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Tennessee Williams

(EUA, 1911-1983)

Mutilado

Em New Orleans, no Inverno de 39, havia três prostitutos que vagueavam


numa certa esquina de Canal Street e numa daquelas ruas estreitas que
desaguam na parte velha da cidade. Dois eram apenas rapazes de cerca de
dezassete anos que só despertavam uma atenção passageira, mas o mais velho
dos três era um jovem inesquecível. Chamava-se Oliver Winemiller e fora em
tempos campeão de pesos pesados da esquadra do Pacífico, antes de perder um
braço. Agora parecia uma estátua de Apolo mutilada, e tinha também a frieza e
impassividade de uma figura de pedra.
Enquanto os dois mais novos exibiam a energia impaciente dos pardais, a
correr dentro e fora nos bares, a adejar pelas ruas e esquinas em busca de
possíveis presas, Oliver ficava-se por um só lugar e esperava que se lhe
dirigissem. Nunca falava primeiro, nem aliciava com um olhar. Parecia olhar
por cima das cabeças dos transeuntes, com uma indiferença que não era
fabricada, nem era de enfado ou vaidade, mas que tinha as suas raizes num
genuíno desprendimento. Quase não ligava ao tempo. Quando a chuva fria
vinda do Golfo varria as ruas, os dois mais novos ficavam encolhidos, a tremer,
desaparecendo completamente dentro dos casacos esfarrapados. Mas Oliver
ficava ali, na sua T-shirt e blue jeans já muito desbotadas, quase brancas, do
muito uso e muitas lavagens, tão justas ao corpo como as roupas de uma
escultura.
Conversas como esta ocorriam com frequência naquela esquina.
“Não tens medo de apanhar uma constipação, meu rapaz?”
“Não, eu nunca me constipo.”
“Bem, há sempre uma primeira vez para tudo.”
“Isso é verdade.”
“Devias ir para um sítio qualquer para te aqueceres.”
“Para onde?”
“Eu tenho um apartamento.”
“Para que lado é?”
“Fica a alguns quarteirões aqui no Bairro. Apanhamos um táxi.”
“Vamos a pé e tu dás-me o dinheiro do táxi.”

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Oliver estava nesta sua situação de deficiente há dois anos. Tinha sofrido
aquela amputação no porto de San Diego quando ele e um grupo de colegas
marinheiros chocaram contra uma parede, numa passagem inferior, quando
viajavam num carro alugado a cento e vinte quilómetros à hora. Dois dos
marinheiros que iam no carro tiveram morte imediata, um terceiro sofreu uma
lesão na coluna que o deixou numa cadeira de rodas para o resto da vida.
Oliver foi o que menos sofreu, ficando ainda assim sem um braço. Tinha então
dezoito anos e as suas capacidades ficaram limitadas. Ele era do Arkansas,
vinha dos campos de algodão, onde tinha conhecido apenas o trabalho duro ao
sol e aquelas aventuras emocionais que os rapazes do campo experimentam nas
noites de sábado e tardes de domingo, contacto experimental com raparigas que
explodiu subitamente num caso ordinário e chocante com uma mulher casada,
para cujo marido ele trabalhara como carregador. Ela foi a pessoa com quem,
pela primeira vez, tomou consciência do invulgar arrebatamento que conseguia
provocar. Foi para acabar com este caso que ele saiu de casa e se alistou na
Marinha, numa base no Texas. Durante o seu período de treino dedicou-se ao
boxe e enquanto ainda era recruta tornou-se um lutador destacado no
campeonato da Marinha. A vida era feita de muito divertimento e nenhuma
ponderação. Tinha apenas de lidar com o corpo e suas sensações. Mas depois
ficara sem o braço, e isso pôs termo ao seu desenvolvimento como atleta e
jovem perfeitamente adequado ao mundo físico em que cresceu.
Oliver não conseguia pôr em palavras a alteração física que a sua
mutilação arrastara com ela. Ele sabia que tinha perdido o braço direito, mas
não tinha consciência plena de que com ele tinha desaparecido o centro do seu
ser. Mas o ego, que não forma palavras nem mesmo pensamentos, tinha
chegado a uma constatação que subia secretamente em turbilhão do seu
recôndito laboratório e o mudou completamente em menos tempo do que a
pele nova levou a cobrir-lhe o coto do braço perdido. Nunca disse para si
próprio, estou perdido. Mas o seu ego sem palavras sabia-o, e em submissão ao
seu controlo irracional o jovem começara, logo que saíra do hospital, à procura
da destruição.
Começou a vaguear pelo país, indo primeiro para Nova York. Foi aí que
Oliver aprendeu a substância daquilo que se tornou a sua ocupação.
Associou-se com um outro vadio que lhe abriu os olhos para o valor da
sua mercadoria e como fazer dinheiro com ela. Numa semana o jovem maneta
estava perfeitamente familiarizado com as práticas e a cultura do submundo
que fervilhava à volta dos bares de Times Square e da Broadway e das

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alamedas do parque, ladeadas de bancos, e que por lhe ser estranho, pouco o
chocou. A perda do braço tinha-lhe aparentemente embotado os sentidos. Com
ele tinha desaparecido aquela sadia qualidade que o tinha levado a sair de casa
quando aquela adulta ordinária o tinha iniciado em práticas de ardor anormal.
Agora já não sentia vergonha de que a água e sabão não lavassem tão bem
como ele gostava.
Quando o Verão acabou, juntou-se à migração para sul. Viveu algum
tempo em Miami. Aí saíu-lhe a sorte grande. Conheceu uns desportistas ricos, e
durante todo esse tempo passou de uns para outros, acumulando dinheiro mais
depressa do que podia gastá-lo em roupas e diversões. Aconteceu então que,
uma noite, ele se embebedou no iate de um corretor da bolsa no porto de Palm
Beach e, sem qualquer razão que ele depois conseguisse ter por certa, bateu oito
vezes na cabeça inclinada do homem, com um suporte de livros de cobre,
tendo-lhe despedaçado o crânio com a última pancada. Nadou para terra, foi
buscar as suas coisas e fugiu para fora do Estado. Isto pôs termo ao capítulo
mais opulento da existência de Oliver. Daí em diante movia-se, por uma
questão de segurança, em círculos mais discretos, perdendo-se no bando dos
fugitivos em qualquer cidade suficientemente grande para que tal actividade
pudesse passar despercebida.
Então, uma noite, naquele Inverno em New Orleans, pouco depois da
época do Mardi Gras, e quando ele estava já a pensar em se dirigir para Norte,
Oliver foi apanhado por um polícia à paisana e levado para a cadeia, não sob a
vulgar acusação de vagabundagem licenciosa, mas para interrogatório
relacionado com o assassínio do corretor rico no porto de Palm Beach.
Arrancaram-lhe um confissão completa em cinco minutos.
Mal se esforçou por iludir as perguntas.
Deram-lhe meio copo de whisky para lhe soltar a língua e ele fez-lhes um
relato negro da festa que o corretor tinha dado no seu iate. Oliver e uma
prostituta receberam cem dólares cada um para fazerem aquilo a que se chama
um blue movie, isto é, um filme feito em privado, com cenas licenciosas entre
duas ou mais pessoas, e geralmente com uma qualquer narrativa de tipo
grosseiro. Ele e a rapariga tinham-se despido gradualmente diante da câmara e
de todo o grupo dos convidados que se encontravam no iate, e entregaram-se
àquelas carícias e intimidades só geralmente testemunhados por quatro paredes
e uma porta trancada. A rodagem não chegara ao fim. Para seu próprio espanto,
Oliver revoltara-se subitamente, batera na rapariga e dera um pontapé na
câmara, fugindo depois para o convés superior. Lá em cima, pensara que se

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ficasse no iate acabaria por fazer qualquer coisa mais violenta. Mas quando os
outros foram, por fim, para terra, numa lancha, Oliver ficara, porque o anfitrião
lhe tinha acenado com dinheiro e a promessa de mais ainda.
“Eu já sabia, quando o deixaram só comigo, que ele se ia arrepender,”
disse Oliver em declarações à polícia. Foi esta confissão que o procurador
utilizou para o acusar ainda de premeditação.
No julgamento tudo correu contra ele. O seu testemunho foi ineficaz
frente ao prestígio das outras testemunhas, que juraram, todas elas, que nada de
anormal se tinha passado no iate. (Ninguém, à excepção de Oliver, se lembrava
de nada acerca do blue movie, nem ninguém tinha ouvido falar da prostituta.) E
o facto de Oliver ter tirado do corpo da vítima um anel de diamantes e uma
carteira confirmou a culpa do jovem e condenou-o à cadeira eléctrica.
A prisão do assassino do corretor foi notícia nos jornais de todo o país. A
fotografia do jovem estropiado saltou dos jornais para os olhos espantados dos
homens que o tinham conhecido em todos aqueles lugares por onde Oliver
tinha passado nas suas viagens sem destino. Para aqueles homens que o tinham
conhecido, a sua imagem não era daquelas que se esquecem facilmente. O
grande jovem louro, que fora boxeur antes de ficar sem o braço, tinha sido como
um planeta entre as luas dos seus anseios, firme na sua órbita, enquanto elas
giravam à sua volta. Agora tinha sido apanhado algures e caíra em desgraça. E
por esta desgraça ele tinha -lhes sido, em certo sentido, devolvido. Já não
andava nas estradas ou caminhos, sempre em movimento, estava enjaulado
num canto, apenas à espera da morte.
Começou a receber cartas deles. Cada vez eram em maior número os
envelopes que o carcereiro, de manhã, lhe metia na cela, pelas grades. As cartas
vinham geralmente assinadas com nomes fictícios e se pediam uma resposta, os
endereços fornecidos eram a posta restante de uma daquelas cidades maiores
onde Oliver exercera a sua actividade. Vinham escritas em fino papel branco,
algumas ligeiramente perfumadas, e outras com dinheiro dentro. As mensagens
tinham todas um fraseado semelhante. Todas falavam do choque que o seu
problema lhes provocara, não podiam acreditar que fosse verdade, era como
um pesadelo, e assim por diante. Faziam alusões às noites que ele tinha passado
com eles, ou àquelas horas que quase todos invariavelmente consideravam
como as mais ricas da sua vida. Havia nele qualquer coisa, escreviam eles, e não
apenas no tão importante aspecto físico, que fizera com que não mais lhes
tivesse saído da cabeça.

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Aquilo a que eles se referiam era o encanto dos derrotados que Oliver
possuíra, uma qualidade que actua como uma cataplasma sobre os nervos
inflamados daqueles que ainda se mantêm activamente em luta. Esta qualidade
raramente está ligada à juventude e ao encanto físico, mas no caso de Oliver
estava, e era esta rara combinação que fizera dele uma pessoa impossível de
esquecer. E como estava condenado à morte, Oliver tinha para estes
correspondentes aquela qualidade abstracta e velada do pastor que escuta,
invisível, as confissões de culpa. As habituais inibições do inconsciente eram
consequentemente neutralizadas e eles entregavam-se às sombrias alegrias do
mea culpa. As ladainhas das suas culpas jorravam sobre o papel como a água de
diques rebentados. Para alguns ele tornou-se o arquétipo do Salvador Sobre a
Cruz que tomara sobre si os pecados dos seus mundos para serem lavados e
purificados com o seu sangue e paixão. As cartas deste género enfureciam o
prisioneiro, e ele prendia-as debaixo de um pé e rasgava-as aos bocados e
atirava-os para o balde dos despejos.
Com a mecânica crueldade da lei, a execução da sentença de Oliver deu-
lhe ainda algumas semanas de espera durante os meses de Verão. No seu
cubículo sufocante havia muito pouco para fazer, enquanto esperava a morte, e
tempo suficiente, com o estímulo da fatalidade, para a natureza maleável do
rapaz se refazer outra vez, e as cartas tornaram-se o instrumento deste processo.
Naquelas primeiras semanas na cela da morte, ficava sentado na cadeira
de encolher ou deitado no catre numa atitude não muito diferente daquela em
que ficava encostado a uma parede de tijolos, nas suas blue jeans e T-shirt, numa
esquina de New Orleans, até que alguém lhe perguntasse as horas ou lhe
pedisse lume. Deram-lhe um baralho de cartas com nódoas de chocolate e livros
de banda desenhada, cómicos e de aventuras, já esfarrapados, para passar o
tempo. E havia um rádio ao fundo do corredor. Mas Oliver estava desligado
daquele mundo que clamava da boca do rádio e do mundo da palhaçada e
heroísmo unidimensionais com as cores naturais do espectro infantil que a
bandas desenhadas exaltavam. Tudo isto lhe passava impetuosamente ao lado,
em vez de o tocar, e só as cartas que recebia mantinham uma relação com ele.
Passado algum tempo, ele não só lia todas as cartas, como também
começou a dobrá-las e a pô-las outra vez nos envelopes e a juntá-las todas em
maços amarrados com elásticos numa prateleira. Uma noite, sem pensar, tirou-
as todas da prateleira e pô-las debaixo da almofada, e adormeceu com a sua
única mão pousada sobre elas.

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Poucas semanas antes do dia da execução, Oliver começou a responder às
cartas daqueles homens que lhe imploravam notícias suas. Escrevia com um
lápis que rapidamente ficou reduzido a um toco sob a sua pressão desajeitada.
Escrevia em papel-manilha e mandava as respostas em envelopes oficiais
timbrados, para todas as cidades por onde andara.
Como já não lhe restava qualquer parente vivo a quem escrever, esta era a
sua primeira experiência em escrever cartas. No princípio escrevia com penosa
dificuldade. A redacção da frase mais simples retesava-lhe os músculos da sua
única mão poderosa, mas à medida que a escrita prosseguia, e num curtíssimo
espaço de tempo, ganhou uma maior desenvoltura. Em breve as frases
ganharam ímpeto como nascentes a desaguar num canal, e pouco depois
começaram a fluir quase expressivamente e a soar como o falar sertanejo
grosseiramente eloquente do Sul ao qual se juntaram idiomatismos saborosos
do submundo em que ele se movera, e da estrada, e do mar. Nelas entrou o
falar quente e vivo que a bebida e um comportamento generoso lhe tinham
emprestado em certas ocasiões, as chansons de geste que os falares americanos
desperdiçam tão desprocupadamente em bares e quartos de hotel. O símbolo
da gargalhada na banda desenhada era muitas vezes empregue, aquele HA -
HA bem carregado com a sua série de exclamações, as suas estrelas e espirais, e
pôr tudo isto no papel era o que mais o aliviava, porque tinha o sabor da
intensidade fervilhante que havia nele. Incluía muitas vezes uma ilustração
grosseira, um esboço da cadeira onde ele estava condenado a sentar-se.
As cartas eram deste género.
“Sim, lembro-me perfeitamente de ti. Conheci-te no parque, atrás da
biblioteca pública, ou foi no WC dos homens da central da Greyhound. Conheci
tantos que às vezes confundo-os todos. Contudo, tu sobressais completamente.
Perguntaste-me as horas ou pediste-me lume e começámos a conversar, e
quando dei por mim estávamos no teu apartamento a beber. E como é que está
Chicago, agora que já é Verão outra vez? Quem me dera sentir aquelas brisas
frescas do lago ou beber uns tragos daquele excelente Connyack Cinco Estrelas
onde passámos a noite naquele dia. Digo-te que está calor aqui, neste frigorífico.
O frigorífico é bom. Ha-ha! Uma coisa com que de certeza posso contar é que
isto vai aquecer antes de arrefecer outra vez. Se percebes o que quero dizer.
Refiro-me à cadeira com os fios que espera pacientemente que me sente nela. A
data é dez de Agosto e ficas desde já convidado, a não ser que não te deixem
entrar. Isto é muito exclusivo. Com certeza gostavas de saber se estou com
medo. A resposta é Sim. Não estou ansioso por aquilo. Fui boxeur até perder o

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braço e depois de isso acontecer sofri como que uma transformação que não
consigo explicar excepto que  todo este mundo me repugnava muito. Suponho
que deixei de me importar com o que me acontecia. Isto é, perdera o respeito
por mim próprio.
“Andei por todo o país sem qualquer plano, excepto o de continuar
sempre a andar. Engatei estranhos em todas as cidades por onde andei. Tive
com eles relações que, para mim, apenas significavam dinheiro e um lugar para
passar a noite e bebida e comida. Nunca pensei que pudesse significar tanto
para eles. Ora, todas estas cartas como a tua provaram que estava enganado. Eu
era qualquer coisa de muito importante para centenas de pessoas cujas caras e
nomes se me varreram da cabeça logo que os deixei. Tenho a sensação de ter
ficado como que em dívida. Não de dinheiro, mas de sentimentos. Tratei mal
alguns deles. Vinha-me embora sem sequer dizer adeus, apesar de toda a sua
generosidade para comigo, e cheguei mesmo a tirar coisas que me não tinham
sido dadas. Não sei como é que alguns destes homens puderam perdoar-me. Se
eu soubesse nessa altura, quer dizer, quando andava lá por fora, que se podiam
encontrar sentimentos tão verdadeiros em pessoas estranhas, quer dizer, aquele
tipo de pessoas que eu engatava para viver, parece-me que poderia ter sentido
que havia outras coisas por que viver. Seja como for, a situação agora é
desesperada. Tudo acabará para mim dentro de muito pouco tempo. Ha-ha!
“Provavelmente não sabias que eu era um artista, da mesma maneira que
um campeão de boxe maneta, e portanto vou desenhar-te uma bela gravura!”
Esta tarefa de escrever cartas tornou-se a sua única ocupação, e tal como as
pedras ficam quentes quando postas entre carvões, o cérebro do condenado
ficou cada vez mais caloroso com um sentido de comunhão. Antes da desgraça,
esta mudança podia ter sido a salvação. Podia ter oferecido um núcleo de
integração pessoal que o rapaz não tinha desde que o sonho do sucesso nos
ringues se fora. Uma personalidade sem núcleo constrói uma muralha à sua
volta e vive sitiada. Oliver tinha assim cultivado a sua insularidade fria e
absoluta, por detrás da qual estivera a cidade arruinada do campeão
estropiado. Dentro daquelas muralhas houvera muito pouco ou nada com que
lutar pela sobrevivência. Agora havia qualquer coisa a mexer lá dentro.
Mas esta chegada à vida era impiedosa, por tardia. A indiferença
desaparecera exactamente quando devia ter ficado para lhe tornar a morte mais
fácil. E o tempo passava a correr. Na imutável clausura da sua cela, o tempo que
mediava entre a sua juventude e a sua morte consumia-se como o lápis macio

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com que escrevia, até que apenas lhe restava um coto demasiado pequeno para
agarrar.
E que vivo ele estava ainda!
Antes da prisão, ele pensava no seu corpo estropiado como qualquer coisa
que, estragada como estava, apenas servia para maltratar. Ó maldito
estropiado, costumava ele gemer para si próprio. A excitação que provocava
nos outros era, para si, incompreensível e repugnante. Mas, ultimamente, a
torrente de cartas dos homens que ele esquecera e que não conseguiam deixar
de pensar nele começou a ressuscitar o seu interesse por si próprio.
Começaram a desabrochar nele sensações auto-eróticas. Sentia o prazer
doloroso que excitava as suas entranhas em resposta à manipulação. Nu em
cima do catre, no Julho meridional, a sua enorme e única mão acariciava
tristemente o corpo, explorando aquelas zonas erógenas que os dedos de
outros, centenas de dedos estranhos, tinham apertado com uma avidez que,
para ele, começava agora a ser compreensível. Tardia demais, esta ressurreição.
Melhor fora que todos estes arco-íris da carne tivessem ficado em San Diego,
juntamente com o braço amputado.
Durante os primeiros tempos de prisão Oliver não tinha reparado em
especial, nem se tinha preocupado muito com as limitações espaciais da sua
cela. Bastava-lhe então estar sentado na borda do catre e não se movimentar
mais do que o estritamente necessário para satisfazer as suas necessidades
vitais. Isso tinha sido uma bênção para ele. Contudo, esse estado de espírito já
se fora, e todas as manhãs tinha a sensação de acordar num espaço que
diminuíra misteriosamente enquanto dormia. As repressões interiores gritavam
assim pela libertação. A impaciência tornou-se uma fobia e a fobia estava a
transformar-se em pânico.
Não conseguia estar parado um só momento. Os seus passos pesados
soavam no átrio como os de um gorila, porque ele andava descalço e caminhava
ao acaso em passos largos à volta da sua jaula. Falava consigo próprio numa
meia voz monótona que foi subindo de tom à medida que os dias passavam, até
começar a competir com o infindável palavrório e clangor do rádio dos
guardas. A princípio calava-se quando o mandavam, mas depois o pânico não o
deixava ouvir as vozes dos guardas enquanto estes não começavam a gritar-lhe
ameaças. Depois agarrava-se às grades da porta da cela e respondia-lhes aos
gritos, com nomes e maldições mais violentas do que as deles. O
comportamento do condenado cerceou quaisquer actos humanitários que estes
homens duros pudessem ter tido para com ele, á medida que a morte se

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aproximava. Por fim, três dias antes da execução, castigaram um dos seus
ataques de cólera virando contra ele a agulheta contra incêndios até ele ficar
esmagado contra o chão feito num feixe, esganado. Ali ficou a soluçar e a
praguejar e com a cabeça a girar numa espiral vertiginosa de pesadelos.
Por esta altura, deixou completamente de escrever cartas, mas durante os
intervalos em que estava mais calmo fazia desenhos extravagantes no seu
caderno e copiava os símbolos violentos da banda desenhada, especialmente os
enormes HA-HA com a sua pontuação gritante. Nos seus últimos dias punham-
lhe sedativos na comida, mas essas drogas eram queimadas na fornalha dos
seus nervos e o pouco sono que lhe proporcionavam mergulhava-o em
pesadelos piores do que os que já tinha quando acordado.
Um dia antes de morrer Oliver recebeu uma visita na sua cela da morte.
O visitante era um padre Luterano acabado de sair do seminário, e a quem
ainda não fora entregue uma igreja. Oliver recusara receber o capelão da prisão.
Isto tinha sido noticiado nos jornais locais com uma fotografia de Oliver e um
título, JOVEM CONDENADO RECUSA CONSOLAÇÃO DA FÉ. Falava
também da natureza dura e impenitente do jovem que ia morrer muito em
breve, e do seu comportamento violento na prisão. Mas a fotografia não
condizia com estes factos, apresentando o rosto do jovem louro uma beleza
viril, mas terna, daquele tipo que um qualquer pintor da Renascença podia ter
atribuído secretamente a um santo juvenil, uma expressão que por vezes
inspirara alguns comentadores a chamar-lhe ‘o assassino com cara de bebé’.
Desde o momento em que vira aquela fotografia, o ministro Luterano andara a
observar uma série de compulsões de tal maneira fortes que lhe parecia que se
estava a render a um poder exterior. A sua sinceridade era tão evidente que não
teve problemas em convencer o director da cadeia de que a sua missão junto
daquele jovem era de inspiração divina, mas na altura em que o passe foi
emitido, a força das suas compulsões tinha esgotado o jovem padre de tal
maneira que caiu num estado de pânico nervoso e teria fugido do edifício se
não tivesse sido ajudado por um guarda.
Encontrou Oliver sentado na borda do catre, a coçar distraidamente a sola
de um pé. Tinha apenas uns calções vestidos e o seu corpo irradiava um calor
que atingiu o visitante como um poderoso holofote. O aspecto do rapaz não
fora falseado na reportagem. Num primeiro relance o espírito do ministro
regressou a uma obsessão da sua infância, quando durante todo um Verão tinha
ido diariamente ao jardim zoológico ver uma pantera dourada. O animal era
tido como particularmente selvagem, e uma tabuleta na jaula aconselhava os

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visitantes a manterem-se à distância. Mas os olhos do animal irradiavam uma
tal inocência que a criança, que era muito tímida e cheia de angústias
irracionais, encontrara neles um misterioso conforto e acabara por começar a
vê-los brilhar benignamente na escuridão quando os seus próprios olhos se
fechavam antes de adormecer. Então chorava até adormecer com pena do
aprisionamento do animal e com uma insondável ânsia que lhe percorria todo o
corpo.
Mas, uma noite, ele sonhou com a pantera de uma maneira indigna. Os
imensos olhos claros tinham-lhe aparecido numa floresta e ele pensara, se eu
me deitar muito quieto, a pantera aproxima-se de mim e eu não tenho medo
dela por causa das nossas longas comunhões através das grades. Despiu-se
antes de se deitar. Um vento fresco começou a soprar e sentiu-se a tremer.
Depois, um ligeiro medo apoderou-se-lhe dos nervos. Começou a pôr em
dúvida a sua segurança com a pantera e teve receio de abrir os olhos outra vez,
mas estendeu a mão, e, tão vagarosa e silenciosamente quanto possível, juntou
algumas folhas à volta da sua trémula nudez e enroscou-se debaixo delas,
tentando respirar tão suavemente quanto possível, na esperança de que a
pantera já não o descobrisse. Mas o vento fresco aumentou e soprou as folhas.
Então, subitamente, ficou quente, apesar da escuridão ventosa que o rodeava, e
viu que o calor era da pantera dourada que se aproximara. Agora era inútil
tentar esconder-se e era tarde demais para tentar uma fuga, e assim, com um
suspiro, o sonhador deixou a sua posição enroscada e ficou estendido de braços
e pernas afastados numa atitude de absoluta confiança e submissão. Começou a
sentir qualquer coisa que lhe batia e logo percebeu, por causa do calor líquido,
que era a língua do animal a lambê-lo, como aqueles animais fazem para lavar
os filhos, começando pelos pés e subindo lentamente pelas pernas acima até que
aquele toque narcótico lhe atingiu o ventre, e então o sonho tomou o tal curso
indigno, e ele acordara a arder de vergonha, sob a iniciação húmida e dolorosa
de Eros.
Só fora visitar a pantera dourada uma vez, depois daquilo, e descobriu
que não era capaz de suportar aquele olhar radioso do animal sem mortificação.
E assim aquele idílio terminou, ou parecera terminar. Mas aqui estava de novo
o olhar da pantera dourada, a inocência no perigo, um paralelismo exacto tão
inequivocamente claro, que o ministro o reconheceu e sentiu o instinto infantil
de se enroscar num círculo protector e cobrir o corpo com folhas.
Em vez disso, meteu a mão no bolso e tirou uma caixa de pastilhas.
“O que é isso?” perguntou o rapaz.

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“Pastilhas de veronal. Não me estou a sentir muito bem,” murmurou o
padre.
“O que é que tem?”
“Um pequeno problema funcional no coração.”
Tinha posto uma pastilha na língua, mas a língua estava completamente
seca. Não conseguia engolir.
“Tens aí água?” murmurou.
Oliver levantou-se e foi à torneira. Encheu um púcaro esmaltado com água
tépida e estendeu-o ao visitante.
“O que é que o senhor veio aqui fazer?” perguntou ele ao jovem.
“Ter só uma conversa.”
“Não tenho nada a dizer, mas é uma cartada difícil.”
“Então deixa-me ler-te uma coisa.”
“Que coisa?”
“O Salmo vinte e um.”
“Eu disse-lhes que não queria aqui capelães.”
“Eu não sou capelão, sou apenas…”
“Apenas o quê?”
“Um estranho com simpatia pelos incompreendidos.”
Oliver encolheu os ombros e continuou a coçar a sola do pé. O ministro
suspirou e tossiu.
“Estás preparado?” murmurou.
“Eu não estou preparado para a cadeira quente, se é isso que quer dizer.
Mas a cadeira está preparada para mim, portanto que importa?”
“Eu estou a falar de Eternidade,” disse o padre. “Este nosso mundo, esta
existência transitória, é apenas o limiar de uma Imensidão no além.”
“Tretas,” disse Oliver.
“Não me acreditas?”
“Por que é que havia de acreditar?”
“Porque estás cara a cara com a última aventura!”
Esta resposta saiu-lhe da boca com uma espécie de energia exultante. Estava
embaraçado com o olhar firme do rapaz. Desviou o olhar tal como tinha feito,
por fim, com a pantera dourada da última vez que tinha ido ter com ela.
“Ha-ha!” disse Oliver.
“Estou apenas a tentar ajudar-te a compreender…”
Oliver interrompeu-o.
“Eu fui boxeur. Perdi um braço. E porquê?”

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“Porque persististe no erro.”
“Tretas,” disse Oliver. “Eu não ia a conduzir. Gritei ao sacana, abranda,
meu sacana. Depois foi o embate. Boxeur, o meu braço foi arrancado. Explique-
me isto.”
“Isso deu-te a oportunidade de uma vida.”
“A oportunidade de quê?”
“De estenderes os teus braços espirituais e chegar a Deus.” Inclinou-se
para Oliver e agarrou-lhe os joelhos. “Não penses em mim como homem, mas
como uma ligação!”
“Hein?”
“Um fio que está ligado ao teu coração e carregado com uma mensagem de
Deus.”
O olhar curiosamente envolvente do condenado fixou o rosto do visitante
durante alguns segundos.
Depois disse, “Molhe aquela toalha.”
“Qual toalha?”
“Aquela que está por cima da cadeira em que está sentado.”
“Não está muito limpa.”
“Parece-me que está suficientemente limpa para o Ollie.”
“O que é que queres fazer com ela?”
“Limpar o suor das costas.”
O padre humedeceu o pano amarrotado e teso e estendeu-o ao rapaz.
“Faça-me isso.”
“O quê?”
“Limpe-me o suor das costas.”
Virou-se e deitou-se sobre o estômago com um longo suspiro, uma
exalação que trouxe de novo ao espírito do amedrontado visitante a pantera
dourada de há quinze anos. Aquela tarefa continuou durante um minuto.
“Cheiro mal?” perguntou Oliver.
“Não, porquê?”
“Eu estou lavado,” disse o rapaz. “Tomei banho depois do pequeno
almoço.”
“Sim.”
“Sempre tive o cuidado de andar limpo. Era um lutador limpo - e um prostituto
muito limpo!”
E disse, “Ha-ha! Sabia que eu era um prostituto?”
“Não,” disse o outro.

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“Bem, era exactamente isso que eu era. Foi a minha segunda profissão.”
A fricção continuou mais um minuto, durante o qual o padre tivera a
sensação de que o som de um tambor invisível avançava do fim do corredor até
à porta da cela e depois através das grades até ficar mesmo por cima deles.
Era o bater do coração. E essa palpitação começava agora a tornar-se irregular e
a sua respiração assobiava. Deixou cair a toalha e procurou no bolso a caixa dos
sedativos, mas quando a tirou viu que o cartão estava mole do suor e as
pastilhas se tinham fundido numa pasta branca.
“Continue,” disse Oliver. “Sabe bem.”
Arqueou o corpo e puxou os calções mais para baixo. As ancas estreitas e
esculturais do jovem ficaram à mostra.
“Agora,” disse Oliver baixinho, “esfregue com as suas mãos.”
O Luterano ergueu-se do catre num salto.
“Não!”
“Não seja trouxa. Há ali uma porta ao fundo do átrio. Faz barulho, quando
entra alguém.”
O ministro recuou.
O rapaz agarrou-o pelo pulso.
“Está ver aquele maço de cartas na prateleira? São contas de pessoas a
quem eu devo. Não dinheiro, mas sentimentos. Durante três anos completos
andei por todo o país a despertar sentimentos sem eu próprio sentir nada.
Agora tudo mudou e eu também sinto. Estou só e refreado, exactamente como o
senhor. Conheço o seu género. As coisas ou são arte ou então são religião, mas
isso são tudo tretas e eu não vou nessa. Só precisamos é de um empurrão na
cabeça!”
Dirigiu-se ao homem como se fosse dar-lhe o empurrão.
O visitante gritou. O guarda veio a correr para o deixar sair da cela.
Tiveram de o levantar e levar amparado pelo corredor, e antes de chegar ao
fundo começou com vómitos, como se as suas entranhas estivessem a ser
arrancadas para fora.
Oliver ouviu-o.
“Talvez ele volte esta noite,” pensou o condenado. Mas ele não voltou e
Oliver morreu com todas as suas dívidas por pagar. Contudo, morreu com
bastante mais dignidade do que dera a entender aos seus carcereiros.
Durante as últimas horas a sua atenção voltou-se de novo para as cartas. Leu-as
uma e outra vez em voz baixa. E quando o director da prisão veio para o levar
até à câmara da morte, ele disse, “Eu queria levar isto aqui comigo.”

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Levou-as com ele para a câmara da morte, como uma criança leva uma
boneca ou um brinquedo para o dentista para lhe darem aquela protecção que
só o que é familiar e amado pode dar.
As cartas ficaram a fazer-lhe companhia, entaladas entre as coxas, quando
ele se sentou na cadeira. No último momento um guarda estendeu a mão para
lhas tirar. Mas Oliver apertou as pernas com uma força desesperada que
dificilmente poderia ser vencida. O director fez um sinal para que as deixassem
ficar. Depois o momento chegou, o ar zumbiu e escureceu. Raios vindos de
além fronteiras do desconhecido, uma energia com nome e uso práticos, mas
ilimitadamente misteriosa, que no princípio cobriu um espaço infinito de calor,
brilho e movimento, foram instantaneamente canalizados através das células
nervosas de Oliver e depois dispararam em retrocesso para lá daquelas imensas
fronteiras, retirando e levando consigo tudo o que daquele jovem, cujo braço
direito decepado fora conhecido por “o corisco do couro”, reclamavam como
seu.
O corpo, não reclamado depois da morte, foi entregue a uma faculdade de
medicina, para ser usado no teatro anatómico. Os homens que efectuaram a
dissecação ficaram algo desconcertados com o corpo que tinham ali sob os
bisturis. Parecia destinado a um fim mais grandioso, para figurar numa galeria
de escultura da antiguidade, tocada apenas pela luz através da quietude e
contemplação, porque tinha a nobreza de um Apolo mutilado, que
provavelmente mais ninguém conseguiria esculpir, de novo, de maneira tão
pura.
Mas a morte nunca foi uma predilecta da perfeição.

Tradução de Luís Varela Pinto do texto original com o título


One Arm
in Three Players of a Summer Game and Other Stories
Penguin Books, 1965

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