Você está na página 1de 50

LOGICR DflS CIÊNCIAS SOCIRIS.

006008 748634

EDIÇÕES T E M P O BRASILEIRO

o C L Á U D I O S O U T O / Introdução no Direito como ciência


social

o J O S É G U I L H E R M E M E R Q U I O R / A Estética d e
Lévi-Strauss

© MARTIN HEIDEGGER / Introdução à Metafísica

® R O B E R T O C A R D O S O D E O L I V E I R A / Sociologia d o
Brasil indígena

o A POLÊMICA A L E N C A R - N A B U C O (Organização e
a p r e s e n t a ç ã o de A F R A N I O C o u t i N H o )

» M A R C O S VINICIOS VILAÇA e R O B E R T O C A V A L -
C A N T I D E A L B U Q U E R Q U E / ^Coronel, coronéis

» G E N T I L M A R T I N S D I A S / Depois do latiíúndio, con-


tinuidade e mudança na sociedade rural nordestina

« K A R L P O P P E R / Lóéica das Ciências Sociais.


K A R L POPPER

LÓGICA
DAS CIÊNCIAS
SOCIAIS
CIP-Brasil. Catalogação-na-fonte
Sindicato Nacional dos Editores de Livros, RJ

Popper, Karl Raymund, 1902-


P8661 Lógica das ciências sociais / Karl Popper; Tradução
de Estevão de Rezende Martins, Apio Cláudio Muniz
Acquarone Filho, Vilma de Oliveira Moraes e Silva. - Rio
a
de Janeiro: Tempo Brasileiro, 2004, 3 edição.

(Biblioteca Tempo Universitário n° 50) JSS


7
Bibliografia S3

1. Filosofia austríaca. 2. Popper, Karl Raymund, 1902-


- Filosofia. I. Título. II. Série.

78-0337 C D D - 193
C D U - 1 Popper tempo brasileiro
Rio de Janeiro - RJ
B I B L I O T E C A T E M P O UNIVERSITÁRIO 50

Coleção dirigida por E D U A R D O P O R T E L L A ,


Professor da Universidade Federal do Rio de Janeiro
C E *
1
«tf'»
S U M Á R I O

Capa de ANTÔNIO DIAS e P E D R O P A U L O M A C H A D O Diálogo com P O P P E R / V A M I R E H C H A C O N 9

A lógica das Ciências Sociais 13

Os textos que aqui se reúnem R a z ã o ou Revolução? ' 35


foram obtidos e organizados
junto ao Dr. KARL R. POPPER,
A racionalidade das revoluções científicas • 50
pelo Professor VAMIREH CHACON

O que entendo por Filosofia 85


«MS
Traduções de ESTEVÃO DE R E Z E N D E M A R T I N S
APIO CLÁUDIO M U N I Z A C Q U A R O N E F I L H O
V I L M A DE OLIVEIRA MORAES E SILVA

r,
V»i; ^/, ííwr»

Direitos reservados às
EDIÇÕES T E M P O B R A S I L E I R O L T D A .
R u a Gago Coutinho, 61 (Laranjeiras)
Caixa Postal 16.099 — Z C . 01 — Tel.: 205-5949
RIO DE JANEIRO — RJ — B R A S I L
«es
I
..xvJa?áPs i
DIÁLOGO COM POPPER

i TI Vamireh Chacon

Wz/combe e «m a r c í ^ o refúgio residencial vizinho


de Londres, nos últimos tempos também invadido por indús-
trias. Mas Penn, nos setts arredores, abriga desde 1950 Karl
Popper,. o filosofo mais feliz" que ele mesmo conheceu, nas
suas próprias palavras...
_ O verde, tradicional das campinas inglesas, que ainda re-
siste entre a cidade e a capital, triunfa em Fallowfield o
nome dado por Popper ao seu "cottage", na grama e nas'ai-
tas arvores que o cercara. A casa, baixa c 'longa, no estilo
da região, tem mobiliário singelo apenas salpicando o esva-
ço. Hoje, seu dono não ê mais um "Herr Professor" vienen-
0 U S Í r K ü r l P P p e r
Z ^ T r r ^ ° ° ' noWitado pela Rainha Eli-
S e U ai rece
rttinhr ? *era o então também distinto
titulo de Cavalheiro («Rttter») da Ordem de Francisco José
s e T U l t b e r í d j u ã e u m a
eradTca?^ ™ ' ™ > ' ^

Pn^í !8 68
0
J' ' '^ 1
í P 0 8 x l i c a m
* o da personalidade de m u i

Popper e da sua geração. Dela ele dá conta na sua biografia


intelectual, Unended Quest, em cores ávidas. Era a Viena
sem duvida musical, porém já de música de vanguarda sob
o impacto de Schoenberg. Esta arte, tão alemã não podia
dei ar demarcar profundamente Popper. Daí suas incursões
X

do presente ao passado, em longas considerações aténTeZ-


ven, Mozart e Bach, nos anais mergulhou e impregnou se

Era a Viena ainda de Freud, dos economistas do cálculo


marginal (Menger, Boehm-Bawerk, que deram origenlaoZ
turo Prêmio Nobel Friedrich Hayk), e dos pensadZes fol

9
mando o Círculo que imortaliza igualmente o seu nome. Além na mais que em Berlim, então no auge da competição ímpe-
dos pintores, escritores e escultores de um glorioso fim de rialista com Londres. Francisco José permaneceu sempre um
época. relutante aliado de Guilherme II.
Karl Popper nasceu e formou-se neste ambiente privile- Theoãor Gomperz traduzira as obras completas de John
giado. Na fixação brasileira por Paris pouco se sabe, entre Stuart MUI, em 1869, com especial sucesso na Áustria. O pró-
nós, deste mundo criativo apesar da decadência, dela emer- prio pai de Popper tornou-se grande admirador de Stuart
gindo para fecundar culturas distantes, para onde emigraria, Mill. Um dos poucos alemães prussianos, ou prussianizados
impelida pelo golpe final do Nazismo. mais cultural que politicamente, a despertar entusiasmo em
Viena, foi Max Weber, professor da sua Universidade duran-
Existe quem, desavisaãamente, confunda Popper com o
te algum tempo.
chamado Neo-Positivismo e o Círculo de Viena, embaralhan-
do tudo. Conviria ler a autobiografia intelectual de Karl Inclinando-se para a Grã-Bretanha e repelindo Berlim,
Popper e assim talvez sair um pouco do vicioso círculo men- os vienenses tendiam naturalmente para o Empirismo e o
tal franco-americano, vislumbrando algo da também rica cul- Liberalismo, aliás limito aparentados. Entre si os austríacos
tura alemã, inclusive na sua expressão austríaca, que não se se dividiriam, de um lado aqueles preocupados em especial
confunde com a da Alemanha nem do 'Kaiser nem de com a Lógica (Carnap, Reichenbach, Feigl, influenciando os
Weimar. Espantosa força, esta multiforme, do mundo de idio- poloneses Tarski, Lukasieivicz e Kotarbinski), de outro os in-
ma alemão. .. satisfeitos com as regras matemáticas do pensar e pro-
O tal Círculo de Viena nunca passou, em última instân- curando saídas antológicas quase metafísicas segundo Luãwig
cia, do seminário particular de Moritz Schlick, que se reunia Witigenstein ou inglesmente de "common sense" à maneira
às quintas-feiras à noite. A ele Popper jamais compareceu, de Popper. Daí a confusa adaptação de Wittgenstein em
nem foi convidado. Fritz Waismann cognominou o grupo, Cambrklgc, contrastando com a profunda marca de. Karl
dispare e disperso. Witigenstein, por exemplo, nele entrava Popper na "London School of Economics" durante décadas,
e saía como tantos outros. mais do que qualquer outro professor na época. Dali sairia,
por exemplo, Ralf Dahrenãorf, refazendo a ligação de Popper
A mania, tão germânica, pelo por menor, atingindo as
com a Alemanha. Em seguida a influência de Popper sobre
raias do escolástico pedantismo professoral, acabou matando
o Círculo, segundo o testemunho geracional, embora não Hans Albert, também na Alemanha, na linha do Criticismo.
participante, de Popper. Nada disto lhe impediu de ficar, Pois Popper ê, em última instância, uma desafiadora
para sempre, devendo muito a certos membros do Círculo. tentativa de síntese entre Sócrates, Kant e Stuar Mill, as
Entre eles principalmente a Alfred Tarski e ao seu método confessas matrizes principais do seu pensamento. Se, de um
lógico. lado, aparenta-se com o ramo neokantiano de Marburgo
Porém Karl Popper não se transformaria nem num logi- (Cohen, Natorp, Cassirer), preocupado com o rigor .lógico
cista, nem num positivista, apesar de gratuitos apodos rece- formal, primos irmãos dos vienenses também kantistas neste
bidos polemicamente. Suas raízes são outras. sentido, Popper adquiriu, na sua cidade natal, uma aproxima-
ção maior com as Ciências Exatas, graças às influências dos
A Áustria sempre fora anti-hegeliana. físicos Ernst Mach e Ludwig Bolzmann. Mas o tempero bri-
Apesar de nascido no sul da Alemanha, Hegel consagrou- tânico chegaria em tempo. O salutar. ceticismo empírico de
se na Prússia, onde se converteu em ideólogo oficial do Es- Stuart Mill, insatisfeito com os resultados da polêmica na
tado hohenzollern. Embora também autoritários, os Habs- qual segundo alguns Kant teria vencido Hume, aquela posi-
burgos não tinham nem a mesma eficiência, nem idênticas ção acabaria pesando nas opções filiais de Karl Popper. Sem
pretensões. Por aí se infiltrou a influência britânica, em Vie- os traiimas doutros emigrados, Popper não fugiu para um

10 11
•JSJliUL

exííio dourado nos Estados Unidos, nem se marginalizou na


Grã-Bretanha. Terminou instalado como Sir ou Lorã Karl
Popper, tomando seu chá e pontificando, durante gerações,
na "Lonãon School of Economics"...
É neste contexto que temos de entendei] seu Anti-Histo-
ricismo, apresentado n'A sociedade aberta e seus inimigos,
bem como na Lógica da pesquisa científica, um traduzido
para o português no Brasil há certo tempo e outro aparecido 1

há pouco. Agora Tempo Brasileiro apresenta esta coletânea A LÓGICA DAS CIÊNCIAS SOCIAIS
de ensaios, entregues pessoalmente ao autor destas linhas,
após discussão inesquecível quando nem sempre concorda-
mos, porém da qual guardarei para sempre a lembrança de Proponho começar meu trabalho sobre a lógica das ciên-
flexível exatidão, calor humano e generosidade intelectual, cias sociais com duas teses que formulam a oposição entre
naquela tarde de outono entre as longas e largas árvores de nosso conhecimento e nossa i g n o r â n c i a .
Fallowfield em 1976.
Primeira tese: Conhecemos muito. E conhecemos n ã o
só muitos detalhes de interesse intelectual duvidoso, porém,
coisas que são de uma significação p r á t i c a considerável e,
o que é mais importante, que nos oferecem um profundo
discernimento teórico, e uma c o m p r e e n s ã o surpreendente do
mundo.

Segunda tese: Nossa i g n o r â n c i a é sóbria e ilimitada.


De fato, ela é, precisamente, o progresso titubeante das ciên-
cias naturais (ao qual alude m i n h a primeira tese), que cons-
tantemente, abre nossos olhos mais uma vez à nossa igno-
rância, mesmo no campo das p r ó p r i a s ciências naturais. Isto
d á ' u m a nova virada na idéia socrática de ignorância. A cada
passo adiante, a cada problema que resolvemos, n ã o só des-
cobrimos problemas novos e n ã o solucionados, porém, tam-
bém, descobrimos que aonde a c r e d i t á v a m o s pisar em solo fir-
1
* • « £ wr •VT" ti
me e seguro, todas as coisas são, na verdade, inseguras e. em
estado de alteração c o n t í n u a .
Minhas duas teses concernentes ao conhecimento e à
Ignorância, só aparentemente contradizem uma à outra.
A contradição aparente é, primeiramente, devida ao fato de

sm que as palavras "conhecimento" e " i g n o r â n c i a " n ã o são usa-


das nestas duas teses como perfeitos contrários. Todavia, am-
1. Isto foi a contribuição de abertura ao simpósio de TUBINGEN, seguida
da réplica do Professor Adorno. A tradução foi revista e aumentada
pelo autor para a presente publicação.

13
bas as idéias são importantes, e t a m b é m assim o são ambas coberta de uma contradição aparente entre nosso suposto
as teses; tanto que proponho fazê-las explícitas nas três teses conhecimento e os supostos fatos.
seguintes. Enquanto minhas primeiras t r ê s teses, talvez por causa
de seu caráter abstrato, criam a impressão de que estão algo
deslocadas do nosso tópico — isto é, a lógica das ciências
Terceira tese: É uma tarefa de fundamental i m p o r t â n -
sociais •— eu' gostaria de dizer que com minha quarta tese
cia para qualquer teoria do conhecimento, e, talvez, a t é um
requisito crucial, fazer justiça às nossas primeiras duas te- atingimos o cerne de nosso tópico. Isto pode ser formulado
ses, esclarecendo as relações entre nosso a d m i r á v e l e cons- em minha quinta tese, como se segue.
tantemente aumentado conhecimento e nosso f r e q ü e n t e m e n t e
acrescido discernimento de que realmente nada conhecemos. Quinta tese: Como em todas as outras ciências, esta-
mos, nas ciências sociais, sendo bem ou mal sucedidos, i n -
Se se refletir um pouco sobre isso, torna-se quase óbvio teressantes ou m a ç a n t e s , frutíferos ou infrutíferos, na exata
que a lógica do conhecimento tem que discutir esta t e n s ã o proporção à significância ou interesse dos problemas a que
entre conhecimento e ignorância. U m a c o n s e q ü ê n c i a impor- estamos ligados; e t a m b é m , é claro, na exata proporção à
tante deste- discernimento está formulada em m i n h a quarta honestidade, 'retidão e simplicidade com que atacamos estes
tese. P o r é m , antes de apresentar esta quarta tese, eu gostaria problemas. Em tudo isto n ã o estamos, de modo algum, con-
de me desculpar pelas minhas teses numeradas que ainda finados a problemas teóricos. Sérios problemas práticos, como
estão por vir. M i n h a desculpa é que me foi sugerido pelos os problemas de pobreza, de analfabetismo, de supressão po-
organizadores desta conferência que eu montasse este tra- lítica ou de incerteza concernente a direitos legais são i m -
balho sob a forma de teses numeradas (para tornar mais portantes pontos de partida para pesquisa nas ciências so-
fácil ao segundo confereneista apresentar suas contra-teses ciais. Contudo, estes problemas práticos conduzem, à espe-
críticas mais acuradamente). Achei muito útil esta suges- culação, à teorização, e, portanto, a problemas teóricos. Êm
tão, a despeito do fato de que este estilo pode criar a i m - todos os casos, sem exceção, é o c a r á t e r e a qualidade do
pressão de dogmatismo. Minha quarta tese, e n t ã o , é a se- problema e t a m b é m , é claro, a audácia e a originalidade da
guinte. solução sugerida, que determinam o valor ou a ausência do
valor de uma empresa científica.
Quarta tese: Se é possível dizer que a ciência, ou o co- E n t ã o , o ponto de partida é sempre um problema e a ob-
nhecimento, " c o m e ç a " por algo, poder-se-ia dizer o seguinte: servação torna-se algo como um ponto de partida somente
o conhecimento n ã o começa de percepções ou observações ou se revelar um problema; ou em outras palavras, se nos sur-
de coleção de fatos ou números, porém, começa, mais pro- preende, se nos mostra que algo n ã o está, propriamente, em
priamente, de problemas. Poder-se-ia dizer: n ã o há nenhum ordem com nosso conhecimento, com nossas expectativas,
conhecimento sem problemas; mas, t a m b é m , n ã o há ne- com nossas teorias. U m a observação cria um problema so-
n h u m problema sem conhecimento. Mas isto significa que o mente se ela se conflita com certas expectativas nossas, cons-
conhecimento começa da tensão entre conhecimento e igno- cientes ou inconscientes. Mas, o que, neste caso, constitui o
rância. Portanto, poderíamos dizer que, n ã o há n e n h u m pro- ponto de partida de nosso trabalho científico é não tanto a
blema sem conhecimento; mas, t a m b é m , n ã o há nenhum pura e simples observação, p o r é m , mais adequadamente, uma
problema sem ignorância. Pois cada problema surge da des- observação que desempenha um papel particular, isto é, uma
coberta de que algo não está em ordem com nosso suposto observação que cria um problema.
conhecimento; ou, examinado logicamente, da descoberta de
uma c o n t r a d i ç ã o interna entre nosso suposto conhecimento Alcancei agora o ponto onde posso formular a minha
e os fatos; ou, declarado talvez mais corretamente, da des- principal tese, a de n ú m e r o seis. E l a consiste do seguinte:

15
14
Sexta tese: apelo ao fato de que a t é aqui nossas soluções tentadas pare-
a) O método das ciências sociais, como aquele das ciên- cem contrariar a t é nossas mais severas tentativas de c r í t i c a .
cias naturais, consiste em experimentar possíveis soluções Não há nenhuma justificativa positiva; nenhuma justi-
para certos problemas; os problemas com os quais iniciam-se ficativa que ultrapasse isto. Em particular, nossas soluções
nossas investigações e aqueles que surgem durante a inves- experimentais n ã o podem ser apresentadas como prováveis
tigação. , (em nenhum sentido que satisfaça as leis do cálculo de pro-
As soluções são propostas e criticadas. Se u m a solução babilidades) .
proposta n ã o está aberta a uma crítica pertinente, e n t ã o è Talvez poder-se-ia descrever essa posição como "a abor-
excluída como não científica, embora, talvez, apenas tempo- dagem c r í t i c a " ( " c r í t i c a " alude ao fato de que existe aqui
rariamente. uma relação com a filosofia de K a n t ) .
b) Se a solução tentada está aberta a críticas perti- Para ensejar uma melhor idéia de m i n h a tese principal
nentes, e n t ã o tentamos refutá-la; pois toda crítica consiste e sua i m p o r t â n c i a para a sociologia; pode ser ú t i l c o n f r o n t á -
em tentativas de refutaçao. la com outras determinadas teses que pertencem a u m a me-
c) Se uma solução tentada é refutada a t r a v é s do nosso todologia largamente utilizada que, freqüentemente, tem sido
criticismo, fazemos outra tentativa. aceita e absorvida de forma praticamente inconsciente e
d) Se ela resiste à crítica, aceitamo-la temporariamen- acrítica.
te; e a aceitamos, acima de tudo, como digna de ser discutida Existe, por exemplo, a equivocada e errônea abordagem
e criticada mais além. metodológica do naturalismo ou cientificismo, que frisa que
e) Portanto, o método da ciência consiste em tentativas está na hora das ciências sociais aprenderem das ciências
experimentais para resolver nossos problemas por conjecturas naturais o que é m é t o d o científico.
que são controladas por severa crítica. É um desenvolvimento Este naturalismo equivocado estabelece exigências tais
crítico consciente do método de "ensaio e erro". como iniciar com observações o medidas; isto significa, por
f) A assim chamada objetividade da ciência repousa exemplo, c o m e ç a r por coletar dados estatísticos; prossegue,
na objetividade do método crítico. Isto significa, acima de logo após, pela i n d u ç ã o a generalizações e à formação de
tudo, que nenhuma teoria está isenta do ataque da crítica; e, teorias.
mais ainda, que o instrumento principal da c r í t i c a lógica —- Declara-se que, a t r a v é s deste caminho, você se aproxima-
a contradição lógica — é objetivo. rá do ideal da objetividade científica, na medida em quê isto
A idéia básica que se encontra por t r á s de m i n h a tese é possível nas ciências sociais.
central pode t a m b é m ser colocada da seguinte forma. Procedendo deste modo, você deve estar consciente do
fato de que a objetividade nas ciências sociais é muito mais
Sétima tese: A tensão entre conhecimento e i g n o r â n - difícil de a l c a n ç a r (se puder totalmente ser atingida) ,do
cia conduz a problemas e a soluções experimentais. Contudo, que nas ciências naturais, pois uma ciência objetiva deve ser
a t e n s ã o n ã o é nunca superada, pois revela que nosso conhe- "isenta de valores", isto é, independente de qualquer juízo
cimento sempre consiste, meramente, de sugestões para so- de valor. Mas, apenas nos casos mais raros pode o cientista
luções experimentais. social libertar-se do sistema de valores de sua própria classe
social e assim atingir um grau mesmo limitado de "isenção
Assim, a própria idéia de conhecimento envolve, em prin-
de valores" e "objetividade".
cípio, a possibilidade de que revelar-se-á ter sido um erro e,
portanto, um caso de ignorância. E a ú n i c a forma de "jus- Qualquer u m a destas teses que se atribui a este natura-
tificar" nosso conhecimento é, ela própria, meramente pro- lismo equivocado está, em m i n h a opinião, totalmente errada.
visória, porque consiste em crítica ou, mais precisamente, no Todas essas teses são baseadas em uma má compreensão dos

16 17
métodos das ciências naturais, e, praticamente, èm um mito,
sociólogo teórico, contudo, deve estar contente por encon-
um mito infelizmente muito largamente aceito e muito in-
trar emprego como trabalhador de campo e um especialista;
fluente. :É o mito do caráter indutivo do método das ciências
sua função é observar e descrever os totens e tabus dos na-
naturais, e do caráter da objetividade das ciências naturais.
tivos da r a ç a branca na Europa Ocidental e nos Estados
Proponho, no que se segue, devotar uma pequena parte do
Unidos.
tempo precioso a minha disposição, a uma crítica a este na-
turalismo equivocado . 2
Mas, provavelmente, n ã o se deve reconhecer esta mu-
d a n ç a no destino do cientista social muito seriamente, par-
Reconhecidamente, muitos cientistas sociais rejeitarão ticularmente porque n ã o existe nada como a e s s ê n c i a de
uma ou outra destas teses que tenho a t r i b u í d o a este natu- um assunto científico. Isto me leva à m i n h a nona tese.
ralismo equivocado. Não obstante, este naturalismo parece,
presentemente, ter atingido um poder maior nas ciências so- Nona tese: U m , assim chamado, assunto científico é,
ciais, exceto, talvez, em economia; ao menos nos países de meramente, um conglomerado de problemas e soluções ten-
l í n g u a inglesa. Desejo formular os sintomas desta vitória na tadas, demarcado de uma forma artificial. O que realmente
m i n h a oitava tese. existe são problemas e soluções e tradições científicas.
Não obstante esta nona tese, a inversão completa entre
Oitava tese: Antes da Segunda Guerra Mundial, a so- sociologia e antropologia é extremamente interessante, n ã o
ciologia era considerada como uma ciência social geral e teó- por causa de suas especialidades ou de seus t í t u l o s , mas por-
rica, comparável, talvez, com a física teórica, e a antropolo- que ele conduz à vitória de um método pseudo-científico.
gia social era considerada como um tipo muito especial de Assim chego à m i n h a próxima tese.
sociologia — uma sociologia descritiva das sociedades pri-
mitivas. Hoje 3, essa relação tem sido, completamente, inver- Décima tese: A vitória da antropologia é a vitória de
um m é t o d o supostamente observacional, supostamente des-
tida; um fato para o qual se deve chamar a atenção.
critivo e supostamente mais objetivo, e, portanto, do eme é
A antropologia social ou etnologia tem se tornado uma tomado por m é t o d o das ciências naturais. É u m a vitória de
ciência social geral, e a sociologia tem se resignado, mais e Pirro. Outra vitória dessas, e nós — isto é, ambas a antro-
mais, a desempenhar um papel de um tipo especial de antro- pologia e a sociologia — estamos perdidos.
pologia social, a antropologia social das altamente indus- M i n h a décima tese pode ser formulada, admito de pron-
trializadas formas de sociedade americana ou européia-oci- to, um pouco intencionalmente demais. Admito, é claro, que
dental. Redeclarando mais sinteticamente, a relação entre a muito do interesse e da importância t ê m sido descobertos pela
sociologia e a antropologia tem se invertido. A antropologia antropologia social, que é uma das mais bem sucedidas ciên-
social tem sido promovida de uma aplicada disciplina descri- cias sociais. Além disso, admito prontamente que pode ser
tiva para uma ciência teórica chave e o antropólogo tem sido fascinante e significativo para nós europeus, vermo-nos, para
elevado de um descritivo trabalhador de campo, modesto e variar, a t r a v é s dos aspectos da antropologia social. P o r é m ,
de horizontes curtos, a um profundo teórico social de vistas embora estes aspectos sejam, talvez, mais coloridos do que
largas e a um psicólogo das profundezas sociais. O antigo outros, dificilmente seriam, por esta razão, mais objetivos.
O antropólogo n ã o é observador de Marte que, f r e q ü e n t e -
mente, ele se acredita ser e cujo papel social, geralmente, ten-
2. (Nota à edição inglesa). O que meus opositores de F R A N K F U R T cha- ta desempenhar (e não sem prazer), bastante desassociado
mam positivismo parece-me ser o mesmo que chamo aqui de "natura-
lismo equivocado", Eles tendem a ignorar minha rejeição do fato de que n ã o há razão para se supor que um habitante
3. (Nota à edição inglesa). Desde que isto foi escrito em 1961, tem havido de Marte nos veria mais "objetivamente", do que nós, por
uma forte reação às tendências aqui criticadas
exemplo, nos veríamos.
18
19
Neste contexto eu gostaria de contar uma estória que é pessoa ou outra tenta dominar o grupo e como suas tentativas
reconhecidamente extrema, mas, de nenhum modo, única são rejeitadas pelos outros, seja individualmente ou através da
embora seja u m a estória verídica, isto é, secundária no con- formação de uma coalisão; como depois de várias tentativas
deste tipo, uma ordem hierárquica, e, portanto um equilíbrio
texto presente. Se a estória lhes parecer improvável, por fa- grupai, e também um rito grupai de verbalização se desenvol-
vor, tomem-na como u m a invenção, como uma ilustração l i - vem; estas coisas são sempre semelhantes, não importa quão
vremente inventada, destinada a esclarecer um ponto impor- variada a questão pareça ser, que serve como tópico de dis-
tante, por intermédio de um exagero crasso. cussão".

Anos a t r á s , eu era um participante em uma conferência Nós ouvimos nosso antropólogo visitante de Marte e tudo
de quatro dias organizada por um teólogo, na qual partici- o que.tinha a dizer; e, então, fiz-lhe duas perguntas. Em pri-
pavam filósofos, biólogos, antropólogos e físicos — um ou meiro lugar, se ele teria qualquer c o m e n t á r i o a fazer sobre
dois representantes por cada'disciplina; ao todo oito partici- o verdadeiro conteúdo e o resultado de nossa discussão; e, en-
t ã o , se ele não poderia ver que existiam coisas como razões
pantes estavam presentes. O tópico era, eu acho, "Ciência
impessoais ou argumentos que poderiam ser válidos ou invá-
e Humanismo". Depois de várias dificuldades iniciais e a eli- lidos. Ele replicou que havia se concentrado muito na obser-
m i n a ç ã o de uma tentativa de nos impressionar com uma pro- vação do comportamento de nosso grupo, o que o impediu
fundidade exaltada ( " E R H A H E N E T I E F E " é um termo de de seguir em detalhes, o nosso argumento; mais ainda, se
H E G E L qu.e falhou em ver que uma profundidade exaltada assim o tivesse feito, ele teria posto a perigo (assim declarou)
é somente um chavão) os esforços conjuntos de quatro ou sua objetividade; pois poderia ter se envolvido pelo argumen-
cinco ásperas participantes conseguiram, ao cabo de dois to; e se ele tivesse permitido ser guiado por isto, ele teria
dias, elevar a discussão a um nível invulgarmente alto se tornado um de nós — e aquele, teria sido o f i m de sua
Nossa conferência tinha atingido o estágio — ou assim me objetividade. Além disso, ele foi treinado n ã o para julgar o
pareceu, enfim no qual estávamos mutuamente, apren- c o n t e ú d o literal do comportamento verbal (ele usava, cons-
dendo algo. tantemente os termos "comportamento verbal" e "verbali-
z a ç ã o " ) , ou tomá-lo como importante. O que se relacionava
a ele, disse, era a função social e psicológica deste compor-
De qualquer forma, nós estávamos imersos no assunto
tamento verbal. E adicionou algo como o seguinte:
de nosso debate, quando, inesperadamente, o antropólogo so-
cial deu sua contribuição. •
Enquanto os argumentos ou razões impressionam vocês
como participantes de uma discussão, o que nos interessa é o
Vocês ficarão, talvez, surpresos — ele disse — por eu não fato de que através destes meios vocês podem impressionar-se
ter dito nada até agora, nesta conferência. Isto é devido ao e influenciar-se mutuamente; e também, é claro, os sintomas
fato de que eu sou um observador. Como antropólogo, eu vim desta influência.
a esta conferência não tanto para participar de vosso 'compor- Estamos interessados em conceitos como a ênfase, a hesi-
tamento verbal, porém, mais propriamente, para estudar vosso tação, a intervenção e a concessão. Não estamos verdadeira-
comportamento verbal. Isto é o que tenho conseguido fazer mente interessados no conteúdo pactuai da discussão, mas ape-
Concentrando-me nesta tarefa, eu não estava sempre apto a nas, com os papéis que são desempenhados pelos vários parti-
seguir o verdadeiro conteúdo de vossa discussão Mas a W é m cipantes, como a interação dramática como tal. Em relação
aos assim chamados argumentos, eles são somente, é claro, um
como eu, que tem estudado dúzias de grupos de debate apren-
aspecto do comportamento verbal não mais importante do que
de com o tempo que o tópico discutido é relativamente sem
os outros. A idéia de que pode se distinguir entre argumentos
importância. Nós, antropólogos, aprendemos — isto é quase
e outras verbalizações impressionantes é uma ilusão puramente
literal (até onde eu me lembro) — considerar estes fenô-
a
subjetiva; e assim é a idéia da distinção entre argumentos ob-
menos sociais de fora, e de um ponto de vista mais objetivo jetivamente válidos e objetivamente inválidos. Sob pressão, po-
O que nos interessa não é o quê, o tópico, porém, mais ade- der-se-ia classificar os argumentos de acordo com as sociedades
quadamente, o como: por exemplo, a maneira pela qual uma ou grupos em que eles são aceitos em determinados momentos,
20
21
como válidos ou inválidos. Que o elemento tempo desempenha Todavia, minha tese t a m b é m possui um lado positivo e
um papel, é também revelado pelo fato de que argumentos este é mais importante. Ele forma o c o n t e ú d o da minha dé-
aparentemente válidos, -que são aceitos em um momento, em
um grupo de debate como o presente, podem, contudo, serem cima-segunda tese.
atacados ou rejeitados em um estágio posterior por um dos
participantes. Décima-segunda tese: O que pode ser descrito como
objetividade científica é baseado unicamente sobre uma tra-
Eu n ã o quero prolongar a descrição deste incidente. Eu dição crítica que, a despeito da resistência, f r e q ü e n t e m e n t e
imagino que n ã o será necessário declarar nesta reunião, que torna possível criticar um dogma dominante. A fim de co-
a posição, algo extremada, de meu amigo antropólogo de- locá-lo sob outro prisma, a objetividade da ciência n ã o é uma
monstra em sua origem intelectual a influência, n ã o só do matéria dos cientistas individuais, porém, mais propriamen-
ideal "BEHAVIORÍSTICO" da objetividade, mas t a m b é m te, o resultado social de sua crítica recíproca, da divisão hos-
de certas idéias que t ê m florescido em solo alemão.. Refiro- til-amistosa de trabalho entre cientistas, ou sua cooperação
me à idéia do relativismo filosófico, do relativismo histórico, e t a m b é m sua competição. Pois esta r a z ã o depende, em par-
que acredita n ã o existir verdade objetiva, porém, ao contrário, te, de um número de circunstâncias sociais e políticas que
meramente verdades para esta ou aquela era e do relativis-
fazem possível a crítica.
mo sociológico, que ensina a existência de verdades ou ciên-
cias para esta ou aquela classe ou grupo ou profissão, como Décima-terceira tese: A assim chamada sociologia do
a ciência p r o l e t á r i a e a ciência burguesa. T a m b é m acredito conhecimento, que tenta explicar a objetividade da ciência
que a sociologia do conhecimento tem sua grande parcela de pela atitude de desapego impessoal de cientistas individuais
responsabilidade, pois contribuiu para a pré-história dos dog- e a falta de objetividade em termos de " H A B I T A T " social do
mas repetidos pelo meu amigo antropólogo. Reconhecida- cientista, falha completamente no seguinte ponto decisivo:
mente, elo adotou uma posição algo extremada naquela con- o fato de que a objetividade repousa, unicamente, sobre uma
ferência. P o r é m esta posição, especialmente se for um pouco crítica recíproca. O que falta à sociologia do conhecimento
modificada, n ã o é nem a t í p i c a nem irrelevante. é nada menos do que a própria sociologia do conhecimento
Mas esta posição é absurda. Já que tenho criticado o re- — o aspecto social da objetividade científica e sua teoria. A
lativismo histórico e sociológico e t a m b é m a sociologia do co- objetividade pode, somente, ser explicada em termos de idéias
nhecimento em outros trabalhos, deixarei de criticá-los aqui. sociais como a competição (ao mesmo tempo, de cientistas
Ater-me-ei a debater, bem resumidamente, a idéia, i n g ê n u a individuais e de várias escolas); t r a d i ç ã o (principalmente a
e equivocada, de objetividade científica que forma a base des- tradição crítica); a instituição social (por exemplo, a publi-
ta posição. cação em vários jornais concorrentes e através de vários edi-
tores concorrentes; discussão em congressos); o poder do
Décima-primeira tese: íi um erro admitir aue a objeti- Estado (sua tolerância com o debate livre).
vidade de uma ciência dependa da objetividade do cientista. Alguns detalhes menores, como, por exemplo, o " H A -
E é um erro acreditar que a atitude do cientista natural é B I T A T " social ou ideológico do pesquisador, tendem a ser
mais objetiva do que a do cientista social. O cientista natu- eliminados com o correr do tempo; embora, reconhecidamen-
ral é tão p a r t i d á r i o quanto as outras pessoas, e a n ã o ser que te, eles sempre desempenhem um papel imediato.
p e r t e n ç a aos poucos que estão, constantemente, produzindo De um modo semelhante àquele no qual temos resolvido
novas idéias, ele está, infelizmente muito inclinado, em ge- o problema da objetividade, podemos resolver o problema aná-
ral, a favorecer suas idéias preferidas de um modo parcial logo da liberdade da ciência no envolvimento em juízo de
e unilateral. Vários dos físicos contemporâneos de maior pro- valores (isenção de valores); e o podemos fazer de uma ma-
jeção t ê m fundado, t a m b é m , escolas que estabelecem uma re- neira mais livre, e menos dogmática, do que é feita geral-
sistência poderosa a novas idéias. mente.

22 23
Décima-quarta tese: Em uma discussão crítica pode- Isto n ã o pode, é óbvio, ser conseguido de uma vez só e
mos distinguir questões tais como: 1) a questão da verdade para sempre, por i n t e r m é d i o de um decreto; contudo, perma-
de uma asserção; a questão de sua relevância, do seu inte- nece como uma das missões permanentes do m ú t u o criticis-
resse e da sua significação em relação aos problemas nos mo científico. A pureza da ciência pura é um ideal presumi-
quais estamos interessados; 2) a questão da sua relevância e damente inalcançável; mas é um ideal para o qual estamos
do seu interesse e da sua significância para vários problemas lutando constantemente — e devemos lutar — por i n t e r m é -
extra-científicos, por exemplo, problemas de bem-estar hur- dio da crítica.
mano, os problemas estruturalmente bem diferentes, da defe-
sa nacional; ou (por contraste) de uma agressiva política Ao formular esta tese eu disse que é, praticamente, im-
nacionalista; ou de expansão industrial; ou de aquisição de possível conseguir a e l i m i n a ç ã o dos valores extra-científicos
riqueza pessoal. da atividade científica. A s i t u a ç ã o é semelhante com respeito
à objetividade; n ã o podemos roubar o partidarismo de um
É claramente impossível eliminar tais interesses extra- cientista sem t a m b é m roubá-lo de sua humanidade, e não
científicos e evitar sua influência no curso da pesquisa cien- podemos suprimir ou destruir seus juízos de valores sem des-
tífica. E é tanto impossível eliminá-los da pesquisa nas ciên- truí-lo como ser humano e como cientista. Nossos motivos
cias naturais — citemos a pesquisa em física — quanto da e a t é nossos ideais puramente científicos, inclusive o ideal de
pesquisa nas ciências sociais. uma desinteressada busca da verdade, estão profundamente
enraizados em valorações extra-científicas e, em parte, reli-
O que é possível e o que é importante e o que empresta giosas. Portanto, o cientista "objetivo" ou "isento de valores"
à ciência o seu caráter especial não é a eliminação dos i n - é, dificilmente, o cientista ideal. Seni paixão n ã o se consegue
teresses extra-científicos porém, mais propriamente, a dife- nada — certamente n ã o em ciência pura. A frase "a paixão
renciação entre os interesses que não pertencem à pesquisa pela verdade" não é uma mera m e t á f o r a .
para a verdade e para o puro interesse científico na verdade.
Mas, embora a verdade seja nosso valor científico decisivo, • Portanto, n ã o é que, apenas, a objetividade e a liberdade
ele n ã o é nosso único princípio. Relevância, interesse e sig- de envolvimento com valores (isenção de valores) sejam inal-
nificância (a significação de declarações relativas a uma si- cançáveis na p r á t i c a , pelo cientista individual, porém, mais
t u a ç ã o p r o b l e m á t i c a puramente científica), são, igualmente, adequadamente, que a objetividade e a liberdade em relação a
tais dependências, são valores em si mesmos. E, desde que,
valores científicos de primeira ordem; e isto é t a m b é m ver-
a liberdade de valores é, ela p r ó p r i a , um valor, a exigência
dadeiro acerca de valores como fecundidade, força explica-
incondicional de liberdade em relação a qualquer ligação a
tiva, simplicidade, e precisão. valores é. paradoxal. Não considero este argumento como
muito importante; mas deveria ser notado que o paradoxo
Em outras palavras, existem valores e desvalores pura- desaparece, totalmente, por sua p r ó p r i a iniciativa, se subs-
mente científicos e valores e desvalores exíra-científicos. tituirmos a exigência pela liberdade de dependência a todos
E, embora seja impossível separar o trabalho científico de os valores pela exigência de que deveria ser uma das tarefas
aplicações e avaliações, é uma das tarefas do criticismo cien- do criticismo científico, apontar as confusões de valores e se-
tífico e do debate científico, lutar contra a confusão das es- parar os problemas de valores puramente científicos como ver-
calas de valores e, em particular, separar avaliações extra- dade, relevância, simplicidade, etc, dos problemas extra-cien-
científicas das questões de verdade. tíficos.

24 25
Eu tenho, a t é agora, tentado desenvolver, resumidamen- Este resultado trivial porém decisivamente importante
te, a tese de que o método da ciência consiste na escolha dos pode t a m b é m ser expresso da seguinte m a n e i r a : a lógica de-
problemas interessantes e na crítica de nossas permanentes dutiva é n ã o só a teoria da transmissão da verdade das pre-
tentativas experimentais e provisórias para solucioná-los. missas à conclusão, mas é, t a m b é m , ao mesmo tempo, a
Tenho tentado demonstrar mais a l é m , usando como exem- teoria da retransmissão da falsidade da conclusão a t é , ao me-
plos duas questões de método muito discutidas nas ciências nos, uma das premissas.
sociais, de que esta abordagem crítica a m é t o d o s (como po-
deria ser chamada) conduz a resultados metodológicos bas- Décima-oitava tese: Desta forma, a lógica dedutiva
tante razoáveis. Mas, embora eu tenha dito umas poucas pa-
torna-se a teoria da c r í t i c a racional, pois todo criticismo ra-
lavras sobre epistemologia, sobre a lógica do conhecimento,
cional toma a forma de u m a tentativa de demonstrar que
e outras poucas palavras críticas sobre a metodologia das
conclusões inaceitáveis podem se derivar da a f i r m a ç ã o que
ciências sociais, tenho, até agora, dado apenas u m a pequena
contribuição positiva para o meu tópico, a lógica das ciên- estivemos tentando criticar. Se tivermos sucesso em deduzir,
cias sociais. logicamente, conclusões inaceitáveis de u m a afirmação,
e n t ã o , a a f i r m a ç ã o pode ser colocada como digna de ser
recusada.
Não desejo deter os ouvintes oferecendo razões pelas
quais acho importante o método científico, ao menos à p r i r
Décima-nona tese: Nas ciências, trabalhamos c o m teo-
meira aproximação, com o método crítico. Ao invés disto, eu rias, isto é, com sistemas dedutivos. Há duas razões para isso.
gostaria de ir direto a algumas questões e teses puramente
Em primeiro lugar, u m a teoria ou um sistema dedutivo é u m a
lógicas.
tentativa de explicação e, c o n s e q ü e n t e m e n t e , u m a tentativa
de solução de um problema científico — um problema de
Décima-quinia tese: A função mais importante da pura explicação. Em segundo lugar, uma teoria, um sistema dedu-
lógica dedutiva é a de um sistema de crítica. tivo, pode ser criticado racionalmente a t r a v é s de suas con-
seqüências. É, e n t ã o , uma solução experimental, o objeto da
Décima-sexta tese: A lógica dedutiva é a teoria da va- crítica racional. Tanto quanto o sistema de c r í t i c a o é para
lidade das deduções lógicas ou da relação de conseqüência a lógica formal.
lógica.' Uma condição necessária e decisiva para a validade
de uma conseqüência lógica é a seguinte: se as premissas Duas idéias fundamentais que tenho usado aqui reque-
de uma dedução válida são verdadeiras, e n t ã o a conclusão rem uma breve e l u c i d a ç ã o : a idéia de verdade e a idéia de
deve t a m b é m ser verdadeira. explicação.

Isto t a m b é m pode ser expresso como se segue. A lógica Vigésima tese: O conceito de verdade é i n d i s p e n s á v e l
dedutiva é a teoria da transmissão de verdade, das premissas para a abordagem c r í t i c a aqui desenvolvida. O que criticamos
à conclusão. é, precisamente, a p r e t e n s ã o de que u m a teoria é verdadeira.
O que tentamos demonstrar como crítica de u m a teoria é,
JDécima-setima tese: Podemos dizer: se todas as premis- claramente, que essa p r e t e n s ã o é infundada, que ela é falsa.
sas são verdadeiras e a dedução é válida, e n t ã o a conclusão A importante idéia metodológica que podemos aprender
deve t a m b é m ser verdadeira; e se, c o n s e q ü e n t e m e n t e , a con- de nossos erros n ã o pode ser entendida sem a idéia regula-
clusão é falsa em uma dedução válida, e n t ã o , n ã o é possível dora da verdade; qualquer erro simplesmente consiste em
que todas as premissas sejam verdadeiras. um fracasso em viver de acordo com o p a d r ã o da verdade ob-

26 27
jetiva que é nossa idéia reguladora. Denominamos "verda- tem numa teoria e em algumas condições i n i c i a i s , e cuja 4

deira" uma proposição, se ela corresponde aos fatos, ou se conclusão é o "explieandum".


as coisas são como as descritas pela proposição. Isto é, o que
O esquema básico tem um n ú m e r o notável de aplica-
é chamado de conceito absoluto ou objetivo da verdade que
ções. Pode se apontar com sua ajuda, por exemplo, a distin-
cada um de nós usa constantemente. A reabilitação bem su-
ção entre uma hipótese "ad-hoc" e uma hipótese independen-
cedida deste conceito absoluto da verdade é um dos resulta-
temente testável. Mas além — e isto poderia ser de mais i n -
dos mais importantes da lógica moderna. teresse para vocês •— pode-se analisar logicamente, de um
Esta observação alude ao fato de que o conceito de ver- modo simples, a distinção entre problemas teóricos, proble-
dade tem sido desprestigiado. Realmente, isto foi a forma mas históricos e problemas de ciência aplicada. Outro re-
matriz que produziu as ideologias reiativistas dominantes em sultado é que a famosa distinção entre ciências teóricas ou
nosso tempo. n o m o t é t i c a s e históricas ou ideográficas pode ser justificada
logicamente — contanto que se entenda aqui sob o termo
Esta é a razão pela qual estou inclinado a descrever a "ciência" n ã o meramente "ciência natural" (como em i n -
reabilitação do conceito de verdade pelo m a t e m á t i c o e lógico glês) mas, qualquer tentativa para solucionar um conjunto
A L F R E D O T A R S K I como, filosoficamente, o mais importan-
de problemas definido e logicamente diferenciável.
te resultado da lógica m a t e m á t i c a .
O mesmo se aplica para a elucidação dos conceitos ló-
É claro que não posso discutir este resultado aqui. Me- gicos que tenho empregado a t é agora.
ramente posso dizer, bastante dogmaticamente, que T A R S K I
obteve sucesso da maneira mais simples e mais convincente, Os dois conceitos sob debate, aquele relativo à verdade,
ao explicar onde repousa a adequação entre as asserções e e aquele concernente à explicação, tornam possível a análise
os fatos. Porém, isto foi, precisamente, a tarefa cuja apa- lógica dos demais conceitos, talvez 'mais importantes para a
rente dificuldade desanimadora conduziria ao relativismo cé- lógica do conhecimento ou metodologia. O primeiro desses
tico com conseqüências sociais que n ã o preciso aqui decifrar. conceitos é aquele da aproximação da verdade e o segundo
aquele do poder explicativo ou o conteúdo explicativo de uma
O segundo conceito que tenho utilizado e que pode re-
querer elucidação é a idéia da explicação ou, mais precisa- teoria.
mente, a idéia da explicação causai. Estes dois conceitos são puramente lógicos, visto pode-
Um problema puramente teórico — um problema de ciên- rem ser definidos com a ajuda dos conceitos puramente ló-
cia pura — consiste sempre na tarefa de achar uma explica- gicos da verdade de um enunciado e do c o n t e ú d o de uma
ção, a explicação de um fato ou de um fenômeno ou de uma afirmação — isto é, a classe das conseqüências lógicas de
regularidade destacada ou de uma notável excessão à regra. uma teoria dedutiva. Ambos são conceitos relativos. Embora
Aquilo que pretendemos explicar pode ser chamado de cada enunciado seja simplesmente verdadeiro ou falso, um
"explieandum". A solução tentada do problema, isto é, a ex- enunciado pode representar uma melhor a p r o x i m a ç ã o da
plicação, consiste sempre numa teoria, em um sistema dedu- verdade do que um outro enunciado. Isto a c o n t e c e r á se,
tivo que nos permite explicar o "explieandum" relacionando-o por exemplo, um enunciado tiver conseqüências lógicas
a outros fatos (as assim chamadas condições iniciais). U m a "mais" verdadeiras e "menos" falsas.do que outro. ( E s t á
explicação integralmente explícita consiste em demonstrar a pressuposto aqui que os subconjuntos verdadeiros e falsos
derivação lógica (ou derivabilidade) do "explieandum" da
teoria reforçada por algumas condições iniciais. 4. (Nota à edição inglesa). Nas ciências sociais, as premissas da expli-
cação usualmente consistem em um modelo situacional e de um, assim
O lógico esquema básico de toda explicação consiste chamado, "princípio de racionalidade". Estas explicações de lógica situa-
cional" estão brevemente discutidas nas minhas teses número vinte e
numa mferência dedutiva (lógica) cujas premissas consis- cinco e vinte e seis.

28 29
do conjunto de conseqüências de dois enunciados são com- Vigésima-terceira tese: A Sociologia é a u t ô n o m a , no
p a r á v e i s ) . Pode ser, então, demonstrado facilmente porque sentido em que, a uma d i s t â n c i a considerável, ela pode e
assumimos, corretamente, que a teoria de N E W T O N é uma deve tornar-se independente da psicologia. A parte da de-
melhor a p r o x i m a ç ã o da verdade do que a de K E P L E R . Igual- pendência da psicologia em relação às idéias sociais (men-
mente pode ser demonstrado que o poder explicativo da cionada em minha vigésima-segunda tese), deve-se ao i m -
teoria de N E W T O N é maior do que a de K E P L E R ^ portante fato de que a sociologia está, constantemente,
diante da tarefa de explicar as conseqüências i n v o l u n t á r i a s
Portanto, analisamos aqui idéias lógicas que enfatizam a e geralmente indesejáveis da ação humana. Um exemplo:
a v a l i a ç ã o de nossas teorias e que nos permitem falar, sig- a competição é um fenômeno social que é, usualmente, i n -
nificativamente, de progresso ou regresso com relação às
desejável, pelos competidores, mas que pode e deve ser ex-
teorias científicas.
plicado como uma conseqüência i n v o l u n t á r i a (geralmente
O mesmo podemos dizer da lógica geral do conhecimen- inevitável) das ações (conscientes e planejadas) dos compe-
to. Referindo-me, em particular, à lógica das ciências sociais, tidores. Logo, muito embora possamos estar aptos a explicar
eu gostaria de formular algumas outras teses. psicologicamente algumas das ações dos competidores, o fe-
nômeno social da competição é uma conseqüência psicologi-
Vigésima-primeira tese: Não existe nenhuma ciência camente inevitável destas ações.
puramente observacional; existem somente ciências nas quais
teorizamos (mais ou menos consciente e criticamente). É Vigésima-quarta tese: Porém, a sociologia é t a m b é m
claro que isto t a m b é m serve para as ciências sociais. a u t ô n o m a em um segundo sentido, isto é, n ã o podemos re-
duzir à psicologia o que tem sido, freqüentemente, denomi-
Vigésima-segunda tese: A psicologia é uma ciência so- nado " V E R S T E H E N D E S O Z I O L O G I E " (a sociologia da com-
c i a l visto dependerem, grandemente, nossos pensamentos e preensão objetiva ?).
ações, de nossas condições sociais. Idéias como (a) a imita-
ção, (b) a linguagem, (c) a família, são obviamente idéias Vigésima-quinta tese: A investigação lógica da Econo-
sociais; e está claro que a psicologia da aprendizagem e do mia culmina com um resultado que pode ser aplicado a to-
pensamento e t a m b é m , por exemplo, a psicanálise, não po- das as ciências sociais. Este resultado mostra que existe um
dem existir sem utilizar uma ou outra dessas idéias sociais. método puramente objetivo nas ciências sociais, que bem pode
Portanto, a psicologia pressupõe idéias sociais, o que demons- ser chamado de método de compreensão objetiva, ou de ló-
tra ser impossível explicar a sociedade exclusivamente em gica situacional. U m a ciência orientada para a c o m p r e e n s ã o
termos psicológicos, ou reduzi-la à psicologia. Logo, não po- objetiva ou lógica situacional pode ser desenvolvida mdeperir
demos considerar a psicologia como a base das ciências so- dentemente de todas as idéias subjetivas ou psicológicas.
ciais. Este método consiste em analisar suficientemente a s i t u a ç ã o
O que n ã o podemos, a princípio, explicar psicologica- social dos homens ativos para explicar a ação com a ajuda
mente, e o que devemos pressupor em toda explicação psi- da situação, sem outra ajuda maior da psicologia. A com-
cológica é o ambiente social do homem. A missão de descre- preensão objetiva consiste em considerar que a ação foi obje-
ver esse ambiente social (isto é, com a ajuda de teorias ex- tivamente apropriada à s i t u a ç ã o . Em outras palavras, a si-
plicativas — como declaradas anteriormente — visto que des- tuação é analisada o bastante para que os elementos que pa-
crições livres de teorias não existem) é a tarefa fundamental
da ciência social. . r /«-ta, à edição Inglesa). Para uma discussão mais completa (inclusive
alFuns exemplos) de uma objetiva teoria da compreensão, ver minha
Poderia ser apropriado atribuir essa missão à sociologia. nota "Sobre a Teoria da Mente Objetiva" que forma o capitulo quarto
Por conseguinte, incümbo-me disso no que se segue. do meu livro Conliecimento Objetivo.

21
30
recém, inicialmente, ser psicológicos (como desejos, motivos, tém, digamos, recursos fisicos que estão à nossa disposi-
lembranças e associações), sejam transformados em elemen- ção e sobre os quais sabemos algo, e barreiras físicas sobre
tos da situação. O homem com determinados desejos, por- as quais t a m b é m sabemos alguma coisa ( f r e q ü e n t e m e n t e n ã o
tanto, torna-se um homem cuja s i t u a ç ã o pode ser caracteri- muito). Além disso, a lógica situacional t a m b é m deve admi-
zada pelo fato de que persegue certos alvos objetivos; e um tir um mundo social, habitado por outro povo, de cujas me-
homem com determinadas l e m b r a n ç a s ou associações torna¬ tas sabemos alguma coisa (muito pouco), e, deve admitir,
-se um homem cuja situação pode ser caracterizada pelo fato além de tudo, as instituições sociais. Essas i n s t i t u i ç õ e s sociais
de que c equipado, objetivamente, com outras teorias ou com determinam o peculiar caráter social de nosso meio social.
certas informações. Essas instituições sociais consistem de todas as realidades so-
Isto nos permite compreender, e n t ã o , ações em um sen- ciais do mundo social, realidades que, em algum grau, cor-
tido objetivo, a ponto de podermos dizer: reconhecidamente, respondem às coisas do mundo físico. Um a r m a z é m ou um
possuo diferentes alvos e sustento diferentes teorias (de, por instituto universitário ou uma forca policial ou u m a lei são,
exemplo, Carlos Magno), mas se tivesse sido colocado nesta nesse sentido, instituições sociais. A Igreja, o Estado e o ca-
situação, logo, analisado — onde a s i t u a ç ã o inclui metas e samento t a m b é m são instituições sociais, como são certos
conhecimento — e n t ã o eu, e presumidamente vocês também, costumes coercitivos como, citemos, o hara-kiri no J a p ã o .
teria agido de uma forma semelhante a dele. O método da Mas na sociedade européia, o suicídio não é u m a i n s t i t u i ç ã o
análise situacional é, certamente, um m é t o d o individualista social no sentido em que usei o termo, e em que declarei que
e, contudo, não é, certamente, um m é t o d o psicológico, pois a categoria possui importância.
exclui, em princípio, todos os elementos psicológicos e os Esta c minha última tese. O que se segue é uma suges-
substitui por elementos objetivos situacionais. Eu chamo isto, tão e uma pequena nota conclusiva.
usualmente, de "lógica da s i t u a ç ã o " ou "lógica situacional"!
Sugestão: Podemos, talvez, aceitar provisoriamente, co-
mo problemas fundamentais de uma sociologia puramente
Vigésiina-scxta lese: As explicações da lógica situacio-
teórica, a lógica situacional geral e a teoria das instituições
nal aqui descritas são reconstruções racionais e teóricas. São
c das tradições. Isto incluiria problemas tais como os se-
simplificadas c esquematizadas por alto, e, conseqüentemen- guintes:
te, são geralmente falsas. Apesar disso, podem possuir um
conteúdo verdadeiro considerável e podem, no sentido estri- 1 — As instituições não agem; ao invés, só os indivíduos
tamente lógico, ser boas a p r o x i m a ç õ e s da verdade e melho- agem, dentro ou para ou através das instituições. A lógica
res do que outras explicações testáveis. Nesse sentido, o con- situacional geral destas ações será a teoria das quase-ações
ceito lógico de aproximação da verdade é indispensável para das instituições.
uma ciência social que usa o método da análise situacional. 2 — Poderíamos construir uma teoria das conseqüên-
Sobretudo é racional, empiricamente criticável, e capaz de cias institucionais, planejadas ou não, de ação intencional.
melhorias. Podemos, por exemplo, encontrar uma carta que Isto t a m b é m conduziria à teoria da criação c do desenvolvi-
demonstre que o conhecimento à disposição de Carlos Magno mento das instituições
era diferente do que admitimos em nossa análise. Por con- Finalmente, um comentário adicional. Acredito que a
traste, as hipóteses psicológicas ou caracteriológicas são di- epistemologia é importante não só para as ciências indivi-
ficilmente criticáveis por argumentos racionais. duais mas t a m b é m para a filosofia, e que a i n t r a n q ü i l i d a d e
filosófica e religiosa dos nossos tempos, que, seguramente,
Vigésima-sétima tese: Geralmente a lógica situacional concerne a todos nós, é, em um grau considerável, o resul-
admite um mundo físico no qual agimos. Este mundo con- tado da intranqüilidade da filosofia do conhecimento huma-

32 33
no. N I E T Z S C H E chamou este fato de nihilismo europeu e
B E N D A de a t r a i ç ã o dos intelectuais. Eu gostaria de carac-
terizá-lo como u m a conseqüência da descoberta socrática de
q u e m â o sabemos nada; isto é, que não podemos nunca justi-
ficar nossas teorias, racionalmente. Porém essa descoberta i m -
portante, que tem produzido, entre muitas outras indisposi-
ções, a indisposição do existencialismo, é só a metade de u m a
descoberta; e o nihilismo pode ser superado. Pois, embora,
n ã o possamos justificar nossas teorias racionalmente e n ã o
RAZÃO OU REVOLUÇÃO?
possamos, nem mesmo, provar que são prováveis, podemos
criticá-las racionalmente. E podemos, constantemente, dis-
tingui-las de teorias piores. ,
As considerações críticas que se seguem são reações ao
livro Der Positivismusstreit in der deutschen Soziologie
Porém, isto era conhecido, antes mesmo de Sócrates, por ("A disputa do Positivismo na Sociologia A l e m ã " ) , publicado
XENOPHANÉS que nos disse 6 :
1
no ano passado (para o qual escrevi o texto original).
Os deuses n ã o nos revelaram todas as coisas, de Inicio; 1. Começarei contando algo da h i s t ó r i a do livro e de seu
Mas no curso do tempo. t í t u l o equívoco. Em 1960, eu fora convidado a abrir a dis-
Através da procura, poderemos aprender c u s s ã o sobre "A Lógica das Ciências Sociais" no Congresso
E conhecer melhor as coisas...
dos Sociólogos Alemães em G õ t t i n g e n . Eu aceitei e recebi o
aviso de que a minha c o m u n i c a ç ã o de abertura seria seguida
por urna réplica do.Professor Theodor Adorno, de Frankfurt.
Os organizadores haviam-me e n t ã o sugerido, de modo a sus-
Tradução de Apio Cláudio Muniz Acquarone Filho, do citar um debate frutuoso, que eu formulasse meus pontos de
original "The logic of the social sciences", in.; The po- vista em um n ú m e r o determinado de teses. T a l o fiz: minha
sitivist dispute in é^man sociology. London, Heinne- c o m u n i c a ç ã o de abertura para o debate, apresentada em
mann, 1976. 1961, consistia em 27 teses formuladas em termos precisos,
acrescidas de uma formulação p r o g r a m á t i c a da tarefa das
ciências sociais teoréticas. Aquelas teses foram formuladas,
sem d ú v i d a de maneira a torná-las dificilmente aceitáveis por
um hegeliano ou por um marxista (como Adorno), e eu as
fundamentei, tanto quanto pude, com argumentos. Atenden-
do ao pouco tempo disponível, restringi-me ao fundamental,
evitando repetir o que já havia dito em outros lugares.
A réplica de Adorno foi lida com ênfase, mas ele dificil-
mente respondeu ao meu desafio — isto é, às minhas 27 te-
ses. No debate que se seguiu, o Professor R a l f Dahrendorf ex-
p r i m i u seu profundo desapontamento. Ele disse que fora a
i n t e n ç ã o dos organizadores colocar a descoberto algumas di¬
i Este artigo foi publicado originalmente nos "Archives européennes de
6. (Nota à edição inglesa) "Conjeturas e Refutações", p. 152 (a tradução
é minha). Sociologie" X I (1970) 252-262 e revisto para a presente publicação.

34 35
vergências flagrantes — aparentemente ele incluía diferen- graças à atitude tolerante adotada por alguns dos membros
ças políticas e ideológicas — entre a minha abordagem das do Círculo de Viena, meu livro A Lógica da Pesquisa Cientí-
ciências sociais e a de Adorno. A impressão causada "por mi- 5
fica , no qual critiquei este Círculo positivista, foi publica-
nha comunicação e pela réplica de Adorno foi porém disse do numa série de livros editados por Moritz Schlick e Philipp
ele, a de um suave acordo, um fato que o deixou estupefato Frank, dois destacados membros do Círculo 6; aqueles, pois,
("como se os senhores Popper e Adorno estivessem surpreen- que julgam livros pelas suas capas (ou pelos seus editores),
dentemente de acordo"). Eu senti e ainda sinto muito tal criaram o mito de que eu fora membro do Círculo de Viena
incidente. Tendo sido porém convidado a falar sobre "A ló- e positivista.
gica das ciências sociais", eu não iria desviar-me de meu ca-
Ninguém que tenha lido aquele livro (ou qualquer outro
minho para atacar Adorno e a escola "dialética" de Frank-
furt (Adorno, Habermas, Horckheimer e outros), que eu ja- livro meu) concordará com isto — a menos que creia no mito
mais considerei importante, excetuando-se, quem sabe, de um e parta dele, caso em que p o d e r á decerto encontrar evidên-
ponto de vista político; além disso, em 1960, eu ainda n ã o cias para fundamentar esta c r e n ç a .
estava seguro da influência política desta escola. Embora Em minha defesa, o Professor Hans Albert (tampouco
hoje eu n ã o hesite em descrever esta influência em termos positivista) escreveu uma réplica espirituosa ao ataque de
do tipo "irracionalista" ou "destrutiva da inteligência", ja- Habermas. Este último respondeu e foi respondido uma se-
mais poderia levar sua metodologia (pouco importando o que gunda vez por Albert. Este debate ocupou-se principalmente
isto signifique) a sério tanto de um ponto de vista intelectual com as características gerais e com a consistência de meus
como a c a d ê m i c o . Conhecendo-a agora um pouco mais, creio pontos de vista. Assim, houve apenas ligeira m e n ç ã o — e ne-
que Dahrendorf teve razão em ficar desapontado; eu devia nhuma crítica séria — ao meu discurso inaugural de 1961,
tê-los atacado utilizando os argumentos anteriormente pu- e às suas 27 teses.
3
blicados no meu Open Society 2 The Foverty of Historicism
e Foi, creio, em 19G4, que um editor alemão perguntou-
c em "O que é d i a l é t i c a ? " mesmo se eu quisesse que tais me se eu porventura concordaria em ter meu discurso pu-
argumentos coubessem sob o título de "A Lógica das Ciên- blicado em forma de livro juntamente com a réplica de Ador-
cias Sociais" — mas isto já n ã o mais importa. M e u único no e o debate entre Habermas e Albert. Eu assenti.
reconforto fica sendo que a responsabilidade de provocar a Uma vez publicado, porém, o livro (em 1969, em alemão)
polêmica repousaria sobre os ombros do segundo orador. apresenta duas introduções praticamente novas de Adorno
Seja como for, a crítica de Dahrendorf suscitou um ar- (94 páginas), seguidas de meu discurso de 1961 (20 p á g i n a s ) ,
tigo (quase duas vezes mais longo do eme a minha comuni- da réplica original de Adorno (18 p á g i n a s ) , da queixa de
cação original) do Professor J ü r g e n Habermas, outro mem- Dahrendorf (19 p á g i n a s ) , do debate entre Habermas e Albert
bro da escola de Frankfurt. Foi neste artigo, penso, eme o (150 páginas), de uma nova c o n t r i b u i ç ã o de Harold Pilot (28
termo "positivismo" surgiu pela primeira vez nesta discussão páginas) e por um "curto post-scriptum surpreso para uma
específica; eu fui criticado como "positivista". longa introdução" de Albert. (5 p á g i n a s ) . Neste, Albert men-
Este é um equívoco antigo, criado e perpetuado por aque- a
r> Logik der Forschung (Wien, Julius Springer, 1934; 5. ed. Tübingen,
les que conhecem a m i n h a obra somente de segunda m ã o ; J . C . B . Mohr, 1973). Tradução inglesa: The Logic of Scientific Disco-
a
very (London, Hutchinson, 1959), 7. impr. 1974. Tradução brasileira:
a
A lógica ãa Pesquisa Científica (São Paulo, Itatiaia, 1976)..
2 "The Open Society and Its Enemies" (Londres, 1945), 5. edição (re- 6 O Circulo de Viena se compunha de homens de originalidade e dos mais
vista) 1969, 10." impr. 1974, "A Sociedade aberta e seus inimigos", tra- elevados padrões intelectuais e morais. Nem todos dentre eles foram
dução brasileira pela Editora Itatiaia. "positivistas", se entendermos este termo como uma condenação do pen-
3 "The Poverty of Historicism" (Londres, 1957 e edições posteriores). samento especulativo, embora estes fossem a maioria. Eu sempre tenho
4 "What is Dialectic?" "Mind", XLIX (1940) pp. 403 ss. Reimpresso em sido favorável a um pensamento especulativo çriticável e, sem dúvida,
"Conjectures and Refutations" (London, 1963), 5." ed., 1974. de sua critica efetiva. .

36 37
ciona rapidamente que tudo começou com o debate entre social" (que preconiza uma reforma gradual e setorial, con-
Adorno e m i m mesmo em 1961, e diz, com muita proprieda- trolada por uma c o m p a r a ç ã o crítica entre os resultados es-
de, que o leitor do livro dificilmente se daria conta do que se perados e os obtidos) contrasta fortemente com a minha
tratava. Esta 6 a única alusão em todo o livro à h i s t ó r i a que "teoria do método" que procura ser uma.teoria das revolu-
o precedeu. Não há resposta à questão sobre como o livro re- ções científicas e intelectuais.
cebera um t í t u l o que indica, erroneamente, que nele foram 2. Este fato e minha atitude com relação à revolução
discutidas as opiniões de alguns "positivistas". Nem mesmo podem ser facilmente explicados. Comecemos com a evolução
o post-scriptum de Albert responde a esta questão. darwiniana. Os organismos evoluem por ensaio e erro, e, suas
Qual foi o resultado? Minhas 27 teses, destinadas a i n i - tentativas errôneas — suas m u t a ç õ e s errôneas — são elimi-
ciar um debate (e assim o fizeram, afinal de contas), n ã o nadas, regra geral, pela eliminação do organismo que é o
foram discutidas seriamente em momento algum deste longo "suporte" do erro. Faz parte da minha epistemologia que, no
livro — nem mesmo uma única dentre elas, embora uma ou homem, através da evolução de uma linguagem descritiva e
outra passagem de meu discurso seja mencionada aqui e ali, argumentativa, tudo isto se modificou radicalmente. Acaba-
de modo geral fora do contexto, para ilustrar o meu "positi- se desta forma a possibilidade de ser "crítico de suas pró-
vismo". Além disso, o meu discurso está sepultado no meio prias tentativas, de suas próprias teorias". Estas teorias n ã o
do livro, desligado do começo e.do fim. Nenhum leitor pode são mais'incorporadas a seu organismo ou a seu sistema ge-
ver e nenhum revisor pode compreender, porque meu discur- nético: elas podem ser formuladas em livros ou em revistas,
so (que eu só posso considerar como altamente insatisfató- discutidas criticamente, demonstradas como errôneas, sem
rio em sua forma atual) está incluído no livro — ou que ele matar nenhum autor, nem queimar livro algum; sem des-
seja o tema inconfessado do livro inteiro. Nenhum leitor des- truir os "suportes".
cobrirá e nenhum revisor descobriu o que eu suponho ser a Desta forma, nós chegamos a uma nova possibilidade
verdade da questão. É porque meus oponentes literalmente fundamental: nossas escolhas, nossas hipóteses experimen-
n ã o souberam como criticar racionalmente as minhas 27 te- tais, podem ser eliminadas criticamente pela discussão racio-
ses. Tudo o que puderam fazer foi rotular-me de "positivista" nal, sem eliminarmos a nós mesmos. Este é, de fato, o pro-
(mesmo ao preço de atribuir um nome altamente deprecia- pósito da discussão racional crítica.
tivo ao debate, no qual nem um único "positivista" esteve O "suporte" de uma hipótese exerce uma importante
envolvido), e, tendo-o feito, mergulharam meu pequeno arti- função nestas discussões; ele tem de defender a hipótese con-
go, e o ponto de partida original do debate, num oceano de tra críticas erradas, pode talvez tentar modificá-la, se sua
palavras — q u ê eu achei somente em parte compreensíveis. forma original n ã o puder ser sustentada com êxito. Se o m é -
U m a vez publicado, a principal conseqüência do livro fi- todo da discussão racional crítica se estabelecer, tal f a r á o
cou sendo a acusação feita por Adorno e Habermas de que uso da violência obsoleto: a razão crítica é a única alternativa,
um "positivista" do tipo de Popper está obrigado por sua me- descoberta até hoje, para a violência. Parece-me claro ser a
todologia a defender o "status quo" político. Esta é uma acusa- tarefa óbvia de todos os intelectuais contribuir para "esta"
ção que eu mesmo levantei, no meu Open Society, contra revolução — pela substituição da função eliminatória da vio-
Hegel, cuja füosofia da identidade (o que é real é racional) lência pela função e l i m i n a t ó r i a da razão crítica. Para se tra-
foi descrita por m i m como uma espécie de "positivismo mo- balhar, porém, com vistas a este fim, é necessário escrever
r a l e legal". Em meu discurso, eu nada disse sobre t a l con- e falar constantemente n u m a linguagem clara e simples.
seqüência; e n ã o tive oportunidade alguma de réplica. Mas Todo pensamento s e r á formulado tão clara e simples-
eu tenho combatido freqüentemente este tipo de "positivis- mente quanto possível, o que só pode ser efetuado mediante
m o " de muitas outras formas. E é fato que m i n h a "teoria trabalho á r d u o .

39
38
3. Eu tenho sido há muitos anos crítico da assim cha- 4. A explicação sociológica deste fato é simples. Todos
mada "sociologia do conhecimento". Não que eu pense que nós tomamos nossos valores, ou a maior parte deles, de nosso
tudo o que Mannheim (e Scheler) disse esteja errado. Pelo ambiente social; freqüentes vezes por mera imitação, simples-
c o n t r á r i o , muito era apenas, trivialmente, verdadeiro demais. mente por assumi-los de outros; por vezes, mediante uma
O que eu combati, principalmente, foi a crença de Mannheim reação revolucionária contra valores aceitos; e, outras vezes,
de que existia uma diferença essencial, relativa à objetividade,
embora tal seja raro — pelo exame crítico destes valores e
entre q cientista social e o cientista natural, ou entre o es-
tudo da sociedade e o estudo da natureza. À tese que eu com- das possíveis alternativas. Pouco importando como isto se pas-
bati foi a de que era fácil ser "objetivo" nas ciências natu- se, o clima social e intelectual, a t r a d i ç ã o em que se cresceu,
rais, enquanto a objetividade só poderia ser obtida em ciências é freqüentemente decisivo para a moral e para outros pa-
sociais, se é que fosse possível, por poucos intelectos selecio- drões e valores que a l g u é m adote. Tudo isto é mais do que
nados, pela "inteligência livremente equilibrada" que está óbvio. Um caso verdadeiramente especial, mas de i m p o r t â n -
rj
apenas "vagamente vinculada às tradições sociais" . cia fundamental para o. nosso propósito, é o dos valores i n -
Por ser contra isto, eu enfatizei que a objetividade da telectuais.
ciência natural e social não está baseada num estatuto i m -
parcial da mente dos cientistas, mas meramente no fato do Há muitos anos, eu costumava prevenir meus alunos
c a r á t e r público e competitivo -da empresa científica e, isso, quanto à idéia amplamente difundida de que alguém entra
em certos aspectos sociais dela. Eis porque escrevi: "o que a
na universidade a fim de aprender como falar e escrever de
assim chamada "sociologia do conhecimento" negligencia é,
justamente, a sociologia do conhecimento — o c a r á t e r públi- maneira impressionante e incompreensível. Naquela época,
8
co e social da c i ê n c i a " . A objetividade está baseada, em muitos estudantes vinham à universidade com esta i n t e n ç ã o
suma, num "criticismo racional m ú t u o " , numa abordagem ridícula, sobretudo na Alemanha. E a maioria destes estu-
crítica, numa tradição crítica B. dantes que, durante seus estudos universitários, ingressa
Os cientistas naturais n ã o são mais objetivos do que os num clima intelectual que aceita tal gênero de valoração,
cientistas sociais. Nem mais críticos. Se há mais "objetivi- talvez sob a influência de professores os quais, por sua vez,
dade" nas ciências naturais, e n t ã o é porque existe uma me- foram moldados num clima semelhante — está perdida.
lhor tradição e padrões mais elevados de clareza e de criti-
cismo racional. Na Alemanha, muitos cientistas sociais fo- Eles aprendem e aceitam inconscientemente que uma
ram chamados de hegelianos, o que é, na minha opinião, uma linguagem altamente impressionante e difícil é o valor inte-
t r a d i ç ã o destruidora da inteligência e do pensamento crítico.
lectual por excelência. Piá pouca esperança de que eles ja-
Este é um dos pontos em que eu concordo com K a r l Marx,
que escreveu: " E m sua forma mistificadora, a didática tor- mais venham a compreender que estão errados; ou que se
1 0
nou-se a moda alemã consagrada" . E l a continua sendo a dêem conta de que existem outros padrões e valores; valores
moda a l e m ã . tais como verdade, a busca da verdade, a aproximação à ver-
dade por i n t e r m é d i o da eliminação crítica do erro, e clareza.
i A posição é de Mannheim; ela é mais amplamente discutida no meu
A Sociedade Aberta (vol. 2, p. 225). Nem descobrirão que o p a d r ã o da incompreensibilidade
s The Poverty o/ Historicism., p. 155. impressionante choca-se atualmente com os padrões da ver-
» Qf. Conjectures and Refutations, especialmente o cap. IV.
a
io Karl Marx. O Capital, 2. ed., 1972: "Postfácio" (chamado em algu- dade e do racionalismo crítico. Estes últimos valores depen-
mas edições posteriores, de "Prefácio à segunda edição"). A tradução
não é "mlstificante", mas "mistificada". dem de clareza. Não se pode distinguir verdade de falsidade,

40 41
n ã o se pode distinguir uma resposta adequada a um proble- mos técnicos e em dificuldade que leva em parte, ao j a r g ã o
ma de uma irrelevante, não se pode distinguir boas de m á s profissional em outras ciências.
idéias, n ã o se pode avaliar criticamente as idéias, sem que se-
A i n d a a falta de criatividade crítica, isto é, de inventi-
jam todas apresentadas com clareza suficiente. Mas enquan-
vidade acrescida de acuidade crítica, pode ser encontrada em
to tudo se fizer na a d m i r a ç ã o i m p l í c i t a do brilhantismo e da toda parte; e em toda parte isto leva ao f e n ô m e n o de jovens
capacidade de impressionar, tudo isto (eu quero dizer tudo cientistas ávidos em acompanhar a ú l t i m a moda e o ú l t i m o
mesmo) será, "na melhor das hipóteses", um falar impressio- j a r g ã o . Estes cientistas "normais" n aspiram a um modelo,
nante, eles desconhecem qualquer outro valor. uma rotina, uma linguagem comum e exclusiva de sua espe-
cialidade. Mas é o cientista " n ã o normal", o cientista ou-
Enquanto isto, surge o culto da não-inteligibilidade, e de sado, o cientista crítico que rompe a barreira da normali-
uma linguagem altissonante que impressione. Fato que foi i n - dade, que abre as janelas e deixa entrar o ar fresco, que n ã o
tensificado (para os leigos) pelo fórmalismo i m p e n e t r á v e l e pensa sobre a impressão que causa, mas que tenta ser bem
impressionante da m a t e m á t i c a . Eu suspeito que em algumas entendido.
das ciências sociais e das filosofias mais ambiciosas, e espe-
cialmente na Alemanha, o jogo tradicional, que se tornou O crescimento da ciência normal que e s t á ligado ao cres-
em larga escala um p a d r ã o inconsciente e inquestionado é cimento da Grande Ciência, tende a evitar ou mesmo a des-
de formular as maiores trivialidades em linguagem altisso- truir, o crescimento de conhecimento e da Grande Ciência em
nante. Se as que foram elaboradas com este tipo de alimen- geral. Eu vejo a s i t u a ç ã o como trágica, se n ã o desesperadora,
t a ç ã o forem apresentadas em um livro escrito simplesmente a t e n d ê n c i a presente nas chamadas investigações e m p í r i c a s
e que contenha algo de inesperado, controvertido ou novo na sociologia das ciências naturais de contribuir para a de-
eles acham, usualmente, que é difícil ou impossível com- cadência da ciência. Superposto a esse perigo existe um ou-
preendê-lo. Isto porque tal não é conforme à idéia que t ê m tro perigo, criado pela Grande Ciência: sua necessidade ur-
de "compreensão" que, para eles, supõe c o n c o r d â n c i a Que gente de técnicos científicos. Cada vez mais candidatos ao
possam haver idéias importantes merecedoras de compreen- P h D . recebem um treino meramente técnico, um treinamen-
são, comas quais alguém possa concordar ou discordar é-lhes to em certas técnicas cie m e n s u r a ç ã o ; eles n ã o são iniciados
incompreensível. na tradição científica, na tradição crítica da formulação de
problemas, de serem tentados e guiados antes pelos enigmas
grandiosos e aparentemente insolúveis do que pela solução
5. A q u i há, à primeira vista, uma diferença entre as
de pequenos quebra-cabeças.
ciências sociais e as ciências naturais. Nas chamadas ciên-
cias sociais e filosofia, a degeneração para um verbalismo De fato, estes técnicos, estes especialistas estão normal-
impressionante, mais ou menos vazio, passou t a m b é m para mente cônscios de suas limitações. Eles se chamam de espe-
as ciências naturais. Agora o perigo está-se tornando mais
serio em toda parte. Mesmo entre os m a t e m á t i c o s pode-se dis- 11 O fenômeno de ciência normal foi descoberto, mas não criticado, por
Thomas Kuhn em "A estrutura das revoluções científicas". Kulro se
tinguir uma tendência a impressionar as pessoas, embora o equivoca, creio, ao pensar que a ciência "normal" o é não somente hoje,
incitamento a fazê-lo seja menor na M a t e m á t i c a ; é o desejo mas que sempre o tenha sido. Pelo contrário, no passado — até 1939
— ciência foi quase sempre critica, ou "extraordinária", não havia
de imitar os matemáticos e os físicos m a t e m á t i c o s em ter* "rotina" cientifica.

42 43
cialistas e rejeitam toda pretensão a autoridade fora de suas
especialidades. Eles o fazem, no entanto, de uma forma alta-
mente orgulhosa e proclamam esta especialização como uma CD
•a
necessidade. Isto significa porém ir de encontro aos fatos que cu
, -a
o W 13
P. . o
_o''
demonstram resultar os grandes avanços ainda dos que pos- ca "O -cts
• a cá
cá H
suem um nível de interesse mais modesto. M Cu
2-Ü cci
•d •d cá g

Se a maioria dos especialistas se limitar a adotar uma 5 ã õ "Í8â cu O D.


^ 3 o ~ cs -iJ
(D CJ TU «t-i O) tu O <u £ o o. w
atitude de "mostrar serviço", será o fim da ciência tal como L, Cí M
§ w <u .2 —
0 ' g CO Cü 'cu CU o cu ciS o
a conhecemos — da grande ciência. Será uma catástrofe es- ' S bo o o CD •d >-. > -a w

L ca -c3

mi CO 13
A
i -ri 03 ^ ~ D. M
piritual comparável, em suas conseqüências, ao armamento w O cp
<; « tí ^ ri *(D O tf § o
W M >-,
U > TH cu "d ,icá
o
nuclear. c3

6. Passo agora ao meu tópico principal. Alguns dos fa- fio J


mosos líderes da sociologia alemã, que fazem o melhor que •d ^ •^ ri

podem intelectualmente, e o fazem com a melhor consciên- 55 •3 ^ S


< CD W cá
ft.ri , aE ? 3
3 d CU .
^3 o u P-,
rt

cia do mundo, falam, segundo creio, nada mais nada menos rt
3
3 o w
3 cu t/j
' í o a * ; ^CJ W Cd
1
•r O TJ
do que trivialidadcs em linguagem altissonante, como se eles ? 2 ]"§„ ° .c; 3
j CD !«*•> 6' o.
-d • r! t' C
fossem amestrados. Eles ensinam isto a seus estudantes, que cá Ci ) í i ^ cü m o w
) ri p •d 1
•d -O o CD "ÍH
-. ai t. r
C ° ui Pj cí ctí ^ CD , CD
3.í2>-2
ficam insatisfeitos em ter de fazer o mesmo. De fato, o sen- o £> ri <" ri' A •Cf • ' CO
O !
timento genuíno e generalizado de insatisfação, manifesto Ti C
o «•"5"" w U J ri J5 í o
o o jí^ •n ri i-i r i —<
o bo o ; >? ri
ra to «
o"c
na hostilidade contra a sociedade em que vivem, é, penso, um w c o ? 3 ci o
111?
reflexo da insatisfação inconsciente com a esterilidade de H T J - H

IO o P
suas próprias atividades. Darei um breve exemplo, a partir Q , CD
dos escritos do Professor Adorno. O exemplo foi escolhido, ri
CD v-i W O TJ
pelo Professor Habermas, que começa com ele sua primeira o cu •d c ri cu" bfl
« a o
w >"0 c— o
g ri c
!" w S
contribuição ao "Der Positivismusstreit". À esquerda eu apre- ri •cs "O»
eu „ C
« C S ou í5 cu ri í rt TI
•fi S <D cu E bo w
•->,Q
rt
ri •d cí ri^€
sento o texto alemão original, no centro tal como está tra- I-I 2 S u o »
" CJ(HS
c! , d o c3 K
duzido para o inglês e, à direita, uma paráfrase, em lingua- CU >J P c c

'3 h í ! •
a (A cj C U a> ^ 5 3 ri ri cu
3.&tó d
tó 60 . , (*4 OJ - - d ri 5 O
gem comum, do que parece ter sido dito (Quadro 1) . 1 2
S •S r í "O »tí -tJ cu N CU
'3
G
>
o
r,
c
S P ri c ,H
d It t) r i
ti i-. h h CD
0) (D
D CJ C ^ .2 cs "S E cu
•U TI CU
rj C
CD
d) p, >-, c cd Bc§ CO
£ri P,
<" cu -o ?Êri' xn p cu 6
12 N.a publicação original deste artigo nos "Archives européennes de So- í^-ri-p •d Si
o
ciologie" as três colunas continham, respectivamente, o original alemão, <U CD
uma paráfrase em alemão coloquial do que parecia ter sido afirmado OJ.:
e uma tradução desta paráfrase em inglês. A edição inglesa publica ã
paráfrase já em inglês e, além dela, um resumo crítico.

44 45
1
Pode ser que os revolucionários tenham u m a maior sen-
7. Por razões como esta é que julgo t ã o difícil discutir
sibilidade pelos males sociais do que outras pessoas. Obvia-
qualquer problema sério com o Professor Habermas. Eu es-
mente, porém, podem ocorrer revoluções melhores e piores
tou certo de que ele é perfeitamente sincero, mas penso que
(como nós conhecemos todos da História) e o problema con-
ignora como formular as coisas simples, clara e modesta-
siste em não fazê-las demasiado mal. A maioria das revolu-
mente em vez de "impressionantemente". A maior parte do
ções, se n ã o todas, produziram sociedades muito diferentes
que ele diz parece-me trivial; o resto parece-me errado.
das que almejavam os revolucionários. Aí é que está o proble-
Tanto quanto eu posso compreendê-lo, é a seguinte a sua ma que absorve a reflexão de toda a crítica séria da socie-
objeção fundamental aos meus pontos de vista. Meu modo de dade. Isto incluiria um esforço por colocar as idéias de um
teorizar, sugere Habermas, viola o "princípio da identidade pensador em linguagem simples e modesta em vez de um jar-
de teoria e prática"; talvez porque digo que a teoria poderia gão altissonante. Este é um esforço que os afortunados ca-
ajudar a ação, isto é, poderia ajudar-nos a modificar nossas pazes de se dedicar ao estudo devem à sociedade.
ações. Por isso disse que a tarefa das ciências sociais teóricas
é de tentar antecipar as conseqüências n ã o intencionais de 8. Uma ú l t i m a palavra a propósito do termo "positi-
nossas ações; mas estabelecendo uma diferença entre esta ta- vismo". Eu n ã o nego, decerto, a possibilidade de estender o
refa e a ação. Mas o Professor Habermas parece pensar que termo "positivista" até que ele abranja todos os que tenham
somente quem seja um crítico p r á t i c o da sociedade existen- algum interesse pelas ciências naturais, de forma que venha
te pode produzir argumentos teóricos sérios sobre a socie- a ser aplicado a t é aos adversários do positivismo, como eu
dade, uma vez que o conhecimento social n ã o pode ser di- próprio. Sustento apenas que tal procedimento nao é nem
vorciado das atitudes sociais fundamentais. A independência honesto nem apto a esclarecer o assunto.
desta visão da "sociologia do conhecimento" é óbvia e não O fato de que o rótulo "positivismo" me tenha sido apos-
necessita ser elaborada. to a priori por um erro grosseiro pode ser verificado por qual-
quer' um que esteja em condições de ler a minha Lógica da
M i n h a réplica é bem simples. Eu acho que nós devería-
Pesquisa Científica. Para mencionar apenas um caso, u m a
mos aceitar qualquer sugestão sobre como solucionar nossos
das vítimas dos dois pseudorótulos, "positivismo" e "Der Po-
problemas, sem levar em consideração a atitude quanto à so- sitivismusstreit" é o Dr. Alfred Schmidt, que descreveu a si
ciedade do homem que as faz; supondo-se que ele tenha sido mesmo como "colaborador de longa data" ( l a n g j à h r i g e r M i -
preparado a exprimir-se clara e simplesmente — de forma a tarbeiter) dos Professores Adorno e Horkheimer. Em uma
poder ser entendido e julgado — e que ele esteja consciente 3
carta ao jornal "Die Zeit" 1 , escrita para defender Adorno
de nossa ignorância fundamental e de nossas responsabili- contra a i n s i n u a ç ã o de que ele utilizava mal o termo "posi-
dades com relação aos demais. Decerto, n ã o penso que o de- tivismo" no Der Positivismusstreit ou em ocasiões similares,
bate acerca de reforma da sociedade deveria ser reservado Schmidt caracteriza "positivismo" como uma linha de pen-
àqueles que primeiramente apelaram a serem reconhecidos samento, na qual "o método das várias ciências setoriais é
como revolucionários práticos e que vêem a única função do tomado, de forma absoluta, como o único método válido de
intelectual revolucionário em precisar t ã o bem quanto pos-
sível o que é repulsivo na nossa vida social (com exceção de
seus próprios papéis sociais). 13 12 de junho de 1910, p. 45.

47
46
conhecimento" e o identifica, corretamente, com uma ênfase Quanto à diferença substancial entre a escola de Frank-
acentuada dos "fatos d e t e r m i n á v e i s sensorialmente". Ele n ã o furt e eu mesmo — revolução versus reforma gradativa —
está claramente ciente do fato de que meu pretenso "positi- n ã o farei comentário algum aqui, uma vez que tratei deste
vismo", que foi utilizado para dar o nome ao livro Der Posi- assunto da melhor maneira que pude na "Sociedade Aberta".
tivismusstreit, consiste numa luta contra tudo o que ele des- Hans Albert também disse coisas muito incisivas sobre este
creve (na m i n h a o p i n i ã o , de forma honestamente correta) tópico, na sua réplica a Habermas no Der Positivismusstreit
como "positivismo". Eu sempre lutei pelo direito de operar e em seu importante livro Tratado da Razão Crítica ie.
livremente com teorias especulativas, contra a estreiteza das
teorias "cientificistas" do conhecimento e, especialmente
contra todas as formas de empirismo sensualista.
Tradução de Estevão de Rezende Martins, do original
Eu lutei contra a i m i t a ç ã o das ciências naturais pelas
Reason or Revolution? in.: The Positivist Dispute in
ciências sociais e pelo ponto de vista de que a epistemologia
German Sociology. London, Heinneman Educational
positivista é inadequada a t é mesmo em sua análise das ciên-
cias naturais as quais, de fato, n ã o são "generalizações cui- Books Ltd., 1976.
dadosas da observação", como se crê usualmente, mas são
essencialmente especulativas e ousadas; além disso eu pen-
sei, por mais de 38 anos w q todas as observações estão
u e

"impregnadas de teoria" e que sua função principal é de


verificar e refutar, mais do que provar nossas teorias. Enfim
nao contestei somente a significância das asserções metafí-
sicas e o fato de que eu próprio seja um realista metafísico,
mas analisei t a m b é m o importante papel histórico desempe-
nhado pela metafísica na formação das teorias científicas
N i n g u é m , antes de Adorno e Habermas, descrevera tais pon-
tos de vista como positivistas e eu só posso supor que ambos
nao conhecem, originalmente, que eu sustentei estes pontos
de vista. (Na realidade, eu suspeito que eles não estavam in-
teressados nas minhas idéias tanto auanto estou interessado
nas deles).

Seria pior consignar aqui a s u g e s t ã o de aue auem quer


que se interesse pelas ciências naturais estaria condenado
como positivista, o que faria positivistas n ã o somente Marx
e Engels, mas igualmente Lenin, o homem que introduziu a
equação do "positivismo" e " r e a ç ã o " . Terminologia importa
pouco, no entanto. N ã o deveria, p o r é m , ser utilizada como
argumento"; e o t í t u l o de um livro n ã o deve ser desonesto
nem pode servir a preconceber uma saída.

« Eu já o fizera, embora brevemente, na comunicação impressa no vo-


lm
lume original (ver, em especial, a 17." tese) Pressa no vo-
Cf. meu livro, A Lógica da Pesquisa Cientifica, novo apêndice i. iu H. Albert — Tratakt iiber kritische Vernunft (Tübingen, Mohr, 1969).

48 49
ciência, e a segunda (seções IX a X I V ) a alguns obstáculos
sociais d o progresso. . . . . .
Rememorando H E R B E R T S P E N C E R , eu discutirei o pro-
gresso na ciência amplamente por um ponto ãe vista revo-
lucionário; mais precisamente, de um ponto de vista da teo-
ria da seleção natural. Apenas o fim da primeira parte (isto
é, seção V I I I ) , será gasto na discussão do progresso na ciên-
cia de um ponto ãe vista lógico, e na proposição de dois cri-
térios racionais do progresso na ciência, que serão necessá-
A RACIONALIDADE DAS REVOLUÇÕES rios na segunda parte da minha explanação.
CIENTÍFICAS Na segunda parte, eu discutirei uns poucos obstáculos
ao progresso na ciência, mais especialmente obstáculos ideo-
lógicos; e terminarei (seções XI e X I V ) por discutir a distin-
O título desta série de conferências de S P E N C E R , "Pro- ção entre, de um lado, revoluções científicas que são objeto
gressos e Obstáculos ao Progresso nas Ciências", foi escolhi- dos critérios racionais do progresso e, de outro lado revolu- ;

do pelos organizadores da série. O t í t u l o me parece implicar ções ideológicas que são, apenas, raramente defensáveis ra-
em que o progresso na ciência seja u m a boa coisa, e em que cionalmente. Pareceu-me ter sido esta distinção suficientemen-
um obstáculo ao progresso seja u m a coisa r u i m ; u m a po- te interessante para chamar minha conferência de "A Racio-
sição mantida por quase todos, a t é recentemente. Talvez nalidade das Revoluções Científicas". A ênfase aqui, é claro,
eu deva esclarecer, imediatamente, que aceito esta posi- deve ser dada à palavra "científicas".
ção, embora com algumas reservas leves e razoavelmente
óbvias a que deverei aludir mais tarde. É claro que obstá- I
culos, que são devidos à dificuldade inerente dos problemas
manejados, são desafios bem-vindos. (De fato, muitos cientis-
Dirijo-me, agora, ao progresso na ciência. Estarei obser-
tas estavam grandemente desapontados quando notou-se que
vando b progresso na ciência de um ponto de vista biológico
o problema do esvaziamento da energia nuclear era, compa- e evolutivo. Estou longe de sugerir que este é o ponto de vis-
ravelmente, trivial, n ã o envolvendo nova m u d a n ç a revolu- ta mais importante para o exame do progresso na ciência.
cionária de teoria). Mas a e s t a g n a ç ã o na ciência seria u m a P o r é m a abordagem biológica oferece uma maneira conve-
praga. Assim mesmo, eu concordo com a s u g e s t ã o do Pro- niente de introduzir as duas idéias guias da primeira metade
fessor B O D M E R de que o avanço científico é apenas um be- de minha alocução. São as idéias de instrução e de seleção.
nefício confuso i. Encaremos isto: benefícios são confusos De um ponto de vista biológico e evolutivo, a ciência,_ ou
com algumas exceções extraordinariamente raras. o progresso na ciência, pode ser considerada como um ins-
M i n h a conferência será dividida em duas partes. A p r i - trumento usado pela espécie humana para se adaptar ao am-
meira parte (seções I a VIII) é referente ao progresso na biente, para invadir novos nichos ambientais, e a t é para i n -
2
ventar novos nichos ambientais . Isto conduz ao problema
1 Ver, na presente série das Conferências de HERBERT SPENCER, a
observação conclusiva da contribuição do Professor W. P. BODMER. M i - seguinte.
nhas próprias apreensões concernentes ao avanço científico e estagna-
ção surgem, principalmente do espírito mudado da ciência e do cresci- 2 A formação dás proteínas das membranas, dos primeiros virus,_ e das
mento desenfreado da "Poderosa Ciência" que põe em perigo a grande células, podem, talvez, ter estado entre as mais antigas invenções dos
ciência. (Ver seção IX desta conferência). A Biologia parece ter esca- novos'nichos ambientais, embora seja possível que outros nichos am-
pado deste perigo até agora, mas não, é claro, dos perigos, intimamente bientais (talvez cadeias de enzimas inventadas por diferentes gens puros)
ligados, da aplicação em larga escala. tenham sido inventados até antes.

50 51
Podemos distinguir entre três níveis de a d a p t a ç ã o : adap- duzidas 3 por m é t o d o s que estão, ao menos parcialmente, ao
tação genética; aprendizagem do comportamento adaptável- acaso. Ao n í v e l genético, estas são m u t a ç õ e s e recombina-
e a descoberta científica, que é um caso especial de aprendi- ções4 da i n s t r u ç ã o codificada; ao nível de comportamento,
zagem do comportamento adaptável. Meu maior problema s ã o v a r i a ç õ e s e recombinaçÕes experimentais por entre o re-
nesta parte da minha alocução será investigar as semelhan- p e r t ó r i o ; ao "nível científico são teorias experimentais novas
ças e diferenças entre as estratégias de progresso ou adapta- e r e v o l u c i o n á r i a s . Em todos os t r ê s níveis, conseguimos ins-
ção ao nível científico e àqueles dois outros níveis. O nível t r u ç õ e s processuais experimentais ou, resumidamente, pro-
genético e o nível de comportamento. E compararei os três cessos experimentais.
níveis de a d a p t a ç ã o ao investigar o papel desempenhado pela É importante que estes processos experimentais sejam
instrução e pela seleção, sobre cada nível. m u d a n ç a s que se originem por dentro da estrutura indivi-
d u a l em um estilo, mais ou menos fortuito, em todos os
t r ê s níveis. A opinião de que n ã o sejam devidos à i n s t r u ç ã o
II externa, do ambiente, é "sustentada (apenas fracamente)
pelo fato de que organismos muito semelhantes podem res-
Para não conduzi-los vendados ao resultado desta com- ponder, de vez em quando, sob muitas formas diferentes, ao
paração, anteciparei, de imediato, minha tese principal. É uma mesmo novo desafio ambiental.
tese declarando a semelhança fundamental dos três níveis, O p r ó x i m o estágio é da seleção das m u t a ç õ e s e variações
como se segue. disponíveis; aquele-dos novos processos experimentais que
se são m a l adaptados, são eliminados. Este é o estagio da
Em todos os três níveis — a d a p t a ç ã o genética, compor- eliminação do erro. Apenas as i n s t r u ç õ e s processuais mais ou
tamento adaptável e descoberta científica — o mecanismo de menos bem adaptadas sobrevivem e são herdadas por sua
adaptação é fundamentalmente o mesmo. vez; Logo, podemos falar de adaptação pelo " m é t o d o de^en-
saio e erro", ou melhor, pelo " m é t o d o de e x p e r i m e n t a ç ã o e
Isto pode ser explicado em alguns detalhes.
e l i m i n a ç ã o do erro". A e l i m i n a ç ã o do erro, ou de instruções
A adaptação começa de uma estrutura herdada que é bá- processuais m a l adaptadas é t a m b é m chamada de "seleção
sica para todos os três níveis: a estrutura genética do orga- n a t u r a l " ; é u m a espécie de " r e a l i m e n t a ç ã o negativa". Opera
nismo. A ela corresponde, ao nível de comportamento, o re- em todos os t r ê s níveis.
pertório inato dos tipos de comportamento que são disponí- Deve-se notar que, geralmente, nenhum estado de equi-
veis ao organismo; e no nível científico, as teorias ou conje- líbrio da adaptação é a l c a n ç a d o por qualquer aplicação
turas científicas dominantes. Estas estruturas são sempre do m é t o d o de e x p e r i m e n t a ç ã o e eliminação do erro, ou por
transmitidas pela instrução, em todos os três níveis: pela ré- seleção natural. Em primeiro lugar, por que nenhuma solu-
plica da instrução genética codificada aos níveis genéticos ç ã o processual perfeita ou ó t i m a para um problema e pro-
e de comportamento; e pela imitação e tradição social nos vável de ser oferecida; em segundo lugar — e isto é mais
níveis científicos e de comportamento. Em todos os três n í - importante — por que a e m e r g ê n c i a de novas estruturas, ou
veis, a instrução vem de dentro da estrutura, ao invés de
ãe fora; do ambiente. 3 f ,im oroblema em aberto e pode-se falar nestes termos ( em resposta
sob™ o ' n í v e l genético (comparar minha conjectura sobre "mutações
reacionárias na seção V). Contudo se não houvessem variações, nac.po-
Estas estruturas herdadas são expostas a certas pressões,- deria haver adaptação ou evolução; e, logo, podemos dizer que a ocor-
ou desafios, ou problemas: a pressões de seleção; a desafios rência ált mutações é controlada, parcialmente, pela necessidade deles,
mi funciona como se assim fosse.
ambientais; a problemas teóricos. Em resposta, variações das é Quando falo, nesta conferência, por causa da brev dade, de "mu ação ,
instruções herdadas, genética ou tradicionalmente, são pro- a posSoilidade de recombinação está, é lógico, tacitamente, incluída.

53
52
de novas instruções, envolve uma m u d a n ç a na situação am estruturas herdadas que são passadas adiante pela i n s t r u ç ã o ;
biental Novos elementos do meio ambiente podem se" tornar seja através do código genético ou a t r a v é s da t r a d i ç ã o . Em
relevantes e, em conseqüência, novas pressões, novos desa todos os três níveis, surgem novas estruturas e novas ins-
fios, novos problemas podem aparecer, como um resultado truções por m u d a n ç a s processuais de dentro da estrutura,
das m u d a n ç a s estruturais que tenham surgido de dentro âr> por processos à seleção natural ou à e l i m i n a ç ã o do erro.
u o
organismo.
Ao nível genético, a m u d a n ç a pode ser uma m u t a ç ã o de
um gênero, com a conseqüente m u d a n ç a de um enzima Ago III
ra a cadeia de enzimas forma o ambiente mais íntimo da
estrutura genética. Conseqüentemente, haverá uma mudan- Até agora, eu salientei s e m e l h a n ç a s no trabalho do
ça neste ambiente íntimo; e com isso, poderão surgir novas mecanismo adaptável nos t r ê s n í v e i s . Isto levanta um pro-
relações entre o organismo e o mais remoto meio ambiente- blema óbvio: o que dizer das d i f e r e n ç a s ?
e mais além, novas pressões seletivas. A diferença principal entre os n í v e i s g e n é t i c o e de com-
portamento é esta. As m u t a ç õ e s n o . n í v e l g e n é t i c o s ã o n ã o
O mesmo acontece ao nível de comportamento- a ado- apenas casuais, como "cegas", em dois s e n t i d o s . Em p r i -6

ção experimental de uma nova conjetura ou teoria pode so- meiro lugar, elas não são, de m a n e i r a alguma, dirigidas por
lucionar um ou dois problemas, mas isto introduz, invariá- metas. Ém segundo lugar, a s o b r e v i v ê n c i a de u m a m u t a ç ã o
ve mente, muitos problemas novos, pois uma nova teoria re- n ã o pode influir nas m u t a ç õ e s ulteriores, n e m mesmo nas
volucionaria funciona exatamente como um novo e poderoso freqüências ou probabilidades de sua o c o r r ê n c i a ; embora, re-
orgao sensitivo. Se o progresso for significante, então os no- conhecidamente, a sobrevivência de u m a m u t a ç ã o possa so-
vos problemas diferirão dos velhos problemas; os novos pro- breviver em casos futuros. Ao n í v e l de comportamento, os
?fZ t° T f'S
Y S a a 0 e n
P r o b i d a d e radicalmente i m n í V G l d e processos t a m b é m são, mais ou menos, casuais, mas n ã o são
Me ente. Isto^conteccu, por exemplo, na relatividade, acon- mais completamente cegos em qualquer dos dois sentidos
teceu em mecânica quantitativa, e acontece agora, bastante mencionados. Em primeiro lugar, eles s ã o dirigidos por me-
dramaticamente, em biologia molecular. Em cada úm desses tas; e, em segundo lugar, os animais podem aprender com
casos novos horizontes de problemas inesperados foram aber- as conseqüências de um processo; eles podem aprender a evi-
tos pela nova teoria. tar o tipo de comportamento processual que levou a um fra-
Esta é a forma, eu sugiro, pela qual a ciência progride casso. (Podem até evitá-lo nos casos em que poderia ter su-
n o s s o
P^gresso pode melhor ser aquilatado ao comparar- cesso). Semelhantemente, t a m b é m podem aprender com o
mos nossos velhos problemas com nossos novos Se o progres- sucesso; e o comportamento bem sucedido, pode ser repetido,
so que tem sido feito for grande, então os novos
seiao de um caráter nao antes sonhado. Existirão problemas
p
rSKí a t é em casos aos quais ele n ã o é adequado. Todavia, um cer-
to grau de "cegueira" é inerente a todos os processos
mais profundos; e além disso, existirão em maior E
Quanto maior for o progresso em conhecimento mais d a í a 6 Para o uso do termo "cego" (especialmente no Segundo) ver D. T.
mente discerniremos a vastidão de nossa ignorância 5 CAMPBELL, "Sugestões metodológicas de uma psicologia comparada dos
Sumanzarei, agora, minha tese. processos de conhecimento", INQUIRY 2, 152-182 (1959); "Variação cega
e retenção seletiva no pensamento criativo como em outros processos de
conhecimento", PSYCHOL. Rev. 67, pp. 380-400 (1960); e "Epistemologia
oc
o
m p
o
a
m
tr e
n
a
lt e o ocm
t o d o s s t r ê s n í v e i s
tiPn ^ ° que estou considerando, o gené- evolucionária", em A Filosofia de KARL POPPER. Biblioteca dos fi-
tico, científico, estamos operando lósofos vivos (ed. P. A. SCHILPP) pp. 413-463, T H E OPEN COTJRT P U -
BLISHING COMPANY, LA SALLE, ILLINOIS (1974).
7 Enquanto a cegueira das experimentações é relativa ao que temos des-
coberto no passado, a casualidade é relativa a um conjunto de elementos
molecular. e x e m J 0
P < ^ revolução surpreendente trazida pela biologia (que formam o "espaço amostra"). Ao nível genético, estes "elementos"
são as quatro bases nucleótidas; ao nível de comportamento, elas são
54
55
" I N S I G H T " pode ser errada; todo processo, mesmo um com
A a d a p t a ç ã o do comportamento é, geralmente, um pro- "discernimento", é de natureza da conjetura e da hipótese.
cesso intensamente ativo; o animal — especialmente o ani- Os símios de K O H L E R , isto será lembrado, algumas vezes
m a l jovem em jogo — e até a planta, estão investigando, ati- atingem com "discernimento" o que se conduz ser uma ten-
vamente, o meio ambiente 8. tativa errada para solucionar seu problema; e até grandes
Esta atividade que é programada, larga e geneticamente, matemáticos são, algumas vezes, m a l conduzidos pela intui-
parece-me marcar uma diferença importante entre o nível ge- ção. Portanto, homens e animais t ê m de submeter à prova
nético e o nível de comportamento. Posso me referir aqui à as suas hipóteses; eles t ê m de usar o método de experimen-
experiência que os psicólogos "gestaltianos" chamam de tação e eliminação do erro.
" I N S I G H T " : uma experiência que acompanha muitas des- Por outro lado, concordo com K O H L E R e THORPE_io
cobertas em relação ao meio ambiente 9. Contudo, não deve que os processos de animais solucionadores de problemas n ã o
ser omitido que, mesmo u m á descoberta acompanhada de são, em geral, completamente cegos. Só em casos extremos,
quando o problema que enfrenta o animal não permite a fei-
constituintes do repertório de comportamento do organismo. Estas cons- tura de hipóteses, o animal l a n ç a r á m ã o de tentativas, mais
tituintes podem assumir pesos diferentes com respeito às diferentes ne- ou menos cegas e casuais, para safar-se de uma situação des-
cessidades de metas, e podem ter seus pesos mudados através de expe-
riências (diminuindo o -grau de "cegueira"). concertante. Contudo, até nestas tentativas, a objetividade
8 Sobre a importância da participação ativa, ver R. HELO e A. HEIN por meta é discernível, usualmente, em franco contraste à
"Simulação produzida por movimento no desenvolvimento do comporta-
mento visualmente guiado". J. COMP. PHYSIOL. PSYCHOL. 56 pp 872¬ casualidade cega das m u t a ç õ e s e recombinações genéticas.
876 (1963); J. C. ECCLES, "Enfrentando a realidade", pp 66-67. Á ati- Uma outra diferença entre m u d a n ç a genética e mudança de
vidade é, ao menos parcialmente, uma das hipóteses produtoras: • ver J.
KRECHEVSKY, "Hipótese versus oportunidade no período de pré-solu- comportamento adaptável é de que a primeira sempre esta-
ção no sensível aprendizado de discriminação" UNIV. CALIF. PUBL belece uma rígida e quase variável estrutura genética. A ú l -
PSYCHOL. 6, pp. 27-44 (1932) (republicado cm "Solucionando o pro-
blema animal" (cd. A. J. RIOPELLE) pp. 183-197, PENGUTN BOOKS tima, reconhecidamente, conduz, algumas vezes, também a
HARMONOSWORTH (1967). um modelo de conduta razoavelmente rígido que é concor-
9 Posso, talvez, mencionar aqui algumas das diferenças entre minhas opi- dante, dogmaticamente, radicalmente, como no caso de "gra-
niões e as da escola de GESTALT. (É claro, aceito o fato da percepção
de GESTALT; só estou em dúvida sobre o que pode ser chamado de vação" ( K O N R A D L O R E N Z ) ; mas, em outros casos, conduz
filosofia de GESTALT.) a um' modelo flexível que faz concessões à diferenciação ou
Conjeturo que a unidade, ou a articulação, da percepção é mais in-
timamente dependente dos sistemas de controle motor e dos sistemas modificação; por exemplo, pode conduzir a um comporta-
aferentes neurais do cérebro do que de sistemas afcrentes: que é inti- mento exploratório, ou ao que Pavlov chamou de "liberdade
mamente dependente do repertório de comportamento do organismo. n
d e reflexo" .
Conjeturo que uma aranha ou um rato nunca possuirão "INSIGHT"
(como possui o símio de KOHLER) quanto à unidade possível dos dois'
bastões que podem ser juntados, porque o manuseio de bastões daquele
tamanho não pertence ao seu repertório de comportamento. Tudo isto 10 Ver W H THORPE, Aprendizado e instinto nos animais, pp. 99,
pode ser interpretado como uma generalização da teoria das emoções de METHTJEN, Londres (1956); edição de 1963 pp. 100-147; \V. KOHLER,
JAMES-LANGUE (1884; ver WILLIAM JÀMES. Os princípios cia Psi- A mentalidade dos simios (1925); edição PENGUTN BOOKS (1957),
cologia, vol. II, pp. 449 (1890) MACMILLAN AND CO., Londres) ex- P 16

tendendo a teoria das nossas emoções às nossas percepções (especial- n Ver I P. PAVLOV, Reflexos Condicionados, pp. 11-12, OXFORD UNI-
mente às percepções gestaltistas) que, portanto, não nos seriam "dadas" VERSITY PRESS (1927K Tendo em vista o que chama de "comporta-
(como na teoria gestaltista) porém, mais propriamente, feitas por nós, mento exploratório" e o, intimamente ligado, "comportamento da liber-
através de pistas decodificadoras (comparavelmente "dadas"). O fato de dade" — ambos, é óbvio, baseados geneticamente — e da significação
mie as pistas possam conduzir erradamente (ilusões óticas no homem; destes para a atividade científica, parece-me eme a conduta dos
ilusões simuladas em animais, etc.) pode ser explicado pela necessidade "BEHAVIOURISTAS" que objetivam tomar o lugar do valor da liberdade
biológica de ensanar nossas interpretações de comportamento por pistas pelo que chamam de "reforço positivo", pode ser um sintoma de « m a
altamente simplificadas. A conjetura de que nossa decodificação do que hostilidade inconsciente à ciência. Incidentalmente, o que B. F. SKINNER
os sentidos dizem, depende do que nosso repertório de comportamento (Além da liberdade e da dignidade (1972) CAPE, Londres) chama de
possa_ explicar, parte do abismo que se encontra entre o homem e os "a história da liberdade". não surgiu como um resultado de reforço ne-
animais; pois através da evolução da linguagem humana, nosso reper- gativo como ele sugere. Ela surgiu, mais propriamente, com ESQUILO
tório tem se tornado ilimitado. . . E PlNDARO como um resultado das vitórias de Maratona e Salamis.

57
_ No nível científico, as descobertas são revolucionárias e No nível da descoberta científica, dois novos aspectos
criativas. De fato, u m a certa criatividade pode ser atribuída emergem. O mais importante é que teorias científicas podem
a todos os níveis, a t é ao nível genético; novos processos con- ser formuladas l i n g ü i s t i c a m e n t e , e podem a t é ser publicadas.
duzindo a novos ambientes e, portanto, a novas pressões de Logo, tornam-se objetos fora de n ó s mesmos: objetos abertos
seleção, c r i a m novos e revolucionários resultados em todos à investigação. Como conseqüência, estão agora abertos à
os níveis, mesmo que existam fortes t e n d ê n c i a s conservado- crítica. Portanto, podemos nos livrar de u m a teoria m a l ajus-
ras estabelecidas nos vários mecanismos de i n s t r u ç ã o . tada antes que a adoção da teoria nos torne incapacitados
A a d a p t a ç ã o genética pode, é claro, trabalhar apenas a sobreviver; ao criticar nossas teorias podemos deixá-las
dentro do p e r í o d o de tempo de umas poucas gerações — no morrer em nosso lugar. Isto, é claro, é imensamente impor-
m í n i m o , digamos, uma ou duas gerações. Em organismos que tante.
se reproduzem rapidamente isto pode ser n u m curto período O outro aspecto é, t a m b é m , ligado à linguagem. 35 u m a
de tempo; e, simplesmente, pode n ã o haver espaço para a das inovações da linguagem h u m a n a , o encorajar a n a r r a ç ã o
a d a p t a ç ã o de comportamento. Organismos de reprodução de estórias, e, por conseguinte, a imaginação criativa. A des-
mais lenta sao compelidos a inventar a a d a p t a ç ã o de compor- coberta científica é semelhante à n a r r a ç ã o explanatória de
tamento p a r a ajustar-se às r á p i d a s m u d a n ç a s ambientais estórias, à feitura de mitos, e à i m a g i n a ç ã o poética. O cres-
Eles necessitam logo de um repertório de comportamento' cimento da imaginação realça, é claro, a necessidade de al-
com tipos de comportamento de maior ou menor latitude ou gum controle, tais como, na ciência, a crítica interpessoal —
alcance O r e p e r t ó r i o e a latitude dos tipos disponíveis de a amistosa cooperação hostil entre os cientistas que é basea-
comportamento podem supor-se passíveis de serem progra- da, parte na competição e parte no objetivo comum de lugar
mados geneticamente; e desde que, como indicado, uma nova perto da verdade. Isto, e o papel desempenhado pela instru-
espécie de comportamento possa ser citado envolvendo a es- ção e pela tradição, parecem-me exaurir os principais elemen-
colha cie um novo nicho ambiental, novas espécies de com- tos sociológicos inerentemente envolvidos no progresso da
por lamento podem ser, de fato, geneticamente criativas pois ciência; embora muito mais pudesse ser dito sobre os obs-
podem determinar, por sua vez, novas pressões de seleção e táculos sociais ao progresso, ou sobre os perigos sociais ine-
desse modo decidir indiretamente, sobre a evolução futura rentes ao progresso.
v
da estrutura g e n é t i c a 12.

12 t a n t
n n v c ° ' o.comportamento exploratório e a solução de problemas criam

« a - r s z
que uma certa latitude de comportamento tenha sido alcançada
aarates ?i Ei

Tenho sugerido que o progresso na ciência, ou a desco-
berta científica, depende de instrução e seleção: de um ele-
mento conservador ou tradicional ou histórico, e de um uso
mos inferiores, O U B ^ S S fflSVtTÍ revolucionário de e x p e r i m e n t a ç ã o e eliminação de erro pela
- a iniciativa do organismo em selecionar sua écolopia ou •'hihiKr" crítica, que i n c l u i severos testes ou exames empíricos; isto é,
toma a liderança, e a seleção natural, dentro de nosso ''hab°tat" ^om
tenta enquadrar, na medida do possível, as fraquezas das
teorias, e tenta refutá-las.
É lógico que o cientista individual pode desejar estabe-
l a d r e s (1965) especialmente as continências VI, V Í l e VIII o n d e s ã o lecer sua teoria ao invés de refutá-la. Mas do ponto de vista
feitas muitas referências à literatura mais antiga, de JAMES HOTTON
0 611 e l 1 7 9 7 ) a r a d l a n t e
fe-» * , ? 5 0 0 P (ver p. 178) Ver também S nificação evolucionâria ão aprendizado, em VIDENSK MEDDR DANSK
^r^/^J" P e e s é c i e s
limais, T H E HELKNAP PRESS CAM NATURH. FOREN. 134, pp. 89-102 (1971) (com uma bibliografia): e,
também minha primeira conferência sobre HERBERT SPENCER (1961)
agora em minha obra Conhecimento Oojetivo, CLARENDON PRESS,
OXFORD (1972, 1973).
58
59
do progresso da ciência, este desejo pode, facilmente, desen- rem para a l c a n ç a r a objetividade n ã o podemos nos fiar na
caminhá-lo. Além disso, se ele próprio não examinar critica- mente vazia; a objetividade repousa no criticismo, na discus-
mente sua teoria favorita, outros o farão por ele. Os únicos são crítica, e no exame crítico das experiências E_ devemos
resultados que serão por eles considerados como sustentado-
reconhecer, em particular, que nossos próprios órgãos sensi-
res da teoria serão os fracassos das tentativas interessantes
para refutá-la; fracassos em encontrar contra-exemplos onde tivos incorporam o que correspondem aos preconceitos.
tais contra-exemplos seriam mais esperados, à luz da melhor Salientei antes (na seção II) que as teorias são como os
das teorias concorrentes. Logo, n ã o é preciso criar um órgãos sensitivos. Agora quero salientar que nossos orgaos
grande obstáculo à ciência se o cientista individual for incli- sensitivos são como teorias. Eles incorporam teorias a d a p t á -
nado a favorecer uma teoria de e s t i m a ç ã o . Todavia, penso veis (como tem sido demonstrado no caso de coelhos e ra-
que C L A U D E B E R N A R D foi muito arguto quando escreveu: tos) E estas teorias são o resultado de seleção natural.
"Aqueles que têm uma fé excessiva em suas idéias n ã o são
3
bem adeauados a fazer descobertas" 1 .
Tudo isto é parte da abordagem c r í t i c a à ciência, em opo- V
sição à abordagem indutiva; ou parte da abordagem darwi-
niana ou eliminatória ou seletiva, em oposição à abordagem Contudo, nem mesmo D A R W I N ou W A L L A C E , para n ã o
lamarckiana, que trabalha com a idéia de " i n s t r u ç ã o de fora" mencionar S P E N C E R , viram que não há instrução de fora.
ou do ambiente, enquanto a abordagem c r í t i c a ou seletiva só Eles n ã o trabalhavam com raciocínios puramente seletivos.
permite "instruções de dentro" — do interior da p r ó p r i a es- Em verdade, eles argumentavam, freqüentemente sob o pla-
trutura. no lamarckianoie. Nisto, eles pareciam ter errado Todavia
noderia ser lucrativo especular sobre possíveis limites ao
Em verdade, eu argumento que não há tal coisa como a K S s m o ; pois nós deveremos sempre estar em guarda
instrução ãc fora da estrutura, ou a recepção passiva de um para as possíveis alternativas a qualquer teoria dommance.
fluxo de informação que afete nossos órgãos sensitivos. To-
das as observações são impregnadas de teorias; n ã o existe Creio que dois pontos poderiam ser lembrados aqui
observação pura, desinteressada, ou livre de teoria. (Para O primeiro é que o argumento contra a h e r a n ç a genética de
comprovar isto, podemos tentar, usando um pouco de ima- características^ adquiridas (como mutilações d e g e l e
ginação, comparar a observação h u m a n a com a observação existência de u m mecanismo genético ^J^^t^
de uma formiga ou de uma aranha). d i s t i n ç ã o razoavelmente precisa entre a estrutura
e a narte restante do organismo: a soma. Porem este meca
PRANCIS B A C O N estava preocupado, acertadamente, n i s m o g e n é t i c o deve, ele" próprio, ser um produto tardio da
com o fato de que nossas teorias pudessem prejudicar nossas ev 0 r Ç ão e foi precedido, indubitavelmente, por vários ou-
observações. Isto o levou a advertir os cientistas que eles de- Lo mecanismosde uma espécie menos sofisticada. Além dis-
veriam evitar o preconceito, purificando suas mentes de to-
- 1 4
das as teorias. Receitas semelhantes s ã o dadas a i n d a . Po-

13 citado por JACQUES HADAMARD, A psicologia do iiwencão no campo


matemático, PRINCETON UNIVERSITY PRESS (1915),'c edição de
DOVER (1954) p. 48.
n Psicólogos do comportamento que estudam "linhas mais experimentais"
descobriram que alguns ratos albinos rendem mais que outros se o
experimentador for levado a acreditar (erradamente) que os ratos al- O Conhecimento Obíeíiuo. T 1 A R . W I N em seus últimos anos,
binos pertencem a uma raça selecionada por sua maior^ inteligência. 16 fi interessante notar que C ^ R ^ S D A R \ J T O . em seus A
V K 1

Ver: "O efeito das 'linhas mais experimentais' no desempenho do rato acreditava na herança ocasional até das mutilações. „, j
albino", BEHAV. Sei. 8. pp. 183-189 (1963). A lição tirada pelos autores lariaçâo dos animais e plantas sob áomesticaçao, 2.» edição, Vol. i ,
pp. 468-410 (1815).

60 «61
u m a nova estrutura processual vem antes de sua exposição
so, certos tipos muito especiais de mutilações são herdados; aos testes eliminatórios.
mais particularmente, mutilações da estrutura genética por
radiação. Portanto, se considerarmos que o organismo pri-
meiro foi um gen nu então podemos a t é dizer que toda mu- VI
tilação não-letal a este organismo seria herdada. O que não Sugiro, por conseguinte, que imaginemos o caminhoido
podemos dizer é que este fato contribui, de alguma forma,
p r o g ^ o d ^ i e n c i a algo na l i n h a d«
para uma explicação da a d a p t a ç ã o genética, ou do aprendi-
zado genético, exceto, indiretamente, cria seleção natural.
O segundo ponto é este. Podemos considerar a conjetu-
ra bastante experimental, na qual, como uma resposta so-
m á t i c a a certas pressões ambientais, algum agente químico,
que provoque m u t a ç ã o genética, é produzido, aumentando o
que é chamado de índice espontâneo de m u t a ç ã o . Isto seria
uma espécie de efeito semi-lamarckiano, muito embora a
adaptação ainda proceder-se-ia, apenas, pela eliminação de
m u t a ç õ e s , isto é, por seleção -natural. É claro, que não po-
mmm^m
deria existir muito de verdade nesta conjetura, pois, parece ^ a ^ C u ^ T S M f d S S S S , ao st
que o índice de m u t a ç ã o espontânea é suficiente para a evo-
17
lução a d a p t á v e l .
Estes dois pontos são citados aqui, meramente, como
um aviso contra uma adesão, muito dogmática, ao darwinis-
^ ^ ^ ^ ^ ^
mo. É lógico, eu faço conjecturas de que o darwinismo seja
correto, até no nível da descoberta científica; e que seja cor-
reto a t é além deste nível, cogito que esteja certo a t é no ní-
SR C
n t t a conexlo se
S
r
e
fe
r
e a KIERKEGAARD e a
^ ^ ™ s t a ™ â o , c o n c u o m i n h a discussão dos aspee-
vel da criação artística. Não descobrimos fatos novos ou novos
tos biológicos do progresso na ciência.
efeitos copiando-os, ou deduzindo-os, por indução, da obser-
vação; ou por qualquer outro método de instrução pelo am-
biente. Usamos, mais propriamente, o método de experimen- VII
tação e eliminação do erro. Como disse E R N S T G O M B R I C H
Tntrénido pelas teorias cosmológicas da evolução de
18
"a feitura vem antes da c o m p e t i ç ã o " : a produção ativa de
H E R B E R T S P E N C E R , tentarei, agora, delinear a s
g
imc
f
ia
-
17 Mutações especificas (agindo seletivamente, talvez em alguma particular
seqüência de "codons" mais do que em outras) não são conhecidas, eu
» V e r ^ A I JERNE, "A
anti-corpos"; dez anos mais tarde em B
teoria ^^i^aVS^^
enolrse _e ^ ^
compreendo. Todavia, a existência delas dificilmente seria surpreen- logia molecular (ed I CAIRNS) pp. uw> ^ . NATN. ACAD.
r 0 C

dente nesse campo de surpresas; e elas poderiam explicar os "altos da seleção natural da formação de antl-corpos *r .
l
MT.CRO-
focos" mutacionais. De qualquer forma, parece existir uma dificuldade Icl 41, 849-857 (1955): "Especulações }^},% ^Í^.AU. 229, 52-60.
real em concluir, da ausência de mutações especificas conhecidas, a não BIÓL. 14. 341-348 (W60): "O sistema i ^ e ^ I E í n t ^ t e o r l a

existência delas. Logo, parece-me que o problema sugerido no texto


(a possibilidade de reação a certas pressões por parte da produção de
mutações) está ainda em aberto.
is ERNST GOMBRICH, Arte e ilusão (1960) e edições mais recentes (Ver
o Índice sobre "feitura e equiparação").
63
62
ção cosmológica do contraste entre instrução de dentro da O processo seletivo subjacente à r e p r o d u ç ã o é um meca-
estrutura e seleção ãe fora, veta eliminação de processos ex- nismo de r á p i d a apuração. É,-essencialmente, o mesmo me-
perimentais. canismo que trabalha na maioria das i n s t â n c i a s da s í n t e s e
q u í m i c a , e t a m b é m , especialmente, em processos como a cris-
Para este fim, podemos notar, em primeiro lugar, a pre- talização. Contudo, embora o mecanismo subjacente seja se-
sença na célula, da estrutura genética da instrução codifica- letivo, e apure por processos casuais e pela e l i m i n a ç ã o do
da, das várias subestruturás químicas 20; última, em casual a erro, funciona como uma parte do que é, claramente, mais
movimento browniano. O processo de instrução pelo qual o um processo de instrução do que de seleção. Reconhecida-
gen se reproduz acontece da seguinte forma. As várias subes- mente, devido ao caráter fortuito dos movimentos envolvi-
t r u t u r á s são transportadas (pelo movimento browniano) pa- dos, os processos de competição serão efetuados a cada tempo,
ra o gen, de forma casual, e aqueles que não se adaptam, fra- de uma maneira levemente diferente. Apesar disto, os resul-
cassam em se ligar à estrutura do D N A ; enquanto aqueles tados são precisos e conservadores; os resultados são essen-
:
que se adequam, ligam-se (com a ajuda das enzimas). Por cialmente determinados pela estrutura original.
este processo de experimentação e seleção 21, uma espécie de Se procurarmos, agora, por processos similares em u m a
negativo fotográfico ou complemento da instrução genética escala cósmica, um estranho quadro do mundo emerge, o que
é formada. Mais tarde, este complemento se separa da ins- oferece muitos problemas. É um mundo dualista: um mundo
t r u ç ã o original; e por um processo análogo, forma, novamen- de estruturas em movimentos caoticamente d i s t r i b u í d o s . As
te, seu negativo. Este negativo do negativo torna-se uma có- estruturas pequenas (tais como as assim chamadas p a r t í -
pia idêntica da instrução positiva original 22. culas elementares) originam-se das estruturas maiores; e
isto é efetuado, principalmente, por movimento c a ó t i c o ou
casual das pequenas estruturas, sob condições especiais de
20 O que chamo de "estruturas" c "subestruturás" são chamados de " i n -
tegrons" por FRANÇOIS JACOB A lógica dos sistemas vivos- uma his- pressão e temperatura. As maiores estruturas podem ser á t o -
tória da hereãitariedaãe, pp. 299-324, A L L E N L A N E Londres (1974) mos, moléculas, cristais, organismos, estrelas, sistemas sola-
21 Algo poderia ser dito aqui sobre a íntima ligação entre o método da
experimentação e da eliminação do erro e "seleção"; toda seleção é uma res, galáxias e aglomerados galáticos. Muitas dessas. estru-
eliminação de erro; e o que resta _ depois da eliminação — como turas parecem ter um aspecto de semeadura, como gotas de
selecionado sao, meramente, aquelas experimentações que não foram á g u a em uma nuvem, ou cristais em uma solução; isto quer
elirriinadas até agora.
22 A principal diferença de um processo de reprodução fotográfica é aquela dizer que podem crescer e multiplicar por i n s t r u ç ã o , e po-
em que a molécula DNA não é bidimensional, mas linear- um longo dem persistir ou desaparecer por seleção. Alguns deles, tais
cordão de quatro espécies de subestruturás (bases). Estas podem ser como os aperiódicos cristais D N A 23 que constituem a ^estru-
representadas por manchas coloridas, ou vermelho, ou verde ou azul ou
amarelo. As quatro cores básicas são os negativos por par (ou comple- t u r a genética de organismos e, com ele, suas i n s t r u ç õ e s de
mentos) de cada outra. Então, o negativo ou complemento de um cordão c o n s t r u ç ã o , são quase infinitamente raros e, talvez possamos
consistiria de um cordão no qual o vermelho seria substituído pelo verde
e o azul pelo amarelo, e vice-versa. Aqui as cores representam as quatro dizer, muito preciosos.
letras (bases) que constituem o alfabeto do código genético Logo o Eu acho fascinante este dualismo; refiro-me ao estranho
complemento do cordão original contém uma espécie de tradução 'da
Informação original para outro, todavia intimamente ligado, o código- e quadro dualístico de um mundo físico consistindo de estru-
o negativo deste negativo, contém, por sua vez, a Informação original turas comparavelmente estáveis — ou processos bastantes es-
declarada em termos do código (genético) original.
truturais — em todos os micro e m a c r o m í v e i s ; e de subestru-
Esta situação é utilizada na reprodução, quando, primeiro, um par
de cordões complementares se separam, e quando, em seguida, dois pares t u r á s em todos os níveis, em movimento aparentemente caó-
são formados assim que cada cordão, seletivamente, liga-se a um novo
n t
tico ou randomicamente distribuído; um movimento casual
L°SP ü ^ ^ ? resultado é a reprodução desta estrutura original, por
intermédio de instrução. Um método multo semelhante é utilizado na
d
f / w ™ - u , i Ç S d a s I l n õ e s
principais do gen (DNA): o controle, através 23 O termo "cristal aperiódico" (algumas vezes também "sólido aperlódlco")
de instrução da síntese das proteínas. Embora o mecanismo subjacente é de SCHRODINGER; ver seu trabalho O que é a vida?, CAMBRIDGE
S S gUnd0 ir0 SSO £eJ m a l s UNIVERSITY PRESS (1944); O que é a vida? e Mente e Matéria,
•' dução,
rif 5n ! í f
é semelhante, &, ,
em princípio.
1 complicado do que aquele da repro- CAMBRIDGE UNIVERSITY PRESS, pp. 64 e 91 (1967).

64 65
que determina parte do mecanismo pelo qual essas estrutu- atômico molecular das substâncias cristalinas, orgânico e ate
ras e s u b e s t r u t u r á s são sustentadas, e pelo qual, elas podem estelar (pois a estabilidade das estrelas depende de r e a ç õ e s
semear por meio de instrução; e crescer e se multiplicar por nucleares), enquanto que para os movimentos casuais de sus-
meio de seleção e de instrução. Este fascinante quadro dua- tento podemos apelar ao movimento browniano clássico e à
lístico é compatível com o, contudo totalmente diverso, bem hipótese clássica do caos molecular Portanto, neste quadro
conhecido quadro dualístico do mundo como indeterminístico dualístico de ordem sustentado pela desordem, ou de estru-
no pequeno indeterminismo correspondente à mecânica dos tura apoiada pela casualidade, o papel desempenhado pelos
"quanta", e determinístico no grande determinismo macro- efeitos dos "quanta" e pelos efeitos clássicos parece ser quase
físico. Em verdade, parece que a existência das estruturas o oposto daquele nos quadros mais tradicionais.
que fazem a i n s t r u ç ã o , e que introduzem algo como estabi-
lidade ao mundo, depende, grandemente, de efeitos dos
2 4
"quanta" . Isto parece ser válido para estruturas nos níveis VIII

Até agora eu tenho considerado o progresso na ciência,


24 É quase trivial que estruturas moleculares e atômicas tenham algo a principalmente, por um ponto de vista biológico; todavia,
ver com a teoria dos "quanta", considerando que as peculiaridades da
mecânica dos "quanta" (tais como valores e estados "eigen") foram parece-me que os dois pontos lógicos que se seguem, sao
introduzidos na física para explicar a estabilidade estrutural dos átomos.
A idéia de que a "totalidade" estrutural dos sistemas biológicos que cruciais. .
tem também, algo a ver com a teoria dos quanta, foi primeiro discutida, Em primeiro lugar, para eme uma nova teoria constitua
eu suponho, no livro pequeno, porém importante, de SCHRODINGER, uma descoberta ou um passo avante, ela deve confhtar com
chamado O que é a vida? (1944) que, pode ser dito, antecipou ambas
ás ascensões da biologia molecular e a influência de M A X DELBRUCK a sua predecessora; isto é, deverá conduzir a pelo menos al-
cm seu desenvolvimento. Neste livro SCHRODINGER adota uma cons- guns resultados conflitantes. Porém isto significa, sob um
ciente atitude ambivalente frente ao problema dc tornar-se ou não,
a biologia rcdntível à física. No capítulo 7, "É a vida baseada nas ponto de vista lógico, que ela deva contradizer 2o sua prede-
leis da física?" ele diz (sobre a matéria viva), primeiro, que "nós cessora; ela deve derrotá-la.
devemos estar preparados para encontrá-la trabalhando de um modo
em que não possa -ser reduzida às leis ordinárias da física" (O que é Neste sentido, o progresso na ciência — ou, ao menos,
a vida? e Mente e matéria, p. 81). Porém, um pouco mais adiante o progresso notável — é sempre revolucionário.
ele diz que "o novo princípio (isto é dizer, "ordem da ordem") não é Meu segundo ponto é que o progresso na ciência, embora
estranho à físiea": ele é "nada mais do que o princípio da física dos
'quanta' novamente" (na forma do princípio de NERNST), O que ê revolucionário ao invés de meramente cumulativo 25, , em e

a vida? e Mente e matéria p. 88). Minha atitude também é am-


bivalente: por um lado, não acredito em completa reducibilidade; por romeiro). Eu tenho ficado embaraçado por este argumento de WIGNER,
outro lado, penso que a redução deve ser tentada; pois, mesmo embora riesde a sua primeira publicação em 1961; e na minha replica a MOTZ,
ela seja plausível de ter sucesso parcial, este sucesso parcial seria muito Pn s á i m t d aue a -priva de WIGNER me parecia refutada pela exis-
importante. t ê n c i a d a máquina? XEROX (ou pelo crescimento dos cristais), que
QU

Logo, minhas observações sobre o texto a que esta nota está anexa deve "ser olhTda como derivada da mecânica dos "quanta" ao^ u m « d e
(e que deixei, substancialmente, intocado) não significaram uma decla- sistemas biotônicos. (Pode ser dito que uma copa XEROX ou um n s u i
ração de reducionismo: tudo que gostaria de dizer seria que a teoria rio Te reproduz com precisão suficiente; todavia, a coisa ma s enigmá-
dos "quanta" parece estar envolvida no fenômeno "estrutura da es- tica sobre o trabalho de WIGNER é que ele nao se lefeie a grau a
trutura" ou "ordem da ordem". nrecisão e aquela exatidão absoluta ou "a confiança absoluta virtua mente
S n t é ^ o m o ' c o l o c a a questão à página 208 _ o que nao .* * ° ^ £ °
Contudo, minhas observações não foram bastante claras, pois na I esta parece excluida imediatamente pelo. principio de PAULI Nao
discussão depois da conferência, o Professor HANS MOTZ desafiou o acho que a redutibilidade da biologia à física e a sua inedutibilidade
que acreditava ser meu reducionismo ao se referir a uma das notas de possam ser provadas; de qualquer forma, fao_ no presente.
EU GENE WIGNER ("A probabilidade da existência de uma unidade «5 Logo a teoria de EINSTEIN contradiz a teoria de NEWTON (embora
auto-reprodutora", capítulo 15 de sua óbvia Simetrias e reflexões; en- a nrímeira contenha a segunda como uma aproximação, em distinção
saios científicos pp. 200-208, M . I . T . PRESS (1970) . Neste trabalho, à* teoria de NEWTON, a teoria de EINSTEIN mostra, por « e m p i o que
WIGNER dá uma espécie de prova da tese de que a probabilidade é nos fortes campos gravitacionais não pode existir uma orbita elíptica
zero para um sistema teórico dos "quanta" que contenha um subsistema" Kepleríana- com excentricidade apreciável mais sem preçessao do penelio
auto-reprodução. (Ou, mais precisamente, ã probabilidade é zero para
um sistema mudar de tal maneira que, a um tempo, ele contenha algum 1

subsistema e, mais tarde, um segundo subsistema que seja cópia do 2S i K - S ^ d ^ t o ^ ^ - i m p r e g n a d a dê teoria ("borboleta é um

67
66
um certo sentido, sempre conservador; u m a nova teoria, em- que na ciência só as teorias progressistas são consideradas
bora revolucionária, deve sempre ser capaz de explicar, 'com- como interessantes; e desse modo explica porque, em m a t é -
pletamente, o sucesso de sua predecessora. Em todos aque- r i a de fato histórico, a história da ciência é, em geral, uma
les casos em que sua predecessora foi bem sucedida, ela deve h i s t ó r i a do progresso. (A ciência parece ser o ú n i c o campo
render resultados, pelo menos, t ã o bons quanto aqueles de do esforço humano do qual isto pode ser dito).
sua predecessora, e, se possível, melhores. Logo, nestes casos Como sugeri antes, o progresso científico é revolucioná-
a teoria predecessora deve parecer u m a boa aproximação à rio, sua divisa poderia ser aquela de K A R L M A R X : "Revo-
teoria nova; enquanto deveria haver, preferivelmente, outros l u ç ã o permanente". Embora as revoluções científicas sejam
casos, onde a nova teoria produzisse resultados melhores e racionais no sentido em que, a princípio, é racionalmente
2
diferentes dos obtidos pela teoria antiga 7. passível de decisão; se uma nova teoria é melhor, ou nao,
O ponto importante sobre os dois critérios lógicos com do que sua predecessora. É claro, isto n ã o significa que nao
que iniciei é que eles nos permitem decidir sobre qualquer teo- cometamos erros. Existem várias formas pelas quais pode-
ria nova, a t é antes de ter sido testada, se ela será melhor mos errar.
do que a antiga, contanto que encare os testes. Porém, isto Um exemplo de um erro mais interessante é relatado
2 9
significa que, no campo da ciência, temos algo como um cri- por D I R A C . SCHRÕDINGER descobriu, mas n ã o publicou,
tério para julgar a qualidade de u m a teoria se comparada u m a e q u a ç ã o relativista do elétron, mais tarde chamado de
com a sua predecessora, e, por conseguinte, um critério de equação K L E I - G O R D O N , antes ele achou e publicou a fa-
progresso. E isto significa que o progresso na ciência pode mosa e q u a ç ã o não-relativista que é agora chamada pelo seu
2 8
ser avaliado racionalmente . Esta possibilidade explica por- nome Ele n ã o publicou a equação relativista porque ela nao
parecia concordar com os resultados experimentais da ma-
termo teórico, como é "água": envolve um conjunto cie expectativas). neira interpretada pela teoria precedente. Embora a discre-
A recente acumulação de evidencia concernente às partículas elemen- p â n c i a seja devida a uma interpretação errada dos resultados
tares pode ser interpretada como uma a c u m u l a ç ã o de falsificações da empíricos e n ã o a um erro na equação relativista. Se faCHKO-
antiga teoria eletromagnética da m a t é r i a .
U m a exigência até mais radical pode ser feita: pois podemos exigir que D I N G E R a tivesse publicado, o problema da equivalência
se as aparentes leis da natureza mudarem, então a nova teoria, inven- entre sua m e c â n i c a de ondas e a mecânica de matriz de
tada para explicar as novas leis, deverão ser capazes de explicar o
estado de coisas .antes e depois da mudança, e também, a própria mudan- H E I S E N B E R G e B O R N talvez não tivesse aparecido; e a his-
ça, através das leis universais e condições (mutantes) iniciais (ver minha t ó r i a da física moderna poderia ter sido bem diferente.
obra A Lógica da Descoberta Cientifica, seção 79, p. 253).
Declarando estes critérios lógicos para o progresso, estou rejeitando Deve ser óbvio que a objetividade e a racionalidade do
implicitamente a sugestão que segue a moda (anti-racionalista) que urogresso na ciência n ã o se deva à objetividade e à racionali-
duas teorias diferentes como a de NEWTON e a de EINSTEIN são in- dade pessoais do cientista so. A grande ciência e os grandes
comensuráveis. Pode ser verdade que dois cientistas como uma atitude
de verificação face às suas teorias favoritas (digamos, a física Newto-
niana e Eisteiniana) possam fracassar em se entender mutuamente
a
dn teste e do avanço revolucionário da ciência, que delineei neste tra-
Porém, se sua atitude foi crítica (como foi a de Newton e a de Einstein) b i l h U m exemplo que ali forneci de um programa de pesquisa me-
eles" entenderão ambas as teorias, e verão como são relacionadas. Ver, a tafísica è<o uso da teoria tendencial da probabilidade, que parece ter
respeito deste problema, a excelente discussão da comparativldade das
teorias de NEWTON e de EINSTEIN por TROELS EGGERS HANSEN ' Um C m PO ,e a iC eS
S T - dt o no te ?o nt deve ser formado de modo a Mgniflcar
em sua obra, Confrontação e Objetividade, DANISH YB PHIL 7 g X

que a racionalidade dependa em ter-se um critério de racionaliclade. Com-


pp. 13-72 (1972). ' ' ' parar meu criticismo de "filosofias de critério" em Adendo I .Patos,
As exigências lógicas discutidas aqui (ver capítulo 10 de meu trabalho nadrões eT verdade", ao volume II de minha obra Sociedade aberta
Conjetura e Refutações, e capítulo 5 de Conhecimento Objetivo) em- P
29 A e s t ó r i a V r e p o r t a d a por PAUL A. M- DIRAC «A evolução do, quadro
bora me pareçam ser de importância fundamental, não esgotam, é claro fisicista da natureza", SCIENT. AM. 208, n.° 5, pp. 45-53 (1963), ver
o que pode ser dito sobre o método de ciência racional. Por exemplo!
em meu "Sobreescrito" (que tem estado em prova de galé descle 1957, 30 v e f m e u ' criticismo da, assim chamada, "sociologia do conheci mentor
mas_ que, eu espero, será publicado ainda um dia) eu desenvolvi uma -
teoria do que chamo programas de pesquisa metafísica. Esta teoria, ' no capítulo 23 de minha obra Sociedade Aberta e página 155 de Pobreza
poderia ser mencionada, em nenhuma maneira se choca com a teoria ' do Historicismo.
69
68
cientistas, como os grandes poetas, são geralmente inspira¬ blicaçoes pode matar idéias, idéias que são, apenas, muito
dos por intuições n ã o racionais. Assim são os grandes mate- raras, podem ser submersas pela torrente. O perigo é bem
máticos. Como POINCARÉ e H A D A M A R D apontaram 3i, uma real e é dificilmente necessário estender-se sobre isto, mas
prova m a t e m á t i c a pode ser descoberta por processos incons- eu poderia- talvez, citar E U G E N E W I G N E R , um dos primei-
cientes, guiados por uma i n s p i r a ç ã o de um caráter decidi- ros heróis da mecânica dos quanta, que observa, tristemen-
3 2
damente estético, ao invés de por pensamento racional. Isto t e : "O espírito da ciência mudou".
é verdadeiro e importante. P o r é m , obviamente, não torna o De fato, este é um capítulo triste. Mas, visto ser bastante
resultado, a prova m a t e m á t i c a , irracional, Em qualquer caso, óbvio eu nada mais direi sobre os o b s t á c u l o s econômicos ao
uma prova proposta deve ser capaz de enfrentar a discussão progresso na ciência, em vez disso, dedicar-me-ei a discutir
crítica, para ensejar seu exame por m a t e m á t i c o s competen- alguns dos obstáculos ideológicos.
tes. E isto pode muito bem, induzir o inventor m a t e m á t i c o
a conferir, racionalmente, os resultados que alcançou incons-

I
íSa í ciente ou intuitivamente. Igualmente, os lindos sonhos pi- X
tagoreanos de K E P L E R , de harmonia do sistema mundial,
n ã o invalidaram a objetividade, a testabilidade, a racionali- O mais amplamente, reconhecido dos obstáculos ideo-
«A dade de suas t r ê s leis; nem a racionalidade do problema que lógicos é a intolerância ideológica ou religiosa, usualmente
estas leis apresentam a u m á teoria explanatória. combinada com dogmatismo e falta de j m a g m a ç a o . Exem-
plos h i s t ó r i c o s são tão conhecidos que nao preciso discoirer
58 Com isto, concluo minhas duas considerações lógicas so-
longamente sobre eles. Contudo, deve ser notado que ate a
bre o progresso na ciência; e, agora, passo à segunda parte
s u p r e s s ã o pode conduzir ao progresso. O m a r t í r i o de_ G I O R -
da minha conferência, e, com ela, a considerações que po-
dem ser descritas como, parcialmente, sociológicas, e que se D A N O B R U N O e o processo de G A L I L E O podem, no fim tei
refere aos obstáculos ao progresso na ciência. í e i t o mais pelo progresso da ciência que a I n q u i s i ç ã o poderia
ter feito contra ele.
O estranho caso de A R I S T A R C O e a original teoria he-
l i o c ê n t r i c a apresenta, talvez u m P ^ e m a d i f e ^ t e F o i
IX
causa de sua teoria hehocentnca, A R I S T A R C O foi a c u s a d °
dP imniedade por C L E A N T R O , um estoico. Mas isto diticil
Penso que os principais obstáculos ao progresso na ciên-
cia são de natureza social, e que podem ser divididos em dois ^ e x p l i c a f o b l i t e r a ç ã o de teoria. Nem pode ser dito que
grupos: obstáculos econômicos e obstáculos ideológicos. a teoria era muito ousada. Sabemos que a teor a de A R I S -
T A R C O ^ era sustentada, um século depois de ter « d o primevo
Sob o prisma econômico, a pobreza pode, trivialmente, interpretada por, pelo menos, um a s t r ô n o m o altamente res
ser um obstáculo (embora grandes descobertas teóricas e ex- n e u X ( S E L E U C O ) 33. E, todavia, por alguma razão-obscura,
perimentais tenham sido feitas a despeito da pobreza). Em S umas p o u c ^ e breves notícias da teoria sobreviveram. A q u i
anos recentes, todavia, tem se tornado, razoavelmente, claro
e s t á u S caso^rilhante do fracasso assaz freqüente em con-
que a afluência pode ser t a m b é m um obstáculo: dólares de-
«ervar vivas, idéias alternativas.
mais podem perseguir idéias de menos. Reconhecidamente,
a t é sob tais c i r c u n s t â n c i a s adversas o progresso pode ser con- Qualquer que sejam os detalhes da explicação, o fracasso
seguido. Mas o espírito da ciência está em perigo. A grande foi d e v i d T provavelmente, ao dogmatismo e à i n t o l e r â n c i a .
ciência pode destruir a grande ciência, e a explosão de pu-
^TWlo^veisa com EUGENE WIGNER; SCIENCE 181, pp. 527-533
33 XR^TÁICO e H E A T H , Aristarco de
31 J A C Q T J E S H A D A M A R D , " A psicologia da invenção no campo matemá-
tico" (ver nota n.° 13, acima). Samos, C L A R E N D O N P R E S S , O X F O R D (1966).

71
70
Porém, novas idéias devem ser consideradas como preciosas Prussiana de Ciência. O documento que foi assinado por M A X
e devem ser cuidadosamente fomentadas; especialmente se L A N C K , W A L T H E R NERNST e outros dois famosos físicos,
parecem ser um pouco selvagens. Eu n ã o sugiro que deva- era muito laudatório e apregoava que u m a escorregadela de
mos ser ávidos a aceitar novas idéias somente por causas de E I N S T E I N (como, obviamente, acreditavam ser sua teoria
sua novidade. Mas devemos estar ansiosos para n ã o suprimir do fóton) n ã o deveria ser posta contra ele. Esta maneira
uma nova idéia a t é se ela n ã o nos parecer muito boa. confiante de rejeitar uma teoria que, no mesmo ano, passou
em um severo teste experimental levado a efeito por M I L L I -
Existem muitos exemplos de idéias rejeitadas, tais como K A N , tem sem dúvida, um lado pitoresco; contudo, deve ser
a idéia da evolução antes de D A R W I N , ou a teoria de M E N - encarada como um glorioso incidente na h i s t ó r i a da ciência,
D E L . Muito pode ser aprendido sobre os obstáculos ao pro- mostrando que, mesmo uma rejeição algo d o g m á t i c a pelos
gresso da história dessas idéias rejeitadas. Um caso interes- maiores expertos vivos pode seguir, passo a passo, com uma
sante é aquele do físico vienense A R T H U R H A A S que em apreciação bastante liberal; estes homens nem sonharam em
1910 antecipou parcialmente N E L S B O H R . H A A S publicou suprimir o que acreditavam estar errado. De fato, o teor da
uma teoria baseada na quantização do modelo do á t o m o de apologia da escorregadela de E I N S T E I N é muito interessan-
I. I. T H O M S O M . O modelo de R U T H E R F O R D n ã o existia
te e esclarecedor. A passagem relevante da pe t i ç ã o diz de
ainda. H A A S parece ter sido o primeiro a introduzir o "quan¬
E I N S T E I N : "O fato de que ele possa, de vez em quando, ir
tum" de ação de P L A N C K na teoria atômica com uma visão
muito longe em suas especulações, como, por exemplo, em
obtida dos constantes espectrais. A despeito de seu uso do
sua hipótese dos "quanta" leves, n ã o deve pesar muito con-
modelo do átomo de T H O M S O M , H A A S Quase obteve sucesso
t r a ele. Pois n i n g u é m pode introduzir, mesmo na mais exata
em sua derivação; e como M A X JAMMÉR explica em deta-
lhes, parece bastante possível que a teoria de H A A S (que foi das ciências naturais, idéias que são realmente novas, sem,
levada a sério por S O M M E R F E L D ) influenciou, indiretamen- algumas vezes, arriscar-se" 37. isto é bem colocado, mas é
te, a NTELS B O H R ^. Em Viena, todavia, a teoria foi rejei- uma indicação incompleta. Sempre há o risco de estar errado,
tada, foi ridicularizada e depreciada como uma anedota en- e, t a m b é m o risco, menos importante, de ser m a l compreen-
graçada por E R N S T L E C H E R (cujas primeiras experiências dido ou mal julgado.
tinham impressionado H E I N R I C H H E R T Z 3 5 ) ^os pro- u m Todavia, este exemplo mostra, drasticamente, que mes-
fessores de física da Universidade de Viena cujas conferên- mo os grandes cientistas, de vez em quando, falham em al-
cias prosaicas, e não muito inspirado, eu assisti; havia al- c a n ç a r aquela atitude autocrítica que os preveniria de senti-
guns oito ou nove anos antes. rem-se seguros de si mesmos enquanto julgam mal certas
coisas, gravemente.
Um easo bem mais surpreendente, t a m b é m descrito por
JAMMÉR3S é a rejeição, em 1913, da teoria do fóton de
j P o r é m , um montante limitado de dogmatismo é neces-
E I N S T E I N , primeiramente publicada em 1905, pela qual ele sário ao progresso; sem um esforço sério pela sobrevivência
deveria receber o prêmio N O B E L em 1921. Esta rejeição da no qual as velhas teorias são defendidas tenazmente, nenhu-
teoria do fóton formou uma passagem constante de uma pe- ma das teorias concorrentes podem mostrar seu vigor, isto
tição recomendando E I N S T E I N para membro da Academia é, seu poder explanatório e seu c o n t e ú d o de verdade. O dog-
matismo intolerante, porém, é um dos principais obstáculos
34 Ver MAX JAMMÉR. O desenvolvimento conceituai da mecânica dos à ciência. De fato, n ã o só devemos manter vivas as teo-
35
"quanta", pp. 40-2, MCGRAW-HILL, New York (1966)
nãa$ Elétrícas
m e u l m c a a o s
rias alternativas por meio de sua discussão, como devemos,
Z*lÍÍSI?RI(?I-H^Z' °
MACMILLÀN & CO., Lon¬
dres (1894); edição DOVER, Nova Iorque (1962) pp 12 187 273
. sistematicamente, procurar novas alternativas; e devemos
A X J P 4 3 6 T H E 0 P
nos preocupar sempre que n ã o houver alternativas — sempre
h f s t ó r f c o d S ^ ' °H - ^
f l „ ™ A N "Um documento
E O b r e a
de A I Í B F R T F T T ^ T ^ T T J ^ r i n ! A D ^ I X ^ividade científica
A R C H S H I S T S C I 1 5 P P 3 3 7 4 2
a D e l í f ver p f g S o ' ^ " " ' ' ' 37 Comparar a tradução levemente diferente de J A M M É R , loc. cit.

72 73
que uma teoria dominante torna-se muito exclusiva. O terna de E I N S T E I N . F o i o melhor, por causa da atitude sem-
rigo do progresso na ciência aumenta muito se a teoria pre modesta e, grandemente, a u t o - c r í t i c a , e de sua humani-
questão obtiver algo como um monopólio. dade e t o l e r â n c i a . Não obstante, eu terei, mais tarde, algu-
mas palavras a dizer sobre o que me parecem ser os aspectos
menos satisfatórios da revolução ideológica einsteiniana.
XI Eu n ã o sou um essencialista, e n ã o discutirei aqui a
essência ou a natureza das "ideologias". Afirmarei, meramen-
Mas existe um perigo até maior: uma teoria, mesmo te, de um modo geral e vago, que usarei o termo "ideologia"
uma teoria científica, pode tornar-se uma moda intelectual, para qualquer teoria não-científica, ou credo ou visão do
um substituto para a religião, uma ideologia entrincheirada. mundo que se comprove atraente, e que interesse às pessoas,
E com isto, chego ao ponto principal desta segunda parte de incluindo os cientistas. (Portanto, podem existir ideologias
minha conferência — a parte que lida com os obstáculos ao muito úteis e t a m b é m muito destrutivas de, digamos, um
progresso na ciência, a distinção entre revoluções científicas ponto de vista h u m a n i t á r i o ou racionalista 40). Não preciso
e revoluções ideológicas. dizer mais sobre ideologias para justificar a distinção precisa
Como um adendo ao sempre importante problema do que farei entre c i ê n c i a « e "ideologia", e, mais além, entre
d ó g m a t i s m o e ao problema, intimamente ligado, da intole-
r â n c i a ideológica, existe uma diferença e, eu penso, um pro-
ÍO Existem muitas espécies de "ideologias" neste amplo e (deliberadamente)
blema mais interessante. Refiro-me ao problema que surge vago sentido do termo que usei no texto, e portanto, muitos aspectos
de certas ligações entre ciência e ideologia; ligações que real- da distinção entre ciência e ideologia. Dois podem ser mencionados aqui.
O primeiro é que as teorias científicas podem ser distintas ou "demar-
mente existem, mas que t ê m levado algumas pessoas a mis- cadas" (ver nota n.° 41) das teorias, não científicas que, entretanto,
turar ciência com ideologia, e a confundir a distinção entre podem influenciar, fortemente, os cientistas, e até mesmo inspirar o seu
revoluções científicas e ideológicas. trabalho. (Esta influência, é lógico, pode ser boa ou má, ou mista). Um
aspecto muito diferente é aquele do entrincheiramento; uma teoria ci-
Acho que é um problema sério em uma época em que entífica pode funcionar como uma ideologia se se tornar socialmente
entrincheirada. Esta é causa pela qual, ao falar da distinção entre re-
os intelectuais, incluindo os cientistas, estão propensos a voluções científicas e revoluções ideológicas, incluí entre revoluções ideo-
apaixonar-se por ideologias e modas intelectuais. Isto pode lógicas, mudanças nas idéias não científicas que podem inspirar o tra-
balho de cientistas, e também mudanças no entrincheiramento social do
bem ser devido ao declínio da religião, às necessidades reli- que pode ser, por outro lado, uma teoria científica. (Devo a formulação
giosas insatisfeitas e inconscientes de nossa sociedade órfã 38. dos pontos desta nota a JEREMY SHEARMUR que também tem con-
Durante m i n h a vida, eu tenho testemunhado, bastante à tribuído para outros pontos tratados nesta conferência).
41 para não me repetir, muito freqüentemente, não mencionei nesta con-
parte dos vários movimentos totalitários, um n ú m e r o consi- ferência a minha sugestão de que um critério do caráter empírito de
derável de movimentos intelectuais e declaradamente não re- uma teoria (falsificabilidade ou refutabilidade como o criterio_ de de-
ligiosos com aspectos cujo caráter religioso é inconfundível, marcação entre teorias empíricas e não empíricas). Desde que ciência
em inglês significa "ciência empírica", e desde que a matéria e com-
desde que nossos olhos estejam abertos para isto 39. o me- pleta e suficientemente discutida em meus livros, eu tenho escrito coisas
lhor destes movimentos foi aquele inspirado pela figura pa- como o seguinte (por exemplo, em "Conjcturas e Refutaçoes , p. 39)
" ' para ser classificado como científicas, (as declarações) devem ser
capazes de conflitar com observações possíveis ou concebiveis. Algumas
pessoas apoderam-se disto como um raio (tão cedo como em 1932, acno).
38 Nossas sociedades acidentais não satisfazem, pela sua estrutura, a ne- "E sobre seu próprio evangelho?" é a jogada típica (Encontrei nova-
cessidade de uma figura patriarcal. Discuti os problemas que 'surgem mente esta objeção em um livro publicado em 1973).. Minha resista
deste fato, rapidamente, em meu trabalho (não publicado) "As confe- à objeção, todavia, foi publicada em 1934 (ver "Lógica da descoberta
rências de WILLIAN JAMES em HARVARD" (1950). Meu falecido amigo científica", capítulo II, seção 10 e em todo o resto). Eu posso .«declarar
o psicanalista PAUL FEDERN, mostrou-me, logo depois, uma nota sua minha resposta: meu evangelho não é "científico", isto é, nao pertence
dedicada a este problema. à ciência empírica, porém é, mais propriamente, uma proposta (norma-
8» Um exemplo óbvio é o papel do profeta desempenhado em vários movi- tiva). Meu evangelho (e também minha resposta) e, incidentalmente,
mentos por SIGMUND FREUD, ARNOLD SCHONBERG, K A R L KRAUS, criticável, embora não somente pela observação; a ele tem sido croicaao.
LUDWIG WITTGENSTErN e HERBERT MARCUSE

74 75
revoluções científicas e revoluções ideológicas. Porém, eluci- sos em que as revoluções ideológicas influenciam revoluções
darei esta distinção com a ajuda de um n ú m e r o de exemplos. na ciência.
Estes exemplos m o s t r a r ã o , espero, que é importante dis- O exemplo, mais especialmente, da revolução ideológica
tinguir entre uma revolução científica no sentido de uma de Copérnico, pode mostrar que mesmo u m a revolução ideo-
destruição racional de uma teoria científica estabelecida por lógica poderia bem ser descrita como "racional". Contudo, en-
uma nova, e todos os processos de "entrincheiramento so- quanto temos um critério lógico do progresso na ciência —
c i a l " ou talvez, de "aceitação social" de ideologias, incluindo e portanto, de racionalidade — parece n ã o termos qualquer
a t é aquelas ideologias que incorporam alguns resultados cien- coisa como critérios gerais de progresso e de racionalidade
tíficos. fora da ciência (embora isto n ã o deva significar que fora da
ciência n ã o existem coisas tais como p a d r õ e s de racionalida-
de) Mesmo uma ideologia sábia e intelectual, que se -baseie
XII em resultados científicos aceitos, pode ser irracional, como
demonstram os muitos movimentos do modernismo na arte
Como primeiro exemplo eu escolho as revoluções coper- (e na ciência), e, também, do a r c a í s m o na arte; movimentos
nicana e darwiniana, porque nestes dois casos uma revolu- que na minha opinião, são intelectualmente insípidos, visto
ção científica originou uma revolução ideológica. Até se re- que' apelam a valores que nada t ê m a ver com arte (ou
jeitarmos aqui a ideologia do "Darwinismo Social" - , pode- 41 fl c i ê n c i a ) . De fato, muitos movimentos desta espécie sao so
4 2

mos distinguir um componente científico e um ideológico em modas que não devem ser levadas a sério .
ambas as revoluções. Prosseguindo com minha tarefa de elucidar a distinção
As revoluções copernicana e darwiniana eram ideológi- entre revoluções científicas e ideológicas, eu darei, agora, vá-
cas a t é onde ambas mudaram a visão do. homem do seu l u - rios exemplos de revoluções científicas exponenciais, que nao
gar no universo. Elas foram, claramente, científicas até onde levaram a qualquer revolução ideológica.
cada uma delas destruiu u m a teoria científica dominante: A revolução de F A R A D A Y e M A X W E L L foi, de um pon-
uma teoria astronômica e uma teoria biológica dominantes. to de vista científico, tão grande como aquela de Copérnico,
Parece que o impacto ideológico da teoria copernicana e e possivelmente, maior: ela destronou o dogma central de
t a m b é m da darwiniana foi tão grande, porque cada uma de- N E W T O N — o dogma das forças centrais. Contudo, nao le-
las conflitava-se com um dogma religioso. Isto foi altamente vou a uma revolução ideológica, embora tenha inspirado uma
significante para a h i s t ó r i a intelectual de nossa civilização, geração inteira de físicos.
e teve repercussões na história da ciência (por exemplo, por- A descoberta de J. J. T H O M S O M (e sua teoria) do elé-
que levou a uma tensão entre religião e c i ê n c i a ) . E todavia,
o fato histórico e sociológico que as teorias de Copérnico e 42 Além do vago termo "Ideologia" (que inclui todas as espécies de teorias
Darwin chocaram-se contra a religião é completamente irre- ™ a s « » aütudes, inclusive algumas que podem influenciar cientistas),
deve estar claro qúe pretendo cobrir, por este termo, não só modas his-
levante para a avaliação racional das teorias científicas pro- tóricas como o "modernismo", mas, também, idéias sérias metafísica^
postas por eles. Logicamente não há qualquer relação que seja ética! e racionalmente discutíveis. Eu posso, talvez me referir a. JIM
com a revolução científica detonada por cada uma das duas ERUCSON, um ex-aluno meu em CHRIST CHURCH, Nova Zelândia,
que disse, uma vez, em um debate: "Não sugerimos que a dencia In-
teorias. ventou a honestidade intelectual, porém, sugerimos que a honestidade
nrtelectual Inventou a ciência". Uma idéia muito' « m e l h a ^ t e acha-se
Por conseguinte, é importante distinguir entre revolu- no capítulo IX (O Reino e as Trevas) do livro de J A
? ^ S MONOD Q

ções científicas e ideológicas, particularmente, naqueles ca- Oportunidae e necessidade, KNOPP, Nova Yortme (1971). V e r t a m
1 2 4 0
bém meu livro Sociedade Aberta, volume II, ^ P ^ J ^ " *
contra a Razão). Poderíamos dizer, é claro, que uma ideologia que
a aprendeu com a abordagem crítica das ciências é plausível de ser mais
41 Para uma crítica do darwinismo social ver Sociedade aberta, capí- racional do que uma que se conflite com a ciência.
tulo X, nota 71.

76 77
tron foi t a m b é m uma revolução maior. A destruição da ve- tal. Refiro-me à refutação da teoria e l e t r o m a g n é t i c a da ma-
lha^ teoria da indivisibilida.de do átomo, constituiu uma revo- téria que se tornou dominante depois da descoberta do elé-
lução científica facilmente comparável à façanha de Copér- tron por T H O M S O M . A mecânica dos "quanta" surgiu como
nico: quando T H O M S O M a anunciou, os físicos pensaram parte desta, teoria, e foi essencialmente, esta teoria, cuja
que ele estava brincando. Mas n ã o criou uma revolução ideo- "perfeição" foi defendida por B O H R contra E I N S T E I N em
lógica. P o r é m , destruiu ambas as teorias rivais que, por 2.400 1935, e, novamente em 1949. Ainda assim, em 1934, Y U K A W A
anos, disputavam o domínio da teoria da m a t é r i a — a teoria tinha esboçado uma nova abordagem, baseada na teoria dos
dos á t o m o s indivisíveis e aquela da continuidade da matéria "quanta", das forças nucleares que resultaram na derrocada
Da mesma forma, a m e c â n i c a dos "quanta" de 1925 e 1926 da teoria eletromagnética da matéria, depois de quarenta
4 4
de H E I S E N B E R G e de B O R N , de DE B R O G L I E , de SCHRO- anos de dominação inquestionada .
D I N G E R e de D I R A C , foi essencialmente uma' quantização
Existem muitas outras revoluções científicas que falha-
da teoria do elétron de T H O M S O M . E, contudo, a revolução
ram em engatilhar qualquer revolução ideológica; por exem-
científica de T H O M S O M n ã o conduziu a uma nova ideologia.
plo, a revolução de M E N D E L (que, mais tarde, salvou o dar-
Outro exemplo a d m i r á v e l é a derrota, por R U T H E R - winismo da extinção). Outras são o raio-X, a radioatividade,
F O R D em 1911, do modelo do átomo proposto por J J THOM-
S O M em 1903. R U T H E R F O R D tinha aceito a teoria de 44 ver meu trabalho "A mecânica dos "quanta" sem o "observador", em
T H O M S O M de que a carga positiva devia ser distribuída so- "A teoria dos "quanta" e a realidade", edição MARIO BUNGE, espe-
bre o espaço inteiro ocupado pelo á t o m o . Isto pode ser visto cialmente pp. 8-9, SPRINGER-VERLAG, Nova Iorque (1967). (Formará
um capítulo em meu próximo volume — "Filosofia e física").
através da sua reação à famosa experiência de G E I G E R e A idéia fundamental (que a massa inerte do elétron é, em parte
M A R S D E N . Eles pensavam que quando atiraram partículas explicável como a inércia do campo eletromagnético movente) que con-
duziu à teoria eletromagnética da matéria é devida à J. J. THOMSON,
"alfa" em uma folha bem fina de ouro, um pouco-das par- "Sobre os efeitos elétricos e magnéticos produzidos pelo movimento de
t í c u l a s "alfa" — cerca de uma em v i n t e . m i l foram re- corpos eletrificados", PÍIIL. "MAG. 11, 229-249 (1881), e a O. HEAVISIDE.
fletidas pela chapa ao invés de, meramente, serem desviadas "Sobre os efeitos eletromagnéticos devidos ao movimento da eletrificação
através de um dialético "PHIL. MAG. 27, 324-329 (1889). F o i desen-
R U T H E R F O R D estava incrédulo. Como disse mais tarde 43 " : volvido por W. KAUFMANN (DIE MAGNETISCHE UND ELEKTRISCHE
ABLEKBARKEIT DER BEQUERELSTRAHLEN UND DIE SCHEINBARE
"Foi, realmente, o evento mais incrível que aconteceu co- MASSE DER ELEKTRONEN, GOTT NkCHR. pp. 143-155 (1901) UEBER
migo em toda minha vida. Foi tão incrível como se você tivesse DIE ELEKTROMAGNETISCHE MASSE DER ELEKTRONS. pp. 291-296
detonado um cartucho de quinze polegadas em uma peça de (1902), UEBER DIE ELEKTROMAGNETISCHE MASSE DER E L E K -
papel de seda e ele tivesse voltado e o atingisse". TRONEN, pp. 90-103 (1903) e M. ABRAHAM (DINAMIK DES E L E K -
TRONS, GOTT NACH. pp. 20-41 (1902). PRINZIPIEN DER DYNAMHC
DES ELEKTRONS, ANNLN. PHYS. 10, pp. 105-179 (1903) sobre a tese
Esta a n o t a ç ã o de R U T H E R F O R D demonstra o caráter de que a massa do elétron é um efeito puramente eletromagnético. (Ver
totalmente revolucionário da descoberta. R U T H E R F O R D cer- W. KAUFMANN. "Die ELEKTROMAGNETISCHE MASSE DES E L E K -
TRONS, PHYZ. Z. 4, pp. 54-57 (1902-1903) e. M. ABRAHAM "PRIN-
tificou-se que a experiência refutava o modelo do átomo de ZIPIEN DER DYNAMIC DES ELEKTRONS" PHYZ. Z. 4, pp. 57-63
T H O M S O M , e ele substituiu pelo seu modelo nuclear do áto- (1902-1903) e M. ABRAHAM, "THEORIE DER ELEKTRIZITAT" Vo-
mo. Isto foi o começo da ciência nuclear. O modelo de R U - lume II, pp. 136-249, LEIPZIG (1905). A idéia foi sustentada, fortemente,
por H. A. LORENZ, "ELEKTROMAGNETISCHE VERSCHIJNSELEN IN
T H E R F O R D tornou-se amplamente conhecido mesmo entre EEN STELSEL DAT ZICH MET WILLEKEURIGE SNELHEID, KELEI-
os não-físicos. Mas n ã o engatilhou uma revolução ideológica. NER D AN DIE VAN HET LEICHT, BEWEEGT, VERSL.. GEWONE
VERGAR. WIS-EN NATUURK. AFD. K. A K A D . WET. AMST. 12, se-
U m a das revoluções científicas mais fundamentais na gunda parte, pp. 986-1009 . (1903-1904), e pela relatividade especial, con-
h i s t ó r i a da teoria da m a t é r i a n ã o tem sido reconhecida como duzindo a resultados divergentes daqueles de KAUFMANN e ABRAHAM.
A teoria eletromagnética da matéria tem uma grande influência ideoló-
gica sobre os cientistas por causa da fascinante possibilidade matéria
explicativa. Ela foi mexida e modificada pela descoberta de RUTHER-
« Lord RUTHERFORD, "O Desenvolvimento da teoria da estrutura atô- ' FORD do núcleo (e do proton) e pela descoberta' do neutron por
mica em J. NEEDHAM e W. PAGEL, BACKGROND da ciência mo-
derna, pp 61-74. CAMBRIDGE UNIVERSITY PRESS (1938): a citação CHADWICK; o que poderia ajudar e explicar o porquê de a derrocada
e da págma 68. final ter sido francamente marcada pela teoria âas forças nucleares.

78 79
a descoberta dos isótopos, e a descoberta da superconduti- desvanecerem-se em meras sombras, e só uma espécie de união
vidade. A tudo isto, n ã o havia revolução ideológica corres- dos dois preservará uma realidade independente M.
pondente. Nem vejo, propriamente, como uma revolução
ideológica, o resultado da perspectiva aberta por C R I C K e Esta é uma declaração intelectualmente emocio-
WATSON. nante. Mas n ã o é, claramente, ciência: é ideologia. Tornou-
se parte da ideologia da revolução einsteiniana. P o r é m o pró-
XIII (
prio E I N S T E I N nunca foi bastante feliz em relação a ela. Dois
anos antes de sua morte ele escreveu a C O R N E L I U S L A N O -
De grande interesse é o caso da assim chamada, revolu- Z O S : "Sabe-se tanto e compreende-se tão pouco. A quadri-
ção einsteiniana; refiro-me à revolução científica de EINS- dimensionalidade (com a assinatura de M I N K O W S K I ) —
T E I N que, entre os intelectuais, teve u m a influência ideoló- pertence à última categoria".
gica comparável à q u e l a das revoluções copernicana ou dar- Um elemento mais suspeito da revolução ideológica eins-
winiana. teiniana é a moda do operacionalismo ou positivismo — uma
Das muitas descobertas revolucionárias de E I N S T E I N moda que mais tarde, E I N S T E I N rejeitou, embora ele pró-
na Física, existem .duas que aqui são relevantes. prio seja responsável por ela, devido ao que tinha escrito so-
^ A primeira é a relatividade especial, que derrubou a bre a definição operacional de simultaneidade. Contudo, como
4

cinética newtoniana, substituindo a i n v a r i a n ç a de G A L I L E O E I N S T E I N certificou-se mais tarde ?, o operacionalismo é,


pela de L O R E N T Z «. é claro, esta revolução satisfaz nossos logicamente, uma doutrina insustentável, ela tem sido muito
critérios de racionalidade: as velhas teorias são explicadas influente desde então, na física, e especialmente na psicolo-
como, aproximadamente, válidas para velocidades que são gia do comportamento.
pequenas, comparadas à velocidade da luz. No que se refere Com respeito às transformações de L O R E N T Z , n ã o pa-
à revolução ideológica ligada a esta revolução científica, um rece ter-se tornado parte da ideologia o fato de que elas l i -
das seus elementos é devido ã M I N K O W S K I . Podemos afir- mitam a validade da transitoriedade da simultaneidade: o
mar este elemento através das próprias palavras de M I N - princípio da transitoriedade permanece válido dentro de cada
KOWSKI. sistema de inércia enquanto torna-se inválido para a transi-
ção de um sistema a outro. Nem tem se tornado parte da
As visões de tempo e espaço, eu desejo exibi-las a vocês — ideologia o fato de que a relatividade geral, ou mais especi-
escreveu MINKOWSKI - . . . são radicais. Doravante, o tempo ficamente, a cosmologia de E I N S T E I N , permite a i n t r o d u ç ã o
por si mesmo, e o espaço por si mesmo, estão condenados a
de um tempo cósmico preferido e, conseqüentemente, de pre-
48
feridas estruturas espaço-temporais l o c a i s .
« O poder revolucionário da relatividade especial repousa em um novo
ponto de vista que permite a derivação e a interpretação das transfor-
mações de LORENTZ a partir de dois princípios simples. A grandeza 45 Ver H. MINKOWSKI, "Espaço e tempo" em A. EINSTEIN, H. A. L O -
r e v l u & 0 d
íff ° Ç
/ P ° e ser melhor medida pela leitura do livro de ABRA- RENTZ. H. WEYL, e H. MINKOWSKY, O Princípio da Relatividade
H A M (volume II; mencionado acima, na nota n.° 44). Este livro é um METHUEN, Londres (1923) e edição DOVER, Nova Iorque, p. 75. Sobre
pouco mais antigo que os trabalhos de POINCARE e o de EINSTEIN a citação da carta de EINSTEIN a CORNELIUS LANCZOS, mais tarde,
sobre a relatividade, contém uma completa discussão da situação do no mesmo parágrafo do meu texto, ver C. LANCZOS, "O Racionalismo
problema: da teoria de LORENTZ sobre a experiência de MICHELSON e o mundo físico" em R. S. COHEN e B. WARTOFCKI, Estudos de
e até do tempo local de LORENTZ, ABRAHAM chega, por exemplo nas BOSTON sobre a filosofia da ciência. Volume III, pp. 181-196 (1967);
páginas 143 e 370, bastante perto das idéias de EINSTEIN Até parece ver página 198.
que M A X ABRAHAM estava melhor informado sobre a situação do 47 Ver minha obra "Conjeturas e Refutações", p. 114 (com nota de roda-
problema; da teoria de LORENTZ sobre a experiência de MICHELSON pé n.° 80); também Sociedade Aberta volume II, p. 20 e a crítica em
tencial dades revolucionárias da situação do problema; bem ao contra- minha obra Lógica da descoberta científica p. 440. Apontei estas crí-
0
ía - ABRAHAM escreve, em seu prefácio, datado de março de 1905: ticas em 1950 a P. W. BRIDGMAN, que as recebeu muito generosamente.
A teoria da eletricidade parece agora ter entrado em um estado de 48 Ver A. D. EDDINGTON, Tempo, espaço e gratificação, pp-162. C A M -
desenvolvimento mais calmo". Isto mostra como é desanimador mesmo . BRIDGE UNIVERSITY PRESS (1935). É interessante, neste contexto,
para ura grande cientista como ABRAHAM prever o futuro desenvol- que DIRAC (na página 46 de seu trabalho a que se refere acima a
vimento da ciência. nota n.° 29) diga que agora ele duvida se o pensar quadri-dimenslonal

80 81
A relatividade geral foi, na m i n h a opinião, uma das uma rocha, enquanto o lado direito (o tensor de energia de
maiores revoluções científicas de todos os tempos, porque movimento) era fraco como palha.
conflitava com as maiores e bem testadas teorias até e n t ã o — No caso da relatividade geral, uma idéia que t i n h a con-
a teoria de N E W T O N sobre a gravidade e o sistema solar. E l a
siderável influência do espaço curvo quadridimensional. Esta
contém, como deveria, a teoria de N E W T O N com uma apro-
idéia, certamente, desempenha um papel em ambas as revo-
ximação; todavia, ela a contradiz em vários pontos. E l a re-
vela resultados diferentes para as órbitas elíticas de apreciá- luções, científica e ideológica. Mas isto torna ainda mais i m -
vel excentricidade; e impõe a surpreendente resultado de que portante distinguir a revolução científica da ideológica.
qualquer partícula física (incluindo os fótons) que se apro- Contudo, os elementos ideológicos da revolução einstei-
xime do centro de um campo gravitacional com uma velo- niana influenciaram cientistas, e, portanto, a h i s t ó r i a da
cidade excedendo seis décimos da velocidade da luz, n ã o é ciência; e esta influência n ã o foi toda para o bem.
acelerada pelo campo gravitacional, como na teoria de N E W -
T O N , porém desacelerada, isto é, n ã o a t r a í d a por um corpo Primeiro de tudo, o mito de que E I N S T E I N tenha atin-
4 9
pesado, mas repelida . gido este resultado por um uso essencial de m é t o d o s episte-
Este resultado surpreendente e emocionante tem enfren- mológicos e especialmente operacionais, n ã o produziu, em m i -
tado testes; mas, n ã o parece ter se tornado parte da ideologia. n h a opinião, um efeito devastador sobre a ciência. (É irrele-
É esta derrocada e a correção da teoria de N E W T O N que, vante se resultados são obtidos — especialmente bons resul-
de um ponto de vista científico (em oposição a uma ideolo- tados — por sonhar com eles, ou por tomar café, ou mesmo
gia) são o mais significante na teoria geral de E I N S T E I N . por u m a epistemologia errada) -"-a. m segundo lugar, tem¬
E

Isto implica, é claro, que a teoria de E I N S T E I N possa ser com- -se a i m p r e s s ã o de que a m e c â n i c a dos "quanta", a segunda
50
parada ponto por ponto, com a de N E W T O N e que ela con- grande teoria revolucionária do século, deve sobrepujar a
serva a teoria cie N E W T O N como uma aproximação. Não revolução einsteiniana, especialmente a respeito dc sua pro-
obstante, E I N S T E I N nunca acreditou que sua teoria íosse, fundidade epistemológica. Parece-me que esta c r e n ç a afetou
meramente, um estágio passageiro: ele a chamava de "efê- alguns dos grandes fundadores da m e c â n i c a dos "quanta" ^
mera" si. E disse a L E O P O L D O I N F E L O ^ que o lado esquer-
53 e t a m b é m alguns dos grandes fundadores da biologia mo-
do de sua equação (o tensor da curvatura) era sólido como
lecular 55 Configurou-se uma dominação de u m a interpreta-
ção subjetivista dá mecânica dos "quanta"; u m a interpre-
é um requisito fundamental da física. (É um requisito fundamental para t a ç ã o que tenha combatido por quase quarenta anos. Nao
a direção de um automóvel).
49 Mais precisamente, um corpo caindo do infinito a uma velocidade posso descrever aqui a situação; mas enquanto eu estiver
V > c/3 \ em direção ao centro de um campo gravitacional será cons- cônscio da f a ç a n h a deslumbrante da m e c â n i c a dos quanta
tantemente desacelerado à medida em que se aproxima deste centro.
50 Ver a referência a TROLES EGGERS HANSEN, citada na nota n.° 27,
acima; e PETER HAUAS, "Formulações quadri-dimens!onais da mecâ-
nica newtoniana e sua relação à teoria geral e especial da relaticidade", 5 3 a Acredito que o parágrafo 2.° do famoso trabalho de EINSTEIN "DIE
REVS. MOD. PHYS. 36, pp. 938-965 (1964) e "Problemas de fundamento Ê
G R U N D L Í G E D E R ÁLLGEMEINEN ^ L A T I V p A T S T H E O R I E (ver
em relatividade geral", no Seminário de DELAWARE sobre os funda- nota n<> 53, acima; teoria geral da relatividade", O Principio d a r e
mentos da física" (edição M. BUNGE), pp. 124-148 (1967). A compa- latividade", pp. 111-164. Ver nota 46, acima) usa maLs " e n t o
ração, é claro, não é trivial: ver, por exemplo, a página 52 do livro de epistemológicos questionáveis contra o espaço absoluto de NEWTON e
E. WIGNER a que se refere, acima, a nota n.° 24. a favor de uma teoria muito importante.
M Ver C. LANCZOS, op. cit., p. 196.
52 Ver LEOPOLDO INPELD, Indagação, p. 90. VICTOR GOLLANCZ, Lon- 54 Especialmente HEISENBERG e BOHR.
dres (1941). 55 Aparentemente afetam M A X DELBRUCK; ver "Perspectivas da Historia
53 Ver A. EINSTEIN, "DIE FELDGLEICHUNGEM DER GRAVITATION". Americana-, volume II, HARVARD UNIVERSITY PRESS. (1968), Fí-
a
SBER. AKAD. WISS. BERLIN, 2. . parte, pp. 844-847 (1915); DIE sicos emigrados e a revolução biológica", por DONALD FLEMING pp.
GRUNDLAGE DER ÁLLGEMEINEN RELATIVITATSTHEORIE, ANNLN 152-189, especialmente as seções IV e V (Devo esta referencia ao Pro-
PHYS. 49, pp. 769-822 (1916). fessor MOGENS BLEGVAD).

82 83
(o que n ã o nos deve fechar os olhos ao fato de que ela é,
56
seriamente, incompleta) sugiro que a i n t e r p r e t a ç ã o orto-
doxa da m e c â n i c a dos "quanta" n ã o é parte da física, mas
uma ideologia. De fato, é parte de uma ideologia modernista
e tem se tornado uma moda científica que se apresenta como
!
sério obstáculo ao progresso da ciência.

XIV

Espero ter esclarecido a distinção entre uma revolução O QUE ENTENDO POR FILOSOFIA
científica e uma revolução ideológica, que pode, de vez em
quando,' ser ligada à primeira. A revolução ideológica pode
servir à racionalidade ou pode solapá-la. Porém, freqüente- Um vigoroso e famoso trabalho de meu falecido amigo
mente, nada mais é do que uma moda intelectual. A i n d a que Friedrich Waisman tem por t í t u l o "How I see Philosopfiy"
esteja ligada a uma revolução científica, pode ser de um ca- (O que eu entendo por filosofia) i. Esse trabalho c o n t é m m u i -
r á t e r altamente irracional; e pode, conscientemente, quebrar ta coisa que admiro e apresenta uma série de pontos com os
uma tradição. quais concordo, embora os tivesse abordado de maneira to-
Mas, uma revolução científica, embora radical, n ã o pode talmente diversa da dele.
realmente quebrar uma tradição, visto que ela deve preser-
var o sucesso de seus predecessores. É por isto que as revo- F r i t z Waisman e muitos dos seus colegas t ê m como cer-
luções científicas são racionais. Com isto não quero dizer, é to que os filósofos constituem um tipo especial de gente e
claro, que os grandes cientistas que fazem uma revolução se- que a Filosofia nada mais é que a atividade exclusiva dos
jam, ou devam ser, seres inteiramente racionais.' Pelo con- mesmos. Nesse seu trabalho ele pretente mostrar, com a u x í -
trário, embora tenha estado discorrendo aqui para a racio- lio de uns exemplos, o que constitui o c a r á t e r distintivo de
nalidade das revoluções científicas, meu palpite é de que se um filósofo e o caráter distintivo da filosofia, comparados
os cientistas individuais tornarem-se "objetivos e racionais" com outras disciplinas acadêmicas como a m a t e m á t i c a ou a
no sentido de "imparciais e desprendidos", e n t ã o encontrare- física. Assim, ele tenta, especialmente, descrever os interes-
mos barrado o progresso na ciência por um obstáculo i m - ses e atividades de filósofos acadêmicos c o n t e m p o r â n e o s
penetrável.
como continuadores da obra dos filósofos do .passado.
T r a d u ç ã o de Apio Cláudio M u n i z Acquarone Filho, do Além de considerar tudo isso deveras interessante, o tra-
original "The rationality of scientific revolutions", in.: balho de Waisman evidencia um considerável envolvimento
Problems of Scientific Revolution: progress and obsta-
pessoal nestas atividades a c a d ê m i c a s , de arrebatamento mes-
cles to progress in the sciences. The Herbert' Spencer
mo. E s t á patente que ele próprio é um filósofo de corpo e
Lectures 1973, Clarendon Press, Oxford, 1975.
alma, se enquadrando neste grupo especial de filósofos, e que
58 Está claro que uma teoria física que não explica tais constantes como deseja claramente nos transmitir algo desse arrebatamento
o elementar "quantum" elétrico (ou a constante da estrutura pura) é que é compartilhado pelos membros dessa comunidade algo
incompleta; nada diz do espectro da massa das partículas elementares.
Ver meu trabalho "A mecânica dos quanta" sem o "observador" â que exclusiva.
se refere a nota n.° 44.
Quero agradecer a TROELS EGGERS HANSEN, ao Reverendo
MICHAEL SHARRATT, Dr. HERBERT SPENGLER, e ao Dr. MARTIN i F. Waisman, em H. D. Lewis (ed.), Contemporary British Philosophy,
a
WENHAM pelos comentários críticos sobre esta conferência. 3. série, z." ed., George Allen & Unwin, Ltd., London 1961, pp. 447-490.

84 85
II Eu me refiro à Apologia de P l a t ã o , pois de todos os tra-
balhos filosóficos escritos a t é hoje é deste que mais gosto. Eu
A maneira pela qual encaro a Filosofia é totalmente di- suponho que seja historicamente verdadeiro — que ele nos
versa. Eu acho que todos os homens e mulheres são filósofos, conte, na íntegra, o que Sócrates disse diante do corte de
embora uns mais outros menos. Concordo, evidentemente, Atenas. Gosto, porque aqui fala um homem modesto e des-
que existe um grupo exclusivo e distinto de pessoas, os filó- temido. E sua apologia é muito simples: ele insiste em dizer
sofos acadêmicos, mas longe estou de compartilhar do en- que está consciente de suas limitações, as quais n ã o são sá-
tusiasmo de Waisman pelas suas atividades e por sua aproxi- bias, exceto possivelmente na conscientização de que ele não
m a ç ã o ; ao c o n t r á r i o , sinto que há muito para ser dito por é um sábio, mas um crítico, especialmente de toda lingua-
aqueles (eles são, na minha opinião, um tipo de filósofo) que gem que soe difícil, embora um amigo de seus semelhantes
e um bom cidadão.
desconfiam do filósofo acadêmico. De qualquer maneira, sou
veementemente contrário a uma idéia (uma idéia filosófi- Esta n ã o é somente a apologia de Sócrates, mas, ã meu
ca), cuja influência, embora não analisada e nunca mencio- ver, uma apologia notável para a filosofia.
nada, impregna o brilhante ensaio de Waisman; eu me refiro
2
à idéia de uma elite filosófica e intelectual . IV
Eu admito, naturalmente, que existiram uns poucos que
Mas, vamos ao caso da a c u s a ç ã o contra a filosofia. M u i -
reputo terem sido grandes e verdadeiros filósofos, assim como
tos filósofos — e dentre eles alguns dos maiores — n ã o che-
um pequeno n ú m e r o de filósofos que, apesar de admiráveis
garam a produzir algo de bom. Citarei quatro dos mais im-
em muitos sentidos, não chegaram a ser grandes. Entretanto,
embora o que eles produziram seja da maior importância portantes — Platão, Hume, Spinoza e K a n t .
para qualquer filósofo acadêmico, a filosofia não depende de- Platão, o maior, o mais profundo e o mais dotado de to-
les da maneira que a pintura depende dos grandes pintores dos os filósofos, tinha uma visão da vida humana que eu con-
ou a m ú s i c a dos grandes compositores. Além disso, a grande sidero repulsiva e deveras horrificante. Assim mesmo, ele foi
filosofia — por exemplo aquela dos pré-socráticos — precede n ã o somente um grande filósofo e o fundador da maior es-
toda a filosofia profissional e acadêmica. cola de filósofos, mas t a m b é m um grande e inspirado poeta;
e ele escreveu, dentre outros belos trabalhos, A Apologia de
Sócrates.
O que o afligia e a tantos outros filósofos profissionais
III
que lhe sucederam, em declarada c o n t r a p o s i ç ã o a Sócrates,
era acreditar na elite: no Reinado da Filosofia. Enquanto Só-
A meu ver, a filosofia profissional não tem produzido
crates exigia dos homens de estado que fossem sábios, ou seja,
grandes coisas. E l a carece urgentemente de uma "apologia
pro vita sua" — uma defesa de sua' existência. conscientes do pouco que sabem, P l a t ã o achava que os sá-
bios, os doutos filósofos, deviam ser os ditadores absolutos
Eu chego a sentir que o fato de eu próprio ser um filó- das regras. (Sempre, desde P l a t ã o , a megalomania tem sido
sofo profissional é um ponto contra mim, eu o sinto como a doença profissional mais difundida entre os filósofos.)
uma a c u s a ç ã o . Eu devo declarar-me culpado e, como Sócra- Além do mais, no décimo livro de As Leis, Platão inventou
tes, fazer m i n h a apologia. uma instituição que inspirou a I n q u i s i ç ã o , e ele chegou per-
to de recomendar campos de c o n c e n t r a ç ã o para a cura das
2 Esta idéia vem à baila frente a observações de Waisman tais como: almas dos dissidentes.
"Na verdade, um filósofo é um homem que sente como se houvesse ten- David Hume, um filósofo profissional e, depois de Sócra-
das ocultas na construção de nossos conceitos, enquanto outros somente
vêem o caminho suave dos lugares comuns diante de si". Ibid, p. 448. tes, talvez o mais cândido e equilibrado de todos os grandes

86 87
filósofos e um homem deveras modesto, racional e razoavel- terminado e mesmo previsível. Em segundo lugar, embora
mente desapaixonado, devido a uma teoria psicológica infeliz tenha sentido, de alguma maneira, que um excesso daquilo
e e r r ô n e a (e por causa de uma teoria do conhecimento que que Spinoza entende por " p a i x ã o " nos tire a liberdade, a sua
lhe ensinava a menosprezar a t é mesmo seus próprios pode- fórmula — citada por mim — nos faria não-responsaveis
res notáveis de raciocínio), foi levado à horrifiçante doutrina, por nossas ações, sempre que n ã o possamos tomar consciên-
segundo a qual a "Razão é, e somente deve ser, o escravo de cia, de uma maneira adequadamente racional, distinta e cla-
paixões, e nunca poderá pretender a nenhuma outra função ra,' dos motivos dessas mesmas ações. Mas posso assegurar
3
que a de servi-las e o b e d e c ê - l a s " . Estou pronto a admitir que nunca haveremos de chegar a tal e, embora^ o fato
que nada de grande jamais foi a l c a n ç a d o sem paixão, mas de ser racional em nossas ações e em nossas t r a n s a ç õ e s com
acredito exatamente no oposto da afirmação de Hume. O do- o nosso próximo seja, a meu ver, um objetivo dos mais i m -
m í n i o das nossas paixões através daquela racionalidade l i m i - portantes (e Spinoza certamente t a m b é m pensava assim),
tada da qual somos capazes é,'a meu ver, a ú n i c a esperança eu penso que poderemos dizer tê-lo a l c a n ç a d o .
para a humanidade. K a n t um dos poucos pensadores realmente originais e
Spinoza i— um santo dentre os grandes filósofos e, como admiráveis dentre os filósofos de profissão, tentou solucionar
Sócrates e Hume, n ã o era filósofo de profissão — ensinava o problema de Hume, da rejeição da razão, e o problema de
praticamente o contrário de Hume, mas de uma maneira não determinismo de Spinoza, falhando, entretanto, em ambos
somente errônea como eticamente inaceitável. Ele era um os casos.
determinista (a exemplo de Hume) e a liberdade do homem
Estes são alguns dos maiores filósofos, que eu muito
residia unicamente no fato de se ter um claro, distinto e
adequado entendimento das causas verdadeiras de nossas admiro. Vocês entenderão porque eu devo fazer apologia da
ações: " U m afeto — que é uma paixão — deixa de ser uma filosofia.
4
p a i x ã o tão logo dele seja formada u m a i d é i a " . Enquanto
se trata de uma paixão, estamos em suas garras e sem l i -
berdade, mas quando chegamos a formar uma idéia clara e V
distinta, embora ainda subjugados pela paixão, nós a trans-
formamos numa parte de nossa razão. E isto apenas c l i - Eü nunca fui um membro do Círculo de Viena, dos po-
berdade. sitivistas lógicos como os meus amigos F r i t z Waisman Her-
bert Feigl e Victor Kraft. Na verdade, Otto Neurath chama-
Eu considero estes ensinamentos uma forma perigosa e va-me "a opinião oficial". Eu nunca fui convidado para ne-
i n s u s t e n t á v e l de racionalismo, mesmo sendo eu próprio um nhuma das reuniões do Círculo, talvez devido a m m h a co-
racionalista de certo tipo. Antes de tudo, eu n ã o acredito no nhecida oposição ao positivismo. (Eu teria aceito um convite
determinismo, e n ã o acho que Spinoza ou qualquer outro te- com imenso prazer, pois n ã o somente alguns dos membros
n h a desenvolvido argumentos bastante sólidos para funda-
do Círculo eram amigos meus pessoais, mas eu t a m b é m
mentar esta teoria ou estabelecer uma reconciliação do deter-
nutria a maior admiração por alguns dos outros _ mem-
minismo com a liberdade humana (e, portanto, com o senso
bros ) Sob a influência do Tractatus Logico-Philosophicus de
comum). Parece-me que o determinismo de Spinoza é um
Ludwig Wittgenstein, o Círculo tornou-se n ã o somente anti-
erro típico dos filósofos, embora tenhamos que reconhecer
metafísico como antifilosófico. Schliclc, o líder do Circulo &,
que muito do que estamos fazendo (mas não tudo) seja de-
formulou este princípio mediante a profecia de que a filoso-
fia "que nunca fala com sentido, mas somente a t r a v é s de
3 David Hume, A TreatUe of Human Nature, 1739-1740; ed. Selby-Blgge,
Olarendon Press, Oxford, 1888 (e muitas edições ulteriores), livro H,
parte iii, sec. III, p. 415. 5 o Círculo de Viena era, na verdade, um seminário particular de Schlick
4 Benedictus de Spinoza, Ethics, livro V, proposição III. e os membros eram convidados pessoalmente por ele.

88 89
absurdos sem sentido", desaparecerá brevemente, pois os f i - 2. Eu não entendo por filosofia uma série de trabalhos
lósofos descobrirão que sua audiência, cansada de tiradas de arte, tal como notáveis e originais modos, de descrever o
vazias, foi-se embora. mundo. Eu acho que se nós encaramos a Filosofia dessa ma-
Waisman concordou com Wittgenstein e Schlick duran- neira, cometemos uma verdadeira injustiça para com os gran-
te muitos anos. Eu acho que posso detectar em seu entusias- des filósofos. Os grandes n ã o estavam preocupados com um
mo pela Filosofia o entusiasmo do convertido. esforço estético. Eles n ã o tentaram ser arquitetos de sistemas
Eu sempre defendi a filosofia, e mesmo a metafísica, con- engenhosos, mas como os grandes cientistas, eles eram antes
tra o Círculo, embora tendo que admitir que os filósofos n ã o de tudo pessoas que procuravam a verdade — q u e procura-
estavam produzindo grandes coisas. Isto porque eu acredi- vam soluções verdadeiras de problemas genuínos. Não, eu
tava que muita gente, e eu dentre eles, tinha problemas considero a história da Filosofia como uma parte essencial
genuinamente filosóficos de vários graus de seriedade e d i - da história da busca da verdade e rejeito o aspecto 'puramente
ficuldade, e que estes problemas não eram insolúveis. estético da mesma, embora a beleza seja importante na filo-
Na verdade, a existência de problemas filosóficos sérios sofia, como na ciência.
e urgentes e a necessidade de discuti-los criticamente é, a Eu sou p a r t i d á r i o da a u d á c i a intelectual. Nós n ã o pode-
meu ver, a ú n i c a apologia para aquilo chamado de filosofia mos ser intelectualmente covardes e ao mesmo tempo buscar
acadêmica ou profisisonal. a verdade. Aquele que busca a verdade deve ousar ser sá-
Wittgenstein e o Círculo de Viena negavam a existência bio — ele deve ousar ser um revolucionário no campo do
de problemas filosóficos sérios. pensamento.
De acordo cõm a parte final do Tractatus, os problemas 3. Eu n ã o considero a longa história dos sistemas filo-
aparentes da filosofia (incluindo aqueles do Tractatus) s ã o sóficos como um dos edifícios intelectuais onde todas as idéias
pseudo-problemas, que surgem por se falar sem se ter dado possíveis são testadas e onde a verdade pode talvez vir à luz
sentido a todas as nossas palavras. Esta teoria pode ser con- como um subproduto. Eu acredito que estamos cometendo
siderada como inspirada pela solução de Russell de paradoxos uma injustiça para com os filósofos verdadeiramente gran-
lógicos como pseudo-proposições que nem são verdadeiras des, do passado, se duvidamos, por um momento, que cada
nem falsas, mas sem significado. Isto conduz à moderna téc- um deles não teria se desvencilhado do seu sistema (o que
nica filosófica de estigmatizar todo tipo de proposições i n - ele deveria ter feito) tivesse ele se convencido de que, embora
convenientes ou problemas como "sem sentido". O já falecido brilhante, talvez, n ã o estava dando um passo no caminho da
Wittgenstein costumava falar de "quebra-cabeças" resultan- verdade. (Esta, a propósito, é a razão pela qual n ã o considero
tes de abusos filosóficos de linguagem. Eu só posso dizer que, Fichte ou Hegel como verdadeiros filósofos: eu desconfio da
se n ã o tivesse problemas filosóficos sérios e n ã o tivesse es- sua devoção pela verdade.)
perança de resolvê-los, eu não teria razão de ser um filósofo. 4. Eu n ã o entendo por Filosofia uma tentativa, seja de
A meu ver, h ã o haveria apologia para a filosofia. esclarecer, analisar ou "explicar" conceitos, palavras ou l i n -
guagens.
Conceitos ou palavras são meros instrumentos para for-
VI mular proposições, conjeturas e teorias. Conceitos ou pa-
lavras não podem ser verdadeiros per se: eles servem mera-
Nesta seção enumerarei algumas idéias filosóficas e ati- mente à linguagem humana descritiva e de a r g u m e n t a ç ã o .
vidades que são muitas vezes tidas como c a r a c t e r í s t i c a s da Nosso objetivo n ã o deveria ser analisar significados, mas bus-
filosofia e que eu, positivamente, reputo insatisfatórias. A se- car verdades importantes e interessantes, ou seja, teorias
ção poderia ser intitulada: "O que n ã o entendo por filosofia". verdadeiras.
1. Eu n ã o entendo por filosofia a solução de quebra- 5. Eu n ã o entendo por Filosofia uma maneira de ser
cabeças lingüísticos. esperto.
90 91
6. Eu n ã o entendo por Filosofia um tipo de terapia in- tadas sem um exame crítico, apesar de serem de grande i m -
telectual (Wittgenstein), uma atividade voltada para ajudar portância para os atos p r á t i c o s da pessoa e para toda a sua
as pessoas diante de perplexidades filosóficas. Na m i n h a opi- vida.
nião, Wittgenstein (em seu último trabalho) não mostrou ao É uma apologia para a e x i s t ê n c i a da filosofia profissio-
inseto o caminho para sair da garrafa. Mais especificamente, nal os homens terem que examinar criticamente estas teorias
eu vejo no inseto, incapaz de escapar da garrafa, um sur- tão poderosas e difundidas.
preendente auto-retrato de Wittgenstein. (Wittgenstein era Teorias como estas são um ponto de partida precário
um caso wittgensteiniano — assim como Freud era um caso para toda ciência e toda filosofia. Toda filosofia deve partir
Freudiano.) de pontos dúbios, e muitas vezes perniciosos, do senso comum
7. Eu n ã o considero a Filosofia como um estudo visan- não-crítico. Seu objetivo é a l c a n ç a r o senso comum crítico e
do expressar as coisas com mais precisão ou exatidão. Preci- esclarecido: a l c a n ç a r um ponto mais perto da verdade e com
são e exatidão n ã o são valores 'intelectuais por si mesmos e uma influência menos perniciosa na vida humana.
nunca devemos tentar ser mais precisos ou exatos do que o
exigido pelo problema que temos em mãos.
8. Da mesma maneira, eu não considero a Filosofia VIII
como uma tentativa de suprir as fundações ou a estrutura
conceptual para solucionar problemas que podem vir a apa- Apresentarei alguns exemplos de preconceitos filosóficos
recer num futuro p r ó x i m o ou mais distante. John Lock fez difundidos.
isto: ele queria escrever um ensaio sobre ética e achou ne- Existe uma visão filosófica da vida, de grande influên-
cessário antes fornecer as preliminares conceptuais. cia, no sentido de que sempre que algo realmente ruim (ou
Seu Ensaio consiste destas preliminares, e á filosofia bri- que nos desagrada profundamente) acontece no mundo, en-
t â n i c a , desde e n t ã o (com muito poucas exceções, como al- tão tem que haver a l g u é m r e s p o n s á v e l por isto: deve haver
guns ensaios políticos de Hume), permaneceu atolada nestas alguém que provocou isto intencionalmente. Esta idéia é
preliminares. muito antiga.
9. Outrossim, n ã o considero a Filosofia como uma ex- Para Homero a inveja e fúria dos deuses eram os respon-
pressão do espírito da época. Esta é uma idéia hegeliana que sáveis por quase todas as d e s g r a ç a s que aconteciam no campo
n ã o resiste à crítica. Existem modas na filosofia, como na antes de Tróia e a Tróia mesma; e Poseidon foi responsa-
ciência. Mas um pesquisador genuíno da verdade n ã o segui- bilizado pelas desventuras de Odisseu. Mais tarde, no pensa-
rá a moda; ele desconfiará de modas e haverá mesmo que mento cristão, é o demônio o r e s p o n s á v e l pelo mal; no mar-
combatê-las. xismo vulgar é a c o n s p i r a ç ã o dos cobiçosos capitalistas que
impede o advento do socialismo e o estabelecimento do céu
na terra.
VII A teoria que considera guerra, pobreza e desemprego
como um resultado de alguma má i n t e n ç ã o , de algum pro-
Todos os homens e todas as mulheres são filósofos. Se jeto sinistro, faz parte do senso comum mas n ã o é crítica.
eles não t ê m consciência de seus problemas filosóficos, de Eu chamei esta teoria n ã o - c r í t i c a do senso comum de "teoria
qualquer maneira eles t ê m preconceitos filosóficos. Na maio- de conspiração da sociedade". Pode-se mesmo c h a m á - l a a teo-
ria das vezes trata-se de teorias que eles tomam como cer- ria de conspiração do mundo. É amplamente difundida e,
tas: eles absorveram as mesmas através do meio ambiente como uma busca de bodes e x p i a t ó r i o s , inspirou muitos con-
intelectual ou pela t r a d i ç ã o . flitos políticos e gerou os mais t e r r í v e i s sofrimentos.
Considerando que poucas destas teorias sao adotadas Um aspecto da teoria de c o n s p i r a ç ã o da sociedade é que
conscientemente, elas são preconceitos, uma vez que são ado- ela encoraja reais conspirações. M a s , u m a investigação crí-

92 93
tica mostra que conspirações quase nunca a l c a n ç a m seus fins. prio (isto foi feito por Hume, que pregava a m o d é s t i a e o
L e n i n , que sustentava a teoria da conspiração, foi um cons- ceticismo com respeito aos nossos poderes de razão, os seus
pirador, e da mesma maneira Mussolini e Hitler. Mas os ob- próprios i n c l u í d o s ) ; como regra somente era aplicada ao p r ó -
jetivos de Lenin n ã o foram concretizados na Rússia, nem os ximo — cuja opinião difere da nossa. E l a nos impede de es-
objetivos de Mussolini ou Hitler foram alcançados na I t á l i a cutar pacientemente as opiniões divergentes das nossas e de
e Alemanha. considerá-las seriamente, porque nós podemos t a c h á - l a s como
Todos estes conspiradores se tornaram conspiradores "interesses" do próximo.
porque acreditavam, sem espírito crítico, numa teoria de Mas, isto torna impossível uma discussão racional. Leva
conspiração da sociedade. a uma deterioração de nossa curiosidade natural, de nosso
Pode ser talvez uma modesta, mas não completamente interesse em descobrir a verdade das coisas. Ao invés da i m -
insignificante contribuição à Filosofia, chamar a t e n ç ã o para portante pergunta "O que é a verdade sobre este assunto?",
os erros da teoria de conspiração da sociedade. Além do mais, levanta outra questão, decididamente menos importante: "O
esta contribuição conduz a outras contribuições tais como ã que é o seu interesse próprio, quais são seus motivos ocul-
descoberta do significado para a sociedade de conseqüências tos?". Impede que aprendamos com as pessoas cujas opiniões
não premeditadas de atos humanos, e à sugestão de consi- diferem da nossa, e conduz a uma dissolução da unidade da
derarmos como sendo a finalidade das ciências sociais teóri- humanidade, unidade esta que está fundada na nossa racio-
cas a descoberta daquelas relações sociais quê acarretam as nalidade comum.
conseqüências n ã o premeditadas das nossas ações. Um semelhante preconceito filosófico é a tese, pre-
O problema da guerra, por exemplo. Mesmo um filósofo sentemente muito difundida, de que a discussão somente é
crítico da envergadura de Bertrand Russell acreditava que possível entre pessoas que concordam entre si quanto a prin-
temos de explicar guerras por motivos psicológicos — por cípios básicos. Esta perniciosa doutrina implica em que uma
causa da agressividade humana. Não nego a existência da discussão crítica ou racional sobre princípios é impossível e
agressividade, mas me surpreende que Russell n ã o visse que conduz a conseqüências tão indesejáveis como aquelas das
as guerras modernas, em sua maioria, foram inspiradas mais doutrinas discutidas anteriormente . 6

por medo de agressão do que por agressividade pessoal. F o - . Estas doutrinas são adotadas por muita gente, mas per-
ram, ou guerras ideológicas inspiradas pelo medo do poder de tencem a um campo de filosofia que foi uma das principais
alguma conspiração, ou guerras que n i n g u é m queria, mas que preocupações de muitos filósofos profissionais: a teoria do
surgiram como resultado do medo inspirado por alguma si-
conhecimento.
t u a ç ã o objetiva. Um exemplo é o medo m ú t u o de agressão,
que conduz a uma corrida de armamentos e d a í à guerra,
talvez a uma guerra preventiva como a que, mesmo Russell, IX
um inimigo da guerra e da agressão, recomendou uma vez,
temendo (com razão) que a Rússia logo tivesse a bomba de A meu ver, os problemas da teoria do conhecimento for-
hidrogênio. (Ninguém desejava a bomba: foi o medo de mam o verdadeiro coração da filosofia, tanto da filosofia do
Hitler vir a monopolizá-la que levou à sua construção.) senso comum popular ou não-crítico como da filosofia aca-
Ou, então, tomemos um exemplo diferente de um pre- dêmica. Eles são mesmo decisivos para a teoria da ética (co-
conceito filosófico. Existe o preconceito de que as opiniões mo Jacques Monod nos advertiu, recentemente"?).
de um homem são sempre determinadas pelo seu interesse
p r ó p r i o . Esta doutrina (que pode ser descrita como u m a for- 6 Vide também meu trabalho "The Myth of the Pramework", em Schilpp
ma degenerada da doutrina de Hume de que a r a z ã o é, e deve Pestschrift, The Abdication of Philosophy, ed. E. Freeman, Open Court.
La Salle, Illinois.
ser, o escravo das paixões) não é uma regra aplicada ao p r ó - 7 Jacques Monod, Chance and Necessity, Alfred Knopf Inc., New York, 1971.

94 95
Focalizado sob um prisma mais simples, o principal pro-
blema aqui como em outras áreas da filosofia é o conflito
entre "otimismo e p i s t e m o l ó g i c o " e "pessimismo e p i s t e m o l ó - certos conhecimentos; tudo o que é conjetura, segundo esta
gico". Podemos ter conhecimento? A t é onde podemos enten- teoria, nao é realmente "conhecimento". Eu repudio este ar-
der? Enquanto o otimista e p i s t e m o l ó g i c o acredita na possibi- gumento como meramente verbal. Eu devo admitir que o ter-
lidade do conhecimento humano, o pessimista acredita que mo "conhecimento" traz consigo, em todas as linguagens que
o conhecimento genuíno está além do poder do homem. conheço, a conotação da certeza; mas o programa do senso
Eu sou um admirador do senso comum, embora não de comum, no sentido de começar a partir daquilo que parece
todo ele; acho que o senso comum é nosso único ponto de ser o conhecimento mais seguro ou básico que podemos ad-
partida possível. Mas nós não devemos tentar erigir um edi- quirir (conhecimento observacional), a fim de erigir sobre
fício seguro de conhecimento sobre ele, pois, ao contrário, de- estes fundamentos um edifício de conhecimento seguro, n ã o
vemos c r i t i c á - l o e m e l h o r á - l o . Portanto, eu sou um realista resiste à crítica. A propósito, ela conduz a duas visões da rea-
do senso comum; eu acredito na realidade da m a t é r i a (que lidade isentas do senso comum, que entram em c o n t r a d i ç ã o
considero como o verdadeiro' paradigma daquilo que a pa- direta uma com a outra:
lavra "real" deve denotar), e por esta r a z ã o , eu deveria cha-
mar a m i m mesmo um "materialista", n ã o fosse pelo fato 1. Imaterialismo (Berkeley, Hume, M a c h ) .
de que este termo t a m b é m denota um credo que (a) conde- 2. Materialismo behaviourista (Watson, Skinner).
na a m a t é r i a como essencialmente i r r e d u t í v e l e (b) nega a A primeira destas nega a realidade do fato, porque a ú n i -
realidade dos campos imateriais de forças e, naturalmente, ca base certa e segura de nosso conhecimento são nossas pró-
t a m b é m da mente, ou consciência; e de qualquer outra coisa prias experiências relativas à -percepção; e estas permanecem,
que não seja matéria. para todo o sempre, imateriais.
Eu sigo o senso comum na suposição de que existem am- A segunda nega a existência da mente (e, portanto, da
bos, m a t é r i a ("mundo 1") c mente ("inundo 2"), c eu pro- liberdade humana), porque tudo o que podemos realmente
ponho que t a m b é m existem outras coisas, especialmente, os observar é o comportamento humano que é em cada faceta
produtos da mente humana, que incluem nossas conjeturas como o comportamento animal (exceto que incorpora um
científicas, teorias, e problemas ("mundo 3"). Em outras pa- campo importante e amplo, "comportamento l i n g ü í s t i c o " ) .
lavras, eu sou um pluralista do senso comum. Eu estou bem
preparado para ver esta p o s i ç ã o criticada e s u b s t i t u í d a por Ambas estas teorias estão baseadas na ilegítima teoria
uma mais válida, mas todos os argumentos críticos contra do conhecimento do senso comum, que conduz a u m a crítica
ela que conheço são, na minha opinião, ilegítimos^. (A pro- tradicional, mas n ã o válida da teoria do senso comum sobre
p ó s i t o , eu considero o pluralismo aqui descrito como sendo a realidade. Ambas estas teorias n ã o são eticamente neutras,
necessário à ética.) mas perniciosas; se eu desejo confortar uma criança que cho-
ra, eu nao. desejo parar com algumas percepções irritantes
Todos os argumentos que foram enunciados contra um (minhas ou suas); nem desejo mudar o comportamento da
realismo pluralista são baseados no m í n i m o , numa aceitação criança; ou parar as gotas d ' á g u a de rolar de sua face abaixo.
não-crítica da teoria do senso comum do conhecimento, que Não, meus motivos são diferentes — n ã o demonstráveis, n ã o
eu considero a parte mais fraca do senso comum. dedutíveis, mas humanos.
A teoria do senso comum do conhecimento é altamente
otimista, na medida que ela equaciona conhecimento com O imaterialismo (que deve sua origem à insistência de
Descartes —• que naturalmente n ã o era um imaterialista —
de que devemos partir de uma base incontestável tal como
8 Vide, por exemplo, K . R. Popper, Objeclive Knowledge: An Evolutionary o conhecimento de nossa p r ó p r i a existência) alcançou seu
3
Approach, Clarendon Press, Oxford, 1972: 4 e d i ç ã o , 1975 (especial- apogeu na passagem do século com Ernst Mach, mas agora
mente capítulo 2). já perdeu muito de sua influência. Não está mais na moda.
96 97
O behaviourismo — a negação da existência da mente — cias terem se separado dela. Os Mathematical Principies oi
está muito na moda atualmente. Embora louve a observação, Natural Philosophy, de Newton, fizeram, na m i n h a opinião
ela n ã o somente afronta toda a experiência humana, mas a maior revolução intelectual, em toda a h i s t ó r i a da huma-
t a m b é m tenta originar a partir de suas teorias u m a teoria nidade. Este trabalho marca a realização de um sonho que
9
eticamente terrível — a teoria do condicionamento ; embo- tinha uns m i l anos; ele marca a maturidade da ciência e sua
ra nenhuma teoria ética seja, na verdade, dedutível da na- separação definitiva da filosofia. Mas o próprio Newton, co-
tureza humana. (Jacques Monod enfatizou este ponto com mo todos os grandes cientistas, permaneceu um filósofo; e
toda a r a z ã o IO; vide t a m b é m meu trabalho Open Society and apesar do perfecionismo que impregna seu trabalho, ele per-
Its Enemies (A Sociedade Aberta e Seus Inimigos) l i ) . É de maneceu um pensador crítico, um pesquisador, e um cético
se esperar que esta moda, baseada n u m a aceitação n a o - c r í t i - com respeito às suas p r ó p r i a s teorias. Tanto que escreveu,
ca da teoria do conhecimento do senso comum cuja insus- em sua carta a Bentley (25 de fevereiro de 1693), sobre sua
12
tentabilidade eu tentei m o s t r a r , um dia perca a sua i n - própria teoria que envolve a ç ã o à distância (os grifos são
fluência. meus):

Que a gravidade deva ser congênita, inerente, e essencial


à matéria, a jim ãe que ninguém possa agir sobre outro a uma
X distância... é para mim um tal absurdo que eu acredito que
nenhum homem que, em assuntos filosóficos, tenha uma fa-
culdade apta de pensar possa jamais cair nisso.
O que eu considero por filosofia, nunca t e r á que ser, e
na verdade nunca poderá ser, divorciada das ciências. His-
toricamente, toda a ciência ocidental é um produto da es- Poi sua própria teoria de ação a uma distância que o
peculação filosófica grega sobre os cosmos, a ordem do m u n - conduziu necessariamente a ambos; ceticismo c misticismo.
do. Os ancestrais comuns de todos os filósofos são Homero, Ele raciocinava que se todas regiões vastamente distantes
Hesíodo e os pre-socráticos. O fundamental para eles é a ques- do espaço pudessem interagir instantaneamente u m a com
t ã o sobre a estrutura do universo, e do nosso lugar neste u n i - a outra, e n t ã o isto se deve à onipresença, ao mesmo tem-
verso, incluindo o problema do nosso conhecimento do univer- po, de uma mesma entidade em todas as regiões — à onipre-
so (um probíema que, a meu ver, permanece decisivo para sença de Deus. Poi, portanto, a tentativa de solucionar este
toda a filosofia). E é a pergunta crítica dentro das ciências, problema de ação a uma d i s t â n c i a que conduziu Newton à
suas descobertas, e seus métodos que permanecem u m a ca- sua teoria mística de acordo com a qual o espaço é o senso-
racterística da pergunta filosófica, mesmo depois de as ciên- r i u m de Deus; uma teoria na qual ele transcendeu a ciência
e que combinava filosofia crítico-especulativa e religião es-
peculativa. Sabemos que Einstein era motivado de maneira
9 o sonho do condicionador onipotente pode ser encontrado no Behaviou- similar.
rismo de Watson e também no trabalho de Skinner (por exemplo,
Beyond Freeãom and Dignity, Alfred Knopí, New York 1971). Eu posso
citar "Watson: "Dê-me uma dúzia de infantes sadios . . . e eu garanto XI
pegar qualquer ao acaso e treiná-lo para tornar-se qualquer tipo de
especialista que eu venha a escolher — médico, advogado, artista . . .
a
(ou) ladrão" (J. B. Watson, Behaviourism, 2. ed., Routledge, London, 1931, Eu admito que existem alguns problemas sutis na filo-
p. 104). Portanto, tudo dependerá das morais do condicionador onipo-
tente. (Ainda, de acordo com os condicionadores, estas morais não são sofia que t ê m seu lugar natural, e na verdade seu único l u -
nada, mas sim o produto de condicionamento.) gar, na filosofia acadêmica, por exemplo, os problemas da ló-
10 Ver nota 7. gica m a t e m á t i c a e, mais genericamente, a filosofia da mate-
11 K. R. Popper, The Open Society and its Enemies, 2 volumes, Routledge
a a
& Kegen Paul, London, 1945; 5. ed., 1969; l l . edição 1974.; Princenton m á t i c a . Eu estou imensamente impressionado pelo assombro-
University Press, Princeton, N. J., 1950; e Princeton (brochura), 1971. so progresso feito nestes campos, no nosso século. -
12 Ver Objective Knowleãge: An Evolutionary Approach, capítulo 2.
Entretanto, no que se refere à filosofia acadêmica, em
98
99
geral, eu estou preocupado com a influência do que Berkeley toda razão de nos maravilharmos com isso e nos sentirmos
costumava chamar de "filósofos do momento". A crítica é o gratos por isto. Isto é quase um milagre. Conforme os ensi-
sangue vital da filosofia, com toda a certeza. Mesmo assim,
y*>< nós devemos evitar filigranas. Uma crítica minuciosa de ques-
tões pontuais, sem um entendimento dos grandes problemas
namentos da ciência, o universo é quase vazio de m a t é r i a s ; e
onde há m a t é r i a , a m a t é r i a se encontra em toda parte num
estado caótico e inabitável. Talvez haja outros planetas com
de cosmologia, de conhecimento humano, de ética, e de filo- vida. Assim mesmo, se escolhemos, ao acaso, um lugar no u n i -
sofia política, e sem uma tentativa séria e devotada de solu- verso, então as probabilidades (calculadas com bases em nos-
cioná-los, parece-me fatal. > sa cosmologia dúbia de hoje) de encontrarmos um corpo com
É como se cada passagem impressa que pudesse, com vida naquele lugar será de zero, ou quase de zero.
algum esforço, ser mal-entendida ou mal-interpretada fosse
Portanto a vida, seja como for, tem o valor de algo raro;
bastante boa para justificar a confecção de outro trabalho
ela é preciosa. Nós somos inclinados a esquecer isto e tratar
crítico filosófico. O escolasticismo, no pior sentido da palavra,
a vida como algo sem valor, talvez por falta de reflexão, ou
abunda; todas as grandes idéias são sepultadas numa torren-
talvez porque esta nossa linda terra é, sem dúvida, um pouco
te de palavras. Ao mesmo tempo, uma certa arrogância e.
superpovoada.
rudeza — antes uma raridade na literatura filosófica — pa-
rece ser aceita pelos editores de muitos jornais, como uma Todos os homens s ã o filósofos, porque de uma maneira
prova de coragem de pensamento e originalidade. ou de outra assumem uma atitude diante da vida e da morte.
Eu acredito que é o dever de todo intelectual estar cons- Existem aqueles que pensam que a vida não tem valor por-
ciente da posição privilegiada que ocupa. Ele tem o dever de que um dia termina. Eles deixam de ver que um argumento
escrever da maneira mais simples e clara a seu alcance, e contrário t a m b é m pode ser proposto, que se n ã o existisse um
da maneira mais civilizada possível; e nunca esquecer quer fim para a vida, a vida não teria valor; que é, em parte, o
os grandes problemas que afligem a humanidade e que exi- perigo sempre presente de perdê-lá que nos ajuda a trazer
gem novas e corajosas, mas pacientes idéias, quer a modés- até nós o valor da vida.
tia de Sócrates, do homem que sabe quão pouco ele sabe.
Como fui contra os filósofos do momento com seus problemas Tradução de Vilma de Oliveira Moraes e Silva, do ori-
do momento, eu acho que a principal tarefa da filosofia é es- ginal "How I see Philosophy". In: The Owl oi Miner-
pecular criticamente sobre o universo e sobre nosso lugar no va. New York, C. J. Bontempo and S. J. Odell, Mc
universo, incluindo nossos poderes de conhecimento .e nossos Gran Hill, 1975.
poderes para o bem e para o mal.

XII

Eu deveria talvez finalizar com um pouco de filosofia


decididamente não-acadêmica.
Um dos astronautas participantes da primeira visita à
lua é recebido com uma observação simples e sábia feita.
quando de seu retorno (estou citando de m e m ó r i a ) : " E u vi
alguns planetas no meu dia, mas dê-me a terra sempre". Eu
acho isto não somente sábio, mas íilosoficamente sábio. Nós
não sabemos como estamos vivos neste pequeno planeta ma-
ravilhoso — ou porque existe algo como a vida, para fazer
nosso planeta tão maravilhoso. Mas aqui estamos e temos

100 101

Você também pode gostar