Você está na página 1de 28

GUAPIRA UM CONTRACANTO NA ENCRUZILHADA DA

HISTÓRIA
Dramaturgia de Solange Dias em colaboração com as/os aprendizes e equipe
de criação do Projeto Espetáculo da Fábrica de Cultura do
Jaçanã Músicas originais de Túlio Crepaldi

Com entrada do público ouvimos em off relatos de familiares


das/dos aprendizes contando de onde surgiu a ideia do nome
de cada um delas/deles.

CORO/PRÓLOGO

Aqui será um espaço de cortes e feridas. Mas também de cicatrizes


e renascimentos. Então é necessário dizer que enxergar o que
queremos expor aqui, implica mudar a direção do olhar.

Pra isso, é necessário ler o que foi e é escrito nas linhas que ficam
entre a cabeça que pensa e a boca que fala. É necessário ler as
linhas das veias abertas de todo um corpo, pra escrever com tintas
de sangue, uma nova história.

Pra enxergar o espaço "entre" é preciso mirar a margem e ficar


atento, ouvido apurado, capaz de captar os ecos dos gritos
arrancados durante séculos.

Hoje, mais do que nunca, o corte arde, arde nítida a face do


sequestro de um povo até hoje marcado pelo ferro da história do
colonizador.

É necessário se fortalecer contra aqueles que se dizem vencedores


e que apresentam sua memória como legítima, única e obrigatória.

No Brasil a metáfora dessa resistência se encontra nos morros, em


canudos, no contraforte de Palmares, na ocupação dessa terra, hoje
"conjunto habitacional Jova Rural".

Com seus filhos e filhas espalhados pelos quatro cantos do mundo,


a periferia deixa de ser apenas um canteiro ao fundo da cidade para
se metamorfosear em continente simbólico, uma estrela
multiplicada.
CENA 1 – FERIDAS ABERTAS EM CORPOS FECHADOS

Em um palco em diagonal um “Coro/Cidadãos-de-bem” canta. Ao mesmo


tempo, vemos corpos de uma mulher e um gay sendo arrastados pelos
pés que estão amarrados em uma corda, em alusão às pessoas em
situação de rua que foram laçadas para a inauguração do Leprosário
Guapira.

CORO/CIDADÃO-DE-BEM

(canto)
Corte fundo corte apertado
Memória inscrita na pele no talho
A lâmina fria e o meu sangue quente
Feridas abertas em corpos fechados
Feridas que sangram em poros velados
Um corpo que anda que canta que sente
A vida forja o tempo em meu peito
Neste território fechado e guardado
Por muros de peles
Esquinas de ossos
Por pontes de afeto
E ladeiras de ódio

Transição do Coro/Cidadão para Coro/Trincheira.

CORO/TRINCHEIRA

(canto)
Nos labirintos da lembrança encontro em mim a fala anterior
Solto o grito da garganta que arranca a cerca e atranca junto de
quem botou
Meu sangue é terra meu povo é bamba
E a luta marca o tempo no tambor
Meu corpo é cana, embriaga ao corte
Que amarga a boca e a sorte de quem já provou
Meio soluço me basta pra dizer o pranto inteiro
O que me atravessa eu mordo e cuspo quase inteiro
CENA 2 – CORRE GUAPIRA!!!!

De todo trauma causado pelo entrechoque entre uma sociedade


patriarcal e os anseios de uma mulher indígena, esta, mãe do
bebê Guapira, vocifera à margem do afluente do rio cabuçu,
com seu bebe nos braços.

MULHER MÃE
Eu sou Maria, Maria Guapira,
Maria da Penha, Maria da Graça
Aquela que a desgraça a revista não conta
Guarde nossas cicatrizes como marcas de luta
De cada Maria das Dores, Maria do Socorro
Maria esquecida dos livros de história

Mas eu sou história


Por cada Maria Aparecida eu gero no ventre uma vida
Sou ontem, hoje e sinto o amanhã na minha barriga
Mulheres não geram apenas filhos, geram amanhãs
Os martírios e silêncios fecundarão em nosso ventre
Um rebento de luta por um tempo
Onde haja vida e não tortura Corre
Guapira!!!

CORO/ACESTRAL

(canto)
Gua-Guapira!
Gua-Guapira!
Guapira!

MULHER MÃE
Corre Guapira!
Corre da vergonha imposta ao seu corpo
Como quem grita no meio da noite escura
Como quem desvia do tapa
E revida com a vida que não conseguiram te tirar!
CORO/ANCESTRAL (canto)
Guaaapiiiiraaaa!

MULHER MÃE
Essa água que corre no seu corpo te leva pra outro lugar!
Te escorre do que eu vivi e do que a minha pele sentiu. Minhas
cicatrizes serão trilhos que te levarão pra um tempo do possível
Onde não lacem sua história e mintam sua memória.

CORO/ANCESTRAL
(canto)
Guaaaapiiiiraaaaa!
MULHER MÃE
Pela força ancestral que pulsa em meu ventre eu digo:
- Vá! Viva! Conte sua história você mesma! Em
tempos de tantos apagamentos de morte Viver se
torna um ato de resistência!
Corre Guapira, Corre!!!!

(canto)
Guaaaapiiiiraaaa!

CENA 3 - PAU DE ARARA PONTE DE FUGA

CORO DE MIGRANTES

(canto)
Pode ser cearense ou mesmo pernambucano
Mas chegando em São Paulo tem que ser baiano

Tem que ser baiano, tem que ser baiano


Mas chegando em São Paulo tem que ser baiano
Tem que ser baiano, tem que ser baiano
Mas chegando em São Paulo tem que ser baiano
- “Tudo é baiano”, Aloisio Gomes. 1972.
MIGRANTE 1
Minha mãe veio passar as férias em São Paulo. Gostou do que viu
e resolveu ficar! Aí então ela começou a trabalhar. Trabalhava
numa fábrica e foi lá que conheceu meu pai!

CORO DE MIGRANTES

(canto)
Eu quero trabalhar o dia inteiro
Nem que seja pra ganha um tostão
Eu já não posso mais
E voltar atrás eu não quero não
- “Poeira do Norte”, Pedro e Paulo. 1978.

MIGRANTE 2
O meu avô veio da Bahia quando ainda era um menino. Os seus
pais o trouxeram pra cá e ele nem teve tempo de conhecer suas
terras. Os primos e tios, tudo ficaram por lá. Os meus parentes que
eu não conheço. Mas eu devia conhecer porque a Bahia também
está no meu sangue.

CORO DE MIGRANTES

(Canto)
Sou filho da Bahia com muita alegria não
interessa se o relógio já deu meio dia (2x)
- “Baiano não é palhaço”, Gordurinha. 1962.

MIGRANTE 3
Minha mãe teve três filhos e conta que quando veio do nordeste pra
São Paulo, ela trouxe poucas coisas na mala, inclusive uma
santinha, que era pra dar sorte. Na primeira oportunidade, ela foi
trabalhar na casa de uma madame e conseguiu!
CORO DE MIGRANTES
Conseguiu ? Será que a gente consegue?

MIGRANTE 4
O meu pai veio de Sergipe em busca de uma vida melhor, mas deu
no contrário! Por aqui ele se matou de trabalhar para sustentar a
família por um salário medíocre. O que antes era o sonho de chegar
aqui aos poucos se transformou no sonho de um dia voltar pra lá.

CORO DE MIGRANTES
[projeções de imagens do slogan do projeto “cidade limpa”]

(canto)
Ai, ai, ai
Ai, iô iô
Vou repetir que o Brasil foi descoberto na Bahia e o resto é interior
Até parece que eu tô n' outro país, vê
que piada infeliz inventaram agora
Ajude a manter a cidade limpa matando um baiano por hora
Ajude a manter a cidade linda matando um baiano por hora
- “Baiano não é palhaço”, Gordurinha. 1962.

CORO DAS FILHAS/OS DA TERRA


São pelos morros que eu subo e suo
Por esses morros que meu povo fincou abrigo
Perigo
Estão nas vielas nossas cicatrizes
Na cara, no peito, na mão e nos olhos
Na roda de samba e na mente que insiste

CORO A
Milhares chegaram aqui, zona norte de São Paulo,

CORO B
Trazendo suas fomes, seus afetos e sua força de trabalho

CORO A
Milhares chegaram aqui chegaram, zona norte de São Paulo,
CORO B
Trazendo suas fomes, seus afetos e sua força

Nos tornamos filhos desta terra mas com outro nome


Somos aqueles que servem mas não são bem vindos
Os que constróem prédios, mas não podem entrar
Aquela que produz aos montes, linha de montagem
Mas a grana que recebe não dá pra comprar

E quando chegamos lá
Quando chegamos lá então 2x

A casa grande estremece!!!

CENA 4 - LEPROSÁRIO GUAPIRA – MURO DE PELES

SENHORAS DE BEM
Senhor, não posso ficar nem mais um segundo sem você, senhor!

CORO

(canto)
Sinto muito amor, mas não pode ser
Moro em Já... Guapira
Se sair no jornal
Eu acho que esse povo pira
É uma vergonha total

[projetar legenda “Discurso de inauguração do Leprosário Guapira. 1902”]

ATOR
Inauguração do Leprosario Guapira.
Nesse dia compareceu uma caravana de autoridades que para
justificarem a importância do investimento, foram até a Estação da
Luz e laçaram pessoas em situação de rua para encherem a casa.
Lá os laçados foram banhados, tiveram suas unhas, barbas e
cabelos cortados e até lhes deram roupas novas.

(Ator negro começa a passar pasta branca no rosto.)

POLÍTICO
Estamos todos aqui reunidos nessa data festiva de 09 de setembro
de 1904, para a inauguração de grande alcance social, o leprosário
Guapira!!!!
(Canto)
Quanto custa pra esconder
Aquilo que te envergonha Quanto
pra espremer da vida
Que não come e já nem sonha?
Até quando tirar de mim
Pra que o seu se sobreponha

43 pelas pernas, cotovelos


Foram amarrados com sangue nos joelhos
43 pelas pernas, cotovelos
Pessoas pra ornar com o azulejo

POLÍTICO
Aqui foram recolhidos 43 leprosos, sendo 27 homens e 16 mulheres
que ficarão sob os cuidados do Dr. José Lourenço de Magalhães e
a Irmã Emerenciana.
Por ser uma bela chácara, aqui também criaremos galinhas, porcos,
cavalos e gado, além do cultivo de hortaliças e frutas.

CORO
(canto)

Quanto custa pra esconder


Aquilo que te envergonha?

POLÍTICO
Percebam, a chácara aqui é um local de lazer com tamanhas
benfeitorias.

POLÍTICO
[troca a legenda: “Discurso do deputado A. Ellis. Alesp -1935”]
O nordestino é PLATICÉFALO, de sangue preto, em sua cor de
charuto, grande influência do índio.
CORO
(canto)

Quanto custa pra esconder


Aquilo que te envergonha?

POLÍTICO
Felizmente o nosso sistema racial está livre de sofrer a influência
dessa gente. O japonês é incalculavelmente o melhor para nós e
para o nosso corpo racial, pois existem entre nós e os japoneses
mais afinidades do que entre nós e os nordestinos.

CORO
(canto)

Quanto custa pra esconder


Aquilo que te envergonha
[transição de
legenda: “Jair Bolsonaro. Estados Unidos. 2019”]

POLÍTICO
Vejam o exemplo dos japoneses eles não pedem esmolas por que
tem vergonha na cara. Se tivessem vergonha na cara nossas
cidades brasileiras estariam livres de tanta gente desocupada que
não tem o que fazer.

CENA 5 – A.M.M.A.C DE GUAPIRA


(Toda vez que se fala o nome Guapira, há um desdém.)

PRESIDENTE DA ASSOCIAÇÃO
Está aberta a sessão da nossa amada A.M.M.A.C: Associação de
Moradores Mais Antigos e Conceituados de Guapira; hoje, 10 de
outubro de 1930, discutiremos a proposta de mudança, do nome do
nosso bairro.

CAPITÃO NASCIMENTO
Está mais do que claro que este nome ....tribal... só tem impedido o
crescimento econômico e social do nosso bairro. Quantos
investidores deixamos de receber aqui, por causa do estigma deste
nome....relacionado à uma peste?
MORADOR
O nosso ilustríssimo Capitão Nascimento tem toda razão. O nome...
Guapira (todos reagem com asco) está completamente associado
ao... me perdoem o que irei dizer, pois de forma alguma é
preconceito.... o nome fica associado à uma gente que não nos
representa. Não podemos permitir que o filé mignon de nossa
história possa estar associado a um ... me perdi no raciocínio,
desculpa gente, não quero denegrir a questão.

MORADOR 2
Desde a instalação deste hospital com seus inválidos nosso bairro
não conseguiu alcançar a modernidade, afinal, quem teria interesse
em investir em um lugar com fama de.... doente...?

MORADOR
Eu me lembro perfeitamente que a minha mãe não permitia que eu
e meus irmão brincássemos perto dos muros do hospital porque vai
que um daqueles... doentes (faz sinal da cruz) cuspisse em nós e
ficássemos leprosos também, deu a quer me perdoe.

MORADOR 2
E já que não temos como apagar a história deste hospital, que pelo
menos tenhamos o direito de apagar este nome... Guapira (cospem)
das nossas bocas.

CAPITÃO NASCIMENTO
Todos já sabemos que temos que mudar este nome o quanto antes.
Alguém teria alguma sugestão para o novo nome?

MORADOR 1
Nova Veneza ...

MORADOR 2
Jardim Mazzei

MORADOR 3
Cantareira Park
MORADOR 4
Solar da Serra
MORADOR 5
Matolândia

MORADOR 4
Palmas Do Norte

MORADOR 2
Residencial Tonetti

CAPITÃO NASCIMENTO
Jaçanã.

TODOS
Mas Jaçanã é nome de pássaro.

CAPITÃO NASCIMENTO
Sim, nossa região tem muitos jaçanãs. E nome de pássaro tá na
moda, gente. Vejam: Andorinha, Araras, Tucano, Jacutinga,
Jandaia, Pato Branco, Tangará da Serra, todas cidades prósperas.
E aa gente não quer prosperidade?

PRESIDENTE
Como sempre o Capitão Nascimento tem razão. Quem vota em
Jaçanã levante a mão?

(Todos levantam)

PRESEDENTE
Muito bem, muito bem! Então fica decidido nesta sessão da nossa
amada A.M.M.A.C.: Associação de Moradores Mais Antigos e
Conceituados de Jaçanã que a partir de hoje, nosso bairro se
chamará Jaçanã. Viva?
TODOS
Viva!!!
(Canto)
Amo teu corpo tétrico Plasmado
em carne de gangrena.
As tuas faces rubras, mas serenas
Cheias da dor pra quem vem matar-te
A lepra viça em nosso corpo
Aos poucos chega e me devora,
As pencas minha carne cai ao chão
Cada sonho na carniça na memória
Não espante a mosca tão imunda e asquerosa
Ela ama nossa carne infecta
Quanto mais podre mais saborosa
Não espante a mosca tão imunda e asquerosa
Ela ama nossa carne infecta
Quanto mais podre mais saborosa
- “Leprosos”, Rubem Leme. 1936.

CENA 6 - FUGITIVOS DA HISTÓRIA

HOMEM FUGITIVO
Cê viu? Chegaram sentando o fogo em tudo!

HOMEM FUGITIVO
Ninguém solta a mão de ninguém!

MULHER FUGITIVA
Em palmares também, criança, idoso, todo mundo.

MULHER FUGITIVA
Os tupis avisaram, 9 milhões morreram quando os brancos
chegaram!

MULHER FUGITIVA
Em canudos morreram 25 mil num todo.

HOMEM FUGITIVO
Será que não é melhor a gente voltar?
HOMEM FUGITIVO
Estamos voltando! Pra casa!
HOMEM FUGITIVO
Vão nos achar e nossa pena pode triplicar!

HOMEM FUGITIVO
Vão tentar nos prender de qualquer jeito! Nos porões dos navios ou
numa cela podre de alguma penitenciária. Você não viu? Ontem
mesmo estavam querendo reduzir a maioridade penal.

(canto)
Querem reduzir a maioridade penal (BIS)
Deixando a batata quente aqui nas minhas mãos Como
se eu fosse a origem do mal
Deixando a batata quente nas mãos dos meus
“parcas” Como se eles fossem a origem do mal Mas
minha verdade não é essa não!
Cadê, que eu não vi a boa educação? Como
ser alguém sendo de uma nação Onde
prender os jovens é a solução?
- “Maioridade penal”, Mumu e Ley. 2015.

ATOR
O Brasil já é o 4° país do mundo que mais prende. Mais de meio
milhão! Um país chamado Luxemburgo tem menos gente do que
em nossas celas! Se prender resolvesse o problema, o problema já
teria tido um fim. Será que prender diminui o crime? Entre tantas
grades desse mundo não seria mais correto nos colocar na grade
escolar ao invés da grade carcerária?

CORO
“Mas se tem 16 anos ele já sabe o que é certo e errado!”

ATOR
Então porque não aumentam a pena dos políticos e juízes que nos
roubam e também sabem muito bem o que estão fazendo? Mas
não! Pra eles a pena continua leve, um véu! Uma cortina de fumaça
pra não falarmos do que realmente importa.
(canto)
Minha gente eu sou semente
E não fruta podre pra ser descartada
Uma pedra bruta vira joia rara se for lapidada
Eu só me defendo do que até hoje fizeram comigo Se
hoje eu chego e meto o ferro
Talvez por não darem chance de eu ser um amigo

- “Maioridade penal”, Mumu e Ley. 2015.

CENA 7 – FAVELA É ESPINHO

MULHER 1
Você sabia que nós que habitamos as beiras da cidade já estivemos
no centro dela? Projeto Cidade Limpa! O esforço por uma São
Paulo de...

CORO
“Paisagem mais ordenada, em busca do direito de viver em uma
cidade que respeita o espaço urbano, o patrimônio histórico e a
integridade da arquitetura das edificações!”

MULHER 1
Isso tá escrito na lei. Com essa lei eles pretendiam diminuir a
“poluição visual que há tantos anos prejudica seu bem estar”.

HOMEM NEGRO
A casa grande não suportou olhar pra miséria que criou. Assinou a
abolição da escravatura pra uma liberdade sem casa, sem comida e
sem terra. Ou seja, pra casa grande uma cidade limpa é uma cidade
sem memória.

MULHER 2
Roubados desde sempre daquilo é nosso por direito a favela é
história que se projeta pro futuro. (Muda o tom para um tempo mais
dilatado) Favela é um fruto espinhento que corrói o que toca. Dizem
que esse espinho, quando entra na pele, caminha sentido ao
coração, através da corrente sanguínea, o que causa uma morte
silenciosa e sem dor.

(canto)
Na subida do morro é diferente
O movimento é geral
No sobe desce, sobe gente
O movimento é diferente o
cumprimento é diferente
Alô como vai, como é que é
Alô como vai, como é que é
- “Na subida do morro”, Originais do samba. 1971.

CENA 8 – EMBARALHANDO AS CARTAS

APRESSADO
Nossa, esse cara demora pra caramba pra jogar!

MIGA
E aí Guapira, tá fazendo o que da vida? Tá ai vagabundando!

GUAPIRA
Ué, mulher não pode estar longe da cozinha que tá
vagabundeando, já percebeu? Tô estudando pra um concurso
público.
MIGA
(Ri) Até parece que uma doida que nem você consegue cargo
público!

GUAPIRA
Tá achando que eu não consigo? Ela tá achando que eu não
consigo. Eu vou ser delegada!

MIGA
Delegada? Você acha que os cara lá de cima vão deixar uma mina
da quebrada ser delegada? Tá louca!
APRESSADO
Aí rapaziada! Tão sabendo da Guapira? A mina deu de estudar pra
ser delegada.
TRUQUEIRO
A delícia da Guapira?

MACHISTA
Delegada, né? ... DeleGata

CORO
Que merda de trocadilho, mano!

GUAPIRA
Tá me chamando de louca? Querida louca é quem se contenta em
ser importante pelo tamanho da teta que tem! Eu sei do que sou
capaz.

MIGA
Acho que melhor você "trocadisonho"!

DJ VITINHO
Essa rua tá parada hoje, hein?

APRESSADO
Parado tá esse jogo, sai da moita mano!

TRUQUEIRO
Oh, o samba da tia preta já é amanhã, parça. Vocês vão colar?

DJ VITINHO
Lógico pai, vou até tocar lá!

MIGA
Eu consegui!

(Todos aplaudem)

TODOS
Truco!

HOMEM DE BEM
O Brasil não é mais como era antigamente!
TODOS
Seis!

ATRIZ
Esse é o tipo de homem de bem que mira a pomba e acerta o
próprio pé. Ele está antecipando o seu próprio fim.

TODOS
Nove!

(Expectativa pra resposta dele, que não vem)

ATRIZ
E no meio da galera diz que é valente, que bate, faz e acontece. Ele
está antecipando seu próprio fim.

CENA 9 – MITO DA DESCOBERTA DO BRASIL

CORO
Eu sou brasileiro!
Você conhece sua historia? Conhece seus antepassados?
Terra de Santa Cruz! Brasil!

ATRIZ
Colonizado por Portugal e descoberto por Pedro Alvares Cabral!

CORO
Brasil!
ATRIZ
O país de todos!

CORO
Eeeeeee! Como assim de todos?

ATRIZ
Todos os povos todas as culturas e todos os mitos, tá okay?

CORO
Mito? Pátria amada! (sinal da cruz)
ATRIZ
A coroa portuguesa chegou sorrateira e roubou tudo aquilo que o
índio fez.

CORO
Índio! Brasileiro! (música da Xuxa) As caravelas avistaram o
paraíso, mulheres nuas e natureza exuberante! (tempo) Mas não, a
descoberta não foi uma coreografia da Xuxa.

ATRIZ
10 naus e 3 grandes navios. 1.500 homens durante 6 meses de
viajem.

CORO
Terra avista! Terras virgens. Selvagens! (Todos caem)

(canção)
Chegaram caídos
Desnutridos
Famintos
Fedidos
Podres de esperar
4X

ATRIZ
A coroa avistou um monte de Brasis e impôs sua oferta: - Ame
meu Deus acima de tudo e seja o exemplo de gentio reformado
em bons costumes. Uma semente que quando desabrocha tem
cheiro de futuro. Feche os olhos e receba a santa missão.
CORO
Quando os brasis abriram os olhos, eles tinham na mão uma bíblia e
os portugueses as terras e tudo que nelas vivia. Cabral descobriu ou
invadiu?

ATRIZ
Dizem que foi uma descoberta. Mas você já se perguntou onde foi
parar toda cultura que existia aqui?
CORO
A descoberta do Brasil não foi uma expedição que deu errado. A
descoberta do Brasil foi uma invasão!

ATRIZ
Depois de serem explorados e roubados pelos portugueses pelos
holandeses, pelos espanhóis, pelos franceses e pelos ingleses,
durante anos, fica o mito do povo receptivo e alegre, condenado a
viver na rua da história, sem terra e sem memória.

(canção)

O olho da rua
Ela que me olha
Olhar que recebe
Salve os véus dessa senhora
Nossa senhora da rua
A rua é uma mulher
Que oferece sua carne crua
Ela abraça toda ralé

A rua é agasalhadora da miséria


A rua é agasalhadora da miséria
Mãe rua ventre universal
Abriga cão, abriga gato, rato, pomba debaixo do céu
Arraia miúda, gentinha povaréu
Populacho, escumalha, plebe, povo, ralé, gentalha

A rua é agasalhadora da miséria


A rua é agasalhadora da miséria
A rua é agasalhadora da miséria
A rua é agasalhadora da miséria

CENA 10 - FEBRE
(canto)
A rua é agasalhadora da miséria
A rua é agasalhadora da miséria
A rua é agasalhadora da miséria
A rua é agasalhadora da miséria 4x
(Recortes de cenas que já se passaram durante a peça: pessoas
sendo arrastadas, a coreografia “dos labirintos da lembrança”,
migração nordestina, o truco e Adalberto na mala).

CENA 11 – A CIDADE

(Canção)

A cidade perfura o corpo até a medula


Contamina os ossos com seus crimes 2x

Bica, bica o fígado pesa sobre os rins


Bica, bica, bica o fígado, pesa sobre os rins

Imprime seu labirinto de cinzas nas árvores dos pulmões


Imprime seu labirinto de cinzas nas árvores dos pulmões

A cidade finca raízes no espaço das clavículas


A cidade finca raízes no espaço das clavículas

CENA 12 – COVEIROS

(Escutam algo ao longe)

COVEIRO 1

Vocês tão ouvindo?

COVEIROS 2 e 3

Dizem que quando os Ancestrais querem dar algum recado pros


vivos eles agitam a mata.

COVEIRO 4

Que tamanho a gente deixa esse buraco?

COVEIRO 1 e 2

Depende,
COVEIRO 3

Do que?

COVEIRO 1

Se no buraco vai junto a mãe, se o corpo entendeu que morreu, se


deixou alguma pendência por aqui.

(Escutam algo ao longe)

COVEIRO 3 e 4
Dizem que quando os Ancestrais querem dar algum recado pros
vivos eles agitam a mata.

COVEIRO 2

Não dá! Não vai!

COVEIRO 1, 3 e 4

O que foi agora?

COVEIRO 2

Essa selva de concreto, bate a ponta e bate a cara mas não entra.
Não se pode nem mais enterrar nossos mortos.

COVEIRO 1

Já está bom, é só jogar terra.

(Escutam algo ao longe)

Todos- isso é o som do passado aconselhando o presente.

Descanse, guapira Descanse,

guapira Descanse, guapira

Descanse, guapira Guapira!

Guapira!
CENA 13 – CUNHATÃ RESSUCITA GUAPIRA

CORO ANCESTRALIDADE – Você não tem vontade de voltar?

GUAPIRA - Ter eu tenho, mas eles não querem.

CORO -Não!

GUAPIRA - Eu não quero morrer!

CORO – Não!

GUAPIRA – Não posso acabar porque não tenho fim.

CORO - Não

GUAPIRA - Eles queriam mas eu não corri!


CORO - Volta, Guapira

CORO –

Seu nome é Guapira mas não se iluda


Em tempos de guerra é preciso convocar seu Buda
Astuta siga na labuta, aquela honesta e crua sem jogos de disputa

Siga sempre a sua intuição


Vozes por vezes sussurram e te guiam a direção.
Nessa selva de pedra, seu teto é de ternite
É atleta, exercita a sobrevivência e não desiste

Seu sonho não é riqueza


Só quer invadir as escolas com histórias indígenas e negras!
Pois durante anos fomos silenciadas e confinadas
Abusaram das nossas riquezas, nos convenceram de que não
éramos nada

Só que essa geração minha filha, não fica mais calada,


Hoje sua boca é seu escudo, é dinamite sua espada.

Todas- Volta Guapira e reescreva sua história!


Canção 2x

Volta pela encruzilhada,

Pra renascer
Cunhantã mandou
dizer!

Guapira- Quem é....?

CORO - Tempo esgotado, Guapira!

GUAPIRA - E agora, o que vai acontecer?

CORO - Agora você vai atravessar

Gua Guapira !

Gua Guapira!

Gua Guapira!

GUAPIRA
Nesse momento
Eu rodeada de mim

Na curva do rio da vida

No silêncio de um mundo

Me perdi na trilha Sem margem

Rasgo esse rio de espelhos

E me descubro, Eu, Guapira

Nos cantos de uma memória viva

Que navega nas nascentes De uma imensidão


CORO

Tempo esgotado, Guapira!

GUAPIRA

Por dentro e por fora

Eu, Guapira Me desfaço, Me refaço

E renasço nos pontos centrais desta encruzilhada

CORO

Tempo Esgotado, Guapira!

(Canto)

Volta pela encruzilhada,

Pra renascer

Cunhantã mandou dizer!

GUAPIRA
Cunhantã? Quem é cunhantã ?

TODAS
Ela é sua primeira ancestral. Ventre gerador de todas as mulheres
indígenas. Ela pede pra que você volte e faça o que todas nós
nascemos pra fazer.

(Canção)
Fui Guapira que rolou lá da beira
Fui Guapira aqui me vi boiar
Fui Guapira na manhã derradeira
E Cunhatã aqui me fez voltar
Arrepio no meião do rio
Tempestade rajada no ar
Ele passa e eu desconfio
Que o mundo está quase a entornar
De ponta a cabeça, fecho os olhos
Caminho de acabar

Fui Guapira, corri na ribanceira


Fui Guapira no beco escuro passar
Fui Guapira na manhã derradeira
E Cunhatã aqui me fez voltar

Desconjuro no fundo do furo


Desnorteio buscando no ar
A vista embaça e ele atento
Pois veio me amaldiçoar
Agora traço pulso em minhas veias
Vivo aqui e vivo lá

Sou Guapira do alto da ribanceira


Vendo a vida em meu caminho cruzar
Reencarnei feito flecha certeira
E Cunhatã deu força pr'eu voltar

Ele fez feitiço pra me dar sumiço


Arapuca pra quando eu passar
Mas para sempre serei isso:
Não posso deixar de brilhar
Se assim seguisse seria descaminho
Nas águas frustradas boiar

Noite de maré cheia


De estrela a me alumiar
Toda gente se arrodeia
Desacreditada me olhar
Não faço nem mal a ninguém
Não tem mais quem queira provar
Não traço embaraço em seu caminho
Não queira o meu atravessar

CENA 14 - GUAPIRA REENCARNA NOS RIOS

CORO
O homem modificou o rio, os colocou debaixo da terra, para ter onde
esconder sua sujeira.
A cidade deu as costas para o rio, ele é sua base, mas ninguém
nota, ninguém vê.
Mas isso não acabou com natureza do rio, quando a água cai é pra
lá que ela vai. Ninguém sabe de onde vem, ninguém sabe pra onde
vai.
Seu contato é perigoso, seu acesso é proibido.2×

(canção)

Aaaaaaai
Como eu queria
Um banho de chuva
Para o Rio voltar a vida

Aaaaaai
Um banho de chuva
Pra Amazônia ficar viva

(Todos se ajoelham e rezam ao chão)

CORO
GUAPIRA mulher, guerreira amazona
Faz o rio voltar a vida e a floresta ficar viva
GUAPIRA mulher, guerreira amazona mãe de todos nós
Renasce do mundo dos mortos
E faz viver a terra, faz viver o rio, faz viver a mata que a cidade mata
GUAPIRA que é mãe, Guapira que é raça
Que arranca a mordaça
Desfaz o laço dos laçados que foram amarrados e maltratados
Faz reviver a beleza da natureza, morta pela nobreza
Queima o véu que ofusca a história

(Abre as cortinas. Elenco diz o texto olhando pra plateia)

CORO
O rio se viu sem margens , acabou rompendo a barragem.
O rio cedeu seu espaço, e agora toma de Volta o seu lugar.

GUAPIRA
Nesse momento, eu GUAPIRA volto do mundo dos mortos
metamorfoseada em água. A fronteira entre mim e o rio se
rompe, deságua, inunda, invade essa cidade e dissipa essa
cortina de fumaça.

(Canção)

Guapira é povo água do alto da ribanceira


É agua que deságua, vai rompendo as barreiras
Abro caminho e passo o limite e a fronteira
Defino o meu espaço e faço de qualquer maneira

Eu sou a margem, margem


Um marginal tipo a do Rio Pinheiros
Eu sou da margem, margem
E vou tomar o que é meu por inteiro

(Coreografia ao som de mamady Keita)

CORO
Guapira chama, clama, invoca a força dos rios soterrados na história
desta cidade, encanados e mortos sob os pés de uma ideia de
mundo que nos soterra junto. Mesmo sendo nós, rios que doam
suas vidas nos trens e lotações todo santo dia pra todos se
saciarem. Eles podem me matar, mas hoje, eu, Guapira, não sou
alguém, eu sou uma ideia e ideias não morrem.

Eu fundo aqui a ideia de uma cidade tomada pelos rios! Que o


asfalto vire carne, e o corpo uma cidade.

Chamo a rebeldia das águas do Anhangabaú, pra que se unam às


correntezas do Tietê junto de Tamanduateí pra encharcarem essas
terras, nutrindo as vozes que cantam o passado enraizados na
fundação do Brasil

É neste chão que se faz a história.

(Canção. Banho de água em toda a platéia)

Guapira
É povo água
Do alto da ribanceira
É agua que deságua, vai rompendo as barreiras
Abro caminho e passo
O limite e a fronteira
Defino o meu espaço
Faço de qualquer maneira

Eu sou a margem, margem


Um marginal tipo a do Rio Pinheiros
Eu sou da margem, margem
E vou tomar o que é meu por inteiro

CORO
Viva Guapira!

FIM

Você também pode gostar