ambos a ale- está suficientemente equipado, dispõe de armas suficientes
gria. Além disso pode ainda proporcionar-lhe o conheci- para enfrentar a vida."' A isto respondo eu que mesmo 9
mento de certas matérias, já que mesmo um sábio não um corpo aquecido à mais alta temperatura necessita da
pode saber tudo. E mesmo que soubesse tudo, outro sábio proximidade de uma fonte de calor para manter essa alta
pode muito bem descobrir um método mais rápido para temperatura. "Mas o calor" - continua a objectar-se -
atingir o conhecimento da natureza e facilitar-lhe o acesso "mantém-se por si mesmo." Vejamos: para começar, há
a um meio de melhor formular uma visão global das coi- uma grande diferença entre os termos da tua comparação.
6 sas. Um sábio pode ser útil a outro sábio, e não somente O calor constitui uma unidade, o ser útil pode revestir
graças às suas próprias forças, mas graças também às diversas formas. Em segundo lugar, o calor não precisa da
daquele a quem está auxiliando. Claro que o primeiro, proximidade de fontes de calor para ser isso mesmo, calor,
mesmo entregue apenas a si próprio, é capaz de desem- ao passo que o sábio não conseguirá manter o seu esta-
penhar perfeitamente o seu papel. Todavia, embora cor~a tuto espiritual se não aceitar a companhia de alguns ami-
com a velocidade que lhe é própria, nem por isso deixará gos que se lhe assemelhem e com os quais pratique em
de lhe aproveitar uma voz de incitamento. comum as suas virtudes. Acrescenta a isto que todas as 10
Objecção possível: "Um sábio só pode ser útil a si virtudes são unidas entre si por uma espécie de amizade;
mesmo, e não a outro sábio. A prova é que se este não por conseguinte, o sábio que estima as virtudes do seu
tiver energia própria, a actuação do outro nada conseguirá." semelhante e lhe comunica as suas para aquele as estimar

604 605
está obviamente a ser-lhe útil. As qualidades similares são, passe a palavra, próprias de seres mortais; nestes casos ele
para os seus possuidores, uma fonte de alegria, sempre necessitará dos conselhos alheios ao mesmo título que um
que se trate de qualidades elevadas que saibam merecer o médico, um piloto, um advogado ou um juiz de instrução.
11 respeito recíproco. Mais ainda: ninguém pode estimular Também neste sentido um sábio pode ser útil a outro
convenientemente o espírito de um sábio senão outro sábio, sábio, uma vez por outra, através das suas indicações. Naque-
tal como só um homem pode estimular racionalmente las matérias elevadas e divinas, também aí, conforme já
outro homem. Do mesmo modo, portanto, que só pela disse, o sábio será útil graças à prática em comum do
razão se pode estimular o uso da razão, também só uma bem moral e à união que se estabelece entre os espíritos
razão perfeita pode constituir estímulo para outra razão e os pensamentos. Além disso, é conforme à natureza aco- 15
12 perfeita. Costuma dizer-se que nos são Úteis as pessoas
lhermos os amigos e alegrarmo-nos com os seus progres-
que nos facultam certos bens moralmente indiferentes como
sos como se nossos fossem. Se assim não procedêssemos,
dinheiro, favores, protecção e outras coisas apreciáveis ou
a nossa própria virtude, que só pelo exercício contínuo se
necessárias à vida; neste sentido poderia dizer-se que mesmo
um insensato seria capaz de ser útil ao sábio. Na reali- pode manter, acabaria por estiolar. A .virtude aconselha-
dade, ser útil consiste em estimular o espírito segundo a -nos a considerar a conjuntura presente, bem como a pre-
natureza por acção da própria virtude. E isto não pode ver e deliberar sobre o futuro e a manter o espírito
ocorrer sem algum proveito quer para o espírito do esti- alerta: ora, ·manter o espírito alerta e vigoroso é mais
mulado quer para o daquele que lhe serve de estímulo, fácil se tivermos alguém que nos assista. Para esse fim, o
porquanto necessariamente quem põe em acção a virtude sábio procurará um homem já perfeito, ou pelo menos
13 dos outros põe em acção também a sua própria. ·Ainda que caminhe na via da perfeição. Um homem assim per-
que não tomemos em consideração nem os bens supre- feito será útil se contribuir pará a deliberação com o exer-
mos nem as causas que os geram, nem por isso os sábios cício em comum da capacidade de juízo. É habitual di:zer- 16
deixam de ser mutuamente úteis uns aos outros. Encon- -se que os homens percebem melhor dos assuntos alheios
trar outro sábio é, por si mesmo, um objectivo digno de um
que dos próprios. Isso só acontece, porém, àqueles que
sábio, uma vez que, por natureza, todo o homem de bem
estão obcecados por um excessivo amor próprio e a quem
estima toda a espécie de bem; assim, cada sábio dá a todo
o homem de bem o mesmo valor que dá a si próprio. o receio perante as dificuldades rouba o discernimento da
14 As necessidades da argumentação levam-me a passár acção justa. Só se começa a discernir bem quando se está
desta questão a uma outra. Põe-se, de facto, o problema se o em segurança e ao abrigo dos perigos. Há certos casos,
sábio deve tomar sozinho as suas deliberações ou se deve contudo, em que até os sábios se apercebem melhor da
recorrer aos conselhos alheios. Recorrer aos outros é situação dos outros que da sua. Além disso, um sábio em
indispensável ao sábio quando se trata de assuntos relati- companhia de outro sábio poderá transformar em reali-
vos à vida pública, aos problemas domésticos, às questões, dade a magnífica e humaníssima máxima que aconselha a

606 607
"desejar e rejeitar exactamente as mesmas coisas"; assim,
ambos percorrerão a mesma sublime órbita a par um do
outro.
17 Como vês, satisfiz o teu pedido, muito embora esta
matéria tivesse o seu lugar próprio no livro de "Filosofia
Moral" em que estou a trabalhar. Mas pensa bem naquilo LIVRO XIX
que eu não me canso de te dizer: estas questões só ser-
vem para aguçarmos o engenho! Acabo por voltar sem- (Cartas 110-117)
pre ao mesmo: para que serve tudo isto? Eu quero é que
18 me tornem mais forte, mais justo e mais moderado. Não
tenho vagar para ginástica, ainda careço de cuidados do 110
médico! Para que pretendes tu que eu te forneça uma Estou-te saudando da minha quinta de Nomento. Oxalá 1
ciência inútil? Fizeste grandes promessas; pois bem, estejas de boa saúde espiritual, isto é, oxalá os deuses te
mantém-te fiel ao que prometeste. Diziam que eu perma- sejam todos propícios, pois não pode deixar de gozar do
neceria intrépido ainda que à minha volta reluzissem as favor benevolente dos deuses quem consegue estar em paz
espadas, ainda que a sua ponta afiada me tocasse já a consigo mesmo. Não tomes em consideração, de momento,
garganta; diziam que eu continuaria a sentir-me em segu- a crença por alguns partilhada de que cada um de nós foi
rança ainda que à minha volta tudo estivesse a arder, colocado sob a tutela particular de um deus, não de um
ainda que um súbito furacão arrastasse o meu navio pelo deus de primeira ordem, é evidente, mas de um daqueles
mar fora: ajudem-me, então, a ser capaz de desprezar os deuses de segunda classe a quem Ovídio chama "a plebe
prazeres e a glória. Màis tarde me ensinarão a desmontar 1
divina" • Não ligues a essa crênça sem, no entanto, te
sofismas, a resolver ambiguidades, a solucionar questiúncu- esqueceres de que eram estóicos os nossos maiores, que a
las obscuras; por agora, ensinem-me apenas o indispensável. possuíam; a cada ser humano, de facto, eles at5ibuíram ou
o seu "Génio" ou a sua 'Juno"! 2 Mais tarde veremos se os 2
deuses se podem permitir o encargo dos negócios de cada
um de nós; por agora quero que metas bem na ideia que,
quer beneficiemos de protecção particular quer estejamos
entregues a nós próprios e à fortuna, não é possível lan-
çares a alguém uma imprecação mais terrível do que dese-

1
Ovídio, Met., I, 595.
2
Cf. livro I, nota 28.

608 609
jares-lhe que esteja de mal consigo próprio. Não há, de guar a natureza real e fundamentada do seu medo. Daqui
resto, razão para desejares a alguém que consideres digno resulta o crédito que se dá a um perigo inexistente, que
de punição que os deuses lhe sejam hostis; esse alguém mantém a sua aparência porque ninguém o contesta a
pode contar, isso te garanto, com a hostilidade divilla, sério. Basta que nos decidamos a abrir bem os olhos para 6
3 mesmo se aparentemente beneficia do seu favor. Põe a tua verificarmos como é diminuto, incerto e inofensivo aquilo
inteligência em acção, observa como é na realidade a nossa que receamos. A confusão dos nossos espíritos corresponde
vida, e não o que dizemos ela ser, e verificarás que perfeitamente à descrição de Lucrécio :
muitos males nos são mais benéficos do que prejudiciais. "tal como as crianças no meio da escuridão tremem
Quantas vezes um pretenso desastre não foi a causa inicial com medo de tudo, assim nós tememos em plena luz!" 3
de uma grande felicidade! Quantas vezes, também, uma Pois bem, não seremos nós mais insensatos do que as
conjuntura saudada com entusiasmo não constituiu apenas crianças, nós que tememos em plena luz? A verdade, 7
um passo em direcção ao abismo - elevando um pouco porém, Lucrécio, é que nós não tememos em plena luz,
mais ainda alguém em posição eminente, como se em tal criamos, sim, trevas a toda a nossa volta! Não somos
4 posição pudesse estar certo de cair dela sem risco! A pró- capazes de distinguir o que é bom e o que é mau; passa-
pria queda, aliás, não tem em si mesma nada de mal se mos toda a vida a correr, a tropeçar às cegas, e nem por
tomares em consideração o limite para lá do qual a natu- isso somos capazes de parar ou de tomar atenção onde
reza não pode precipitar ninguém. Está bem perto de nós pomos os pés. Estás a imaginar como é coisa de loucos
o termo de tudo quanto há, está bem perto, garanto-te, o andar a correr no escuro! Valham-me os deuses! Não
limite desta existência donde o venturoso se julga expulso e conseguimos mais nada senão termos de regressar de mais
o desgraçado liberto; nós é que, ou por esperanças ou por longe; sem saber para onde nos dirigimos, continuamos
receios desmesurados, a fazemos mais extensa do que teimosamente a caminhar para' onde o instinto nos leva.
realmente é. Se agires com sabedoria, medirás tudo em No entanto, se o quisermos, poderá fazer-se luz em nós.
função da condição humana, e assim limitarás o espaço De um único modo: adquirirmos o conhecimento das coi- 8
tanto das alegrias como dos receios. Vale bem a pena sas divinas e humanas, um conhecimento interiorizado, e
privarmo-nos de duradouras alegrias a troco de não sen- não meramente superficial; meditarmos nessas ideias já
tirmos duradouros receios ! adquiridas, comprovarmos a sua validade pela nossa pró-
5 Por que motivo procuro eu restringir este mal que é o pria experiência; investigarmos o que é bom e o que é
medo? É que não há razão válida para temeres o que mau, e a que coisas se atribui falsamente um ou outro
quer que seja; nós, isso sim, deixamo-nos abalar e ator- destes adjectivos; averiguarmos em que consiste o bem e
mentar apenas por vãs aparências. Nunca ninguém anali- o mal éticos - e, finalmente, o que é a providência. E 9
sou o que há de verdade no que nos aflige, mas cada um
vai incutindo medo nos outros; nunca ninguém se atreveu
a aproximar-se do que lhe perturba o espírito e a averi- 1
Lucrécio, II, 55-6.

610 611
não ficará por aqui o campo aberto à inteligência humana: mingo, ou outras monstruosidades de uma gastronomia
somos atraídos a lançar os olhos para lá do universo, a que se enjoa com o animal inteiro e apenas escolhe certas
ver por onde ele se dirige, donde proveio e qual o termo partes de cada bicho - não penses que isto é uma grande
para onde caminha velozmente este nosso mundo. Nós, coisa! Eu admirar-te-ei, sim, quando fores capaz de des-
todavia, afastámos o espírito desta contemplação divina prezar o pão de segunda por estares convencido de que,
para o rebaixar ao vil serviço da avareza; esquecemos em caso de necessidade, a erva tanto serve para o homem
o universo e os seus limites, bem como os deuses que o como para o animal, por teres a certeza de que os reben-
governam e movem, para nos dedicarmos a perfurar a tos das árvores servem muito bem para encher um estô-
terra e a dela extrair o que só nos faz mal, insatisfeitos mago - um estômago que atulhamos de iguarias precio-
10 com o que a terra espontaneamente nos oferece. Tudo sas como se todas elas lá ficassem para sempre! Não são
quanto era realmente bom para nós, a divindade que nos precisos requintes para o encher. Que diferença faz o que
deu o ser pô-lo à nossa mão; não esperou pelas nossas lá se mete se tudo quanto lá entra é para sair depois ? Gos- 13
pesquisas para no-lo oferecer; em contrapartida, enterrou tas de ver à tua frente peças de caça ou frutos do mar;
bem fundo tudo o que é nocivo. Só temos que nos quei- uns sabem-te tanto melhor quanto mais frescos te chegam
xar de nós mesmos: nós é que arrancámos violentamente à mesa; outras se, à força de serem engordadas artificial-
da terra o que a natureza lá escondeu - e isso será a mente, escorrem gordura por todo o lado a ponto de
causa da nossa ruína. Entregámos o espírito ao prazer, quase lhes rebentar a pele! Enche-te de prazer o virtuo-
quando a cedência ao prazer é a origem de todos os sismo com que são preparados. Mas, deus meu!, todos
males; entregámo-nos à ambição da glória e a outros im- estes manjares rebuscados e condimentados se transformam
pulsos igualmente ilusórios e inúteis. numa massa indistinta e repugnante quando se acumulam no
11 Que posso eu agora aconselhar-te a fazer? Nada de estômago. Para desprezar o prazer da mesa, nada melhor
inédito, pois não se trata de procurar remédios para novas do que ver em que ,se transformam os alimentos!
doenças. Apenas isto, antes de mais nada: aprende a fazer Ainda tenho na ideia estas . palavras que Átalo pro- 14
tu próprio a distinção entre o necessário e o supérfluo. O nunciou perante a admiração geral: "Durante muito tempo
necessário tê-lo-às sempre à mão, ao passo que o supér- deixei-me fascinar pela riqueza. Ficava de boca aberta quan-
fluo exigirá de ti um contínuo e total empenhamento. do via aqui ou ali o brilho de objectos preciosos, imagi-
12 Não tens muito de que te orgulhar pelo facto de renun- nando que o seu valor intrínseco correspondia à aparência
ciares com desprezo aos leitos dourados ou aos móveís exterior. Um dia, assisti à exibição em cortejo dos precio-
talhados em pedras valiosas; desprezar o supérfluo, onde sos tesouros de Roma: peças cinzeladas em ouro e prata e
está a virtude? Admira-te a ti próprio, isso sim, quando em materiais mais preciosos ainda do que o ouro e a
conseguires desprezar o necessário! Poderes viver sem faus- prata, obras de cores preciosamente variegadas, tecidos impor-
to digno de reis, não sentires vontade de comer um javali tados de regiões para lá das nossas fronteiras, mais lon-
de mil libras de peso, ou uma travessa de línguas de fla- gínquas do que os povos nossos directos vizinhos; aqui

612 613
uma multidão de escravos, além de escravas, todos admi- ria? A fome se encarrega de pôr fim à fome. Que dife-
ráveis quer pelos adornos que traziam, quer pela sua pró- rença faz, afinal, se são imoderados ou exíguos os desejos
pria beleza; e tantas outras coisas que a fortuna do impé- de que te fazes escravo? Que importância tem a quanti-
15 rio no seu apogeu decidiu passar em revista. 'Para que dade dos bens que a fortuna te nega? Até mesmo a água 20
serve tudo isto' - exclamei eu - 'senão para excitar e a farinha dependem de uma vontade exterior a ti; o
ainda mais as já violentas ambições dos homens? Para homem livre não é aquele sobre quem pouco poder tem a
que serve toda esta ostentação de riqueza? É para apren- fortuna, mas sim o que escapa totalmente ao seu poder. É
der o significado da avareza que toda esta multidão aqui assim mesmo: terás de despojar-te de todo o desejo se
afluiu?' Por mim, garanto, saio daqui com menos desejos quiseres rivalizar com Júpiter - que não conhece desejo
do que quando cheguei. Fiquei cheio de desprezo pela algum!"
riqueza, não tanto por ser supérflua, como por ser ridí- Esta a lição que Átalo nos deu a nós, e a natureza dá
16 cuia. Não vês tu como no espaço de poucas horas todo o a todos os homens. Se te dispuseres a meditar assidua-
aparatoso cortejo desfilou, mesmo em marcha lenta e com- mente nela conseguirás ser feliz, em vez de parecê-lo, e
passada? Havemos nós de levar a vida inteira ocupados sê-lo aos teus próprios olhos e não aos dos outros.
num exercício que nem deu para encher um dia com-
pleto? Ainda me ocorreu outra ideia: estas preciosidades
pareceram-me tão supérfluas para os seus possuidores como 111
17 supérfluas eram para os espectadores do cortejo. Isto é Perguntaste-me qual o termo latino para designar os 1
precisamente o que digo a mim próprio sempre que me sophismata. 4 Muitos autores tentaram impor-lhes um nome,
cai diante dos olhos alguma semelhante exibição de luxo, mas nenhum vingou, talvez por_que, tal como a coisa não
quando deparo com um palacete sumptuoso, um adornado nos era familiar nem estava nos nossos hábitos, também
batalhão de escravos ou uma liteira transportada por esbel- ao nome se ofereceu resistência. De qualquer modo, o termo
tos carregadores: 'Porquê toda essa admiração embasbacada? que se me afigura mais adequado é o usado por Cícero:
Não passa de aparato! Todas estas coisas nós vemo-las cauillationes 5• Quem se entrega à respectiva prática, sem 2
18 sem as possuir, agradam-nos mas são transitórias!' Atenta
de preferência na riqueza genuína; aprende a contentar-te
com pouco e repete com entusiasmo a máxima que diz ·
1
Sophismata é transcrição do grego ao<bÍaµara; do sentido inicial de "habi-
que 'se tivermos água e farinha podemos rivalizar com a lidade", o termo foi adquirindo várias conotações pejorativas, "expediente", "intrigaº',
felicidade de Júpiter!' Digo-te mesmo mais: rivalizemos e finalmente "sofisma" (por oposição ao "raciocínio justo", ou <Pt>..oaá<f>71µa
"filosofema").
com ele mesmo que as não tenhamos; tão imoral é fazer ' Cauillatio significava originalmente "troça, discurso trocista, irónico"; segundo
depender a felicidade do ouro e da prata como da água e o testemunho de Séneca, Cícero teria usado o termo para traduzir sophisma,
19 da farinha! 'Mas como sobrevivo eu sem uma coisa nem no sentido de "discurso oco, subtileza de palavras", e neste sentido o termo é
frequentemente usado por Quintiliano.
outra?' Queres que eu te diga qual o remédio para a misé-

614 615
dúvida será capaz de arquitectar argumentos cheios de condução da nossa vida?" - perguntarás. Isso é uma
agudeza, mas sem qualquer utilidade para a sua vida, já segunda fase da tarefa: não pode conduzir bem a sua vida
que se não torna mais enérgico, mais moderado ou mais quem não tiver aprendido a desprezá-la.
elevado por isso. Em contrapartida, quem fizer da filosofia
uma terapêutica tornar-se-á forte de espírito, cheio de auto-
confiança, atingirá uma altura inigualável e tanto maior 112
3 quanto mais dela nos aproximamos: É o mesmo que sucede Gostaria imenso que esse teu amigo se decidisse a 1
com as grandes montanhas, cuja elevação é menos evi- aceitar a formação cultural e moral que tu desejas para
dente quando as vemos ao longe; ao aproximarmo-nos, ele. Só que ele já está duro demais para isso. Melhor
reparamos como é íngreme o acesso até ao cume. Do dizendo - e isto até torna as coisas mais difíceis! - , ele
mesmo modo é, caro Lucílio, o filósofo verdadeiro - em já está demasiado amolecido, sem forças devido aos maus
actos, não em palavras: situa-se num cume, imponente, hábitos que há muito contraiu. Vou dar-te um exemplo 2
majestoso, dotado de autêntica grandeza; não se ergue nem colhido na minha experiência prática. Não é qualquer videi-
anda em bicos de pés, à maneira daqueles que procuram ra que aguenta um enxerto. Se é velha já e carcomida, se
disfarçar a sua estatura e parecer mais altos do que são. O demasiado doente e frágil, ou rejeita o ramo enxertado, ou
4 filósofo contenta-se com a sua .grandeza. E como se não então não o alimenta nem o deixa colar a si, nem se
contentaria ao ter-se elevado a um ponto que a mão da adapta à qualidade natural do enxerto. Por isso costuma-
fortuna não atinge? Por isso mesmo ele supera a fondição mos cortar a parte que está acima da terra para que, se o
humana e permanece idêntico a si mesmo em qualquer enxerto não resultar, possamos fazer uma segunda tenta-
situação, quer a sua vida decorra sem problemas, quer tiva, aplicando-o desta vez na parte que ficou enterrada.
sofra flutuações, quer singre entre adversidades e perigos: Este homem que me recomendas na tua carta não tem a 3
uma tal firmeza não a podem proporcionar aqueles cap- mínima energia, de tanto se ter abandonado aos vícios. Tor-
ciosismos de que acima falava. São uma brincadeira do nou-se simultaneamente mais f~aco e mais endurecido:
espírito, sem a mínima utilidade, que fazem a filosofia não consegue aceitar como guia a razão nem fazê-la fruti-
5 descer da sua altura até ao chão. Não te proíbo que, oca- ficar em si. "Mas ele está cheio de vontade!" Não te con-
sionalmente, te dediques a eles, mas apenas quando quise- venças disso. Não digo que ele te esteja a mentir. Pode
res estar sem fazer nada. Eles têm, no entanto, este gra- estar sinceramente convicto do seu desejo. Anda irritado
víssimo inconveniente: provocam um inegável prazer e agora com a sua libertinagem, mas não tardará muito a
detêm fixo neles o espírito pela sua aparente subtileza. reconciliar-se com ela. "No entanto, ele afirma que a vida 4
Entretanto, há uma tão grande massa de questões a abor- que leva o desgosta." Não digo o contrário ! Quem se não
dar, tal que a custo uma vida inteira chega para se apren- desgosta ? Os homens amam e odeiam ao mesmo tempo
der este único ponto : o desprezo pela vida. "Então, e a os próprios vícios. Por isso só me pronunciarei em defini-

616 43 617
tivo sobre o teu amigo quando ele me der garantias de minada conformação; logo, a virtude é um ser animado.
que criou horror à libertinagem: por enquanto, há entre Por outro lado, a virtude realiza uma acção; ora, nada
ambos apenas um arrufo ! pode agir se não tiver movimento próprio; se a virtude
tem movimento próprio - faculdade exclusiva dos seres
animados - é porque é um ser animado. "Se a virtude é 3
113 um ser animado" - objecta-se - "ela própria possui em
1 Pedes-me que te escreva a expor a minha opinião si mesma virtude." Porque não há-de possuí-la? Assim
sobre mais um problema debatido pelos nossos mestres como o sábio realiza tudo através da virtude, também esta
o faz através de si própria. "Nessa ordem de ideias" -
estóicos, a saber, se a justiça, a coragem, a prudência e as
prossegue a objecção - "todas as artes, todos os nossos
demais virtudes são ou não seres animados 6. Caro Lucílio,
pensamentos, todos os nossos conhecimentos serão seres
com estes subtis raciocínios não conseguimos mais do que
animados. Consequentemente, no espaço limitado do nosso
dar a aparência de exercitar o engenho com bagatelas e
espírito habitarão muitos milhares de seres animados; cada
empregar os nossos ócios em discussões totalmente esté- um de nós ou será ao mesmo tempo muitos seres anima-
reis. Vou, no entanto, satisfazer o teu desejo e expor a dos ou conterá dentro de si muitos seres animados." Que-
opinião da nossa escola sobre o assunto. Mas declaro-te res saber como se pode responder a esta objecção ? Di-
desde já que a minha opinião pessoal é diferente; entendo zendo que cada uma das coisas mencionadas será um ser
mesmo que só os Gregos é que se podem permitir o luxo de animado, mas sem que formem um conjunto de seres
certas discussões. Vamos lá, então~ ver quais são esses animados. Como é isso ? Eu explico, mas tens de aplicar
problemas que activaram os antigos, pensadores, ou talvez, toda a atenção e subtileza de que fores capaz. Cada ser 4
melhor dizendo, que os antigos pensadores activaram. animado deve possuir uma substância individual, mas todos
2 É ponto assente que a alma é um ser animado 7, pois eles possuem apenas uma alma; por isso podem ser vistos cada
é ela que faz de nós seres animados, e é do nome da um deles como um ser, mas não podem formar uma
alma que vem até a designação de "animais"; ora, a vir- multiplicidade de seres. Eu, por exemplo, sou uffi ser ani-
tude não é outra coisa senão a alma dotada de uma deter- mado e sou 'um homem sem que, no entanto, possas
dizer que eu sou dois seres, porque, para eu ser dois, teria
cada um deles de estar separado do outro. Por outras
6 Que as virtudes são seres animados (virtutes esse anirnalia) era, de faao, palavras, dois seres só podem ser tomados como de facto dois
teoria defendida pelos antigos estóicos. O texto mais completo sobre o assunto seres se forem completamente independentes um do outro.
é, no entanto, a presente carta de Séneca, que figura na colectânea dos S. V.F., III Tudo quanto é múltiplo dentro da unidade participa da
como o fr. 307. Cf. no mesmo volume os frs. 305 e 306, em que a mesma tese
natureza do uno, e portanto é uno. A minha alma é 5
é exposta de forma muito mais sucinta.
7
"A alma que existe em nós é um ser animado", ri/v €v fiµ.iv <fwx.iiv '~ov um ser animado, eu sou um ser animado - no entanto
e~vm (S. V.F., III, 306). não somos dois seres ! Porquê ? Porque a minha alma é

618 619
atacam cada uma por seu lado ! Na realidade, cada uma
uma parte de mim. Um ser só será contado como um
dessas cabeças não é um ser animado, mas apenas a cabeça
indivíduo se subsistir individualmente; enquanto for uma
de um ser animado; a própria hidra, essa sim, é que é
parte de outro ser não poderá ser considerado como um
um ser animado. Ninguém diz que o leão ou a serpente
ser à parte, pela simples razão de que, para ser um ser à
que formam a Quimera são seres animados distintos mas
parte, teria de possuir uma individualidade própria, com- '
apenas partes constitutivas de um ser; ora, cada parte não
pleta, fechada sobre si mesma.
constitui um ser animado. O que é que pode levar a con- 10
6 Já atrás te declarei que a minha opinião é diversa,
cluir que a justiça é um ser animado ? "A justiça age e é
porquanto, se se aceitar esta tese, teremos de admitir que
útil,· o que age e é útil possui movimento, e tudo quanto
não apenas as virtudes são seres animados mas que igual-
possui movimento é um ser animado." Isso é verdade se
mente o são os vícios e as paixões, tal como a ira, o medo,
tiver movimento próprio; mas a justiça carece de movi-
a dor, a desconfiança. E não ficará por aqui: serão seres
mento próprio, apenas tem o que lhe é transmitido pela
animados, ainda, todas as nossas frases e todos os nossos
alma. Todo o ser animado é, até morrer, aquilo que foi 11
pensamentos. Ora, esta consequência é inaceitável, uma
desde o início; até morrer, o homem continuará homem,
vez que aquilo que deriva do homem não é, só por
o cavalo cavalo, e o cão cão; nenhum pode transformar-se
7 isso, um homem. "Então, o que é a justiça?" - pergun-
em coisa diferente do que era. Aceitemos, por hipótese,
tam. A justiça é a alma conformada de uma determinada
que a justiça, isto é, a alma, conformada de uma certa
maneira. "Nesse caso, se a alma é um ser animado, tam-
maneira, é um ser .animado. Ora, também a coragem isto
bém a justiça o é." De modo nenhum; a justiça é apenas
uma certa conformação da alma, uma certa energia. A
é, a alma conformada de uma determinada maneira, um é
ser animado. Mas qual alma ? Aquela que ainda há pouco
mesma alma pode assumir diversos aspectos sem que pelo
era. "justiça" ?_ Se se mantém com a conformação do pri-
facto de agir em variados sentidos se torne em outros
metro ser ammado não lhe é possível assumir a confor-
tantos seres animados; aquilo que é realizado pela alma
mação de outro ser animado, mas .terá de continuar com a
8 não é só por isso um ser animado. Se a justiça, a coragem
conformação que assumiu de início. Além disso, uma só 12
e as restantes virtudes são seres animados como é que as
alma não pode pertencer simultaneamente a dois seres
coisas se passam : deixam de ser de vez em quando seres
animados, quanto mais a vários. Se a justiça, a coragem, a
animados, voltam depois a sê-lo de novo, ou são-no sem-
moderação e as demais virtudes são seres animados como
pre? As virtudes nunca podem deixar de ser virtudes;
é possível que tenham uma só alma ? Ou cada uma tem
logo, na nossa alma terão de agitar-se seres animados em
de ter a sua alma, ou então não são seres animados. Um 13
9 quantidades enormes, enormíssimas mesmo! "Não são
só e mesmo corpo não pode pertencer em simultâneo a
em grande quantidade," - dir-se-á - "porquanto dependem
dois seres animados; até os mestres da escola o admitem.
de um único ser - a alma - de que são partes constitu-
Ora, qual é o corpo da justiça? "A alma." E o corpo da
tivas." Quer dizer: imaginamos que o aspecto da alma é
coragem, qual é ? "A mesma alma." Mas vimos que um
semelhante ao da hidra de muitas cabeças que lutam e
621
620
umco corpo não pode pertencer em simultâneo a dois os homens ou os deuses, ou são irracionais como os ani-
14 ' dos. "E' que a mesma alma
seres anlllla " - di zem - "ora mais, selvagens ou domésticos; as virtudes são inteiramente
assume a conformação da justiça, ora a da coragem, ora a racionais, mas não são nem homens nem deuses; logo,
da moderação." Isto seria viável se quando houvesse "jus- não são seres animados. Todo o ser animado racional pre- 18
tiça" não existisse "coragem", ou se quando houvesse "cora- cisa, para agir, de ser previamente estimulado pela obser-
gem" não existisse "moderação"; o que se verifica, porém, vação de algum objecto; em seguida, põe-se em movi-
é que todas as virtudes existem em simultâneo. Como é, mento e por fim surge o assentimento que confirma o
então, que cada virtude é um ser animado se a alma é só movimento adquirido. Vou explicar-te o que se entende
uma e se a alma não pode originar mais do que um por assentimento. Por exemplo, eu necessito de caminhar:
15 único ser animado? Em conclusão, nenhum ser animado é apenas me ponho em marcha quando disse isso a mim
parte de outro ser animado; ora, a justiça é uma parte da mesmo e aprovei a minha decisão; se necessito de me
alma, logo, não é um ser animado. sentar, é através de um processo semelhante que eu me sento.
Parece-me bem que não estou fazendo outra coisa senão Este assentimento não se inclui no âmbito da virtude.
perder tempo com uma coisa evidente, com um problema Considera, por exemplo, a prudência: como pode ela 19
mais digno de repúdio do que merecedor de discussão. dar o seu assentimento à proposição "necessito de cami-
Não existem dois animais exactamente iguais. Se os obser- nhar" ? Não lhe é possível, por natureza, fazer semelhante
varmos a todos um por um verificaremos que cada um coisa. A prudência, de facto, prevê em função do homem
tem uma cor, uma configuração e um tamanho peculiares. que a possui; não em função de si mesma; ela não pode,
16 .Entre os vários aspectos que nos fazem admirar o enge- por si, nem andar nem sentar-se! Logo, não pode dar o
nho do divino artífice parece-me ser de incluir também seu assentimento, e quem não pode dar o seu assenti-
este: na imensa multiplicidade da natureza nunca ele repe- mento não é um ser animado -racional. Se a virtude é um 20
tiu o mesmo esquema; mesmo seres que parecem idênti- ser animado tem de ser racional; mas como não é um ser
cos revelam-se distintos se os compararmos bem. Criou racional não pode ser um ser animado. Se a virtude é um
inúmeros tipos de folhas: não há nenhuma que não tenha ser animado e se, por outro lado, todo o bem é virtude,
a sua forma individual; criou inúmeras espécies de ani- então todo o bem é um ser animado 8 ! Os nossos mestres
mais: não há dois que tenham as mesmas proporções, há admitem esta proposição. Mas, por exemplo, salvar o pai
sempre alguma diferença entre eles. Teve a preocupação é um bem, emitir um parecer sensato no senado é um
de que todos os seres individuais tivessem diferenças que bem, julgar com justiça é um bem, logo salvar o pai ou
os distinguissem claramente. Ora todas as virtudes, dizeis emitir uma opinião abalizada seriam seres animados. E os
17 vós, são idênticas; logo, não são seres animados. Todo o exemplos multiplicam-se de modo tal que se torna impos-
ser animado age por si próprio; a virtude, contudo, não
faz nada por si própria, mas sim concomitantemente com
o homem. Todos os seres animados ou são racionais como 8
Cf as observações de Séneca na carta 106.

622 623
sível suster o riso: manter um prudente silêncio é um Crisipo é o próprio princ1p10 dominador da alma 10• Que
bem, jantar é um bem, logo o silêncio e o jantar seriam nos impede, portanto, de seguir o exemplo de Crisipo,
seres animados ! reivindicar o direito a ter opinião própria e troçar de
21 E já agora, pelos deuses !, não vou parar com a brin- todos estes seres animados que nem o universo seria capaz
cadeira e o gozo que me dão estas ineptas subtilezas. A de conter?
justiça e a coragem, se são seres animados, devem neces- "As virtudes" - dizem - "não formam uma multipli- 24
sariamente ser animais terrestres; ora, todo o animal ter- cidade de seres animados, são, no entanto, seres animados.
restre está sujeito ao frio, à fome e à sede; logo, a justiça Assim como um homem pode ser poeta e orador sem
está com frio, a coragem está com fome, a clemência está deixar de ser uno, também as virtudes são seres animados
22 com sede ! Que me resta fazer ? Não hei-de perguntar a sem serem uma multiplicidade. São uma e a mesma coisa
esses pensadores que aspecto têm todos estes seres ani- a alma, e a alma justa, a alma prudente e a alma corajosa,
mados ? Parecem-se com um homem, com um cavalo, isto é, a alma posta em consonância com determinadas
com uma fera ? Se atribuírem a tais seres a mesma forma virtudes." Nestes termos, acaba-se a desavença e estamos 25
redonda que atribuem à divindade 9 dá-me mesmo vontade todos de acordo. Também eu admito por agora que a
de lhes perguntar se a avareza, a mania do luxo ou a lou- alma seja um ser animado, embora reserve para mais
cura também serão redondas, já que todas elas são seres tarde a análise do que pretendo dizer com isto. Mas nego
que as acções da alma sejam seres animados. Se assim não
animados! E se disserem que sim senhor, que tudo isto é
for, teremos de considerar qualquer palavra ou qualquer
redondo, então eu pergunto-lhes se um passeio cauteloso
verso como um ser animado. Se uma proposição correcta
também é um ser animado. Serão forçados a aceitar que
é um bem, e se todo o bem é um ser animado, segue-se
sim, ou seja, hão-de declarar que um passeio é um animal,
que uma proposição é um ser animado. Um verso prenhe
e redondo ainda por cima !...
de sentido é um bem, e todo o bem é um ser animado,
23 Não imagines que de entre os estóicos sou eu o pri- logo um verso é um ser animad<;>. Por conseguinte
meiro a falar sem ser pelo manual, e a ter a minha opi- "eu canto as armas e o herói" 11
nião própria: Cleantes e o seu discípulo Crisipo não che- é um ser animado; só não podem dizer que é redondo
garam a acordo sobre o que se entende por "caminhada". porque tem seis pés de extensão ! "Hércules me valha!"
Para Cleantes é como que uma corrente de ar que vem - dirás tu. - "Todo esse arrazoado não passa de uma 26
do princípio dominador da alma e desce até aos pés, para

w Cf. S. V.F. II, 836. - Sobre o que se entende por princípio dominador da
9 Na Apocolocintose, 8, 1 Séneca cita ironicamente, remetendo para Varrão, alma v. adiante a carta 121 e nota 8.
a ideia de que, para os estóicos, "Deus é redondo". Tal ideia pode justificar-se
11
Vergílio, Aen., 1, 1. Séneca faz um jogo de palavras, entre os seis pés do
pela circunstância de a divindade se identificar com o universo, cuja forma seria hexâmetro dactílico (unidades métricas) e pés como medida de comprimento,
esférica, cf. S. V.F., II, 1077 e 1060. pelo que o "ser animado" que é o hexâmetro (!) nunca poderia ser redondo!

624 625
teia completamente enredada !" 12 Parto-me a rir ao pensar xandre derrotou e pôs em fuga Persas, Hircanos, Indianos
que um solecismo, um barbarismo ou um silogismo tam- e todos os demais povos que desde o oriente se espalham
bém são seres animados e ao imaginar com que aspecto até ao mar oceano; quando, porém, de uma vez ordenou a
os representaria se fosse pintor! E é isto o que nós discu- morte de um amigo, de outra perdeu um segundo amigo,
timos - com o ar mais grave deste mundo?! Nem Alexandre deitava-se às escuras, lamentando-se num caso
sequer posso exclamar como Célia 13 "Oh, tristes bagate- do seu crime, no outro roendo-se de saudades. O vencedor
las !", tão ridículas elas são. de tantos reis e tantas nações deixava-se vencer pela ira
Não seria muito mais preferível ocuparmo-nos de coi- ou pela amargura ! E como não seria assim, se ele próprio
sas úteis e salutares, tal como investigar de que modo nos julgava preferível conquistar o universo a dominar as suas
é possível atingir as virtudes, qual a via que conduz até paixões ? Em que enorme teia de enganos se deixam enre- 30
27 elas ? Em vez de me ensinarem se a coragem é ou não dar os homens que põem a sua ambição no desejo de
um ser animado, prefiro que me digam que nenhum ser estender a conquista para lá dos mares, que se julgam no
animado pode ser feliz sem coragem, se não tiver armas cúmulo da felicidade quando ocupam militarmente imen-
que o defendam dos acasos da fortuna e se, através da sas províncias, juntando novas terras às que já possuíam
meditação, não se tiver posto acima de todas as contin- - e se não dão conta da forma de poder mais alta e
gências antes ainda de nelas se ver envolvido. O que é a divina que existe: o poder de nos dominarmos a nós
coragem? É uma barreira inexpugnável a defender a fra- mesmos! Quero que me ensinem também o valor sagrado 31
queza humana; quem dela se rodeia pode resistir em segu- da justiça - da justiça que apenas tem em vista o bem
rança a este violento cerco que é a vida, usando as suas dos outros, e para si mesma nada reclama senão o direito
28 próprias forças, as suas próprias armas. A este propósito de ser posta em prática. A justiça nada tem a ver com a
gostaria de citar-te uma máxima do nosso Posidónio: "Não ambição ou a cobiça da fama, apenas pretende merecer
imagines nunca que poderás proteger-te com armas dadas aos seus próprios olhos. Acima de tudo, cada um de nós
pela fortuna; luta, isso sim, com as tuas. A fortuna não deve convencer-se de que temos. de ser justos sem buscar
fornece a ninguém meios de defesa contra ela própria. recompensa. Mais ainda: cada um de nós deve convencer-
Por isso é que os homens estão bem de/endidos contra os
-se de que por esta inestimável virtude devemos estar pron-
29 inimigos, mas se vêem inermes perante a fortuna. " Ale-
tos a arriscar a vida, abstendo-nos o mais possível de
quaisquer considerações de comodidade pessoal. Não há
12 Já o estóico Aríston de Quios comparava as subtilezas da 'dialéctica a inú-
que pensar qual virá a ser o prémio de um acto justo; o
teis teias de aranha, v. S.V.F., I, 351.
maior prémio está no facto de ele ser praticado. Mete 32
13 Caelianum = "o dito de Célio", talvez o orador Célio Rufo, como pretende também na tua ideia aquilo que há pouco te dizia: não
Justo Lípsio. Alguns mss., porém, registam a lição Caecilianum = "o dito de interessa para nada saber quantas pessoas estão a par do teu
Cecílio'', o que levaria a identificar a personagem com o poeta cómico Cecílio
Esrácio, como faz, por ex., Warmington, em Remains o/ Old Latin, I, p. 561,
espírito de justiça. Fazer publicidade da nossa virtude
embora com hesitação. significa que nos preocupamos com a fama, e não com a

626 627
virtude em si. Não queres ser justo sem gozares da fama
de o ser ? Pois fica sabendo: muitas vezes não poderás ser
1 a alma é débil, as pessoas arrastam o corpo e só a custo
se movem? Que, se a alma é efeminada, até no modo de
justo sem que façam mau juízo de ti ! Em tal circunstân- andar se nota essa moleza ? Que, se ela é, pelo contrário,
cia, se te comportares como sábio, até sentirás prazer em ardente e forte, a marcha se torna acelerada ? Que ainda,
ser mal julgado por uma causa nobre ! no estado de loucura, ou de cólera (que, aliás, é um estado
semelhante à loucura) o movimento do corpo se torna
114 caótico, descontrolado, sem sentido definido? Todos estes
sintomas se tornarão mais evidentes ainda no que con-
1 Qual a causa que provoca, em certas épocas, a deca- cerne ao espírito, já que este está totalmente impregnado
dência geral do estilo? De que modo sucede que uma pela alma, da qual recebe a sua forma, à qual obedece, a
certa tendência se forma nos espíritos e os leva à prática cuja lei se submete.
de determinados defeitos, umas vezes uma verborreia des- O estilo de vida de Mecenas é por demais conhecido 4
mesurada, outras uma linguagem sincopada quase à maneira para que seja necessário eu descrever o modo como ele se
de canção ? Porque é que umas vezes está na moda uma passeava, os seus requintes predilectos, o seu exibicio-
literatura altamente fantasiosa para lá de toda a verosimi- nismo, a sua recusa em ocultar os próprios vícios. Pois
lhança, e outras a escrita em frases abruptas e com segundo bem: não é verdade que o seu estilo era tão desprovido
sentido em que temos de subentender mais do que elas de firmeza como a sua túnica era desprovida de cinto ?
dizem? Porque é que nesta ou naquela época se abusa sem Não é verdade que as suas frases eram tão sofisticadas
restrições do direito à metáfora ? Eis o rol dos problemas como o seu trajo, os seus acompanhantes, a sua casa, a
que me pões. A razão de tudo isto é tão bem conhecida sua mulher? Este homem podia ter sido um grande espí-
que os Gregos até fizeram dela um provérbio: o estilo é um rito se empregasse o seu talerito num sentido mais cor-
2 reflexo da vida ! De facto, assim como o modo de agir de cada recto, se não sentisse repugnância em fazer-se entender, se
pessoa se reflecte no modo como fala, também sucede que não fosse tão prolixo. Vais ver como o seu estilo é retor-
o estilo literário imita os costumes da sociedade sempre cido, divagante, sem qualquer contenção - tal como a
que a moral pública é contestada e a sociedade se entrega marcha de um ébrio ! O que há de mais repugnante do 5
a sofisticados prazeres. A corrupção do estilo demonstra que esta frase: "um rio de que uma cabeleira de bosques
plenamente o estado de dissolução social, caso, evidente- cobre as margens"? Ou esta outra: "aram o leito do rio
mente, tal estilo não seja apenas a prática de um ou outro com as suas barcas e deixam para trás os jardins, subindo a
autor, mas sim a moda aceite e aprovada por todos. corrente"? E que dizer de um sujeito que "se enruga
3 Não é possível o espírito ter uma tendência e a alma ter todo a piscar o olho à amante, a beija arrulhando como
outra. Se a alma é sadia, senhora de si, severa e comedida, um pombo e desata aos suspiros como os tiranos dos
o espírito será igualmente grave e sóbrio; quando a alma bosques que agitam freneticamente a armação já f ati-
é viciosa, o espírito também degenera. Não vês tu que, se gada"? "Em grupo, insaciáveis, escavam tudo em busca de
628 629
comida e de garra/as, não nos largam a casa, vão pas- tornando visível que a sua característica era a moleza, e
sando a morte sempre à espera." "Um Génio que mal não a clemência. O tortuoso das suas frases, o ineditismo 8
assiste à festa em sua honra." "O pavio de uma vela ene- das suas expressões, as suas ideias chocantes - que às
grecida;" "um bolo estaladiço." "A mãe ou a mulher ser- vezes têm algo de consistente, mas a que o estilo ·despoja
6 vem de vestido à lareira." 14 Porventura não é evidente, de energia - tornam evidente a qualquer pessoa que o
logo a uma primeira leitura, que o autor destas frases é o excesso de prosperidade lhe deu a volta à cabeça! Por
mesmo homem que percorria Roma sem pôr o cinto na vezes, este defeito é apanágio de um só homem, por
túnica (e até quando, na ausência de César, ele ficava inte- vezes é de toda uma época. Quando a prosperidade gene- 9
rinamente nas suas funções, era a este "homem sem cinto" raliza os hábitos de luxo, começa-se por dedicar uma maior
que se ia pedir a palavra de ordem!); o mesmo homem atenção ao aparato do vestuário; depois, vem a preocupa-
que no tribunal, na tribuna rostral ou em qualquer reunião ção com a mobília, por fim todos os cuidados se dirigem
para a própria casa: pretende-se que ocupe uma área idêntica
pública aparecia sempre com a cabeça coberta por um
à de uma herdade, que as paredes reluzam com mármores
manto, só com as orelhas de fora, com a mesma aparên-
importados do outro lado do mar, que os tectos sejam
cia com que vemos nos mimos os escravos fugitivos de
decorados a ouro, que o brilho do pavimento corresponda
algum ricaço ? O mesmo homem que, mesmo no período
ao dos caixotões do tecto. Passa-se em seguida ao luxo da
mais aceso da guerra civil, quando Roma em armas vivia
mesa: aqui o requinte reside no ineditismo e na alteração
na ansiedade, se fazia escoltar em público por dois eunu-
da ordem por que se servem os pratos, servindo por
cos - mais homens mesmo assim do que ele próprio ? O exemplo em primeiro lugar o que se costuma deixar para
mesmo homem que celebrou milhentas vezes o seu casa- a sobremesa, em suma dando aos convivas à entrada o
7 menta com a mesma mulher ? Estas frases de Mecenas, que era usual servir-lhes à saída. Quando os espíritos se 10
tão artificialmente construídas, escritas tão sem cuidado, enfastiam com o que vem da tradição e julgam que uma
inventadas expressamente para chocar os hábitos de toda coisa é reles só por ser habitual, também quanto ao estilo
a gente, mostram bem como o seu carácter era também só se procura a novidade, umas vezes indo desenterrar
um misto de irreverência, de depravação, de originalidade. palavras arcaicas e obsoletas, outras vezes criando neolo-
A benevolência é o maior título de glória que se lhe atri- gismos ou dando às palavras significados inéditos, outras
bui: de facto, ele nunca usou a força, absteve-se do sangue . ainda - é esta a última moda ! - tomando por opulên-
alheio e não deu mostras do poder que possuía senão pela cia de estilo a audácia e a abundância das metáforas. Há 11
licenciosidade a que se entregava. O alambicado monstruoso autores que cortam a frase a meio na esperança de agra-
do seu estilo destruiu no entanto esse título de glória, dar ao público pelo facto de deixarem a ideia em sus-
penso, induzindo no auditório a ambiguidade; outros, em
contrapartida, desenvolvem e esticam a frase até mais não
14
Mecenas, fr. 11 Lunderstedt. poder; há-os ainda que sem chegar ao mau gosto declarado

630 631
(o que é inevitável em escritores com tendência para o que usam palavras próprias de outros tempos e só se
bombástico), não deixam por isso de tender para a prática exprimem na linguagem da Lei das Doze Tábuas; para
de um gosto duvidoso. eles Graco, Crasso e Curião são demasiado elaborados e
Por conseguinte, sempre que vires um estilo decadente modernos, pelo que preferem recuar até Ápio Cláudio
cair nas boas graças do público, podes estar certo de que a e Coruncânio. Outros, em contrapartida, caem na vulgari-
moralidade anda também muito por baixo ! Assim como o dade à força de só quererem usar termos batidos e usuais. 14
luxo excessivo nos banquetes ou no modo de vestir é sin- Uns e outros, cada um à sua maneira, dão provas de igual
toma de uma sociedade doente, também o barroquismo do decadência estilística, tanto - Deus me valha ! - como
aqueles que só aceitam usar termos solenes, sonoros, poé-
estilo, quando se generaliza, mostra que os espíritos estão deca-
ticos e rejeitam aquelas palavras indispensáveis ao uso
dentes - pois é do espírito que nascem as palavras ! Não
diário. Quer uns quer outros ultrapassam a justa medida,
12 deves espantar-te também ao veres o estilo decadente ser
os primeiros usando mais adornos que o necessário, os
aplaudido não só pelas camadas mais baixas da sociedade
outros menos do que o necessário. Os primeiros até depi-
mas até mesmo pelos círculos ditos superiores: o que dis-
lam as pernas, os outros não depilam sequer os sovacos !
tingue umas camadas das outras é a toga, e não o espírito
Passemos à composição da frase. Quantos tipos de estilo 15
crítico! Já terás mais razões para te espantares de que se queres tu que eu exemplifique com deficiências de compo-
cubram de louvores não só os produtos viciosos mas tam- sição? Uns preferem a frase sacudida e áspera, e quando
bém os próprios vícios. Isto é um fenómeno de sempre: algum desenvolvimento se vai processando com calma
ninguém impôs o seu talento sem concessões ao público. confundem deliberadamente a estrutura; detestam transi-
Podes citar-me qualquer autor famoso que te apeteça, e eu ções sem solavancos; acham que ferir os ouvidos com a
serei capaz de dizer-te quais os defeitos que os seus con- falta de ritmo é sinal de força viril ! Em outros, em vez
temporâneos lhe desculparam ou dissimularam conscien- de composição encontra-se uma autêntica melodia, tão den-
temente. Posso citar-te muitos escritores cujos vícios em goso e efeminado é o ritmo. E que dizer daquele estilo em 16
nada os prejudicaram, e alguns mesmo a quem os defeitos que as palavras exigidas pelo sentido se vão fazendo espe-
só aproveitaram. Posso afirmar-te que há autores famosís- rar até só aparecerem mesmo no fim ? E daquela frase,
simos, objecto de universal admiração que, se os expur- como era por exemplo a de Cícero, que se desenvolve len-
garmos dos seus defeitos, ficam reduzidos a nada, pois de tamente, que vai deslizando sem sobressaltos e apresenta
tal modo neles se combinam os defeitos com as qualida- no fim uma estrutura rítmica 15 sempre igual ?
des que, se eliminarmos aqueles, também estas se perderão.
13 Não podes esquecer, aliás, que em questões de estilo
não existe uma norma absoluta; o estilo varia ao sabor da
5
moda, e a moda está sempre a mudar. Muitos escritores há ' As chamadas "cláusulas métricas".

632 44 633
,., 16 . '
E nao apenas............ no que concerne as max1mas
l um tique de estilo. Salústio escreveu algures: "as águas 19
havemos de considerar como defeito que elas sejam ridícu- invernosas 19 ". No primeiro livro da sua "Guerra Púnica"
las e pueris, ou então chocantes e deliberadamente imo- Arrúncio escreve que "de repente o tempo se tornou inver-
rais; defeito será também se são demasiado rebuscadas, ·ou noso"; num outro passo, para dizer que o ano foi frio,
demasiado adocicadas, se sabem a oco e não têm outro diz: "o ano inteiro foi invernoso"; noutro lugar diz: "de lá
mérito além da sonoridade. enviou sessenta navios de transporte ligeiros, além dos
17 Estes defeitos são originados, em geral, por um autor soldados e dos marinheiros indispensáveis, sob uma nor-
cujo estilo se considera modelar; os outros imitam-no, e tada invernosa 20 ". E nunca mais deixou de meter este
assim o defeito se vai generalizando. Por exemplo, quando termo a torto e a direito ! Salústio diz ainda a certa altura:
Salústio estava na moda considerava-se o suprassumo do estilo: "enquanto, em plena guerra civil, ele procura as famas de
as sentenças abruptas, as frases inesperadamente sincopa- homem justo e bom 21 ". Arrúncio não se conteve: logo no
das, a concisão obscura. Lúcio Arrúncio, homem, aliás, de primeiro livro escreveu que eram grandes as "famas" de
rara parcimónia, autor de uma "História da Guerra Púnica", Régulo ! Estes defeitos, e outros que tais, induzidos pela 20
era um fervoroso admirador de Salústio e brilhante imita- imitação em certos escritores, não são só por si sintomas
dor do seu estilo. Em Salústio encontramos a frase "com de degradação e corrupção espiritual; apenas se tais vícios
dinheiro fez um exército" 17 , isto é, contratou soldados, são exclusivos de alguém, nascidos mesmo do caráaer desse
pagando-os do seu próprio bolso. Arrúncio deu em apre- alguém, é que tu estarás autorizado a julgar a partir deles
ciar tanto esta expressão que a empregou em todas as o carácter e as tendências do seu autor. O estilo de um
suas páginas. Num passo, diz ele "que fizeram os nossos homem colérico denotará cólera, tal como o de um indiví-
pôr-se em fuga ", noutro, afirma que "foi Hierão, rei de duo impulsivo denota excitação e o de um efeminado
moleza e indecisão. Fenómeno idêntico é o que tu verifi- 21
Siracusa, que fez rebentar a guerra", noutro ainda que
cas em certos sujeitos que ora rapam a barba toda ou só
"estas notícias fizeram os Panormitanos render-se
em parte, que tosquiam o bigode , mas deixam crescer os
18 aos Romanos 18." Isto é só uma pequena amostra; o livro pêlos mesmo à beira dos lábios, que usam capas de cores
dele está repleto de frases similares. Quer dizer, uma ex- indecentes ou togas transparentes, ou seja, cuja única preocupa-
pressão que em Salústio era rara, tornou-se nele frequente, ção é fazer qualquer coisa que dê nas vistas: só preten-
quase conrínua. E com razão: Salústio forjou-a casual- dem chocar os outros, atrair os olhares, não se impor-
mente, Arrúncio rebuscava-a. Estás a ver as consequências tando com censuras desde que se repare neles ! Tal é o
de se tomar como modelo a imitar o que não passa de estilo de Mecenas e de todos os outros que incorrem em

19
'6 Lacuna postulada por Reynolds. Possivelmente trata-se de um fr. das Historiae.
7 20
' Salústio, Hist., fr. I, 27* Maurenbrecher. Cf. supra nota 18.
21
18
Arrúncio, Hist., fr. 1-7 Peter. Salústio, Hist,, fr. l, 90* Maurenbrecher.

634 635
vícios de linguagem, não por casualidade, mas consciente e cumulando-a de gozo, tal como a populaça em período de
22 deliberadamente. A causa disto está numa grave perturba- larguezas (nocivas a médio prazo) se sacia enganadora-
ção da alma. Sob o efeito da bebida, a voz só começa a mente, agarrando a mãos ambas bens que não poderá
ficar empastada quando o cérebro cede ao peso do álcool consumir. Mas quando a moléstia, sempre em crescendo, 25
e perde por completo o equilibrio: semelhantemente, tam- vai consumindo as forças, quando o deboche se introduz
bém esta espécie de embriaguês de linguagem só é verda- na medula e nos nervos, então compraz-se na contempla-
deiramente perniciosa quando a alma está em desequilí- ção de gozos que, pelos seus excessos, já se lhe tornaram
brio. Cuidemos, portanto, da alma, pois dela provêm as inacessíveis: o espectáculo dos prazeres alheios é o prazer
nossas ideias, as nossas palavras, é ela quem regula a que lhe resta, torna-se testemunha e conselheira de liber-
nossa aparência, a nossa fisionomia, o nosso modo de tinagens de que tem de abster-se devido aos excessos pas-
andar. Se a alma está sã e robusta, também o estilo será sados. E mais do que lhe fora grata a abundância de delí-
vigoroso, enérgico, viril, mas se perde o equilíbrio tudo o cias, é-lhe agora amargo que todo o luxo gastronómico se
mais cairá por terra. afaste da sua boca e do seu estômago, que já não lhe seja
23 "Quando o rei está incólume um só espírito reina, dado rebolar-se entre uma multidão de pederastas e pros-
mas morto ele rompem-se os laços sociais ! 22 " titutas! Para uma tal alma, ver-se privada de grande parte
O nosso rei é a alma; se esta permanece incólume, todas do seu gozo devido às debilidades do corpo - que
as riossas funções e deveres se realizam na mais perfeita desolação!
ordem, mas se ela começa a oscilar, por pouco que seja, Não é verdade, meu caro Lucílio, que toda esta insen- 26
tudo o mais em nós é afectado. E quando a alma cede ao satez é a consequência, por um lado, de que nenhum de
império do prazer, os nossos talentos e as nossas acções nós tem a consciência da sua mortalidade e insignificância,
degradam-se, todos os nossos esforços carecem por com- por outro, e principalmente, de que nenhum de nós pensa
pleto de consistência. que é apenas um entre muitos? Repara nas nossas cozi-
24 Já que me servi deste símile vou continuar com ele. A nhas e nos cozinheiros que se atropelam à roda de todos
nossa alma pode comportar-se umas vezes como rei, outras os fogões: parece-te plausível que tanta agitação se destine
como tirano. Um rei atento à estrita moralidade cuida da a preparar comida para um único estômago ? Repara nas
saúde do corpo que lhe está confiado, não dá a mínima caves onde pomos a envelhecer os vinhos produzidos ao
ordem que seja imoral ou degradante. Mas um rei sem longo de gerações: parece-te plausível que se guardem
sentido de medida, ambicioso e debochado passa a mere- vinhos de tantas colheitas e de tantas regiões para um
cer antes o nome odioso e cruel de tirano. Paixões desen- único estômago? Repara nas inúmeras zonas onde se tra-
freadas apoderam-se da alma, espicaçam-na, inicialmente balha a terra, nos milhares de colonos que a lavram e a
cavam: parece-te plausível que todas as sementeiras da
Sicília e da África se destinem a um único estômago ? Se 27
22
Vergílio, Georg., IV, 212-3.
cada um de nós tomar as próprias medidas, se se convencer

636 637
de que não pode consumir muito nem por muito tempo, E não só estas virtudes, mas ainda a frugalidade, o auto-
todos poremos saudavelmente um freio aos nossos desejos. domínio, a paciência, a liberalidade, a gentileza e essa vir-
Nada, porém, te será mais útil para manteres em tudo a tude, incrivelmente rara no homem, que é a humanidade
justa medida do que meditares continuamente na brevidade - também estas fariam jorrar sobre a alma o seu sublime
e incerteza da vida. Faças o que fizeres, nunca deixes de esplendor! E mais ainda, a presciência, o juízo crítico e,
pensar na morte ! acima de todas, a magnanimidade - oh ! deuses, quanta
beleza, quanta severa dignidade não acrescentariam à figura,
quanta autoridade e graça se não juntariam nela! Nin-
115 guém contemplaria tal figura sem a declarar tão digna de
1 Não gosto de te ver, meu caro Lucílio, tão excessiva- amor como de respeito. Se alguém pudesse contemplar 4
mente preocupado com as palavras e o estilo: tenho coi- um tal rosto - bem mais imponente e radioso do que é
sas mais importantes com que te ocupar o espírito. habitual encontrar-se entre os homens - , não é verdade
Preocupa-te com a matéria a tratar, e não com o modo que ficaria estupefacto como se tivesse encontrado uma
como escreves. E quando te puseres a escrever fá-lo para divindade, e suplicaria em silêncio que lhe fosse dado admirá-la
pores em ordem as tuas ideias, para interiorizares bem os sem sacrilégio ? E que depois, avançando atraído pela bon-
teus pensamentos e como que lhes apores a tua assina- dade desse rosto, se poria a adorá-lo com súplicas? E,
2 tura. Quando vires alguém com um estilo rebuscado e após contemplar longamente essa face tão sublime, tão
acima do que habitualmente nos é dado ver entre os
cheio de adornos podes ter a certeza de que a sua alma
homens, esses olhos com um brilho tão suave mas ao
apenas se ocupa igualmente de bagatelas. Uma alma ver-
mesmo tempo tão ardente - acaso não sentiria vontade
dadeiramente grande é mais tranquila e senhora de si a
de, num misto de temor e de admiração, soltar a célebre
falar, e em tudo quanto diz há mais firmeza do que pre-
exclamação de Vergílio: ,
ocupação estilística. Tu conheces bem os nossos jovens "Que nome Ú hei-de dar, donzela? Não é de mórtal 5
elegantes, com a barba e o cabelo todo aparado, que pare- o teu rosto, nem é humana a tua voz!...
cem acabadinhos de sair da fábrica ! De tais criaturas nada Sê favorável, ó desconhecida, e auxilia-me nos meus
terás a esperar de firme ou sólido. O estilo é o adorno da esforços 23 !"
alma: se for demasiado penteado, maquilhado, artificial, Ela nos assistirá e auxiliará, se estivermos dispostos a
em suma, só provará que a alma carece de sinceridade e prestar-lhes culto. Para tanto não se exige a hecatombe de
tem em si algo que soa a falso. Não é coisa digna de vigorosos touros, nem a oferenda de ouro e prata ou a
3 homens o cuidado extremo com o vestuário ! Se nos fosse deposição de esmolas no tesouro do templo: ao seu culto
dado observar "por dentro" a alma de um homem de bem basta a devoção e rectidão da vontade ! Repito: se nos 6
- oh ! que figura bela e venerável, que fulgor de magni-
ficente tranquilidade nós contemplaríamos, que brilho não
emitiriam a justiça, a coragem, a moderação· e a prudência ! 23
Vergílio, Aen., I, 327-8 e 330.

638 639
fosse possível contemplar uma tal imagem, ninguém con- ção paredes recobertas de placas de mármore, embora cien-
seguiria deixar de se inflamar de amor por ela ! Na reali- tes do material que lá está por baixo. Iludimos os nossos
dade, todavia, muitos obstáculos se nos interpõem e, ou próprios olhos: quando recobrimos os tectos a ouro o que
nos cegam o olhar com claridade excessiva, ou no-lo man- fazemos senão deleitar-nos com uma mentira? Sabemos
têm na obscuridade. No entanto, assim como o uso de bem que por baixo desse ouro se oculta reles madeira !
certos medicamentos pode tratar os nossos olhos e res- Mas não são só as paredes ou os tectos que se recobrem
tituir-lhes a acuidade, também nós, se nos decidirmos a de uma ligeira camada: também a felicidade destes apa-
tratar as maleitas dos olhos da alma, seremos capazes de rentes grandes da nossa sociedade é uma felicidade "dou-
dar pela presença da virtude ainda que esta se esconda rada" ! Observa atentamente, e verás a corrupção que se
num corpo deformado, meio oculta pela miséria, sob a esconde sob essa leve capa de dignidade. Desde que o 10
7 aparência falaz de uma humilde posição social. Daremos, dinheiro (que tanto atrai a atenção de inúmeros magistra-
repito, pela sua imensa beleza mesmo que escondida atrás dos e juízes e tantos mesmo promove a magistrados e
de um exterior desagradável. Inversamente, também pode- juízes!. .. ), desde que o dinheiro, digo, começou a merecer
remos aperceber-nos da perversidade e da sordidez de uma honras, a honra autêntica começou a perder terreno; alterna-
alma doente, mesmo que rodeada do brilho intenso de damente vendedores ou objectos postos à venda, habitua-
riquezas espectaculares, mesmo que fira a nossa vista a mo-nos a perguntar pela quantidade, e não pela qualidade
8 enganadora luz das honras ou do exercício do poder! Ser- . 25 . samos boas pessoas por mteresse,
das coisas . somos
-nos-á dado assim compreender como é desprezível tudo bandidos por interesse, praticamos a moralidade enquanto
aquilo que admiramos à maneira das crianças, que dão o dela esperamos tirar lucro, sempre prontos a inverter a
maior valor a qualquer brinquedo, e até preferem um marcha se pensamos que o crime pode ser mais rendível.
colarzito comprado por três moedas à companhia dos pais Os nossos pais habituaram-nos , a dar valor ao ouro e à 11
ou dos irmãos ! Que diferença há entre nós e os miúdos prata, e a cupidez que assim nos foi instilada ganhou raí-
senão, como diz Aríston, que as nossas brincadeiras - zes e foi crescendo connosco. Toda a gente, ao fim e ao cabo
loucuras bem mais caras do que as deles ! - são antes os tão díspar em tudo o mais, está ·de pleno acqrdo quanto
quadros e as estátuas 24 ? As crianças ficam todas contentes ao "vil metal": só a ele aspira, só a ele deseja para os
quando encontram na praia alguns calhaus coloridos; nós seus, e é ele a coisa mais preciosa que encontra para ofe-
recer aos deuses em acção de graças ! A moralidade pública
preferimos enormes colunas variegadas, importadas das
degradou-se a tal ponto que a pobreza é objecto de
areias do Egipto ou dos desertos do Norte de África para·
maldição e causa de opróbrio, desprezada pelos ricos e
a construção de algum pórtico ou de um salão de banquetes
9 com capacidade para uma multidão. Olhamos com admira-
25 V. Lucílio, Sat., 1119 Marx= 1127-8 Krenkel): "O ouro e a ambição são

para cada um o ideal de vida: conforme o que possuíres, assim tu serás, e assim
24
Este passo constitui o fr. 372 da colectânea S. V.F., vol. 1. igualmente os outros te apreciarão!"

640 641
12 odiosa aos pobres. Junte-se a isto os cantos dos poetas,
1 ou de pai digno e benfazejo/ Se tão doce é o brilho
que lançam mais lenha na fogueira das nossas paixões ao do olhar de Vénus, justo é o amor que ela ateia
exaltar a riqueza como o único adorno capaz de embelezar entre deuses e homens /" 3º
a vida. No entender deles nada há de melhor que os deu- Quando se acabaram de ouvir estes versos de Eurípides, 15
ses imortais possam prodigalizar ou possuir eles próprios. todo o público se ergueu num repelão, disposto a expulsar
13 "O palácio do Sol elevava-se sobre sublimes colu- da cena o actor e a tragédia, e só não o fez porque Eurí-
26
nas, rauioso
·-,1· graças ao bri"l''-oo do ouro. " pides correu em pessoa à frente dos espectadores, pedindo-
Vê agora a descrição do carro do Sol: -lhes que esperassem até ver o que sucedia a esse apaixonado
De ouro era o eixo, de ouro o timão, em ouro
11
pelo ouro! Na peça, de facto, Belerofonte sofria o castigo
era o aro das rodas, e de prata eram feitos os seus que todo o homem sofre no drama da sua vida. A 16
raios" 27 avareza nunca passa sem castigo, embora o pior dos casti-
Pois se até chamam "idade de ouro" à época que descre- gos seja a sua própria existência. Que quantidade de lágri-
14 vem como a melhor da História!. .. Nos trágicos gregos mas e tormentos ela exige! Que angústias sofrem os ava-
também não faltam personagens que trocam por qualquer ros, ora pelos bens que ambicionam, ora pelos que já
lucro a honradez, a saúde, a reputação. possuem! Junta a isto a ansiedade que diariamente ator-
Chamem-me o ·pior dos bandidos, desde que me
11
menta cada um em função da riqueza que guarda. A
chamem 'rico'.28 posse do dinheiro causa mais torturas do que a sua con-
Todos queremos saber se ele é rico, ninguém se é quista. Quantos gemidos o avaro solta ante qualquer pre-
homem de bem. juízo que, por grande que seja, ele imagina sempre maior!
Não te perguntam porquê e donde vens, mas sim Para ele, ainda quando a fortuna em nada diminui as suas
quanto possuis. posses, a não obtenção de um- lucro é olhada como um
Em todo o lado um homem só vale pelo que tem. prejuízo. "Mas todas as pessoas lhe chamam 'homem feliz: 17
De nenhum bem a posse me desonra. A falta de 'homem rico' - e bem gostariam de ser donas de tantos
posses, sim/ bens como ele.'" É verdade ! E depois ? Pensas que pode
Se rico, quero viver, se pobre, opto pela morte. haver situação pior para um homem do que sentir-se
Bela é a morte daquele que morre a fazer dinheiro / 29 simultaneamente miserável e objecto de inveja ? Oxalá os
Ó dinheiro, supremo bem da espécie humana, prazer candidatos à riqueza começassem por ouvir a opinião dos
superior à presença de mãe extremosa, ou de filhos, ricos; oxalá os candidatos às honras começassem por ouvir
os ambiciosos que já atingiram o topo da carreira. Entre-
tanto, todos vão criticando as ambições passadas só para
26
Ovídio, Met., II, 1-2. formar outras novas. Ninguém, de facto, se satisfaz com a
27
Ovídio, Met,107-8.
28 Trag. Graec. Frag., adesp. 181. 1 Nauci/
29 30 2
Trag. Graec. Frag., adesp. 461 Nauci/. Eurípides, Danae, fr. 324 Nauck .

642 643
própria prosperidade por muito rapidamente que a alcance; o desejo, concedo-te a vontade, e assim poderás fazer a
todos se lamentam dos seus projectos, do modo como as mesma coisa sem receios, com uma decisão mais firme, e
coisas lhes correm, e acham sempre que afinal estavam até apreciarás mais os próprios prazeres, pois ser-te-á mais
melhor anteriormente. fácil gozá-los se os dominares do que se fores seu escravo.
18 Ora aqui está um serviço que a filosofia te pode pres- "É próprio da natureza humana" - dizes tu ---'-- "sofrer 2
tar e que, a meu ver, é um bem inestimável : fazer com intensamente com a perda de um amigo: deixa-me, por-
que nunca te lamentes do que és ! tanto, chorar lágrimas tão merecidas. É natural também
Um bem-estar tão firme que tempestade nenhuma o que a opinião pública nos afecte, e que nos sintamos tris-
pode abalar - não é à custa de sábias combinações d~ tes se formos mal julgados: porque não me concedes o
palavras e de perfeita fluência no discurso que o consegw- direito, tão legítimo, de recear que façam mau juízo de
rás. Deixa as palavras correr como lhes apetecer, desde mim?" Não há vício que se não esconda atrás de boas
que a tua alma mantenha sólida a sua estrutura; que ela razões; a princípio, todos são aparentemente modestos e
seja elevada, se conserve ao abrigo das falsas opiniões e aceitáveis, só que a pouco e pouco vão-se expandindo.
por isso mesmo aprecie aquilo que o vulgo detesta. Faz Não conseguirás pôr fim a um vício se deixares que ele
com que a tua alma julge dos seus progressos em função se instale. Toda a paixão é ligeira de início; depois vai-se 3
dos seus actos e avalie o próprio saber pelo seu grau de intensificando, e à medida que progride vai ganhando for-
independência em relação aos desejos e ao medo. ças. É mais difícil libertarmo-nos de uma paixão do que
impedir-lhe o acesso. Ninguém ignora que todas as pai-
116 xões decorrem de uma tendência, por assim dizer, natural.
A natureza confiou-nos a tarefa de cuidar de nós próprios,
1 Tem-se debatido com frequência se é preferível ter mas, se formos demasiado complacentes, o que era tendência
paixões moderadas ou não ter paixão alguma. Nós, os torna-se vício. Aos actos necessários juntou a natureza o
estóicos, rejeitamo-las por completo 31, os peripatéticos limi- prazer, não para que fizéssemos deste a nossa finalidade
tam-se a moderá-las. Eu por mim não vejo como é que mas apenas para nos tornar mais agradáveis aquelas coi-
uma doença, por ligeira que seja, se pode considerar boa e útil sas sem as quais é impossível a existência. Se o procura-
para a saúde ! Mas não tenhas receio : não te vou proibir mos por si mesmo, caímos na libertinagem. Resistamos,
formalmente nada do que tu julgas imprescindível. Vou portanto, às paixões quando elas se aproximam, já que,
mostrar-me tolerante e compreensivo em relação às ten- conforme disse, é mais fácil não as deixar entrar do
dências que tu consideras necessárias, úteis ou agradá- que pô-las fora. "Não me proíbas" - dizes tu - "que em 4
veis à vida: limito-me a subtrair-te ao vício. Se te proíbo certa medida eu seja sensível à dor ou ao receio." Repara:
essa "certa medida" há-de procurar alargar-se e subtrair-
-se aos limites impostos pela tua vontade. O sábio pode
ii S.V.F. , ill, 444. permitir-se o direito de descuidar um pouco a vigilância

644 645
sobre si próprio, pois sabe pôr fim às lágrimas e aos pra- dominarmo-nos a nós mesmos? Apenas porque não acre-
zeres sempre que o queira. Nós, porém, faremos melhor ditamos sermos capazes de o fazer. Mas não só ! Há mais
em não avançar na paixão, já que não nos será fácil um factor a ter em conta: nós defendemos os nossos
5 retroceder. Parece-me muito correcta a resposta que Pané- vícios porque os amamos, e preferimos desculpá-los a
cio deu um dia a um jovem quando este lhe perguntou se livrarmo-nos deles! A natureza deu-nos energia suficiente.
o sábio se podia permitir o amor. "Pelo que toca ao A questão está em aproveitá-la, em juntar todas as nossas
sábio", - disse - "mais tarde veremos. Eu e tu, que forças e pô-las ao nosso serviço ou, pelo menos, em não
ainda estamos muito longe de ser sábios, é preferível não as virar contra nós mesmos. A falta de forças não passa
nos arriscarmos a uma situação incerta, incontrolável, que de pretexto; o que temos na realidade é falta de vontade !
pode sujeitar-nos a uma vontade alheia e a envilecer-nos.
Se o amor nos sorri, deixamo-nos excitar pelo seu bom
acolhimento; se nos rejeita, irrita-nos a sua altivez. Quer 117
se nos mostre fácil quer difícil, a paixão amorosa é sem- Preparas-me uma boa tarefa e, sem dares por isso, 1
pre nociva: as facilidades atraem-nos, as resistências provo- metes-me numa dolorosa controvérsia: levantas uma série
cam-nos. Por isso mesmo deixemo-nos ficar quietos, cônscios de questões fúteis nas quais eu nem posso discordar da
das nossas próprias fraquezas. Não entreguemos o nosso Escola sem trair o que lhe devo, nem concordar com ela sem
débil espírito ao vinho, à beleza, à adulação ou a qualquer
trair a minha consciência !
6 outra paixão que insidiosamente nos solicite. " 32 O mesmo
Perguntas-me se é verdadeira a tese estóica segundo a
que Panécio respondeu a uma que_stão sobre o amor, digo
qual a "sabedoria" é um bem, mas "ser sábio" já o não é.
eu a respeito de todas as paixões em geral: afastemo-nos
Primeiro, irei expor-te a opinião ,dos estóicos; em seguida,
quanto possível dos terrenos movediços, já que até em
atrever-me-ei a dizer o que eu penso.
terra firme nos aguentamos com dificuldade !
7 Já te estou imaginando a atirar-me à cara a objecção que Dizem os nossos que tudo quanto é bem é um corpo, 2
toda a gente costuma fazer aos estóicos: "Demasiado grandes porquanto tudo quanto é bem age, e tudo quanto age é um
são as vossas promessas, como demasiado duros são os corpo 33 • Tudo quanto é bem, é útil; logo importa que aja
vossos preceitos. Nós somos pessoas vulgares, e não de algum modo, para poder ser útil; se age, é um corpo.
podemos renunciar a tudo. Somos sensíveis à dor, com Eles dizem que a "sabedoria" é um bem; são consequen-
moderação; sentimos desejos, mas com peso e medida; temente obrigados a considerá-la como corpórea. Quanto a 3
somos atreitos à cólera, mas capazes de nos deixarmos "ser sábio" entendem que não exige a mesma condição.
8 aplacar." Sabes porque é que consideramos impossível Trata-se aqui de uma coisa incorpórea, de um acidente de

32 Cf. supra carta 106.


Panécio, fr. 114 van Straaten. 33

646 647
outra coisa que é a "sabedoria" 34• Assim sendo, "ser sábio" Eu não sou da mesma opinião; penso que os nossos se 6
não tem qualquer acção nem utilidade. "Como é isso?" - viram reduzidos a este artifício por estarem manietados
objectar-se-á. - "Então nós não dizemos que ser sábio é pela sua proposição de base, que lhes não permite alterar
um bem?" Dizemo-lo, mas em referência àquilo de que a formulação.
está dependente, ou seja, da "sabedoria" em si mesma. Costumamos dar bastante valor às opiniões universal-
Ouve, primeiro, a resposta que outros deram a esta tese. mente partilhadas, e como demonstração da verdade recorre-
4 Depois será a vez de eu definir a minha posição em rela- mos à prova do consenso universal. É assim que se prova
ção à escola, e fixar a minha maneira de ver. Dizem a existência dos deuses, entre outros argumentos, pelo
alguns: "Por essa ordem de ideias, 'viver com felicidade' facto de toda a gente possuir uma ideia acerca dos deuses
também não é um bem. Queiram ou não, os estóicos e de não haver povo algum, onde quer que seja, tão fora
terão de admitir que uma 'vida feliz' é um bem, mas que das leis e hábitos comuns que não acredite nos deuses, de
viver com felicidade já não é um bem." E outra objecção um modo ou de outro. Quando discutimos sobre a eterni-
5 se faz ainda à nossa Escola: "Vós pretendeis ser sábios; dade das almas, não é pouco o peso que atribuímos ao
logo, 'ser sábio' 35 é algo que devemos desejar; se uma coisa consenso universal, pelo qual a humanidade revela o temor
deve ser desejada, essa coisa é boa." Os nossos vêem-se ou o culto que presta ao mundo dos mortos.
assim obrigados a forçar as palavras e a meter no verbo Mas não vou fazer como os gladiadores vencidos que 7
expetere (desejar) uma sílaba contrária ao génio da língua. apelam para a benevolência do público; vou, sim, contes-
Se não te importas, eu vou inserir essa sílaba. O argu- tar, servindo-me das nossas armas próprias.
mento ficará assim: "É desejado (expetendum) aquilo que o acidente que afecta um certo ser existirá fora desse
é um bem, é desejável (expetibile) aquilo que obtemos ser ou faz parte integrante dele ? Se faz parte integrante
quando atingimos um bem. Esse algo não o procuramos dele, é tão corpo como o ser de que é acidente. De facto,
como se fosse um bem, mas é um acréscimo ao bem que não pode haver um acidente sem que haja contacto; tudo
foi procurado." quanto faz contacto é um corpo, não pode haver um aci-
dente sem que haja acção; tudo quanto age é um corpo.
34
Apenas quatro "coisas" formavam, para os estóicos, a classe dos incorpó- Se o acidente está fora do ser, então é porque se reti-
reos (dawµarn, incorpora/ia): o tempo (xpóvoç, tempus), o espaço (rórroç, rou depois de o ter afectado; ora, tudo o que se retira tem
locus), o vazio (Kevóv, inane) e o" dito, enunciado" (ÀeKróv, dictum), S. V.F., II, movimento, e tudo o que tem movimento é um corpo.
331. "Ser sábio" (sapere) é, portanto, algo que "se diz" de outro, é um dictum
(ÀEKTÓv), ou seja, incorpóreo. Daqui a dificuldade que Séneca põe em evidência,
Estás à espera que eu diga que "corrida" e "correr'', "calor" 8
e que talvez não tivesse surgido se os mestres estóicos, em vez de falar e escre- e "estar quente'', "luz" e "luzir" são uma e a mesma
ver uma língua em que a distinção morfológica do nome e do verbo é tão mar- coisa ! Não, eu admito que haja diferença entre os membros
cada, falassem e escrevessem uma língua (como o chinês) em que tal distinção é
de cada par de conceitos, não admito é que sejam de dife-
morfologicamente (embora não sintacticamente) irrelevante! Afinal, não seria
legítimo perguntar porque motivo sapere é um diaum mas sapientia já não o é? rente natureza. Se a saúde é indiferente, estar de boa
35 Cf. a nota precedente.
saúde também é indiferente; se a beleza é indiferente, ser belo

648 45 649
também o é. Se a justiça é um bem, ser justo é-o igual- Na opinião dos peripateticos não existe qualquer dife- 11
mente; se a imoralidade é um mal, também é mal ser rença entre a "sabedoria" e o "ser sábio" porquanto cada
imoral, da mesma maneira - por Hércules ! - que, se as um dos termos contém em si o outro. Ou será que não
cataratas são um mal, também é um mal sofrer de catàra- consideramos que "é sábio" apenas aquele que possui "sabe-
tas ! Em suma, nenhuma das duas coisas pode existir sem doria" ? Poderemos pensar, porventura, que alguém "seja
a outra: quem é sábio possui sabedoria; quem possui sábio" sem possuir "sabedoria" ?
sabedoria é sábio. Não pode, por conseguinte, duvidar-se Os antigos dialécticos distinguiram as duas noções, e foi 12
que tal como um dos termos for assim será o outro, o deles que esta dicotomia chegou até aos estóicos. Vou
que leva alguns filósofos a pensar que ambos são uma e a dizer-te em que é que ela consiste.
mesma coisa. Uma coisa é "um campo'', outra coisa é "possuir um
9 Gostaria ainda de colocar esta questão: uma vez que campo". É evidente: "possuir um campo" é algo que res-
tudo é ou mal, ou bem, ou indiferente 36, em que categoria peita ao possuidor, não ao campo. Semelhantemente, uma
devemos incluir o "ser sábio" ? Afirmam que não é um coisa será a "sabedoria", outra coisa o "ser sábio". Admites,
bem; mal não é, evidentemente; portanto deverá ser intermé- creio eu, que se trata de duas coisas distintas, uma coisa
dio. Ora, nós consideramos como intermédios e indiferen- que é possuída e alguém que a possui: a "sabedoria" é
tes aqueles atributos que tanto afectam um indivíduo bom possuída, aquele que "é sábio" possui. A sabedoria consiste
como um mau, por exemplo, a riqueza, a beleza, a nobreza. num espírito perfeito, ou levado ao mais alto grau de ele-
Ora este predicado - "ser sábio" - só pode pertencer a vação; é, numa palavra, a arte da vida. Em que consiste o
um indivíduo bom; logo, não é indiferente. Igualmente, "ser sábio" ? Não posso dizer "um espírito perfeito", mas
não pode ser um mal, já que não pode pertencer a um sim o estado em que se encontra aquele que possui um
indivíduo mau; logo, é um bem. É um bem aquilo que só espírito perfeito. Uma coisa, pois, é um "espírito justo",
um indivíduo bom pode possuir; a qualidade de "ser sábio" outra, por assim dizer, é "possuir um espírito justo".
só um indivíduo bom a pode possuir; logo, é um bem. Prosseguindo o seu raciocínio dizem eles: "Há várias 13
10 Dizem que "ser sábio" é um acidente da "sabedoria". Mas espécies de corpos, como por exemplo 'um homem', 'um
isto a que se chama "ser sábio" é causa ou consequência da cavalo'; essas espécies são acompanhadas de movimentos
"sabedoria" ? Quer seja causa quer seja consequência, em da alma que nomeiam esses corpos. Tais movimentos têm
ambos os casos é um corpo, porquanto quer o que é cau~ algo de_ específico distinto dos corpos. Por exemplo: vejo
sado quer o que causa é um corpo. Se é ·um corpo, então Catão a passear; os sentidos mostram-me o facto, o meu
é um bem, já que a única coisa que o impedia de ser um espírito crê nele. Aquilo que eu vejo, aquilo a que apliquei
bem era o facto de ser incorpóreo. 1
os olhos e o espírito, é um corpo. Em seguida digo: Catão
está passeando'. Ora, estas minhas palavras já não são um
corpo, são a enunciação de algo acerca de um corpo, são
36 Sobre o conceito de "indiferente" (à&ácf>opov) v. S.V.F., III, 117-123. aquilo a que uns chamam o 'falado ' (effatum), outros o

650 651
'enunciado ' (enuntiatum), outros o 'dito' (dictum). Assim, mesmo dizeis, e bem, que não seria aceitável a "sabedoria"
quando dizemos 'sabedoria' entendemos que nos referimos desligada da sua aplicação prática. Ora, em que consiste a
a algo de corpóreo; quando dizemos alguém é sábio esta- aplicação prática da "sabedoria" ? Em "ser sábio"; é isto o que
mos fazendo uma afirmação acerca de um corpo. Existe, há de mais importante naquela, tanto que, se esta não
portanto, uma grande diferença entre nomear um ser ou existisse, a primeira se tornaria uma coisa supérflua. Se a
falar acerca de um ser." tortura é um mal, então ser torturado é também um mal
'
14 Imaginemos, por agora, que se trata de duas coisas porquanto aquela não pode ser julgada um mal caso se
diferentes (repara que ainda não estou expondo a minha não verifique a situação que ela implica. A "sabedoria"
opinião !) : o que é que impede a segunda de ser diferente consiste no estado próprio de um espírito perfeito; ora,
e de, não obstante, ser um bem ? Dizia há pouco que uma como é possível não considerar um bem aquilo que, sem
coisa é um campo, outra é ter um campo. O que é óbvio: aplicação prática, não é um bem ? Devemos tentar alcan- 17
são de natureza diferente o possuidor e a coisa possuída, çar a "sabedoria"? A resposta é sim. Devemos procurar
uma vez que esta é uma porção de terra e aquele é um realizar praticamente a· sabedoria? A resposta é sim. Tu
homem. Mas no caso de que temos estado a tratar ambos não admitirias alcançar a sabedoria se te fosse proibido
os termos - aquele que possui sabedoria, e a sabedoria pô-la em prática. Aquilo que devemos tentar obter é um
15 em si mesma - partilham de idêntica natureza. Além bem. O "ser sábio" consiste na aplicação prática da sabe-
disso, no primeiro caso o objecto possuído e o possuidor doria, tal como o "discursar" ou o "ver" são a aplicação
são dois seres distintos; no segundo caso, coisa possuída e prática da "eloquência" ou da "visão". O "ser sábio'', por-
possuidor coexistem no mesmo ser. Um terreno é pos- tanto, é a aplicação prática da "sabedoria'', e a aplicação
suído à face da Lei, a sabedoria é-o por natureza; aquele prática da sabedoria é algo que devemos realizar; deve-
pode ser alienado, entregue a outro dono, esta nunca se aparta mos, pois, tentar "ser sábios"; e, se o devemos tentar, é
do seu possuidor. Consequentemente, não podemos pôr porque é um bem.
no mesmo plano duas situações tão distantes entre si. Já há tempo que me censuro a mim mesmo por, imi- 18
Eu tinha começado a.dizer que se podia tratar de duas tando aqueles a quem critico, gastar palavras a discutir
coisas sem que ambas deixassem por isso de ser boas; assim, uma questão evidente. Quem há, de facto, que possa duvi-
a "sabedoria" e o "homem sábio" são duas coisas, e ambas dar de que, se o calor é um mal, também ter calor seja
se consideram como boas. Tal como nada impede que um mal, ou de que, se a vida é um bem, também viver
quer a "sabedoria" quer o "possuidor de sabedoria" sejam seja um bem? Todas estas questões andam à volta da
um bem, também nada impede que a "sabedoria" e o sabedoria, não consistem no seu cerne; ora, é com este
facto de "possuir sabedoria'', ou seja, o "ser sábio'', sejam que nós devemos preocupar-nos. E se, porventura, nos 19
16 um bem. Para que quero eu "possuir sabedoria" ? Para sabe bem divagar, há na sabedoria domínios muito mais
"ser sábio"! Não será então um bem uma coisa sem a vastos e profundos: investiguemos a natureza dos deuses,
qual a outra também não poderia ser um bem ? Vós o princípio que alimenta os astros, os percursos tão diver-

652 653

.... "
sos percorridos pelas estrelas; investiguemos se os seus viver, para quê desejares morrer? E se o não queres, para
movimentos determinam o curso da nossa vida, se é delas que quê pedir aos deuses o que eles te concederam logo ao nas-
provém a energia que anima todos os corpos e todas as cer ? Que hás-de morrer um dia, ainda que o não queiras,
almas, se os fenómenos que consideramos casuais estão é o que tens de mais certo; e se o quiseres, está na tua
afinal em obediência a alguma lei e se, portanto, no uni- mão fazê-lo. A primeira hipótese é inevitável, a segunda
verso nada se produz por acaso e fora de uma ordem facultativa. Li um dia destes no prólogo de um autor 37 , 23
determinada. Tais questões, embora já não digam respeito aliás de mérito, esta frase repugnante: "Oxalá eu morra
à formação do carácter, elevam o espírito, alçam-no à quanto antes!". Insensato homem: não desejas mais do
grandeza das próprias questões que investiga; os proble- que a tua sorte! "Oxalá eu morra quanto antes!" Talvez
mas de que há pouco discutia, pelo contrário, rebaixam-no, ao dizer estas palavras tenha chegado a velho de chofre !. ..
deprimem-no e, ao invés do que julgais, não o exercitam, De outro modo, o que te detém? Ninguém te impede:
20 antes o debilitam. Reparai bem: é justo desperdiçar a sai desta vida como te aprouver, escolhe o local da natu-
atenção que deveríamos dar aos assuntos mais importan- reza que eleges para porta de saída. Estou-me referindo
tes e sublimes com estas questões, não direi falsas, mas, aos elementos de que se compõe o universo - água,
sem dúvida alguma, inúteis ? O que ganho eu em saber se terra, ar; qualquer deles, tal como é condição necessária à
"sabedoria" e "ser sábio" são ou não duas coisas distintas ? vida, assim é caminho seguro para a morte. "Oxalá eu 24
Que me adianta saber que a primeira é um bem, mas a morra quanto antes!" Que entendes tu por "quanto antes" ?
segunda não o é ? Façamos uma loucura, tiremos as duas Qual o dia que escolhes ? Pode ser que o alcances mais
coisas à sorte: tu ficarás com a "sabedoria", a mim caber- cedo do que tu contas. Palavras destas denunciam um
21 -me-á "ser sábio''. Resultado: um empate! Mais útil será espírito débil que pretende suscitar pena, mostrando-se
então indicar-me a via pela qual atinjo um ou outro objec- assim cansado da vida. Quem chama pela morte é porque
tivo. Diz-me o que eu devo evitar, o que devo procurar, não quer morrer !38 Pede aos deuses que te dêem vida e
quais os estudos que darão forças às debilidades do meu saúde; e se preferes morrer, a morte tem pelo menos a
espírito, de que modo poderei repelir para longe os impul- vantagem de pôr cobro aos desejos.
sos que se me atravessam na frente e tentam arrastar-me, São estes, caro Lucílio, os problemas em que devemos 25
de que modo poderei fazer frente a tantos males, de que meditar para robustecer o nosso espírito. Nisto consiste a
modo poderei obviar às desgraças que se abateram sobre "sabedoria'', nisto o "ser sábio'', e não em desperdiçar inú-
mim, ou àquelas em que eu próprio me deixei cair. Ensi- teis subtilezas com problemas ocos e fúteis. Então a for-
na-me a suportar a adversidade sem gemer ou a felicidade
sem causar gemidos ao próximo; ensina-me a não aguar-
dar o último e inevitável mal, mas sim a buscá-lo eu 37Ignora-se qual o autor que Séneca critica neste passo.
38Tal como o lenhador da fábula (Esopo, 78 Chambry: r<opwv Km E>ávaro>
22 mesmo quando me parecer oportuno. Nada me parece "O Lenhador e a Morte"), que chama pela morte "para o ajudar a levar o
mais imoral do que desejar a morte, pois, se tu queres molho de lenha"!

654 655
tuna coloca diante de ti tantas questões ·que ainda não eu sei, contudo, que não estamos no Verão. A melhor
resolveste e tu metes-te em casuísticas ? Que estupidez prova que eu encontro para a não existência de alguma
esgrimir no vazio quando já se ouviu o sinal da batalha ! coisa é o facto de ela ser futura. Hei-de ser sábio, assim o 29
Põe de lado essas armas de brinquedo, é altura de usares espero, mas entretanto não sou sábio; se conseguisse obter
armas a sério! Diz-me como conseguir que nem tristezas aquele bem, ficaria livre deste mal. Há-de acontecer que eu
nem receios me perturbem o ânimo, de que modo poderei seja sábio: daqui não te é lícito concluir desde já que sou
26 alijar esta carga de secretos desejos. É preciso agir! "A um sábio. Não posso simultaneamente encontrar-me na
sabedoria é um bem, ser sábio não é um bem": discutir posse desse bem futuro e deste mal presente; estes dois
isto é fazer com que não nos tomem por sábios, é expor estados não coexistem, o mal e o bem não podem ao
ao ridículo todos os nossos estudos como se não passas- mesmo tempo encontrar-se no mesmo indivíduo.
sem de especulações vazias. Deixemos estas engenhosíssimas frioleiras e abordemos 30
Demos por resolvida esta, e ponhamos outra questão: com vigor aqueles temas que nos serão de utilidade na
será que a sabedoria ainda não atingida é um bem? Per- vida. Um homem que vai, preocupado, buscar a parteira
gunto-te eu: é ou não óbvio que os celeiros não sentem para a filha já com as dores não fica parado a ler as
ainda a carga das futuras colheitas, ou que as crianças, por informações oficiais ou o programa dos jogos; um homem
fortes e vigorosas que sejam, não têm ainda a noção da que corre para a sua casa em chamas não fica a olhar o
sua futura adolescência ? O doente, enquanto doente, em tabuleiro das damas, a ver como se liberta uma peça blo-
nada beneficia da saúde que há-de recuperar, tal como um queada. Ora a ti, ó céus !, de todo o lado te chegam notí- 31
corredor ou um lutador não se retemperam graças ao des- cias alarmantes: a casa a arder, os filhos em perigo, a tua
'Z7 canso que só obterão muitos meses depois. Quem ignora terra atacada, os teus bens saqueados! Junta ainda os nau-
que uma coisa futura não pode ser um bem pelo próprio frágios, os tremores de terra, tudo o .mais que nos pode
facto de ainda estar para vir? Uma coisa que seja um afligir. E tu, dilacerado por estas calamidades, gastas o
bem é de utilidade imediata; e para uma coisa ter utili- tempo com meros prazeres do espírito!... Preocupa-te a
dade é preciso que já exista. Se não tem utilidade, não é diferença que há entre a "sabedoria" e o "ser sábio" ...
um bem; se tem utilidade, então já existe. Eu hei-de ser Colocas e resolves problemas de dialéctica, enquanto uma
sábio um dia; quando o for, isso será um bem; entretanto, tal avalancha se precipita sobre ti! A natureza não foi tão 32
não. Qualquer coisa deve primeiro existir, em seguida virá generosa e pródiga no tempo que nos deu a ponto de nos
28 a sua qualidade. De que modo, pergunto eu, pode ser urri permitir desperdiçá-lo. Vê como mesmo as pessoas mais
bem aquilo que não existe ainda ? Que melhor prova te metódicas perdem imenso tempo: uma parte gasta-se nos
posso dar de que uma coisa não existe do que dizer "ela cuidados com a saúde, própria ou dos familiares; outra
há-de existir" ? Aquilo que há-de vir é evidente que ainda vai-se em actividades particulares ou públicas; metade da
não veio. A Primavera há-de aparecer; eu sei, contudo, nossa vida é entregue ao sono. E, deste tempo tão limi-
que neste momento é Inverno. O Verão há-de aparecer; tado e veloz que nos devora, havemos nós de gastar a

656 657
33 maior parte em pura perda ? ! Nota ainda ·que facilmente
o nosso espírito se habitua a procurar um prazer, e não uma
cura, ou seja, a fazer da filosofia uma distracção, quando
ela é uma terapêutica. Não sei qual seja a diferença entre
"sabedoria" e "ser sábio": sei é que me é indiferente sabê-lo
ou ignorá-lo. Diz-me: quando ficar a saber a distinção
LIVRO XX
entre "sabedoria" e "ser sábio'', passarei a ser sábio? Porquê
então enredar-me entre os termos da sabedoria de preferência (Cartas 118-124)
aos seus actos ? Faz com que eu seja mais forte, mais
seguro, coloca-me à altura do destino, ou acima dele: Poderei
118
estar acima do destino se encaminhar para esse fim todos
os meus estudos. Exiges-me que aumente o ritmo das minhas cartas. 1
Façamos as contas: verás que não estou em dívida para
contigo. Tinha ficado acordado entre nós que as tuas car-
tas precederiam as minhas, ou seja, tu escrevias-me e eu
respondia. Apesar disto não vou fazer-me difícil, pois sei
que serás um devedor de confiança ! Cá estou então a
escrever-te, antecipadamente, mas sem fazer o que Cícero,
esse mestre da eloquência, pedia a Ático que fizesse: que,
mesmo sem ter assunto, escrevesse o que lhe viesse à ideia 1•
Comigo nunca haverá falta de matéria a desenvolver. Já 2
sem falar daqueles temas que preenchem as cartas de
Cícero: qual o candidato em campanha eleitoral; quem se
apresenta como candidato de um grupo, e quem o faz
contando apenas consigo mesmo; quem procura aceder ao
consulado com esperança no auxílio de César, quem se
apoia em Pompeio, quem se fia no poder da corrupção;
até que ponto Cecília é um agiota implacável, ele, a quem
nem os parentes conseguem arrancar uma moeda por

1
Cícero, ad Atticum, I, 12, 4.

658 659
menos de doze por cento de juro !2 É mais importante
cuidar dos nossos próprios males que dos alheios: ana-
1 Aqui tens o que posso dizer-te constantemente, a maté- 5
ria que poderei estar sempre a debater, pois ambos vemos
lisarmo-nos com o maior empenho, verificarmos a quantas à nossa roda inúmeros milhares de pessoas inquietas que,
situações somos candidatos... e não nos deixarmos eleger ! a fim de obterem algo de altamente nocivo, andam com
3 Isto, meu caro Lucílio, é que se chama proceder com perseverança a praticar o mal, sempre à procura de coisas
nobreza, agir com segurança e liberdade: nada pedirmos que logo a seguir deixam de lhes interessar, ou mesmo as
para nós, atravessar incólumes todos os comícios da for- enchem de repulsa ! Já viste alguém contentar-se com uma 6
tuna ! Quando, convocadas todas as tribos, os candidatos, coisa que, antes de a obter, lhe parecia mais que sufi-
cada um por seu lado, se angustiam com o resultado das ciente ? A felicidade, ao contrário da opinião corrente, não
eleições - um vai prometendo directamente dinheiro aos é ambiciosa, mas sim modesta, e por isso mesmo nunca
eventuais votantes, outro faz o mesmo por intermédio de sacia ninguém. Tu pensas que aquilo que satisfaz o vulgo
um testa-de-ferro, outro cobre de beijos as mãos daqueles é elevado porque ainda estás longe da perfeição estóica;
mesmos a quem, caso seja eleito, não consentirá que lhe para quem a alcançou, tudo isso é absolutamente rasteiro !
apertem a mão, mas todos aguardam com ansiedade a Minto: para quem começou a subir até esse nível, pois o
proclamação oficial dos resultados - , já imaginaste como ponto que tu pensas ser já o mais alto não passa de um
é delicioso ficar à margem a observar toda essa negociata, degrau. Toda a gente é infelizmente confundida pela igno- 7
4 sem pretender comprar ou vender nada? Maior, muito rância da verdade. Enganada pela opinião vulgar, procura
maior satisfação ainda terá quem não observar à distância como se fossem bens certas coisas que, depois de muito
apenas os comícios pretoriais ou consulares, mas também penar para as conseguir, verifica serem nocivas, inúteis ou
esses outros, bem mais importantes, em que todos os inferiores ao que esperava. A maior parte das pessoas
homens se dirigem à fortuna com pedidos: um quer a sente admiração por coisas que ··só ao fim de algum tempo
honraria anual de uma magistratura, outro uma forma se revelam ilusórias; e assim é que o vulgo toma por bom
vitalícia de poder, outro o sucesso na guerra ·e o conse- o que apenas parece grande.
quente triunfo, outro a riqueza, outro um casamento e Para que o mesmo nos não suceda a nós, vamos 8
filhos, outro a saúde para si e para os seus ! Só uma investigar o que é o bem. As concepções sobre o bem são
grande alma será capaz de nada pedir, de nada implorar, diversas, como diversas são as definições que cada filósofo
de, pelo contrário, dizer: "Nada me interessas, Fortuna! dele dá. Alguns definem-no dizendo que "o bem é aquilo
Estou fora do teu alcance. Sei bem como tu repeles os que alicia as almas, que as atrai até si". A isto objectare-
Catões e exaltas os Vatínios ! Nada peço para mim." Cha- mos desde logo: e se atrai, sim, mas para a desgraça ?
ma-se a isto cortar pela base o poder da Fortuna. Sabes bem como muitos males são sedutores. Há uma
grande diferença entre a verdade e a aparência da ver-
dade. Por isso mesmo o bem é indissociável da verdade,
2 Cícero, ad Atticum, I, 12, 1. pois não pode ser boa uma coisa não verdadeira. Mas

660 661
aquilo que atrai insidiosamente até si tem somente a apa- Ainda outros filósofos propuseram esta definição: "Um 12
rência de verdade: insinua-se, seduz, alicia. Outros pensa- bem é tudo aquilo que é conforme à natureza". Repara
9 dores propuseram esta definição: "O bem é tudo quanto com atenção no que estou dizendo: tudo quanto é bom é
desperta a vontade de si mesmo, que provoca um movi- conforme à natureza; mas isto não implica que tudo o que
mento da alma na sua direcção". Também aqui temos é conforme à natureza seja um bem. Há muita coisa con-
uma objecção a fazer: há muitas coisas que provocam um forme à natureza, mas tão insignificante que nem chega a
movimento da alma mas que, tornando-se apetecíveis, redun- merecer o nome de bem; coisas ligeiras, em suma, irrele-
dam em detrimento de quem as apetece. Parece-me assaz vantes. Ora, um bem não pode ser diminuto e irrelevante,
melhor esta outra definição: "O bem é aquilo que des- pois enquanto for diminuto não chega a ser um bem, e
perta na alma um movimento na sua direcção conforme à quando começa a ser um bem cessa de ser insignificante.
natureza e que só devemos procurar obter quando começa Por que critério se reconhece um bem ? Quando é con-
a tornar-se merecedor desse empenho". Isto é, quando já forme à natureza de uma maneira absoluta. "Tu dizes que 13
acedeu à categoria de bem moral; o bem moral, com todo o bem é conforme à natureza, pois tal é a sua pro-
10 efeito, é aquilo que é totalmente desejável. Não quero dei- priedade. Dizes depois que há certas coisas conformes à
xar pàssar o ensejo de indicar a diferença entre o bem em natureza que não são bens. Mas porquê, afinal, é que
geral e o bem moral. Ambas as noções têm algo de aquele é um bem e estas outras coisas não o são? Se um
comum e mesmo indissociável : nada pode ser considerado e outras participam de um traço fundamental comum -
um bem se não tiver uma parcela de bem moral, e o bem o serem conformes à natureza - de que modo é que
moral é indiscutivelmente um bem. Qual é então a distin- aquele adquire uma propriedade que estas não possuem?"
ção entre as duas categorias ? O bem moral é o bem abso- Graças à sua própria magnitude. Não te dou novidade 14
luto, no qual se realiza totalmente a felicidade, e graças ao alguma se disser que há coisas' que, ao crescer, se trans-
contacto dele todas as outras coisas se podem tornar for- mutam. À medida que um ser humano vai evoluindo, de
11 mas de bem. Exemplificando: há coisas que em si nem recém-nascido até ao estado adulto, dá-se uma alteração
são boas nem são más, tais como o serviço militar, a car- nas suas propriedades: começou por ser irracional, depois
reira diplomática, a jurisprudência. Se estas tarefas forem torna-se racional. Com o crescimento, certas coisas não
realizadas conformemente ao bem moral, começam a tornar- mudam apenas de tamanho, mudam também de natureza.
-se bens e passam, de indiferentes, para a categoria do bem. Vais objectar-me que "uma coisa não se torna diferente 15
O bem, em geral, depende de estar ou não associado ao por se tornar maior. Quer enchas de vinho uma garrafa
bem moral; o bem moral é em si mesmo o bem; o bem ou um barril, o resultado é o mesmo: em ambos os reci-
em geral está dependente do bem moral, enquanto o pientes as propriedades do vinho são as mesmas. Tam-
bem moral depende apenas de si. Tudo quanto é sim- bém o sabor de um bocadinho de mel é o mesmo que o
plesmente um bem poderia ter sido um mal; o bem moral, de uma grande quantidade. " Esses exemplos não são perti-
pelo contrário, nunca poderia deixar de ter sido um bem. nentes: no vinho ou no mel há uma qualidade que per-

662 663
manece idêntica e que não se altera se aumentarmos a vez ? Podes abrir a bolsa, é uma simples questão de lucro.
16 quantidade. Coisas há que, embora aumentando em quan- Vou ensinar-te como poderás tornar-te rico num abrir e
tidade, conservam a sua espécie e as suas propriedades; fechar de olhos. Como ficaste desejoso de ouvir a lição ! E
em outras, após muitos acrescentos, surge mais um acres- fazes bem: vou levar-te ao maior dos tesouros pelo cami-
cento final que as transforma e dá ao conjunto um carác- nho mais curto. Vais, no entanto, necessitar de um cre-
ter diferente do que tivera até então. Um arco de abóbada dor: se queres dedicar-te ao negócio, terás de pedir dinheiro
depende de uma só pedra: aquela que se introduz como emprestado. Eu não pretendo, porém, que o faças por
cunha no meio das arcadas laterais e, pelo seu próprio peso, intermédio de um fiador, nem que o teu nome ande aí na
as mantém em posição. Por que motivo esse último acres- boca dos prestamistas. Vou pôr à tua disposição aquele 2
cento, embora quantitativamente diminuto, assume um credor que Catão recomenda: nunca peças emprestado se-
papel tão decisivo ? Porque faz algo mais do que aumen- não a ti próprio ! Por pouco que seja, se pedirmos a nós
17 tar a quantidade: traz a plenitude. Durante o processo há mesmos aquilo que nos falta, esse pouco será suficiente.
coisas que perdem a forma antiga e revestem uma nova. Não há qualquer diferença, Lucílio amigo, entre carecer de
Quando o nosso espírito dilata qualquer coisa intermina- desejos ou ter muitas posses: em ambos os casos o essen-
velmente, e acaba por cansar-se com as proporções que o cial da questão está em não sentirmos angústias. Eu não
defrontam, começa a dizer que está ante uma coisa infi- te recomendo que recuses a ti próprio as necessidades
nita; ou seja, uma coisa que a princípio parecia grande, naturais, até porque a natureza é obstinada, e tem exigên-
sim, mas finita, reveste um aspecto muito diferente do cias impossíveis de não satisfazer. Recomendo-te, sim, é
que primitivamente tivera. Também pode acontecer que que te convenças do carácter precário e não imprescindível
nós queiramos cortar um objecto e a empresa se revele de tudo quanto excede as necessidades naturais. Por exem- 3
difícil; por fim, e à medida que as dificuldades crescem, plo, se temos fome precisamos de comer. Mas que coma-
verifica-se que o objecto é indivisível. Semelhantemente, mos pão de segunda ou pão de qualidade extra, isso -já
não tem a ver com a natureza, que apenas exige de nós
também passamos de um movimento lento e quase impercep-
que enchamos o estômago sem cuidar de requintes. Se
tÍvel até à imobilidade. De uma forma idêntica, há algo que
estamos com sede também não importa nada à natureza
é conforme à natureza: aumentando de proporções, acaba
que vamos buscar água ao tanque mais próximo ou que,
por assumir outras propriedades, e transforma-se em bem.
pelo contrário, a guardemos num reservatório rodeado de
neve para a mantermos artificialmente fresca. A natureza
119 apenas reclama que matemos a sede. Que bebamos por
um copo em ouro, em cristal ou em mirra, ou por um
1 Sempre que descubro algo de interessante não fico à púcaro de Tíbur, ou pela concha das mãos - tudo isso é
espera que tu me digas: "toca a partilhar" ! Eu mesmo me irrelevante. Toma em consideração a finalidade última de 4
encarrego de o fazer. Queres saber o que descobri desta cada coisa, e assim evitarás o supérfluo. Estou cheio de fome :

664 46 665
pois bem, estendo a mão para o alimento mais próximo, é muito o que é insuficiente. Depois de vencer Dario e
e a própria fome servirá de condimento àquilo que eu conquistar a Índia, Alexandre continua pobre. Estou a
levar à boca. Quem está esfomeado não se faz esquisito ! mentir ? Ele continuou à procura de mais terra a conquis-
5 Imagino que estás ansioso por saber qual a ideia que tar; aventurou-se por mares desconhecidos, lançou novas
neste momento faz as minhas delícias. É esta máxima, armadas pelos oceanos fora e, por assim dizer, despedaçou
que, do meu ponto de vista, é excelente: "O sábio é o as barreiras do mundo. O que basta à natureza foi insufi- 8
mais enérgico pesquisador das riquezas naturais". "Vens ciente para este homem! Descobriu-se alguém que, depois
banquetear-me com uma travessa vazia.. '" - d"'iras. - "Que- de ter tudo, ainda ambicionasse mais : tal é a cegueira da
res ludibriar-me? Eu já estava com os cofres abertos, já mente humana, tanto os homens, à medida que vão avan-
me punha a pensar em que mares me aventuraria a nego- çando, se esquecem dos seus primeiros passos ! Este ho-
ciar, de que impostos do Estado me faria arrendatário, que mem, ainda há pouco senhor contestado de um insignifi-
mercadorias me dedicaria a importar! Prometes-me rique- cante território, atinge os confins da terra e entristece-se
zas, e ensinas-me a aceitar a pobreza: isso é querer intru- por ter de regressar pelo mesmo caminho !
jar-me!" Queres tu dizer que chamas pobre a um homem O dinheiro nunca fez a riqueza de ninguém, pelo con- 9
a quem nada falta? "Ora! A quem nada falta devido à trário, só faz com que cada um deseje ainda mais do que já
sua extrema capacidade de renúncia, e não graças aos tem. E sabes tu qual a causa deste fenómeno ? É que
benefícios da fortuna!" Por outras palavras: tu não consi- quanto mais dinheiro se tem mais fácil se torna multipli-
deras rico um tal homem apenas porque as suas riquezas car esses capitais. Em conclusão: vai buscar, à tua escolha,
qualquer desses homens cujo nome se cita a par dos de
são, por natureza, ilimitadas ? O que achas tu preferível:
Crasso ou de Lícino; ele que traga os seus livros de con-
6 ter muito, ou ter o suficiente ? Quem muito tem, mais
tas, e faça o cálculo do capital que já possui e também do
deseja, o que só prova que ainda não tem o suficiente;
que espera vir a obter. Se confias na minha opinião, tal
quem tem o suficiente consegue qualquer coisa que um
homem é pobre; se preferes seguir a tua, poderá vir a ser
rico nunca atinge: o termo dos seus desejos. Não consideras pobre um dia. Em contrapartida, um homem que se adapte 10
isto uma riqueza só porque, por sua causa, nunca ninguém às estritas ~xigências da natureza não só se não sente
foi proscrito ? Porque, por sua causa, nunca um filho pobre como nem sequer receia a pobreza. E, para que sai-
envenenou o pai nem uma mulher o marido ? Porque em bas até que ponto é difícil limitarmos os nossos bens ao
tempo de guerra permanece em segurança mas em tempo estritamente natural, digo-te que até o sábio - que aca-
de paz não dá juros ? Porque não é arriscado possuí-la bámos de reduzir ao mínimo indispensável e que, por
nem trabalhoso administrá-la? isso, tu achas ser pobre ! - possui algo de supérfluo. A 11
7 "Acho que é ter poucas posses limitar-se a não sentir generalidade das pessoas, porém, deixa-se cegar e fascinar
frio, nem fome, nem sede!" Júpiter não possui mais do que pela riqueza material - sempre que vê alguma casa des-
isso ! O que é suficiente nunca é pouco, tal como nunca pender enorme quantidade de numerário, recobrir-se de

666 667
1

ouro até ao tecto ou dispor de wn grupo de escravos por isso toda a razão Horácio quando diz que a sede não
seleccionados pela presteza física ou notáveis pela apresen- se interessa pela espécie de copo ou pela elegância da mão
tação. A felicidade de toda esta gente está totalmente virada que o serve. Se achas que têm para ti muita importância
para o exterior, ao passo que a beatitude do sábio - os cabelos encaracolados do escravo, ou a transparência do
eximido por nós aos olhares do público e aos acasos da copo que te põe à frente, é porque não estás com sede.
12 fortuna - é exclusivamente interior. Pelo que respeita Entre outros benefícios que devemos à natureza conta-se 15
àqueles que, sob o falso nome de riqueza, se dedicam às este, e fundamental, de prover sem artifícios a quanto nos
ocupações sem fim de uma real miséria, esses são possui- é indispensável. Apenas no que é supérfluo nos podemos
dores de riquezas no mesmo sentido em que nós dizemos permitir a escolha, recusando isto ou aquilo como "pouco
ter febre quando, na realidade, a febre é que nos tem a bonito'', "pouco requintado" ou "desagradável à vista" ! A
nós! Também costumamos usar a expressão inversa, di- preocupação do criador do universo ao determinar as leis
zendo: "A febre apoderou-se dele"; pois bem, deveríamos da nossa existência foi a nossa saúde, não os hábitos sofis-
dizer igualmente: "As riquezas apoderaram-se dele" ! ticados; e enquanto o indispensável à saúde se encontra à
Nenhum conselho me parece mais útil para te dar do nossa total disposição, os requintes do luxo só os podemos
que este (e que nunca é demais repetir!): limita sempre obter a troco de penas e angústias. Tiremos, portanto, 16
tudo aos desejos naturais que tu podes satisfazer com pafrido deste inestimável benefício que devemos à natu-
pouca ou nenhwna despesa, evitando, contudo, confundir reza; pensemos que a nenhum outro título ela merece
13 vícios com desejos. Porventura te interessa saber em que mais a nossa gratidão do que por nos facultar o uso sem
tipo de mesa, em que baixela de prata te é servida a repugnância de quanto podemos naturalmente desejar !
refeição, ou se os escravos te servem com bom ritmo e
solicitude ? A natureza só necessita de wna coisa: a comida. 120 /
"AcaJO, quando a sede te queima a boca, vais buscar
copos de ouro ? Se tens fome recusas tudo que não Na tua carta, depois de teres divagado por várias ques- 1
seja pavão ou rodovalho ?" 3 tões menores, acabaste por fixar-te nwna que desejas ver
14 A fome dispensa pretensões, apenas reclama ser saciada, tratada por completo: como é que nós adquirimos as no-
sem cuidar grandemente com quê. O triste prazer da gula ções de bem e de moral. Em outros pensadores estas duas
vive atormentado na ânsia de continuar com vontade de noções são distintas; para nós, estóicos, são apenas aspec-
comer mesmo quando saciado, de buscar o modo como tos de wna realidade única. Já me explico melhor. Consi- 2
atulhar, e não apenas encher o estômago, de achar maneira deram alguns como "bem" tudo aquilo que é útil, e, con-
de excitar a sede extinta logo à primeira golada ! Tem, sequentemente, chamam "bem" à riqueza, aos cavalos, ao
vinho ou ao calçado - de .tal modo está aviltada neles a
ideia de bem que até a fazem descer a estas coisas mes-
3 Horácio, Sat., I, 2, 114-6. quinhas ! Por "moralidade" entendem a noção teórica dos

668 669
deveres imperativos, tais como cuidar religiosamente do demo-nos conta da saúde do corpo: a partir daí, deduzi-
pai na velhice, ajudar um amigo na miséria, mostrar cora- mos a saúde da alma. Demo-nos conta de uma certa força
gem numa expedição militar, exprimir opiniões com pru- do corpo: a partir daí deduzimos a existência de uma
3 dência e moderação. Para nós, como disse, aquelas· duas energia da alma. Por vezes contemplámos com ~dmiração
noções são formas de uma só realidade. Nada é um bem certos actos de bondade, de humanidade, de coragem, e
se não for conforme à moral; tudo quanto é conforme à começámos a apreciar tais actos como modelares. Por vezes,
moral é necessariamente um bem. Penso que será dispen- nesses actos introduziam-se elementos condenáveis que,
sável acrescentar qual a diferença entre ambas as noÇões, todavia, se mantinham escondidos sob o aspecto fulgu-
pois já muitas vezes me pronunciei sobre o assunto. Acrescen- rante de um gesto excepcional: habituámo-nos a disfarçá-los.
tarei somente este ponto: nós nunca tomamos como um A natureza leva-nos a exagerar o que merece louvores e
bem qualquer coisa que possa ser usada para o mal. Ora tu toda a gente, ao exaltar a glória de alguém, ultrapassa
bem vês a quantidade de gente que usa para o mal a sempre a verdade: foi assim, contudo, que criámos a ima-
riqueza, a posição social, a força física ! gem de um bem inexcedível. Fabrício rejeitou o ouro de 6
Vamos lá, então, ·ao problema sobre o qual me pedes Pirro na convicção de que ser capaz de despr~zar as rique-
que te fale, ou seja, como é que nós adquirimos a pri- zas de um rei vale mais do que ter um reino. O mesmo
4 meira noção de "bem" e de "moral". A natureza não nos Fabrício, quando o médico de Pirro se lhe ofereceu para
podia ter dado estas noções: ela apenas nos proporcionou envenenar o rei, mandou pr~venir Pirro contra a traição que
as condições para a ciência, e não a própria ciência. Alguns se preparava. A mesma alma foi capaz de se não deixar
dizem que nós "tropeçámos" nessa noção - o que é abso- vencer pelo ouro nem de querer vencer pelo veneno.
lutamente incrível, imaginar .que a visão da virtude foi ao Sentimo-nos cheios de admiração por este grande homem
encontro de alguém por puro acaso ! Em nossa opinião, que se não deixou aliciar nem pelas promessas do rei
foi a observação e a comparação de diversos fenómenos nem pelas dos traidores ao rei, firme no seu apego ao
que nos levou à conclusão; na nossa escola, entendemos que ideal do bem, e mesmo em plena guerra conservando as
se chegou aos conceitos de "moral" e de "bem" por meio mãos limpas - coisa bem difícil de conseguir! - ; este
da analogia4 • Já que os gramáticos latinos deram direito de homem que acreditava não ser possível fazer certas coisas
cidade a este termo de "analogia'', entendo que o não sem sacrilégio até mesmo a um inimigo, e que, conser-
devemos proscrever, mas sim usá-lo de pleno direito. vando a mais severa pobreza - seu título de glória! -,
Empregá-lo-ei, portanto, não já como um vocábulo de recusou com o mesmo espírito tanto o ouro como o vene-
importação, mas sim como palavra de uso corrente. Veja- no. "Vive graças a mim, Pirro", - dizia ele - "aproveita
5 mos agora em que consiste neste caso a analogia. Nós agora do que não há muito te aborrecia: Fabrício não se
deixa corro;,per !" Horácio Cocles ocupou sozinho a entra- 7
da estreita da ponte e ordenou que a mesma fosse des-
4
Cf. S. VF., III, 72. truída para impedir o caminho ao inimigo, embora assim

670 671
ficasse com a retirada cortada; entretanto, foi resistindo a o homem. Em contrapartida, vemos um outro mostrar-se 10
todos os ataques até se ouvir o madeiramento da ponte generoso para com os amigos e tolerante para com os
ruir com fragor. Olhou então para trás e, vendo que com inimigos, tratando com a mais completa isenção os assun-
perigo da vida livrara do perigo a pátria, gritou: "Quem tos do Estado e os seus próprios, e mostrando-se tão
quiser que venha atrás de mim!", e atirou-se de cabeça ao capaz de aguentar os pesados encargos impostos como de
rio, lutando na corrente com tanto denodo para salvar as revelar capacidade para agir no momento oportuno. Vimo-lo
armas como para salvar a vida. Recoberto gloriosamente também distribuir dádivas a mãos ambas quando era
das suas armas vitoriosas, voltou a Roma tão seguro de si necessário concedê-las, vimo-lo mostrar inabalável persis-
8 como se tivesse vindo pela ponte ! São actos como estes tência, suprindo com força de ânimo o cansaço físico,
que nos fazem conceber o que seja a virtude. quando dele se exigia um esforço prolongado. Além disso
Vou acrescentar uma observação que poderá talvez pare- conservava-se em todos os seus actos sempre igual a si
cer estranha: por vezes, um mal real apresenta o aspecto mesmo, homem bom não por cálculo mas por o seu
de bem moral, e igualmente a perfeição moral evidencia- carácter o levar não só a ser capaz de agir segundo o bem
-se sob um aspecto diametralmente oposto. Como sabes, mas, mais do que isso, a ser incapaz de agir sem ser
há vícios que estão muito próximo da virtude e, mesmo segundo o bem. Num tal homem verificamos a existência 11
em indivíduos completamente destituídos de escrúpulos, da virtude levada à perfeição. A virtude subdivide-se em
pode notar-se uma certa afinidade com o bem: por exem- quatro aspectos: refrear os desejos, dominar o medo, tomar
plo, o esbanjamento pode passar por generosidade, apesar as decisões adequadas, dar a cada um o que lhe é devido 5•
da enorme diferença que há entre saber dar e não saber Concebemos assim as noções de temperança, de coragem,
conservar. Muitos homens há, Lucílio, digo-te eu, que, mais de prudência e de justiça, cada qual comportando os seus
do que dar, apenas dissipam, pois eu não considero gene- deveres específicos. A partir de quê, então, concebemos
roso quem desbarata os seus próprios bens. A indiferença nós a virtude? O que no-la revela é a ordem por ela
pode passar por amabilidade, e a inconsciência por cora-
própria estabelecida, o decoro, a firmeza de princípios, a total
9 gem. É esta afinidade que nos obriga a tomar atenção e a
harmonia de todos os seus actos, a grandeza que a eleva
bem distinguir comportamentos semelhantes na aparência
acima de todas as contingências. A partir daqui concebe-
mas imensamente distintos na realidade. Ao observarmos
mos o ideal de uma vida feliz, fluindo segundo um curso
homens que se notabilizaram por alguma acção fora do
inalterável, com total domínio sobre si mesma. E como é 12
comum, começamos a reparar que um deles, por exemplo,
que este ideal aparece aos nossos olhos? Vou dizer-te.
realizou algo com grande entusiasmo e força de carácter
- mas que isso foi uma acção isolada. Vemos um outro
ser corajoso na guerra mas cobarde no foro, suportar com 5
Ou seja, a temperança (aw</JpoaÍ!v71, temperantia), a coragem (àvopeia,
dignidade a pobreza mas rebaixar-se ante as más-línguas. fortitudo), a justiça (OirnwaÍ!v71, iustitia), a prudência (</Jpóv71al>, prudentia), cf.
Em tal situação enaltecemos o acto, mas desprezamos S. V.F., I, 200. V. ainda Cícero, de officiis, I, 5.

672 673
O homem perfeito, possuidor da virtude, . nunca se queixa problemas que o nosso corpo nos dá ? Ora nos queixamos 16
da fortuna, nunca aceita os acontecimentos de mau hwnor, da cabeça, ora do estômago, do peito ou da garganta;
pelo contrário, convicto de ser wn cidadão do universo, wnas vezes são os nervos, outras os pés que nos atormen-
wn soldado pronto a tudo, aceita as dificuldades como tam, hoje é a diarreia, amanhã a expectoração; por vezes
wna missão que lhes é confiada. Não se revolta ante as temos sangue em excesso, outras a menos: De wn lado e
desgraças como se elas fossem wn mal originado pelo de outro nos empurram, tentando pôr-nos na rua! Isto é 17
azar, mas como wna tarefa de que ele é encarregado. precisamente o que costuma suceder quando nos instala-
"Suceda o que suceder", - diz ele - "o caso é comigo; mos em casa alheia ! E, no entanto, embora nos tenha
por muito áspera e dura que seja a situação, tenho de dar cabido em sorte um corpo prestes a desfazer-se, fazemos
13 o meu melhor!" Um homem que nunca se queixa dos planos para a eternidade, projectamos as nossas esperan-
seus males nem se lamenta do destino, temos forçosa- ças até ao máximo limite possível da vida humana, sem
mente de julgá-lo um grande homem! Tal homem dá haver riqueza ou poder que nos sacie ! Que pode haver de
a conhecer a muitos outros a massa de que é feito, brilha
mais impudente e estúpido? Nada satisfaz estes seres que
tal como um archote no meio das trevas, atrai para junto
em breve hão-de morrer, que já estão mesmo a morrer,
de si todas as almas, dada a sua impassível tranquilidade,
pois cada dia nos aproxima mais do último, e cada hora
a sua completa equanimidade para com o divino e o
nos empurra a todos até ao ponto de onde cairemos. Vê 18
14 humano. Tal homem possui uma alma perfeita, levada
bem a cegueira das nossas mentes : o que chamamos
ao máximo das suas potencialidades, tal que acima dela
nada há senão a inteligência divina, uma parte da qual, futuro já está acontecendo, uma boa parte dele já pertence
aliás, transitou até este peito mortal. E nada há de mais mesmo ao passado; o tempo que já vivemos voltou ao
divino para o homem do que meditar na sua mortalidade, ponto onde estava antes de t_ermos nascido. Laboramos
consciencializar-se de que o homem nasce para ao fim de em erro ao recear o nosso último dia, já que cada dia dá
algwn tempo deixar esta vida, perceber que o nosso corpo o seu contributo à morte. O último passo que damos
não é uma morada fixa, mas uma estalagem onde só se antes de cair não é a causa da ~ossa debilidade, é apenas
pode permanecer por breve tempo, uma estalagem de que o ponto em que ela se manifesta; o último dia empurra-
é preciso sair quando percebemos que estamos a ser pesa- -nos para a morte, mas em todos os outros nos fomos
dos ao estalajadeiro. aproximando dela; a morte vai-nos colhendo gradualmente,
15 A melhor prova, caro Lucílio, de que a alma provém não nos arrebata de repente. Por isso mesmo wna grande
de alguma origem elevada é ela ser capaz de julgar limi- alma, consciente da sua natureza superior, esforça-se por
tado e sem horizontes este espaço em que se move, e ser se comportar com dignidade e diligência no posto para
capaz de não recear sair daqui, porquanto, lembrando-se onde é destacada, sem tomar como seu nenhwn dos objectos
bem de onde veio, sabe igualmente para onde irá. Não que a rodeiam, mas, como estrangeira em trânsito que é,
nos damos nós conta das limitações que nos afligem, dos servindo-se deles apenas como de coisas emprestadas.

674 675
19 Deparando nós com um homem assim dotado de fir- impantes de orgulho até se tornarem odiosos, ora se enco-
meza de princípios, impossível seria não delinearmos a lhem e humilham ao mais baixo grau; ora dissipam for-
imagem de um carácter fora do comum, no caso de, como tunas, ora as acumulam avaramente. Nada denuncia melhor 22
acima disse, tal homem permanecer igual a si mesmo e a falta de princípios morais do que este assumir alternado
provar assim a realidade da sua grandeza. Os princípios de diferentes rostos que, para cúmulo da desfaçatez, são,
mantêm-se constantes, as falsas aparências pouco duram. cada um deles, sempre diversos de si mesmos. Deves acei-
Certas pessoas comportam-se alternadamente como Vatí- tar como um caso de excepção alguém que só desempe-
nios ou como Catões. Umas vezes até Cúria lhes parece nhe um papel na vida. Na realidade, para além do sábio,
pouco severo, Fabrício pouco pobre, Tuberão pouco frugal ninguém se contenta em fazer só uma personagem, todos
e contente com a sua humilde baixela; outras vezes rivali- estamos em constante mudança. Ora nos damos ares de
zam com as riquezas de Lícino, os banquetes de Apício, os gente frugal e austera, ora de dissipadores e libertinos,
20 luxos de Mecenas. Não há melhor indício de um espírito para logo a seguir pormos no rosto a máscara oposta
mal formado do que a instabilidade e a permanente osci- àquela que acabámos de tirar. Exige portanto, de ti pró-
lação entre a afectação pela virtude e o amor pelo vício. prio que sejas até ao fim da vida aquilo que decidiste ser,
e faz com que os outros, se não te enaltecerem, possam
"Ora possuía duzentos escravos, ora só dez; ora / Ó
pelo menos reconhecer-te. De indivíduos que ainda ontem
falava de reis, de tetrarcas, de luxos e grandezas, ora
encontrámos já hoje podemos ter o direito de perguntar:
exclamava: 'Só quero uma mesa de três pés, · uma
Quem é este?", - tal a mudança que neles se operou.
simples concha de sal, e uma toga grosseira que me
proteja do frio!' Deúe alguém um milhão a este
homem frugal e sem ambições - e dentro de cinco 121
dias nem uma moeda restava... " 6
Vais zangar-te comigo, já estou a ver, quando te expu- 1
21 Quantos homens não há · semelhantes à personagem des- ser um pequeno problema que tenho para hoje e à .roda
tes versos de Horácio Flaco, sempre instáveis, praticamente do qual gastei bastante tempo. E logo a seguir gritarás:
irreconhecíveis, de tal modo erram ao sabor de ventos "Mas que tem isto a ver com a moral?" Grita à tua von-
_contrários! Muitos, disse eu? São quase todos! Ninguém tade, mas deixa que te apresente primeiro as autoridades
há que diariamente não mude de intenções e de objecti- com que terás de haver-te: Posidónio e Arquidemo 7, que
vos: ora querem um casamento legítimo, ora preferem · de bom grado aceitarão litigar contigo. Além disso, deixa
uma amante; ora se portam como tiranos, ora se mos- que te diga: nem tudo quanto diz respeito aos costumes
tram mais obsequiosos do que um escravo; ora andam

7
V. os frs. conservados de Arquidemo (como escreve Séneca) ou Arque-
6
Horácio, Sat., I, 3, 11-17. demo (segundo outras fontes) em S. V.F. III, pp. 262-4.

676 677
2 contribui para o aperfeiçoamento moral. Há questões que era este: será que todos os animais têm a noção das suas
respeitam à alimentação dos homens, outras aos seus exer- faculdades naturais? A respostã deverá ser positiva, a jul-
cícios físicos, ao vestuário, à educação ou aos lazeres : todas elas gar pela correcção e presteza com que eles movem os
têm como objectivo o homem, embora nem todas concor- membros, tal como se para tanto fossem especialmente
ram para lhe melhorar o carácter. E mesmo no que toca adestrados; de facto, todo o animal tem um perfeito domí-
aos costumes humanos há vários métodos para os abor- nio das várias partes do corpo. O operário maneja com à-
dar: uns visam corrigi-los e ordená-los, outros investigar a -vontade as suas ferramentas, o piloto faz girar o leme na
3 sua natureza e origem. Quando eu investigo por que perfeição, o pintor aplica sem hesitar as múltiplas e varia-
razão a natureza produziu a espécie humana e lhe deu um das cores de que dispõe para pintar um retrato e, entre a cera
lugar proeminente entre todos os animais, acaso julgas tu e o quadro, os olhos e as mãos movem-se com toda a agi-
que eu perco de vista a moral? Se o fazes, estás errado. lidade; do mesmo modo, também o animal sabe fazer do
Como poderás tu saber quais os costumes que devemos seu corpo tudo quanto quer. Habitualmente admiramos os 6
adaptar se não averiguares primeiro qual o bem supremo dançarinos que sabem transmitir com as mãos toda a gama
do homem nem perscrutares a sua natureza? Só poderás de situações e sentimentos e imitar com gestos a fluidez
ter a noção clara do que deverás fazer e do que deverás evitar do discurso: esta faculdade que a arte lhes deu possuem-na
depois de teres estudado o que a natureza exige de ti. os animais por natureza. Nenhum animal sente dificul-
4 uo que eu pretendo" - dirás - ué saber como pôr cobro dade em mover os seus membros, nem hesita no modo
aos meus desejos e temores. Liberta-me de superstições; de utilizá-los. Assim que nascem já sabem como movê-los;
ensina-me até que ponto é instável e vazio de sentido vêm ao mundo dotados desse conhecimento, nascem por
aquilo a que chamamos a 'felicidade', à qual nada custa assim dizer já treinados.
acrescentar um simples prefixo!" Descansa que hei- Há quem contraponha: uos animais movem conve- 7
-de satisfazer amplamente ·o teu desejo; hei-de enaltecer as nientemente os membros porque, se os movessem de modo
virtudes e verberar energicamente o vício. Ainda que alguns diferente, sentiriam dor. Ou seja, para utilizar a vossa
me acusem de insistir com demasiada virulência neste pon- expressão, eles são forçados: é o medo e não a vontade
to, nunca deixarei de pôr em causa a maldade, de refrear que os obriga ao movimento certo." Este raciocínio é falso:
as mais violentas paixões, de dominar os prazeres que os animais apenas se movem desajeitadamente quando são
inevitavelmente terminam na dor, e de contestar as ambi- constrangidos, se se movem espontaneamente fazem-no com
ções habituais dos homens. E como não o fazer, quando · toda a destreza. E tanto não é verdade que é o medo da
vejo que os maiores males provêm dos nossos próprios dor que os determina que, mesmo sob a acção da dor, eles
desejos e que as nossas lamentações nascem do que antes se esforçam por realizar os seus movimentos naturais. O
saudámos com efusão ? ! mesmo sucede com a criança que decide pôr-se em pé, 8
5 Entretanto, porém, permite-me que elucide uma ques- e se habitua a equilibrar-se; logo começa a experimentar
tão à primeira vista algo marginal. O problema em causa as suas forças, cai e levanta-se, chorando tantas vezes até

678 679
que, apesar da dor, adquire a prática da sua posição natu- nição de "constituição natural", e não essa própria consti-
ral. Certos animais dotados de carapaça, se os deitarmos tuição natural. É mais fácil intuir do que explicar o que é
de costas torcem-se todos, agitam e esticam as patas até a natureza. Isto é, a criança ignora o que significa "consti-
conseguirem voltar à posição normal. Uma tartaruga dei- tuição", mas dá-se conta da sua constituição natural; ignora
tada de costas não sofre dor alguma, no entanto e~tá o que seja um animal, mas sente que é um animal. Mais 12
ansiosa por voltar à sua posição natural e não pára de se ainda, ela apercebe-se de qual seja a sua constituição natu-
9 agitar até de novo se apoiar nas quatro patas. Por conse- ral de forma confusa, global e obscura. Nós próprios sabe-
guinte, todos os animais têm a noção das suas faculdades mos que temos uma alma, mas ignoramos o que é a
naturais e, por isso mesmo, utilizam expeditamente os alma, onde se aloja, que atributos possui, donde provém.
membros; e a melhor prova de que eles fazem a sua Semelhante à intuição que nós temos de possuir uma
entrada na vida já com essa noção está em que todo o alma, embora dela ignoremos a natureza e a localização, é
animal se mostra imediatamente perito no uso das suas a intuição que têm os animais da sua constituição natural.
aptidões. É necessário que eles sintam a existência de algo que lhes
10 "A constituição natural é, segundo vós dizeis, uma certa permite sentir tudo o mais; é necessário que eles tenham
relação existente entre o princípio dominador da alma8 e o sentimento de algo a que obedecem, de algo que os
o corpo. Ora, como pode uma criança dar-se conta de um condiciona. Todo e qualquer de nós se apercebe da exis- 13
fenómeno tão complexo e subtil que vós mesmos tendes tência de qualquer coisa que origina os nossos movimen-
dificuldade em explicá-lo? Seria preciso que todos os ani- tos, embora sem saber que coisa é essa. Percebe em si
mais nascessem dialécticos para poderem perceber uma mesmo a existência de determinadas tendências, embora
definição que, mesmo para grande parte dos cidadãos de ignore o que elas são e donde elas provêm. Semelhante-
11 toga, permanece obscura." Esta objecção teria alguma razão mente, as crianças e os animais-- têm da parte principal do
de ser se eu tivesse dito que os animais percebiam a defi- seu ser uma certa noção, embora insuficientemente nítida
e clara.
"Vós dizeis" - prossegue o nosso antagonista - "que 14
8
A alma, que para os estóicos era um corpo (S. V.F., I, 13 7), era dividida todo o animal se adapta imediatamente à sua constituição
por Zenão em oiro partes, v. S.V.F., I, 143: "Zenão, o estóico, afirma que a alma natural, que a constituição natural do homem é racional e
comporta oiro partes, distinguindo nela o princípio dominador (ràf}yfµOVtKàv, ou que por isso o homem se adapta a ela, não enquanto
principale, como diziam os latinos), os cinco sentidos, a faculdade de linguagem
e a capacidade reprodutora". O princípio dominador, por sua vez, era entendido animal mas sim enquanto racional, uma vez que o homem
como a sede do raciocínio (S. V.F., II, 839), do pensamento (S. V.F., II, 828), da se preza a si mesmo apenas na medida em que é homem.
linguagem (S. V.F., II, 837), do movimento (S. V.F., II, 896). Dada a sua natureza Ora, como pode uma criança que ainda não é racional
corpórea não admira que os estóicos localizassem o prindpio dominador (KVpwmxrov)
no coração ( S. V.F., II, 837, 879, 885, etc.). - A carta 113, 23 mostra que os
adaptar-se a uma constituição racional?" Cada idade tem a 15
próprios estóicos, porém, nem sempre estavam de acordo quanto ao modus sua constituição própria, que difere da infância para a
operandi do princípio dominador. puberdade, a adolescência e a velhice, e todos os homens

680 681
forme te disse em cartas anteriores 9, mesmo os animais
se adaptam à constmuçao que de momento é a sua. A
novinhos, acabados de sair do útero materno ou de um
criança, por exemplo, não tem dentes: tem de adaptar-se
ovo, sabem instintivamente donde lhes pode vir o perigo e
a essa constituição. Nascem-lhe os dentes: adapta-se à nova
evitam o que lhes pode causar a morte; basta ver passar a
situação. Também a planta que há-de vir a ser espiga de
sombra das aves de rapina para que as suas presas habi-
trigo tem uma certa constituição quando ainda é verde e
tuais procurem pôr-se a salvo. Nenhum animal entra nesta
mal emerge do solo, uma outra quando ganha forças e se
vida sem conhecer desde logo o medo da morte! ·
ergue como colmo frágil mas capaz de suportar a semente,
"Mas de que mod" o - prossegue o antagonista - 19
outra ainda quando, já madura, está pronta para entregar
"pode um animal acabado de nascer possuir a noção do
à eira a espiga endurecida; seja qual for a sua constituição
que lhe é salutar ou, pelo contrário, o pode matar?" Inves-
momentânea, é a esta que se submete, é a esta que se
tiguemos primeiro se o animal possui essa noção, e não
16 adapta. Recém-nascido, criança, adolescente, velho - fases
de que modo a adquiriu. Ora, a prova de que eles pos-
diferentes da vida; e todavia eu sou o mesmo que já foi
suem tal noção está precisamente em que eles agem como
recém-nascido, criança e adolescente. Ou seja, conquanto a
se a possuíssem. 'Porque é que a galinha não foge de um
constituição de cada um de nós se vá alterando, a adapta-
"l pavão ou de um ganso mas foge de um bicho muito mais
ção própria à constituição natural permanece idêntica. A
pequeno e que ela nunca antes vira como é o milhafre?
natureza incumbe-me de cuidar de mim, e não de uma
Porque é que os pintos têm medo do gato mas não
criança, de um jovem ou de um velho. Por isso mesmo, o
temem o cão? É evidente que eles possuem um conheci-
recém-nascido adapta-se à sua actual condição de recém-
-nascido, não à sua futura condição de jovem; e mesmo mento inato, não deduzido da experiência, daquilo que
quando há uma outra fase superior a que ele deverá ace- lhes pode fazer mal, uma vez que já mostram medo
der, nem por isso a sua condição ao nascer é menos con- mesmo antes de passarem pefa experiência do perigo. E 20
17 forme à natureza. O animal começa por se interessar por não imagines tu que isto sucede por acaso: os animais só
si mesmo, porquanto necessita de um ponto central de temem os seus inimigos naturais . e nunca se esquecem de
referência. Se eu busco o prazer, é para mim que o busco. precaver-se diligentemente contra eles, antes fogem sem-
Daí o cuidado com a minha pessoa. Se eu evito a dor, é pre da mesma forma diante de tais inimigos. Além disso
em meu proveito que o faço. Daí o cuidado com a minha não se vão tornando mais medrosos à medida que vão
pessoa. E se eu faço tudo em atenção à minha pessoa é vivendo, donde se conclui que não foi a experiência que
porque o cuidado com a minha pessoa sobreleva a tudo o lhes instigou o medo, mas sim um instinto natural de
mais. Todos os animais nascem com esta tendência -
18 tendência inata, não adquirida. A natureza produz as 'suas
crias gradual e não abruptamente. E como o protector 9 Por ex., nas cartas 82, 15 ou 116, 3 Séneca alude ao instinto narural que

mais adequado é o que está mais próximo, cada animal se leva o homem ao cuidado consigo próprio. Não se conserva, todavia, nenhuma
carta em que o assunto seja sistematicamente desenvolvido.
encarrega da sua própria protecção. Por esta razão, con-
683
682
autoconservação. Os hábitos nascidos da ·experiência são coisas simultâneas a aprendizagem e a vida. Nem temos 24
tardios e de vária ordem, enquanto os dotes naturais são de nos admirar por os animais nascerem com um instinto
21 idênticos e imediatos para todos os animais. Se quiseres sem o qual seria inútil eles nascerem. A natureza dotou-os
posso dizer-te como é que cada animal é levado a com- desde logo com o equipamento indispensável à sobrevi-
preender aquilo que lhe é nocivo. O animal percebe que é vência: o instinto de autoconservação. Nenhum ser poderá
constituído de carne; e entende de imediato quais as coisas subsistir se o não quiser; este instinto, no entanto, é só
capazes de cortar, queimar ou esmagar a sua carne, e bem por si insuficiente para assegurar a sobrevivência, mas
assim quais os animais preparados para lhe fazerem mal; sem ele não haveria sobrevivência possível. Tu não encon-
forma deles assim uma imagem hostil e ameaçadora. Estes tras, todavia, em ninguém, o desprezo, nem mesmo o
processos estão interligados: de imediato o animal adapta-se desinteresse em relação a si próprio. Mesmo as criaturas
à necessidade de autoconservação e busca tudo quanto lhe é mais embrutecidas e incapazes de se expressar fazem tudo
útil, evitando o que lhe pode fazer mal. O mesmo instinto para preservar a própria existência, ainda que mais nada
natural que o leva a buscar o que lhe é útil leva-o a evitar lhes interesse neste mundo. Tu verás mesmo os seres
tudo quanto seja prejudicial; sem qualquer reflexão, sem a mais rebeldes a ajudar os outros conservarem-se atentos
mínima deliberação, o animal age segundo o que a natu-
àquilo que lhes diz respeito.
22 reza lhe indica. Não vês tu a extraordinária habilidade das
abelhas para construir a sua habitação e a docilidade com
que elas aceitam a divisão do trabalho? Não vês tu a per- 122
feição, inimitável para os humanos, que a aranha põe na
Os dias já estão começando a ficar mais pequenos, 1
sua teia: a habilidade com que ela dispõe os fios, uns
inas mesmo assim ainda facultam tempo suficiente a quem
colocados em linha recta à maneira de subestrutura, outros
estiver disposto, passe a expressão, a surgir quando surge
dispostos em círculos, mais densos no centro, mais espa-
o dia! Mais nobremente atento aos seus deveres será o
çados na periferia, de modo a que os pequenos animais
homem que se levanta antes de ele nascer e acolhe já a
que a teia se destina a capturar se vêem envolvidos nela
23 como numa rede? Uma tal arte é inata, e não fruto de pé os primeiros raios de sol; será, pelo contrário, uma
aprendizagem. Por isso não encontramos em nenhuma vergonha permanecer deitado quando o sol já vai alto e
espécie um animal mais habilidoso do que outro; todas as começar a actividade só ao meio-dia; e até mesmo o meio-
teias de aranha são semelhantes, todos os alvéolos dos -dia ainda é para muitos uma madrugada! Há gente para 2
favos são geometricamente iguais. Nas técnicas aprendidas quem não tem sentido a distinção entre a noite e o dia, e
há sempre algo de indeciso e diferente, enquanto as técni- não é capaz de abrir os olhos, pesados da bebedeira da
cas inatas são sempre idênticas. A natureza não faz mais véspera, senão quando a noite já começa a cair. A condi-
do que dar a cada animal o instinto de autoconservação e ção de tal gente assemelha-se à dos nossos antípodas que,
a perícia em o exercer, e por isso mesmo nos animais são como diz Vergílio, vivem ao contrário de nós:

684 685
"quando o Sol nascente se aproxima de nós com os
a v1ºda na sombra 12 torna-as pesadas e obesas. Pelo contrá-
cavalos ofegantes, a Estrela da Tarde começa a bri-
10 rio, o aspecto físico dos homens que preferem a vida noc-
lhar sobre eles com seus raios !"
turna é disforme, têm no rosto uma cor mais inquietante
Só que é o modo de vida, e não a localização geográfica, que a palidez da doença: ficam quase transparentes, sem
3 que distingue tal gente do comum das pessoas! Temos força nem energia, como carne apodrecida em corpos ainda
aqui mesmo, em Roma, autênticos antípodas, que, no dizer vivos. E isto ainda eu considero o menor dos seus males
'
de M. Catão 11 , nunca viram o nascer nem o pôr do sol. pois na alma a escuridão é muitissímo maior! A alma
Como acreditar que semelhante gente sabe como viver, se deles jaz num torpor, numa treva tal que até os cegos lhe
nem sequer sabe quando ? E dizem temer a morte, esses causam inveja. Aliás, quem é que alguma vez precisou de
que preferem viver como que enterrados! Gente ·de tão olhos para viver às escuras ?
mau agoiro como as aves nocturnas !... Por muito que Perguntas-me tu como se origina na alma esta forma 5
empreguem no vinho e nos perfumes as trevas em que vivem, de depravação que consiste em evitar o dia para fazer
por muito que gastem os seus tempos de viciosa vigília apenas vida nocturna. Todos os vícios são hostis à natu-
em banquetes requintados de milhares de pratos - mais reza, todos eles evitam a ordem natural das coisas. O
do que uma festa o que eles fazem é celebrar .os próprios objectivo precisamente da vida libertina é deliciar-se com
funerais. Só que o culto dos mortos é normalmente cele- o insólito, afastar-se não apenas um pouco do caminho
brado de dia!... justo, mas distanciar-se dele o mais possível até levar um
Mas para quem leva uma vida activa nenhum dia é tipo de vida em tudo contrário ao normal. Ou não te 6
longo demais. Dilatemos a nossa vida: apenas na acção parece ser contra a natureza beber em jejum, encher de vinho
está a justificação e o dever de tal prolongamento. Limi- o estômago vazio e só ir comer depois de embriagado? E
temos a duração das noites, transferindo parte delas para todavia é este um vício habitua( entre os jovens romanos
4 ocupações próprias do dia. As aves que se criam com amadores de cultura física, que vão encher-se de bebida
vista a futuros banquetes são mantidas no escuro para que quase à beira da piscina entre os banhistas nus, mais, que
a imobilidade favoreça a engorda, pois a inacção total faz bebem para logo a seguir rasparem o suor que provoca-
com que o seu corpo adquira um acréscimo de gordura, e ram com incontáveis bebidas bem fortes! Beber depois do
almoço ou do jantar, isso toda a gente faz. É essa a prá-
tica corrente entre os agricultores ignorantes do que seja o
10
Vergílio, Georg., 1, 250-1. verdadeiro prazer! O vinho puro só satisfaz quando não
11
Carão, Dieta, 76 Iordan. Também Cícero fala de certos debochados que
"vomitam para cima da mesa, têm de ser levados em braços dos salões de ban-
quete, mas no dia seguinte recomeçam a comezaina com a digestão ainda por 12
fazer e que, como eles próprios dizem, nunca viram o pôr nem o nascer do Sol" Os mss. oferecem a lição inaceitável superba umbra, variamente corrigida
(de finibus, II, 23). pelos editores. A tradução "a vida na sombra" apoia-se na conjectura de Badsruebner
sub perpetua umbra.

686
687
circula entre os alimentos e p9de penetrar livremente até Para mim, estas criaturas são verdadeiros defuntos! 10
aos nervos, a embriaguês só é boa quando tem todo o O que distingue, em boa verdade, a morte, mesmo a
espaço por sua conta. morte prematura, da vida desta gente que só tem por luz
7 Não te parece que vive contra a natureza um homem velas e archotes ?
que se veste de mulher? Não vivem contra a natureza Houve uma época em que (lembro-me bem disso!)
aqueles que procuram perpetuar indevidamente a aparên- muitos homens levavam este género de vida. Entre eles
cia da mocidade? Que sorte mais cruel ou miserável poderá havia um antigo pretor, Acílio Buta. Depois de esbanjar
imaginar-se do que a de alguém nunca vir a ser homem um imenso património, foi lamentar-se a Tibério da miséria
para continuar a entregar-se a um homem?! Alguém a em que caíra. "Acordaste tarde!" - respondeu-lhe o impera- 11
quem o sexo devia pôr ao abrigo da violação mas que dor. Júlio Montano, poeta sofrível, bem conhecido primeiro
8 nem graças à idade fica protegido contra ela? Não vivem pela amizade depois pela indiferença de Tibério, recitava
ao contrário da natureza aqueles que desejam ter rosas no um dia um poema em que a torto e a direito falava do
Inverno ou que, à custa de protecções aquecidas e de nascer e do pôr-do-sol. Um dos auditores, irritado por o
oportunas transplantações conseguem produzir lírios no recital durar o dia inteiro, dizia que nunca mais se devia
tempo das brumas? Não vivem ao contrário da natureza assistir às suas declamações; então Pinário Nata exclamou:
aqueles que plantam pomares no alto de torres? Ou aque- "Eu por mim não posso ser mais simpático para com ele :
les que possuem bosques frondosos nos tectos e terraços estou disposto a escutá-lo desde um nascer até um pôr-do-
das suas casas, fazendo nascer as raízes a uma altura que -sol !" Quando Montano recitava estes versos
a custo as copas normalmente atingiriam? Não vivem ao
"Febo começou a emitir ardentes chamas,
contrário da natureza aqueles que constroem em pleno mar
o dia clareava róseo; a melancólica andorinha,
os alicerces das suas termas na convicção de que é impos-
antes de partir de novo, leva às crias pipilantes
sível nadar com requinte se as suas piscinas aquecidas não
comida que lhes parte em · migalhas com o bico
9 estiverem expostas ao vento e às ondas? E, uma vez
delicado," 13
habituados a fazer tudo ao contrário da ordem natural,
acabam por se afastar em tudo da natureza! um certo cavaleiro romano de nome Varo, amigo de M.
"É dia: logo é hora de dormir. É hora de repouso: Vinício, grande apreciador de opíparos banquetes a que a
toca a fazer exercício, a passear, a almoçar. Já se aproxima língua de prata lhe facultava o acesso, exclamou: "Lá come-
a aurora: altura ideal para jantar. O que importa é não çou o Buta a dormir!" Daí a pouco, quando Montano recitava 13
fazer o que toda a gente faz: viver como o comum das
pessoas é sinal de vulgaridade. Não nos guiemos pelo
horário dos demais: determinemos nós quando começa e
acaba a nossa manhã!" 1.i Morei, Frag. poet. lat., p. 120, fr. 1.

688 47 689
'já os pastores instalaram os rebanhos nos redis -me que ele está fazendo as contas com os escravos. Cerca
já a noite lenta começa a trazer o silêncio à terra da meia-noite, oiço uma gritaria pegada. Pergunto o que
sonolenta," 14 se passa. Respondem-me que faz gargarejos para aclarar a
o mesmo Varo gritou: "Que dizes? Já é noite? Então voz. Às duas da manhã pergunto o que significa aquele
tenho de ir cumprimentar o Buta !" 15 estrépito de rodas: o senhor vai passear! Já de madru- 16
Nada era mais conhecido em Roma do que a vida gada, grande correria: chamam-se os escravos, os escan-
completamente às avessas que Buta levava. Mas, como ções, e os cozinheiros surgem de roldão. Que se passa? O
14 disse, pela mesma época muitos outros viviam assim. O nosso homem acabou de sair do banho e exige que lhe
motivo por que alguns preferem este estilo de vida não é sirvam vinho com mel e flocos de cereais! Dirão vocês
tanto eles pensarem que a noite tem por si mesma algum que o jantar ·deste homem durava mais do que um dia.
encanto especial; é antes a sua repugnância por tudo o Nada disso: pelo contrário, ele até vivia muito /ruga/mente:
que é habitual, é a sua má consciência que a luz do dia a única coisa que gastava... era a noite!" E quando alguns
acentua; é ainda o facto de eles desejarem ou desprezarem de nós chamámos ao homem um sórdido avarento, Albi-
as coisas consoante elas são caras ou baratas, e por isso a novano acrescentou: "Até podereis dizer que ele vivia de
luz, que é gratuita, só lhes desperta indiferença. Como se óleo de candeia!"
isto ainda fosse pouco, os libertinos pretendem que a sua Não deves admirar-te por descobrires no vício tantas 17
vida, enquanto eles vivem, ande nas bocas do mundo, pois peculiaridades: os vícios são numerosos, revestem inúmeros
imaginam perder o seu tempo se ninguém falar deles. Por aspectos, é impossível classificá-los a todos. A observação
isso estão sempre a fazer qualquer coisa que suscite falató- do bem é simples; a do mal é complexa e susceptível de
rios. Muitos dissipam os bens em festins, muitos outros infinitos desvios. O mesmo sucede com os costumes : para
com as amantes, mas para ganhar fama num tal meio quem segue a natureza tudo se 'apresenta fácil, sem pro-
importa mais a originalidade do que a dissipação pura e blemas; poucas diferenças há entre os costumes dos homens
simples: numa cidade tão ocupada como Roma, uma per- de bem. Pelo contrário, os hábitos dos viciosos diferem
15 versão vulgar não é matéria para conversas! Nós ouvimos não só dos normais mas também entre si. A causa prin- 18
um dia esse exímio conversador que foi Albinovano Pedão cipal desta moléstia parece-me ser a repugnância pela
contar que habitara em tempos um andar que dava para a normalidade. Há gente que se quer diferenciar dos demais
casa de Sexto Papínio, um desses muitos inimigos da luz pelo vestuário, pelo requinte gastronómico, pelo luxo dos
do dia. rrPor volta das nove da noite," - contava ele - carros: do mesmo modo se quer distinguir pela utilização
rroiço o som da chibata. Pergunto o que se passa: dizem- do tempo. Rejeita os pecadilhos comuns porque depende
das perversões para alcançar a sua triste reputação, e tal
reputação é tudo quanto pretendem da vida estes indiví- 19
14
Id., ibid., fr. 2. duos que vivem, por assim dizer, às avessas. Em conclu-
15
Isto é, apresentar as saudações matinais! são, Lucílio, prossigamos na via que a natureza nos

690 691
prescreveu sem dela nos apartarmos um passo. Se a minha fadiga se acomoda a si própria: não preciso de
seguirmos, tudo nos parecerá fácil ao nosso alcance. Ten- massagistas, nem de um banho quente, o único remédio
tar viver ao contrário da natureza é a mesma coisa que de que necessito é um pouco de tempo! A tensão resultante
remar contra a maré. - do cansaço relaxar-se-á com o repouso, e o meu jantar de
circunstância saber-me-á melhor do que um banquete de
recepção! Tive de experimentar de improviso de que era 5
123 capaz a minha alma, e o resultado da experiência é, por
1 Cheguei à minha vila de Alba, já noite adiantada, isso mesmo, mais imediato e conforme à verdade. Quando
arrasado mais pelo acidentado do percurso do que propria- a alma se prepara de antemão e se dispõe a aguentar o
mente pela distância. Entro em casa, e a única coisa pre- que possa sobrevir não é tão evidente a robustez real de
parada que encontro... é o meu apetite! Decido estender- que ela dispõe. As melhores provas de firmeza de alma
-me e descansar num divã e aproveitar da melhor maneira o são as que surgem de improviso: aceitar os contratempos
tempo que o cozinheiro e o padeiro me vão fazer esperar. não só com calma mas também com boa disposição; não
Dialogo comigo mesmo: nenhum contratempo é realmente se irritar, não resmungar; suprir as carências com a ausência
grave se o encararmos de ânimo leve, nem nos teremos de desejos, convencer-se de que aos seus hábitos pode fal-
de aborrecer com nada se não decidirmos exagerar e tomar tar qualquer coisa, mas que a si mesma nada falta!
2 a peito os nossos aborrecimentos. O meu padeiro não tem Nós não nos damos conta de que imensas coisas são 6
pão para me dar: o feitor, o mordomo ou o caseiro com supérfluas senão no momento em que elas nos faltam, o
certeza que terão algum. rrPão de segunda/" - dirás. Espera que significa que nós as usamos apenas porque as tínha-
um pouco, e em breve ele se tornará de boa qualidade: mos, e não porque as devêssemos usar. E quantas coisas
mais, a fome se encarregará de o transformar num pão não adquirimos nós apenas po~que outros - a grande
macio e branquinho! Bastar-me-á para tanto não comer maioria! - as adquiriram! Uma das causas da nossa infe-
enquanto a fome não me apertar. Decido-me, portanto, a
licidade é nós vivermos sempre a imitar os outros, não
esperar ou que alguém me dê um bom pão ou que eu
nos guiando pela razão mas deixando-nos arrastar pela
3 não me importe de comer um mau. Precisamos de nos
moda. Se fossem poucos a usar certas coisas, nós não os
contentar com pouco: não faltarão, mesmo a gente rica e
quereríamos imitar, mas quando a moda se generaliza lá
bem preparada, lugares e ocasiões em que depare com
dificuldades. Ninguém pode possuir tudo quanto quer, mas vamos nós atrás - como se a frequência fosse sinal de
toda a gente pode não querer o que não tem e aproveitar algum valor! Em vez do bem usamos como critério o
com satisfação o que as circunstâncias lhe proporcionam. erro, - na condição apenas de esse erro ser o hábito da
Uma grande parte da nossa liberdade está num estômago maioria. É assim que ninguém hoje viaja sem uma escolta 7
4 bem educado e habituado a sofrer contrariedades! Nin- de cavaleiros númidas, sem um acompanhamento de bate-
guém pode imaginar o prazer que eu sinto ao ver como a dores a pé: é uma vergonha social não ter serviçais que

692 693
desobstruam a via de transeuntes e que, pela nuvem de nas em gozar a vida: comer, beber, gastar a rodos, isso
pó que levantam, mostrem que se aproxima uma perso- sim, é que é viver lembrando-nos de que somos mortais!
nagem importante! Não há ninguém que viaje sem uma Os dias passam, a vida escoa-se irremediavelmente. Temos
fila de mulas carregadas de vasos em cristal, em murra, dúvidas? Para que serve a sabedoria? Qual o gozo de
cinzelados pela mão de artistas célebres : é uma vergonha nos fazermos ascetas quando ainda estamos em idade de
social dar a aparência de viajar somente com bagagem poder, de dever fruir de prazeres que, de uma forma ou
que possa levar encontrões à vontade. Toda a gente se faz de outra, o tempo acabará por negar-nos? Não significará
acompanhar de pagens com o rosto coberto de cremes, isso antecipar-mo-nos à morte e renunciarmos prematu-
não vá o sol ou o frio macular a sua pele delicada: é uma ramente aos prazeres que ela há-de roubar-nos? Não tens
vergonha social ter no cortejo de escravos algum jovem uma amante, nem um rapazinho para provocar os ciúmes
de cara saudável, livre de cosméticos! da amante; sais de casa diariamente sem nunca te embria-
8 Há que evitar a conversa deste tipo de gente, verdadeiros gares; jantas, como se tivesses de ir dar contas da despesa
almocreves do vício que o difundem de lugar em lugar. ao teu pai: isto não se chama viver, mas sim ver viver os 11
Poderia pensar-se que a pior raça de homens fossem os outros! Só por demência é que poupas a herança que hás-de
difusores de boatos, mas não: há também os difusores do deixar, negando a ti mesmo todos os prazeres, e só con-
vício. Nada mais nocivo do que ouvi-los falar: mesmo que seguindo que o teu herdeiro te deteste em vez de te amar,
as suas palavras não criem raízes de imediato, deixam pois quanto mais tu lhe deixares mais ele desejará a tua
pelo menos na alma algumas sementes que perduram em morte! Não ligues a menor importância a esses severos e
nós quando nos apartamos deles, para mais tarde ressur- sombrios censores da vida alheia e inimigos da sua própria,
9 girem em força. Quem assiste a um concerto leva consigo esses filósofos que pretendem dar lições ao mundo; não
nos ouvidos a doce melodia da música, que perdura e hesites em preferir a boa vida à boa reputação!" Devemos 12
impede a reflexão, e não deixa fixar a atenção em coisas fugir de tais loas como do canto das Sereias, que Ulisses
mais sérias; do mesmo modo a conversa dos aduladores e não se atreveu a escutar senão bem atado ao mastro do
entusiastas do vício permanece no ouvido muito depois de navio. O seu efeito é semelhante: afastam-nos da pátria,
a ela termos assistido. E não é fácil expulsar da alma esse dos pais, dos amigos, da prática da virtude e, se não lhes
som tentador: ele continua a ressoar em surdina, acudindo- passamos ao largo, esmagam-nos de encontro a uma vida
-nos periodicamente à ideia. Devemos, por conseguinte, de vergonha e depravação. 16 Muito preferível é seguir o
cerrar os ouvidos a tão perniciosas conversas, e logo desde caminho do bem e nele persistirmos até que somente nos
o início, pois assim que lhes damos acolhimento elas cres- dê alegria aquilo que se conforma à moral! Esta via estará 13
ao nosso alcance se nos persuadirmos · de que apenas há
10 cem de atrevimento. E por fim até nos chegam a garantir:
"A virtude, a filosofia, a justiça - tudo isso não
passa de ruído sem significado. A felicidade consiste ape- 16 Texto corrupto; a tradução corresponde ao texto estabelecido por F Préchac.

694 695
dois tipos de coisas que nos podem atrair ou afugentar. xemos estas práticas para os gregos! Por nosso lado, ateo- 16
Atraem-nos as riquezas, os prazeres, a beleza, a ambição e temos antes nestas máximas: "Ninguém é bom por obra
outras agradáveis seduções; afugentam-nos, pelo contrário, do acaso; a virtude aprende-se. O prazer é uma coisa ras-
o sofrimento, a morte, a dor, a desconsideração, as privações. teira, insignificante, a que não devemos dar o mínimo
O nosso dever, portanto, é adquirirmos uma formação que valor; os animais irracionais conhecem-no igualmente, até
nos permita não temer estas nem desejar aquelas. Lute- os seres mais vis e desprezíveis correm para ele. A fama
mos contra umas e outras, cedendo o terreno ao que nos é algo de vão e volúvel, mais instável do que o vento.
14 alicia, reunindo as forças contra o que nos ataca. Não vês A pobreza só é um mal para quem se revolta contra ela. A
tu como é diversa a posição do corpo conforme se desce morte não é um mal, é sim, se queres saber, a única
ou se sobe por um plano inclinado? Quem desce um bar- forma de igualdade entre os seres humanos. A superstição
ranco inclina o corpo para trás, quem sobe uma ladeira é um erro e uma loucura que receia os deuses em vez de
inclina-o para a frente. Atirar o peso do corpo para a os amar, e os profana em vez de lhes prestar culto. Que
frente quando se desce, ou atirá-lo para trás quando se diferença há, de facto, entre negar os deuses e profaná-
sobe, meu caro Lucílio, é contrariar as leis naturais. Ceder -los?" Aqui está o que nós devemos não só dizer, mas, 17
ao prazer equivale a uma descida; afrontar as dificuldades sobretudo, interiorizar. A filosofia não pode prestar-se a
equivale a uma subida; neste segundo caso necessitamos desculpar o vício. Se o médico recomenda a um doente
de todo o esforço para subir, naquele necessitamos é de toda a espécie de excessos é porque este não tem salvação
nos refrear. possível!
15 Não penses tu que eu apenas considero altamente
nociva para nós a conversa daqueles que enaltecem o pra-
zer e que despertam em nós o medo do sofrimento, - 124
como se este em si não bastasse para nos atemorizar. "Posso dar-te a saber muitos preceitos dos antigos, 1
Não, eu também considero nocivos todos aqueles que, uti- se te não repugna conhecer certas minúcias subtis !" 18
lizando uma linguagem de estóicos 17, apenas nos convidam Claro que te não repugna, não há subtileza capaz de te
ao vício. O raciocínio deles é este: só o sábio é hábil a meter medo. Não cabe na tua excelente formação abordar
fazer amor! "Só o sábio é capaz de praticar esta arte; apenas as questões de grande peso; tens também a minha
também é o sábio o maior perito em servir bebidas e em
aprovação por procurares sempre extrair dos teus estudos
praticar amores homossexuais. Investiguemos, portanto, até
algum progresso moral e por apenas te indagares quando
que idade os rapazinhos servem para fazer amor!" Dei-
vês que uma extrema subtileza não leva a resultado algum.
Vou fazer o meu melhor para que não seja este o caso.
17
Tal como os estóicos diziam, por ex., só o sábio conhece a verdadeira uti-
lidade das coisas, estes falsos estóicos, imitando a linguagem da Escola, afirmam
18
que só o sábio possui as indignas habilidades enumeradas. Vergílio, Georg., I, 176-7.

696 697
A questão é esta: o bem é apreendido pelos sentidos Um sentido que nem sequer é tão subtil e apurado como
ou pelo intelecto? Ponto anexo: nos animais irracionais e a visão encarregado de destrinçar o bem e o mal!... Estás
2 nos recém-nascidos não existe a noção de bem. Os pensa- a ver como é ignorante da verdade, estás a ver como
dores para quem o bem supremo é o prazer consideram rebaixa o sublime e o divino este filósofo que decide por
que o bem e/ sens1ve1;19 nos, pe1o contrario, como en t en-
I I I •
meio do tacto qual o supremo bem e qual o mal
demos que o bem é coisa própria da alma, temo-lo por supremo? 2º
inteligível. Se fossem os sentidos a ajuizar do bem não "Toda a ciência, toda a técnica necessita de uma base 6
haveria motivo para recusarmos qualquer prazer, pois todos apreensível pelos sentidos a partir da qual se desenvolva e
eles nos atraem, todos nos seduzem. Inversamente, tam- progrida; do mesmo modo, a felicidade também tem a sua
bém nunca sofreríamos voluntariamente dor alguma, uma base, o seu início, em algo de manifesto e apreensível
3 vez que toda a dor é lesiva dos sentidos. Além disso, pelos sentidos. Até mesmo vós, estóicos, dizeis que a f eli-
também não nos mereceriam nenhuma censura nem os cidade tem o seu ponto de partida em algo de imediata-
excessivos apreciadores do prazer nem os mais tímidos perante mente evidente!" O que nós dizemos é que a felicidade 7
a dor. E, todavia, nós censuramos a gula e a libertinagem, depende de a vida estar de acordo com a natureza; o que
e desprezamos os homens que por medo à dor não ousam seja "estar de acordo com a natureza" é um dado evidente
comportar-se como verdadeiros homens. De facto, onde e imediato, tal como por exemplo o conceito de "inteiro".
está a sua falta, se é verdade que eles obedecem aos senti- Esse estar de acordo com a natureza (que é uma proprie-
dos e é a estes que cabe ajuizar do bem e do mal? Não dade de todo o ser assim que nasce), a isso não chamo eu
foi aos sentidos que concedestes o direito de decidir o que um bem, mas sim o começo do bem. Vós atribuis à pri-
4 merece ser procurado e o que deve ser evitado? Ora a meira infância o supremo bem, o prazer, o que equivale a
verdade é que apenas à razão cabe o direito de decidir em dizer que o recém-nascido já parte da situação a que chega
tal matéria: assim como é ela a decidir sobre a felicidade, o homem perfeito! Não será isto pôr a copa no lugar da raiz? 8
a virtude, a moral, é ela também quem determina o que é Se alguém afirmasse que o feto, oculto ainda no ventre
o bem e o que é o mal. De acordo com os pensadores materno, de sexo indefinido, ser frágil, incompleto e informe
acima referidos, é à parte inferior que se concede pronun- já estava na posse de algum bem, o erro seria universal-
ciar-se sobre a superior; por outras palavras, são os senti- mente evidente. No entanto, que diferença separa a criança
dos - os sentidos obscuros e confusos, mais lentos ainda acabada de nascer e aquela que é ainda um fardo oculto
nos homens do que nos animais - quem vai pronunciar-se no corpo da mãe? O grau de maturação de um e de
5 sobre o que é o bem! E que dizer de um filósofo para outro no que respeita à percepção do bem e ·do mal é
quem o sentido mais apurado é o tacto e não a visão ? idêntico; o recém-nascido é tão incapaz de perceber o que

20
I9 Cf. Usener, Epicurea, fr. 397 (in fine) - 400 (pp. 273-6). Aristipo de Cirene??, cf. Cícero, Acad., 2, 20 e 26.

698 699
é o bem como wna árvore ou como um animal irracional. submete a si mesma sem a nada se submeter. E tanto
E porque é que não existe o bem numa árvore ou num este bem se não verifica na infância que a puberdade nem
animal irracional? Porque carecem de razão. No recém- suspeita da sua existência, e até na adolescência seria utó-
-nascido, por conseguinte, também não existe o bem por- pico esperá-lo; e bem irá a velhice se após wn longo e
que ele carece ainda de razão. Somente quando aceder à constante estudo se conseguir aproximar dele. Ora se o
9 razão acederá também ao bem. Uma coisa é um animal bem é isto, obviamente será inteligível.
irracional outra coisa wn animal ainda não racional, e "Mas tu disseste" - objectar-me-ão - "que há um 13
'
outra coisa wn animal racional mas imperfeito; em nenhwn certo bem próprio da árvore ou do arbusto; pode, por-
destes existe o bem, somente a razão é que permitirá a tanto, haver um bem próprio do recém-nascido". O ver-
sua existência. Qual é então a diferença entre os três tipos dadeiro bem não existe nem nas árvores nem nos animais
que eu mencionei? No animal irracional nunca existirá o irracionais; quando falamos em "bem" a seu respeito esta-
bem; no animal que ainda não é racional não pode por mos a usar a palavra "bem" em sentido figurado. E se me
enquanto existir o bem; no que é racional mas imperfeito perguntas que bem é esse eu dir-te-ei: é a obediência à
10 pode existir o bem, embora de momento não exista. Repi- sua própria natureza. O bem em si não pode de modo
to, amigo Lucílio: o bem não se encontra em todo e algwn ser apanágio de wn animal irracional, uma vez que
qualquer corpo nem em toda e qualquer idade, e está tão é específico de seres mais dotados e perfeitos. O bem só
longe da infância como o ponto de chegada está do ponto existe onde existe a razão. Há na natureza quatro tipos de 14
de partida, ou a obra acabada do esboço inicial; não existe, seres: a árvore, o animal, o homem, o deus. Estes dois
portanto, nwn corpito frágil, ainda em fase de crescimento. últimos, por serem racionais, possuem natureza idêntica,
E não está nesse pequeno corpo como não estava ainda apenas diferindo entre si por um ser imortal e o outro
11 no embrião. Também se pode pôr a coisa nestes termos: 21
mortal • O seu bem específico é a natureza que lho faculta
nós damo-nos conta de que há wn certo bem próprio de no caso do deus, e o longo estudo no caso do homem. Os
wna árvore ou de wn arbusto, mas ele não está presente restantes seres são perfeitos em relação à sua natureza,
desde logo nos primeiros rebentos da planta ao brotar do mas não absolutamente perfeitos porque desprovidos de
solo. Também há wn certo bem próprio do trigo, só que razão. A perfeição absoluta é aquela que é perfeita em
ele ainda não está presente na ervinha leitosa, nem quando relação à ordem universal da natureza, e esta é racional;
a tenra espiga começa a ganhar folhas, mas somente quan- os diversos seres só podem ser perfeitos em relação à sua
do o calor e a completa maturação dão à espiga a sua · espécie. Uma criatura para quem não existe a felicidade 15
completude. Tal como nos restantes seres da natureza o
seu bem específico só aparece na plena maturidade, tam-
21
bém o bem específico do homem só surge nele quando Cf. Píndaro, Nem., 6, 1-4: "Uma só é a raça dos homens e dos deuses.
12 ele acede à perfeita razão. Que bem específico é o do Ambas respiramos, vindas da mesma mãe. Porém, wn poder bem distinto nos
separa. Uma nada é; e o brônzeo céu, esse permanece sempre seguro" (crad.
homem? Já to digo: é wna alma livre, elevada, que tudo M.H. da Rocha Pereira, Hélade, p. 173).

700 701
não possui naturalmente a condição que permite a felici- for capaz de estar "tranquilo". Só existe vício num ser que
dade; esta, por sua vez, depende de um conjunto de bens. possa praticar a virtude. O tipo de movimento próprio
O animal irracional não conhece a felicidade nem as con- dos animais irracionais é apenas aquele que a sua natureza
dições que permitem a felicidade, logo não existe o bem lhes permite. Mas enfim, para te não demorar mais tempo, 20
16 no animal irracional. O animal irracional apreende o pre- admitamos que no animal irracional há um certo bem,
sente através dos sentidos, e apenas se lembra do passado uma certa virtude, uma certa perfeição; mas esse bem,
se depara com uma conjuntura que lhe provoca uma sen- essa virtude, essa perfeição não têm valor absoluto. Tal
sação semelhante; é o caso de um cavalo, que se recorda valor absoluto é exclusivo dos seres racionais a quem é
da estrada quando é levado até junto dela. No estábulo, facultado saber porquê, dentro de que limites e de que
porém, não tem qualquer recordação da estrada, embora a modo agir. Em suma, o bem só existe em quem existe a
tenha percorrido inúmeras vezes. A terceira secção do tem- razão.
po, ou seja, o futuro também está fora do alcance dos Agora, tu queres saber qual a finalidade de toda esta 21
17 irracionais. Ora, como é possível nós imaginarmos perfeita discussão e que proveito ela pode trazer à tua alma. Já to
a natureza de seres que carecem da faculdade de recordar digo. Primeiro, serve para exercitar a alma, dar-lhe acui-
o passado ? O tempo consta de três secções - passado, dade, entretê-la numa ocupação séria dada a sua perma-
presente e futuro. Os animais só têm à sua disposição a nente tendência para a acção. Além disso, serve para reter
mais breve e transitória das três, o presente; a recordação os homens que se inclinam para o mal. Mas digo-te mais
do passado é rara, e apenas é despertada pela ocorrência ainda : de nenhum modo eu te posso ser mais útil do que
18 de circunstâncias presentes. Por conseguinte, o bem pró- dando-te a conhecer o teu bem próprio, separando-te dos
prio de uma natureza perfeita não pode existir numa animais irracionais e pondo-te em companhia de Deus.
natureza imperfeita; se não for assim, isto é, se o bem Afinal, pergunto eu, para quê téntares desenvolver a força 22
em si estiver ao alcance da natureza animal, então está-lo- física? A natureza deu forças bem maiores a muitos ani-
-á também das plantas. Eu não nego que os animais irra- mais, domésticos ou selvagens. Para quê embelezares-te?
ci<mais, naquilo que parece ser conforme à natureza, pos- Faças o que fizeres, muitos animais irracionais serão sem-
suem certas tendências fortes e determinadas, só digo é pre mais belos do que tu. Para quê penteares com tanto
que elas são desordenadas e confusas, ao passo que o bem, cuidado os teus cabelos? Com o cabelo caído à moda dos
19 por definição, nunca é desordenado e confuso. "Como assim? Partos, atado à moda dos Germanos ou eriçado como o
Os movimentos dos animais irracionais são sempre desre- usam os Citas - mais densas serão sempre as crinas
grados e sem finalidade?" Eu di-los-ia desregrados e sem de qualquer cavalo e mais bela a juba de qualquer leão.
sentido se a sua natureza fosse susceptível de ordem. Os Mesmo que decidas treinar-te para corridas de velocidade
animais movem-se segundo a sua natureza. Uma coisa nunca serás tão veloz como uma lebre. Não quererás tu · 23
apenas se diz "desordenada" se for susceptível de ser deixar essas competições em que necessariamente ficarás a
"ordenada", tal como só se diz que está "inquieto" quem perder, em especialidades que não são a tua, e remeter-te

702 703
à prática do teu bem específico? Esse bem que consiste
numa alma escorreita e pura, émula da divindade, erguida
acima do vulgo humano e sem recorrer a nada exterior a
ti? És um animal racional. Qual é então o teu bem pró-
prio? A perfeita razão. Procura elevá-la ao mais alto grau,
24 deixa-a expandir-se tanto quanto lhe for possível. Conside-
LIVRO XXII
ra-te a ti próprio feliz somente quando toda a alegria nas-
cer de ti mesmo, quando, ao ver os objectos que os homens (Fragmentos)
conquistam, ambicionam, guardam como preciosidades,
nenhum encontrares entre eles que tu prefiras ou, melhor
Aulo Gélio, XII, 2, 2 SS. -
ainda, que tu sequer desejes. Vou oferecer-te uma sentença
lapidar que servirá para te pesares a ti mesmo e avaliares Não é indispensável eu fazer uma apreciação do talento 2
qual o teu grau de perfeição: serás possuidor do teu único de Séneca nem criticar todos os seus escritos, mas vou pôr
bem próprio quando te convenceres de que os felizes deste à consideração dos leitores os juízos que ele emitiu sobre
mundo são os mais infelizes dos homens. Cícero, Énio e Vergílio; veremos o que valem tais juízos.
No livro vigésimo segundo 1 das "Epístolas Morais" que 3
ele escreveu a Lucílio chama ridículos a estes versos com-
postos por Énio sobre o velho herói Cetego:
"outrora ele foi chamado pelos seus concidadãos,
pelos homens que então viviam e ocupavam a cena da
história, afina flor do povo: amedula da Persuasão'!" 2
E, logo a seguir, referindo-se a este mesmo verso, acres- 4
centa : "Espanta-me como homens tão eloquentes aprecia-
vam Énio a ponto de achar excelentes as suas frases ridí-
culas. Até mesmo um Cícero cita estes versos como sendo
dos bons que ele escreveu/" 3 A respeito de Cícero, diz 5

1
O faao de A. Gélio citar o livro XXII das cartas a Lucilio quando a tradi-
ção manuscrita apenas transmite vinte livros prova que o corpus epistolar de
Séneca era consideravelmente mais amplo do que aquele que nós possuímos.
2
Énio, Ann., 306-8 Vahlen 2 (= 303-5 Warmington).
3 Cícero, Brutus, 58-59.

704 48 705
estas palavras: "Não me admira que tenha havido alguém A respeito de Vergílio, escreveu ele no mesmo livro: 10
capaz de escrever semelhantes versos, já que apareceu "Se o nosso Vergílio inseriu aqui e além alguns versos
alguém capaz de os elogiar; a menos que Cícero, grande duros, pesados, com sílabas em número excessivo 6, foi ape-
orador como era, estivesse agindo como advogado em causa nas para que a legião dos admiradores de Énio pudesse
própria e pretendesse que os versos que fazia também encontrar num poema moderno um certo ar de anti-
6 passassem por bons." 4 E, mais adiante, escreve também guidade."
esta frase abominável: "Mesmo na obra de Cícero se Mas já estou a ficar cansado de Séneca. No entanto 11
encontram passos, até nos textos em prosa, que mostram não quero deixar passar este dito que bem comprova a
7 que ele não andou a ler Énio em vão." Cita, depois, pas- sua falta de espírito e de finura: "Há certos pensamentos
sos de Cícero, que critica pelo seu aspecto eniano, como tão profundos de Quinto Énio que, embora escritos para
por exemplo esta frase da "República": "O lacedemónio um público que cheirava a bode, poderiam talvez agradar
Menelau possuía uma certa suavidade jucunda ao discur- ao público perfumado de hoje em dia." E, ao censurar os
sar"5, ou esta outra da mesma obra: "pratica no seu dis- versos atrás citados acerca de Cetego, diz: "Quem é capaz
8 curso a breviloquência". E, por fim, fazendo-se espirituoso, de gostar de versos destes seria evidentemente capaz de
tenta desculpar os erros de Cícero dizendo: "Não foi exclu- apreciar também os leitos de Sotérico".
sivo de Cícero este vicioso estilo, mas sim da época; quando Ache quem quiser que Séneca merece ser lido e estu- 12
tais eram as obras que então se liam, ele não podia dizer dado pelos jovens, ele que achou por bem comparar a
9 outra coisa!" E acaba por dizer que Cícero introduzia nos gravidade e o tom dos autores arcaicos com os leitos de
seu5 textos estas frases de tipo eniano para evitar a acusa- Sotérico, isto é, com móveis destituídos de beleza, já pas-
. ção de ter uma linguagem demasiado elegante e clara. sados de moda, manos de que ninguém gosta. Apesar de 13
tudo, vale a pena citar alguma coisa, pouca, de Séneca
digna de menção, como é aquele .seu excelente dito diri-
4
A tradução - "os versos que (Cícero) fazia" - apoia-se nwna conjecrura gido a um avarento, ambicioso até mais não, atormentado
de Skutsch aceite por Reynolds: suas uersus "os seus próprios versos", em lugar
da lição dos mss. hos uersus "estes versos". A lição traduzida torna mais trans-
parente a ironia de Séneca em relação a Cícero: este elogiaria os versos (muito
maus) de Énio para que "os versos que fazia" (e que eram igualmente maus) .
pudessem passar por bons!
5
Cícero, Rep., V, fr. 9.11, p. 364 Mueller. - O texto de Cícero diz suauilo-
quens iucunditas "uma jucundidade suaviloquente" (linguagem que parece dema- 6
Alusão aos hexâmetros que contêm uma sílaba a mais na aparência, por-
siado pesada em porruguês !). Na citação seguinte, Cícero escreve breuiloquentia, quanto se trata de uma sílaba sempre terminada em vogal que se elide sobre a
que adaptámos. A imitação de Énio por Cícero consiste na criação destes longos inicial vocálica do verso seguinte, por ex. Vergílio, Aen., VII, 470. Vergílio tem
vocábulos compostos - suauiloquens, breuiloquentia -, à maneira de vários duas dezenas destes versos, enquanto nos outros poetas cultores do hexâmetro o
outros forjados pelo velho poeta. processo é extremamente raro.

706 707
pela sede do dinheiro: "Que importam os bens que pos-
suis se muito mais numerosos são aqueles que não possuis?"7

7
Globalmente, o juízo de Gélio sobre Séneca é, como se vê, negativo, o que
é compreensível dadas as tendências arcaizantes da época em que Gélio escre-
veu. A tÍtulo de comparação, traduzimos um célebre passo de Quintiliano, no
ÍNDICE
qual são igualmente feitas algumas críticas mais ou menos peninentes à obra do
filósofo e à influência por ele exercida:
"Ao passar em revista os vários géneros literários, deixei propositadamente
Séneca de fora devido à falsa ideia que se propagou de que este escritor só me
merece censuras e me é mesmo odioso. Tal ideia gerou-se a partir do meu
empenho em reconduzir a um gosto literário mais clássico o estilo da moda,
corrompido como estava por toda a espécie de defeitos: ora Séneca era então
quase o único autor que a juventude lia. Nunca tive minimamente a intenção de
proibir a sua leitura, só não queria que ele fosse preferido a outros autores mais
Introdução ........ . .. . ...................... . V
imponantes, cujas obras, aliás, ele não se cansava de criticar: como ele praticava Bibliografia . ........... . ............... . ..... . LI
um estilo muito próprio sabia bem que nunca podia agradar a quem gostasse Livro 1 (Cartas 1-12) . .. . ........... . ...... . ... . 1
dos outros escritores. Os seus admiradores apreciavam-no mais do que conse- 1 ................................. .. 1
guiam imitá-lo, e estavam tão abaixo dele como ele abaixo dos autores mais
antigos. Bom teria sido se se igualassem a Séneca ou, pelo menos, se lhe ficas- 2 ................................. .. 3
sem próximos. O facto é que ele caiu nas boas graças apenas pelos seus defei- 3 ............ ....................... 4
tos, e eram estes defeitos que cada um imitava conforme podia. O resultado foi
que, proclamando-se seguidores de Séneca, apenas denegriam a sua memória. De
4 ................................... 7
5 ................................. .. 10
resto, Séneca era homem de muitas e grandes qualidades: talento ágil e multí-
modo, imensos conhecimentos, abundante erudição, com o inconveniente de às 6 ................................... 12
vezes não controlar devidamente os colaboradores a quem confiava certas inves- 7 ............. . ...... ~ ............. . 14
tigações. Além disso, ·cultivou praticamente todos os géneros literários: restam 8 .............. . .................. .. 18
de sua autoria discursos, poemas, cartas e diálogos. Na filosofia, mostrou-se
pouco rigoroso teoricamente, mas foi um implacável perseguidor dos vícios. Na
9 .............. ..................... 21
sua obra abundam as sentenças bem cunhadas e as dissenações úteis à formação 10 .................................. 28
moral, mas o seu estilo é decadente, e tanto mais perigoso por abundar em 11 ................................. . 30
defeitos que seduzem. Seria para desejar que ele escrevesse o que pensava mas
12 ............................... . . . 33
guiando-se por um gosto literário alheio: se desprezasse cenas defeitos e não
buscasse ardentemente outros, se fosse mais severo crítico de si mesmo, se não Livro II (Cartas 13-21) ........................ . 39
fragmentasse em frases diminutas as suas reflexões bem profundas, mereceria. 13 ................................. . 39
mais o consenso dos eruditos do que o entusiasmo da juventude. Merece, apesar
de tudo, ser lido por espíritos já sólidos e bem exercitados na prática de um
14 .... . ....................... . .... . 44
estilo mais clássico, quanto mais não seja como forma de exercitar a crítica num 15 .................................. 50
ou noutro sentido. Conforme disse, há em Séneca muita coisa que merece elo- 16 ....................... ........... 54
gio, que merece mesmo admiração, desde que se tenha a capacidade para esco- 17 .......... . .. . ............. . ..... .
lher. Pena que ele próprio o não tivesse feito: o seu talento era digno de ter 57
querido fazer melhor, tal como foi capaz de fazer aquilo que quis." (Quintiliano, 18 ...................... ...... ...... 61
lnst. Orat., X, 1, 125-31; seguimos o texto de M. Winterbottom, Oxford, 1970). 19 .................................. 65

708 709
20 ... ..... . ... .. .. ........ .... ..... . 69 1 Livro VI (Cartas 53-62) . ...... .... .. .. ..... ... . . 181
21 ... . . ... .. ..... ......... ... ...... . 73 53 ................................. . 181
Livro III (Cartas 22-29) . ' ........... .. .... ..... . 79 54 ................ . ......... .. .. ... . 184
22 .. ... . ... . ......... ......... ..... . 79 55 ................................. . 187
23 . ...... ............. .......... .. . . 84 56 ..... ...... . . ... .... .......... ... . 190
24 ................................. . 87 57 .... ...... ....... . . .. .. .......... . 195
25 ..... ..... . .. .. ..... ........... . . . 95 58 . . ... .............. ..... ..... . ... . 198
26 ................................. . 98 59 .. . . ... . .............. . .......... . 209
27 ................................. . 100 60 ... ................ .. ....... .. ... . 216
28 ................................. . 104 61 .. . ... . .. ...... .. ................ . 217
29 ..... .. .. .. . .. .... ........ .. . .. .. . 106 62 .............. . .................. . 218
Livro IV (Cartas 30-41) .... . . .. . ........ .. ..... . 111 Livro VII (Cartas 63-69) ....................... . 221
30 .. . ........... ... .. ..... ... . . ... . . 111 63 . ..... ......... . ........ ... .... .. . 221
31 ................................. . 116 64 .. ....... .... ............. . .. . .. . . 225
32 ... .. ... .. ............... ... . ... . . 120 65 ... ... . .. ...... . .......... . . .. . .. . 228
33 ................................. . 122 66 ................................. . 236
34 ................. . ............... . 125 67 . ....... ...... ... ........ . . .. . ... . 252
35 ................................. . 126 68 . ........ ...... .. . ............... . 257
36 ................................. . 127 69 ........ ... .. ... . .. ............. . . 261
37 . .. ... ........ . .. .. .... ... ... . ... . 131 Livro VIII (Cartas 70-74) ........ ......... .. ... . 263
38 ...... ...... .. .... .. ..... .... .... . 133 70 .. ........ ..... .. ................ . 263
39 ................................. . 134 71 .... . . . ... . ................... .. . . 271
40 ...........................-..... . . 136 72 . .. ... ... ...... . .... . ............ . 283
41 ................................. . 140 73 287
Livro V (Cartas 42-52) . .... .. ..... . . .. .. ... ... . 145 74 293
42 . ........ . .. .... .. .... .... ... .... . 145 Livro IX (Cartas 75-80) . ... ... ....... .... ... . . . 305
43 ................................. . 147 75 ... ... .. .. ..... .. ........ .. ..... . . 305
44 .. ....••......... .. •... .........•. 148 76 . ..... ........ . . .... .... . .... . ... . 310
45 . ........... . ... . ...... .. . ..... .. . 150 77 .. . ..... .. .... .... ...... ... .... . . . 322
46 ......... .. ..... . .... . ...... . .... . 154 78 .......... .. .. ... .. ·.............. . 328
47 ................................. . 156 79 ................................. . 337
48 ....................... .....•.... . 161 80 ... ......... . . ....... . ........... . 343
49 ................................. . 165 Livro X (Cartas 81-83) ...... . ... .... .. . .. .. ... . 349
50 ........ ........ ....... . ......... . 169 81 ................................. . 349
51 .................................. . 172 82 ................................. . 359
52 ... ... ... ... .. ............ . ... . .. . 176 83 369

710 711
Livros XI a XIII (Cartas 84-88) ................. . 379 114 ..... ............................ . 628
84 ................................ .. 379 115 ................................. . 638
85 ............................... .. . 383 116 ....................... ...... . •.• .. 644
86 ........................ . ....... .. 395 117 ................ .. ............... . 647
87 ................................ .. 402 Livro XX (Cartas 118-124) ........ . ...... .. .... . 659
88 ........................ . ........ . 415 118 ................................. . 659
Livro XN (Cartas 89-92) .............. . .... · · · · 431 119 ................................. . 664
89 ................................. . 431 120 ................................. . 669
90 ................................. . 439 121 ................................. . 677
91 ................................. . 455 122 ............. .. ......... .. ....... . 685
92 ................................ .. 462 123 ................................. . 692
Livro XV (Cartas 93-95) ......... · · · · · · · · · · · · · · · 475 124 ................................. . 697
93 ................................. . 475 Livro XXII (Fragmentos) ...................... . 705
94 ................................. . 479
95 ................................. . 502
Livro XVI (Cartas %-100) ..................... . 527
% ................................ .. 527
97 ................................. . 528
98 ................................ .. 533
99 ................................ .. 539
100 ................................. . 548
Livros XVII a XVIII (Cartas 101-109) ............ . 553
101 ................................. . 553
102 ................................. . 558
103 ................................. . 568
104 ................................. . 569
105 ................................. . 580
106 ................................. . 583
107 ................................. . 586
108 ........ . ........................ . 590
109 ................................. . 603
Livro XIX (Cartas 110-117) .................... . 609
110 ................................. . 609
111 ................................. . 615
112 ..................... . ........... . 617
113 ................................. . 618

712 713
Esta tradução portuguesa
de CARTAS A LUCÍLIO, de Lúcio
Aneu Séneca, foi impressa
em offset e encadernada na
Orgal - Orlando & Ca., Lda.. - Porto
para a Fundação Calouste Gulbenkian.
A tiragem é de 2000 exemplares encadernados.
Março de 2004

Depósito Legal n.º 208 812/04

ISBN 972-31-0536-5

Você também pode gostar